Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Água de Juventa, de Coelho Neto


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

Água de juventa

Desapontamento

Revendo o passado

À névoa

Confidência

Acédia

Primeiro a obrigação

O futuro

Hortênsia

A língua portuguesa

Uma aventura

Trecho de carta

Epitalâmio

Viúvas

Sonhos

Coram

O protetor

Os pais

Misantropia

Papoulas

Vingativa

A Leopoldo Amaral

ÁGUA DE JUVENTA

I

A Vila de Poços, côncava e mais funda do que uma cratera, entre bordos de outeiros e montes, sob a doçura límpida de um céu desanuviado e azul, com a sua paz de campo quase entrado ao sertão, é um fervedouro de águas maravilhosas.

Remotamente, em dias de quase extinta memória, quando as terras interiores eram apenas desbravadas pelos aventureiros, que revolviam as areias micantes dos córregos, escavavam o solo, brocavam as rochas procurando avidamente diamante e ouro, os borbotões, que escachoavam, em repuxo, à flor da terra, só eram conhecidos dos animais que desciam as encostas e vinham lamber os sais cristalizados nos barreiros ou enxurdavam-se no lodo tépido, como se conhecessem a virtude daqueles jorros que golfavam em olheirões ferventes, fumegando.

Data de 15 de junho de 1786 a primeira notícia escrita dessas águas, acusando a descoberta e preconizando os benefícios nelas colhidos por numerosos enfermos, muitos deles leprosos. Desde então começou a romagem para o vale feliz.

Os primeiros que ali chegaram, em lentos carros de bois, colmados de esteiras, atupidos de mantimentos — uns entrevados, outros cobertos de úlceras, lázaros deformados, roxos, vultuosos, corroídos, — achando-se em tão deserta paragem, entre crespas florestas, num campo virgem que as codornas percorriam, esvoaçando, e as cascavéis cruzavam morosamente, transidas, armavam barracas de lona ou levantavam palhoças e, ligando-se estreitamente numa solidariedade de recíproca defesa e consolo recíproco, passavam meses em cura, arranchados em torno do aguaçal que alastrava.

De madrugada, em plena bruma, levantavam-se os enfermos — uns, apoiados a escravos, vagarosos, gemendo e seguiam, rompendo as névoas que rolavam à flor da terra, em flocos; outros, eram levados em braços.

Este, como um amortalhado que se recolhesse precipitadamente ao túmulo antes do esplendor da manhã, corria, embrulhado em comprido lençol, tintando; esse, aos pulinhos, arrimado a muletas toscas, lá ia para o atascadeiro; aquele, com uma criança ao colo, animando-a carinhosamente, seguia, descalço, pela erva molhada; e todos, à beira do paul vital, pendurando as roupas nos ramos das árvores, sem vexame, naturalmente, desciam ao lodo, chafurdavam, banhavam as feridas, esfregavam as úlceras esborcinadas, raspavam as escaras da lepra, friccionavam as articulações anquilosadas e ficavam no atascal até que a luz aclarava, atoalhando de ouro os lombos das colinas, o campo em flor e, de um a outro no marnel, eram felicitações por melhoras que se iam acentuando.

O sol irradiava, fugiam lentas, dissolvendo-se, as últimas neblinas e, de todos os pontos, rompiam vozes de animais: mugidos dos bois de carro, que engordavam, soltos, afogados na erva; balados de ovelhas, latidos dos cães, que farejavam rastos de caça.

Tiros estrondavam, com grandes ecos reboantes rolando pelas quebradas; campeiros bradavam — e eram galopes desabridos de potros, montados em pelo, algazarra de crianças, gritos assustados de mulheres, que bracejavam, acenando aos filhos, chamando-os, repreendendo-os, com receio de que fossem cuspidos pelos animais naquelas correrias loucas.

Ali mesmo, numa aberta do mato, perto da povoação agreste, eram as rezes abatidas e escorchadas. As bandounas, apodrecendo em acervos, atraíam os tirubus, e, enquanto, acolhidas aos ranchos, à volta dos caldeirões fumegantes, as famílias comiam, falando das terras longínquas que habitavam na orla branca do mar ou nos ricos convales de mineração, os abutres disputavam o deventre das rezes, brigando, esvoaçando rasteiros ou fugindo aos cães, em voo alto, com um tassalho de carniça pendente do bico.

Os mais favorecidos acudiam aos pobres, mandavam-lhes presentes — eram gordas postas de carne, galinhas, cestinhos de ovos, frutas, remédios e, quando partiam, faziam uma larga distribuição de gêneros, de roupas; espalhavam esmolas em dinheiro, concorriam com avultados donativos para a construção da igreja e, com as muletas debaixo do braço, subiam ao outeiro e lá as deixavam, fincadas entre pedras, atestando o milagre.

À noite, em volta das fogueiras, as violas soavam lânguidas, trovas cruzavam-se e o solo estrupidava ao sapatear frenético do samba, até à hora da reza. Era, então, o terço, cantado de tenda em tenda, ou, nas noites de luar, todos juntos, em círculo.

E na floresta as onças urravam olhando espantadas os fogaréus vigilantes e o pântano milagroso começava a fumegar, velando-se de névoa densa; e afirmava-se supersticiosamente que, em certas noites aziagas, a horas altas, chamas subiam trêmulas, em línguas lívidas, desprendiam-se e ficavam pairando e ardendo no ar; depois empalideciam, minguavam e subitamente extinguiam-se.

Os mais tímidos, preferindo o sofrimento efêmero do corpo à eterna tortura da alma, como atribuíam o calor daquelas águas a virem elas diretamente do inferno, deixavam-se ficar nas choças repassando as contas dos rosários e, como o clima benéfico bastava, para lhes abrandar os males, sentindo-se aliviados, davam-se por atendidos pelo Senhor e regressavam aos lares contentes, espalhando lendas trágicas sobre demônios e pálidas aparições e ensinando pelos povoados humildes as simpatias e as rezas a cuja eficácia atribuíam o restabelecimento.

Com as notícias das curas milagrosas logo cresceu a ambição e com ela foram acudindo ao ermo lugarejo os primeiros habitantes. Fincaram-se esteios sólidos, atravessaram-se, cruzaram-se robustas vigas, as colunas foram escavacadas, o adobe foi espalhado era estendal, ao sol. Correram-se muros de taipa, abriram-se caminhos fáceis, bem alhanados, estenderam-se pontes sobre os ribeirões, roçou-se o mato e, pouco a pouco, foi surgindo o povoado que hoje alegra o lindo vale enfeitando a vertente da montanha, as fraldas das colmas, coroando os outeirinhos, dando ao antigo deserto, desfavorecido o tristonho, o aspecto gracioso de uma cidadezinha acolhedora, de paz e de saúde, onde tudo é puro, desde o ar que circula, fino e leve, cheirando a silvas, até à água que se despenha de alto, por entre as ervas viçosas, branca e gelada.

Se a maioria das construções é rústica — casas acaçapadas, chatas na planície ou trepando desgraciosamente pelos cerros pedregosos, por entre a verdura dos pomares ou no centro de jardins cuidados erguem-se airosos edifícios modernos, uns ao gosto suíço, com os seus telhados agudos cobertos de escamas de ardósia, com varandas entrelaçadas de ipomeias. Ao fundo, num liso planalto, de um verde velutino, avultam dois grandes prédios que, nas horas pálidas e sugestivas da tarde, quando começam a estender-se as sombras, isolados na distância vaporosa do campo, lembram castelos solitários com os seus torreões ameiados, guardando o burgo.

Era em março. A estação começara alegre. A terra, ainda encharcada dos abundantes aguaceiros que, sem estiada, durante os últimos dias nublados da semana anterior, haviam alagado os campos e jorrado, em grosso enxurro barrento, pelas vertentes dos montes cavando profundos sulcos, fundamente vincada nos lameiros, mole, espapada, cedia ao andar. Pela relva a água espirrava sob os pés como se se fosse pisando esponjosa plamira. Não raro luziam charcos.

Nos caminhos recalcados espelhavam poças e o ribeirão das Caldas, soberbo e escuro, carreando detritos, aves mortas, gravetos, rolava rumoroso.

Na baixada que se inclina para o ribeirão da Serra branqueavam, como borlas de neve, os pendões floridos do alça-peixe e, por toda a vasta e rasa extensão da planície, bailando à aragem fria, numa traquinice de borboletas, sacudiam-se as flores mimosas da erva de S. João.

Andorinhas, em voo rasteiro, pareciam aflorar a relva — vinham da esfuziada, trissando, volviam alígeras; alçavam o voo, baixavam de novo, quase raspando a terra com o peito branco.

Cavaleiros, montados à maneira derreada dos caipiras, atravessavam os caminhos ao trote lerdo dos animais ossudos. Por vezes uma tropa rompia — o guia à frente, abrindo a marcha e logo a recova; em fila sacolejando a carga e, na coda, silenciosos tropeiros, escarranchados em rocins, o olhar perdido, banzando, com o cabo do relho fincado na coxa.

Sucediam-se os carros de bois tirados vagarosamente por seis e oito juntas, chiando: uns vazios, com pequenitos de pó agarrados aos fueiros, outros carregados, rangendo, guinchando estridulamente. Cavalos soltos pastavam e, cruzando o ar fino e picante da radiosa e serena manhã, urubus circulavam atravessando o campo, pousavam nos telhados e, de asas abertas, imóveis, ficavam gozando o sol.

A vila parecia despertar de um sono de inverno. Um ar de festa dominical espalhava-se e sentia-se em tudo. As colinas áridas tinham uma cor mais viçosa nos capins esturricados, as pedras adustas do cerro das cruzes, encimado pela capelinha que uma cerca de ripas protegia, lampejavam e, fronteira, a montanha, aqui, ali copada em bosques, como restos de um velo antigo, tosado, em parte, pelos homens, sangrando ao flanco a água de prata que se despenhava do alcantil, alta, monstruosa, parecia um molosso desconforme, deitado, com o focinho entre as patas, a olhar na direção do ocidente, guardando atento, imóvel, silencioso, a vila dos milagres.

Grupos de banhistas animavam o imenso largo, raso e lodoso, cortado de vales, cavado em caldeirões traiçoeiros, que o Dr. Lino, médico das águas, pensava em alindar com o auxílio patriótico do governo de Minas, transformando-o em parque, à inglesa, com extensas e aparadas relvas, árvores de sombra, pontes rústicas lançadas sobre os ribeirões, Mosques e, ao centro, o Casino: um palácio de arquitetura moderna, com salões de concerto, de baile, de jogo, restaurante, biblioteca e um recinto severo, com mapas e ceroplastia, para conferências científicas.

Nas suas correspondências para os jornais de S. Paulo, sempre discorria, com argumentos fortes, sobre a necessidade do embelezamento da vila, cujas águas reputava superiores às das mais celebradas estações termais da Europa.

Quando os banhistas que, de manhã, gozavam o sol à porta do hotel da Empresa, o viam vir pelo largo, encapotado, cabisbaixo, no seu passinho miúdo e sereno, aludindo ao seu perfil, que lembrava o do grande imperador, diziam, com malícia: “Aí vem Napoleão estudando o seu campo de batalha”.

Às sete horas já ele estava no consultório a examinar doentes, desnudando braços flácidos, magras espáduas, nádegas, sempre preconizando o tratamento pelas injeções hipodérmicas, único eficaz na sífilis.

— Olhe, meu amigo, dizia, apertando os olhinhos maliciosos, com a seringa entre os dedos — o batismo devia ser uma boa injeção de mercúrio. Para a mancha original sempre seria de mais efeito do que a água das pias. Deixe lá falar.

E, estendendo o braço, mostrava os armários atochados de livros, citava autores, capítulos célebres e emitia conceitos ocultistas sobre o Homem e a sua mísera condição.

— Nós estamos no planeta para o sofrimento, e só — os gozos são raros, não contam.

Falava de cabeça baixa, sorrindo misteriosamente, e lá ia desinfectar a agulha, voltava à sala a chamar outro cliente, e desaparecia no gabinete. Um gemido surdo acusava a agulhada, mas o doutor animava, heroico e consolador:

— Que é isto comparado às grandes dores que o senhor tem sofrido? Pronto. Vá. Está melhor.

E reaparecia, de mangas arregaçadas. Acenava a outro, sempre falando, explicando, dissertando. Era quase um prazer àquela hora de consulta. Às vezes detinha-se, contava uma anedota, um caso clínico, rindo, e todos os enfermos riam com ele, tristemente.

Em certos dias aparecia mais cedo, trancava-se: era para os casos discretos — segredo profissional, o sacerdócio, afirmava arregalando os olhos. Finda a consulta, saía à porta, a espiar, para dar escapula ao cliente quando não houvesse curiosos no passadiço, nem soassem passos nos corredores. E vultos esgueiravam-se ligeiramente, em jupons, em saias de seda, com mantilhas espessas, sumindo-se nos quartos.

O Dr. Lino era a crônica de Poços — conhecia a história da terra e dos homens. A terra: um encanto! Primeiro clima do mundo, águas incomparáveis. Os homens... Puuh! Arrasava-os: politiqueiros da pior espécie, sem a mais breve noção dos direitos humanos e passíveis até ao servilismo.

— Carneiros, meu amigo; carneiros. Depois, emperrados na rotina: gostando do lodo em que vivem atolados, opõem-se a todo o progresso. Quando aqui se falou em esgotos houve um levante geral. Foi necessário requisitar força, e veio um sargento com oito homens garantir o trabalho. E frenético: no dia da inauguração da luz elétrica, meu amigo, houve quem se lembrasse de fazer sair uma procissão de desagravo. Política e fanatismo. A igreja é aquilo que vê: um antro. Nem há sentimento religioso — os desgraçados não vão ali por Deus, vão pelo padre, um machacaz espanhol, expulso das Filipinas, espécie de cura Santa Cruz, que vai para o altar com uma garrucha à cinta e prega aos berros, mostrando os pulsos guedelhudos e esmurrando o púlpito. Tudo perdido, meu amigo. O que há por aí ó borra de Humanidade.

Finda a consulta, suspirando sobre a ignomínia dos homens e a falta de tino dos governos, saía a correr a clientela por aqueles vales fora, de casa em casa, falando a todos os caipiras, festejando todas as crianças, detendo-se em palestra à porta das lojas, risonho ou resmungando contra a imundície e o relaxamento.

Nessa manhã, fechando o escritório, o Dr. Lino, de pé, à porta do hotel, lançando um largo olhar pelo campo, todo em sol, não pode calar uma exclamação: Que beleza! E, murmurando contra os governos, que esqueciam aquela maravilha, seguiu, com o guarda-sol ao ombro, em direção à igreja, cujo sino bimbalhava festivamente.

Bandos de senhoras saíam dos hotéis, espalhavam-se em direções diversas, cruzando-se com turmas alegres de rapazes, ranchos gárrulos de crianças. Casais vagarosos preferiam os caminhos desertos, e lá iam, muito juntos, sorrindo, discreteando, felizes na doçura acariciante daquele ar, na alegria azul daquela manhã saudável. Solitários desviavam-se para os trilhos mais ermos, evitando o bulício, os encontros importunos. Alguns, com as cabeças embrulhadas em lãs, as mãos enluvadas, encapotados, e, por entre as cores alegres dos vestidos que as brisas enfunavam e das sombrinhas claras, abertas como grandes flores, apareciam os andrajos dos mendigos, que esmolavam choramingando.

Os passeios eram sempre os mesmos. No tempo seco inventavam-se pic-nics e eram festivas abaladas para a Cascata das Antas: as senhoras em carros enfeitados de folhagens, os rapazes em matungos frouxos; eram ascensões à montanha, almoços na Cascatinha. No tempo das perdizes partiam caçadores a caminho da cidade de Caldas, com farnéis e cães. Mas os giros comuns não iam além do perímetro da vila.

Os que iam ao mercado, a pretexto de compras, chegando à imensa pocilga, desde o alpendre arrependiam-se, vendo os tassalhos de carne, as fressuras das rezes, as grandes mantas de toucinho, os jacas de queijos, as capoeiras de aves, os tabuleiros de doces, junto aos quais velhas italianas a caipira das ganiam apregoando rapaduras e bolos.

Outros subiam ao Cerro das Cruzes, como em penitência, por sobre as pedras soltas, que rolavam debaixo dos pés, a contar as muletas deixadas pelos que se haviam restabelecido naquelas águas. Às vezes, junto à biquinha que jorra no campo, reuniam-se curiosos. Os mais ousados bebiam, mas, arrevessando, provocavam a gargalhada dos companheiros, e a água salobra lá ficava com a sua virtude, escorrendo para o ribeirão violento. E, até à hora do almoço, nos dias luminosos, era a mesma alegria ao ar livre, a mesma festa ao sol.

Ao meio-dia começavam a funcionar as roletas. Os hotéis aquietavam-se, como em sono de sesta: as senhoras recolhiam-se aos quartos ou reuniam-se no salão, cavaqueando preguiçosamente; algumas tocavam, cantavam romances tristes ou corriam monótonas escalas.

Os homens juntavam-se à volta do pano verde da roleta ou ao bilhar, ou mesmo no hotel, na sala chamada dos jornais. Jogavam a manilha, o pôquer, cercados pelos paralíticos, que se faziam conduzir em cadeirinhas rolantes para aquela distração, e ali cochilavam, às moscas, acordando, sobressaltados, ao estrugir de um protesto contra a sorte teimosa, ou à gargalhada estrepitosa que celebrava uma anedota picante. E o dia passava aborrecido, vazio, por entre cavos bocejos.

À tarde, era o passeio à estação, à espera do trem, a ver quem chegava; depois o jantar no mesmo salão, a correspondência distribuída por um empregado. As cartas eram abertas com ânsia, os jornais farfalhavam e começavam os comentários em altas vozes, de mesa para mesa, sobre os telegramas, as notícias, certos artigos sensacionais, às vezes mortes.

Depois era o espetáculo maravilhoso do crepúsculo, a riqueza do céu admirável, broslado de ouro, com grandes vieses de sangue — as últimas radiações flabelares do sol, os redentes da serra acentuando-se, cravando-se em negro no fundo pálido do horizonte; as silhuetas das árvores, como pintadas no violete acetinado do céu. E as primeiras estreitas luziam, cantavam os primeiros grilos e as últimas cigarras.

Os grupos que atravessavam o campo, devagar, em contemplativo silêncio, eram negros como sombras errantes. O sino da igreja dobrava espaçadamente a Trindades, e instantânea, a luz elétrica brilhava em todos os pontos e uma claridade, alva e meiga, estendia-se na terra, calada e triste.

Começavam, então, os divertimentos nos salões dos hotéis: danças, jogos de prendas, provérbios e, não raro, poesias recitadas com muita ênfase, cançonetas, cópias de revistas. Lembravam-se festas: bailes à fantasia, representação de comédias, um grande cotillón, e todos íntimos, como se se conhecessem de muito, trocavam confidências; e havia risinhos pelos cantos, parabéns sussurrados, ditos maliciosos “que aquelas águas eram de grande virtude para as moças solteiras”, enquanto lá fora o luar nevava campos e montes e os ribeirões roncavam no silêncio.

Às vezes o doutor aparecia, à noite, para um dedo de prosa e o assunto, ou era escolhido na ciência e no ocultismo, ou na inércia dos nossos homens, e os nomes de Charcot, Hallopeau, Babinsky, Burnouf, Fabre d'Olivet, Éliphas Lévi baralhavam-se com os dos cabalistas locais, os espíritos ramerrameiros que procuravam acalcanhar cada vez mais aquela joia de Deus, e, às dez horas, quando o caridoso clínico se despedia ficavam duas verdades na assistência, fundamente cravadas nos espíritos, como alicerces na terra sobre a qual se edifica — que os antigos iniciados chegaram ao conhecimento de todos os mistérios superiores e que o Severino Lopes era uma zebra acabada. E dormia-se.

À hora do almoço, no vasto salão do hotel da Empresa, o assunto da palestra era o mesmo em todas as mesas: a chegada de um jovem casal, na véspera.

Um luxo de príncipes: dois criados brancos — um rapaz e uma moça — e seis malas bojudas, encapadas, além de maletas e bolsas. Muita empáfia, nem se dignaram olhar as pessoas que enchiam a estação; muito fechados no orgulho — ela, com um costume tailleur, luvas escuras; ele, de flanela branca, chapéu de palha, bolsa a tiracolo.

Um dos empresários do hotel, o Fonseca, fora à estação recebê-los, muito zumbrido, risonho, oferecendo serviços, pedindo desculpa dos aposentos: Muita gente... Um atropelo.

Ele murmurava com indiferença, relanceando os olhos pela paisagem; ela falava à criada, ao criado, baixinho, dando ordens.

Não apareceram ao jantar, não apareceram à noite e na sala, com a decepção, acendeu-se uma revolta: as senhoras murmurando contra os pedantes, os homens cochichando maliciosamente.

Um hóspede do Globo, que os conhecia, foi logo cercado, assaltaram-no com perguntas e, ao chá, toda a gente sabia que eram casados de fresco, dois meses, talvez... e riquíssimos!

Ele vivera sempre na Europa, dissipando a mãos largas com mulheres e ao jogo. Ela, filha única de um alemão, chefe de uma grande casa importadora de ferragens e máquinas, muito prendada, pianista de mão cheia e formosíssima — uma das belezas do Rio.

Concordavam — que sim, era bonita, elegante, mas muito antipática: um arzinho implicante. As luvas, sobretudo, tornaram-se a nota principal do escândalo, e os criados e aquele mundo de malas... Nem que aquilo fosse Petrópolis.

Era viva a curiosidade na sala — ao mais leve rumor de passos suspendiam-se os talheres e toda a gente cravava os olhos na porta do corredor, à espera dos “pombinhos”. Às decepções sucediam-se risos, já se troçava, dizia-se alto, roncantemente: “Ainda não!” Outros explicavam: “Estão calçando as luvas”.

A mesa que lhes fora destinada, junto a uma janela, alvejava e tinha um vaso de flores frescas. As senhoras indignavam-se com a demora, tomando-a como desconsideração, falta de cortesia. “Se tinham muito dinheiro, comessem-no, ninguém o pedia. Por que não alugaram uma casa! Era o que não faltava... Ali eram todos iguais, pagavam o mesmo. Desaforo!” Os homens trocavam sinais, piscavam brejeiramente o olho, riam. Mas o criado apareceu, rígido, de preto, cerimonioso, com o cabelo cor de mel, muito escorrido e luzente, e sério, sem levantar os olhos, pôs-se a alisar a toalha da mesa, ainda esfregou com o guardanapo os talheres, os copos e ficou de pé, imperturbável, sisudo como uma sentinela.

De repente, na mesa fronteira ao corredor, ocupada por uma família média, uma moça muito tufada em cassas frouxas, com fitas que esvoaçavam o escorriam aos lados da cadeira, agitou-se, de olhos arregalados, sacudindo no ar as mãos papudas, como se as houvesse queimado. Toda a sala que dou em atitude de expectativa, e lentamente, alta e esbelta, muito branca, com os louros cabelos enrolados em torre, vestida simplesmente de fustão, a senhora apareceu, logo em seguida o marido, de flanela riscada, gravata solta, de seda clara, cinta de fustão sobre a camisa de baptiste. Inclinaram-se e toda a sala transfigurou-se com aquela deferência; e logo apareceram sorrisos, desanuviaram-se as carrancas e a paz restabeleceu-se.

Os dois sentaram-se frente a frente, muito direitos, conversando baixinho, enquanto o criado ia e vinha a fazer o serviço da mesa. Ela examinou as rosas com interesse, inclinou-se para lhes sentir o aroma, depois, alteando o busto, lançou o olhar ao jardim abandonado, onde uma seriema corria, depois relanceou a sala com sobranceria. Ele, de olhos baixos, pensativo, retorcia o bigode lustroso.

