LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Cinerário, de Dario Veloso
Texto-fonte:
Cinerário, Curitiba: Livraria Mundial, 1929.
DARIO VELLOZO
CINERÁRIO
LIVRARIA MUNDIAL
França & Cia. Ltda.
Rua 15 de Novembro, 260
CURYTIBA - (Paraná-Brasil)
A DARIO VELOSO
que, durante mais de trinta anos de magistério, no cargo de lente catedrático do Ginásio Paranaense e da Escola Normal, sempre se impôs pela alta finalidade da sua missão de educador e orientador da mocidade, como ardoroso semeador de ideais, quer na cátedra, quer através da tribuna e da imprensa, os seus amigos, admiradores e ex-alunos, promovendo a publicação de uma coleção variada de suas obras, das quais apresentam o 1º volume “CINERÁRI0”, rendem justa, significativa e imorredoura HOMENAGEM em nome do PARANÁ agradecido.
Curitiba, 26 de Novembro de!929.
A COMISSÃO CENTRAL: Martins Gomes (secretário), Lacerda Pinto, Stol Nogueira, Acir Guimarães, Leão Junior, Noêmia Gutierrez (tesoureira), Marta Silva Gomes, Olivina Caron de Lucena, Aurora Espínola, Zila Ticoulat, Dario Nogueira, Gaspar Veloso, Juvêncio Mendes e Bernardo Schulman.
ESTE LIVRO É A HISTÓRIA DE UMA ALMA.
LUIZ MURAT
Mon âme a son secret, ma vie a son mystère.
ARVERS.
ÍNDICE
I - Arrebatador do Fogo: o Titã
II – Prometeu encadeado: o herói
III - Prometeu libertado: o deos
I
Alvorecer
O teu donaire, o teu sorriso,
A veludez do teu olhar,
A música sutil da voz macia
Empolgou-me,
Dominou-me,
Venceu-me!
Prendi-me em teus enlevos,
Em teus enlevos emocionais;
Prendeu-me
A poesia
De teus anseios espirituais...
Prenderam-me os relevos
De teu porte discreto;
Prendeu-me o paraíso
De teu sonho de sonho e de luar,
O sonho que sonhava
O teu olhar...
O teu olhar de nostalgia,
Olhar que me dizia
Teu almejo de amar;
De amar, e ser amada, e ser querida,
De ser amada além da vida...
O afeto
Em teus olhos flutuava
— Olhos de verde-mar, na vaga peregrina
Que beijava, em surdina,
Teu porte esbelto de condessa ‘slava.
Enlacei-te.
De Strauss a valsa acariciadora
Levou-nos, na ebriez de sonho alado...
Que morbideza a tua!
Que volúpia divina!
A languidez
De teu olhar
Dizia-me o condão da nevoa peregrina
Que velava os teus olhos verde-mar.
Flutua
Em meu passado
O aroma de teu sonho... A luz redoura
Teu cabelo, teu porte, a maciez
De teu 'rosto...
Luz da recordação!...
Luz de sol-posto!...
Amei-te!
Amei-te, meu amor, — com que ternura! —
Nos enlevos de tua formosura.
Amei-te!
Vestias seda-azul, tinhas ao peito,
Bem sobre o coração,
Uma rosa,
Rosa branca, de origem casta e pura,
Flor matinal,
Branca e formosa,
Flor, cujo aroma inebriava...
Rosa sentimental que realçava
Teu porte esbelto de condessa ‘slava.
Daquela valsa que dancei
Contigo,
Lânguida flor, de lânguido sentir,
Guardo comigo
A relembrança,
A lembrança
Da pressão de teus dedos,
De tua mão em minha mão...
O porvir,
No dealbar da simpatia,
No encantamento
Do sentimento,
Sorria,
Sorria em teu sorrir...
E adivinhava
Os teus segredos,
Sentia
A eclosão de teu amor...
Guardei
No coração
O ritmo de teu seio, a tua voz, a cor
De teus cabelos aromais;
Recordarei
De tua boca a rosa,
Fresca e deliciosa,
Flor que falava;
E teu olhar
De verde-mar
Que me fitava,
— O teu olhar que não esqueço mais!
Valsa de enlevos, valsa evocativa,
Que inebriava...
Recordação
Que aviva
Teu porte esbelto de condessa ‘slava.
Depois... a tua piedosa graça
Consentiu que valsasse ainda contigo...
A sombra do jazigo
Projetava-se, então, no meu caminho...
Peregrino que passa
E que desaparece,
Sozinho!
Minha última vontade
De condenado
Fora uma prece:
A prece de te ver,
A prece de te ver e de valsar contigo
A valsa da saudade:
Última valsa!
A Última Valsa!
Dançar contigo
E morrer!
Desolado,
Aguardava-te, imerso em desalento,
Alma que não repousa...
E tu vieste e, num momento,
Reatou-se o passado;
A lousa
De minha angústia se partiu...
Em teu olhar eu me banhava...
E no meu coração se refletiu
Teu porte esbelto de condessa ‘slava.
Toda de negro, ao peito rosa de ouro,
Rosa opulenta,
Na magia outonal de uma existência
Que ia findar;
Rosa de bom agouro,
Rosa de eflúvios de clemência,
Talismã de conforto,
Atenuando o desconforto
Da face macilenta,
A agonia dos olhos verde-mar...
Mais nobre em a nobreza do holocausto,
O teu corpo de sílfide vestia
O sudário de um sonho!...
Davas-me a extrema-unção de meu desejo,
A promessa de um beijo
Que em teus pálidos lábios revoava,
Conforto derradeiro
Ao condenado...
Eu buscava em teus olhos os ressábios
De nosso idílio,
A expressão de teus olhos, de teus lábios...
O aroma do passado...
E a expressão de teus olhos me dizia,
Em prenúncios de exílio,
A tua angústia e o teu amor;
Mas, o teu lábio me sorria,
Como um clarão na noite fria,
Como conforto à minha dor.
O fausto
De nosso anelo,
Dealbar de além risonho,
Pairava ainda em teu cabelo,
Pairava...
Como um resplandor...
Pairava...
E eu unia a meu peito,
Estreito, estreito,
Teu porte esbelto de condessa ‘slava.
De Strauss a valsa nos levou
Em ritmos leves e sutis...
Tua meiguice me empolgou,
Teu sorriso apagou
A lembrança da morte:
— Fui feliz!
Feliz de teu amor, de teu amor — mais forte
Que a própria morte!
Do salão
Os cristais refletiam tua imagem...
E eu contigo voava,
Nos arroubos da valsa,
O olhar perdido nos teus olhos lindos,
Na miragem
Do amor...
Conheci a delícia de viver
Na véspera de morrer.
Tua bondade enalteceu-me as horas;
Tuas palavras embevecedoras
Em rosicler de auroras
Mudavam tintas envenenadoras...
A ilusão
É uma flor mágica, uma flor que realça
O fulgor
Do desejo,
Eco perene de um beijo
Nos espaços infindos...
De um beijo teu
No céu.
A ilusão fundiu nossos destinos,
Senti a sua lava
Refulgir nos teus olhos peregrinos;
Senti que me abrasava
Teu porte esbelto de condessa ‘slava.
Como os rosais
De Isfahan,
Certa manhã
Refloresceram
Os roseirais de nosso amor...
A tormenta passara;
Floriam corações
Em teu louvor.
Das noites estivais,
Românticas e belas,
Volveram,
Em turbilhões feéricos de estrelas,
Fiandeiras de nossos ideais,
As nossas ilusões;
Iluminou-se o teu semblante,
E do teu rosto as rosas espontaram
Ao sol levante.
Em teus lábios passaram,
Em revoadas,
Leves sorrisos joviais;
Em teu olhar cantava
A luz das alvoradas:
Cantava a luz que não esqueço mais...
Na viva essência de um rosai em flor,
Cantava um trovador;
Cantava
Teu porte esbelto de condessa ‘slava.
Teu porte esbelto, fino e leve,
Cingido
Em seda branca,
Tecido
De esperança
E de luar,
Mais realçava a boca de criança,
A tua boca encantadora,
Breve
Pétala de rosa;
Mais realçava a cabeleira loura
E a expressão deliciosa
De teus serenos olhos verde-mar.
Cingida em seda branca,
E na alvura do seio uma rosa vermelha,
Noiva mística e pura,
Suavíssima vestal,
Era teu corpo uma corbelha,
Tua alma um lírio num rosal!
A frescura
De teus lábios macios
Atraía
A abelha
De asas de ouro,
Que zumbia,
Em tua boca o mel bebendo
Quando a Aurora despontava;
E a Aurora ia esbatendo
Da noite os duendes sombrios,
Enaltecendo
De atavios
Teu porte esbelto de condessa ‘slava.
De Strauss a valsa nos dizia
O sentimento delicado,
A poesia
Do amor devocional,
Em poentes românticos,
Na limpidez de sonho imaculado.
Em meus braços,
O teu corpo franzino
Mais parecia o corpo astral
De uma fada,
Divino
Acorde de suaves cânticos
Na alvorada
De manhã nupcial.
Voávamos, no mistério Do amanhã...
Voávamos na luz,
No azul sidéreo...
— Noiva mística, esposa, esposa-irmã,
Rosa branca de amor na minha cruz,
Eu te levo comigo, alma querida,
Levo-te, além da Terra,
A uma outra vida
Que se descerra
Na harmonia dos mundos...
De Strauss a valsa confidenciava
Em surdina;
E valsando,
E sonhando,
Nos turbilhões
Dos céus profundos,
Os nossos corações
Fundiram-se na luz que os enflorava,
Na luz criadora
Que lhe envolvia a cabeleira loura
E o porte esbelto de condessa ‘slava.
Quando eu deixar o mundo
E sepultar-me em fria cela,
Em completo e profundo
Isolamento,
Na solidão de minha vida,
Não terei uma lágrima, um lamento.
Na ermida
Nem uma flor dos campos,
Sequer
A luzerna fugaz dos pirilampos,
Vaga lembrança de mulher!
Nada
Que suavize, que recorde,
Que conforte!...
Nada!
A procela
Que me acorde
Em seu rugir insano,
Na arrancada
Sem trégua e sem piedade,
Com soturnos mugidos de oceano,
Nem na asa da morte,
Ao vencido da vida
Arrojará a pétala perdida
De uma saudade!
Entretanto (Ouve bem,
Formosa Inspiradora!)
Se tu fosses meu par,
Se eu dançasse contigo a valsa enlevadora,
Que fez de Strauss
O evocador do “ÚLTIMO ADEOS”,
Da sublime expressão da esperança evolada;
Se a delícia de amar
Fosse encontrar nos braços teus,
Nos enlevos da Última Valsa,
Que realça
Em sua evocativa
A alma cativa
E desolada;
Se eu te soubesse minha, um momento que fosse,
Minha!... Demais ninguém!...
Como seria doce
A minha solidão,
Longe dos seres maus!...
Como seria doce
A recordação
Da Última Valsa — de Strauss!
Templo das Musas, 13 de janeiro de 1929.
I.
Arrebatador do Fogo: o TITÃ.
Homem, que vales tu, em lodo, em vasa imerso?
Erros, superstições, levam-te à fraude, ao crime;
Servo de Zeus, cerviz dobrada, a asa sublime
No pó, alma na dor, urze má do Universo.
Em treva o coração, em treva a mente, o verso
De liberdade e amor canta, e não te redime;
Submisso de pavor, cobarde, a voz exprime
O tartufo, o vilão, o hipócrita, o perverso.
Entanto, há na tua alma asas de estradivários,
Na tua mente a luz dos mundos infinitos,
Em teu peito de fogo um broquel de estrelários.
Toma esta luz, — é sol, — sol de titãs proscritos;
Ateia a chama, esbate os terrores malditos,
Rui cerce o espectro mau dos sombrios calvários!
Zeus braveja. Do Olimpo os fâmulos mesquinhos
Acorrem, dorso curvo, atônitos de pasmo...
— Cravai-o à rocha, Zeus! Não tolera o sarcasmo
De um titã o Senhor de todos os caminhos.
Ao Cáucaso o rebelde! E marche sobre espinhos
Quem pensa despertar os homens ao marasmo...
Bons ferros, Hefaísto! E tu, o entusiasmo
Tira-lhe, ó Força, e abate o arquiteto dos ninhos.
Percorre todo o Olimpo um frêmito... Sequazes
De Zeus, os deuses de ouro os instintos vorazes
Assanham de cruel, inconsciente abutre...
Ateneia medita... Io o Cáucaso alcança:
— Amo-te, Prometeu! Se Zeus de ódio se nutre,
Os Homens e os Titãs se nutrem de esperança.
De Palas-Atenê o templo se ilumina,
Na Acrópole refulge a égide invencível;
Têmis fala... Aclarou-se a Razão... Impossível
Banir da consciência a verdade divina.
Archote às mãos, Titãs aos homens a doutrina
Mostram. E os corações: — De Zeus feroz a incrível
Crueldade nos vem. Homens, de pé!... Visível,
Ei-lo — o Libertador — no Cáucaso! Termina
Hoje o teu suplício, ó Prometeu!... E a Idea[1],
Asas de luz vibrando, ao Cáucaso arrebata
O Gênio. E a luz fulgura, e doura, e canta. Ea
Ressurge; de Psiquê freme a lira ideal...
— Eu te perdoo, Zeus!... diz o Titan, — não mata
Quem das mãos de Atenê bebe o amor imortal.
Retiro Saudoso, 2 de agosto de 1923.
Lírios brancos no olhar sereno, morto,
Rosas murchas nos lábios desbotados,
Ei-la, — astro extinto, — de ideais passados
Volvendo à noite, ao sideral conforto.
Como faquir misticamente absorto,
Cismo; a saudade os bronzes desolados
Tange, acordando os ecos magoados
De peregrino, inolvidável horto.
Pobre esperança, dúlcida e querida,
Levas no olhar uma ilusão perdida,
O vago espectro desse amor desfeito.
Dormes! O esquife as tuas formas cinge.
E o céu reflete em seu olhar de esfinge
Esse outro esquife que tu tens no peito.
Curitiba, 21 de julho de 1896.
Neste saudoso e lâmure retiro,
Onde me segue tua sombra amada,
Recordo lírios de ilusão fanada
E as Caldeias do Além, de ouro e porfiro.
Sinto-te meiga, merencória e terna,
Colhendo goivos e hostiais de malva,
Tu, minha Musa e minha Estrela da Alva;
Tu, minha Estrela e minha Luz superna.
Os cedros tangem líricas de outono,
Ancenúbios nostálgicos do Sono
Vão sobre mim as asas distendendo...
Sono da morte, o teu sudário espalma!
... E a asa da Noite, merencória e calma,
Vem merencória sobre mim descendo.
Curitiba, 25 de agosto de 1927.
Ocaso I Opalas e amaranto,
Jalne e opala;
Curva azul de horizontes,
Montes...
Além, o Sol trescala
Ânforas de óleo-santo,
Lírio e nenúfar...
Unção da Noite, prece.
Voguemos!
O Ocaso é mar
De violetas e crisantemos...
Ceifeiro a messe
De meu amor vae ceifar!
O Sol mergulha.
E a Noite crepes negros estende,
Crepes da alma,
Luto da alma,
Crepes sobre o mar!
Esperança! Esquife de hulha!
Impiedade,
Crueldade,
Esperança, — Flor dos Lírios, — vão te incinerar!
Carregam traves...
Fumega a pira!
Lira,
Entra a cantar!
Ó Torre do Ideal, fechada a sete chaves,
Torres de ametista e de luar!
Abri-vos!
Quero subir, subir mui alto,
Sobre a Terra, no Azul, além! — no Astral...
(Lázaros! sonhos meus! espectros redivivos!)
As tuas sete chaves, Torre do Ideal!
No asfalto
Esporas tinem, de cavaleiro...
(Quem abrirá?)
Esporas de ouro de cavaleiro!
Cavaleiro ou coveiro?
Alguém... do Au-delà...
Velas, ao Oriente...
O Oriente é mar.
Ave, Ishtar!
Morro de frio em minha ermida branca,
Alva de luar...
Urzes crescem na ermida,
Urzes da vida,
Urzes da ermida branca...
Que mão de piedade arranca
Urzes de bruma de meu tédio, Ishtar?
Mendigo
Cego e morto de fome...
Dá-me a luz de teu nome,
O sol de teu olhar!
— Amigo!
— Ishtar!
Alto e longe!
Minhas vestes de monge
São de chumbo, Ishtar;
Prendem-me à terra,
Soldam-me à Terra,
Vestes de húmus: corpo, algar!
— Benze-me! Asperge-me com um ramo de alecrim!
Mirífica, eleva-me!
Eterífica, eleva-me!
Sete chaves! Torre de Marfim!
Arcano da Harmonia,
Harpa ceciliana,
Soberana!
Horto de Anael!
Tens a meiguice de Maria,
Rachel!
Tens a meiguice de olhar de monja,
Ishtar.
Meu olhar é uma esponja
Que bebe a luz de teu olhar.
Vais tão alto e tão longe!
Cego! Que serei eu?
Monge
Que nos reps da noite se envolveu.
Atanor,
Terra,
Em teu cálix de húmus e de amor
Encerra
Meu corpo, ó Mãe misericordiosa!
E meu astral
No seio de uma rosa
Irá brilhar...
Lírio escultural,
Ishtar,
No cálix de esperança de teu olhar.
Vais alto, longe e distante...
Para o Levante?
Para o Poente?
Onde quer que tua alma se ausente,
Minha ermida levanto,
À luz de ocasos de amaranto,
Saudosamente,
Discretamente,
Nos sete palmos de um campo-santo.
Curitiba, 17 de novembro de 1901.
... O castelo repousa junto ao lago,
Como um cadáver junto de uma cova;
Mortos descantam magoada trova,
Carme sutil, misterioso e vago...
Noite profunda. A merencória lua
Penetra pela gelosia aberta;
Passam tristes visões que Amor desperta:
A alma de um monge nos salões flutua.
Avulta após horríssono fantasma,
Chegam mais outros; trêmulas cabeças
Surgem da bruma das tapeçarias...
E a estranha turba, espavorida, pasma,
Ao ver tombarem pálidas condessas
Sob o punhal de nobres senhorias.
Curitiba, outubro de 1892.
A Gonzaga Duque
Hora crepuscular dos outonos de opala...
É fúnebre a floresta, a minha alma dolente.
E não sei que saudade a alma no exilio sente,
Quando a tarde sucumbe e a floresta se cala.
O Silêncio me invade, a soledade exala
Um perfume de sonho, uma ebriez demente,
A incenso e rosmaninho... E sobe do poente
O perfil de ilusões da loura de Magdala.
Maria, a tua sombra a meus olhos caminha...
Nostálgica da Luz, a minha alma adivinha
A promessa ideal que jamais nos fizemos.
Entro a ampla região dos profundos espaços...
Ó Lírio de Esmeralda, abraça-me em teus braços,
Na hora crepuscular dos arcanos supremos!
Retiro Saudoso, 6 de fevereiro de 1905.
Non, je n’ étais pas né pour ce bonheur suprême !
A. de Musset.
Venho trazer-te, pálida senhora,
Na piscina do pranto,
Toda a tristeza desconsoladora,
Todo o passado encanto
De suprema esperança enganadora.
Venho trazer-te a derradeira prece
De meu viver puríssimo de outrora,
Aurinitente messe,
Toda orvalhada do palor da aurora,
Como pomo estival que amadurece
Junto a cipreste que pranteia e chora.
Venho trazer-te o coração, cativo
No cristalino ergástulo da mágoa,
Amoroso fantasma redivivo
Tremeluzindo numa gota de água:
Venho trazer-te mádidos desejos
Que me cruciam dolorosamente,
Revelar-te o segredo omnisciente
Que anda suspenso à trova de meus beijos.
Tu me disseste um dia: “ — Alma de neve:
Meu coração é triste eremitério,
Onde amor não nasceu, difuso ou breve:
Não lhe conheço o pérfido mistério.”
Mas, em teus olhos, quando assim falavas,
O poema das lágrimas eu lia;
Havia nesse olhar que em mim fitavas,
Todo um rosário de melancolia.
Anjo, eu conheço a estranha morbideza
Que te recorda uma ilusão perdida,
Dor que se esparge pela natureza
Como no inverno aspérrimo da vida.
Tens na tua alma excelso alampadário
Que te ilumina teu passado inteiro,
E traz-te à mente o imáculo hostiário
Das ilusões de teu amor primeiro.