Eram ambos formosos e contrastavam — ela loura, de uma pele marmórea, olhos grandes, de longos cílios, azuis e cheios de uma luz de alegria; ele moreno, os cabelos negros, luzidios, os olhos imensos, mas tristes, de uma tristeza de luto. Começaram a servir-se em silêncio e, se falavam, era como em segredo, os mesmos sorrisos pareciam velados.

Pouco a pouco, a sala foi-se esvaziando. Subiam famílias, a um de fundo, homens fumando, pautando os dentes até que os dois ficaram sós. Ela, então, voltou-se toda para olhar o salão, fez um momo e sorriu. Era triste, lúgubre, apesar do sol que rebrilhava nos vidros e alastrava o soalho. Ao fundo, entre os imensos armários envidraçados, em que se perfilavam garrafas, o balcão. O criado, sempre teso, só descruzava os braços para retirar os pratos. Ao fim do almoço ele acendeu um charuto e propôs uma volta. Ela encolheu os ombros:

— Vê o quê?

— A vila, o que houver.

— Com este sol?

— É que isto aqui dentro é melancólico... Depois, quem sabe?! Pode ser que encontremos alguma curiosidade. Há sempre uma curiosidade nestas vilotas.

— Pois vamos.

Levantaram-se e foram vagarosamente pelo corredor deserto, buscar os chapéus ao quarto.

À porta de saída, no vestíbulo, alguns homens digeriam pacatamente, sentados em velhas cadeiras poídas. O largo parecia arder, ao sol. Ele deteve-se hesitante:

— Então, Elsa!

Fitaram-se um momento e foi ela quem desceu primeiro.

— Já agora...

Saíram. O nome ouvido não ficou no grupo, passou logo às senhoras, que houve quem o levasse. Umas acharam-no bonito, a gordalhufa das fitas chirriou, rinchavelhou com as bochechas balofas a tremerem: “Que aquilo não era nome de gente...” e repetia-o, bufava-o, soprava-o por entre os dentes podres, rindo desbragadamente, a reluzir de suor. E o moço! Indagaram. O moço era Eduardo, isso já se sabia desde a véspera, pelo telegrama que ele passara de S. Paulo pedindo cômodos. Correram às janelas para vê-los — lá iam eles claros, através da luz que ardia, muito juntos, seguindo ao acaso.

— Andam em viagem de núpcias, disseram. E alguém logo insinuou com perversidade:

— Homem, isto de vir a Caldas um mês depois do casamento... Uhm!

Uma senhora magra e sardenta, investiu:

— Isso não! Nem todos que vêm a Caldas sofrem de moléstias do sangue. Eu, que aqui estou, posso dizer, com orgulho, que nunca tive uma espinha, com a graça de Deus.

Um magricela, promotor num vão de serras, em Minas, pilheriou num grupo onde se empertigava o “filósofo”, assim alcunhado por um “cometa”, sujeito abaçanado, envernizado, de pince-nez, testa imensa, bigodes retorcidos, citando Augusto Comte a propósito de tudo, das estrelas do céu e do mau bife, sempre axiomático, despejando regras com uma pronúncia muito explicada, grave, austero, mesmo quando se dignava sorrir. Aprumando a cabeça sentenciou superiormente:

— É a profilaxia do tálamo.

Ninguém entendeu, todos riram; o promotor dobrou-se e a gordalhufa, que andava com ele aos boléus, rebentou a rir, com estrondo. E os dois lá iam longe, caminho do ribeirão da Serra, animando a adormecida paisagem. Mais um instante e desapareceram.

Em todo o resto do dia, às mesas de jogo, nos salões dos hotéis, pelas lojas, não houve outro assunto senão o “casal”, uns que defendiam, outros que atacavam. Houve mesmo quem se referisse com indignação aos criados — uns patifes!

Mas à tarde, depois do jantar, duas mocinhas mais ousadas, de braço e sorrindo, foram convidar a senhora para brincar, à noite. Ela acedeu, delicada, e as emissárias estenderam o convite a Eduardo: “O senhor também”. Ele agradeceu gentilmente e, à noite, lá foram.

Não faltou ninguém. As mesas de jogo ficaram desertas, mesmo do Globo acudiu gente curiosa de ver a “linda moça” porque, cessada a hostilidade, não houve quem não proclamasse a sua beleza e louvasse a sua simplicidade. O próprio “filósofo”, com um volume de Comte debaixo do braço, lá apareceu prestigiando o “Mia, gato” e a “Barquinha” com a sua presença e comentando as sortes com palavras de bom quilate, às vezes em latim, para a gorda, que ficava maravilhada. E o Dr. Altino, o promotor, mestre-sala obrigado, saiu a propor os jogos.

Formou-se a roda e começou a lengalenga. Eduardo não se quis sentar, respondia de pé, sempre atento à mulher, em torno da qual havia um sussurro constante de admiração. Só a gorda, sempre a espoear em riso, “não a achava essas coisas” o irrequieta, rebolindo o corpo anafado, ia e vinha, aos cochiches, deixando um cheiro de erva seca por onde passava, com um tinir de pulseiras e um garrido de asma.

Foi ainda o Dr. Altino, sempre inventivo, quem lembrou uma quadrilha, antes do chá e, do meio da sala, espichando-se nas pontas dos pés, com as mangas muito largas a escorrerem-lhe pelo braço, bradou: “Tirem pares!” e, antes que outro se adiantasse, curvou-se diante de Elsa oferecendo-lhe o braço seco.

A gorda amuou e, às rabanadas, abalou, a tresandar, e uma senhora, muito instada, foi para o piano, em triunfo, e, ao sinal da quadrilha, estrugiu uma salva de palmas.

Eduardo, encostado ao umbral da porta, fumando, acompanhava a evolução dos pares e estava assim distraindo quando o empresário do hotel o chamou à parte para apresentar-lhe o Dr. Lino. O moço adiantou-se e estendeu a mão ao médico, que quase desaparecia num imenso e pesado capote, desculpando-se de só chegar àquela hora por ter ido a um chamado, na vizinha cidade de Caldas — viagem infame, caminhos intransitáveis, nem um rancho. Andurriais! E dizer-se que isto podia ser melhor que Petrópolis...

Eduardo afastou-se atraindo o médico para o corredor; convidou-o a entrar no seu quarto. A hora não era muito própria para consulta, mas tivesse paciência — estava ansioso por ouvir a sua opinião. O doutor adiantou-se solícito:

— Estou inteiramente às suas ordens. Além de ser do meu dever, o senhor vem recomendado por um dos homens que mais aprecio e respeito. E sacudiu a cabeça: Um homem raro! Homem para salvar o país.

Foram caminhando.

Entrando no quarto, Eduardo fez sair a criada e trancou-se com o médico e, por todo o hotel, retumbava a voz esganiçada do bacharel, berrando marcas complicadas, ao som fanho de atropeladas notas, que saltitavam assanhadas sob os dedos magros da pianista.

À hora do chá, não vendo o marido, Elsa perguntou por ele, sobressaltada, e ainda arfando de cansaço. “Saíra com o doutor”, disseram, e as senhoras envolveram-na, foram-na levando para a sala de jantar. Passando pelo quarto não se conteve

— Bateu, chamou o marido. Ele entreabriu a porta, tranquilizou-a e trancou-se de novo.

O criado lá estava hirto, diante da mesa, à espera. Elsa sentou-se só e triste, com o olhar perdido, tomando o chá maquinalmente, aos pequeninos goles.

De repente voltou-se, deu uma ordem, e o criado partiu apressado. Quando reapareceu, curvou-se, sussurrou um recado e ficou de olhos na porta do corredor, como à espera de alguém. Efetivamente, Eduardo entrou na sala com o médico e, apresentando-o, à mulher, ofereceu-lhe a cadeira que o criado aproximara, logo inclinando-se para receber uma ordem.

O doutor, sabendo que haviam percorrido uma boa parte da vila, pediu a opinião de Elsa. Ele sorriu, deu de ombros, receando comprometer-se.

— Um horror! Minha senhora. Pior que Nauplusa. Eu sou o primeiro a dizer. Pior que Nauplusa! Isto seria um paraíso, disse, com as duas mãos abertas, adejando no ar, se o governo me atendesse. Vivo a gastar palavras. Não temos homens. Isto é um país sem almas. O criado serviu cerveja e o médico, entrando a fundo no seu assunto, referiu-se às águas, ao clima, às florestas que cercavam aquela estância admirável, a tudo que a natureza pródiga oferecia, e atacou o povo: Gente sórdida, cochinos, verdadeiros cochinos. Há aqui, em terra de águas, muita gente que nunca lavou o rosto, garanto. Conheço-os a todos. Temos uns tantos banhos, grátis, a que nos obrigamos pelo contrato de arrendamento; pois, minha senhora, nunca houve quem os pedisse. Se fossem de lodo, no charco, seriam disputados à faca, como eleições, mas, como são em banheiras, ninguém os quer.

Expôs o seu plano de embelezamento, e, falando, enchia o copo de cerveja, levantando a garrafa para fazer espuma, sorvia-a com delícia, e, de novo, referia episódios da vida calaceira daquela gente, sempre chafurdada em politiquice — os homens amorrinhando ao sol, as mulheres pela sacristia, babando maledicências venenosas, intrigando. Povo salaz! Há gente boa, há, mas... É uma minoria, e fraca, que sucumbe sob a avalanche lorpa.

Eram onze horas. O hotel ficara em silêncio. Um empregado cochilava ao balcão. O doutor levantou-se apressado, a pedir desculpa da imprudência — não dera pelo tempo. E emprazou Eduardo, para às sete da manhã, no consultório.

Seguiram juntos pelo corredor até à porta do quarto, onde a criada esperava pacientemente. O doutor despediu-se; os dois entraram. Elsa, depois de respirar, aliviada, sorriu ao marido que a contemplava.

— Não imaginas como me diverti na sala...

Riram. Ela passou ao quarto em que instalara o toilette, onde a criada ia abrindo malas, tirando roupas claras, que estendia no respaldar das cadeiras, Eduardo abriu a janela e debruçou-se.

A noite ia clara e fria, com uma lua enorme e reluzente no meio do céu. As lâmpadas elétricas irradiavam na escuridão erma das ruas e dos campos e a voz das águas, única no silêncio, rolava, profunda, como o ressonar da paisagem.

Fumando, com o olhar mergulhado na melancolia daquele céu, relembrava, uma a uma, as palavras do médico, que não pudera dissimular o espanto ao ouvi-lo. Animara-o por fim... Mas haveria sinceridade nas suas afirmativas! Um, em Petrópolis, aconselhara-lhe o mar, o mar vivo de Copacabana, mar livre da costa, arrojando-se alteroso, estrondosamente, no areai. Outro, do Rio, impusera um regime de atividade no campo: exercícios, passeios a cavalo, tônicos naturais — bom ar, bom leite, boa fruta, carne sã, nada de livros, o cérebro em absoluto repouso, nenhuma preocupação. Ainda outro sugerira a eletricidade e aquele, apoiado em opiniões de peso, citando grandes nomes, comprometia-se a curá-lo só com a hidroterapia e exercícios normais, gradativos. Só água e passeios, água a jorros, duchas que despertassem a energia nervosa, e garantia o triunfo, com a certeza de um Deus que dispusesse da vida e realizasse milagres só com o seu querer onipotente.

Mas a que devia ele atribuir aquele horrendo mal? Chegava a suspeitar de sortilégios, filtros poderosos. Amantes... tivera tantas! Um mês antes do casamento embarcara a última para a Europa, bem dotada e com uma palavra enganadora de esperança. E as outras? Moléstia... Mas que moléstia? Sentia-se forte, bem disposto. Se passava as noites em claro era pela agonia daquela vida de ânsia, pelo horror daquela situação insuportável que o humilhava e torturava a ambos.

Uma voz cantava ao longe e perdia-se aos poucos, distanciando-se, como se a levasse o vento, e o luar, à maneira de uma flor noturna que se vai abrindo e trescalando, acendia-se mais, clareando os outeiros e fazendo realçar muros alvadios no fundo escuro e silencioso dos campos.

Era tarde: um relógio bateu as horas vagaroso.

Elsa, pronta, mandou a criada avisá-lo. Ele fechou a janela.

A criada saiu em surdos passos e um aroma suave espalhou-se no quarto, onde o leito alvejava, e Elsa, com a camisola branca levemente franzida à cinta por uma fita, as mangas de finas rendas, largas, fugindo, desnudando os roliços braços níveos quando ela os levantava, a gola com um breve decote em frocos de rendas, o cabelo alto, o pescoço branco e liso como um fuste de coluna, entrou vagarosamente, e, estendendo-lhe as mãos ambas, fitou-o com os seus grandes olhos azuis, meigos, lânguidos, amortecidos de amor.

Ele sentia-lhe as mãos que esfriavam, frerniam como arrepiadas, sentia-lhe o hálito e o aroma que ela toda esparzia, via-lhe o colo arfante que levantava as rendas leves.

Ela murmurou, mimosa e lânguida:

— Estou com sono.

Ele, com os dedos crispados, torturava-a. Ela inclinou a cabeça sem uma queixa, submissa, vencida, apertando o lábio com os dentinhos, e ele, alucinado, beijou-a, beijou-a... Ela entregou-se-lhe, pesando sobre o seu ombro numa abatida inércia, a sorrir.

Delicadamente, afastando-a, passou ao quarto contíguo. Entrou afogueado, tonto e, diante do espelho, lívido, com os olhos chamejantes, as têmporas latejando, ficou um momento parado, inerte, sem tomar fôlego.

A cama estralejou, uma sandália caiu, depois outra; houve um roçagar de cobertas puxadas, um fofo abater de corpo que se deita maciamente, depois um suspiro abafado. Ele ouvia, atento, de olhos muito abertos, os braços cruzados.

De repente, sem conter-se, com as lágrimas correndo, deixou-se cair em uma das malas, abafando os soluços a mãos ambas.

II

Eduardo, que passara toda a noite em claro, rondando desesperadamente o sono tranquilo de Elsa que, na morna penumbra do quarto, onde mal chegava um livor trêmulo da lamparina, que velava no aposento contíguo, toda branca e imóvel, alvejava como um pouco de luar na sombra, saiu cedo, com impaciência de ver o médico, de ouvi-lo, de experimentar o seu tratamento.

Uma claridade fusca de manhã de inverno entristecia os longos corredores desertos, por onde um vento frio enfiava. No salão de jantar iam e vinham criados em mangas de camisa.

Abriu a grande porta envidraçada e saiu para o vestíbulo, a olhar o campo ainda em brumas, sem sol. Um velho, roto e descalço, estendeu-lhe a mão magra, murmurando um pedido. “Logo. Não tinha”.

Aquela miséria irritou-o como um presságio funesto, e o velho, humilde, cobrindo a cabeça, de um amarelo sujo, com o chapéu esburacado, cujas abas moles caíam desbeiçadas, deixou-se ficar encostado na parede, encolhido, raspando a pedra do limiar com a ponta do cajado.

Eduardo ali esteve em verdadeiro abandono, sem sentir o tempo, sem dar pelo desanuviamento do céu, toldado de nuvens à sua chegada e então todo azul, liso e luminoso, com um brilho fino de esmalte. A porta abria-se rinchando à passagem de homens que vinham do banho e saíam para o ar livre contentes, galrando e rindo, num bem-estar de saúde; amas com pequenitos alegres e barulhentos. E o velho a todos estendia a mão, com a mesma lamúria, com a mesma humildade, sem levantar os olhos, beijando devotamente as moedas que recebia, com um suspiro quando as guardava no bolso fundo do casacão remendado.

O médico tardava. Eram sete e um quarto e Eduardo, impaciente, nervoso, bateu com o pé e levantou-se de mãos nos bolsos, mascando irritadamente o charuto. Descia o primeiro degrau da escada, disposto a dar uma volta pelo campo, quando Alfredo, muito açodado, abriu, de chofre, a porta, correndo a preveni-lo: “Que o doutor estava à sua espera...”

Eduardo voltou-se vivamente, com um afluxo de sangue para o coração e subiu, foi-se, corredor a fora, preocupado.

O médico, sempre encapotado, passeava no passadiço que levava aos banheiros, esfregando as mãos. Ao vê-lo, sorriu. Eduardo desculpou-se:

“Estava sentado à porta. Não o vira entrar”.

— Passei pelos fundos, disse o Dr. Lino, e, diante da porta do consultório, afastou-se, cedendo a passagem. A chave rangeu.

Elsa, abrindo os olhos, relanceou o quarto e, não vendo o marido, chamou-o. A lamparina vasquejava crepitando nos últimos lampejos, e, pelas frinchas das janelas, entravam faixas de sol polvilhadas de ouro.

Soergueu o busto, passou os braços por baixo da cabeça e estirou-se de novo no côncavo que o seu corpo cavara no leito tépido, e, de olhos parados, muito abertos, ficou a pensar.

O sangue, aquecido e forte, refervia-lhe nas veias, a sua carne tinha crispações como a água de um lago que as auras frisam, um torpor prostrava-a, embriagava-a deliciosamente. Sentia-se, por vezes, como lambida por uma chama, depois era uma sensação macia de veludo correndo-lhe a flor da pele, lenta, mole, sensual.

Cerrou as pálpebras, com um arfar mais forte, que fazia ondular a coberta, relembrando os seus sonhos.

Ele...! — Era aquele o homem que o seu coração reclamara, sentindo-o próprio para fazê-la feliz, amando-a com aquela ternura que ela imaginava existir no amor e, todavia, andavam como peregrinos, como malditos, perseguidos por um fado cruel, de lugarejo em lugarejo, fugindo à cidade, onde haviam, com tanto esmero, composto o ninho de amor que lá estava fechado, esquecido, com um velho criado a guardá-lo.

Viviam tão longe um do outro como no tempo em que, ainda noiva, compunha a ventura com as mudas promessas que dele colhia, as mudas promessas que as mãos juntas permutam e que os olhos lânguidos confirmam.

Desde a noite do casamento trazia no coração aquele receio e na carne aquela inexplicável adustão. Buscava-o e ele fugia-lhe. Seria verdade o que ele lhe dissera, com lágrimas, ou haveria entre os dois um voto sinistro, algum juramento terrível?

Que sabia ela do mundo? Vivera sempre na mais recatada inocência entre os pais, duas almas simples, e partira para a sonhada felicidade arrebatada nos braços daquele que a desposara, deixando-se levar sem mesmo volver os olhos para o lar que abandonava. Tudo era mistério para a sua alma, todas as suas interrogações aflitas ficavam sem resposta. O que ele lhe dissera, num tom de voz em que havia desespero e medo, podia ser verdade, mas... Uma noite encontrara-o chorando, na sombra de uma janela, e, rompendo alucinadamente de agonia, com o rosto molhado em lágrimas, a estremecer com os soluços, beijara-a muito para, instantes depois, afastar-se triste, arrancando os cabelos, rangendo os dentes.

Reabriu os olhos munidos e, mais vivo, o calor ardeu-lhe no corpo queimando-lhe o seio, incendiando-lhe as faces. Bateram de leve à porta — era Eugênia. Elsa perguntou pelo marido.

— Alfredo disse-me que ele está com o doutor. A senhora não vai ao banho?

— Sim; vou.

— Quer antes uma xícara de café?

— Pois sim.

Eugênia entreabriu a janela do toilette e houve um clarão. Elsa espreguiçou-se, ergueu-se lesta e toda a sua farta cabeleira, desenrolando-se, despenhou-se pesadamente.

No toilette, enquanto lavava o rosto e escovava os dentes, ouvia Eugênia que, a abrir malas, ia fazendo a descrição minuciosa do que vira no estabelecimento bamear: Os compridos e estreitos corredores onde ficavam os cubículos dos banheiros, os tipos curiosos que encontrara pelo passadiço, na sala de espera — gente de outros hotéis: homens macilentos, lívidos, alguns escondendo mazelas, com o pescoço muito atabafado, as mãos enfiadas nos bolsos dos capotes, calados, macambúzios. Mulheres com mantilhas pela cabeça, amarelas, enjoadas, tossindo.

Um entrevado, que fora em braços, sorrindo idiotamente, ficara encolhido num banco, entre um negro e uma velha, a olhar, com a boca aberta, o lábio pendido, escorrendo baba. Um padre que lia, fungando alto, resmungando de instante a instante, furioso, impaciente, a espichar os olhos para o corredor central. Uma balbúrdia, um ir e vir constante de doentes e todos servindo-se das mesmas banheiras. Eugênia concluiu com um momo de nojo:

— Eu é que não me meto nesses banhos. Deus me livre! Estou lá para apanhar alguma coisa.

Elsa sorriu e, curiosa, pôs-se a interrogá-la sobre pessoas do hotel: Se as vira, se lhes notara alguma coisa. E a criada lá ia estendendo as suas informações, fazendo comentários, aventurando suspeitas.

Pronta, mirou-se ao espelho e decidiu-se a sair. A criada tomou um casacão do agasalho e a toalha felpuda, e lá foram as duas pelo corredor. Os homens afastavam-se, cosiam-se com a parede, cumprimentando respeitosamente; senhoras passavam ligeiras, de cabeça baixa, muito forradas de abafos, receando as correntes de ar.

Na sala, o “filósofo”, repimpado na cadeira de balanço, com a imensa testa a reluzir, os bigodes muito esticados, agudos como espinhos, lia um grande livro. Sentindo passos femininos, voltou o olhar hipócrita, soergueu-se, muito grave, curvou-se, com o respeito que a escola impõe a todas as mulheres, depois refestelou-se, ainda retorceu as pontas dos bigodes e remergulhou os olhos no transcendente, com o espírito, mais faceto, a espairecer em carnes.

Quando Elsa chegou ao estabelecimento, o Dr. Altino, que conseguira um banheiro e conversava intimamente com o homem que o lavava a grandes vassouradas, fez questão de o ceder. Não tinha pressa. E, saracoteando, a rir, com o rosto contraindo para que não aparecessem os dentes podres, afastou-se triunfante, quando Elsa, vencida, agradeceu-lhe o obséquio. Rejubilou com aquele ato de cavalheirismo “medieval”, já deliciando-se com os parabéns que receberia quando o referisse na “roda”, com alguns acréscimos — um aperto de mão, um sorriso amável.

Eugênia, que antipatizava com ele, conservou-se sempre reservada, sisuda, muito direita, com o casacão e a toalha no braço, sem o olhar sequer e, quando entrou, acompanhando Elsa ao banheiro, explodiu:

— Que homenzinho ridículo! E como encara a gente, sempre a torcer aqueles fiapos da cara.

A água jorrava das torneiras e Elsa olhava-a distraidamente, tão límpida, suave como um óleo fino. Quando o criado apareceu, com o termômetro, para tomar a temperatura da água, ela perguntou pelo marido: — Se o vira?

— Sim, senhora: está nas duchas.

— Há muito tempo?

— Não, senhora. Não há dez minutos ainda.

Pronto o banho, Elsa despediu Eugênia, com ordem de ficar à porta, esperando-a. Despiu-se e, alva, no esplendor do seu corpo de linhas puras, refletiu-se na água, como uma ninfa, e deitou-se, deliciada, gozando a carícia tépida, esticando-se a todo o comprimento do banheiro de cimento escuro. A voluptuosa água amolecia-a e, inerte, os braços cruzados sobre os seios rijos, cerrou os olhos, e ali jazia, longe da vida, num sonho suave, quando bateram à porta.

— Quem é? Perguntou, sobressaltada.

— Eu! Disse Eduardo alegremente. Demoras muito?

— Não. Vou sair.

— É tarde. Se queres dar um passeio antes do almoço, avia-te.

— Vou já. É só o tempo de enxugar e vestir-me.

Saiu da água, contente como se houvesse recebido uma boa nova, com um sorriso estampado no rosto lindo. Enxugou-se às pressas, vestiu-se e, entreabrindo a porta, chamou a criada, ansiosa por saber o resultado da consulta: “Que dissera o médico?”, sentindo, de novo, o calor que lhe abrasava o corpo, a mesma sensação deliciosa de um veludo que lhe fosse roçando a espinha.