E traz-te à mente o delicado aroma
De merencórias, dúlcidas venturas,
Frases, quiçá, do incógnito idioma
Dos cemitérios e das sepulturas.
Não m’o redigas, mártir de inocência,
Que a alma possuis tão fria como a neve.
Astro que enflora minha adolescência,
Para bem longe tua dor proscreve!
Não m’o redigas, flor, que uma Sibéria
Na alma possuis cruciadoramente;
Tua alma é branca ermida alma e sidérea,
Sou de tua alma fervoroso crente.
Alma de neve, não! Alma de estrela,
Alma feita de luz serena e pura,
Para que meu amor pudesse vê-la
Branca e serena rebrilhar na altura.
Pois que meus olhos, vendo-a, só te viam;
E mais te viam quanto mais te olhavam.
E meus amores todos te diziam
Nessa estranha linguagem que falavam.
Eu sonhara formoso paraíso
De gozos ideais e verdes primaveras,
Iluminado pelo teu sorriso
E pelo doce olhar das fúlgidas esferas;
Oscular os anéis de teu cabelo
E o teu colo que enerva e que me encanta,
E depor a teus pés a flor de meu desvelo,
Como um lírio entreaberto às plantas de uma santa.
Mentiu-me essa esperança lisonjeira,
Que eu não soube te amar quando podia;
Só me resta uma prece, — a prece derradeira, —
Prolongado estertor de suprema agonia...
E essa prece, tão meiga e tão sentida,
Não ta direi jamais, terna criança!
É como o rosicler de uma ilusão perdida
Cintilando no olhar de saudosa esperança.
Eis, senhora, o segredo omnisciente
Que à trova de meus beijos suspendia,
Baixei de amor que, langorosamente,
Na penumbra da angústia se perdia;
Eis a expressão da mágoa que me oprime,
Dessa tristeza que me punge tanto,
E dá-me aos olhos copioso pranto,
E esse pesar que o beijo não redime.
Resta, agora, esquecer o que me ouviste,
Resta esquecer a confidência triste
Desta ilusão fanada
Que me acabrunha e que me dilacera.
Cante em tua alma a alegre primavera
De festiva e dulcíssima alvorada!...
Cante em tua alma a alegre cavatina
Dos lírios e das rosas;
Cante em tua alma a citara divina
Das estrelas formosas,
Alma de uma alma errante e peregrina!
Eu viverei fitando o teu cabelo
E o teu colo que enerva e que me encanta,
E depondo a teus pés a flor de meu desvelo,
Como um lírio entreaberto às plantas de uma santa.
Curitiba, 22 de junho de 1893.
A Alba Guimarães
Foi numa curva da Estrada Que a Musa me apareceu:
Supus, rompesse alvorada,
Embora noite fechada...
Olhos da Musa: fulgores!
Regina cœli: palores!
Céu.
— Sou o lírio da esperança Que tua ilusão colheu...
— Lírio da esperança,
Arca de aliança!
E sentou-se a meu lado, e se ficou comigo,
O coração sobre meu peito.
Fez-se coveira, pobrezinha!
Fez-se coveira: guarda meu jazigo...
Tem, para comigo, pompas de rainha.
— Nobre senhora minha,
Por quem é! Seja humilde o meu último leito.
Bem humilde, Senhora! (Há tanto infortunado
A sucumbir, de fome!)
Poupai o ouro do brocado
Em que bordais as letras de meu nome!
(Vosso ouro, poupado,
A muito infortunado
Pode matar a fome.)
Piedade, Senhora! Do brocado
Apagai o meu nome.
Sou humílimo, Senhora;
Seja minha mortalha uma pouca de argila...
E, na Última-hora,
Quando se volve à PAZ, e a Alma, tranquila,
Adormece;
Basta-me a extrema-unção de vossa boca:
Uma prece!
E minha alma, Senhora,
Pobre e louca,
Ao sentir a extrema-unção de vossa boca,
Subirá para o AZUL na quadriga da Aurora.
E, quando, — alem-no Val da Morte, o tribunal de Osíris,
Reunido, julgar quem fui, que fiz...
Que direi eu?
(Alma, possas tu subsistires!)
— Quem és?
— Húmus, Senhor!
— Tua alma?
— Feneceu.
Andei, Senhor, lavrando a terra nua,
À chuva, ao sol, à neve, ao frio...
Abria a terra o sulco da charrua...
E minha alma, — sol de estio, —
De rósea e juvenil foi se fazendo antiga,
E se ficou, Senhor, como a última espiga,
Abandonada, no campo, à luz fria da Lua...
Sou o sulco da charrua
Que a água do monte umedeceu.
Era uma noite de lua,
Quando minha alma arrefeceu...
Não mais lavro, Senhor, a terra nua...
A charrua partiu-se; o coração morreu.
Curitiba, 17 de abril de 1903.
No álbum de Lisete Villar de Lucena.
Nunca e jamais! Por mais que me atingisse
O teu silêncio, o teu esquecimento,
Tua luz não soprei do pensamento,
Nem da amizade as brumas eu maldisse.
Fiquei-me, na saudade de Euridice,
Inconsolado Orfeu, sem um lamento;
Sem consentir que o tempo, um só momento,
De sombra e gelo o teu perfil vestisse.
E sempre o mesmo culto, e sempre a branca
Feição perfeita da amizade antiga,
Eólio beijo que à saudade estanca.
Pronto sempre a teu gesto e a teu chamado,
Pronto a seguir-te, carinhosa amiga,
Atando os elos de feliz passado.
Retiro Saudoso, 21 de maio de 1918.
— “Sim! — me disseste, — a mística aliança
Guardá-la-ei comigo noite e dia;
Sou para sempre tua... Asa erradia,
Terei no meu exilio essa esperança”.
Anos vivi, de tua negra trança
O anel beijando, em minha noite fria.
Regressas. Voo a ti... Eu mal sabia
Que de ausência e de tempo Amor se cansa.
Nada me deves, sei! Que bem que fazes
Partindo as cordas à inspirada lira
Com que interdito o coração me trazes!
Tudo te devo, entanto!... Extinta a pira,
Devo-te o hineto das macias frases,
Devo-te o culto que a Beleza inspira.
Retiro Saudoso, 1918.
I
No silêncio da tarde que se esfolha,
Vaga e macia nos ocasos de ouro,
Fito, cismando, o teu semblante, o louro
Tom do cabelo que o pesar desfolha.
Segues, por entre os túmulos, sombria,
Na saudade pungente. Erma e discreta,
A Mansão do Silêncio a alma inquieta
Cinge-te, à luz nostálgica do dia.
És do Silêncio a Musa merencória,
Leio-te na alma angustiosa história,
Triste fadário que teu véu recata;
Leio-te na alma a solidão imensa,
Só mitigada por suave crença,
Prece que o olhar em lágrimas desata.
II
Vês? Eu bem sei que a tua dor é nobre
É nobre o culto que te inspira a campa;
Sobes da mágoa a merencória rampa,
Ouves da tarde o evocativo dobre.
Das sepulturas o silêncio cobre
A paz macia que o arvoredo estampa;
O ocaso acolhe a radiosa lampa,
E denso crepe teu semblante encobre.
Ouço-te o passo, peregrino soa.
A dor que sentes em minha alma ecoa,
Asa de crepe que o silêncio cruza;
Asa tão só, mas tão formosa, adeja,
E o níveo mármor do sepulcro beija...
Sombra de Samos, merencória Musa!
Templo das Musas, 14 de maio de 1921.
A Ester Paciornik
I
O Peregrino ouviu a canção de esperança
Que seus lábios em flor diziam com doçura,
Canção em flor de uma alma pura...
Criança!
O Peregrino ouviu a canção de meiguice
Que seus olhos de céu refletiam sorrindo,
Cortejo de ilusões que vão florindo...
Blandice.
O Peregrino ouviu a canção de bondade
Que suas mãos, em prece, aos astros elevavam;
Flores do coração que desfolhavam...
Saudade!
II
O Peregrino ouviu... Seus olhos de tristeza
Mergulharam na luz do sol poente...
Tarde serena; azul o céu. A Natureza
Um cântico de luz... E docemente
Falou o Peregrino: — “Irmã querida,
De alma de lírio e coração de arminho,
Vestal que encontro em meu caminho,
Já na curva final de minha vida;
“Eu compreendo a música eleusina
De tua voz, de tuas mãos, de teu olhar;
Freme em teu coração harpa divina,
Harpa de Druidesa, em pleno mar!
III
“Nada tenho de meu... De pouso em pouso,
Arrasto meu bordão de Peregrino...
Sigo: Judeu errante, é meu destino,
Sem conforto, sem sombra, sem repouso!
“Tu me dás de beber: água de Afeto
Que desaltera a sede ao solitário,
Água de Amor para meu mal secreto,
Na triste solidão de meu calvário!
“Eu compreendo o gesto, o lenitivo
De tuas lindas mãos... Em minha ideia
Recordarei o teu perfil de hebreia,
Líbano em flor no ocaso evocativo.”
IV
Calou-se o Peregrino. A luz amortecia...
Da tarde o rosicler desbotava, esmorzando...
Traços de asas passando...
Agonia.
Repontavam no céu as estrelas douradas...
Outra vida, outros sóis... Calou-se o Peregrino!...
Mistério de seu destino
Alvoradas!
Alvoradas do Amor: no Amor a eternidade...
A promessa do Além, a âncora da Vida...
Taça do sonho em pleno mar erguida!...
AMIZADE.
Templo das Musas, dezembro de 1928.
Alma, porque não vibras?
Porque mais não te rugem estos de nevrose?
Debalde estila o céu deliciosa dose
De supernas venturas.
Lassas se afrouxam tuas mortas fibras,
Cordas dos arrabis das sepulturas.
Eloá beija-me ainda;
Toca-me o coração a ponta de sua asa...
Porém, o seio seu por que já não me abrasa?
Por que me sinto morto?
Vejo-a sublime, apaixonada e linda...
Onde te asilas, íntimo conforto?
A solidão somente!...
Somente o espectro azul de uma esperança morta.
O céu já não me escuta, amor não me conforta...
Para que serve a vida?
Para que serves, plectro meu plangente,
Soluçando ao luar a fé perdida?
Conclua-se o romance!
Role o corpo do vate as escarpas da tumba!
E a feral maldição que regouga e retumba
Sobre minha cabeça,
Leve-me à paz do derradeiro transe...
E que a tua afeição, Musa, pereça!
1834.
Como se eu fora trovador medievo,
— Alma cantante de paixão doentia, —
Entra-me o peito o dulçuroso enlevo
Das barcarolas da melancolia;
Rora-me a face pranto amargurado
De sepulturas, do primeiro afeto:
E pensamento cândido e discreto
Leva-me aos hortos de ideal passado.
É que és a imagem nítida e sonora
De minha infância amena e encantadora,
Doce luar de mortas esperanças;
É que ainda sinto o aroma benfazejo
Dos miosótis do primeiro beijo
Que desfolhei nas tuas louras tranças.
Curitiba, 2 de abril de 1893.
O atroz suplício de Savonarola
Ruge-me na alma e o coração me inunda;
E uma saudade bárbara e profunda
Sobre meus versos aflitiva rola.
Da loucura tantálica do Hamleto
Enche-me as noites a visão sombria;
Pelos meus sonhos a Melancolia
Triste passeia o lívido esqueleto.
A minha alma soluça, ajoelhada
Junto aos degraus de negro eremitério,
Ruína antiga em trevas mergulhada.
Entre um sepulcro e um coração suspenso.
Não diz a tumba o fúnebre mistério,
Nem sei do coração o amor intenso.
38 de abril de 1893.
A Fanny Paciornik
Rosais em flor na aldeia triste,
Distante a infância...
A tua casa não existe:
Levou-a a guerra; não existe!
Mas, dos rosais da aldeia triste
A fragrância
Inda perfuma o teu passado,
O sonho alado
De tua infância.
A neve cai na aldeia triste,
Murcham rosais...
A rosa ao frio não resiste:
Tomba e se esfolha; não resiste!
Mas, uma rosa subsiste
Dos rosais:
Teu coração, rosa vermelha,
Na corbelha
De rosas ideais.
Guardas no seio a aldeia triste,
Risonha outrora...
A tua aldeia não existe:
Levou-a a guerra; não existe!
Mas, sua imagem subsiste
Na alma que chora.
Visão em flor, que te acarinha,
Da aldeiazinha,
Risonha outrora.
Teu coração, da aldeia triste
Guarda a imagem,
Do roseiral que não existe,
O aroma guarda; não existe,
Mas revive a aldeia triste
Na imagem
De teus olhos verde-mar,
Das noites de luar
Na miragem.
Floresce em ti da aldeia triste
O roseiral...
Em ti floresce, em ti persiste,
No sentimento que resiste,
No recordar a aldeia triste,
Berço natal;
Trazes em ti o lar amigo,
Trazes contigo O roseiral.
OFERTÓRIO:
Para regar as tuas rosas
Todo meu sangue eu te daria,
Se no teu rosto as tuas rosas
Desabrochassem de alegria.
Templo das Musas, 3 de janeiro de 1929.
Era monge. E vieste à paz de meu tugúrio,
Olhos de setestrelo em poentes de malva;
Troquei, à tua voz, o atanor de Mercúrio
Pelos edens em flor de Dona Estrela da Alva.
— “Segue-me!”... E lança, e escudo, ao rosicler, num hausto,
Parti, para a Quimera e para o Sonho... Ó seios
De Afrodite! Ó fulgor das justas e torneios!
A gloria de vencer, a mocidade, o fausto!
Murcheceram lauréis. O teu amor, um dia,
Como tudo que vive, acabou... Elmo e lança
Deixo-te aos pés. Adeus! Volto. A melancolia
Merencória saudade em meu caminho espalha.
E, cerrando per sempre os olhos à esperança,
Traço, não o burel, mas a fria mortalha.
Curitiba, 19 de setembro de 1906.
Só, no silêncio da vivenda, cismas...
Hora do ocaso, evocativa e triste...
Longe o teu horto!... A noite desce... Os prismas
Da saudade se fundem... Certo, existe,
Em torno, a sombra que aveluda os cerros,
A vila, os campos, a paisagem fria
E a tua alma recorda outros desterros,
E mais se embruma de melancolia.
Ei-lo, o Morro da Cruz: fica defronte.
A paisagem te evoca outra paisagem...
E o teu olhar se perde no horizonte,
Vago, fluido, sutil... Segue a miragem
De tua infância, maviosa e linda,
De tua infância, — tão distante já! —
Como te enleva essa lembrança ainda,
Nos virentes vergéis do Paraná!
O Iguaçu aviva-te a saudade
Do rio, em cujas águas refletiste
O perfil de criança... E a soledade
Torna a hora do ocaso inda mais triste!
Mártir do coração, mártir do afeto,
Sobes da angústia o monte, as rijas fráguas,
Ao dorso a cruz do lar, no ermo discreto
Fiando as horas de discretas mágoas.
Tão só! Mãe que se anima ao garrulejo
Dos filhos, por quem vive e por quem morre!
Quem compreende nesse lugarejo
A alma de luz que aos míseros socorre?
Quem ouve a voz do coração que estala
Na hora soturna do poente em sombras?
Toda se envolve num brial de opala,
Toda emudece num cariz de alfombras.
Onde o esplendor da cabeleira de ouro
Que a vestia de clâmide pomposa?
Regina cœli — deslumbrava o mouro,
No áureo fulgor da estirpe gloriosa.
Era, entanto, a mais símplice e modesta
Das castelãs do Sonho e da Bondade;
A fronte sempre pensativa e mesta,
Em sua radiosa majestade.
Fitou-a um trovador e deslumbrou-se...
(Se era tão linda em seu fulgir divino!)
E a guzla antiga em trovas derramou-se
Nas mãos febris do ignoto peregrino.
Condoída, cedendo ao canto e à prece,
A beldade baixou do alto castelo,
E envolveu o cantor na loura messe,
No opulento esplendor de seu cabelo.
E fez-se a radiosa enamorada
Do pobre menestrel; dourou-lhe os dias;
Nos olhos meigos um condão de fada,
Inspiração de suas fantasias.
Foi a Musa do bardo da tristeza,
Que encontrara, exilado, em seu caminho;
Musa cheia de graça e gentileza,
De cílios de veludo e mãos de arminho.
Musa de loura trança... Trança loura!
No magismo aromal da primavera;
Vênus-Urânia que fulgura e doura,
Às mãos ebúrneas a armilar esfera.
Asa de argento a refulgir na treva,
Mirto do Pindo a reflorir na cruz;
Musa do Olimpo que redime e eleva,
Harpa de Samos transformada em luz!
O bardo que envolveste em teu cabelo,
Será teu pajem para sempre, ó Dona!
Terás nos olhos como um setestrelo,
Na boca um violino de Cremona.
Hoje que a ausência te acabrunha e fere,
O bardo a guzla em teu louvor modula;
Invoca os Numes, o destino aufere,
E tuas mãos de mãe aquece e oscula.
Eras formosa em tua adolescência,
Na frescura das formas virginais;
Hoje, perdida a mádida opulência,
Hoje, te adora e te venera mais.
Inda és mais bela; todo o sacrifício
Que fazes por sorrir a teus filhinhos,
Torna mais grandioso o teu suplício,
Beijo de amor no rosicler dos ninhos.
Inda és mais bela; pois, se outrora havias
Dons de Pandora, límpido fanal,
Hoje refulges, — como pedrarias,
No Olimpo de ouro, — de fulgor moral!
Outrora foste a piedosa alfombra
Que acolhera do bardo a alma tristonha;
Hoje, na angústia do poente em sombra,
Tua alma triste, merencória sonha...
Musa do Céu, o bardo, ajoelhado,
Beija-te as plantas, invocando os Deuses,
E te vê, no esplendor de teu passado,
Mãos de esperança desfolhando adeuses!
Sempre formosa, sempre! A trança loura
Fez-se mais loura no luar de prata;
E, como outrora, a guzla se redoura,
Em teu louvor em trovas se desata.
Horas tristes, bem sei! Quando a saudade
Névoa de outono, nos poentes erra...
Quando nossa alma, — da felicidade
A sombra evoca, a se evolar da Terra.
Horas tristes, que os olhos tristes olham,
Horas aladas que não volvem mais;
Horas tristes, das tardes que se esfolham
Na penumbra das tintas siderais!
Horas tristes l — acordes de um piano
Que de harmonias enche a soledade,
Nostalgias da vaga e do oceano...
Horas tristes: — do Sonho e da Saudade!
.................................................................
A tua alma recorda outros desterros,
E mais se embruma de melancolia...
— Olha, porém, como aveluda os cerros
A luz serena de formoso dia.
Templo das Musas, 27 de julho de 1920.
Vens da fonte. Ao poente a sombra, a nostalgia,
A saudade do sol na paisagem morrente...
Arrimada ao bordão, lasso o corpo, pendente
A ânfora, e do olhar velada a luz macia.
Murmur de água... Murmur de coração... A fria
Brisa da tarde não gelar a linfa ardente
De teu corpo, ânfora a verter docemente
A água lustrai do amor, luz nova que alumia
A senda de Psiquê... Que te disse o Rabino?
Leu-te no meigo olhar esse estranho destino
De ser indiferente e arrebatar de amor?
Volves do húmus da terra à idealidade pura.
E a tua alma se esvai, fonte que não murmura,
Lírio triste a imergir numa fonte de dor!
Retiro Saudoso, 8 de dezembro de 1924.
Poetas, verme que eu seja, eu sinto essa nevrose
Que vos enche de horror e vos enche de espanto...
E, não sei porque lei, porque metempsicose,
Somos irmãos na dor, somos irmãos no pranto.
Já tive as esperanças
Dos anelos de amor, das crenças fugitivas;
Mas, saudosas lembranças
Refletem-me no verso as mágoas aflitivas.
A existência
Não me dá, como outrora, as taças da ilusão;
Sorriso de inocência
Não pode florescer em morto coração.
Suspendi ao luar a citara do afeto...
O infortúnio levou-me a continuo holocausto.
Por que há de o coração sofrer do mal secreto
Que ligou à ciência os destinos de Fausto?
Por que vivamos nós? Porque se gera a vida
E a estrela se escraviza à lei das atrações?
Por que não sente a rocha a dor suicida
Que abate frágeis corações?
Por que o mar não se amolda aos destinos do homem?
Por que o homem não tem as cóleras do mar?
Por que os anos de dor e as ilusões consomem
Na infância da existência a meiguice do olhar?
Onde irão se abismar as gerações humanas?
Como a vida surgiu dos vórtices do Caos?
Por que a morte rejeita as caravanas
Dos maus?
O sentimento é o algoz dos átomos que pensam,
Bardos, o pensamento é o gérmen da ilusão.
Não há treva que o cegue e pesares que o vençam,
Sem que a morte aniquile o coração.
A Inteligência morre?
O sepulcro será o epilogo da dor?
Os sepulcros também a Matéria percorre,
E a Matéria é o embrião da existência e do amor.
Por que a alma será uma vaga utopia?
A ciência não chega onde não desce a luz...
Poetas, verme que eu seja, eu compreendo a agonia
Que sofreis arrastando a vossa cruz!
Eu quisera que o Nada
A paz desse, e a ilusão do supremo conforto,
Para que o coração não tivesse alvorada,
Sombra de coração na sombra morto.
É sombria existência a existência do monge...
Vive só, — muito só! — entre o sepulcro e a dor.
Se ele fita a amplidão... o céu fica tão longe!...
Bardos, e ele não tem as asas do condor!
Se ele fita a amplidão, todo um longo passado
Vem tanger-lhe o arrabil da saudade pungente...
E ouve na luz do céu o fantasma adorado
Por quem veste o burel, melancolicamente.
De mulher nívea sombra cismadora
Entra-lhe o coração, silenciosa...
Tristeza, quem te fez tão desconsoladora?
Solidão, quem te fez tão piedosa?
Sou esse monge, sou esse desventurado
Que já não pode crer...
Bardos, o meu futuro é meu longo passado,
Por onde vou baixando às mansões do não-ser.
Eis porque sinto essa nevrose ardente
Que vos enche de espanto,
Crepúsculo de amor, melancolicamente
A dissolver-se em pranto.
Curitiba, 11 de fevereiro de 1894.
Eu bem sei que este amor, que é de tua inocência
A flor mais graciosa, acabará, Leonora;
Apenas o luar de uma reminiscência,
Como saudoso olhar de uma alma sonhadora,
Ha de fitar-se em mim, há de em mim refletir-se
Quando a desilusão apontar-te o calvário
Onde se vão fanar, onde vão bipartir-se
As pérolas de Ofir do precioso rosário,
Feito por nossas mãos, deliciosamente,
Quando fomos um dia às mesquitas do Sonho
Levar de nosso afeto a súplica inocente
E o ouro, e o incenso, e a mirra, e os versos que componho.
És criança e formosa; há de ofuscar-te o brilho
De uma estrela maior, que irradie ventura;
Nem sequer acharás o sinuoso trilho
Que ao sítio levará de minha sepultura.
Será somente minha a cruz do sacrifício,
Que para mim somente a esperança não luz...
E eu sofrerei sorrindo esse último suplício,
Pois que será por ti que expirarei na cruz.
O triunfo, o prazer dourar-te-ão a fronte;
Não sangrará teus pés a ponta de um espinho...
E sorrirás, Leonor, contemplando o horizonte,
Doce como o luar, terno como o carinho.
E sorrirás, Leonor, porque a ventura é louca:
Embriaga como o vinho e queima como a chama...
E os ósculos de amor que te dei sobre a boca,
Negarás, como Pedro o milagroso drama
Das curas de Jesus e as prédicas famosas
Negou; e não dirás ao venturoso amante
Que desfolhei contigo as purpurinas rosas
Da primeira paixão; mas, que vivi distante,
Submisso e deslaçado aos elos de teus braços,
E que me vergastava a tua indiferença;
Que não houve entre nós nem efêmeros laços
E teu desprezo foi sempre a minha sentença.
Tudo dirás, Leonor, tu que tens do Cordeiro
O dulçuroso olhar, clemente e compassivo;
E negarás assim o teu passado inteiro,
O teu nobre passado, azul e primitivo.
Eu tudo saberei, pois uma alma adivinha
O que outra alma diz, o que outra alma sente;
E partirei, Leonor, como parte a andorinha,
Saudosa do solar e da estação ridente.
Partirei, repetindo os meus primeiros versos,
Frementes de esperança e de consolações...
Destinos, como sois sinistros e perversos!
Quão diferentes sois, humanos corações!
A ventura, porém, não perdura, querida;
Então, compreenderás como é fátuo o himeneu...
Constatarás, então, que em toda tua vida
Ninguém mais te adorou e te chorou do que eu.
Constatarás que a vida é uma esperança morta
Sem a prece da rima e a canção do poeta...
E o inverno e a velhice hão de bater-te à porta,
Como bate a tristeza ao coração do asceta.
E chorarás, então, prantos fosforescentes,
Como os prantos do mar, que as estrelas escutam;
E sentirás no sangue o filtro das serpentes
E as larvas que, entre si, tua carne disputam.
E, sobre o teu amor caminhando de rastros,
Fitarás a Amplidão, povoada de estrelas,
Aonde os poetas vão, à luz nívea dos astros,
Senti-las e falar; nem poderás colhê-las
Em tuas mãos, Leonor, que eu outrora beijava,
Quando havia entre nós afetiva aliança,
E sobre as quais, Leonor, o aroma derramava
De toda uma ilusão que era nossa esperança.
Debalde estenderás os braços, sem alento,
E fitarás no céu o teu olhar sem luz!...
Só eu, Leonor, só eu ouvirei teu lamento
E rogarei por ti, — morrendo sobre a cruz.
Curitiba, 23 de março de 1894.
A asa crepuscular de uma esperança extinta
Minha harpa de ouro tange, evocativa e casta;
E Ela, — não outra, — Ela, a Virgem loura, arrasta
O véu níveo que o poente a jalne e ametistas pinta.
Envolve-me o cariz de seu olhar magnético,
Cinge-me o busto, as mãos em suas mãos aperta,
Beija-me a boca e sobe à minha alma deserta,
Inundando-me o corpo o aura do corpo estético.
Ruge a paixão; de novo a luxúria flameja;
E o olhar, — olhar de morta, — acende-se e dardeja,
Como um sol de rubim nos zainfes da Aurora.
Mas, a Noite recolhe as Vestais luciolantes...
E Ela sobe da terra aos espaços distantes,
Sucúbio, essência em flor, — carne que se evapora.
Retiro Saudoso, 3 de fevereiro de 1905.
A Stela Nogueira
Eu era só. Na minha ermida
Sombra de vivo não chegava;
Soturna e queda, minha vida
Entre saudades se finava:
Na solidão
Do coração!
Á noite, a lua, em nevoa densa,
Alumiava a solitude;
E que saudade imensa, imensa!...
E que tristeza, rude, rude!...
Na soledade
Quanta saudade!
De manhãzinha, no oriente
Brilhava a estrela do pastor:
Brilhava a estrela docemente,
Mas, não brilhava o meu amor:
Amor querido,
Amor perdido!
E perguntava aos passarinhos:
— “Onde Ela foi, que não voltou?
Por que deixou os nossos ninhos?
Por que partiu, por que voou?”
Os nossos ninhos,
Tão pobrezinhos!
Se Ela voltasse, que alegria,
Que inebriante gorjear!...
A sua voz toda harmonia,
E que macio o seu olhar!...
Se Ela voltasse!...
Se Ela ficasse!...
Mas, Ela passa como a sombra,
Como o luar na noite clara,
Como o luar sobre uma alfombra,
Como a esperança que não para!
Como a esperança
Que não cansa.
Ela voltou. Na minha ermida
A luz do sol resplandeceu;
Iluminou-se a minha vida,
Minha tristeza adormeceu.
Sua alegria
Como irradia!
A solidão tornou-se horto,
A minha vida, uma canção;
O seu olhar, todo conforto,
Aquece e aclara o coração;
Na sua luz eu sonho absorto...
Como te quero, ó solidão!
OFERTÓRIO:
Senhora minha e meu afeto,
Dona, a quem dei o coração,
Sem ti, me abate um mal secreto,
Contigo é encanto a solidão;
Gardênia azul de meu afeto,
Es tu a minha solidão.
Retiro Saudoso, 9 de fevereiro de 1920.
A Ilusão é Serpente encantada.
A Serpente é o símbolo do Universo...
Cauda e cabeça: Alfa e Ômega, —
O Círculo eterno cinge a VIDA.
I
O atanor alquímico do sol extinguiu-se; púrpuras fluídicas alagam o Ocaso; ao Oriente começa de singrar o Azul a BARI de ÍSIS, duplo, na evocativa de sugestivos transcendentalismos. Ilian cisma, ao luar, o mistério das Metamorfoses, no misticismo outonal dos últimos idílios. Sucúbio voluptuoso densifica-se-lhe aos olhos, vestindo esmaragdino corpo etéreo, com cintilos de topázios.
Ilian, fitando o olhar no olhar do Sucúbio:
Sucúbio da Ilusão, ou real ou aparência,
Os olhos a sorrir a piedade e o amor,
Quando só, torvelino os vórtices da ausência,
— Ó faces de luar! ó lírios de Elsenor!
Olhos de âmbar, fulgor de dous espelhos mágicos,
Lagos a refletir dous esquifes de onix,
Lagos de âmbar, cendal de meus destinos trágicos,
Galeões, a singrar para Ofir e Tarsix!
O Sucúbio, voluptuoso e sarcástico:
Ofir de sonho, mar de safira,
Estrelas: vastos arquipélagos...
Os olhos negros de Dejanira
São dous pélagos.
Rumo do Azul, para a Quimera!
...Infinito roteiro...
Teu coração é cratera,
Coveiro!
Ilian:
Teus olhos de ilusão têm seivas e atrativos...
Há serpes de veludo em teus olhos soturnos!
Nereide, a tua voz: cálamos primitivos,
Venúsios... trauteando em teus lagos noturnos.
Velas o olhar de sombra, e uma noite de arminhos
Prometes, nesse olhar de volúpias bizarras...
Deliras: teu olhar são sombrios caminhos
Com brilhos de punhais e curvas cimitarras.
O Sucúbio:
Contam lendas do Passado,
Tão antigas quanto o mundo,
Vivem serpentes ao fundo
De todo lago encantado.
Há palavras de bruxedo
Para vencer as serpentes...
— Lago de margens dormentes,
Qual será o meu segredo?
Ilian:
Os arcanos da Vida, em teus olhos de súcubo,
Traçam curvas de Soes, abrem negros sudários...
Satã crava-te ao seio a serpente de um íncubo,
Volúpia: carne em flor, crótalo e estradivários.
Ginandra, a Forma e a Essência, alquimizas o Beijo,
O beijo em fogo: sol; o beijo neve: círio!
Lábios da Sulami abres a meu desejo,
Vales de Josafá, Sucúbio, o meu martírio!
II
O Sucúbio assenta-se no rebordo do minarete, alto sobre o bosque, ao luar. Olhos de volúpia, fascina-o estilando filtros.
O Sucúbio:
O Riso e a Dor são dous lagos,
Onde vão se afundar Bizâncios e Babéis...
Estrelas de esmeralda à flor dos lagos:
Astrologismos fulvos e cruéis.
Velas de veludo preto
Flafam, agonizantes...
Ípsilos de âmbar, amuleto,
No colo de luxuria das Bacantes.
O lago negro, — treva e dor, —
Singram trirremes de argentum:
Asas de Morfeu, asas do Amor,
Para Agrigentum.
Mergulha nos meus olhos, nos meus lagos,
Encantados palácios de ouro fino...
Ilian, sonambúlico:
— Ó lírios de esmeralda à flor dos lagos,
Serpentes de luar, palácios de ouro fino!
Palácios de safir, esmeralda e lazúli,
Palácio e templo, aroma e luz, gardênia e sol,
Fontes de Siloé, taça do rei de Tule!...
O Sucúbio interrompendo, em aparte:
— 0 teu amor é fátuo,
Monstro, sem coração!
Teu amor é fogo-fátuo
Correndo atrás de uma ilusão.
Ilian, inebriado:
— Lírio... torre... falerno... rouxinol!
Espectro... urna de carne... o Desejo e a Loucura.
Embriagas e apunhalas.
Tenho-te asco, Serpe! Quero uma fonte pura,
Lagos, a refletir opalas.
O Sucúbio, dissipando-lhe a embriaguez:
Mergulha nos meus olhos, nos meus lagos,
Encantados palácios de ouro fino...
Ilian, enamorado:
Teus olhos são dous lírios, são dous lagos,
Com frotas de topázio e de turquino.
Subo a teus olhos, entro os teus lagos dormentes...
Sonho... (O Sonho é o zenit de uma esperança vã.)
Ó Lagos de esmeralda, encantadas serpentes,
Ilusões de esmeralda, ó lagos de Ilian!
O Sucúbio:
Meus olhos são uma infinita escada...
Rondam Silfos e Gnomos...
Pudesses tu colher os pomos
Da serpente encantada!
Ilian:
Anjo foras, Gardênia, um tálamo de lírios...
Bruxa, esquifes no olhar, dous sudários, Megera!
Antro de feiticeira, ardendo quatro círios,
E, Ela, morta, — a Serpente: a Ilusão, a Quimera.
Lagos de âmbar, luz morta, — na encruzilhada
Mais um círio e uma cruz, — cadáver e punhal.
Tentadora! Serás essa infinita escada,
Fonte de Siloé, Tule espiritual?
. . . . . . .
Volve o místico Ilian, sob o velário de éter,
Na evocativa astral de uma saudade vã...
Qual dos aspectos? Anjo ou bruxa? Netzah... Kether!
Nunca mais!...
A HORA passou...
— Boa noite, Ilian!
Curitiba, 7-9 de dezembro de 1901.
A Bernardo Schulman
Na tenda de Israel hospedei-me. O caminho
Da tenda o meu amor dissera-me. Um ninho
A tenda de Israel: ninho do coração,
Ninho de paz, bondade, e meiguice, e ilusão.
Levava, dentro em mim, a aridez do deserto;
Foi-me a tenda de Cheive um santuário aberto.
Sereno o céu, a tarde, e dourado o cariz,
Como um beijo de sol, como um verso de Hafiz.
Abriu-me a tenda azul, grato e discreto abrigo,
Como se eu fora irmão, como se fora amigo.
Não perguntou quem era o forasteiro: abriu.
Ao hóspede saudou, ao mísero sorriu.
Que macio agasalho, e inocência, e pureza!
Era-lhe a alma em flor sua imensa riqueza.
Mel e pão, fruta e afeto ao peregrino... É Deus
Quem o leva... É de amor a moral dos judeus.
Era Cheive formosa, adorável criança,
Nos olhos verde-mar um clarim de esperança;
Cantava-lhe no olhar a primavera, o sol,
Cantavam-lhe na boca as rosas do arrebol.
Sândalo e benjoim, toda aromas, fremia,
Espargindo em minha alma o conforto, a alegria...
O triste forasteiro as mágoas olvidou,
E na tenda de Cheive alentou-se e sonhou.
Ela no seio tinha um jardim de desvelos
Rubros, louros, azuis... Louros os seus cabelos!
— Cheive, por que deixei tua tenda e parti?!...
Que destino cruel me separou de ti?!...
Forasteiro do, amor, sob a fatalidade
Caminho... Ó tenda azul, dá-me a “serenidade”,
A paz, o olhar de Cheive, a meiguice, o calor
De seu beijo, o rosal de seu único amor!
Exausto, o Peregrino à tenda azul volvia;
No céu ia morrendo a vaga luz do dia...
O silêncio pairava em tudo, em tudo a paz,
A sombra que amortalha, o “nunca”, o “nunca mais”!
— Cheive, Cheive, onde está a tenda azul, a tua
Tenda, tenda de amor, que a meus olhos flutua,
Do deserto da vida a surgir na extensão,
Como um ninho suspenso em minha solidão?!
Cheive, Cheive querida, os meus olhos morrentes
Buscam, na solitude, os teus olhos ausentes!
Eu quero me finar beijando a tua mão,
Num ósculo de paz todo meu coração.
Cheive! Cheive!...
Ela ouviu a prece do vencido,
E chorou. Seu amor não o tinha esquecido.
Não olvidara nunca o Peregrino; um mar
De saudades sentia, e a ausência a soluçar!...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A noite o amortalhou... Fora a sombra da morte
Mais suave que o amor, menos cruel que a sorte.
Templo das Musas, 26 de março de 1929.
No céu azul, misterioso, a prece
De coração que ao peito me batia,
Vaga de estrela a estrela! Ah! se eu soubesse
Donde tua alma eleita me alumia!...
Ah! se eu soubesse a excelsa litania
Dos corações fiéis!... Ah! se eu pudesse,
Como austero romeiro da Agonia,
Morrer, para que a morte me dissesse
Onde paira a tua alma!... Certo, as veias
Rasgara ousada e audaciosamente,
Pois tu somente meu amor premeias.
Feliz, então, seguira a réstea incerta
Que os Astros abrem na amplidão silente,
Onde vaga minha alma, erma e deserta.
Curitiba, 14 de agosto de 1896.
Vem debruçar-te, nívida açucena,
Do antigo minarete de meu verso,
E interpreta o missal de minha pena,
E examina o reverso
Dessa medalha que nas mãos erguias,
Como se uma hóstia fosse,
Quando às aras do amor, rindo, subias,
O terno olhar sereno e doce.
Minha felicidade crepuscula,
Perde-se-lhe na sombra a minha crença;
O meu amor, apunhalado, oscula
O austero espectro dessa mágoa imensa.
À minha solidão, penosa e dura,
Não desce o plenilúnio da esperança;
Há sempre a boca de uma sepultura
Soluçando a romança
Que de teus lábios se desenrolava
Afetuosamente,
E no meu alaúde suspirava,
Sempre sutil, sempre dolente!
Se percorreres esta esconsa estância,
Não acharás a assenona dos beijos;
Não acharás a dúlcida fragrância
De nossos amantíssimos desejos.
Só tu povoavas minha soledade,
Só tu pousavas junto a minha estrofe...
— Quem há que, traspassado de saudade,
Sorria e filosofe?
Quem há que fira alegres cavatinas,
— Por mais nobre e gentil, —
Tendo apenas estrídulas buzinas
E áspero e bárbaro arrabil?
Volta, porém, ao branco eremitério
Das litúrgicas preces amorosas,
E habitarás soberbo falanstério,
Recamado de beijos e de rosas.
Curitiba, agosto de 1894.
a Isaura Sidney
Misteriosa!
Círios de estrelas...
Sílfides tangem liras de rosa,
Sombras de arminho que são estrelas,
Passam, coreia deliciosa.
Num balbucio, prece de Estrelas...
Só te não vejo, Misteriosa!
FLORA, de olhos esmaradignos,
Floresce Lírios e Sensitivas;
Floresce risos de pequeninos,
Idades de ouro, tão primitivas!
Lírios e Rosas que são destinos.
ILUSÃO! ó Primavera!
Jovens, entretecei coroas de noivado!
O coração é como uma quimera
Que desperta a cantar e morre envenenado.
Juvenília, primavera!
Amai!
Fugi nas asas da Quimera!
Sonhai!
Felizes os que têm sonhado!
Senhor,
A Primavera é riso,
Paraiso:
Amor.
Só tu não volves, Misteriosa l
Círios de estrelas...
Liras de rosa...
Sonhos de arminho que são estrelas,
Passam, coreia deliciosa.
Num balbucio, prece de Estrelas...
Só tu não volves, Misteriosa!
ESTIO, flâmula escarlate,
Broquel solar...
O Beijo... Gládios e combate,
Luz e vida: IEVE, — Mar...
Argonautas! Titãs! Músculos de aço...
Mas, eu prefiro o espaço
De uma noite polar...
Nem volverás, Misteriosa!
Acendo em vão, círios de estrelas,
Em vão dedilho liras de rosas...
Rosas de arminho que são estrelas...
Passai, coreia deliciosa!
Olhos de monja, duas estrelas...
Só tu não volves, Misteriosa!
OUTONO, esteta da nuance,
Que nostalgia em tua voz!...
Doce volúpia do último transe,
Nuance...
Prece de rouxinóis.
Tu sim, Arista, me consolas,
Em teus crepúsculos velados...
Finalidades que são esmolas,
Bem-aventura de degredados...
Tu, sim, Esteta. O meu destino
Aflora em tuas agonias,
Estrela Vésper do peregrino,
Espagirista das nostalgias.