Vestida, mirou-se ligeiramente ao espelho, enfiou o casacão de gola alta e foi-se apressada, sem mesmo olhar, atender às pessoas que a saudavam.

A gorda, que grasnava num grupo, voltou o rosto e espirrou um risinho quando a viu passar com um farfalho de rendas. Outras senhoras ficaram a admirá-la, achando-a linda. Gabavam-lhe os olhos, os cabelos, a cor da pele fina, a graça do andar airoso.

Eduardo estava à porta do quarto, sorrindo. Dando com os olhos nele, sem preocupar-se com os homens que passeavam no corredor, partiu a correr, como uma criança, e atirou-se-lhe nos braços. Entraram. Ele levou-a, muito chegada ao peito, para o sofazinho, e sentaram-se.

— Estás com as mãos geladas, disse ela, achegando-se muito ao marido, como a querer transmitir-lhe o calor que sentia.

E ele, radiante:

— Tentei, meu amor. Mas creio que o médico disse a verdade: É a vida que volta.

— Que sentes? Perguntou ingenuamente.

Ele fitou nela um olhar cheio de desejo, ficou a contemplá-la languidamente e, enlaçando-lhe a cabeça com o braço, atraiu-lhe a boca e ficaram enlevados num beijo que os fazia estremecer e lhes tomava o hálito. Ela, sem fôlego, arrancou-se ansiada, respirando largamente, cansadamente.

— Ah! Elsa... Súbito, em decidida resolução, levantou-se afogueado: Queres vir? Está uma manhã lindíssima! Vamos por ali devagar.

— Vou arranjar-me. Olha como tenho os cabelos.

— Acho-te mais linda assim.

— Queres que eu saia por aí desgrenhada como uma louca? É um momento.

Chamou Eugênia.

Eduardo, à janela, olhava, cheio de esperança, para aqueles verdes campos, para aqueles cerros, para toda aquela terra, mãe daquelas águas benditas que o haviam de refazer para a vida e para o amor. Sentia-se outro. Alguma coisa revivera nele sob a violência daquelas rudes lambadas de água, a alegria repontava-lhe no coração, como a erva florida, que, ao cair das chuvas, rebenta em terreno longamente causticado pelo sol. E olhava, como a divisar os dias novos, de ventura, e, ouvindo a voz harmoniosa de Elsa, mais se alegrava, também por ela, pobrezinha! Que vivia torturada de amor, sopitando os estuos violentos da mocidade, calando, contendo a sua ânsia, resignada, passiva, para não aumentar-lhe a tortura.

— Vamos, Elsa. O sol começa a aquecer.

— Vamos.

Estava pronta e deslumbrante. Saíram.

Na sala, o “filósofo” dissertava sobre questões de linguística com um anafado negociante de couros e um fazendeiro italiano, que mancava, com uma úlcera no tornozelo, quando o Dr. Altino irrompeu, gabando o banho.

“Uma delícia! Divino! Deixara-se ficar metido na água, a gozar, mais de meia hora”. E concluiu; “Ah! Os romanos! Os romanos! Grande povo... As termas de Tito, hein! Já leste?” O “filósofo” acenou com jeito grave: Que sim, tinha lido tudo. Os dois outros conservavam-se boquiabertos.

O negociante foi para a janela escarrar a sua gosma; o da úlcera sentou-se, trincando o beiço, esticando a perna. Os outros remontaram sabiamente, mas o promotor, pesado de luxúria, veio logo abaixo, ao lodaçal torpe da devassidão, comunicou ao “filósofo” o incidente amável — acrescentando: “Que ela lhe estendera a mão — que mão!” — chupou, num sorvo, os cacos, com os olhos em alvo — e que sorrira. Depois, sempre lúbrico, mudando de tom, perguntou, com mistério: “E tu, já reparaste na criada?” O “filósofo” franziu a testa imensa em sulcos de indignação. “Pois olha — é bem bonita! Um bocado magnífico. Repara”. O outro encolheu os ombros, com desprezo. “É o que te digo. E eu, em matéria de mulheres, sou mestre. Tenho visto o que há de bom”. Mas voltou à Elsa, imaginando-a no banheiro, nua, sob a transparência da água. Hein!

Senhoras chegavam, e a gorda, dando com o promotor, ainda purpúreo de entusiasmo erótico, perguntou-lhe, com ironia, se dormira bem, se tivera sonhos agradáveis. Ele sorriu e ia sussurrar uma frase amável, quando ela o repeliu com um muxoxo, rabeando com as saias muito anchas e em pregas duras, de goma.

O “filósofo” voltou ao espiritual, afundando na cadeira com o grande volume.

À hora do almoço, já íntimos, os hóspedes não se preocuparam com o rígido Alfredo, e receberam o casal sorrindo.

À noite apareceu na sala — descoberta do Dr. Altino — um homem que deitava as cartas. Foi um sucesso. Fechado num círculo curioso, a baralhar com mistério, fazendo passes cabalísticos, dizia o futuro das senhoras, e todas, com os olhos abertos, cravados na mesa, esperavam as palavras do cartomante que combinava as figuras e, das relações das cartas, tirava conclusões oraculares, dizendo: “Muito ouro, um casamento feliz; uma viagem; moléstia curta”. Às vezes empacava, embaraçado, e o silêncio tornava-se maior, cheio de angústia — eram sombras, dificuldades, interpretação complicada.

A vítima empalidecia, mas impunha corajosamente:

— Que lesse, fosse franco. Sabia mesmo que havia de ser sempre infeliz.

Consolavam-na com palavras animadoras, e o homem, sem inspiração, suando em bagas, assegurava que não havia nada de mal, pelo contrário — lá a estava a boa carta, que conjurava todas as desgraças e, discorrendo, era como um ligeiro rio de ventura, que derivasse docemente, sem embaraços, por meandros suaves, deixando em todas as almas um pouco de felicidade. Elsa sorria, sem atrever-se a pedir o seu destino e foi a pianista, a boa e magra D. Ursulina, quem falou por ela.

— Veja a sorte de D. Elsa, Sr. Cruz.

O círculo apertou-se mais. O Cruz pigarreou, baralhando as cartas, com as duas centelhas nos óculos, lançou os machos na mesa e, descobrindo a primeira carta, declarou, risonho:

— Muita felicidade no amor.

— Pudera! Exclamou D. Ursulina, Também se ela não fosse feliz no amor não sei quem mais havia de ser.

Vozes reclamaram silêncio e o Cruz, inspirado, foi interpretando: Uma viagem, filhos; dois filhos. Houve risinhos maliciosos. A gorda casquinou, derreando-se toda, com um despejo de banhas sobre uma mocinha raiva, picada de sardas, para sussurrar um segredo. Ouro, sempre ouro, muito ouro, augurou o Cruz, mas hesitou, gaguejou pousando na mesa uma carta que representava um esquife.

— Um caixão de defunto, não é? Perguntou Elsa e, sorrindo conformada, adiantou: Ê a morte.

O Cruz, atarantado, quis corrigir, mas, diante da figura sinistra, titubeava:

— Não, aqui quer dizer — moléstia grave... moléstia grave. Resolutamente virou outra carta — era uma árvore de grosso tronco, muito esgalhada, toda verde. Cá está a saúde, disse triunfante com a carta entre os dedos, mostrando-a. Eu bem dizia... E, continuando a cartear, teve um movimento súbito de espanto, iluminou-se-lhe a fisionomia, e, com um formidável murro que fez tremer a mesinha, achatou uma carta, bradando: A vitória! Era um fundo céu azul com o sol irradiante. E concluiu: Um sótão! Fora a doença, é uma sorte admirável, soberba!

O “filósofo”, sempre teso ao lado do Dr. Altino, contemplava, com indiferença, aquela superstição. Mas o promotor não se conteve — quis também levantar uma ponta do véu misterioso, desvendar alguma coisa na sombra do porvir e pediu a sua sorte. Foi hilariante. Logo um casamento, um rancho de filhos, trabalhos e a imobilidade — acabaria entre as serras, vegetando obscuramente num triste canto do interior.

— Coitado do Dr. Altino! Lamentou D. Ursulina. Outros lastimaram o destino ingrato. Mas o promotor protestou:

— Que não! Estava bem contente com a sua sorte, nem queria outra coisa. Tivesse ele saúde...

O Cruz ofereceu-se para ler a sorte do “filósofo”; ele recusou.

Era positivista. Não concorria, mesmo brincando, para alimentar a superstição.

— É só para passarmos o tempo, doutor, disseram.

Ele insistiu na recusa. Houve algazarra:

— Tem medo! Tem medo!

— Medo! Eu Acho pueril. Quem lê, quem estuda, não pode tomar a sério essas coisas.

O Cruz, muito grave, defendendo a sua ciência misteriosa, declarou: “Que o grande Napoleão Bonaparte consultava cartomantes...”

— Ora, Napoleão Bonaparte...

— Sim, senhor, Napoleão Bonaparte, o grande. Posso provar, está nos livros.

— Qual! Enfim, como passatempo, vá; passatempo para senhoras e crianças, mas para um espírito emancipado, que tem a sua disciplina filosófica, como eu...

Atirou um gesto desprezível como se lançasse de si uma imundice. Mas as senhoras teimaram, pediram ao Cruz que lesse.

— Então, doutor... Vamos ver se o “filósofo” deu de ombros e o Cruz lançou as cartas. Logo à primeira estrondaram gargalhadas: era um vergalho. O Cruz, carregando o sobrecenho, decifrou: Dificuldades, trabalhos. Vieram ratos — e foi uma balbúrdia na assistência. Traições em negócios, interpretou o cartomante. Uma carta selada... Ahn! O segredo... Agora... Agora... Curvaram-se todos, alguns puseram-se de pé para ver melhor: Veio uma mulher. Estrugiram palmas. O austero homem fora pilhado, lá estava a coisa e, por último, uma raposa encurralada na toca, a olhar com desconfiança. O doutor dissimula, disse o Cruz.

— Deve ser isso, concordou, já azedo, o “filósofo”.

E, como a última carta anunciasse mudança de vida, logo as senhoras traduziram: Casamento. E, até à hora do chá o Cruz espalhou, a mãos largas, a fortuna, a alegria, a esperança feliz, abonançando as almas mais desesperadas. Mesmo a gorda rejubilou com a promessa do uma próxima carta que lhe havia de dar “sumo contentamento”, no dizer do áugure.

Ao chá não se falou em outra coisa: recapitularam-se, compararam-se as sortes, todos contentes porque, em verdade, ninguém ficara sem louvor e sem uma doce esperança. Só o Dr. Altino, engrolando o pão entre as gengivas, esmoía aquele presságio tremendo de uma vida rasa, entre montes, sobre autos, com um tropel de filhos à volta da sua.

III

Uma manhã, ao voltarem da estação onde tinham ido assistir à partida do trem, Elsa suspirou nostálgica: “Que faziam ali? Estava com tanta saudade do Rio, dos seus...”

Eduardo conservou-se calado, taciturno e, até o hotel, não trocaram palavra.

Eugênia acabava de arrumar os quartos e alisava a cama sobre a qual o sol estendia uma faixa de ouro. O ar fino da serra entrava às bafagens macias pelas janelas largas. Cigarras cantavam e bandos de pequeninas borboletas brancas revoavam como pétalas soltas que o vento levasse em remoinhos. Eduardo acendeu um cigarro e, enquanto a mulher se revia ao espelho, recompondo os cabelos esvoaçantes, pôs-se a mirar as unhas, limpando-as, polindo-as com um pequenino estilete de prata.

Quando a criada saiu ele deu volta à chave, atirou fora o cigarro e, sentando-se em uma poltrona de vime, chamou a mulher. Ela voltou-se sorrindo, como arrependida, a pedir perdão, com os olhos meigos, do movimento de impaciência que tivera.

— Ficaste sentido comigo!

— Não.

— Que queres... Isto está tão triste, Eduardo. O melhor é não irmos mais à estação. Não imaginas como eu fico quando vejo partir o trem. Lembro-me de tudo: da nossa casa, de mamãe, de papai...

Ele olhava-a, enternecido. Estendeu-lhe os braços, ela chegou-se, atraída, e sentando-se-lhe ao colo, vergonhosa, com as faces abrasadas, quedou de olhos baixos.

— Aqui, nem sequer podemos estar à vontade, murmurou, a medo: sempre há gente a chamar-me. Já não suporto os tais divertimentos — irritam-me. Vou, enfim, para que não digam que sou orgulhosa.

Ele ouviu-a, sem achar uma palavra para dizer-lhe; temia confessar a verdade, e ficaram largo tempo calados, à espera um do outro. Ela corava, empalidecia, as mãos gelavam-se-lhe. Ele, vazio, sem uma inspiração, procurava uma maneira delicada de narrar o seu sofrimento, na qual ela visse, com a flagrante, dolorosa verdade, a sua situação desesperada. Porque já não confiava nas águas, aquelas águas que brotavam quentes das veias profundas da terra, como um sangue forte, que renovava as energias gastas, que transmitia vida, mocidade, reparava as desfeitas das moléstias, revigorava, reanimava os debilitados. Quinze dias de tratamento, e nada: a mesma inércia cruel.

De repente, tomando-lhe delicadamente o rosto nas duas mãos, fitando-a bem nos olhos, perguntou com meiguice:

— Não tens pena de mim, Elsa?

Ela corou subitamente e dos seus lindos olhos, sobre os quais as pálpebras caíram, duas lágrimas desceram lentas. De novo calados, constrangidos, sofrendo, apertavam-se as mãos com ânsia, e foi ele, por fim, quem se resolveu a falar:

— Ouve, Elsa, tu és pura, bem sei, mas, para iniciar a inocência, fez Deus o instinto. Ainda que a tua alma se não tenha insurgido contra mim, sinto que o teu corpo revolta-se.

Ela fez um movimento para protestar; ele conteve-a.

— Deixa-me falar, não há no que digo ofensa, nem imoralidade, acredita. Sabes que te amo loucamente, vivo por ti só — e hás de ter prova disso, afirmou com voz surda — mas sou um desgraçado. Ela encarou-o. Por quê? Não sei. Estraguei-me... Os médicos dizem tanta coisa... Que tenho isto, aquilo. Falam de uma moléstia nervosa. O Dr. Lino atribuo exclusivamente ao cérebro — acha que sou um “obcecado”. Sei lá! A verdade é que nada conseguem. Sou um homem perdido. Esgotei-me. Fui um estroina, mais, talvez, do que isso — um devasso.

Enquanto vivi na Europa dissipei a mocidade sadia, com a mesma largueza e a mesma indiferença com que gastava aos milhares de francos. Nunca fiz contas, nunca me preocupei com moléstias, o meu banqueiro e os meus vinte anos não me negavam recursos. Fui o verdadeiro pródigo. Não houve extravagância que eu não fizesse, às vezes, senão sempre, por ostentação, para dar que falar. Eu tinha orgulho do vício.

A roda que eu frequentava era a mais elegante, a mais exigente, e eu, para impor-me, excedia a todos em loucuras. Vivia em verdadeiro fervedouro, percorrendo desenfreadamente toda a escala das emoções, numa fadiga que me consumia e contra? Qual só a vaidade reagia. Era o jogo, eram as ceias, as continuadas vigílias de amor, lances de audácia incrível que me granjearam uma fama que, nesse tempo, me orgulhava e que, hoje, enche-me de vergonha.

Apontavam-me, em Paris, como um herói de aventuras extraordinárias e eu era disputado pelas efêmeras com verdadeira fúria. Não sei como chegou aos nobres salões armoriados a minha crônica. O caso é que as grandes damas assaltavam-me com avidez, e fui o amante de não sei quantas histéricas, que se saciavam em mim com frenesi de possessas.

Vivi assim durante anos e quando deixei Paris, sentiu-se um grande vácuo e, ainda hoje, nas cartas que de lá recebo, os amigos referem-se à minha ausência como a um desastre, lamentando a cidade, que perdeu o brilho e a graça.

No Brasil procurei refazer-me, mas como a fadiga só irrompe quando o corpo se entrega ao descanso — a tensão nervosa mantem-se enquanto dura a ação, mas afrouxa, lassa, flácida, logo que se enfraquece — todas as moléstias incubadas explodiram quando me apanharam abatido. Fui covardemente assaltado e sofri, durante um ano, quanto se pode sofrer. Foi no fim da convalescença que tive a fortuna de encontrar-te em Friburgo e, desde logo, amei-te, escravizei-me aos teus olhos, prendi-me à graça puríssima da tua mocidade e da tua meiguice. Foste tu que me revelaste a Mulher.

Que foi o nosso noivado? Para mim foi a purificação. Amei-te — e emprego, pronuncio a palavra veneradamente. Amor, depois que te vi, é, para mim, um vocábulo sagrado. Amei-te e, para possuir-te pura, nunca profanei, com um beijo sequer, o nosso idílio de noivos. Dediquei-me inteiramente ao teu culto. Fiz mal, talvez. Depois de uma pausa angustiosa, disse arrancadamente:

— O que se dá comigo só pode ser explicado por uma vingança... divina. Não penses que falo como poeta, não! Mas parece que Deus entende que a nossa aliança deve ser puramente espiritual, a incidência de dois raios de luz, como a união dos adelfos nas primeiras eras cristãs.

O corpo vem da impureza; a alma, essa nunca se deixou poluir. Mergulhei no pântano, mas sempre a tive suspensa, como os soldados que, atravessando as lagunas e os charcos, levam as armas levantadas acima da cabeça. O que encontrei em mim, quando nos casamos, foi simplesmente o amor, e esse, Elsa, não te descrevo, porque não há palavras tão puras e fortes que o possam exprimir. Amo-te!

Cingiu-lhe o busto com o braço, atraindo-a e sussurrou:

— Mas por que não havemos de ser um do outro? Por quê? Não é justo que assim soframos, ou antes: que sofras.

Ela inundou-o do perdão com os olhos virtuosos.

— Não fales mais, pediu baixinho. Tenho vergonha.

— De quê?

— Não sei.

— Mas eu preciso dizer-te tudo.

— Não.

— Não queres ouvir-me?

— Sobre isso... Não. Chorava. Levou o lenço aos olhos e inclinou a cabeça sobre o ombro de Eduardo. Um momento os dois corpos tremeram sacudidos pela mesma emoção, e ela, rompendo o silêncio torturado, exclamou surdamente: Tenho pena de ti!

— Tu! Por quê?

Elsa encolheu os ombros. Ele então, num furor, apertando-a com frenesi, disse-lhe aos arrancos:

— Pois é, meu amor... É por isso que aqui estou. Tens-me acompanhado a todos os lugares para onde me mandam os médicos. O mar negou-me a vida que lhe pedi, e a ti deu mais força; as florestas nem me sentiram. Íamos os dois, por entre as árvores, sorvendo o ar puro e forte saturado de seiva, aquecendo-nos à luz viva do sol dos montes — tu ganhavas mais vigor, eu... Aqui é possível... Espero readquirir a minha mocidade. Queres ficar mais uns dias? Já sabes tudo.

Mais nervoso, numa irritação, os dentes cerrados, rilhando, rugiu:

— Além do mais, eu tenho ciúme de ti, Elsa, dos teus pensamentos, porque sei que o desejo é mais forte que tudo. És mulher, és carne, és frágil. O noivado abriu-te uma porta sonhada. Entraste esperando o deslumbramento e encontraste um cadáver, e é ao lado dele que vives, é junto do seu corpo frio que estendes o teu corpo ardente e, quando ele te beija, é como um pesadelo que te martiriza com a ilusão.

Ela quis levantar-se, fugir; tinha medo. Afastou-se procurando desvencilhar-se, mas o marido reteve-a. Os seus olhos ardiam como no furor de um delírio.

— Vamos sair... Implorou.

— Não! Continuou em confidência: O Dr. Lino prometeu curar-me. Tenho confiança nele, é um sábio. Ah! Elsa, se ele conseguir... Porque eu juro que, se perder a esperança de possuir-te, mato-me.

— Não digas isso!

— Mato-me! Afirmou. Deixo-te livre e, para que não recaia suspeita alguma sobre ti, tomarei todas as providências.

— Estás dizendo tolices.

Levantou-se. Ele seguiu-a:

— Não, é a verdade. Não podemos insistir nesta vida. Afinal, eu não posso continuar a viver como vivo — dentro de uma hipocrisia, torturado e torturando. Não é de homem. Entregar-te a teus pais? Não! Não tenho coragem; é uma vergonha. E a sociedade! A sociedade não acreditará que és uma vítima.

Pois não acabaste de dizer que tens confiança no médico?

— Sim, tenho.

— Então? Não digas tolices. Queres que eu fique ainda mais nervosa? Matar-te... E eu?

— Sim, mas...

Acalmando-se, sentiu-se vexado do que dissera e, sem ânimo de encarar a mulher, debruçou-se à janela, olhando o campo todo em sol.

Crianças corriam alegremente, aos gritinhos. Na casa contigua, onde havia uma roleta, uma harpa gemia. Elsa foi para o espelho recompor a toilette, e ajeitava as mangas fofas da blusa de cassa da índia, quando bateram discretamente à porta. Eduardo voltou-se impetuosamente, num sobressalto:

— Quem é?

— Eu...

Era o doutor. Reconhecendo-lhe a voz, perguntou à mulher se podia recebê-lo:

— Sim. Estou pronta.

O médico entrou muito familiar, gabando o claro dia, a temperatura.

— Uma manhã suíça. Elsa ofereceu-lhe uma cadeira. Sentou-se descerimoniosamente arrepanhando para os joelhos as abas do sobretudo grosso. Está um dia para passeio. É o que os senhores não têm lá no seu Rio, confessem. A senhora é que deve estar com saudades, não?

— Nem por isso, doutor.

— Isto podia ser uma delícia... Não querem. Foi à janela olhar o largo, as colunas cobertas de luz e logo os seus olhos viram surgir o grande parque do seu sonho, o cassino, todas as maravilhas criadas pela sua imaginação e como se efetivamente as visse ali, sólidas e ricas, atirou o braço num gesto largo: Veja... Tudo isto aproveitado. Seria uma fortuna para o governo e um regalo para quem viesse às águas. Porque não há melhores, garantiu. Voltou à cadeira e, enrolando um comprido cigarro de palha, perguntou a Eduardo: Então! Mais animado? Ele sorriu tristemente. O seu marido é muito nervoso, minha senhora.

Eis sorriu e, compreendendo que a sua presença vexava os dois homens, pediu licença e saiu.

Houve um festivo rumor de falas, risinhos no corredor e passos que se foram perdendo na distância.

Sós, o doutor deu volta à chave, acendeu o cigarro e inclinou-se, com os supercílios franzidos, um dedo dogmaticamente fincado:

— Estou convencido, meu amigo, do que ontem lhe disse na palestra que tivemos. A sua moléstia é principalmente mental. O senhor vive sob o império de uma impressão, que já se vai tornando ideia fixa e hoje todo o seu organismo ressente-se do mau prestígio dessa fatalidade. O seu caso não é frequente, mas isto não quer dizer que seja excepcional. Meu amigo — o rachis é a grande coluna do edifício humano do qual o cérebro é a cúpula. Esse receio de contaminar sua senhora é já um desequilíbrio. O seu espírito em vigília permanente, sempre cheio de pavor, absorve toda a energia. O tratamento a que o senhor se submeteu foi dos mais enérgicos, excessivo talvez. É verdade que esse mal tão temido, uma vez entrado, insinua-se para o sempre e não sai, mas torna-se inofensivo quando é atenuado. É preciso reagir contra a preocupação, ser forte, opor uma vontade rija a essa falsa, consciência.

— Qual, doutor... Não tenho mais esperança.

— Não tem esperança!? Mas, pelo amor de Deus, o senhor não pode ser um fraco, não tem o direito de o ser. Meu amigo, o cérebro é o centro de toda a vida fisiológica e uma ideia má no cérebro é como um entrave na roda principal de uma engrenagem delicada. Quer um conselho? Passe algum tempo longe de sua senhora para que cesse essa excitação e verá que o mal desaparece.