Tu sim, OUTONO! Na celagem
De tuas tardes merencórias
Passam romeiros da saudade;
Passa romagem
De vestais...
Virgens mortas, Noivas mortas!... Soledade.
Só tu não volves!
Saudade!
Misteriosa, — nunca mais!
Não volves, não, Misteriosa!
Passaste... E nunca mais! — Níveas estrelas
Semeiam sonhos cor de rosa...
Rosas de arminho em mãos de Estrelas...
Florie, loucura deliciosa!
Tens o destino das Estrelas...
Não volverás, Misteriosa!
INVERNO desce dos espaços!
Ó Morte, ó Sombra, noite polar!
Vãmente, Sol, douras os membros lassos;
Sou como um círio a se apagar...
Infância, ó primavera em flor!
Estio: vitalidade e luz.
Inverno, afasta essa cruz!
Caem folhas... Outono...
Cai terra... terra sobre o caixão...
Meu derradeiro sono...
OUTONO!
Morte do coração!
Dor...
Inverno em flor...
Não volverás, Misteriosa?
Reacende, Psiquê, os círios das estrelas!
Fremem liras de rosa,
Almas de arminho que são Estrelas.
Além, vestal deliciosa!
Asa de Luz, Psiquê, volve às estrelas,
Loura e nívea Psiquê: Misteriosa!
OBLATA:
Os sinos dobram no eremitério,
Os monges cavam mais uma leira.
Psiquê, meu corpo extingue-se poeira;
Fênix, vais renascer no Éter sidéreo.
A urna de argila parte-se... Floresce
Outra alma, outro corpo, outra quimera.
Novo ciclo da Vida. A Primavera
Inebria; a Esperança uma outra messe
Colhe; nova Ilusão perfuma e cresce.
— Ave! salmeia o monge. O eremitério
Nas poentes de opalas adormece.
Os sinos calam no país funéreo...
A Paz semeia sideral mistério,
A Terra é toda uma infinita prece.
Curitiba, 30 de abril de 1903.
Onde foste esconder o tesouro invisível
De tua alma sutil, Musa de meu outono;
Doce luz que velava o meu sereno sono
De esperança e de amor, lâmpada inextinguível?
Onde foste esconder o coração sensível,
Em que choça, em que lar, em que templo, em que trono,
Asa que me deixou, doce Musa de outono,
Minha grata Psiquê, minha Sombra intangível?
Não irei perturbar o silêncio, as ditosas
Horas de sonho, a paz dos garrulantes ninhos,
O encanto desse azul, dessas plagas saudosas;
Dous emblemas, porém, esqueceste entre arminhos.
Quero enviar-te, ó Musa, a coroa de rosas,
E guardar tão somente a coroa de espinhos.
Retiro Saudoso, 13 de agosto de 1916.
No álbum de Neuza de Lima.
Por que teus olhos de silêncio e bruma,
Olhos que foram lampadário amigo,
Vêm despertar-me ao piedoso abrigo,
À fria noite que soidão ressuma?
Por que te agitas na indecisa espuma,
No mar de nevoas que se abriu comigo,
Asa de linho de baixel antigo,
Olhos exaustos, de silêncio e bruma?
Por que mudaste o rumo às asas brancas?
Porque volves no fluido dos poemas
E de meus punhos os grilhões arrancas?
Que saudade de ti!... Saudade: espuma!...
Saudade: mar de nevoa... mar de algemas!...
Ah! os teus olhos de silêncio e bruma!
Retiro Saudoso, 27 de abril de 1918.
a Florentina Vitel
Sempre o doce luar de uma alegria morta
Esbate na penumbra um cadáver querido;
Nem sempre o coração magnânimo suporta
A grilheta do afeto e do amor fementido.
Nem sempre a magnólia abre o seio odorante,
O poeta nem sempre enaltece o perdão...
Há muita hediondez nos beijos da bacante,
O verme também volve os olhos à amplidão.
Só quem desceu um dia ao horto da saudade,
O réquiem a murmurar da suprema tristeza,
Pode compreender toda a infelicidade
Com que o luar do amor envolve a natureza.
Só quem subiu do nada ao berço imaculado,
No ergástulo sutil da carícia materna,
Sopesando nas mãos um plectro afeiçoado
Por santa criatura, imácula, superna;
Só esse pode ouvir a confissão piedosa
Do monge escorraçado e zurzido de insultos,
Pois compreende a angústia, a dor silenciosa
Que leva à solidão e cria estranhos cultos.
Só esse compreende a confissão secreta
Que o poeta confia às estrelas dos céus,
Pois é bardo também, e uma alma de poeta
Para outra alma não tem nem chufas, nem labéus.
No horto das afeições, a mais sincera e nobre
Nasce do amor das mães e do amplexo do amigo;
Vai do solar dos reis à choupana do pobre,
Vai do templo à caserna e do berço ao jazigo.
Os filhos serão sempre o mais belo diadema
Que possa coroar a velhice dos pais;
A consorte extremosa é celeste poema,
Dedilhado ao luar das noites conjugais.
Quando a infâmia dos maus nos babuja e envilece,
Sobre o peito do irmão pousamos a cabeça.
Há sempre corações abertos para a prece,
Ha sempre quem de nós se apiede e compadeça.
Mas, quem lute por nós, quem por nós sofra a morte,
Poucos, bem poucos são; que os amigos somente
Acham no sacrifício estimulo mais forte
E partilham conosco a dor, por mais pungente.
De tua pena dupla e de teu desalento
Farás, à luz, soberbo e insigne relicário,
Onde se vá saber todo teu sofrimento
E os caprichos cruéis de destino tão vário.
Se volveres um dia à lura esconsa e triste
Dessa recordação pungentíssima, pobre
Poeta, lembra o amor de um coração que existe,
Que pulsou junto ao teu, e era moço e era nobre.
Fronte erguida, poeta, alma impoluta e austera,
Abra o céu sobre ti um resplandor de luz!
Cante nos corações festiva primavera,
Seja cetro de amor a tua grande cruz!
1894.
Branca de neve! As tuas mãos osculo...
Volves! O amor sobe-te à boca, e breve,
Abre o sorriso o púrpuro casulo
Do sonho alado. Flor de espuma, leve
Sobe-te aos olhos; brilha. De Citera
Chegam baixéis e corações; destinos
Cantam; canta no mar a primavera
De teus olhos, Venúsia, esmaradignos.
Monge que sou, deixo o burel funéreo;
Sob o fluido aromal de seus carinhos
Cerro as portas do negro eremitério.
Sortilégio! Qual seja o filtro, a essência?
Vestiu-me de tristeza a sua ausência,
O seu regresso veste-me de arminhos.
Curitiba, 14 de junho de 1904.
Onde quer que tu vás, peregrina beldade,
Quero que te acompanhe a profunda certeza
De que não acharás em toda a natureza
Quem te consagre assim o culto da AMIZADE;
E saberás que amor vence a fatalidade,
Quando amor ideal, quando em toda pureza.
Pode a mulher ceder; não cede homem, nobreza
Não cede nem à dor, nem cede à iniquidade.
Mas, que digo?! Cruel que sou quando te ofendo!
Pobre arcanjo do céu que aos poucos vai perdendo
A graça do sorrir na chama em que se abrasa!...
Triste irmã que me estreita, em efigie, ao seio flébil,
Como é forte a tua alma em teu corpo tão débil,
Como é puro esse amor, como é branca a tua asa!
Retiro Saudoso, 13 de agosto de 1916.
O oceano é eremita infortunado
Preso, pela atração, em cela estreita;
Foi, talvez, menestrel, místico e enamorado,
Amou, talvez, o céu que ele fita e respeita.
Bate-o constantemente a vergasta dos ventos,
Fere-o constantemente o acicate das dores...
E ele geme, Eleonor, pracebos e lamentos,
Calcado pela mágoa e pelos dissabores.
Quando sobe ao zenit o plenilúnio de ouro,
O oceano conversa a pálida condessa...
E as algas e os corais e as pérolas, em coro,
Cantam, à flor do mar, levantando a cabeça.
As algas, Eleonor, são das filhas das águas
As que mais têm amado, as que mais têm sofrido;
Compreendem o amor e traduzem as mágoas
Que os poetas e o mar têm ao céu repetido.
Resumem dentro em si toda a amarga tristeza
Que tem sudarizado o coração humano;
E todo esse pesar que punge a natureza
E se vai refletir no cristal do oceano.
O oceano, porém, tem soberbos cortejos;
Tem o céu que o escuta, e o luar que o entende.
Feliz quem não suporta efialta de motejos
E tem alguém no céu que o escuta e compreende!
Feliz, muito feliz, quem não segue sozinho
O trâmite da angústia e da desolação...
E encontra quem o arrime à beira do caminho,
Entre arminhos de afeto o exausto coração!
Eu sou mais desgraçado e infeliz que o oceano,
Eu que não tenho o sol e as velas que ele tem,
Sofro o acerbo pungir do coração humano
Sem poder confiar minha mágoa a ninguém.
E como queres tu, que tanto me conheces,
Que eu resista a essa dor mais forte do que uma alma?
E como queres tu, que escutas minhas preces,
Que eu de um morto aparente a inconsciente calma?
E como queres tu, meu derradeiro encanto,
Que eu encontre uma estrela em todo o firmamento,
E que a pesada cruz que sozinho levanto,
Me não faça sofrer todo um longo tormento?
Quando fito a amplidão, a amplidão é deserta!...
Se interrogo o luar, o luar não tem fala...
... E todo este anelar que o coração me aperta,
Sobre meu coração, como um verme, se cala.
Tu bem sabes, Leonor, como a esperança mente...
Tu bem sabes porque minha vida enveneno...
A esperança é, talvez, a fúnebre corrente
Que agrilhoa o poeta ao saltério do treno.
A esperança é, talvez, a derradeira estrela
Que se extingue no azul da suprema saudade.
Quando é morta a ilusão, ninguém pode contê-la:
Ninguém pode retê-la, apaixonadamente,
Quando surge no azul, sinistramente,
O plenilúnio da fatalidade.
Curitiba, 7 de abril de 1894.
Poetas, quanto me dói partir a minha lira,
O templo abandonar da festiva ilusão,
Nos corações do verso, onde a rima suspira,
Um cipreste plantando em cada coração!
Poetas, quanto me dói, quanto me custa, poetas,
Apunhalar o Sonho às plantas do burguês!
E, não mais vos ouvindo, ó sublimes profetas,
O Verso abandonar pela primeira vez!
Que arcanjo me oferece o cálix do suplício?
Ter nas mãos uma lira... e morrer degredado!
Os meus louros trocar por fibras de cilício,
Bebendo, gota a gota, um filtro envenenado.
Morto, a que anima a vida, a rolar entre os vivos!
O préstito assistir das rimas e dos versos,
E vê-los desfilar, taciturnos, cativos,
Seguindo do degredo os trâmites diversos.
Filhos de meu amor, — que meu amor não beija!
Que eu não possa morrer, unindo-vos ao peito!
E, contrito, vos olhe, e contrito, vos veja
Do esquife da saudade, em lágrimas desfeito.
E tu, — frágil mulher, — bela imagem do gozo,
Por quem vivi sorrindo e vivi versejando,
Abre o teu coração, — cofre voluptuoso, —
Onde os beijos que eu dei acordavam cantando!
Abre o teu coração, onde as Musas do afeto
Iam o néctar beber da paixão que conforta;
Onde tinha o Ciúme um sacrário secreto,
Com um gnomo, — o Desejo, — ajoelhado à porta,
Abre o teu coração, para que eu veja ainda
O meu nome e o teu nome, enguirlandadamente,
Os lábios coroando, e a fronte e a face linda
De teu imenso amor, de teu amor ardente!
Curitiba, 4 de outubro de 1893.
Não sei que ternas emoções nos deixa
O níveo beijo do luar de prata,
Cíntia apaixona o bardo: e a serenata
Descanta à lua amenidosa endeicha[2].
Sei, porém, que o luar que se retrata
Em tua loura e fúlgida madeixa,
Traduz de amor a merencória queixa
Que descanta ao luar a serenata.
Sei que os astros, querida, não perdoam
O amor da larva pela branca estrela,
Irmã dos astros que a amplidão povoam.
Mas... não respeita amor sidéreo encanto...
Ama-te a larva; e, se não podes vê-la,
Trucida a larva que te adora tanto.
Curitiba, 8 de fevereiro de 1893.
Toda a tristeza bárbara e profunda
De suprema saudade que desola,
Como torrente que soluça e rola,
Entra-me o peito e o coração me inunda.
Névoas de tédio e de melancolia,
De existência longínqua e desditosa,
Trazem-me a sombra triste e lutuosa
Que envolve a tarde, quando expira o dia.
É que me falta a luz sidérea e calma
De teu celeste olhar delicioso,
Lira de rosas que florescem na alma.
É que me falta o sol de teus desejos
E teu fulvo cabelo esplendoroso,
Onde canta a romança de meus beijos.
Curitiba, 15 de abril de 1893.
Se ao piano te escuto langorosas
Valsas de amor do terno Ivanovici,
Ondas sutis que meu ouvido ouvisse,
Em teus olhos flutuam maviosas.
As de Citera purpurinas rosas
Que enfloram preces e guirlanda beijos,
Murmuram, cantam dúlcidos arpejos,
Lindo enxame de estrelas vaporosas.
Noiva, minha alma é Sombra peregrina,
Inebriada de paixão divina,
A tua loura trança rebuscando.
Sol de topázio em noite resplendente,
Ela me envolve carinhosamente,
Louro veludo, leve, flutuando...
Curitiba, 9 de maio de 1895.
O Ideal feito coveiro!
Ainda bem, Dona Morte é senhora louçã.
Argentário, conta bem o teu dinheiro!
Morrerás amanhã.
Não esquece, argentário,
Leva contigo o teu dinheiro!
Mortalha de ouro, esquife de ouro e de ouro o carro funerário...
E, LÁ, no Val da Morte, o Ideal feito coveiro.
Argentário, eis a cova!
— Todo meu ouro, todo... e viver mais um pouco!
Viver? Nunca viveste, pobre louco!
Dorme! O esquife é cofre; a sepultura nova.
Dorme! E o teu dinheiro, um pesadelo de ouro;
A estrangular-te, a estrangular-te mais!
Moedas de ouro a chover sobre teu corpo de ouro,
Chuva de ouro, rios de ouro, ondas torrenciais...
E a tua alma asfixiada no-tesouro...
Cada moeda, sete punhais!
Lilith, rainha dos Sucúbios, piedosa,
Eu sei que, ao sucumbir,
Minha alma subirá num halo cor de rosa,
Ingênua (a pobrezinha!) a cantar e a sorrir.
Ninguém penetra os teus arcanos:
O Mal e o Bem...
Mas, à entrada de teus paços soberanos,
Dous porteiros: Jó e Pedro sem...
Curitiba, 15 de maio de 1902.
Poeta, vou conduzir-te aos torreões desertos
Dos castelos azuis de minhas esperanças,
Hoje espectros senis, de lianas cobertos,
Sem louras castelãs e pálidas crianças.
Visitarás comigo os velhos aposentos
De minhas ilusões, risonhas e falazes,
Batidas de escarcéus, soluçando lamentos,
Em poemas cruéis, de lancinantes frases.
Ouvirás o sarcasmo estrídulo dos mortos,
Almas rubras, de fel, almas rubras, de horror,
E a maruja da crença a demandar os portos
Da celeste mansão de seu primeiro amor.
Um madeiro verás sobre as pontes alçado,
Negro emblema da dor, triste marco da vida,
Beija-o, beija-o, poeta, é meu louro passado
Interrogando à noite a minha fé perdida.
Se entrevires, acaso, — asas brancas de neve, —
Meigo arcanjo ideal a brincar nas ruínas,
Ë que a imagem sutil de meu sonho, tão breve,
Freme na minha estrofe as asas peregrinas.
1.
Eis o nobre salão. Dos longos muros
Já não pendem as telas primorosas,
Idílios recordando e beijos puros,
E nossas guitarrilhas amorosas.
Na sala de jantar, úmida e fria,
Não mais louros encantos de sereias,
Quando o ardente champanhe lhe bebia
Dos rubros lábios e das rubras veias.
Deserta a sala de armas, tão lembrada,
Onde atirava o beijo e o galanteio,
Indo tocar-lhe a boca perfumada
E o perfumado, inebriante seio.
Já não conserva a alcova o doce aroma
De seu corpo e de sua cabeleira,
Relembrando-me o dúlcido idioma
Do amor ditoso e da ilusão primeira.
Poeta, mata-me angústia enervadora,
Mata-me a insônia e o insano desalento...
... Não me perguntes pela Trança Loura!...
Caia o silêncio sobre meu tormento.
Não mais posso guiar-te pelo paço,
Apontando-te minha desventura;
Sinto prender-me vigoroso braço
Que me arrasta à mudez da sepultura.
2.
Coragem, coração! Vamos, nobre poeta,
Subamos esta escada íngreme e tortuosa...
Em cada um dos degraus há confissão discreta,
Em cada confissão um pétalo de rosa.
Quando o arcanjo partiu... (Noite serena e bela!)
Ciciava o pinhal a música dos beijos...
Na safira do céu, que a saudade constela,
Vi apagar-se a luz de meus mortos almejos.
De então, quis perlustrar os arcanos do Eterno,
Quis devassar o céu, quis conhecer o abismo;
E não mais encontrei meu sorriso superno,
Nem mais soube vibrar a esperança e o lirismo.
De então, austero e só, no exilio da Caldeia,
Interrogo a amplidão, de estrelas povoada,
Como tácita, enorme e fúlgida colmeia,
Sobre o seio do espaço eterno debruçada.
E pergunto-me, então, se as estrelas que luzem,
Alta noite, ao luar das estrelas irmãs,
Almas também não são de noivas que seduzem
E se perdem no albor de límpidas manhãs.
E deixo-me ficar soluçando, sozinho,
Alma cheia de angústia, alma rubra de dor,
Como uma ave a gemer, sem o estio de um ninho,
Como um lírio a morrer, sem o estio do amor.
Eis porque já não tenho o sorriso de outrora,
E já não sei cantar e já não posso crer:
É que a mesma visão, que hoje a mágoa desflora,
Foi quem me fez amar, é quem me faz sofrer.
Curitiba, 1º de agosto de 1893.
Boa noite! O passado é tonel de Danaides,
Saturno, — treva e caos, — donde não há voltar!
Tristeza, e luto, e dor, — chumbo aos pés, — soledade,
Calabouços sem luz, cerrados sobre o mar...
E o mar tão belo, e o céu tão puro, e o sol tão claro!
Esperança! Ilusão! Quem me as dera alcançar!
Um tesouro! E teria as volúpias de avaro
Que enchesse galeões... e se fosse alto-mar!
Quem me as dera! Loucura! Eu mesmo consumi,
Doutor Fausto, alquimista, à flama de rubi
Da ciência, — Flora e Estio: a Ilusão, a Esperança.
Mortas! A psiquê não voa mais; enregelou-se!
Ó noites de luar! Ó Morte, a tua foice,
Só ela não te cai: sega... ceifa... não cansa!
Curitiba, 1º Janeiro 1904.
Vênus pagã, olhos de setestrelo,
A cabeleira rútila fulgindo...
Amei-te!... Amor, nos olhos teus fulgindo,
Volúpia; luz o sol de teu cabelo.
A luxúria findou. Astro maldito,
Rolei do azul aos pélagos hiantes...
Procurava a minha alma... Além, distantes,
Lótus colhi nos edens do Infinito.
Morreste. Ao val da Sombra, compungido,
Boa que foras para meus delírios,
Levei teu nobre coração partido.
Só então, osculando o altar de pedra,
À luz morrente de funéreos círios,
Tua alma ouvi... — a minha Irmã, Paredra.
Curitiba, 22 de novembro de 1903.
O Santuário dos Incas, sobre os Ântis[3],
Apagou-se, alma solar!
Onde iriam perder-se as trirremes atlantes?
Sobre que mar de ônix e diamantes?
Sobre que mar?
Na alma, em flor, de nelumbo,
A Ilusão florescia...
Bruxa cruel ípsilo de chumbo
De teus seios de nardo suspendeu...
Agonia! Agonia!
Atlântida morreu!
—
Vãmente o Sol, broquel dos Ântis,
A neve derretera...
Os olhos de diamante
Eram olhos de cera.