O senhor está ansioso, tem uma vontade excessiva, um intenso desejo, o seu cérebro funciona com violência, mas toda a força despendida é desaproveitada, ou antes — torna-se contraproducente — é como a hélice que, girando fora da água, faz maior número de voltas sem aproveitar ao movimento, abalando o navio em trepidação brutal. Compreende?

Inibição, sabe o senhor? Inibição. Mas esperte, reaja, saiba querer. Não há estimulante mais enérgico do que a vontade. Queira! Impôs com autoridade. Eduardo não pode deixar de sorrir. Tomou a sua ducha? Andou? Pois é assim. Vamos continuando com o tratamento e não se amofine. Levantou-se, deu uma volta pelo quarto, e, parando diante de Eduardo, com o rosto todo franzido, os olhos muito apertados, perguntou: Diga-me, conhece um homenzinho que anda por aí a pregar filosofia?

Eduardo afirmou: Sim, conhecia de vista. Achava-o ridículo.

— Insuportável, meu amigo. Simplesmente insuportável. São há em Teofrasto coisa igual. É um produto admirável do nosso tempo. Agarrou-me ontem no escritório e despejou-me em cima da paciência uma porção de aforismos e de definições. Já viu!? Tem-se em conta de sábio e poliglota e anda por aí a trocar língua com quanto italiano encontra. Ridículo!

Irritou-se, e, frenético, fechando os punhos: — Mas isso até compromete o país. Que ideia fará o estrangeiro do nosso progresso, do nosso critério? E não haver um homem de coragem que diga aquele imbecil quatro palavras fortes! É horrível! Faz mal. Não imagina como me enfezam os pedantes e esse, meu amigo... Achou, então, um pobre diabo, um bacharelete desdentado, promotor não sei onde que o admira e, impando vaidade, balofo, arrota ciência barata com uma empáfia irritante. Tudo lhe é pretexto para dissertar: as folhas secas que caem, os ventos que sopram, a verruga do coronel Mendonça... Um inferno! Consultou o relógio: Bem, tenho ainda gente à espera. E misterioso: Que tal o livro? Tem lido?

— Pois não.

— Interessante, hein? Estão ali todos os grandes fundadores de religiões, desde Rama até Jesus.

— Diga-me, doutor, interrompeu Eduardo — e se eu voltasse à eletricidade?

— Deixe-se disso. Qual eletricidade! Observe o que digo e deixe-se estar que a coisa há de vir; sorriu. Logo, porém, muito sério, pausadamente: Compreendo a sua situação. Realmente... Mas não se incomode: há outras piores. O senhor tem a mocidade que há de vencer. Não se trata de um mal incurável, se fosse, eu lhe diria com franqueza, acredite. Isso é um estado de inércia; a reação há de vir. Encaminhava-se para a porta. Eduardo tomou o chapéu para acompanhá-lo. Vou ver um dos politicões da terra. Ah! Eles guerreiam-me, não a mim, exclamou espalmando a mão no peito e, estendendo o braço, abrangeu toda a paisagem num gesto largo — ao progresso, a isto! Mas, assim que lhes entra o mal em casa, lá vão, aflitos, bater à minha porta. Atendo porque, enfim, é a minha obrigação — exerço um ministério sagrado e compreendo esta Humanidade, feita de lodo ou de coisa pior, como o Severino Lopes. Bem, com licença: vou por esses matos apalpar o fígado empedernido do meu excelente adversário.

Atravessou o largo, ao sol, dirigindo-se vagarosamente para o lado da cascatinha onde morava o enfermo. Eduardo, que ficara à porta, fumando, a olhar o céu liso, voltava-se para entrar, quando ouviu um triste, dolente gemer, e descobriu o velho, que, todas as manhãs, ia ali esmolar. Deu-lhe uma moeda e entrou à procura de Elsa.

O piano zangarreava desabridamente e, na sala de leitura, discutia-se política, com furor. Um velho, magro e frenético, “que se dava intimamente com todos os chefes da situação”, republicano da propaganda, histórico desde os bancos colegiais, defendia os atos do governo aos berros, com as mangas arregaçadas, rouco, tossindo e falando sinistramente em sangue.

O “filósofo” lá estava, a prumo, secundando o energúmeno com o melaço da sua voz e a sua ciência vasta. O promotor, medrosamente encravado num canto, ouvia, cocando o queixo que a barba enoarvoava. Na sala, as senhoras gozavam docemente o sol. A gorda, descobrindo Eduardo, logo se pôs aos cochichos com uma outra, rindo. Ele passou tocando de leve na aba do chapéu e seguia, quando uma menina saiu da sala, a correr, e chamou-o:

— Está procurando sua senhora? Saiu com D. Ursulina e umas moças. Foram para o lado do mercado.

Ele sorriu, agradecido, acariciando a face da pequenita, e retrocedeu, indo ficar à porta, onde o velho, sempre triste, resmungava o seu sofrimento. Mas um grupo apareceu ao longe: Elsa à frente, com um ramo de flores, a sombrinha aberta reluzindo ao sol.

Para a tarde o céu enfarruscou-se, nimbado de nuvens escuras. Anoiteceu tristemente, com uma lua sinistra que aparecia e desaparecia e, para as onze horas, já com o silêncio, desabou o aguaceiro com trovões atroadores, abalando as vidraças que trepidavam medonhamente.

Entraram dias densos e tristes, de chuva evento. Apesar das invenções do promotor, sempre preocupado com divertimentos, a propor jogos, brinquedos, todos se queixavam da insipidez melancólica. Bocejava-se e, pelas cadeiras, eram sonos quietos, moles cochilos; a palestra caía preguiçosa e a vida, refulgindo das salas, concentrava-se nos quartos.

As goteiras batiam monótonas, sem descontinuar. Às vezes, lufadas de vento frio atiravam com as portas, que estrondavam. Homens, amorrinhados de tédio, afrontavam o tempo agreste. Curvados sob os guarda-chuvas, lançavam-se afoitamente pelo campo e, aos saltos, fazendo espirrar a lama, lá iam passar algumas horas à batota.

Senhor absoluto da sala, o “filósofo” doutrinava em grupos que se formavam e que logo se desfaziam. O promotor não se fartava de gabar o amigo — um gênio! Dizia os seus conhecimentos profundos em todos os ramos do saber; referia-se às grandes obras que andava meditando: graves problemas sociais ou miúdas questões filológicas, regras precisas, matematicamente exatas, sobre a prosódia e uma memória sólida e imensa, com gravuras, sobre os “sambaquis”. Aquilo era uma glória nacional, sussurrava, apontando discretamente o amigo abarrotado e inédito.

As senhoras, apesar dos elogios do promotor, achavam o “filósofo” muito cheio de si, muito atrapalhado. A gorda, às gargalhadas, citava-lhe as frases campanudas e perguntava, com interesse, quem era uma Olotilde de que ele tanto falava! D. Ursulina, muito simples, resumia, numa frase chan, a sua impressão: “Parece meio pancada”.

E Caldas, a vila santa e formosa, tão alegre, tão viva nos dias luminosos, murcha, silente, enevoada, com lameiros por toda a parte, parecia uma tapera morta. Raro em raro, ao longe, um vulto, abrumado pela chuva fria, passava e perdia-se; os próprios urubus haviam desertado o lugarejo: um ou outro aparecia à beira dos telhados, encolhido, encharcado, a olhar melancolicamente o horizonte, como a orientar-se para a luz saudosa.

Uma tarde, porém, o céu aqueceu-se, dourado e sanguíneo. À alegria renasceu. Bom tempo! Pressagiaram todos e o “filósofo”, hirto, à janela, ia apontando as nuvens, vivamente coloridas, que se estiravam, como cartazes, anunciando o sol, e dizia-lhes os nomes com garbo erudito.

A noite dançou-se. E as estrelas brilharam no céu límpido.

Foi justamente na primeira manhã de sol, à hora do almoço, quando Alfredo atravessou o salão com uma imensa bandeja carregada de pratos, que se deu pela ausência dos noivos. Houve logo curiosidade.

“Estaria algum deles doente? Mas, na véspera, à noite, tinham estado na sala, juntos, até tarde. Que haveria?”

Algumas senhoras deram-se mais pressa em comer, mesmo rejeitaram pratos, abreviando o almoço. Os criados foram interrogados.

Como Alfredo reaparecesse, chamaram-no de uma das mesas para saber — quem estava doente? O criado encolheu os ombros: “Talvez o patrão, com enxaqueca”, e, discreto, casmurro, lá foi cumprir a ordem que trouxera.

Debalde rondaram o quarto. D. Ursulina bateu de leve, pediu notícias, oferecendo-se para o que fosse preciso. Eugênia entreabriu a porta, agradeceu e, de novo, a chave ringiu. Que haveria!

O promotor afirmou que ouvira gemidos à noite; quisera até levantar-se, julgando que houvesse alguma coisa séria; mas tudo recaíra em silêncio. O “histórico” também ouvira qualquer coisa mas, como tinha por norma não se meter com a vida dos outros, principalmente dos ricaços — pensam logo que a gente lhes vai lamber os pés, por causa do dinheiro — deixara-se ficar deitado.

As senhoras ardiam em curiosidade e, quando o Dr. Lino apareceu, houve uma balbúrdia na sala — queriam todas ver se ele ia para lá, e a gorda, ousada, espichando o pescoço, acompanhou-o com o olhar agudo, e toda agitada, sacudindo as mãos, anunciou:

— Entrou! Entrou!

Efetivamente, o doutor fora chamado para ver Elsa, que tivera uma crise durante a noite.

O quarto, em suave penumbra, recebia uma réstea de luz pela frincha de uma janela entreaberta. Elsa, recostada nos travesseiros, muito branca, levemente pálida, acolheu o médico com o seu lindo e meigo sorriso, e foi Eduardo quem narrou o incidente. O doutor, sempre alegre, achou aquilo “moléstia de moça bonita”. Ela sentia-se triste, disse Eduardo, chorava à toa, tudo lhe aborrecia. E queixava-se do coração: ânsia, palpitações...

— Isso é do tempo, minha senhora. Felizmente já temos ai o nosso irmão sol, como lhe chamava S. Francisco de Assis. Ah! Esses dias de chuva... Pôs-se a passear esfregando as mãos, friorento. Agora foram quatro dias e o hotel está cheio. Imagine a senhora que, às vezes, são semanas e semanas a fio, meses! Água que Deus manda e isto deserto. E eu aqui vivo... E quer que lhe diga? É quando passo melhor. Dias tranquilos, noites agradáveis — porque para mim é uma delícia adormecer ouvindo o bater da chuva no telhado. Meto-me em casa, bem agasalhado, a ler e as águas que rolem por esses campos, os ribeirões que riqueza da terra. Não vê como a verdura está de uma cor mais viçosa e macia? Parece que tudo é novo; o mesmo sol reluz com mais brilho. A senhora o que devia fazer era sair, gozar lá fora a beleza do dia. Enfim... Tomou-lhe o pulso branco e tenro. Vou sempre receitar um calmante. Tenho uma fórmula que parece invenção de frade, é um licor... chuchurreou com delícia. Há de ver.

Elsa sorria, com a cabeça entre as rendas largas de almofada, imóvel sob os lençóis alvíssimos, a colcha de seda atirada em ondas, disfarçando-lhe o relevo do corpo.

Terminada a receita, o médico tornou para junto do leito.

— Fala-se agora em um passeio à cascata das Antas. Por que não vão? É uma maravilha. Eu mesmo que vivo aqui há mais de vinte anos — quando cheguei a esta vila a floresta vinha até aqui em baixo, os políticos arrasaram-na. Mas dizia... Eu que vivo aqui há mais de vinte anos, de quando em quando, meto-me num trole e vou almoçar nas pedras, olhando aquelas águas soberbas que se despertam, brancas, espumando como um rio de leite, de uma altura prodigiosa, e, lá em baixo, perdem-se num fluir sereno, por entre os matos. Descrevia com doçura de voz, curvado, estendendo o braço, a colear com o dedo para desenhar os meandros graciosos da corrente. É uma das belezas de Caldas.

— Se nos convidarem... Aventurou Elsa.

— Por que não!

Queres ir? Perguntou Eduardo carinhosamente.

— Vamos.

— Não se hão de arrepender, garanto! Afirmou o Médico. Depois... Só o ar! Os caminhos é que não são grande coisa, mas que se há de fazer? Temos governo, municipalidade... É aturá-los! Voltou-se abruptamente para Eduardo: Brevemente tenho uma surpresa magnífica para o amigo — e segredou: a instalação de uma loja maçônica. Vai ser uma delícia. É verdade. Mas, por que não se levanta, minha senhora? Olhe que os nossos caipiras costumam dizer que “a cama cozinha o sangue”. Bem... Tenho hoje um dia tremendo — um ror de casos de influenza. Sabe? O tipo, o tal do catecismo positivista — a propósito: chama-se Anastácio — procurou-me ontem, com muita reserva, para falar-me de uma coceira nas pernas, que ele atribui à vida sedentária.

— E então?

— Receitei mercúrio. Hoje cedo lá esteve. Dissertou sobre a lei dos três estados e queixou-se de uma nascida maligna. Propus-lhe o tratamento pelas injeções hipodérmicas, e quer saber? Suporta a agulha com uma coragem digna: nem pisca, meu amigo. Um estoico às direitas, lá isso é. Bem, até logo; o cavaco foi longo. Estendeu a mão a Elsa: Pois, minha senhora, sempre às ordens. É só um recado e cá estou. Até logo. Isso não é nada.

Fechando a porta Eduardo pôs-se a passear ao longo do quarto, os braços cruzados, cabisbaixo, pensando. Elsa retorcia distraidamente a renda larga da fronha.

Ouvia-se o surdo zumbir das moscas que enxameavam o aposento esvoaçando assanhadas, sentindo o sol. O rincho agudo, monótono, de um carro bois, vinha riscando o silêncio — era à fainada da campestre que recomeçava depois daqueles negros dias de aguaceiro.

— Não te incomoda o sol?

— Não.

— Posso, então, abrir, a janela?

— Podes. Foi uma explosão. Elsa cerrou os olhos deslumbrada. O céu, de um azul forte e límpido, luzia; o: fino e fresco, soprando de leve, acariciante, trazia aromas silvestres daquelas serranias longas, a perspectiva da paisagem afundava-se, perdia-se em horizontes claros, orlados de faixas ondulantes que eram florestas.

A terra, fartamente abeberada, reçumandos sei-a, robusta, fecunda, gerava tranquilamente rebentando em renovos. A vida vegetal pululava dos germens. As ervas murchas, esturricadas, que chovilhavam à aragem das tardes secas, reerguiam-se içosas, de um verde alegre, com flores desabotoando as hastes flexíveis; os arbustos, revestidos e folhas tenras, balançavam-se airosamente ao lento passar das brisas que pareciam trazer abelhas, tantas eram girogirando pela campina e nos rés, todo o arvoredo parecia renovado, mais ramalhudo e mais rico.

Na linha rasa das campinas distantes a erva havia um fino, macio veludo. Passarinhos cruzavam-se chilreando, cigarras faziam um concerto estrídulo.

Toda a gente que veraneava parecia gozar com volúpia o sol — eram grupos pelos caminhos, longe, dos cerros; figurinhas que se moviam devagar nas asperezas íngremes das colinas pedregosas e acenavam alegremente para a planície. Às vezes um grito atroava.

Um sino começou a bater docemente. Eduardo deixou a janela e foi sentar-se à beira do leito, afagando de leve os cabelos de Elsa.

— Ainda sentes alguma coisa?

— Não, estou boa. Nem sei que foi aquilo. Talvez umidade.

Ele contemplava-a, mudo, em êxtase. Não, não fora umidade, mas aquela excitação permanente, aquele desejo sempre contrariado, aquela ânsia sempre insatisfeita.

O seu espírito tinha o reforço da virtude, mas a sua carne jovem, cheia de seiva, era como aquela terra que reclamava a luz e enfeitava-se florindo ao primeiro afago tépido dos raios de ouro. Pobrezinha! Lutava, continha-se subjugando violentamente a ardência do sangue. Que suplício! E ali estavam os dois sofrendo a mesma tortura, ambos cheios de amor e de desejos e separados, desunidos por uma fatalidade cruel.

Pensava, fitando-a enlevadamente, e inclinou-se, com um beijo para a linda boca, que se entreabria, vermelha como uma flor desabotoando. Ela, porém, voltou o rosto, empalidecendo, e, medrosa, implorou quase com lágrimas, humilde:

— Não, Eduardo... Pelo bem que me queres. Ele pôs-se de pé, num ímpeto.

— Tens razão. Para quê?!

E, lentamente, passou ao quarto de vestir.

IV

Abril, o cerúleo mês, entrara friíssimo, toldado de brumas. Começava a abalada. Os hotéis esvaziavam-se, como em precipitada, espavorida fuga. Todas as manhãs partiam famílias, e, na estação apinhada, junto ao comboio, era um tumultuoso alvoroço — adeuses, abraços, afirmações de amizade, compromissos de visitas.

Os homens iam e vinham, açodados, despachando a bagagem, escolhendo lugares nos wagons, embarcando crianças. As senhoras, em grupos de amigas, com saudade daqueles serenos lugares, tão lindos e amáveis na sua simplicidade agreste, falavam comovidas. Só, então, as outras notavam-lhes as cores, a boa disposição, as melhoras, e elas, satisfeitas, suspiravam, lamentando não poder ficar mais tempo, mas a vida lá em baixo, a casa, o trabalho...

O trem apitava e, em atarantada corrida, com os últimos adeuses, precipitavam-se para os carros, ficavam à janela, e era uma algazarra, um agitado mover de braços que se estendiam.

Um silvo agudo vibrava, e, docemente, desusando, lá se movia o comboio, partia, sumia-se, deixando um vazio enorme, como se um pedaço da mesma terra se houvesse deslocado.

À noite, no salão, eram despedidas, às vezes com lágrimas, das que recalcavam esperanças, das que viam desfazer-se o sonho de amor. Os doentes falavam das suas chagas, já secas; alguns arregaçavam as calças, mostravam as pernas; outros sacudiam os braços, livres dos reumatismos, apalpavam as juntas sem os tofos artríticos.

Um guarda-livros, que entrara magro e lívido, curvado sobre duas bengalas, arrastando os pés enormes em frouxas chinelas de trança, na véspera da partida apareceu na sala, muito lépido, calçado e com uma rosa imensa na botoeira do jaquetão da flanela.

Foi um delírio, e como só havia homens, ele declarou lampeiro: “Que estava morto por apanhar-se no Rio para tirar o seu ventre de miséria”, e, à luz minguada, enquanto um cometa agadanhava o piano, saltou para o meio da sala, a dançar, atirando as pernas. E as gargalhadas estrondavam.

No salão de jantar sentia-se ainda mais o vazio — tantas mesas abandonadas, toda uma ala deserta, porque os que ficavam iam-se aproximando, numa necessidade de união e para facilidade do serviço. Dois criados haviam desaparecido. O hotel parecia mais vasto, mais sombrio e, à noite, era lúgubre e reboava sinistramente ao mais leve ruído, como uma funda caverna.

Anoitecia cedo. A bruma subia, fluida e alva, espalhando-se nos campos em ramas algodoadas, enrolando-se no topo dos outeiros, e as estrelas, de um brilho nítido, maiores, cintilavam no céu puro. Esfriava, frio de inverno.

Elsa levantava-se tarde, tiritando, e, com Eugênia a vesti-la, lamentava aquela desolação. Não podia mais!

— A gente ao sol ainda sente mais frio, dizia a criada. E a senhora não imagina o que está chegando agora para o hotel. Ontem entrou um homem com a cara amarrada em panos cheios de sangue. E o padre que anda num carrinho? Ainda não o viu? Foi um trabalho para o trazerem da estação até aqui. Não ouve, de noite, um barulho no corredor! É um coitadinho, todo entrevado, que anda por ai de rasto, num bolo, como um sapo. Faz pena.

Era, efetivamente, a miséria que chegava de todos os lados, como infelizes que houvessem pacientemente esperado o final de um festim para lançarem-se famintamente aos restos. Alguns traziam apenas o dinheiro da passagem, ou viajavam com passes, contando com a caridade, como o velho padre, todo encarquilhado e tolhido, metido num carro de rodas de madeira, que um velho negro arrastava vagarosamente.

Com um triste sorriso no rosto, comprido e cavado, sussurrava a sua história infeliz, mostrando as mãos retorcidas e secas como raízes, os joelhos que saltavam em dois bolos sob a batina surrada, e ainda o peito que reentrava, varado de dores. Davam-lhe esmolas e ele lá ia dizendo a um e a outro a sua desgraça, como a moléstia o prostrara, forçando-o a deixar o serviço do Senhor, a sua paróquia humilde, em Minas, sempre festiva e florida.

Às vezes, à noite, em tom brando de reza, com o entrevadinho sentado junto ao carro, na sombra do corredor deserto, ele punha-se a contar vidas de santos, martírios, milagres. Falava de Belém e dos magos, descrevia a Paixão, remontava ao céu num sonho suave de bem-aventurança, e o entrevadinho, boquiaberto, fitando nele os grandes olhos meigos, interrogava-o sobre Jesus, sobre Nossa Senhora, como haviam fugido para o Egito, se a Virgem era bonita, como se chamava o rei negro que fora ao presépio. E o padre ia respondendo docemente.

O “filósofo”, que ficara sem o seu grande amigo, o bacharel, já restituído à sua promotoria, nas serras, atulhava o salão com a sua prosápia. Uma vez, encontrando o velho sacerdote, que lia o breviário no fundo do seu carro tosco, interpelou-o sobre os mistérios do cristianismo, combatendo, à luz da ciência, toda a patacoada teológica.

O velhinho ouvia-o, calado, encolhido, com um sorriso de resignação, e ele confundia-o com os grandes nomes da filosofia. Explicava a criação, com Haseckel; a descendência do Homem, com Darwin; reduzia tudo a leis físicas, acabando com Deus, com o mesmo desprezo com que atirava pela janela a ponta do cigarro.

D. Ursulina, muito religiosa e compadecida, não pode conter-se uma manhã, o, “saindo do sério” como ela mesma declarou, investiu em defesa do humilde sacerdote:

— Que coisa também...! Ora o senhor, com o coitado do homem. Isso até não é bonito, perdoe que lhe diga. O senhor é um moço, ele é um pobre velho, carregado de cabelos brancos e doente. Tem a sua crença, como eu, como muita gente... Para que há de estar o senhor, todo o santo dia, a amofiná-lo com histórias? Desculpe a minha franqueza, não se zangue comigo, mas isso é feio.

O “filósofo” olhava-a de alto, superiormente, com o pince-nez a brilhar:

— É um dever de todo o homem que estuda, que pensa, corrigir os erros, combater os prejuízos.

— Ora! Que é que o senhor corrige? O senhor pensa que alguém vai deixar a sua religião por sua causa? Quem crê, crê. Eu penso assim.

— Pois faz mal, minha senhora.

— Pois sim. O senhor veio aqui para se tratar, ou para fazer propaganda? Se veio para só tratar, faça como eu, que tomo os meus banhos e meto-me comigo. O coitado do velho nem pode vir um bocadinho à sala distrair-se.

É até uma falta de caridade.

— Bem, minha senhora. Se é por causa do padre... tollitur questio. Com licença.

E saiu muito teso.

Os dias vazios, silenciosos, pareciam infindáveis e Eduardo sempre a esperar o milagre das águas.

— Por que não vamos para o Rio? Há lá outros recursos, disse-lhe Elsa, uma noite, ao vê-lo macambúzio, a meter os dedos pelos cabelos, desesperado.

Ele irritou-se.

— Qual! O melhor mesmo é acabar com isto. Olha, se queres, telégrafo para que te venham buscar. Ela rompeu a chorar silenciosamente. Eduardo arrependeu-se e, carinhoso, ameigando-a, implorou: Perdoa-me... Eu não sei o que digo. Estou nervoso, frenético. Que queres, Elsa... eu vejo. Tu é porque não te preocupas com isto, eu, não: informo-me de tudo, acompanho com interesse todos os doentes e o que tenho visto é verdadeiramente prodigioso. Pois então só eu é que não hei de aproveitar? Por quê? Homens com os corpos abertos em úlceras, entrevados; aquele espanhol, com os olhos em pus, que nem aparecia à mesa; o filho daquela tua amiga cujo corpo era um só dartro e tantos, tantos! Não saíram curados? Então?

— Mas a tua moléstia é outra, Eduardo.

— Se o doutor garante-me a cura... Elsa encolheu os ombros. Tens razão — isto está realmente triste, mas... E se eu ficar bom? Olha, já combinei um passeio para amanhã, ao alto do morro. Tem paciência mais uns dias. Eu sofro muito mais do que tu. Se até domingo eu não melhorar, vamo-nos embora.

— Pois sim. Mais animada, explicou: Eu também estou convencida da virtude destas águas, mas não para o teu mal.

— Pois está dito! Decidiu resolutamente Eduardo. Se eu não sentir melhora durante estes dias, partimos no domingo. E será o que Deus quiser.

Na manhã seguinte, com o hotel ainda quieto, Alfredo bateu à porta, dizendo — que os animais estavam à espera. Elsa, com um preguiçoso bocejo, logo abafado nos travesseiros, levantou-se e, molemente, chamando Eugênia, passou ao quarto contiguo, Eduardo, já pronto, foi para um canto, sentou-se em uma cadeira de lona e ficou inerte.

Passara a noite em claro, em perturbada insônia, assaltado por ideias sinistras, sem poder tirar-se do círculo tremendo em que a razão o prendia. Não podia admitir aquela resignação da mulher, aquele enérgico suportar de um desejo que nele era suplício, e que ela aceitava docemente como um caso natural.

A sua alma virtuosa podia resistir às seduções refugiando-se na religião, amparando-se nos austeros exemplos de honestidade com que fora educada, mas a carne, a carne bruta, escrava do instinto, que traz o seu destino amoroso, essa havia de insurgir-se, de reclamar o que as núpcias lhe haviam prometido.

As freiras são também mulheres e vencem, mas vivem protegidas pelos conventos que são as fortalezas do Senhor. Defendem-nas sólidos e fortes muros além dos quais as vozes do mundo, os clamores árdegos da vida chegam em leve, apagado murmúrio.

Pelos imensos e soturnos corredores, os passos que ressoam são de mulheres puras, o aroma que trescala é das resinas místicas, as vozes que se cruzam veladamente, como em segredo, não pronunciam senão palavras santas e de renúncia. Uma porta que se abre deixa entrever ouros, alvuras de altares, círios, lâmpadas de luzes tristes, vultos piedosos de mártires hirtos, imóveis nos seus nichos, ou é uma lufada sonora que remoinha e passa com um clamor de litania dentro da plangência melancólica do órgão.

Nas celas, de alvas paredes nuas, tudo é álgido e mudo. Os passarinhos, o próprio sol parecem fugir ao gradil ferrenho dos postigos e os aromas agrestes da terra fecunda passam em aura ligeira, como se um perpétuo exorcismo os repila daqueles lugares de esterilidade.

Deitam-se nos seus grabatos como um cadáver rígido fica estirado no esquife. Os cilícios que lhes vincam os flancos cingem-nas como um cesto de pureza: atormentam-lhes a carne, constrangem-lhes os nervos, regelam-lhes o sangue e, enquanto não lhes pesa o sono nas pálpebras, de joelhos ou prostradas nas lajes frias, rezam, penitenciando-o até que, exaustas, caem pesadamente, adormecendo sob a hipnose do misticismo.

Sonham. São incubes que as perseguem, que as fazem gozar o prazer efêmero e irreal, verdadeiras erupções de sensualismo. Logo despertam aterradas e, ainda trêmulas, com os vincos dos dentes nos lábios secos, e, desvairadas, com orações fervorosas, longos jejuns e penitências, expulsam de si o pecado e, flagelando-se, com o sangue a escorrer dos seios murchos, rasgando a carne às unhadas, com lágrimas, quedam prostradas diante do negro cruzeiro que as defende, abrindo, acima das suas cabeças, vazias de ideais humanos, os largos e rijos braços misericordiosos.

Ah! As freiras solitárias, maninhos como a terra morta do Gólgota em que só avultavam os postes de martírio, essas podem resistir. Nunca ouviram as trêmulas vozes súplices do desejo, nunca sentiram os eflúvios passionais. Mas ela, que fizera voto de amor diante do mesmo Deus que das outras recebe a promessa triste da eterna castidade; ela, que fora abençoada para a fecundidade, como a terra santa e as gerações do Éden; ela, que saíra da iniciação da puberdade para ser Mãe e gerar e entrara na câmara nupcial levando as humildes palavras maternais que a rendiam passivamente ao esposo; ela, que encontrara o preparo de um ambiente voluptuoso; que ficara a sós com um homem; que se vira, pouco a pouco, desfolhada das suas vestes virginais; que caminhara a tremer, fria e com o sangue estuante, para o leito; que, encolhida, sentira estender-se a seu lado um corpo, o vira volver-se, aquecera-se ao seu calor, alvoroçara-se com os seus beijos e, entrelaçada, enlanguescera, suave e suave, até a inércia; ela, que se entregara e que, durante dois meses, noite por noite, esgotava-se em ardores inúteis... Ela não poderia resistir às solicitações da natureza, ao tormento desesperador, alucinante que a sua miséria lhe infligia. Não! Era superior a toda a energia, a toda a virtude.

Os mesmos santos cediam nos desertos e os demônios devassos, os seres híbridos que rondavam os cemitérios, afetando formas delgadas e sensuais de mulheres formosíssimas, possuíam-nos e, depois que os rojavam nos desfalecimentos dos espasmos, subiam silvando, batendo os caminhos com os cascos de bode e, rindo, desapareciam triunfantes entre os cardos e as urzes, zombando do arrependimento dos míseros, que ficavam clamando no limiar das cavernas conspurcadas.

Aquela crise que ela tivera não fora mais que uma revolta da carne flagiciada. Quem pode conter um rio assoberbado com a fragilidade de uma represa? E que era a virtude naquele caso senão uma comporta oposta à violência do instinto?

Não, ela não podia ser uma exceção. A fatalidade havia de vencer, forçosamente. O seu mal era uma estagnação. O mesmo médico já não escondia a desesperança, fugia à responsabilidade da cura com evasivas sutis, atribuindo a insistência daquele “estado de inércia” à ausência do socorro moral. Porque ele não reagia, não procurava auxiliar o tratamento com o “querer”. E aquela palavra que, uma vez, lhe saíra da boca inadvertidamente: “myelite” não seria a própria expressão da verdade? Myelite... Sim, devia ser esse o seu mal, a medula... A medula.

— Estou pronta, disse Elsa, reaparecendo. Ele saiu bruscamente daqueles cuidados e, vendo-a a sorrir, mais se lhe acentuou a certeza cruel do que conjecturava. Em que pensará ela? Em quem! Levantou-se.

— Vamos, então.

Tomou uma bolsa de couro da Rússia, passou-a a tiracolo, e iam saindo distraidamente, quando Alfredo apareceu com o café. Tomaram-no de pé, em silêncio, e foram.

Iam sem interesse, como a um trabalho fatigante, julgando, cada qual, causar prazer ao outro.

Os cavalos, velhos sendeiros de aluguel, modorravam à porta. Ainda havia nevoeiro, fluores de neblina à flor dos campos. Mas o céu, de um azul intenso e lúcido, era todo esplendor. Fazia frio.

Montaram e, à voz do guia, um caboclo esguio, escarranchado numa bestinha, partiram através do campo rociado que refulgia. Elas fugiam com surdos ruflos de asas; gafanhotos voavam chirriando, e um cheiro forte, acre, de terra fecunda subia de todos os cantos, à luz que dourava as ervas rasas e o alto arvoredo.

Iam já defrontando as últimas casas do largo quando o Dr. Lino apareceu, muito atabafado, com a gola do capote levantada até as orelhas, seguindo as sinuosidades de uma vereda para evitar as úmidas ervas.

— Bom dia!

— Bom dia, doutor.

— Então, que é isso? Onde vão?

— Vamos ao morro respirar um pouco, gozar a paisagem.

— A vista é linda, hão de gostar. E há lá uma água excelente, celebrizada por quantos a têm bebido. Sabes onde é a fonte, Firmino?

— Sei sim, senhor.

— Pois é, leva os senhores até lá. Vale a pena.

E, voltando-se para o morro, mostrando-o como guarda-chuva:

— Aquilo já foi um dos passeios obrigados de Poços. Fazia-se a ascensão a pé, com matalotagem uma bandeira e foguetes. O que primeiro chegava era aclamado. Então chamavam a bandeira, soltavam os rojões e lá a fonte, comer o lombo de porco. Pagodeira. Hoje, nem isso. O nosso povo está cada vez mais triste. Não sei que é, mas a verdade é que a melancolia está arrasando este país. Bem, não lhes quero tomar tempo. Lá vou para a minha Cafarnaum, aos meus doentes. Para esta gente sou como um Cristo. Entendem que posso fazer milagres. Ainda hoje apareceu-me lá em casa um pobre morfético, pedindo-me que o curasse, porque tem família. É isto. E, se eu não os for iludindo, adeus! Não dirão que sou um médico honesto, dirão que sou uma besta quadrada. Até logo. Divirtam-se.

O ar picante excitava os animais, que se puseram a trote. A vila, quieta, com as casas fechadas, parecia dormir ainda. Nos longes da terra, apesar do sol que aquecia, rastejavam névoas barrando o horizonte.

Na ponte, sob a qual o ribeirão da Serra borbulhava, escachoando com estrondo, torcendo-se em volta augusta, galgando pedras em torno das quais a espuma refervia, pobrezinhos esmolavam.

Um cego, de cócoras, com o chapéu de palha nos joelhos, cantarolava esganiçadamente rolando os olhos brancos; os filhos, sentados em volta, jogavam pedrinhas. Adiante uma velhita murcha, encarquilhada, com a boca sumida, os olhinhos empanados de névoa, os cabelos brancos fugindo em falripas esvoaçantes do lenço que lhe cingia a cabeça, resmungava estendendo a mão mirrada e trêmula. Em frente do mercado juntavam-se os tropeiros descarregando os ceirões, os jacas, arriando sacos. Chegavam mulheres com tabuleiros de verdura, cestos de ovos, cabazes de frutas, pencas de frangos. Os açougueiros, com os facalhões gordurosos, espostejavam a carne, talhavam o toucinho.

Carros de lenha, récuas de mulas, atravancavam a estrada. Diante da porta de um armazém, um bando de caipiras: uns de pé, outros de cócoras encostados à parede, discutiam beberrioando pinga ou alisando, à faca, nas coxas, as grossas palhas de milho dos cigarros. O guia, dando voltas por entre os carros, tocando os animais que se afastavam, abria caminho e a gente simples voltava-se para ver o casal airoso, Elsa principalmente, muito esbelta e flexível na sua amazona escura, com um leve chapéu de palha sobre os cabelos louros.

A subida ia-se tornando áspera com os fundos os sinuosos sulcos cavados pelas enxurradas e os pedrouços que rolavam sob as patas dos animais.

Nas últimas casas, pobres, já o trabalho começara. Mulheres estendiam roupa em cordas esticadas de tronco a tronco ou nos gramados cintilantes de orvalho. Sob uma vinha um homem trabalhava, cercado de bambus, cortando varetas para gaiolas. Crianças mias, com as pernas escalavradas, outras em camisola, ainda estremunhadas, com pedaços de pão nas mãos sujas, corriam às cercas floridas de rosas ou de madressilvas, trepavam às árvores, subiam à estrada, aos pinchos, gritando alvoroçadamente para que viessem ver a moça a cavalo. E mulheres apareciam às portas, debruçavam-se nas cancelas olhando admiradas, segredando-se louvores, sorrindo extasiadas com a beleza de Elsa.

O guia deu de rédeas e a bestinha partiu a galope para a porteira, mas um pequeno já havia corrido a abri-la e todos passaram, agradecendo.

Começava a lombada do monte, com a vegetação soberba e o doce silêncio das alturas. O guia, sentindo-se, enfim, entre as árvores, pôs-se a cantar, derreado e mole no lombilho, deixando-se embalar pelo animal.

O caminho, em voltas, muito batido, luzia entre as ribanceiras vermelhas. Viam-se largas pegadas, calcaduras e estravo de animais que por ali haviam passado. A um e a outro lado o arvoredo era frondoso, de um verde novo e luzente e, com o mais leve mover dos ramos inclinados, o orvalho esparzia-se em chuva sonora. Elsa arrepiava-se com as gotas frias, evitava o rorejo encolhendo-se toda e rindo. Eduardo animava-a e, adiante, a voz alegre do guia provocava a passarada que chilreava esvoaçando, perseguindo-se nas ramagens e pelos ares. Borboletas imensas, azuis e brancas, lentas, pesadas atravessavam de um para outro lado. Às vezes as folhas secas farfalhavam e lagartos fugiam ligeiros desaparecendo nos matos.

De quando em quando, nas passagens mais encobertas, sob as densas copas, escurecia e esfriava, mas o sol lá estava adiante dourando a terra sanguínea, polvilhando de ouro as folhas molhadas. Vagarosamente, arquejando, com um monótono ringir dos arreios, os animais seguiam pelas veredas apertadas. Eduardo gabava a beleza sadia da paisagem, mostrava parasitas nos troncos, gravatas, lindas florinhas silvestres, corimbos enfestoando galhos secos, insetos que reluziam à luz, árvores altas robustas, cujas raízes fortes saltavam à flor da terra em formidáveis e retorcidos vergões.

As vezes paravam à beira de uma grota toda rendada de samambaias, olhavam calculando o fundo e o guia cantava enamoradamente como se o seu amor vivesse, à maneira das ninfas, em alguma daquelas árvores e o ouvisse.

O silêncio de Elsa continuava obstinado. Seria de enlevo ou de tédio? Subitamente as palavras pronunciadas pelo médico, no largo, com relação aos enfermos, saltaram no espírito de Eduardo. “Entendem que posso fazer milagres... E se eu não os for iludindo, adeus!” Ele não referira o caso do leproso senão para desenganá-lo com aquelas frases. Já lhe havia notado o desânimo. Estava a entretê-lo, a embai-lo com uma vaga esperança para ganhar tempo, certo da impossibilidade da cura.

Chegavam ao alto por uma azinhaga úmida e sombria. O vento soprava livremente, rijo e frio, vergando os ramos. Bedouças de cipós oscilavam de árvore a árvore e os melros piavam nas frondes altas.

Já no planalto, os animais lançaram-se a galope. Formigueiros enormes levantavam espalhadamente entre as ervas os cocurutos calvos. Uma ou outra árvore isolada frondejava sussurrando às rafadas do vento livre, nas moutas rasteiras de joás os frutos, muito amarelos, eram como imensas gemas de ovo e de todos os lados era o abismo, o fundo perdido. Eles acharam-se como insulados no espaço, cercados pelo vácuo.

Foi Elsa que saudou a vila mostrando-a, em baixo, no fundo, com as suas ruas direitas, amarelas e lisas, que a distância achanava fazendo desaparecer os caldeirões, os vallog. O casario alvejava entre as verduras dos pomares copados, os ribeirões luziam, com a água quieta, como adormecida. Um carro de bois atravessava o largo vagarosamente e o rincho dos eixos, chegava, por vezes, à altura, mas logo o vento o levava. Lá estava a estação — os trilhos brilhavam ao sol. Lá estava o hotel...

— Olha, Eduardo. Aquela não é Eugênia? Ali, naquela janela...

Eduardo, mais calmo com a alegria da mulher, graduou o binóculo e levou-o aos olhos relanceando todo o fundo da terra, a imensa cratera côncava.

— Não, não é Eugênia. Parece aquela senhora que toca.

— D. Ursulina. Dá cá. Tomou o binóculo e confirmou: É, sim.

Gente miúda movia-se no largo, aparecia às janelas. Bandos de pombos cortavam os ares e em cima, fechando todas as distâncias, o azulado, rutilo céu não tinha a mais leve nódoa de nuvem. Longe eram outeiros e campos, uma ondulação cambiante começando no verde, passando ao violete, até o azul fundo dos relevos das serras. Para outro lado, perdidas na distância, montanhas esboçavam-se em tons suaves, pareciam acúmulos de nuvens no céu raso do horizonte e campos, várzeas chatas, desertas, sem sombras de árvores, sem um colmado, riscadas pelos caminhos. O guia chamou-os para o outro lado, mas Elsa, embebida, não se fartava de olhar.

— Onde nascem as águas, Eduardo!

— Não sei. Parece que é na serra de Caldas.

O guia mostrou além a massa soberba da serrania.

— A serra é ali. Dizem que tem ouro.

— Ouro!

— Sim, senhor.

O sol, àquela hora, era o ouro da serra, forrava-a toda, cobria-a até a espalda e descia à planície rica.

— Olha, Elsa: o estabelecimento dos Macacos, ali onde o sol bate. Vês? A luz, dando em cheio na galeria envidraçada, fazia um rastro de fogo e, mais longe, outra chapa brilhante lampejava — era a casca tinha. Estás vendo?

— Estou. E a gente como fica pequenina, observou risonha. Se viéssemos mais cedo podíamos ter visto a partida do trem. Vamos para o outro lado.

Tocaram os animais.

A vista alargou-se por uma terra farta de cultura e floresta, com uma casa de fazenda muito branca, entre os terreiros, a destacar-se do fundo sombrio do arvoredo. Os cafezais corriam alinhados, como grandes esponjas escuras. Aqui, além, esguios coqueiros subiam com as palmas esfiapadas em franjas, tremulando ao vento e os olhos dilatavam-se como se voassem ao longo da extensa terra forte, que, sob a fecundação do sol, produzia em silêncio, florindo, frutificando para o homem.

O guia estendeu o braço mostrando um brilho a águas, ao longe — o rio. Elsa só via a verdura luxuriante, a grande, a estupenda geração vegetal que tudo avassalava e encobria e daqueles algares, daqueles fundos e alcantilados abismos, de todo o circuito que se perdia em precipícios subia uma voz surda e perene, um arquejo ininterrupto como se a terra, no esforço ingente de gerar, de conceber, gemesse para os altos céus com a mesma dor alanceada com que as mães humanas dão o seu fruto à vida.

— Vamos. O guia partiu. E agora: Para onde vamos?

— Vosmecê não quer ver a fonte?

— É muito longe?

— Não, senhor. É um instantinho. Elsa receava as cobras. Não tenha medo. Agora não é tempo.

Tocaram.

Não havia caminho — foram por um sapezal farfalhante. A erva alta chegava ao peito dos animais, abrindo-se em sulcos, como as águas que uma quilha corta. Chegaram à beira de um declive, e o guia, saltando da bestinha mansa, prendeu-a a uma árvore, dizendo:

— Agora é melhor vosmecês apearem, o caminho não dá para os animais.

Eduardo, ágil, pôs-se logo a pé, e, estendendo os braços, tomou Elsa e depô-la em terra carinhosamente. Nunca, ao contato daquele corpo juvenil, ele sentira a emoção violenta e de gozo que experimentou naquele momento.

O guia prendeu os animais e, tomando a frente, lá foi rompendo o mato, afastando ramos, e chegaram às primeiras árvores de um pequenino bosque, cheio de perfume e luz. Era como o vestíbulo da floresta, que se estendia opulenta, dominando todo um flanco da montanha.

Caminhavam. O terreno tornava-se macio, como se o forrasse um mole tapete, a luz era mais branda. Aos lados, em entrelaçados recantos, havia como um resto de sombra noturna, estrelada de nimbes de sol.

Vozes misteriosas subiam dos meandros quietos. Aqui, eram passarinhos lépidos saltando nos ramos, apanhando achegas ou mariscando na terra; abelhas douradas que erravam; grandes besouros negros que passavam de esfuzio com um zumbido roufenho.

Os arbustos tinham fraquezas lânguidas, inclinando-se, oferecendo mimosamente as suas flores cheias de mel. As árvores espreguiçavam-se em movimentos moles. O sol, descendo pelos escassilhos da folhagem, estendia nos caminhos um crivo luminoso e, nas faixas oblíquas que passavam, envolvendo os troncos, fervilhava uma viva poeira de ouro.

O guia desceu uma rampa resvaladia e, de baixo, como homem habituado à vida alpestre, para o qual a montanha não tinha surpresas, ofereceu a mão aos excursionistas, animando-os. Era um pulo. Elsa receava, e, sorrindo, ia, pé ante pé, procurando as anfractuosidades, um talude; mas Eduardo, agarrando-se a um tronco, deu-lhe a mão e a foi descendo. O guia esperava-a em baixo, e ela, assim amparada, precipitou-se, num passinho ligeiro, com gritinhos de susto. Eduardo atirou-se num salto e achou-se junto dela, risonho.

Já a voz calma das águas murmurava no silêncio. Tudo estava fechado pelas ervas, e eles tiveram de romper o mato para chegar a uma espécie de gruta sombria, onde a água fluía em límpidos filetes, remansando-se em transparente, pequenino lago. Vários regos, reticulando o sítio, levavam as águas em voltas para além. Um jorro casquinava despenhando-se em cascata, outros fios insinuavam-se sob as ervas, corriam sussurrando e as árvores, pendidas, com as ramagens derreadas, miravam-se na água. Elsa, de pedra em pedra, escolhendo as mais secas, grandes lages orladas de limo, avançava para os nenúfares abertos no seio da cripta verde. Equilibrando-se, procurando o amparo dos cipós, sorria vendo-se toda refletida no espelho líquido.

— Que beleza, Eduardo! ...

O cheiro acre das resinas, o almiscar capitoso da selva, circulava como um ambiente. Tudo era sombrio, as mesmas folhas, que se reproduziam na água, eram de um verde negro, como se a sombra as houvesse tisnado. Só os fetos e as trêmulas, delicadas avencas conservavam o claro verde alegre.

Libélulas pairavam acima da água, mirando-se com faceirice e levemente, ligeiramente, molhavam as pontas das azas, logo fugindo. Cigarras chiavam em volta, por entre as folhas.

A poucos passos da fonte, em contraste com aquele segredado e obscuro retiro, uma clareira abria-se ao sol, recebendo toda a luz no seu tapete de grama. Ali era o centro da vida — pássaros galreavam, zumbiam insetos, voavam moscas azuis. Aranhas negras, incrustadas de ouro, marinhavam nos galhos, subiam, desciam pelos fios ou, no centro das teias, balançavam-se ao sol.

Elsa, com pena de deixar a fonte, curvou-se, com as mãos em concha, tomou uma mancheia de água e sorveu com delícia. Um raio de sol incendiava-lhe os cabelos finos da nuca e o seu perfume delicado, como a irradiação do seu corpo, vencia o cheio agreste das silvas.

Eduardo contemplava-a, extasiado, em enlevo, como se o poderoso eflúvio daquela natureza agreste o fosse penetrando, infiltrando-se-lhe nas veias, como um amavio, excitando-o, compelindo-o ao amor. Os olhos amortecidos ficaram afogueados, as narinas afiavam e um vivo calor de renascimento, uma aurora que se acendia, animava-o. O guia, farto daquelas maravilhas tantas vezes vistas, descera uma rampa e, cantando, fora-se à procura de parasitas. A sua voz perdia-se no fundo da terra. Elsa ergueu-se, corada, respirando forte, com o colo cheio e, voltando-se, achou-se em frente de Eduardo, que sorria.

— Como estás linda, meu amor!

Ela quis passar, ele abriu os braços, detendo-a.

— Espera, Eduardo.

— Não. Ela corou, sentindo o homem. Não, E ficaram imóveis. De repente, num movimento rápido, Eduardo tomou-lhe a cabeça a mãos ambas e beijou-a na boca, sofregamente. Ela não reagiu, e os dois ficaram como esquecidos naquele beijo, transmitindo-se as almas.