Rosas de argentum do plenilúnio,
Magnólias de âmbar das Vestais,
Eram rosas de cera,
Eram flores de cera!...
Bruxa cruel, de olhos de infortúnio!
Toda de neve, a Cordilheira
Linha de finos, rútilos punhais.
Cordilheira da Morte,
Val da morte,
Para imortais.
Tinhas na alma de nelumbo um santuário de atlantes,
Volúpias a florir, sóis de ouro a rutilar,
Serpente Negra, alta sobre os Ântis,
A face de marfim a refletir no mar.
A frota de teus anéis,
Rainha, sobe a sideral alfombra,
Asas da Morte à popa dos baixéis,
Velas de crepe, — para o Val da Sombra.
Teus fluídos absorvem amuletos,
Luz do Ocaso e Luz da Alva,
E vertes o langor, com requintes secretos,
Dos ciatos ferais de teus olhos de malva.
E é tão gentil sucumbir à primavera
De teus olhos de mar, de insondáveis arcanos,
Que, para entrar teu porto, ó Vênus! em Citera,
Quebro a ampulheta de meus anos.
Vênus-Urânia, sol, num poente agoníaco,
Ilusão dos sentidos, flor de espuma,
Lótus de volúpia, os olhos de Zodíaco,
Astro do Sonho a mergulhar na bruma.
Jalne fluido a dourar-me o fluido das artérias,
Serpe que me enlaçaste o coração...
Asas de Lusbel levaram-me, sidéreas...
Asas do Sonho, crepes da Ilusão.
Volvi da luz zodiacal a uma furna de feras,
Morto, a sepultar-me no real...
Bondade e Amor: duas megeras,
Duas serpentes em corpo astral.
Bondade e Amor: duas caveiras,
Idiotamente, a rir...
Duas caveiras: duas loucuras!
Esteta, cava estas eiras!
Abre duas sepulturas,
Quero dormir.
OFERTÓRIO:
Lilith, rainha dos Sucúbios, coorte!
Alfim, ilha de Tule, flor de espuma!
Em tua taça bebo o ouro da morte!
E entro os paços reais do Silêncio... da BRUMA
Curitiba, 15 de maio de 1902.
Olha, ó virgem, — não te iludas, —
Eu só tenho a lira e a cruz.
Junqueira Freire
Eu fui outrora Cavaleiro,
Era de argentum meu solar;
O meu brial de Cavaleiro
Era de lírio e de luar;
O meu broquel de Cavaleiro
Era um sol de ouro a rutilar.
Em minhas torres de esmeralda
Iam-se os Astros refletir,
Eram esperanças de esmeralda
De suavíssimo luzir;
Eram blandícias de esmeralda,
Astros e Pérolas de Ofir.
Vinham-se frotas do Oriente,
Sonhos e púrpura, — ao Sol!
Elfos e Silfos do Oriente,
Meu coração era um farol;
Era um santelmo do Oriente
Efluviado pelo Sol.
Mas, nos recontros, o Destino
Quebrou-me a lança de cristal;
Desci às luras do Destino,
Perdeu alvores o brial;
As minhas torres o Destino
Vestiu de crepe sepulcral.
Vestes de monge da Saudade
Cingiram alma e coração;
Alma, no exílio da saudade,
Palmilho estranha solidão;
Os meus saltérios de saudade
São violetas da Ilusão.
Invoco as sombras do Passado,
Violo túmulos de amor;
Entro sepulcros do Passado
Levando outonos de amargor;
Nos sitiais de meu passado
Apenas reza a minha dor.
Nos atanores da Magia
Achei mercúrio, enxofre e sal
Filtros ocultos da Magia,
Ó luz estranha, ó luz feral!...
Corvo soturno da Magia,
Onde os alvores do brial?
As esmeraldas da Esperança
Na luz astral vão refulgir;
O vivo argentum da Esperança
Brilha nas pérolas de Ofir;
Fulvos leões, rubra esperança,
Tecel da Morte e do Porvir.
Extingue a lâmpada, Alquimista!
A Lua desce para o Além...
Rutila o Sol... — Velho Alquimista,
Dá-me esse filtro que faz bem!
Santelmo fui, velho Alquimista,
E fui saltério, — alma do Além.
Ó Renascença, ó filtro de ouro,
— XX — : mistérios do Binário!
Entra, minha alma, os sólios de ouro
Desse esplendente santuário!
Brilham Santelmos, — prata e ouro, —
Analogias do Binário.
OFERTÓRIO:
Senhora,
Outrora, Cavaleiro
Eu fui; subi sólios de luz...
Mas, o brial de Cavaleiro
Rompi nas traves de uma cruz;
Espectro sou de Cavaleiro,
Monge que leva estranha cruz.
Em minhas noites de precito
Passam visões de adolentar;
Monge que sou — bardo e precito —
Cultivo lírios de luar,
Estrelas mortas do precito
Efluviadas de luar.
A rósea flor dos dias de ouro
Murchou nos hortos de Anael:
Perdi solar e paços de ouro,
Ruiu a torre de Babel...
Apenas guardo — em letras de ouro —
SAUDADE, a rosa do broquel.
Estrela Vésper da meiguice,
Eu sou a Cruz da soledade;
Suspende a lira da meiguice
À cruz soturna da Saudade;
Acende os círios da meiguice
Nos sitiais da soledade.
Tu és um lírio de meiguice,
Eu sou o espectro da Saudade.
Curitiba, 8 de dezembro de 1900.
Luz do Oriente,
Aclaradora,
Tu me envolveste docemente,
Quando parti em meu corcel de auroras
Para o Ideal!
Tu me envolveste em púrpuras e linhos,
Quando a canção dos passarinhos
Evocava Eleonora,
E os ecos perguntavam: — “Porque choras,
Parcifal?”
A sua régia trança loura,
Desenastrada e triunfante,
Dourava-lhe o semblante,
Toda luares
Seu perfil vestia;
E no meu sonho flutuava,
E acompanhou-me além dos mares,
Musa da Poesia,
Pendão que a luz da Aurora redourava,
Asa que me acenava,
Quando a noite caía;
Quando a triste saudade amarfanhava
Meu triste coração de Peregrino,
À hora do repouso;
No silêncio do pouso,
Quando a saudade ao coração descia.
Hora de Vésper, quando a luz poente
Se apagava,
E minha alma, contrita, murmurava:
— Eleonora!... Eleonora!...
Quando parti de seu castelo,
De sua guzla o ritornelo
Vinha direito ao coração!
Fio de espadas dolorosas,
Lio de amor, lírios e rosas
Que me atirava sua mão.
De arnês e lança,
Plumas brancas no elmo resplendente,
Eu me engolfei na luz nascente,
Cavaleiro templário da esperança.
Não houve justa, por mais rude,
Nem houve ousado paladino,
Cujo destino
Eu não vencesse, em prélios de virtude.
Nos solares reais,
De rica argenteria e famosas espadas,
Rompi lanças,
Topei escudos e broquéis;
Na glória dos torneios
Palpitaram, por mim, macios seios
De crianças, de donas, de donzelas,
Cujas escarcelas,
De ouro recamadas,
Se abriam... E seus lenços, flutuantes,
Como plumas de arminho,
Se agitavam na luz com fervor e carinho,
Triunfais.
Nas cítaras frementes,
Esbeltos menestréis
Celebravam, em rimances,
Os transes
Mais altivos;
E na prece dos olhos eloquentes,
De promessas fiéis,
Adivinhava corações cativos.
Segui, sem tréguas, meu destino
De cavaleiro e peregrino,
De peregrino e trovador.
Na primavera, as andorinhas
Iam levar-lhe as trovas minhas,
A minha crença e o meu amor.
Os infinitos,
Maiores no deserto de meus dias,
Na solidão das noites refulgentes,
Transmudavam agonias...
Ecos de morte e sombras
Evocavam
Da mudez das alfombras
Os mistérios do ser...
Descrentes,
Malditos,
Perpassavam
Merencórios fantasmas de vencidos,
Os corações partidos
De sofrer.
Luz da alva, quem te ouvisse
A canção de esperança!
Quem te ouvisse cantar o solau dos vergedos,
Redizer os segredos
Das castelãs...
Quem te ouvisse, luz da alva,
Pensaria
Que a tua luz trazia
O aroma de santal, de benjoim, a malva
De seus lábios em flor,
O esplendor
De sua loura trança...
Quem te ouvisse,
Na macia carícia da manhã,
Talvez sentisse
O seu amor,
Seu ideal, transfigurante amor!
No elmo as plumas flutuando,
Fui passando
De terra em terra,
Fosse em guerra,
Ou fosse em paz...
Um só momento
Não tirei seu perfil do pensamento...
Vitoriosa,
Radiosa...
E, um dia, eu disse: — Para trás!
Volvi! Volvi trazendo os louros
De cem recontros, os tesouros
Do nobre e altivo coração;
Em meu regresso de esperança
Via fulgir-lhe a loura trança,
Via a acenar-me a sua mão.
O meu corcel impetuoso
Transpunha os dias
A correr...
Como é distante o último pouso!
Mas, como aquece as alegrias
Que fazem a alma renascer!
— Bom dia, rosas! Passarinhos,
Bom dia!
E quanto és linda, ó luz solar!
Como são belos os caminhos!
Como são belos
Os castelos,
Todos de aroma e pedraria,
Ninhos de luz, de sonho: ninhos!
Ninhos de estrela, à beira-mar.
Entrei. Mansão silenciosa...
De sua guzla a voz maviosa
Emudecera. A solidão
Era profunda. Uma agonia
Passava e um som de tumba fria
Vinha direito ao coração.
Louros meus, que valiam!
Extinta a luz da vida interior,
Os dias se consumiam
Na dor.
O corcel da ilusão rolou no abismo,
Cataclismo
Tudo enovelou...
A armadura depus e depus o montante.
Minhas plumas de arminho,
Veludo de meu ninho
O férreo guante
Amarfanhou.
A mansão do Silêncio abrigou-me no seio.
Uma lousa encontrei
De alguém que conheci,
Que de bem longe veio...
De alguém que muito amei
E não mais vi!
Quando o luar do Campo Santo
Desperta os mortos, o meu canto
Repete à noiva o meu amor;
Linda ressurge e, lado a lado,
Volvemos juntos ao passado
De castelã e trovador.
Retiro Saudoso, 29 de julho de 1923.
A Alfredo de Almeida
Inda ecoa em minha alma o veludoso canto
Da cítara que ouvi na cidade serrana.
Das Graças de teu lar, na paz virgiliana,
A de louro diadema e peregrino encanto
Dedilhava-a, à hora astral dos poentes. Recanto
De estimas aromais e nobre filigrana
De afeto era teu lar. A saudade que emana
Do coração amigo, evoca-a. O Campo Santo
Recolheu, compassivo, o invólucro da Graça;
Mas, não estiolou o roseiral cantante
Que em seus olhos em flor, como num sonho, passa.
Místico roseiral, na infância florescido,
E cujo aroma bom, como um sonho distante,
Dorme em teu coração pela morte partido.
Retiro Saudoso, 19 de novembro de 1923.
Serias, sim, profuso céu sereno,
Se os sete ciclos de minha alma entrasses,
E a destra firme, a dúvida apagasses
Que me envenena... Mas, o teu veneno
Corre nas minhas veias, corre e tinge
Os meus desejos — de veludo preto;
E essa cruz que te adorna, áureo amuleto,
Fere o destaque desse olhar de Esfinge.
Vai-te mal o contraste; amo os extremos;
Ou consentes eu colha os crisântemos
Da boca, — ó merencória entre as cristãs;
Ou parte a cruz... E, num alor ardente,
Cinge-me o busto, rútila Serpente,
Na empolgante luxúria das manhãs.
Curitiba, 4 de novembro de 1904.
A Emílio Viscontini
A celagem fatal de inquieta loucura
Vela o brônzeo troféu das esperanças de ouro,
E, sinto, na minha alma abres o teu tesouro,
Monja que vens rezar em minha sepultura.
Tenho no olhar extinto a guzla de uma prece
E a tácita visão de uma existência morta...
Monja, que vens fazer? Teu olhar não suporta
A tragédia de horror que me exaure e adormece.
Paz terrível do Nada e do Aniquilamento,
Divina paz cruel que eu suplico e me algema!...
Só eu sei me abismar nesta agonia extrema,
De onde surge a ilusão de meu fulvo tormento.
Só eu devo descer para a Treva infinita
Como um círio de luz que se extingue na treva.
E levarei ao peito a efígie medieva
E o torturado amor de cortesã maldita.
A minha alma é, talvez, como um cipreste exangue,
Derivando à mercê dos círculos do Inferno.
Eu, barqueiro do afeto e do ideal superno,
Levo-a, através a dor, entre vagas de sangue.
Levo-a, de beijo em beijo, e de anelo em anelo,
Resvalando em parcéis e rochedos sombrios,
Abrindo em cada olhar prantos e tresvarios,
Em cada coração cravando um pesadelo.
Não, não deves rezar, monja de olhos sidéreos;
Embalde oscularás a minha sepultura;
A mortalha feral da suprema loucura
Cinge o meu coração em noites e mistérios.
Curitiba, 15 de setembro de 1896.
... E iremos sempre assim pela existência fora,
Interrogando os céus, olhar cheio de pranto.
Só os céus saberão toda essa dor, Senhora,
Que nos oprime o peito e nos desola tanto.
Só os céus saberão porque nossos olhares
Têm a vaga expressão de tão feral tristeza,
Pois o infinito azul dinamiza os luares
Que os astros vão levar por toda a Natureza.
Estudarás comigo a etérea liturgia
Das almas sem fanal, condenadas em vida;
E saberás, assim, toda a melancolia
Que se evola do altar de abandonada ermida.
O coração que amou, por mais augusto e forte,
Chora sempre a ilusão da primeira carícia,
E arrasta na penumbra os seus grilhões de morte,
Nostálgico da luz de uma estrela propícia.
O Inato não sucumbe; esperemos, querida.
Amor levar-nos-á na concha perfumada;
E surgirás do limbo, astro da fé perdida,
Como Vênus da espuma e um lírio da alvorada.
1898.
Estátua de marfim, branca e sem vida, fátua...
Era gelo polar seu coração e mente...
Quem lhe pôs essa luz, quem a fez refulgente
Estrela de santal?... — Quem te deu vida, Estátua?
Bebes, Lírio de amor, o néctar das Esferas
Que rebrilham no azul e te dão seiva e aroma...
Musa, que argila foi, transfigurada assoma
Guirlandando do Templo as colunas severas.
Eu fui o Criador de tua alma, o sublime
Estatuário, a VOZ que te chamou à vida...
Criei-te, e transfundi-me em ti, em ti perdi-me!
Teu lábio em flor bebeu-me a alma. — A alma e a luz
Tomaste; e sucumbi. — Mortalha, em luz fundida,
O manto de Urania envolve a minha cruz.
Templo das Musas, 15 de março de 1928.
A Temira Tourinho.
A pátena da última saudade
Reflete ainda o teu perfil tristonho,
E vens pousar na minha soledade
Bem junto ao esquife do primeiro sonho.
Beijo-te as mãos, as tuas mãos nevadas,
E te aperto e te estreito contra o seio.
Por que lembrar as ilusões passadas,
Se temos sempre a morte de permeio?
Ah! que eu não possa, austero celebrante,
Beijar as plantas de teus pés de neve!
Feral calceta deste amor pujante
Que a pranto e luto a sua história escreve.
Pálida e loura. Símbolo esquecido
Entre as ruínas de uma estrela casta,
Guardas no olhar meu coração partido,
A litania de uma dor nefasta.
Monja que as mágoas celebrou do exílio,
Monja que volve ao triste presbitério,
Tendo nos lábios um fanado idílio,
Todo de pranto e todo de mistério.
Dize a prece da última saudade
Sobre este negro e fúnebre calvário.
É mais soturna a minha soledade
Sem a carícia desse alampadário
Que te acende nos olhos de esperança
As ilusões fanadas tristemente,
Como um carinho e como uma lembrança,
À hora triste do sol, na luz poente.
Todas as minhas lágrimas de asceta
Foram vertidas sobre o escapulário
Em que bordaste a efígie do poeta
E a paisagem sombria do calvário.
Curitiba, 7 de janeiro de 1896.
Hélas ! les beaux jours sont finis !
T. Gautier.
Teus vestígios buscando. E a sombra esquiva e dúctil
De teu corpo, e o teu ser de enlevo e de harmonia.
As acácias em flor... E a voz? E a luz macia
De teus olhos? E a flor do teu sorrir?... Inútil
Meu afã de buscar-te!... A vida leve e fútil
Empolgou-te... O jardim esquecido... A poesia
Do céu, da natureza, evolada... Sombria,
Deambula na noite a minha alma inconsútil.
Linda e formosa! Linda! Eu quisera elevar-te
Um templo de saber, de sentimento e de Arte,
Culto de graça e amor à Musa do Ideal.
Deslumbrou-te o clarão do mundo. Adeus, Senhora!
Hoje: sombra... Ontem: luz, a flama inspiradora
Do bardo... Eleita: e morta... Eleita: e tão fatal!
Retiro Saudoso, 28 de outubro de 1928.
Esse beijo de amor
Onde foi reflorir o meu desejo,
Não me deu da ilusão todo o sabor,
Todo o sabor de um beijo.
É que me foi a última carícia:
E bebi nesse beijo a última esperança...
Esperança que foi minha delícia,
Sainete de aliança....
É que o saibo do amor também mata e envenena,
Quando amor não mais é a taça do ideal...
Aumenta a minha pena
Em te vendo sofrer, Lampírio sem fanal!
De tuas orações e de tua beleza
Eu fizera, Leonor, um poema divino,
Onde iria pousar toda minha tristeza,
Levada pela dor e por um mau destino.
A dúvida do Hamleto
Faz-me descrer de ti, como se ingrata foras...
É que o templo do amor guarda muito esqueleto,
E os ciprestes também são visões cismadoras.
Porque vivemos soluçantes,
O madeiro da mágoa
Arrastando, a esmolar como dous suplicantes,
Uma lira nas mãos e os olhos turvos de água?
Como duas estrelas,
Porque não fulgurar na longínqua amplidão?
Somente o céu pode contê-las
Em seu imenso coração.
A minha alma, Leonor, é irmã de tua alma.
Por que aumentar o sofrimento austero?
Reflete-te em minha alma,
Encantadora Hero!
Por que a dor envenena?
Por que o amor há de ser o martírio do amor?
Por que não tem a flor as asas da falena
E não tem a falena o perfume da flor?
Por que nós, Leonor, que duas asas somos,
Não poderemos ir pela amplidão serena,
Repetindo ao luar as trovas que compomos,
Tendo o aroma da flor e as asas da falena?
1895
Vens do Azul, da Quimera, alma de olhos sidéreos,
Que a minha alma de asceta aos páramos eleva
E à minha viuvez de mágoas e mistérios
Abre as aras do Além para o ofício da treva.
Eu te bendigo, e sigo o teu corpo de Sombra,
Feito de névoa e luz; névoa das louras tranças,
Luz do olhar, desse olhar, deliciosa alfombra,
Calvário e sitial de minhas esperanças.
Ilusões são punhais. Cada ilusão que aflora
À penumbra de um sonho, alma de olhos sidéreos,
Leva o espectro da cruz às flâmulas da Aurora,
Cruz do Além, cruz feral, de mágoas e mistérios.
A carícia cruel de teu seio fremente
Abre as aras do além para o ofício da Treva.
E eu te sigo. E a minha alma, ajoelhada, sente
Que a tua alma de morta ao passado nos leva...
Curitiba, 14 de junho de 1897.
A Sílvia Carneiro
Quando, ao cair das tardes merencórias,
Vésper flutua nos ocasos límpidos,
Sereno o olhar de fluidas esmeraldas:
Invade-me a saudade!
A sombra emerge da campina e sobe,
Estende as asas negras no infinito;
Coa-se a luz das trêmulas estrelas,
Perdidos pirilampos.
A meus olhos de asceta um vulto surge,
À fronte o brilho dos iniciados,
Asas de luto, garras de quimera:
Esfinge!
Vem da terra de Kemi ou vem da Atlântida?
Traz dos Mistérios o suave aroma...
Evoca os lótus... faz sonhar os Deuses
E os magos da Caldeia.
Avulta, avulta, os olhos magnéticos
Numa fascinação irresistível;
E seu olhar me pousa, enigmático,
Cheio de arcanos.