Súbito, em sobressalto, repelindo-a desatinadamente, fitou-a, cravou-lhe os olhos no rosto e gritou-lhe o nome num delírio, como para chamá-la ao amor: Elsa! Ela encarou-o trêmula, e, ambos mudos, olhando-se, ficaram um momento como petrificados. Ele deixou-a, partiu a correr, chamando o guia aos brados. O homem respondeu-lhe do fundo da gruta — estava enganchado numa árvore arrancando parasitas. Deixou-se escorregar e, em terra, precipitou-se, subindo o recosto agarrado às raízes. Apareceu esbaforido, alagado em suor e, vendo Eduardo debruçado sobre o abismo, perguntou, assustado.

— Aconteceu alguma coisa, patrão?

— Não, nada. Eu queria que fosses lá em baixo buscar qualquer coisa para almoçarmos aqui. És capaz?

— Vai! Vosmecê querendo.

— Então, olha... Vai!

Abriu a bolsa, tirou uma nota e deu-lha.

— Que é que vosmecê quer?

— Qualquer coisa, o que encontrares — peixe, lombo, fiambre, pão e vinho. O que encontrares.

— Vosmecê fica aqui mesmo?

— Aqui mesmo.

— Vou num pulo. É só o tempo de chegar os animais para a sombra.

— Sim.

Eduardo tremia, falava aos arrancos, como se lhe faltasse o ar. O caipira partiu a correr e perdeu-se no mato. Elsa, que deixara a fonte e, na clareira, resplandecia numa auréola de sol, olhava, sem compreender, aquele capricho do marido e, quando o caipira enveredou pelos matos, encarou Eduardo, com uma interrogação nos olhos claros. Ele travou-lhe das mãos frias e, ajoelhando-se ficou a contemplá-la, a adorá-la, enlevado. A voz do caipira perdia-se ao longe, o Eduardo, nervoso, febricitante, disse à mulher um segredo suave que a fez crer.

— Que ideia, Eduardo! Ele perseguia-a, sem deixar-lhe a mão. Isto é um lugar procurado. Que tolice!

— Que importa! És minha! Exclamou, e agarrou-a, cingiu-a, beijando-a, murmurando-lhe aos ouvidos, por entre beijos alucinados, uma só palavra, o seu nome: Elsa! Elsa!

Ela cedia, opondo uma resistência mole, sempre assustada com os rumores confusos da natureza, a andar com os olhos medrosos de um para outro lado. Que importava! Era a vida que exigia o seu tributo de amor. Tudo ora silêncio em torno, uma quietação enervada e lânguida.

— Elsa!

— Não! Eduardo, disse em segredo, trêmula, vencida. Olha... Escuta...

— São os passarinhos. Não há ninguém, Elsa adorada!

As bocas selaram só com um beijo.

O sol, mais alto, estendia, na alfombra da clareira, um lençol de ouro fino. Nunca leito algum nupcial teve tão precioso brocado.

As águas aligeiravam-se abrandando as vozes em murmúrio. Em torno, no bosque denso, tudo se concentrara em religioso silêncio para que soasse isolado, solitário, dominador, o himo suave do triunfo amoroso, todo em sons de beijos. E as folhas, uma a uma, caindo docemente, eram como a saudação festival da natureza àquela vitória humana.

Quando o caipira reapareceu com as provisões num cabaz, Elsa, estendida na grama, a cabeça no colo de Eduardo, dormia tranquilamente, com um sorriso no rosto lindo, que era como o reflexo do sorriso com que a contemplava o esposo.

V

Apesar do frio intenso que, desde o crepúsculo, despovoara a vila, concentrando toda a vida nos lares, o doutor apareceu à noite, muito agasalhado e, logo à entrada, a um homem que esfregava desesperadamente as mãos falando em geada, com desânimo, perguntou por Eduardo. O homem não sabia, saira do quarto naquele momento para agitar-se. Estava transido, tinha os pés gelados, nem os sentia. Irra!

— Está frio, hein? Que tal o começo do inverno?

— Nem na Rússia! E, baixando a voz em confidência: Ó doutor, um conhaquezinho fará mal?

— Não, sendo pouco.

O homem agradeceu e abalou às largas peruadas, encolhido na gola do casacão. Na sala não estava ninguém — as lâmpadas amortecidas davam uma luz triste. No corredor, o carrinho do padre, com o entrovadinho ao lado a ouvir as histórias santas, era só.

O doutor passou pelos infelizes, saudou-os, falando-lhes também do frio, da geada que o céu límpido anunciava e foi-se, ter com o Fonseca, que o mandara chamar a pedido de Eduardo, “que partia na manhã seguinte”.

O Fonseca lá estava no escritório revendo a escrita. A sala de jantar imensa, com todo o fundo apagado, era lúgubre. Em duas mesas apenas alvejavam toalhas.

— Boa noite. Então, que há?

O Fonseca escorregou do banco e informou:

— Que o Snr. Eduardo pagara a conta. Já estava com a bagagem na estação.

— Assim de repente!

— É verdade: de repente. Chegaram do passeio às duas horas, nem almoçaram e logo o criado me veio pedir a conta até hoje e correu à lavadeira e, às cinco, lá foram as malas a despacho.

— E foi ele que me mandou chamar?

— Foi.

— Bem... Manda lá dizer que estou aqui.

E, preocupado, pôs-se a passear cabisbaixo, em silêncio, no estreito escritório atravancado de caixas. Instantes depois Eduardo aparecia risonho. O médico adiantou-se ao seu encontro e foram para uma das mesas, pediram cerveja.

— Que é isso? Então parte amanhã?

— É verdade... Amanhã. E fitavam-se sorrindo.

— Mas... Que resolução foi essa?

Eduardo encolheu os ombros. O médico não se atrevia a lançar a pergunta e ambos, embaraçados, guardaram um silêncio vexado. Por fim, Eduardo assegurou:

— É verdade, doutor. Eu já estava resolvido a acabar com isto... Não era vida.

O médico, muito interessado, deu um puxão à cadeira, chegou-se mais e, com os cotovelos na mesa, perguntou vivamente:

— Então? Houve alguma coisa? Ele acenou com a cabeça. O médico exultou: Ora ainda bem! Parabéns! E...

— Não sei, doutor.

De novo o embaraço tolheu-os. O médico não se conteve:

— O caso era dos mais belos. Não tivera igual na clínica... E então?

— Foi a natureza, doutor. De repente, com mais desembaraço, explicou: Estávamos junto à fonte, a olhar a água...

Calou-se de novo. O médico tinha os olhos cravados atentamente no seu rosto, ele tamborilava com uma faca.

— Eu não lhe dizia? Foi a despreocupação. O senhor vivia aferrado ao terror, escravizado a uma ideia, consumindo em cuidados toda a sua energia cerebral e o cérebro, meu amigo... O cérebro é o regulador da vida, é o registro. O médico estava triunfante. Encheu o copo de cerveja, esvaziou-o de um trago e continuou: O sistema nervoso, meu amigo, não suporta a inércia durante muito tempo — reage e vence ou sucumbe. O senhor não tem lesão alguma, era apenas um “impressionado”, um cativo — a sua vontade fora eliminada. O meio em que se fixava logo ficava viciado, permita-me a expressão, como impregnado de terrores. Tudo recordava a sua fraqueza, os menores objetos contribuíam para a desordem moral. Já viu um assombrado? Tremendo ao leve ruído, vendo espectros em todas as sombras, sentindo-se agarrar por mãos invisíveis, ouvindo vozes no escuro? ... Pois o senhor estava assim. Saiu, distraiu-se ao ar livre, entrou num sítio novo, olhou com olhos límpidos, desanuviados o que sempre via através do medo e realizou-se o que eu esperava, o que fatalmente se havia de realizar. Ai tem. E a água contribuiu para isso, acredite. Foi ela que preparou a reação, o bosque ou melhor: a fonte concluiu a obra. Ah! Meu amigo, a natureza. Enfim... Dou-lhe parabéns sinceros. Apertaram-se efusivamente as mãos. Cheguei a recear, palavra. O seu estado de irritada excitação podia levá-lo a tudo. Não imagina como eu andava preocupado. Realmente... Enfim... Tout est bien qui finit bien. Agora é não ser ingrato, lembrar-se de nós, visitar-nos de vez em vez. Tem obrigação de querer bem a esta terra, o seu verdadeiro templo de amor porque... Enfim... Foi aqui...

Ele concordou:

— Sim, foi aqui. Hei de voltar... Quando por mais não seja, por gratidão.

O médico arrematou sorrindo:

— À ninfa invisível da fonte. Pois ai tem... Um caso admirável. Ninguém o há de aceitar como verdadeiro. O senhor experimentou tudo...

— Tudo! Afirmou Eduardo.

— Foi bastante ficar um minuto entre as árvores, olhando a água correr para voltar... À vida, não é verdade? Capricho. E o homem é assim: uma máquina delicada que com qualquer coisa se desarranja. Ora, vão lá saber, por exemplo: por que um homem de bons costumes, provadamente honesto, comete, às vezes, um crime infame! Uma ideia no cérebro a empecer, a embaraçar o exercício normal das células. É o infinitamente pequeno, que os há no mundo moral, piores, talvez, do que os do mundo físico, destruindo a consciência. É assim. O senhor era o que é: um homem forte, de invejável saúde e estava, para bem dizer, inutilizado. Por quê? Porque tinha no cérebro uma ideia fixa, um grão de areia, um átomo de pó. Varreu-o, ou antes: os ares puros varreram-no e toda a máquina voltou a funcionar com a regularidade integral que a vida exige. Eis o que somos — escravos dos mínimos. E é para ver, meu caro. Quando eu insisto com o governo dizem que sou impertinente, que exijo impossíveis. Está ai a prova. Uma estância como esta não se pode limitar às fontes. Pontes não faltam por essas terras vastas de Minas, mas onde? Em carrascais, em lugares inacessíveis, inóspitos onde, só com imensos sacrifícios, pode o enfermo chegar e manter-se. O tratamento teatral deve ser feito como entendiam os gregos que, ao lado das fontes, levantavam o templo a Asclépio, tratavam de conservar as florestas das vizinhanças, alhanavam arenas para jogos, isto é: auxiliavam a medicina com a sugestão e com as distrações. O deus era um recurso moral e as florestas corrigiam a tristeza, dissipavam os cuidados ao mesmo tempo que purificavam o ar, garantiam a água, e os jogos levantavam os espíritos abatidos suspendendo-os com o entusiasmo provocado pela vitória de um atleta ou de um carro. Vão lá explicar o seu milagre. Ora verdadeiro milagre, pois não.

— Sim, verdadeiro milagre.

— É isto. Pois não calcula a minha satisfação como médico e como amigo. E, se me dá licença... A noite está fria, e creio que ainda tenho um parto. É a vida, meu caro; é a vida que por ai pulula. Nós, médicos, andamos sempre a preparar esta terra de Deus, tão cheia de abrolhos. Somos os capinadores que a despimos das urzes, que são as moléstias, tornando-a sã, para o amor, e, no tempo do fruto, lá o vamos colher. Hoje vou dormir contente com o seu caso, lá pelo nascimento, não, porque agora os frutos humanos já nascem bichados. É uma miséria... Enfim, é mais um casal que entra na comunhão da Humanidade, e um casal inteligente e belo... Belo sobretudo, porque a nossa raça degenera cada vez mais: estamos regressando ao mono. Levantou-se, a mão estendida. Até amanhã. Lá irei à estação despedir-me da senhora.

Quando Eduardo quis abordar a questão do dinheiro: consultas, chamados... O médico repeliu, muito digno:

— Não falemos nisso. Eu nada fiz. O senhor deve tudo a esta terra maravilhosa, às águas e à fonte, lá em cima. A mim, nada. Lembre-se da terra, pague-lhe com a saudade.

— Hei de lembrar-me, doutor.

— Pudera! exclamou o médico a rir.

— Ah! sim...

Seguiram juntos pelo corredor e Eduardo, apesar da oposição do médico, quis acompanhá-lo à porta.

— Não, não venha; está muito frio.

— Qual! Estou habituado à neve.

— Ah! Na Europa... Mas lá há o conforto, que não se conhece neste relaxado país. O senhor chega da rua, a tiritar, e encontra um bom fogo, o punch, o leito aquecido e dorme sem receio dos ventos. Mas as nossas casas? Verdadeiras gaiolas. Ainda não nos civilizamos, meu amigo. Só temos presunção, nada mais. Olhe esse homenzinho da filosofia: muita moral, muito conceito, muita patacoada; não tem um preparatório e vive a encharcar-se de mercúrio. Parofia! Somos assim — um povo de exterioridades — por dentro, ainda os mesmos botocudos. Até amanhã. Foi-se. Eduardo ficou um momento à porta, acompanhando o vulto, que se perdia na sombra do largo, faiscante de vagalumes. De longe ainda o médico exclamou, numa lembrança: E a instalação da loja maçonica!? Pois tem coragem de perder espetáculo tão rico?

— Que fazer?

— Ah! É porque não conhece o pessoal. Vai ser uma delícia. Boa noite!

— Boa noite, doutor.

O céu limpo, bordado de estrelas, tinha um brilho sedoso. Em redor das lâmpadas havia uma teia de névoa. A vila dormia calada, só o ribeirão roncava entre as barrancas.

O hotel, sombrio e deserto, parecia abandonado de todo. Encolhendo-se, Eduardo ouviu vozes na sala dos jornais — era o “filósofo” que embasbacava um marchante goiano que vendera o seu gado e ali fora descansar uns dias. O pobre homem bocejava e o outro ia-lhe desvendando os altos arcanos da filosofia, e adiante, na sombra do corredor, o velho padre, entre o negro que cochilava e o aleijadinho atento, ia dizendo, do fundo do seu carro, com muito vagar e com muita doçura, a desgraça de Job.

— Boa noite. Só o negro não respondeu, cabeceando. Muito frio...

— É verdade, meu senhor. Estou aqui entretendo este pobrezinho com umas histórias dos livros santos.

— Faz bem. Até amanhã.

— Até amanhã. Então, é verdade que o senhor vai deixar-nos?

— É verdade: parto amanhã.

— Que pena! E como isto vai ficar triste...

E ainda Eduardo pode ouvir a voz do sacerdote, dizendo: “À hora da tarde, estando Job à porta da sua casa, viu chegar um moço...” Entrou no quarto, onde a temperatura era tépida e ainda flutuava um fino aroma de essências. Elsa, com os cabelos soltos, toda arrepiada, tiritava, sentada diante do lavatório.

— Que frio! Eugênia adiantou-se para fazer-lhe a trança. Depressa, Eugênia. Estou gelada. É então amanhã?

— Amanhã!

— Bem cedo estou de pé. Quando a criada saiu, Elsa, ao voltar-se, deu com Eduardo parado diante do leito, a olhar — eram os lençois do hotel que o forravam, sem o grande monograma, em relevo, que lhe dava tanta distinção e uma severidade heráldica, sem as colchas de seda, o fofo cobertor felpudo, as fronhas de rendas. Estás olhando? Já mandei tudo. Por uma noite até tem graça.

— Sim, observou ele enlaçando-a pela cinta. Mas olha que esta é verdadeiramente a nossa noite de núpcias.

Ela teve um movimento vivo, um mesmo gracioso.

— Por isso, não... E sorrindo: E lá em cima?

— Ah! Lá em cima... Tivemos sol!

Cedo, ainda escuro, estavam de pé. Eduardo quis ir às duchas pela última vez. Elsa acompanhou-o, ficou em um dos banheiros. De volta, corados, vestiram-se à pressa, tomaram café na sala de jantar e foram para a janela, olhar o lago.

As névoas rolavam densas, todo o fundo da paisagem era um fumo espesso, alvejando. Aqui, ali pelos rasgões, apareciam verdores de árvores, pontas de telhados, às vezes uma casa. As ervas luziam molhadas. Mas o sol rompia o nevoeiro, iluminava-o. Já nos cerros alastravam clarões de ouro e o azul limpava-se a trechos.

As horas passavam vagarosas como se os prendessem à vila. Lá estava a montanha, com o seu dorso imenso coberto de névoa branca como a lã das ovelhas lavadas. Eduardo mostrou-a. Tinha sido ali, num canto verde, entre as árvores. Picaram a olhar, sorrindo.

— Se eu tivesse trazido a minha máquina! ...

— Para quê?

— Ora! para termos uma lembrança.

— Há tantas fotografias aí.

— Sim, da vila... Mas eu queria a fonte.

Riram. Um silvo da locomotiva em manobra tirou-os do êxtase. Já se haviam despedido de todos. Elsa, porém, quis dizer adeus à D. Ursulina, que estava adoentada, com o seu achaque, dar alguma coisa ao padre e ao aleijadinho e lá os foi ver. A boa senhora recebeu-a gemendo, tolhida de dores, a amaldiçoar aquele tempo.

— Não imagina as noites que tenho passado: são dores em todas as juntas, o peito parece que me vai rebentar. Ah! Estas águas são boas, são, para quem tem mocidade, mas para uma velha, como eu, cheia de ferrugem... Esticou o beiço, desanimada. Enfim... Abraçaram-se. D. Ursulina ofereceu a sua casa, em Lavrinhas, uma choupana. Elsa deu-lhe um cartão com o seu endereço, no Rio, e despediram-se: Boa viagem! Sejam muito felizes. Olhe, recomende-me a seu marido e dê muitas lembranças a Eugênia. Boa rapariga. E, baixando a voz: É verdade! Ela não lhe disse nada?

— Não. Sobre quê?

— Sobre o tal sabichão?

— Não.

— Pois, sim senhora — contou-me ela: Agarrou-a, minha filha; agarrou-a, uma noite, no corredor e se ela não fosse quem é, uma rapariga forte, nem sei. Deu-lhe! Deu-lhe mesmo. Deu-lhe de verdade!

— Eugênia! exclamou Elsa sem conter o riso.

— Sim, senhora. Um sonso, o tal sujeitinho. Eu é que nunca me enganei com aquela cara. Homem sem religião... Olhe, eu não vou à estação porque estou como vê. Boa viagem, muitas felicidades e que encontre todos os seus bons.

O padre e o aleijadinho cobriram-na de bênçãos e de louvores. O Fonseca acompanhou-os.

Na estação eram poucos os curiosos — gente da terra, em mangas de camisa, pobres esmolando. O doutor lá estava passeando na plataforma, com grossas luvas de lã, um chale sobre o capote. Elsa, ao dar com ele, ficou atarantada, vivo rubor tingiu-lhe as faces. O médico adiantou-se respeitoso e um menino, com uma linda parasita, seguiu-o de perto.

— O homem do mato, minha senhora, só pode oferecer lembranças agrestes; e tomando a parasita da mão do pequeno, apresentou-a a Elsa.

— Que beleza! Muito obrigada, doutor.

— É bonita, é. Não sou muito entendido nessas coisas, mas um alemão que aqui esteve ficou deslumbrado. Ah! Só os estrangeiros dão valor ao que possuímos.

— Ficará na minha sala de jantar.

Eduardo lembrou-se da grota em que vira Firmino enganchado na árvore coberta de parasitas e disse:

— Lá em cima há lindas. Elsa corou de novo.

—Lá em cima!? exclamou o médico... Em toda a parte. Na Europa isto é uma fortuna. Mas o chefe de trem anunciou a partida. Embarcaram. Boa viagem!

— Obrigado, doutor.

— Felicidades... Minha senhora...

O comboio moveu-se, foi indo.

Eduardo e Elsa, à janela do wagon, acenavam ao doutor que agitava o lenço. À volta, perdendo-se a estação, a paisagem alargou-se deslumbrante, — campos, arvoredos, colinas, palhoças fumegando, alta, soberba, dominando as várzeas, a montanha carregando a floresta nos rijos e fecundos flancos e lá ao fundo, recatada como uma câmara nupcial, os dois adivinhavam a fonte e àquela hora os velhos troncos, os arbustos, as ervas, os nenúfares, os passarinhos, as abelhas, as parasitas, as águas, tudo que ali vivia comentava alegremente, ao calor do sol, aquele idílio da véspera, sob os pendidos ramos.

Eduardo, sorrindo, estendeu o braço na direção da montanha e, como iam sós no wagon, mesmo à janela, em face da natureza esplêndida, beijaram-se.

E o comboio, a toda a velocidade, rompia as névoas da serra.

 

DESAPONTAMENTO

Em camisa, com o colete ajustado, cavando a cinta, Guiomar polvilhava o rosto toda inclinada para o espelho do psyché. O seu corpo, carnudo e bem feito, desenhava-se em linhas soberbas sob a cambraia fina, de uma transparência de tela úmida. O colo nu, muito branco, repulsado pelo colete, subia em duas ondas turgidas, inchando-lhe o peito. O pescoço alto movia-se com uma graça lânguida, sem uma ruga, com brilhos, por vezes, a um toque de sol na fina penugem loura que crescia para a nuca até a cabeleira fulva e cheia que ela retorcera e apertara em espiral.

As botas chegavam-lhe à meia perna, comprimindo a carne que saltava, rica e sadia, retesando a seda das meias e, entre a fímbria da camisa e as ligas, com fechos de prata, transluzia um pouco da coxa marmórea.

Com o alçar dos braços descobriam-se-lhe as axilas fundas, com uma felpuda filigrana encaracolada entre as fitas que se juntavam em laço sobre os ombros lisos. E, de toda ela, da frescura viçosa daquela carne exalava-se um aroma penetrante que impregnava o aposento.

Gaudêncio, em mangas de camisa, ia e vinha parando, por vezes, diante de um móvel para examinar um bibelot ou retorcendo as guias do bigode, distraindo, ficava a olhar o espelho ou um cromo copiado de Cabanel.

Um relógio bateu vivamente. Guiomar suspirou e, voltando-se com pressa, passou ao quarto contíguo. Gaudêncio parecia gozar o perfume que pairava no ar. Caminhou vagarosamente para o divã e, sentando-se, deixou-se ficar com o cigarro apagado entre os dedos, os olhos parados, perdido em cismas.

Ouvia os passos ligeiros da mulher, o farfalhar das sedas e foi quase com espanto que a viu reaparecer pronta, com um costume justo de crépon e um chapeuzinho leve, de palha escura, com flores e gaze.

— Em que instante! ...

— Que horas pensas que são? uma e tanto. Inclinou-se de novo ao espelho do psyché, ajustando o chapéu sobre a massa opulenta dos cabelos e, abrindo uma gavetinha, tirou um broche, as pulseiras, as luvas e, depois que desceu o véu, calçando-as, voltou-se para o marido que a contemplava: Muito bem, estou pronta. E agora?

— Agora?! Agora é o que combinamos: Mandas o teu cartão — ele conhece-te, recebe-te logo e tu dizes-lhe a coisa sem rodeios, francamente: — Que estou assim, sem emprego, vai para quatro meses; e pedes-lhe o lugar de guarda-livros ou outro qualquer, isso pouco importa. Ele sabe as minhas habilitações. O que quero é arranjar-me. E concluiu: Esteja eu de dentro... o mais fica por minha conta.

— E se ele disser que agora não é possível? Se vier com desculpas e promessas, como os outros?

— Ora! Isso depende de ti, afirmou sorrindo.

— Depende de mim! Depende de mim, não! Eu não hei de dizer ao homem: Quero, porque quero!

— Tudo está em saber pedir...

— Parece-te. Picou, um momento, de olhos baixos e disse depois: Eu achava melhor ir procurá-lo de manhã, à casa. Isto de ir ao banco, com tanta gente lá.

Fez um momo, contrariada.

— Que tem?

— Tenho vergonha.

— Ora, vergonha... Ele não gosta que o procurem em casa. Parece que a mulher é muito ciumenta.

Guiomar fitou o marido com um ar descandalizada:

— Quem sabe se ela vai ter ciúme de mim? Ora!

— Não estou dizendo isso, filha.