Depois, dous hortos vejo-lhe nos olhos,
Dous paraísos nuançando encantos,
Súplicas feitas de carícias flébeis,
Humílima pergunta.
Tem o atrativo da Teano helênica,
A meiguice de Safo, a peregrina
Formosura da Vênus de Corinto,
A bondade do Buda.
Mas, não traduz em frases a pergunta;
Não revela o mistério de sua alma;
Antes sofre em silêncio e, meiga e dúctil,
Sorri apenas!
Sorri! Quem pode interpretar-lhe o riso?
Quem o segredo conhecer-lhe e a mágoa?
Olhos e riso de onde voam juntas
A esperança e a tristeza.
Não é feita de argila, é feita de éter,
Da fina essência das estrelas castas;
Sobre os instintos radiosa fulge,
Flor de harmonia.
Não pertence aos mortais, pertence aos gênios,
Longe dos ciclos da matéria densa;
Nasceu para brilhar nos santuários
De Delfos e de Elêusis.
Pudesse o asceta conhecer-lhe o arcano!
Pudesse o vate alcandorar-te, ó Musa!
E não serias, qual te vejo sempre,
ESFINGE!
Retiro Saudoso, 8 de novembro de 1909.
A José Murici
Vejo o que foi outrora meu encanto:
O seu retrato, o seu cabelo de ouro,
Folhas de malva, folhas!...Um tesouro
De meiguíssimas frases... Hoje, entanto,
Nem posso o nome repetir-lhe e a trova
Que burilava a beijos... Tristemente,
Entrego às chamas todo esse eloquente
Escrínio antigo... Mas, até a cova,
Eu guardarei a sua efígie. -. E a chave
Desse mistério morrerá comigo,
Sombra que a mágoa fez austera e grave.
Sombra!... O seu nome era a macia alfombra
De minha vida... Tudo acaba!... O amigo
Morre!... E seu nome: Sombra!... Sombra! Sombra!
Curitiba, 23 de março de 1908
Mal surge a noite e, pelo firmamento,
Constelações ressaltam piedosas,
Ouço o réquiem das lágrimas saudosas,
De minhas mágoas e desolamento.
Fito o Cruzeiro...Bate-me o lamento
O compasso das preces dolorosas:
E os violinos das paixões famosas
Estertorejam íntimo tormento.
Alma, que arcanjo um ósculo soluça?
Que pálido fantasma se debruça
Sobre o calvário que no seio trago?
Madalena do amor, que amor te esmaga?
Vaga minha alma e tua sombra vaga
Dos impossíveis o funesto lago.
Capital Federal, julho de 1893.
Guarda o símbolo de ouro, a mística aliançar,
Noiva ideal que adoro, em meus dias de asceta;
E um dia volverás, ao braço do poeta,
Nos lábios reflorindo as rosas da esperança.
Um dia, volverás pelo meu braço... Esteta,
Burilarei da estrofe os versos lapidários; Entraremos do sonho os níveos santuários,
Templos gregos do Amor junto à linfa discreta.
O lago da Ilusão reflete o templo... Ha de
Refletir desse olhar toda a suavidade,
Todo o encanto feliz de teus olhos divinos.
Lindos jardins, — Teano, — a florescer em lírios;
Almas, Almas irmãs, o lótus dos destinos
Colhendo, à luz astral de Aldebarã, de Sírius.
Retiro Saudoso, 3 de janeiro de 1910.
Vês este esquife lirial?... Descansa
Aí, fanado, o derradeiro sonho:
De puro olhar, dulcíssimo e tristonho,
Meigo e pungente raio de esperança.
Foi esse olhar o idílio mais risonho
De minha vida amenidosa e mansa...
E quanta vez beijei a loura trança
Dessa que eu via em derradeiro sonho!...
Ela, porém, fugiu... Mágoa secreta
Veio minar a vida do poeta,
Dando-lhe o haschich de sensações profanas.
Regressa agora... É tarde, noiva amada!
Minha lira repousa, amortalhada
No éreo sudário das paixões humanas.
Outubro de 1892.
À memória de Lício de Carvalho
As carícias dulçorosas
Dos amores juvenis
Já não vibram maviosas
Em minhas noites sutis.
Das sepulturas sombrias
Os duendes macilentos
Descantam melancolias
Em meus dias lutulentos.
Interrogo o eremitério
De minhas cismas severas
E palmilho o cemitério
Das fanadas primaveras.
Mas, a prece não consola
Quando é morta alma ilusão;
Quando a saudade estiola
Os lírios do coração.
As neves do ceticismo
Me envolvem sinistramente,
E sei que rolo no abismo
Da tristeza a mais pungente.
Brancas neves da saudade,
Astros das noites do amor,
Osculai a soledade
Do finado sonhador!
E o silêncio que ressumbra
Das letargias do Nada,
Seja a discreta penumbra
Da derradeira morada.
Curitiba, 9 de janeiro de 1894.
Voltava ao caos o mundo. A efêmera existência,
Sol que se vae no ocaso, aos poucos se extinguia;
Com o mundo a paixão, com o mundo a ciência,
No silêncio sem fim de uma campa vazia.
E os sóis iam morrendo, astros rubros, girando...
E a treva, a treva algoz, invencível, cruenta,
Corria-lhes no encalço, em sombra os afogando,
Espectros sepulcrais de face macilenta.
Uma estrela, no entanto, assistia e brilhava,
Astro da Fé, do Amor, da crença derradeira,
E pelo sentimento e pela Fé lutava,
Vencendo a derrocada e a morte forasteira.
Mas, este astro também, essa última vontade,
Na noite se extinguiu. E, pelos céus profundos,
Abria largamente o crepe da saudade
O Tempo, amortalhando a noite, a treva, os mundos.
Como o céu, Eleonora, a minha alma de bardo
Tinha estrelas gentis, de angélicos fulgores;
Onde hoje cresce a urze e desabrocha o cardo,
Palpitavam legiões de beijos e de amores.
Tu eras, Eleonora, a crença derradeira,
Cintilando no azul da paixão que conforta...
Perdi-te! E o crocitar de uma hórrida caveira
Chasqueia-me, fitando, a minha crença morta.
A minha alma partiu. 0 espírito não mora
Onde vive a tristeza e não palpita a luz.
E eu só tenho da angústia o cipreste que chora
De minha enorme dor sobre a sinistra cruz.
A minha alma partiu. E eu sigo amortalhado
No sudário da mágoa e da desolação,
Sem um astro sequer dos astros do passado,
Cadáver, sepultando o próprio coração.
Perdi-te, Eleonora!... Austera soledade
A do ermo que envolve a minha alma doente.
Cingem-me o coração os crepes da saudade
E a saudade sem fim de teu olhar ardente.
Curitiba, 8 de janeiro de 1894
Não te maldigo, não!
Castro Alves.
Eu seguia sozinho o trâmite da vida,
Desiludido da amizade humana,
Resvalando na Íngreme descida
Por onde segue a triste caravana
Das almas dos poetas.
Todas as mágoas desalentadoras
Que maviosos bardos têm cantado,
Recordavam-me as jovens Leonoras
Com quem tenho sonhado,
Quando releio os místicos profetas
E volto aos paraísos do passado,
Onde murmuram nênias indiscretas
As esperanças de porvir dourado.
Porque, haveria, então, — eu que sou pobre e cego,
Acreditar em ti que, como as outras, mentes;
E, esquecendo o madeiro que carrego
Sobre os ombros em sangue,
Fitar-te os olhos súplices e ardentes,
E a voz ouvir-te harmoniosa e langue?
Porque haveria eu que sinto o céu vazio,
E não tenho na terra o fulcro de uma lousa,
Correr atrás de sonho fugidio,
Asas espalmas, fátua mariposa?
Ó Leonor, como o sorriso é falso!...
Como engana essa voz
Que arrasta o vate para o cadafalso
Dos suplícios eternos,
E arroja os corações para os avernos,
Povoados de sombras como nós...
Por que vieste encantadora e bela
Inocular-me o balsamo das graças,
Se, como as sombras, fugitiva passas,
Se, como as sombras, te não corporizas?
O céu da mágoa nunca se constela,
Não se constela o céu do desalento!...
Porque pousaste no meu pensamento,
Se tua efígie a morte simboliza?
Não te maldigo, não!... Choro comigo
Todo o infortúnio que meus dias mata.
Bendito o frio espelho do jazigo
Onde meu corpo todo se retrata!
Que vale a dor de um átomo que pensa?
Que valem desesperos de poeta?
Todos bebemos a fatal descrença...
E, como a planta, o ser também vegeta.
Que vale uma saudade?
Que vale essa tristeza que me punge?
Um outro existe a quem teu lábio unge
Do fino aroma da felicidade.
Sê feliz, Leonor! Seja de brancas rosas
O teu soberbo leito de noivado;
Que só eu sorva as plantas venenosas
Que pela vida temos encontrado.
Que só eu sinta a flama dos espinhos
Que as almas queima no sarçal ardente;
Só eu palmilhe os ríspidos caminhos
Onde floresce a dor selvagemente.
Sê feliz, Leonor! De minha soledade
Não te irei recordar a ingratidão cruel.
O amor será sempre um sonho e uma saudade;
Será sempre a saudade a Musa de RUDEL.
Não te irei recordar os ternos juramentos
E aquelas frases todas que dizias...
O malsinado encerra os sofrimentos
Num cinerário de melancolias.
Viverás, sem que a sombra de meu vulto
Vá projetar-se em teus palácios de ouro;
Não professas, comigo, o mesmo culto,
Não julgaremos pelo mesmo foro.
As tuas opulências serão tantas
Como as estrelas, como os grãos de areia;
Eu ouvirei a confissão das santas,
Rogando aos céus pela desgraça alheia.
Que importa o desespero de um poeta,
Quando vivemos venturosamente?
E ver-te-ei, talvez, mais indiscreta
Que a estrofe mais sincera e independente.
Ó Leonor, é que não compreendes,
Em tua ignorância tão celeste,
Que a mais rara ventura
Fenece um dia, como a flor mais pura;
E a lâmpada que acendes
Sobre esse altar de mármore lavrado,
Refletirá por todo teu passado.
É que não sabes que essa mesma luz
Há de guiar-te à humilde sepultura,
Sobre a qual abra os braços uma cruz,
Feita de prantos e de desventura,
Onde irá projetar-se a sombra de um cipreste
E o severo perfil de um monge desolado.
Curitiba, 28 de março de 1894.
A Marta Silva
Flui do poente de ouro a sua imagem,
Arminho e aroma;
Assoma
Em minha humilde, merencória cela;
Fora, na folhagem
Passam favônios e suspiram ninhos...
Ela, somente Ela
Não se perde nas curvas dos caminhos.
Ninguém mais me visita nestes ermos...
(É tão risonha a vida das cidades!)
Anacoretas são enfermos,
Perdidos na penumbra das saudades...
— Que me queres, Irmã?
Do solitário
O tugúrio é sombrio,
A noite é triste nesta soledade;
Ficarias como um lírio
No cimo do Calvário,
Flor de bondade
Perdida
Na penumbra feral de minha vida.
Nos meus olhos de monge
Andam sombras
De meu Retiro amado...
Longe,
Sinto ainda o veludo das alfombras,
Ouço o murmur das fontes,
Evoco os horizontes
Do Passado.
Na paz daquele horto
Aprendi a harmonia das Esferas;
Era tudo conforto,
Em tudo floresciam primaveras.
Zumbidoras abelhas
Das cataias em flor o mel tiravam;
Nas hortênsias azuis, entre corbelhas,
Pintassilgos cantavam;
Da criptoméria no obelisco
Os gárrulos pardais
Saudavam-me dos ninhos
Nas manhãs joviais;
Era o Retiro o meu aprisco,
Eram aqueles caminhos
Meus trâmites reais.
Que queres, minha Irmã, que posso agora?
Volve a teu lar!...
Branca estrela da tarde, à tua hora
Melhor fora dormir que despertar!
— Que me queres, Irmã?... Roxa saudade Cinge-me o coração...
— “Sou o eco de tua soledade:
SOMBRA: Recordação…''
Curitiba, 18 de fevereiro de 1915.
Vamos, poeta, ilumina a mesquita da mágoa,
Veste, agora, da mágoa o negro sambenito;
Eleva para a cruz os olhos rasos de água
E sobre o pó da nave ajoelha-te contrito
Ouves? Baomba o sino as orações da noite...
Há em toda a amplidão o mistério da Cruz...
Perpassa à luz do círio a sombra de um açoite
De mortas ilusões e de flechas de luz.
As místicas visões elevam-se das campas,
Na destra apresentando os missais do Destino...
E a larva do pesar sobe as íngremes rampas
Do país da saudade e do amor peregrino.
Todo poeta que sofre, a tristeza do monge
Sente, e sente do monge os longos desalentos:
É que a ambos o Amor fita-os de muito longe,
E sem amor não há nem céu nem firmamentos!...
Vamos, poeta, ajoelha! Esse templo é a tua alma.
Sobre o negro madeiro um anjo se debruça.
Seu semblante não tem a merencória calma
Das virgens; mas a dor que em teus versos soluça.
Esse arcanjo é a visão de teus dias mais santos,
É o místico ideal que te vibrava a lira;
E por ele subiste um calvário de prantos,
E por ele a tua alma estremece e suspira.
Vamos, reza, poeta! As orações confortam...
Perpassa à luz do círio a sombra de um açoite...
Os mistérios do Céu só as cruzes suportam,
Porque o Céu fala à cruz pelos astros da noite.
Abre o teu coração a todas as tristezas,
Vive na tua dor, silenciosamente...
E as tuas orações e as tuas incertezas
Sepulta junto à cruz de tua dor veemente.
Cinge mais sobre os rins os cordões do cilício,
Crava mais o punhal que te lacera o peito.
O céu quer muito pranto e muito sacrifício...
Morre, para que o céu se julgue satisfeito!
Irrisão! E não há quem te compreenda as dores.
E o sino do pesar toca sinistramente...
Monge, oscula essa cruz!... Monge, entoa louvores!...
Vive na tua dor silenciosamente.
Curitiba, 10 de março, de 1894.
A Mercedes Tourinho
Não mais dedilha a merencória lira
A bela castelã enamorada;
Apenas, hoje, a viração suspira
E acorda os ecos de canção magoada.
Apenas, hoje, sob o céu sereno,
Choram visões formosas e sentidas,
E mavioso e embalsamado treno
Enche a soidão de notas compungidas.
Não mais chega ao balcão a Julieta,
Nem mais suspira o trovador queixoso,
A um tempo amante, músico e poeta.
Apenas freme a múrmura folhagem:
E a efígie branca de luar saudoso
Fita e amortalha a fúnebre paisagem.
1892
A Clara Paciornik
Flor de silêncio, flor dos santuários,
Prece de aroma,
Prece
Que à luz crepuscular da tarde reaparece
No horizonte,
Evocando longínquo estradivários
De intangíveis perfumes,
Quando o luar assoma
Na cimeira do monte,
Silenciosa fonte
De saudade,
Fonte de extintos ciúmes,
Frios,
Frios!...
Neve de mortos estios,
De extintos lumes,
SAUDADE!
Flor de silêncio, enlanguescida
Na solidão da Ermida,
Na solidão do amor;
Flor de graça, e renúncia, e solitude,
Alaúde de aroma,
Alaúde
De íntima e discreta confidencia,
Toda silêncio
E íntima dor!...
Flor que pende e inclina a taça,
Quando o luar assoma
Todo neve, — tristeza de uma ausência
Que não passa!...
Frio!...
Frio!...
Névoa que vela o rio
Da existência...
Rio na solitude!...
SILÊNCIO!
Flor de neve na cor e de flama na seiva,
Flor da estepe distante,
‘Slava!
‘Slava silenciosa e de alma crepitante,
Na solidão da Ermida quieta,
Na solidão!...
No exílio!...
Flor que recorda o idílio
Do coração;
Flor que recorda e grava
A blandícia do céu e o cicio da aragem,
Abre o cálice, Flor,
Ouve a mensagem
Do amor!
Ouve, Flor de silêncio, em silêncio!
Silenciosa...
Silenciosamente,
Da alma crente
A confidência discreta,
O segredo de tua e minha solidão:
— Em teu peito, em meu peito há um só coração.
E da ausência a neblina,
Fria!
Fria!
Arrefece
Nossa prece...
É tua sina:
É minha sina:
SOLIDÃO!
Templo das Musas, 19 de dezembro de 1928.
Nostalgia do azul... Fita-me tristemente
O céu, como sentindo a dor que me lacera;
E a saudade sem fim de morta primavera
Entra-me o coração silenciosamente.
Ha ciprestes no céu... De acerbo desespero
Passa a negra visão nos páramos celestes;
E ruge-me no peito o último gajeiro...
Morte, fora melhor a sombra dos ciprestes!...
Asas de minha angústia, através de oceanos,
Esbatem o luar das esperanças mortas...
E sofres, coração!... E, sublime, suportas
A blasfêmia dos mãos e a chufa dos tiranos.
A descrença cruel que imobiliza e cresta,
Neva-te!... E não tens mais a carícia da vida.
Tens a soturna dor de aspérrima floresta,
Ensombrada de tédio e de mágoa embebida.
Quem te fez imortal, alma desconsolada?
Quem te lançou no caos de uma paixão sem termo?
Quem te faz arrastar o exausto corpo enfermo
De amor que sucumbiu, que não vale mais nada?
Essa alma tua irmã, que era a tua alegria,
Partiu!... Alma infeliz, que não podes segui-la!...
E sentes, através de tua fantasia,
A veemente paixão de falar-lhe e de ouvi-la.
Alma, só tu não tens os ósculos da Sorte;
Só tu não podes ir onde vai teu desejo!
Hás de assistir eterno o fúnebre cortejo
Dos que se vão da vida à tristeza da morte.
E não encontrarás a tua irmã e amiga,
Pois a prece de amor que o coração encerra,
Morre, sem que se encontre a meiga efígie antiga
Além da infância, além da vida, além da Terra.
Viverás, memorando o teu passado morto,
A só consolação das almas inditosas,
Sem a sombra da cruz das crenças piedosas,
Sem a lúgubre paz de discreto conforto.
Viverás triste e só, — misero anacoreta, —
No tugúrio da mágoa e do desolamento,
Suportando o grilhão de sinistra calceta,
Amalgamado em pranto e muito desalento.
Na poeira do amor caminhando de rastros,
Como quem vai da luz à treva lutulenta,
Embalde arrojarás à lua macilenta
O crepe dessa dor que carboniza os astros.
Em tua viuvez não terás um sorriso
Que te venha morrer nos lábios semifrios;
Serás como uma flor, morta no paraíso,
A rolar nos cachões de envenenados rios.
Queres a paz! a paz não existe entre espinhos.
Assistirás eterno à tragédia da vida;
Outras almas verás, — alma desiludida, —
Arrastando na treva a dor pelos caminhos.
Outras almas verás, tristes e lastimáveis,
Entoando a canção das saudades eternas,
Sepultando o ideal das crenças adoráveis
Na funérea mudez de vazias cavernas.
O sofrimento é lei que domina o Universo;
Ninguém logra fugir a suas vergastadas.
São lamentos de angústia as rimas soluçadas
Que clamam pelo olhar dos constelados versos.
Alma, volve ao silêncio! O silêncio consola.
Vive na tua dor, como se um mundo fora.
Não procures saber a estrela que acrisola
Essa alma de mulher que se chamou Leonora!
Não, não tentes saber, — que essa alma peregrina
À esfera não pertence em que, verme, rastejas:
Foi visão que passou nas noites benfazejas
Que o céu tem, quando o céu de ilusões se ilumina.
Curitiba, 26 de janeiro de 1894.
A Noêmia:
Tu vais partir: adeus! Mas, na amplidão dos mares
Há de seguir-te sempre infinita saudade;
Órfã de meu carinho e de minha amizade,
Nem terás alegria ao penetrar teus lares.
Quando a aurora dourar o arminho de teu leito,
Rindo, numa ilusão dos dias de estudante,
Correrás, pressurosa, à lavorada estante
Os livros procurando... As aulas!... Em teu peito
O dúctil coração soluçará desperto...
Que saudade sem fim! que sombrio deserto!
Tão longe o horto de luz que tua cisma atinge!
Minha Irmã, minha Irmã, (ó Sócrates divino!)
Se voltasses!... Roreja o pranto cristalino,
E osculas tristemente a merencória Esfinge.