— ... Nem que ele viesse coberto de ouro! Concluiu e, resolvida, deu mais um olhar ao espelho e despediu-se: Até logo! Afastando, porém, o leve reposteiro, afirmou: Eu vou sem confiança alguma. Enfim...

Ele ouviu-lhe os passos e, quando a campainha bateu no portão, sentindo-se bem, à vontade, encolheu-se no divã para gozar aquela esperança.

A vida ia-se-lhe tornando insuportável com a miséria que se agravava. Tinha todas as joias de valor empenhadas, os recursos de expediente escasseavam e, da manhã à tarde, às vezes até à noite, quando tinha visitas, eram fornecedores ao portão, teimosos, impertinentes, resmungando, falando alto, com ameaças. A conta do armazém crescia e os caixeiros, como se se julgassem senhores, entravam pela casa batendo rijamente os tamancos, atiravam a lenha no pátio, deixavam as compras sobre a mesa e subiam assobiando, com desprezo, como se houvessem feito uma esmola.

Os criados riam, cochichavam pelos cantos. Ele evitava-os, fugia-lhes aos olhares sem energia, sempre receoso de ouvir uma palavra que o ferisse ou de ser abordado por algum mais exigente que reclamasse os atrasados.

A sua vida era comentada nas vendas e nos açougues, entre a criadagem e o que maior desespero lhe causava era ver a mulher, que fora criada com muito mimo, na abundância, aperreada naquela miséria, a conter os desejos, refreando tantas ambições naturais: passeios, teatros, visitas, saraus, uma joia, um vestido.

E lembrar-se ele do passado, do bom tempo da fortuna, quando as gavetas do contador regurgitavam de dinheiro, os armários mal se podiam fechar com a quantidade de lençaria, o guarda-vestidos transbordava e em todos os móveis daquele vestiário luziam joias finas: anéis, pulseiras, broches, brincos, colares que andavam, então, espalhados pelas casas de penhores, vencendo juros avultados, em vésperas de leilão. Um horror!

Os amigos, apesar das aparências enganadoras, como que sentiam o desastre e, pouco a pouco, rareando as visitas, evitavam a casa que se tornava calada e triste, povoada de tédio nas longas horas monótonas das noites, de antes tão ligeiras e alegres.

O relógio tiniu. Gaudêncio acendeu o cigarro, tirou uma baforada e pôs-se a seguir, em espírito, a mulher.

Ela já devia ir perto, com o seu andar ligeiro e gracioso, atravessando aquele quarteirão de comércio, por entre a multidão azafamada dos corretores e dos vagões e mais gente que fervilha na ganância da bolsa, o mundo avido do dinheiro, o caudal ambicioso da fortuna.

Os bancos defrontavam-se recebendo, despejando gente — uns que entravam sobraçando pacotes de notas para o depósito, outros que saíam, à pressa, com maços de contos de reis e, lá dentro, aos guichets, o farfalhar dos cheques, o estralejar das latas que se abriam mostrando pilhas de cédulas apertadas, placas numeradas, verdes de azinhavre, que iam e vinham, recibos garatujados à pressa, o cheiro das notas, o apregoar de centenares de contos, o referver de uma vida atordoadora no exterior e no interior daqueles imensos edifícios obscuros onde, apesar do sol que luzia em todo o esplendor, as chamas das arandelas abriam-se como asas de ouro iluminando o fluir e o refluir da riqueza. Ela já devia ir pela escada do banco, tímida, despertando a atenção daquela gente, para ela, estranha, que se voltava, com curiosidade sensual, sentindo-lhe o perfume, analisando-lhe as linhas adoráveis do corpo, comentando-a, interrogando-se sobre ela: “Quem seria? Que andaria a fazer por ali?” E a maledicência entraria logo com a sua perversidade, pondo uma infâmia naquele desespero, amargando ainda mais aquela angústia.

E ela? Não se deixaria vencer pela sedução do ouro? Ela, tão resignada, não enfraqueceria ao dar com aquela fortuna, vendo aquele incessante passar e repassar do dinheiro de um homem para outro até perder-se no bojo dos cofres escancarados, torres de sonho, castelos inacessíveis de ventura?

Um pensamento atravessou-lhe o espírito como a ligeira sombra que deixa no clarão do sol a passagem alígera de um corvo. O Navarro tinha fama de ousado, citavam-se-lhe as amantes: damas da alta sociedade que viviam das sobras das suas arrojadas operações de bolsa, ostentando cinicamente os lucros do despudor, cocottes que dissipavam à larga. Até na pobreza ele entrava com a sua lubricidade, cevando a desonra de donzelas com mancheias d'oiro, a título de proteção e amparo até o dia em que os pais, afeitos ao bem estar que lhes proporcionara a fortuna infame, temendo uma volta repentina aos duros tempos da fome e do desagasalho, relaxassem a guarda do corpo virgem para que o rico homem, preso à carne pura e nova da infamada, continuasse a regalar com a sua generosidade a casa, outrora virtuosa, indenizando a inocência perdida com a fartura e com o descanso até o dia fatal da saciedade e do abandono.

Conhecia bem o J. Savarro desde os tempos do Auxüiador, grande escritório de penhor agrícola que absorvera, em hipotecas avaras, o melhor das terras cafeeiras da zona do Sul do Estado.

Lembrava-se das suas palestras à hora do café, palestras livres nas quais eram lançados, sem o menor escrúpulo, nomes de senhoras conhecidas em promiscuidade aviltante com alcunhas de cocottes e de bailarinas. E ainda lhe soavam as gargalhadas estrondosas e bajuladoras com que os da roda recebiam e aplaudiam os alardes devassos do banqueiro, que se repoltreava, muito ancho, orgulhoso da sua libidinagem, dando minúcias indecorosas dos seus amores, referindo-se, com ironia cruel, aos maridos ultrajados.

Levantou-se e, passeando pelo aposento, sentia como um remorso de haver mandado a mulher àquela casa. E se ele a cobiçasse? Guiomar tinha todos os atrativos. Era alta, branca, esbelta; a sua voz, grave e lenta, era carinhosa e macia, o seu olhar tinha uma doçura meiga, a sua boca, pequena e carnuda, muito vermelha e úmida, era como uma flor que se entreabria em sorrisos e o seu corpo indiscreto mostrava-se, através das roupas, como se insistisse em dar-se aos olhos; por mais cuidado que houvesse em encobri-lo sempre ressaltava, quando ela se sentava impunha-se, mostrava-se, oferecia-se.

Bateram de leve à porta. Era uma criada a anunciar-lhe — que despachara um homem, dizendo que ele não estava. “Sim!” E o silêncio recaiu. Tornou à mulher. Estaria ela em presença do Navarro? Sim, devia estar, devia estar no acanhado gabinete do banqueiro, separado da sala por um biombo, apenas fechado por uma cortina que o velava às vistas dos empregados. Conhecia-o bem, lá estivera várias vezes. Havia a escrivaninha, um cofre, uma pequena mesa, cadeiras e o divã de couro. Aquele divã! ...

Numa ânsia, com uma grande opressão que lhe pesava no peito, passou ao dormitório e, diante do leito contido pelo cortinado, deteve-se, olhando vagamente: Ali estavam, em desordem, as roupas caseiras de Guiomar, os seus trajos honestos. No chão, sobre o tapete, a sua camisa jazia em rolo. Tomou-a e, apertando-a entre as mãos, cheirou-a com volúpia, como se fosse um ramo branco de flores e o aroma, alma da carne, trescalou alucinante.

Teve vexame de si mesmo. Que loucura! Mas o pensamento atormentava-o e a ideia de um crime passional recrescia diante daquelas roupas abandonadas. Parecia-lhe que a mulher havia partido nua, que errava pela cidade como uma borboleta que houvesse deixado o casulo e gozasse livremente o sol e o ar, vagando de flor em flor. O sangue acendia-se-lhe naquele silêncio da casa, toda cheia de um mistério denunciador. E as horas? O tempo parecia-lhe também haver entrado em cumplicidade, demorando-se para dar ensejo e vagar à prática nefanda.

Que faria ela lá em baixo até àquela hora! Para a conversa bastavam-lhe alguns minutos — sim ou não. Que ficara ela fazendo no escritório daquele homem? E se a vissem! Se algum conhecido desse com ela ali, a sós com o banqueiro? Na sala de jantar tiniam louças. Era, de certo, a criada que arranjava a mesa. Entreabriu a porta e olhou: À mesa alvejava a toalha e, ao centro, num cachepót de Delft, uma latania muito verde espalmava-se.

Lançando rapidamente os olhos ao relógio viu que eram 4 horas. Franziu o sobrolho e, nervoso, retorcendo os bigodes, voltou ao vestiário, atirando-se, de novo, ao divã com ódio surdo à mulher, convencido de que ela se deixara enlevar pelas atrações da riqueza deslumbradora.

E o Navarro, o canalha! Como havia de sorrir quando o visse e como havia de celebrar com mordacidade aquela aventura fácil, levada a efeito no seu próprio escritório, enquanto ao lado, apenas separados por um tabique, os empregados, curvados sobre os grandes livros, somavam parcelas e, mais adianto, o tesoureiro pagava e recebia, assinando cadernetas, inutilizando cheques com a mesma indiferença com que mordicava o charuto.

Não, não havia que duvidar. Viu no cabide um casaco de seda, vestiu-o às pressas, mas logo, retomado de desânimo, num descorçoamento, sentiu uma comoção violenta. A garganta como que só lhe ia apertando em angústia, sentia lágrimas nos olhos e, de pé, deslembrado de tudo, apenas com aquela visão do ciúme, voltando-se, de vez em vez, para olhar as roupas da mulher, deu pela primeira lágrima que lhe rolara ao longo da face, entranhando-se-lhe no bigode.

Reagiu envergonhado da fraqueza e, a passos largos e vagarosos, penteando os cabelos com os dedos muito abertos, tornou ao vestiário, sem coragem de deixar aqueles aposentos íntimos, com medo; dos criados, certo de que todos leriam na sua fisionomia o segredo torturante daquilo que então lhe parecia um comércio infame, um lenocínio torpe, o mais abjeto dos tráficos imagináveis. Pobre Guiomar.

Mas a campainha tiniu. Voltou-se sobressaltado e, olhando desvairadamente em torno, viu um jornal, tomou-o, atirou-se com ele ao divã, abriu-o e esperou.

Ao ruído dos passos de Guiomar sentiu que todo o sangue lhe afluía ao rosto. Não fosse ela perceber que chorara. O reposteiro afastou-se e ela apareceu linda, com as cores avivadas por aquele exercício ao ar e ao sol e, vendo-o na mesma atitude em que o havia deixado, pasmou:

— Ó homem, ainda estás assim?!...

— Estava lendo.

Olharam-se mudos e ela, levantando o véu, disse com um movimento sacudido do busto airoso:

— Pois, meu amigo... nada!

— Como!?

— É o que te digo... Que agora não é possível, tem até empregados demais. Que lamenta não te poder servir e por aí além...

E ia descalçando as luvas que resistiam como se sentissem deixar a pele fina, macia e cheirosa daquelas mãozinhas brancas. E ele olhava sem uma palavra, espantado, surpreendido, como se lhe parecesse impossível que o Navarro negasse alguma coisa àquela linda mulher que ali estava mais bela e mais sedutora que nunca. E, com uma ponta de despeito, levantando-se molemente, resmungou com ódio, por entre os dentes cerrados:

— Idiotas!

REVENDO O PASSADO

E aqui estamos nós, à margem do rio, à sombra das árvores, que tantas vezes nos viram chegar, com as névoas de junho ou com os luares de outubro, guiando os passos tímidos de alguma rapariga, ainda inexperiente, que se encolhia, toda transida de medo, assustada com o rumor do vento nas árvores ou com uma folha morta que caía roçando-lhe a nuca.

Entrávamos no hotel, sempre cheio de besouros, e, aos berros, atirando bengaladas às mesas, atroando o silêncio da casa imensa e lúgubre e acordando o criado, que dormia à sombra do balcão, pedíamos vinho e ovos, que outras coisas não chegavam a estes confins da cidade. Como vai longe esse tempo e como está tudo mudado. Nós envelhecemos e mirramos, a cidade rejuvenescer e, dilata-se.

E ainda falamos, com orgulho fátuo, da nossa superioridade sobre as coisas. Eu preferia a longevidade material da pedra e do ferro, da árvore e do pântano, à eternidade espiritual que nos prometem. Olha esta árvore — parece nova: tão viva, tão verde, cheia de botões, prestes a florir, já era uma relíquia citada quando aqui vinhamos. E o rio lá rola eterno nas suas águas, sempre soberbo e cantando, e nós começamos a envelhecer, vergando, com a cabeça cheia de cabelos brancos e rugas nas faces. Bom tempo!

Vivíamos discutindo o futuro, que tão diferente nos saiu dos planos que esboçávamos. Tu, sempre com visões poéticas, abarrotado de romantismo, querias possuir um castelo de nome sonoro, reunir mesnadas e dominar, do alto da torre, o burgo humilde.

Falavas dos homens de armas espalhados pelos adarves, com lanças e buzinas, de uma sentinela vigiando a ponte, de roldas e sobre roldas caminhando lentamente a espiar, por entre as ameias, o campo e o rio. E nas salas imensas, abobadadas, com panos e armas pelas paredes fortes, ao jorrar dos vinhos e ao som das músicas dos menestréis, desorevias trebelhos alegres de histriões e de moças, ao calor das chamas de carvalhos inteiros, arrancados com as raízes, que ardiam no fogão colossal, com um fulgurar de incêndio que acendia esbraseadamente os vidrais, dando razão às lendas medrosas dos vilões — “que eras o próprio demônio e o teu castelo uma das entradas do inferno”. Lembras-te?

Américo sorriu, levando à boca o seu copo de whisky e soda. Estavam à beira do Tietê, numa clareira da Floresta, abancados a uma mesa rústica, estalando sob os pés as folhas secas.

A tarde caía afogueada e silente.

A pouca distância o automóvel esperava guardado pelo chauffeur.

— Nem te lembras mais desses sonhos. Até tentaste com eles um poema.

— Não, lembro-me, às vezes. Mas os sonhos são como as andorinhas: querem calor, sol de mocidade. Chegam, procuram o ninho tépido e, só encontrando frieza e cuidados, batem asas e desaparecem — vão buscar espíritos mais árdegos, almas mais novas. Deve haver, por aí, algum rapaz com as minhas ideias, as ideias desse tempo, porque os sonhos não morrem — passam de um a outro, a gente vai-os deixando ficar na vida e, como nada se perde na natureza, a fantasia não deve constituir exceção.

Eu acredito que algum burguês, dos que aqui encontrávamos nas noites quentes, refrescando a cabeça atormentada pelos cálculos ambiciosos e pela caspa irritante, tivesse recebido a aura de ideal que eu espalhava quando descrevia os meus projetos cerebrinos e, levando-a, como o inseto leva o pólen de uma flor à outra, a houvesse inconscientemente transmitido, num beijo, a alguma mulher gerando um poeta.

Anda por aí um mocinho que escreve sobre torneios e castelos. É possível que seja meu filho, em parte, filho espiritual apenas, porque o seu verdadeiro pai deve ser um dos tais homens que vinham interromper os nossos devaneios noturnos com o estrepitar dos dados, com os quais jogavam a cerveja que bebiam a grandes sorvos ávidos e com estrondos de arrotos. Não creio que os sonhos pereçam — o seu número é limitado como o das espécies botânicas — o que há é que se desenvolvem mais em certos espíritos do que em outros, na medida da maior ou menor potência intelectual, da maior ou menor cultura.

—Tens razão: nós somos simples reprodutores. Depois de molhar os lábios Albino continuou: Agora podias, se quisesses, realizar a fantasia desse bom tempo. Não digo que te mudasses para as margens do Reno, tens aqui o Tietê. Mandavas edificar um castelo à beira da água e restauravas, com brilho, a vida medieval em pleno século XX. Até eu era capaz de deixar o meu boulevard e atravessar os mares para vir às tuas caçadas com gerifaltos ou ao som de trompas e com cães e às tuas festas de inverno com trovadores e damas.

— Não, meu caro: falta ao Tietê a tradição. Eu só compreendo este rio com as monções, com bandeirantes armados, com índios cativos e capivaras dormindo entre as ervas altas das margens.

Cada região tem o seu caráter próprio, a sua lenda e a sua história: por mais que nela trabalhe a civilização não consegue tirar o fundo essencial da sua natureza, nem despojá-la daquelas louçainhas de poesia com que a ornaram os homens das primeiras eras. A Alemanha é e há de ser sempre, para a imaginação, aquela forte e agreste Germânia do Libellus aureus, de Tácito. O Egito, apesar de todos os calafetos e envernizamentos com que os ingleses o remoçam e adaptam ao século, não deixará jamais de ser o venerável país faraônico, país do mistério e da Morte. Jerusalém há de ser perpetuamente a triste cidade malsinada na profecia. O Reno não deixará jamais de ser o rio sentimental das bailadas. Assim, os que, daqui a quinhentos anos, vierem gozar as manhãs ou as tardes à beira deste rio, contido, então, por muros de granito lavrado, cintado de pontes, com barcos de recreio cruzando-o abaixo e acima, com um pouco de poesia na alma, hão de ainda ouvir, no perene murmúrio da corrente, o eco das cantigas dos exploradores ousados e a triste lamentação dos Índios prisioneiros, cruzando-se, pairando sôbolas águas. As primeiras impressões subsistem eternamente. Demais, este rio é violento, caprichoso, insubmisso: de tempos a tempos cresce assoberbado, transborda, derrama-se pelos campos e ... seria um incômodo ter de aparelhar faluas para mandar ao mercado à carne e à fruta. Não tenho suserania, mas não estou triste com o meu destino — se não é dos mais belos é, pelo menos, tranquilo.

E, francamente te digo: não nasci para a agitação e para a aventura e hoje, se Deus me desse a escolher uma vida, entre estas duas — governar homens e conduzir batalhas ou ficar inerte, cravado na terra como uma árvore, eu preferiria ser um cedro ou um pinheiro para viver sossegado, com as minhas raízes bem entranhadas no solo e as minhas ramagens bem abertas ao sol, bailando às brisas e acolhendo passarinhos. O que eu sou, meu amigo, é um grande preguiçoso.

— E eu outro!

Bocejaram.

Na frescura da tarde passava um leve aroma de campos floridos. O chauffeur, sentado à sombra de uma árvore, com o queixo nos joelhos, olhava melancolicamente, seguindo o voo rasteiro das andorinhas. Albino rompeu o silêncio:

— Ainda existe a nossa casa da rua dos Bambus?

— Não. Eu a vi cair. Os muros, que eram de taipa rígida, resistiram longamente à picareta. Hoje há lá um palácio.

— E as raparigas do nosso tempo? Nunca mais as viste? A Lucília, a Engracinha, a Eugênia, com a mania dos versos...

— A propósito: Sabes que foste injusto com a Engracinha?

— Como injusto?

— Já te não lembras da cena tremenda que fizeste quando, uma vez, a encontraste em conversa com o Louro? ...

— Sim...

— Ela disse-te que estava defendendo a Tuca, aquela rapariguinha loura, que vivia com o Mendonça e que acabou tísica, cuja morte deu ao Fonseca pretexto para quebrar quatorze versos que foram cair, com mais dureza do que a terra, sobre o caixão da pobrezinha...

— Sim.

— Pois a Engracinha dizia a verdade, mas tu, com os teus furiosos ciúmes...

— Não, não foi por ciúme... Francamente — eu já não suportava aquela mulher. Dois anos! Era quase um casamento. Foi um pretexto.

— Pois se te lembras, quando a despediste, ela disse-te que estava grávida e jurou sobre o ventre já crescido que o filho era teu.

— Ah! Jurou. Todas juram.

— Pois, meu amigo, não jurou falso. A filha é tua.

— A filha! Pois então eu tenho uma filha em 8. Paulo! Estás brincando.

— Falo sério.

— E por que afirmas que é minha filha? Quem sabe lá!

— Por quê ? Porque é o teu retrato.

— Pobrezinha! Então deve ser hedionda.

— Não, por isso não: Minha afilhada parece-se extraordinariamente contigo e eu não admito que haja criança mais bela. A outra é encantadora! Os olhos, então, são teus: grandes, claros, lânguidos...

— E achas que tenho nos olhos todos esses encantos?

— Hoje não, já os tiveste. A Eulália morria por eles.

— Que Eulália?

— Homem, parece que o Lethes corre agora no leito do Sena. Tu esqueces facilmente. Aquela da Tabatinguera.

— Uma, sardenta? ...

— Não, homem de Deus! Uma morena, que cantava romances.

— Filha de um mestre de obras!

— Isso!

— Sim, lembro-me agora. Belo colo de rapariga! Mas vamos à pequena, que o caso me está interessando deveras.

— Encontrei-a, uma vez, com a mãe — já moça e lindíssima. A Engracinha apresentou-me. Pois, meu amigo, foi como se me houvesses aparecido numa visão rápida. Eu via, através daquela beleza, todos os teus traços, cobertos, com mais cuidado, por uma carne mais tenra, colorida com mais finura e ameigados por um arzinho de ingenuidade que lhe aumentava o encanto. Havia naquela criança alguma coisa de ti — a tua assinatura lá estava. Engracinha, percebendo a minha perturbação, disse suspirando: “Eu só queria que ele a visse agora, ele que fez tão mau juízo de mim, que foi tão ingrato comigo. O senhor não imagina como me tenho sacrificado por esta filha. Enfim... Espero em Deus vê-la ainda feliz...” Estendeu-me a mão e lá foi.

Pobre Engracinha! Era uma ruína: magra, a cabeça toda branca e aqueles lindos olhos, que fecundaram tanta poesia, anuviados, sumidos no fundo de duas covas. A desgraçada dera tudo à filha. A pequena chama-se Dionísia.

— Alta?

— Alta e esbelta como uma palmeira; a pele fina e rosada, uns cabelos admiráveis. Mas os olhos... Os olhos! ...

— Tu reparaste! ... Notou Albino, com malícia.

— Para convencer-me da tua injustiça.

Houve um silêncio. Por fim Albino perguntou, garatujando na terra com a bengala:

— E sabes onde está morando a Engracinha?

— A Engracinha?! A Engracinha morreu,

— Morreu?! E ela?

— Vive em Santos, com um comissário.

— Vive, dizes...

— Sim, vive.

— Não casou! E atirou a mão num gesto de abandono...

— Que havia ela de fazer? Pobre, sem um parente e, demais a mais, lindíssima!

Albino ficou um momento de olhos perdidos.

— Dionísia... murmurou. Quem lhe teria dado este nome?

— O padrinho, com certeza. Eu não fui. Ela costuma aparecer por aqui, tenho-a visto nos teatros, sempre com o comissário que a vigia com ferocidade. É de um ciúme! ... A mim mesmo tem ele desfeiteado.

— É que sentiu o perigo.

— Não, olho-a sem intenção. É formosa, mas, sinceramente, o que em Dionísia me seduz é ... como direi? É ... o passado que ela me recorda. Vendo-a, lembro-me de ti, da Engracinha, da Lucília, do Mendonça, do Cláudio, com as suas ideias sobre a “redenção da mulher”, das nossas noites de literatice e troça, dos nossos passeios a este bosque: tu com a Engracinha, eu com a Paula — que está casada e gorda e tem dois filhos formidáveis. O marido é dono de uma olaria em S. Bernardo.

— Pois eu daria alguma coisa para ver a pequena. A mãe era bonita, tinha um corpo admirável.

— E ela, então? E uma escultura. Mas... acho melhor que a não vejas.

— Por quê?

— Porque... Francamente — e sorrindo: ficarás com pena de ser o pai.

— Oh!

— Pois sim, pois sim. Mas vamos que já são cinco e tanto e as nossas mulheres esperam-nos.

Levantaram-se. O chauffeur correu a acionar o motor do automóvel que começou a trepidar, aos trancos.

Os dois subiram para o banco da frente. Américo calçou as grossas luvas e manobrou para a volta avançando, recuando, até que pôs o veículo no caminho; regulou a marcha e foram saindo maciamente por entre as árvores cheias de cigarras.