Retiro Saudoso,-12 de novembro de 1909.
Lira, tu já não tens vagos dedilhamentos
De saltérios de amor, de harmonias suaves.
As estrelas do céu têm fúnebres lamentos
Quando osculam do claustro as denegridas naves.
O infortúnio extinguiu a piedosa flama
Que era de minha vida a única mercê.
Para que serve o amor, quando ninguém nos ama?
Para que serve o céu, quando mais se não crê?
Envolve-me a existência o sudário do tédio,
Entra-me o coração o Estige feito aroma...
Por que ainda entoar um bárbaro epicédio,
Se a dor é sempre a dor, e a mágoa se não doma?
A lira encarcerei no ergástulo da morte,
Arrojei o porvir de uma torre bem alta.
Porque ainda lembrar essa estranha consorte
Que foi sempre a visão de súcuba efialta?
Amortalha-te, ó lira!... A alva das violetas
É clâmide sutil, finíssima e nitente...
Eu irei sepultar no seio dos planetas
Todas as pulsações desta paixão latente.
Essa, que habita a Terra, e vejo, e adoro, e quero,
Não vive para mim, que para mim morreu...
O poeta que amou, por mais crente e sincero,
Quando perde a esperança, o coração perdeu.
Firmamentos azuis, antros misteriosos,
Onde sinto subir a minha alma tão leve,
Para que serve o amor, quando o amor não traz gozos
E a lira do poeta é uma lira de neve?
Astros da solidão, frias neves do polo,
Mortos, eu vos invejo a vossa indiferença!
Por que hei de trazer sempre esta efialta ao colo,
A efialta feral da mágoa e da descrença?
Curitiba, 1 de maio de 1894.
Para além do Destino e para além da Morte,
Na fímbria azul, na concha azul de lótus ideal.
E a flor a flutuar, sem bússola e sem norte,
Na volúpia sem fim de nossa alma imortal,
Alma irmã, nesse olhar, — excelsa maravilha
De santuário de Flora, — o viço, a primavera...
E a surpresa de achar no oceano uma ilha,
Como um seio a surgir de entre a espuma: Citera.
O paraíso enfim, a eternidade, o mito
Da Beleza, vencida ao encanto da Serpente;
O requinte no amor, sob o céu infinito...
O requinte de um beijo em tua boca! a trova
De um beijo a clarinar no templo... Ó Lua Nova,
Ó quimera de amar insaciavelmente!
Retiro Saudoso,-27 de maio de 1905.
Asas de prata de meu sonho!...
Velas de prata da saudade!...
A que regiões, Alma do Sonho,
Levais a minha soledade?
Nos meus baixéis, Alma do Sonho,
Chora a maruja da Saudade.
As naus aproam para o Ocaso...
O ocaso é a Paz: luz diluída...
Porque me levas para o Ocaso,
Alma de toda minha vida?
Sonho!... Esperança!... luz do Ocaso,
Luz da saudade diluída.
O Outono é o crepe do Mistério,
Névoa dos sonhos evolados.
Sino de triste eremitério
Carpindo Invernos e finados.
As naus flutuam no Infinito...
Frota do Sonho e da Saudade,
A que sepulcros do Infinito
Levais a minha soledade?
Porque flutuas no Infinito,
Frota do Sonho e da Saudade
A noite envolve minha frota...
Noite: sudário da Esperança!
Sudário amigo!... Amiga frota!...
Mares da Morte e da Bonança!...
Meus sonhos mortos: minha frota:
O cinerário da Esperança.
O Outono vem. Minha alma exangue,
Tu és a flor do Esoterismo.
Ó Terra, ó Carne, ó flor de sangue,
Eu vou dormir, flores do Abismo I
Asas de prata de meu sonho,
Vibrai meus sonhos de saudade!
Velas de prata de meu sonho,
Vós sois as naves da saudade.
Vós sois o ocaso, Alma do Sonho,
Noiva de minha soledade.
Para o Mistério a frota avança...
Fulge uma aurora além abismo.
Frotas de opala! as naus aproam
Às regiões do Esoterismo...
Liras de prata! almas entoam
Hinos de luz além abismo.
Tu és o Lírio da Esperança,
Ó Flor azul do Esoterismo!
O Outono é o crepe do Mistério,
Astral do inverno, ó Primavera!
Sinos do triste eremitério.
Vós sois as asas da Quimera.
Curitiba, maio de 1900.
A Antônio Braga
Sonhar! Queres sonhar? Que vale o sonho, poeta?
Que vale o esquecimento efêmero da vida?
Cedo ou tarde irás dar à negra linha reta
Do trâmite fatal da ingênua fé perdida.
Sempre que novo amor povoar-te a lembrança,
Uma nova ilusão cantar-te-á na lira...
Mas o gozo é fugaz, como é falsa a esperança...
E a paixão da mulher também murchece e expira.
De todas as visões, — sejas Dante ou Ticiano, —
Só uma há de seguir-te imaculada e franca,
Como surge no azul puríssimo do oceano
A asa branca de um barco ou de uma garça branca;
Só uma há de seguir-te imaculada e terna:
A cândida visão de teu amor primeiro:
É que a primeira crença é sempre sempiterna
E o primeiro carinho é sempre verdadeiro.
Não te quis arrancar a alvíssima dalmática...
Compreendi tua dor... epiloguei-te a cena...
Ama, sonha, idealiza!...
A vida é problemática...
Por que a mágoa há de ter as asas da falena?
Ama, sonha, idealiza... A juventude é louca...
Mas, não vás resvalar sobre a lousa da morta!
Dói mais a ingratidão bebida numa boca,
Que o pesar que nos segue e que nos bate à porta.
Não há beijo de amor, por mais voluptuoso,
Que não tenha o ressaibo e a sombra da efialta.
Para que serve o céu, para que serve o gozo,
Se o gozo tiraniza e o céu sempre nos falta?
O dia de amanhã, por mais louro e garrido,
Gera à noite o luar da última saudade.
E nem sempre o ancião é quem mais tem vivido:
Ha muito inverno, ó poeta, em plena mocidade!
Por muito que te vás pela existência fora,
Guisoreando ao sol da tua juventude,
Hás de sofrer, alfim, — após última aurora, —
O amplexo glacial das tábuas do ataúde.
Antes vestir do monge o negro sambenito...
A bondade é o maná da bem-aventurança...
Feliz quem nunca leu o dístico maldito,
Quem não provou o amor nuns lábios de criança!
Vês: o Inferno do Dante é muito mais sereno
Que o crime de Manfredo e a dúvida do Hamleto;
Antes beber, porém, letífero veneno
Em crâneo de mulher, glabro, sórdido, preto,
Que sorver a paixão numa boca risonha!...
Pois o riso, poeta, é veneno terrível:
Fulmina muito mais do que qualquer peçonha,
Sem que termine a dor, sem que esmague o impossível
Revolve o estranho pó do velho cinerário!...
Que encontras tu aí?... Aí, que te conforta?
Escorralhos senis de antigo santuário,
O vestígio, talvez, de uma esperança morta.
O silêncio do poeta é o melhor dos sarcasmos...
Que a mulher que o ferio, não saiba que o venceu:
Fite embora nos céus os grandes olhos pasmos,
Perguntando à amplidão se o poeta a esqueceu.
Curitiba, maio de 1894.
Alfim! Vais repousar, corpo meu tão franzino,
Escudo, roto já, pelos gládios da Sorte;
A decomposição completa é teu destino,
As atrações do Além levam-me além da morte.
Para o Azul, para o Azul!... Vou perlustrar espaços,
Alma, — de sol em sol, — filtro que o corpo encerra.
Melhor fora, talvez, a noite de teus braços,
Meu amor, bem melhor! nos presídios da Terra.
Exílios! De tua alma a minha alma se ausenta.
Soluças! Nosso adeus é agonia lenta,
A Quimera a morrer nos braços de um titã...
Ficas em teu solar, sigo para o Mistério...
Quando seremos — LÁ! — no infinito sidéreo,
Almas nupciais na radiosa manhã?
Retiro Saudoso, 7 de fevereiro de 1905.
Vive na minha saudade
O meu Retiro Saudoso,
Como a ruina de um pouso,
Perdido na soledade.
As campinas circundantes
Floresciam sempre-vivas,
Asas de ouro esvoaçantes
Das Horas evocativas.
Na penumbra erma e dolente
O Bosque dos Pitagóricos,
Tinha aspectos alegóricos,
À hora do sol poente.
Seguia no azul de lenda
O voo dos passarinhos;
Era meu lar uma tenda
Entre os tojais dos caminhos.
Tenda símplice e modesta,
Com seus confortos velados,
Tendo cantores alados
Nos cantores da floresta.
Tenda de sonho e de afeto,
Muita lágrima secou;
Foi santuário discreto
Que o Destino arrebatou.
Como a ruína de um pouso;
Perdida na soledade,
Vive na minha saudade
O meu Retiro Saudoso.
LÍSIS comigo inquiria
Os arcanos do Universo,
Interpretando a harmonia
Dos evangelhos do Verso.
Era o Simples de Junqueiro,
Na magia encantadora,
Linda rosa evocadora
Entre as urzes de um mosteiro.
Na alfombra, suavemente,
Andavam Buda e Jesus,
Duas asas do Oriente,
Filigranadas de LUZ.
Jovialmente, as crianças
Folgavam... Ditosos dias!
Hoje, lentas agonias
Vão ceifando as esperanças.
Quis ser bom, deixei meu horto,
Cavaleiro da Bondade
Regresso, mas, semimorto
De ingratidões, de saudade.
Amigos que inda possuo,
Pensam levar-me a bom porto,
Faróis de grato conforto
Nos mares em que flutuo.
Em mim concentram a vida
Meus filhos e irmãos e esposa;
Mas, a minha alma ferida
Busca o abrigo de uma lousa.
A formosa virgem casta
Que à minha alma acrisolou,
Minha Irmã, — toda se engasta
Na amizade que deixou.
Vive na minha saudade
O meu Retiro Saudoso,
Como a ruína de um pouso,
Perdido na soledade.
Curitiba, 28 de dezembro de 1914.
A Tito Veloso
Sempre que desço à lura álgida e branca
De minha alegre infância descuidosa,
Abre por sobre mim a alma saudosa
O luar da tristura;
A abantesma da mágoa aponta o trilho
Do funerário abrigo merencório;
E sigo, triste e só, sob o zimbório
Da ilimitada altura.
A coreia das lágrimas sentidas
Acompanha o cortejo de finados,
Soluçam corações dilacerados
Interrogando os céus;
Entre as sarças da morte o goivo medra,
Sombrio menestrel das catacumbas;
Envolve paz soturna as níveas tumbas,
Sem chufas, nem labéus.
Ó minha Mãe, ó nobre criatura,
Alma de uma alma caridosa e amiga,
Que filho pode haver que não bendiga
O maternal carinho?
Que filho pode haver que amaldiçoe
Reminiscências de passado morto,
Se a própria sombra serve de conforto
Ao pássaro sem ninho?
Deixa que eu rasgue a clâmide do verso,
Deixa que cumpra minha romaria,
E vá beijar a lousa branca e fria
De teu sepulcro amado!
Os túmulos também são santuários,
O cadáver das mães é sempre santo;
Deixa que, sobre o mármore, meu pranto
Enalteça o passado!
Quando partiste, lembras-te? choravam
Osculando-te as mãos, a face, o rosto,
Infelizes, zurzidos de desgosto
Pungentíssimo e forte;
Para a família tudo terminava:
Para os filhos findava o encanto e a graça;
O lar do esposo... tenda que esvoaça
No pampeiro da morte!
Desde então, os salgueiros do infortúnio
Crepizam fatalmente nossas noites;
Batem-nos sempre ríspidos açoites
De audazes impossíveis:
Impossível de ter-te a nosso lado,
De te sentirmos sempre venturosa,
De te juncarmos de bonina e rosa
Os dias aprazíveis.
Não te olvidámos, nem te olvidaremos.
Conosco andará sempre esta saudade
Que reconforta a imácula amizade
E que nos aproxima,
Conosco andará sempre esta tristeza
Que mais aumenta, quanto mais perdura,
E subirá da Terra à excelsa altura
No ergástulo da rima.
Dá-nos a unção de teu ósculo puro,
Intercede por nós, Mae carinhosa!
Baixa dos céus à noite lutuosa
Do fúnebre jazigo!
Vem receber-nos nos umbrais da morte,
Reza conosco o salmo da esperança,
Aponta-nos a plaga amena e mansa,
E leva-nos contigo!
Curitiba, 17 de setembro de 1894.
Ao Tito
I
Vão-se da vida as ilusões mais puras,
Vão-se do Sonho as ideais celagens;
Saudades ficam, lúridas miragens,
Sombras da morte à flor das sepulturas...
Responde o pranto ao pranto... O tempo esgarça
Fibras da alma que foram nosso riso...
E só ruinas pelo paraíso!
Folhas de rosa de grinalda esparsa...
Meu Pai, meu Pai, que desolada a Terra
Des que te enregelou da morte o frio,
Frias as mãos que eu tanta vez beijara!
Morro! — que é morte este viver sombrio...
A dor suprema que minha alma encerra,
Só na tua alma lenitivo achara.
II
Possa a tua alma, tão bondosa e terna,
Na paz do Além dormir serenamente;
Bem o merece quem tão dignamente
Traçou da vida a diretriz superna.
Cofre — o teu coração; e recolhias
De alheios infortúnios triste mágoa;
Os olhos tinhas sempre rasos de água,
Que pelos outros, — não por ti, — sofrias.
Ó minha Mãe, lá do existir da morte
Acolhe nos teus braços o consorte
Que de teus filhos foi o Grande Amigo!
Amparo e guia, a nos suster os passos...
Na Terra havemos de seguir-lhe os traços,
Inspirações pedindo a seu jazigo.
Curitiba, 25 de março de. 1908.
Eu sou o pajem de Dona Morte,
Loura de olhos monacais;
Eu rezo salmos a Dona Morte,
Sou o chorai das catedrais;
Nos meus idílios flavesce a morte,
A morte — o vinho das bacanais.
Volvei os olhos de esperança
A um cavaleiro Rosa-cruz;
Os vossos olhos de esperança
São liras de ouro, alvas de luz;
São pulvinários de esperança,
Valquíria astral da Rosa-cruz.
No cinerário de meus sonhos
Arderam Silfos e Quimeras;
Em que sepulcro andam meus sonhos,
Ó peregrinos de outras eras?
Noiva, — sepulcro de meus sonhos,
Crisoberil das primaveras!
Eu sou o pajem de Dona Morte,
Entrei castelos e solares;
Seguindo os passos de Dona Morte
Subi a torres de sete andares.
Os belvederes de Dona Morte
Andam suspensos de meus olhares.
Andam suspensos de minha boca
Os nove arcanos da Alquimia;
Nos sitiais de minha boca
Rezaram monjas noite e dia;
Jamais oscules a minha boca,
Estrela da Alva da Nostalgia!
Deixa que mortos enterrem mortos,
Loura de olhos monacais;
A morte embala meus sonhos mortos,
Nas absides das catedrais;
A morte é a noiva dos sonhos mortos,
A morte é o círio das bacanais.
Deixa que mortos enterrem mortos,
Loura de olhos monacais!
Curitiba, agosto de 1898.
Rompi eu mesmo o lótus de esperança
Que teu olhar trouxera a meu deserto,
Lótus de amor e de meiguice, aberto
Nos sitiais de lábios de criança.
Eu mesmo abri sepulcros de saudade
Para teus risos, para teus carinhos;
E de teus olhos de felicidade
Fiz cilícios de goivos e de espinhos.
Hoje, viúvo de teus olhos castos,
Perlustro os céus da morte, ermos e vastos,
Maldito e só!... A larva de um tormento
Rói-me as entranhas, rói-me o peito e a boca...
E aos ombros levo, alma sombria e louca,
A cruz em chamas de meu desalento.
Curitiba, 30 de dezembro de 1896.
Tens nos topázios desse alampadário,
Vênus, a imagem de Eurídice morta;
Lira de Orfeu, carmes de Orfeu, sacrário
Do amor, — Saudade! — luz astral que exorta
À vida, ao Sonho, — Além! — o alvo sudário
Rompei!... Vibrai, liras do Éter vago!...
— “Noiva! Eurídice!... Noiva! Noiva!... o lago
“Da morte é pavoroso sepulcrário...
“Volve, Eurídice; volve!... A alma de Apolo
“Fulgura nos mirtais de ouro e esmeralda
“Do sonho!... E freme o coração de Eolo.
“Noiva!... Eurídice!... Noiva!... Esta grinalda
“Cinge!... Ressurge, Noiva!...”
— “Orfeu!...” suspira.
Orfeu vibrava a incomparável lira.
Curitiba, 11 Maio 1900
Hoje que a mágoa, roxo cinerário,
Recolhe os manes de meus tristes cantos,
E brancos lírios de ideais encantos
São contas negras de feral rosário;
Hoje que longo e lúgubre sudário
O esquife cobre de funéreos prantos,
E afetos castos e desejos santos
Sobem da morte o ríspido calvário;
Que importa o espectro de porvir desfeito?
Que importa a neve que o luar destila
Sobre as efigies que gravei no peito?
Dormem! Não mais o fino olhar cintila...
Noivas, na treva do caixão estreito,
Noivas mortas, nos tálamos de argila.
Curitiba, 12 de agosto de 1896.
A Hermínia Schulman
Plenilúnio. O luar molha as colunas dóricas...
Junto ao pronaus medito, evocando o teu rosto.
Que saudade de ti, dessa tarde de agosto,
De tintas outonais e visões alegóricas!
Saudade!... O coração lembra idades históricas...
Na Atlântida eras tu pitonisa... Ao sol posto,
Dizias da alma irmã os arcanos... Teu rosto
Banhava-se na luz das estrelas simbólicas...
Tantas vezes perdida! Imerso em luz ou treva,
De vida em vida, à flor do céu, te procurava,
Na dor da solidão... E, quando a lua eleva
A lâmpada votiva, eu te procuro ainda,
— Alma branca, alma irmã, alma em flor, alma ‘slava,
Na poeira de sóis da solitude infinda.
Templo das Musas, 3 de novembro de 1928.
Supões extinta a lirial quimera...
E te deixas morrer, saudosa e triste,
Como um goivo ao luar... Ai! nem resiste,
— Doce espectro de morta primavera, —
Teu dulçuroso coração de esposa!...
Ai! nem resiste ao merencório exílio
Aquele rubro e festival idílio,
Hoje epitáfio de sombria lousa!...
Ai! nem resiste a crença ardente e pura!...
Crepes de pranto velam-te o semblante,
E tens no coração a sepultura.
Entanto, eu vivo de te haver amado,
Vivo da luz de teu olhar distante,
Astro de amor dos céus de meu passado.
Curitiba, 7 de novembro de 1896.
Sem ti, a solidão é sombria e profunda,
Noite sem luz no céu, numa plaga deserta,
Naufrágio da existência aos vendavais aberta,
Quando ruge a tormenta e a treva o mar inunda.
Contigo, a solidão um jardim, rosa e trevos,
A surdina de um beijo em corolas douradas,
A música do céu na luz das alvoradas,
Um rimance de amor e místicos enlevos.
Retiro Saudoso, 9 de fevereiro de 1929.
A Sonia Harcover
I
Que vale esse esplendor de ameixeiras floridas,
Crisântemos reais e sedas, e opulência,
Se a tua alma se esvai, linda flor de inocência,
Sem amor que te aqueça o amor?... Horas perdidas
Cismas... E nada vence as sombras esquecidas
Que ficaram pairando em teu passado... A essência
De teu amor perfuma esse abismo, a indigência
Do nobre coração, tão rico!... As nossas vidas
Fundem-se na expressão de teus olhos de idílio,
Na dor que é tua e minha, — a dor de nosso exilio,
De renúncia, bondade, e silêncio, e brandura.
Guardas no seio em flor a vida soberana.
Flor de lótus, venceste; a tua essência pura
Flutuará no azul, na extensão do Nirvana.
II
Eu também conheci alguém, moça e formosa,
De perene bondade e meiguices divinas;
Ao bom, ao mau, à fera estendia as mãos finas,
Mãos de seda, de luz, de essência vaporosa.
Era a Musa do Céu, de voz deliciosa,
Cantando num vergel de lírios e boninas.
Amou; foi infeliz. As graças peregrinas
Fanaram-se na dor, na angústia a voz maviosa.
Mas, da bondade inata a tortura medonha
Não lhe pôde secar a fonte de virtude;
Sofreu martírio e dor, e maus tratos ignotos.
Envolve-a, em sua angústia, a loura coma... E sonha.
Sonha!... (Como foi má aquela fera rude!)
Chora, cala... sorri... perdoa: é Flor de Lótus.
Rio. Sta. Teresa, 20 de abril de 1924.
A uma Irmã Espiritual
Desde que Outono amortalhou meus dias
Nas hipogeias da esperança morta,
E a soledade mística, — absorta
Levou minha alma a regiões sombrias;
Supus, as serpes da existência fátua,
Ao triste monge que volvia à vida,
Não siflariam ilusão perdida,
O fino paros de uma antiga estátua.
Mas, a Calúnia rugitou na treva!
E eu que subia para um sonho pulcro
No magnetismo desse olhar que enleva;
Regresso, — não à ermida, — ao cemitério...
Célere passa a noite do sepulcro:
Aguardo-te nos sólios do Mistério.
Curitiba, 28 de dezembro de 1900.
Tens a tristeza místice da Sombra
E lêmures dolências de saltério,
Rosa e Cruz da Saudade e do Mistério,
Heliotrópio da morrente alfombra.
Nivea e casta, — o sudário de teus cílios
Vela os olhos de véus esmeraldinos;
Recorda a tua voz preces e idílios,
Vagas surdinas, brumas e destinos.
Para adorar-te, ó Musa, era preciso
Brilhasse o azul dos céus em minhas trevas
E nas minhas manhãs um paraíso.
Nem pode o monge contemplar-te, ó pura!
Possa a minha alma ouvir-te, Astro, que elevas
A harpa do Sonho na longínqua Altura.
Curitiba, 27 de outubro de 1910.
A Emiliano Perneta
I
Meia-noite. O sino tange.
Tanger de sinos... — Ó sineiro!
No azul rebrilha o curvo alfanje,
Segando estrelas o ceifeiro.
Meia-noite. A Lua brilha...
A Lua brilha e o sino soa...
Ninguém o tange... (Ó maravilha!)
Ninguém o tange; e o sino soa!
Meia-noite. A torre geme...
Demônios rugem nos portais...
Vampiros!... Morte!... O vento geme...,
Os sinos dobram... Lua freme,
Almas das mortas catedrais...
Ai! Meia-noite!... Uivos!... Gemidos!...
Ranger de ossadas nos sepulcros...
Vampiros surgem dos sepulcros...
Lâmpadas brilham nos sepulcros...
Misericórdia dos vencidos!
Entanto, reza a voz dos mortos:
— “Salve, Regina piedosa!
Vós sois, ó Luz Misteriosa,
Fanal dos mortos”.
Salve, Regina! Ó Mãe! ó Santa,
Fulge em minha alma o teu olhar!
Salve, Regina!
Ó Mãe! ó Santa,
Ensina-me a rezar!
Nauta, eu me vou triste e perdido
No alto mar...
Ó minha Mãe, que o meu gemido
Suba aos Céus na asa branca do Luar!
II
E os sinos tangem: MEIA-NOITE!
Recurvo alfanje das Alturas,
Tu és o signo da meia-noite,
Frio fanal das sepulturas.
Meia-noite. A torre implora...
Torre dos mortos ideais!
A morte é o signo de uma aurora,
Maravilhosas catedrais.
Sons de órgão... O órgão invoca... O órgão entoa...
Eleonora! Eleonora!
A voz do órgão invoca, entoa...
Arcadas longas se iluminam...
Os sinos sinam:
Eleonora!
Ó catedral vetusta e amiga,
Ó catedral!
Torre do Sonho! Ó torre antiga,
Ó torre de cristal!
Desses vitrais multicolores,
Estranhas órbitas de luz,
Satã espia a Virgem das Dores
E as cinco chagas de Jesus.
III
Estalam crepes e sudários,
Ossadas chofram-se, partindo...
E à luz dos frouxos lampadários
Satã os sólios vae subindo
Do altar-mor. A missa negra
Começa... (Ó foice do luar!)
Ceifa minha alma, ó segadeira,
Sega-a, com foice de segar!)
Entanto a Lua,
Indiferente,
Filtrava os filtros da Ilusão,
Terrível, pérfida serpente
Que fascinasse um coração!...
Ruge o sabá... Bruxas e gnomos
Formam ronda de esqueletos...
A Lua brilha... Ó flor dos gnomos,
Astro de estranhos amuletos!...
Estalam beijos... A luxúria
Acende rúbidos anelos...
E roda a ronda, e freme a fúria
Das Messalinas e dos Otelos...
IV
Entanto reza a voz dos mortos:
— “Salve, Regina piedosa!
Vós sois, ó Luz misteriosa,
Fanal dos mortos!
“Salve, Regina imaculada!
Salve, Senhora dos aflitos!
Vós sois a Estrela da Alvorada,
Mãe dos proscritos!”
Salve, Regina!... Ó Mãe, ó santa,
Fulge em minha alma o teu olhar!
Ó minha Mãe, ó minha Santa,
Estou de joelhos, a rezar!
Que o meu gemido, ó Mãe, ó Santa,
Suba aos céus na asa branca do Luar.
Ó sonhado castelo!
Amor! Carmes de amor! filtros de amor! Loucura!
Almas do Setestrelo!
Alquimistas do Sonho e da Ternura,
Alquimistas da Morte!... O cemitério
É cinerário do luar...
A Lua é fria... Ó presbitério,
Ó Lua, ó lápide polar!
Ó meu Irmão, o luar é coveiro
Que leva o Sonho a sepultar...
O luar é sineiro...
(Ó sinos do luar!)
O luar é ceifeiro...
— Boa noite, luar!
Curitiba, 20 de maio de 1900.
Outono seios de astros acende. A nuança
O langor suaviza aos poentes de opala.
A floresta lendária a nostalgia exala
Da Sombra... E a Noite, a Treva, entre fanais, avança...
Estrelas, — velho azul, firmamento do Ganges, —
Crisopêicas se veem, luciolando, a sorrir!
Dos versos de Valmiki as vibrantes falanges
Passam, florindo o sol das lanças, — para Ofir!
Idílios ao luar dos juncos... Roxa estriga
Dos sonhos mortos flui... A iluminura antiga
Dilui-se... Uma tristeza infinita me invade.
Horas de mágoa. Além, no Oriente, a Luz surge;
A floresta, porém, recolhe as sombras... Turge
No atanor da Esperança a Fênix da Saudade.
Retiro Saudoso, 20 de março de 1905.
Salamandras, mais luz! Estetas da Nuança,
Fulgi, vibrai os sons profundos, as gamas
Ascendentes! Que o Sol seja palheta em flamas,
Vida fluida a correr nos vergéis da Esperança!
A vida é luz, é riso álacre, é sol de estio...
A sombra, vã quimera: uma inversão cruel...
Videntes do Amanhã, Estetas, sentis frio,
Longe, longe do AMOR, ó torres de Babel!
Fitais a Morte, e atraís a Morte sobre a Terra;
A luz atrai a luz: riso de Flora e Pã...
Não florescem na noite os lírios que a alma encerra.
Estetas, renascei em cânticos e preces!
Ceres, semearás o ouro de tuas messes,
Vênus, no céu azul da Hélade pagã!
Curitiba, 2 de janeiro de 1904.
Passa no Azul, cantando, uma trirreme de ouro...
Velas pandas... No Azul... Que levita inspirado
Reza o ebúrneo Missal, de requinte ignorado,
Entre astros monacais e iatagãs de mouro?...
Rutilam brocatéis de púrpura e de prata...
Fulgem Broquéis, à popa... A trirreme estremece...
Ísis! — quem te acompanha a estranha serenata
E para o Além da Morte entre os teus braços desce?
A Morte é a eternidade; é poente de outono...
Mago! — tu vais dormir o glorioso sono
Entre Broquéis de ônix e iatagãs de mouro...
Vais dormir!... Vais sonhar!... (Nobre e celeste oblata!)
Segue no Azul, cantando, uma trirreme de ouro...
Rutilam brocatéis de púrpura e de prata.
Curitiba, 31 de março de 1836.
Na penumbra do riso... O dia e a noite... O prazo...
E o sol, púrpura e ouro, o céu azul percorre...
Piedade do Deus que no ocidente morre,
Piedade da Luz que se apaga no ocaso!
Ampulheta da vida, um momento de atraso
Não tens, que o pó feral, rubro ou negro, discorre
E cai o pó, e o sonho passa, e a vida corre,
Ceifeira da Ilusão em campo estreito e raso.
Ômega! Ó Luz-astral na última agonia!
Ante o supremo FIM das curvas e das formas,
Alma, que vale o Orgulho, a Glória, a Dor sombria?
Ama! embora te aperte um cilício de espinhos...
Pensa! que o Tempo guarda a Essência, o Amor, as Normas...
E a Ideia leva à Paz, e a Paz floresce os ninhos.
Retiro Saudoso, 11 de janeiro de 1906.
O egoísmo feroz, a violência, o crime,
A ânsia de vencer, de ruir, de matar,
Ameigaste, a sorrir, com tua voz sublime
E tuas níveas mãos de encanto e de luar.
Abençoado o AMOR, divinizada a Planta,
Alcandorado o Ser na asa da Consciência,
Teve a Injúria perdão, um ósculo à Demência...
— Ó Buda, meu Irmão, que piedade, e quanta!
Esposa, filho, pai, teus palácios, o fausto,
Tudo que nos seduz, que é o nosso tesouro,
Tudo deixaste... num adeus, num holocausto;
E te foste, bem só, na alma a roxa saudade,
Meditando, colher a flor de sonho e de ouro:
— O Lótus ideal da SUPREMA BONDADE.
Retiro Saudoso, 13 de janeiro de 1906.
No álbum de Gonzaga Duque
Jesus, a Piedade, o Logos planetário,
Alma que se fez pó, humildade e carinho,
Eu não sei que te queiram: dor, cruz do Caminho,
CRISTO que eras, na alma a alma de estradivário.
Funéreo e triste, e triste e mortuário,
Quando foste o Graal de generoso vinho,
Essênio que traçaste a túnica de linho,
Casto no teu amor, níveo no teu sudário.
VERBO, levam-te morto, asas de luto, o chumbo
Do sepulcro a pesar sobre teus olhos garços,
Tu, o trigo da PAZ, Flor do Cedron, Nelumbo!
Não, Sol dos Arias! LUZ! De teus olhos emane
O AMOR, través dos céus, pelos astros esparsos,
MESTRE, que leva às mãos o fio de Ariane!
Curitiba, 9 de janeiro de 1904.
Era uma torre de berilo,
De altas ameias de cristal...
Torre do Sonho... Ó flor do Nilo!
Ó flor da torre de berilo!
Ísis, — ninfeia do Ideal!
Ó Cavaleiro da Esperança,
É de ouro puro o teu corcel!...
Onde ficou a tua lança?
(Ai! Sol no ocaso!) A tua lança
Não vence a torre de Babel.
Um dia à torre de berilo
Chega fermosa castelã...
Dona de olhar triste e tranquilo,
Em minha torre de berilo
Habita a Estrela da Manhã.
Ó Cavaleiro do Oriente,
Que longas vestes Ela tem
A sua clâmide fulgente
É como a luz do sol poente
Sobre o presepe de Belém.
Ó sonho! ó torre de berilo,
De altas ameias de cristal!
Torre do AMOR!... Ó flor de Milo,
Ó flor da torre de berilo,
Vênus, — gardênia do Ideal!
Ó Cavaleiro marroquino,
De lança de ouro e alvo albornoz,
É teu perfil nervoso e fino
Tu és o gênio do Destino
Em teu corcel negro e veloz.
A Dama habita a minha torre,
Suzere, rege o meu solar;
Quando ELA sobe à minha torre,
Meu coração, — a minha torre, —
É belvedere de luar.
Ó cavaleiro da Tristeza,
Volve de rédea a Bagdá!
O Sonho é a luz da Natureza...
Mas, no solar de Sua Alteza
Floresce o lis de Josafá.
Em minha torre de berilo,
Torre do Sonho e do Ideal,
Já não fulgura a flor de Milo;
Apenas brilha o olhar tranquilo
De Sua Alteza lirial.
Ó Cavaleiro da Saudade,
Essa que habita o meu solar,
Tem nos seus olhos de saudade
Dous longos círios de saudade,
Dous longos lírios de luar.
Floreia a lança, ó Marroquino!
Rende homenage à Castelã!
É seu perfil vibrante e fino.
Tu és o gênio do Destino
Nos sólios de ouro do Amanhã!
Avante! Avante, ó Cavaleiro!
É de ouro puro o teu corcel!
Percorre e vence o mundo inteiro,
E traz à Dama, ó Cavaleiro,
Rendido o mundo a teu broquel!
0FERTÓRIO:
Senhora e nobre flor de Milo,
Alfa do Amor e do Ideal,
O vosso olhar brilha tranquilo
Em minha torre de berilo
Como um velário de cristal.
Salve, Regina piedosa,
Formosa e nobre Castelã!
Salve, Regina gloriosa!
Vós sois a Luz misteriosa
Dos sólios de ouro do Amanhã.
Curitiba, 26 de novembro de 1898.
A “J. PERETZ”
I
Quem te ouve e te sente, e o sentimento
Que te aquece e te exalta, compreende!
Quem segue os voos de teu pensamento,
Na hora de fogo em que a paixão acende
II
Todo um céu de esperanças recamado,
Todo um mar de vitórias rutilantes;
Quem evoca o fulgor de teu passado,
De teu presente as horas palpitantes;
III
Quem sofre o teu sofrer; quem sabe a história
De teu peregrinar; quem sabe o afeto
De teu sentir; a exaltação, a gloria
De tua fé e o teu amor discreto:
IV
Ama-te, ó alma hebraica, alma inquieta,
Toda prece e paixão, grata e sincera,
Lira de reis, alfombra de poeta,
Alma de luz na luz da primavera.
V
Nos olhos garço da mulher hebreia
Há céus de nostalgia e de beleza,
Resignações, anseios, a Judeia
Em zainfes de amor e de tristeza.
VI
Chora: — de Siloé suspira a fonte;
Sorri: — sorriem do Cedron as rosas;
Canta: — rutila o céu, fulgura o monte,
No estrelário das notas maviosas.
VII
Conhecem da amizade, a paz, o enlevo,
Íntimo o lar no culto da criança;
Fortes e bons, a vida num relevo
De trabalho, de crença, de esperança.
VIII
Em seu convívio refloresce o alento
Que a ternura dos bons ama e cultiva;
Lago sereno — para o pensamento,
Para meu coração — tenda festiva.
IX
Da juventude, vigorosa e ufana,
Radia a mente; o coração: bondade;
Na alma a visão da pátria soberana
— Pátria espiritual na Humanidade.
X
Judeia, — dos silêncios de meu horto
Vejo imensa a extensão de teus destinos,
Terra de vida, em plagas do Mar Morto,
Verbo de luz a voz de teus Rabinos.
XI
— Jerusalém!... Na evocativa ardente,
Chama-te o meu amor... Não clama em vão!
E ouço pulsar um coração fremente,
Um grande, um forte e altivo coração.
XII
Pergunto ao céu, à terra, ao mar profundo:
— Quem o possui, ó céus?!... E o céu: — “Ninguém!
“Ouves pulsar o coração do mundo,
“O coração de Deus: — JERUSALÉM!”
XIII
Ouço bater o seio da Judeia,
Ouço do Eterno o coração pulsar...
Mistério da alma da mulher hebreia:
Possui do Eterno o coração no olhar.
XIV
Alma hebraica, — dos homens ignorada, —
Alma religiosa e peregrina,
Imerge, imerge em tua luz dourada!...
Esparge, esparge a tua luz divina! —
Templo das Musas, 6 de janeiro de 1929.
I
Musa,
Musa espiritual de meus poentes,
De meus poentes outonais,
Poentes de ouro, e malva, e sândalo, e ametista,
Silenciosos poentes,
Evocativos,
Últimos poentes de minha vida a se extinguir...
Poentes vagos, misteriosos,
De finíssimas gazes
Róseas, brancas, lilases;
Poentes de asas sutis,
Asas de sílfides invisíveis,
Sombras diáfanas
Que passam intangíveis,
Incógnitos duendes
De evoladas, perdidas esperanças...
— Dize, ó Musa mística dos poentes,
Musa que não me esquece,
Única, única Irmã;
Dize, — não a caudal das lágrimas ardentes,
Os martírios sofridos,
Sonhos e símbolos partidos,
O soluço final de minha prece,
Ingratidões que sofri;
Não a conquista
De laureis virentes,
Os exílios, a angústia, a solidão funérea,
Todo o bem que o destino arrebatou,
Os tesouros da alma, que perdi,
A dor que o Anjo-Volúvel semeou!...
Não recordes a música eleusina De sua voz que me encantava;
Não recordes a hora vesperina,
Quando eu sonhava
Tendo seu rosto junto ao meu;
Não evoques a luz que dimanava
O seu olhar,
Límpido como a prata do luar;
Não evoques a rútila manhã,
Manhã primeira em que me apareceu;
Não a recordes quando a vi partir,
Não evoques o sonho que morreu!...
Leva-me, — além dos astros mais vizinhos
Da Via-Láctea que fulgura
Na limpidez das noites
Românticas e acariciadoras, —
Por ignotos caminhos,
Em plena treva, à solidão mais pura,
À infindável noite,
À solidão eterna,
À morte!...
Leva-me à morte, à paz, ao silêncio profundo,
Onde não silva o açoite
De serpentes
De olhos de engodo
E bocas sedutoras,
Coorte
De corações de lodo!...
Leva-me à paz da noite sempiterna!...
Quero perder-me no infinito,
Na negridão do espaço.
Alma de aço,
Maldito!
II
Musa do Além,
Serenidade,
Vem!
Envolve tudo que me envolve e cinge!
Envolve a esfinge
De meu sombrio e lúgubre destino,
A paisagem que cerca a minha ermida,
O murmurante veio cristalino
Que a sede desaltera,
Os meus últimos crepúsculos de vida,
A última primavera!
Serenidade,
Derrama-te em veludo
Por todos e por tudo!...
No flébil, tímido gorjear dos ninhos,
Na encruzilhada dos maus caminhos,
No veneno das perfídias,
Nas mãos dos algozes,
No rancor dos maus;
Derrama-te por todos e por tudo,
Asserena as insídias,
Sintoniza as vozes,
Canta nos solaus;
Sê o arminho da amizade,
A rosa branca da felicidade!
Serenidade, Serenidade,
Foste a imagem,
O mais lindo perfil de meu enlevo;
Pelúcia de minha cisma,
Aveludante matiz
De acariciadora amizade...
Quanta vez a alma em dúvidas se abisma
E se abroquela,
E quanta vez bebi a linfa da esperança
Em teus olhos serenos!...
Quanta vez a procela
De ódios e paixões,
Eivada de venenos,
Asserenou-se escutando os nossos corações!...
Tuas mãos de criança
Apagaram a cicatriz
De meu ferido amor;
Colheste em teu jardim a flor do trevo
Da felicidade,
A flor que dá fortuna, e o dissabor
Transforma em clara, vesperal miragem!
Colmo de minha ermida,
Linho de meu brial,
Serenidade — rosicler de vida,
Elegante palmeira imperial.
Serenidade, vem, nas névoas do crepúsculo,
Tranquila e silenciosa,
À hora indecisa da tarde,
À hora da saudade;
Musa de meu exílio,
De minha solitude,
Vem, Serenidade!...
A rosa
De minha prece
Em silêncio se desfolha...
A lâmpada arde
No santuário minúsculo
Do coração exilado;
Dize-me o teu idílio,
Fala-me, na mansuetude
Do poente; fala-me do passado!...
Desce,
Molha
Tuas mãos em meu pranto!...
Musa de meu encanto,
Fala-me do passado!
Retiro Saudoso, 28 de março de 1929.
FIM
[1] NOTA DO EDITOR: mantivemos a grafia arcaica, para não perder a rima com a deusa Ea, que aparece logo abaixo.
[2] NOTA DO EDITOR: embora atualizando a grafia do “x” para o “ch”, mantivemos o ditongo “ei” para guardar a rima consoante do original.
[3] NOTA DO EDITOR: O neologismo do autor foi apenas acentuado graficamente conforme a atual grafia do Português.