— Está uma tarde linda.

— Admirável!

E, na estrada, com um arranco, o automóvel partiu a grande velocidade

À NÉVOA

No fundo céu anuviado pela garoa a lua sem brilho corria como a fugir. Fazia frio; um vento agreste soprava transindo. Os lampiões irradiavam na bruma semelhando, à distância, imensas aranhas de ouro, adormecidas nas suas teias rútilas e o silêncio só era perturbado por um fino correr de água em algum valo, entre as ervas. Os dois amigos, muito encolhidos nos pesados capotes, esperavam pacientemente o bonde, resguardados pela ramagem frondosa de uma mangueira. Era tarde. Nem uma casa aberta.

Nos jardins os cães, soltos para a vigia, iam e vinham ligeiros, com o focinho de rasto, farejando às sombras ou arremetiam ferozes, pondo-se de pé de encontro aos portões, aos arrancos, ladrando furiosamente à passagem de alguém. Apitos trilavam de quando em quando.

Luciano esfregava as mãos regeladas, resmungando indignado contra a demora do bonde. Paulo, resignado, assobiava baixinho um trecho de ópera.

Alargou-se subitamente pela rua deserta um pálido clarão — os dois olharam para a altura. O nevoeiro rasgara-se em uma aberta e a lua brilhava logo, porém, foi amortecendo a claridade como se a terra a sugasse e, de novo, espalhou-se a velada tristeza. Luciano fincou a bengala no tronco rugoso da mangueira e, firmando o ombro ao castão, disse de repente:

— E a Silvia?

— Estava justamente pensando nela.

— Está divina! Eis ai uma que lucrou com o casamento.

— Não, não é isso: é que a viste em casa, movendo-se livremente, desembaraçadamente no seu meio. Na rua é ainda a mesma achamboada, a mesma caipira que nos fazia sorrir com o seu acanhamento e com o inseparável lencinho de rendas. Lembras-te do lencinho!

— Se me lembro! E aquele famoso chapéu que parecia um telhado coberto de pombas?

— Era um casal, não exageres.

— É que não o viste depois.

— Vieram filhos?

— Se vieram!

Eram alto. Luciano voltou-se inopinadamente para a treva da rua silenciosa. Parecera-lhe haver ouvido o tilintar de um bonde. Envoltou-se:

— Como diabo pode um homem vir habitar um bairro como este! Parece que o Lourenço quer evitar os amigos. Estamos aqui há mais de meia hora e nem sinal de bonde.

— Meia hora, não digo: há uns cinco minutos. Que queres? foi ela que o exilou neste silêncio para ter um pouco de roça e poder criar à vontade, coisa que lá em baixo os fiscais não permitem. Já aqui dormi uma noite. Ah! Meu amigo, acordei em plena bucólica: vacas mugindo, ovelhas balando, aves de toda a casta acudindo ao milho e ela, admirável de rusticidade, bela, meu amigo, verdadeiramente bela: de branco, cabelos soltos, ainda úmidos do banho, brilhando como as frescas ramagens molhadas de orvalho, alegre entre os animais que a cercavam. Um puro Ruysdaêl. Lourenço olhava extasiado e sorria, o nosso Lourenço. Saiu-nos um Melibêu esse que, durante tanto tempo, iludiu-nos com os seus ares magníficos de Petrônio. E é isso, a divina Sílvia: uma mulher de interior.

Em casa, vestida simplesmente, à vontade, como ela diz, com os maravilhosos cabelos apanhados, um argolão de ouro no punho, os sapatinhos brancos, o avental e a sua graça esperta e solicita de caseira, é realmente encantadora e eu compreendo que um homem se apaixone por ela, não um homem como eu, que vivo das exterioridades artificiosas, mas um homem como o Lourenço, que degenerou em penate. Expõe-na, porém, ao sol das ruas ou à luz forte de um salão e hás de ver como todo o encanto desaparece e a divina criatura fica reduzida a um trambolho, a ansiar sufocada e a corar pudibunda. As sedas deformam-na e o colete, que é o molde da elegância, tira-lhe a flexibilidade, achata-a, torna-a hedionda.

Sílvia é a mulher ideal para os que vivem a bradar contra os vícios do tempo, que são as delícias da civilização. Essa é a esposa, a mãe, a matrona que fazia o orgulho honesto de Roma. Mas eu sou dos que preferem à fecunda Cibele, de entranhas possantes, a Vênus estéril que atravessa a vida irradiando beleza e graça. Da mulher quero o sorriso límpido, quero os movimentos airosos, a palavra bem soante, o olhar luminoso e o perfume de flor que a fecundidade transforma em cheiro de fruta. O pomar é mais útil, mas o jardim é mais belo.

A inefável bondade dessa divina Lararia encanta quando não há, para contrastar com ela, o caminhar esbelto e senhoril de uma mulher de raça, um jeito de abrir e fechar o leque, um certo franzir e abotoar de lábios, um dizer com o olhar o que não ficaria bem pronunciado pelos lábios, um esquivar-se que não é mais que uma promessa, um nada com o aspecto de um mundo: a ciência de estar, de sorrir, de trazer uma flor, de traçar uma mantilha, de entregar os ombros mais ao manto ao sair do baile, de encetar uma palestra e até de contrariar uma intenção sem a brutalidade do amuo, mas com a protelação de um sorriso.

Eu entendo que a mulher devia estudar longamente, com exames, a arte de ser “feminina”, como o homem estuda os diferentes ramos da ciência para embelezar o mundo, facilitar o convívio e suavizar a vida, dando ao seu semelhante todos os gozos e quase o poder de um deus. Não sou dos que exigem da mulher a colaboração direta na ação social — o seu fim é compensar. O homem é uma utilidade como a ciência; a Mulher deve ser apenas Beleza, como a Arte. O que eu exigiria dela seria uma educação completa que a habilitasse a ser simplesmente... Mulher.

— Alguma coisa como doutora... em encantos.

— Sim. A civilização antiga, se assim posso dizer, sem ofensa ao Progresso, exigia da mulher o mesmo ou pouco menos do que exigia do homem. Ela disputava na arena, celebrava nos templos, discorria nos pórticos e até arrojava dardos, como essa formosa virago que pelejou ao lado dos troianos. Educava-se, enfim, criando aptidões para o meio e para o tempo em que vivia e hoje, que vemos nós? Nem força nem beleza, nem agilidade nem graça, caricaturas de tudo: a bicicleta, que é, talvez, a redução do plaustro, a peteca que é o aviltamento do disco.

Há uma coisa chamada “decência” que obriga a mulher às mais absurdas contrafações: se ri, porque é alegre, acham que não tem compostura; se conversa sem o acanhamento, que é a expressão externa da virtude, não em murmúrio, mas fazendo vibrar o cristal da voz, pondo, aqui e ali, uma centelha de espírito, o fulgor de um comentário imprevisto, é pretenciosa; se veste com propriedade e elegância, é fútil; se se inclina, com especial simpatia, a um amigo da casa, é desonesta. De sorte que, para a sociedade banal que tanto escrupuliza, a verdadeira, a perfeita e única mulher é a que gera sem descontinuar, com outonos certos como os da terra.

Acendeu um charuto e continuou no mesmo tom preguiçoso

— Sei que há mulheres, como essa divina Sílvia, que nasceram para o lar e que, fora do lar, longe do fogo de Héstia, são verdadeiras monstruosidades, não me refiro a tais exceções, que vem diretamente do tempo dos gineceus — essas, se as deixássemos no esplendor da vida mundana, ficariam atordoadas como uma criança que se perdesse na multidão. Falo das outras, das muitas que por ai há acalcanhadas pelas convenções absurdas e pelos maridos tiranos.

Fazem-me pena, com franqueza: lembram-me as lindas garças que nasceram nas campinas verdes, entre flores e luz, à beira dos lagos límpidos onde banhavam as penas claras e que se vem, de repente, encerradas em prisões de arame, com uma celha de água lodosa que lhes vai dando à plumagem nítida uma cor amarelada e suja.

— Nem todos pensam como tu.

— Fingem não pensar, por hipocrisia egoísta. Todos os seres, todas as coisas, aspiram à Luz, que é a manifestação da beleza radiante. Eu não admito, não compreendo, que um homem prefira a uma mulher como a Olga, uma simpleza como a filha daquele teu amigo de Saquarema, que é a última palavra no gênero “natureza”. Vê-se bem que daqueles flancos fecundos há de rebentar uma fartura de Humanidade. Será uma estupenda máquina de procriar, mas nunca uma mulher. A glória de ser mãe não vale a glória suprema e ideal de ser bela. Entre uma exposição de abóboras e outra de camélias não hesito — vou direto à segunda.

— E a moralidade?

— Que moralidade? a virtude, o exclusivismo conjugal? Meu amigo, não entremos nesse assunto melindroso. Começo por negar a moralidade convencional. Se é o ato que é imoral então combatamos o casamento por obsceno: se não é o ato e sim a preferência, nesse caso o culpado é o marido que não soube impor-se, que se deixou vencer por um concorrente. E acreditas na perfeita virtude, que é a absoluta pureza da alma? Essa desaparece com o primeiro namoro, às vezes com a primeira boneca. Aceitemos o mundo com as suas imperfeições admiráveis. A mulher é mais alguma coisa do que a carne que gera, a Deméter fecunda: ela é a alegria do olhar, a sedução do espírito, o encanto mais delicado da vida. Se visses a divina Sílvia como eu a vi nessa noite estupidamente tranquila que passei naquela casa: à mesa, à luz do gás protegida por alparluzes de porcelana, calculando o tempo da saída das ninhadas, enquanto o Lourenço lia, com muito interesse, uma revista financeira...

— E tu?

— Eu? Contemplava a lua e ouvia a voz monótona dos sapos que lá andavam pela horta. Francamente: Chama-se a isso viver? A mulher é um ornamento vivo para ser admirado e gozado. Lembro-me sempre de uma visita que fiz a certo banqueiro, grande colecionador de bronzes e de porcelanas. Passei uma hora deliciosa na sua sala, onde há verdadeiros primores, e estava justamente contemplando a estatueta de um Buda, de porcelana dourada e decorada a esmaltes, quando a senhora apareceu. Imagina um elefante no Partenon entre os deuses, ao lado da Minerva de Fídias. O próprio cavalheiro compreendeu o disparate e, com habilidade, fez sair a criatura incongruente a pretexto, talvez, de dar uma vista de olhos à mesa e aos vinhos. Agora imagina o efeito que produziria entre aquelas magnificências, que valem duas centenas de contos, uma linda e graciosa mulher como a esplêndida, a decorativa Lúcia!

Um pequenino foco apareceu ao longe, sumindo, por vezes, e, ao tinir da campainha, os dois, que ainda hesitavam, adiantaram-se vagarosamente. Luciano, de cabeça baixa, riscando a terra com a bengala, exclamou, de repente:

— É verdade: garantiram-me que vai casar.

— Quem? Lúcia?!

— Sim, e — o que é verdadeiramente extraordinário: — por amor.

— Por amor! Uhm... não creio. Lúcia é uma mulher saturada de civilização: aos dez anos marcava cotillons em Petrópolis, aos doze inaugurou as suas quintas-feiras. Conheço-a desse tempo. É uma super-femina, meu amigo, e o amor é um instinto rudimentar: só os simples amam. O que nós outros, por eufemismo pudico, chamamos amor, é alguma coisa como um esporte elegante — simples jogo de prazer, uma partida marcada a beijos, que termina num delírio rápido, sem resultado efetivo para a Humanidade. Amar é imaginar o real e nós... realizamos o imaginário. Os lenhos arianos, de cujo atrito saltava a centelha sagrada, são e hão de ser, por todo o sempre, o símbolo da aliança amorosa transmitindo o lume que perpetua o esplendor da vida. Nós, os civilizados, queremos uma luz mais bela, mais pronta e mais fatigante, e buscamos a eletricidade. A lâmpada de Edison está para o fogo dos arias como a nossa paixão está para o verdadeiro amor. Posso lá acreditar que Lúcia... Quem é o noivo?

— O Paiva.

Paulo ficou um momento pensativo, por fim disse vagarosamente:

— É um belo homem... É ... e forte. Enfim... A existência da alma feminina só se demonstra por... absurdos. É até capaz de dar uma excelente mãe de família.

— Da espécie da Sílvia.

— Ou pior.

Como o bonde vinha perto aproximaram-se da linha e Luciano sussurrou:

— Deixa lá, homem... Apesar de todos os progressos o coração conserva-se irredutivelmente fiel aos primeiros princípios.

— Não é o coração, enganas-te.

Mas o bonde passava e os dois, rindo, tomaram-no de assalto.

CONFIDÊNCIA

Deixando-se cair molemente na otomana, Alice, enclavinhando os dedos, que estalaram, derreou o busto salientando rijamente o colo, a contorcer-se com a graça preguiçosa e lânguida de uma cobra. Como esticasse as pernas, os pequeninos pés escaparam para o pelego fulvo, saindo dentre as rendas da saia, calçados em borzeguins de camurça, finos, esguios como dois focinhos de galgos. Num movimento arrebatado atirou para traz os braços emoldurando com eles a cabeça e, franzindo os olhos, trincando o lábio, ficou a balouçar os pés como alheia a tudo, seguindo um sonho.

A câmara, conservada em meia luz, com os Stores de bambu e as cortinas corridas, recendia ainda ao aroma do último pivete queimado no defumador japonês. Só um raio do sol, descendo de alto, em frecha, brilhava naquela penumbra elegante e voluptuosa, fazendo reluzir a coxa de bronze de uma esbelta Diana, que parecia formar o salto para precipitar-se da coluna, em seguimento da caça.

De pé, junto ao piano aberto, Leonor folheava maquinalmente um poema de Saint-Saëns. Fora, no jardim, ao sol, irritante, arripiadamente o jardineiro afiava o alfanje e era esse o único ruído que, àquela hora, amoílentada e quente, atravessava o silêncio adormecido do bairro fidalgo.

Alice atroou a câmara com um bocejo cavo e logo desatou a rir vendo o ar espantado, quase repreensivo, da amiga que se voltara.

— Desculpa-me. Estou com tanta preguiça! E dobrou-se mais, deitou-se quase, muito lânguida, de olhos no teto.

— Se estás com sono, dize sem cerimônia.

— Eu! Sono? É coisa que não tenho. Estou mole, é sempre assim. Às vezes meto-me aqui e fico horas e horas estendida no divã a olhar o teto, os quadros, imaginando coisas... É tão bom imaginar, não achas?

— Por que não saís?

Encolheu os ombros e, como fosse escorregando, firmou-se em uma das mãos.

— Queres que te diga? Preguiça. Vestir- me, tomar o bonde, ir por aí fora até à cidade com esse calor ... Fez um momo. Se eu pudesse fazer tudo isso sem sentir garanto-te que ninguém me encontrava em casa. Se eu te disser que estou com um vestido em prova há mais de quinze dias e não me sinto com ânimo de ir à costureira... Fui sempre assim, desde menina. O meu maior prazer era ficar estendida em uma cadeira ou na rede sonhando, fazendo castelos. Eu, é porque sou preguiçosa, senão havias de ver os lindos romances que eu faria. As ideias que tenho! O que imagino! O que invento! Às vezes chego a desconfiar de mim, tenho medo de acabar louca, palavra! Desatou a rir, um riso infantil, alegre, vibrante, e de repente, erguendo-se, pôs-se diante da amiga fitando-a com um olhar que reluzia, malicioso e vivo. Passou-lhe um dos braços em volta do pescoço e, reclinando a cabeça sobre o seu ombro, disse-lhe: Olha, vou contar-te o meu segredo, é engraçado. Queres ouvi-lo? Fala. A outra sorriu baixando o olhar sobre o rosto moreno, mirando enternecidamente os grandes olhos que a contemplavam com enlevo de amor. Queres ouvir?

— Sim; quero.

— E prometes guardá-lo?

— É assim sério?

Ela sacudiu-se encolhendo os ombros o arruinou:

— Vamos tomar cerveja gelada! Está tão quente...

— Não.

— Champanhe...?

— Nada. Basta-me o teu segredo.

— Estás ardendo em curiosidade, hein! Imaginas um pequenino romance... Fez-lhe uma carícia no rosto e logo, deixando-a, espichou-se na otomana, cruzou as pernas com ar estroina e disse: Tu sabes que o Zico foi meu namorado?

— Não sabia.

— Pois foi. Amamo-nos muito — ele era preparatoriano e eu uma menina de vestido curto. Bom tempo! Ele deve ter ainda cartas minhas. Que cartas! Quanto eu daria hoje para vê-las. Apartamo-nos — eu fui com mamãe para a Europa, ele ficou aqui. Matriculou-se na Escola, apaixonou-se pela Elvira, deu em sportman: a remar, a jogar o crichet, a fazer armas. Esqueceu-me, enfim. Quando nos tornamos a ver eu era noiva e ele um rapaz sisudo, de grandes bigodes, muito cheio de ciência e robusto como um hércules. Falamo-nos sem emoção — ele deu-me senhora, eu correspondi com um ãr. Mas não pude conter-me e uma só das minhas gargalhadas destruiu todo o formalismo cerimonioso que me parecia ridículo entre parentes.

Zico, nos primeiros tempos do meu casamento, mostrou-se retraindo: tratava-me com reserva, parecia evitar-me e era um trabalho para arrancar-lhe uma palavra. De repente começou a fazer-me a corte abertamente, escandalosamente, mas com muita gentileza e um chie cativante. É por ele que eu sei o tempo das flores: as primeiras orquídeas, as primeiras violetas são sempre as que ele me oferece.

Pensei, a princípio, em demonstrar-lhe que não me agradavam nem convinham tais presentes e muito menos os formidáveis apertos de mão com que correspondia aos meus, mas... para que zangar-me? Demais não imaginas como ele é ornamental — à mesa, no salão; e inventivo, gracioso e alegre como nenhum outro. Passa-se com ele uma noite encantadora e se é admirável interpretando Chopin ou Mendelssohn é incomparável tocando uma valsa. Um perfeito homem. Precisas vê-lo, Leonor.

Um dia — não sei como foi — distrai-me e, irrefletidamente, correspondi ao seu aperto de mão. Então, abrindo muito os olhos grandes num tom de voz estranho, disse: Queria que visses a cara que ele fez, minha filha. Ficou atordoado e, durante toda a noite, andou pela casa como um homem que houvesse bebido. E nós é que somos nervosas, comentou a rir. Confesso-te que fiquei arrependida e jurei nunca mais repetir a brincadeira, mas, no dia seguinte, nem eu mesma sei como foi. Ele sorriu, levou a minha mão aos lábios... Senti todo o sangue subir-me ao rosto. Fiquei irritada, frenética, com vontade de chorar, de gritar, de romper com ele. Mas tudo passou. Ao deitar-me pensei no caso e ri e agora estou tão habituada, que não ligo a menor importância aos tais apertos de mão: aceito-os, retribuo-os naturalmente. Às vezes, porém, sabe Deus como me custa a conter um grito.

— E ele?

— Ele? Sei lá! Riu-se e ficou um momento em silêncio, de olhos no lustre que brilhava prismaticamente à luz viva do raio do sol oblíquo. Achas que faço mal? Perguntou por fim.

— Não sei; isso é contigo. Se não tens intenção...

— Como não tenho?

— Ah! Tens?

— Certamente. Eu faço isso para distrair-me.

— E isso... distrai-te?

— Sim, distrai-me. Baixou a cabeça e ficou um momento a repassar maciamente a mão pelo damasco da otomana; depois, em voz ressentida, um tanto trêmula, continuou: Distrai-me e eu preciso bem de distrações; preciso de alguma coisa que me preocupe, ou melhor: que me perturbe. Vivo muito só, muito triste e muito desiludida.

— Como?

— Como?! Olharam-se longamente e Alice sorriu com tristeza. Não se contendo mais exclamou com uma voz comovida: Como?! Pois meu marido...

— Que tem?

— Não viste então! É aquilo sempre, invariavelmente: o mesmo homem delicado, de uma distinção que me vexa, que me humilha, com mil cuidados que me revoltam. Não tem uma franqueza, não se permite uma liberdade: sou para ele uma criança, uma... não sei quê. Às vezes até... Hesitou um momento, pálida; mas afirmou: é mesmo. Dando, porém, com os olhos de Leonor que ardiam de curiosidade, externou o seu pensamento: ... Fico com vergonha... lembro-me de meu pai. Eu vejo os outros maridos, não são assim. Afinal todos nós criamos um tipo ideal de esposo, não é?

— Mas teu marido é um belo homem; moço, nobre...

— É... É... Mas tem educação demais.

Leonor rompeu a rir da frase ingênua e, curvando-se, assim pode ver os lindos olhos de Alice marejados:

— Então querias que ele fosse um grosseirão, um áspero! ...

— Não, isso não. Mas... eu imaginava outra coisa. Teve um arfar que lhe encheu o colo farto e, endireitando-se, com um brilho de fogo nos grandes olhos muito abertos, asseverou: Podes acreditar no que te vou dizer: Meu marido não pensa um só minuto em mim; eu sei. Por mais que eu faça, recebe-me sempre com o mesmo beijo frio, com as mesmas palavras estudadas, com o mesmo sorriso paternal. É imperturbável, de uma regularidade de autômato.

Se imagino uma toillete ele gaba-a com as mesmas palavras com que elogia o polme de ervilhas ou o molho do peixe. Chegou-se mais à amiga: Tu sabes que eu tinha fama no colégio de ser bem feita? ... Riram-se. Pois uma noite, depois do Lírico, entrei para o quarto com a criada para despir-me. Ele pretextou não sei quê para ir ao escritório. Despi-me, deitei-me, despedi a criada, mas a camisa era nova e afligia-me. Saltei da cama, fui ao armário, escolhi outra e estava nua, de pé, em plena luz, entre espelhos, quando ouvi passos e, logo em seguida, a voz de meu marido como num arrepio: “Oh! Desculpe...” e encostou a porta para evitar, com certeza, o ar e ... O meu vexame. Depois, de fora, paternal como sempre, aconselhou: “Não se exponha assim, Alice; olhe que a noite está fria. Cuidado”. Ah! Leonor, não sei como não chorei de raiva.

Rubra, então, transfigurada, com os olhos em fogo, declarou nervosa, evocadoramente:

— Não imaginas, quando Zico me aperta a mão, o prazer que sinto em olhar os dedos fundamente vincados em roxo pelos anéis.

Tomou uma larga respiração e, agitando alucinadamente a cabeça, os braços rijos, estendido são longo do corpo, as mãos contraídas, os olhos quase, fechados, as narinas sofregamente abertas, as pálpebras palpitando em frêmitos, ficou algum tempo mordendo os lábios até deixar fugir por entre os cerrados dentinhos brancos arrancadamente, regosadamente:

— Não imaginas, Leonor... é duma brutalidade! — e mole, inerte, flácida, abateu sobre a otomana cansada e vencida, com a cabeça para traz, arquejando, estremecendo e sorrindo, como nos paroxismos de um sonho voluptuoso.

ACÉDIA

O uivo de um cão, voz única e melancólica no silêncio, abalou-o, tirando-o violentamente do abatimento em que caíra. A sala, de alvas paredes frias, caiadas de fresco, com uma velha mesa ao centro e algumas cadeiras toscas, forradas de palha de milho, em trança, estava alumiada por uma candeia suspensa a um portal. A luz tremia fazendo dançar tremulamente as sombras alongadas. Em frente, estendia-se o corredor muito negro onde grandes ratos chiavam às correrias, rebuscando migalhas.

O seu quarto ficava à esquerda, pobre e ermo como uma cela: a cama, a mesinha de cabeceira, um sofá cuja palha escura e flácida afundava côncava, e uma estante de pinho onde se amontoavam desordenadamente livros e jornais. Na parede, acima do leito, uma cruz negrejava.

Devia ser noite alta e ele ainda ali estava com uma vela a arder, os cotovelos fincados na mesa, a cabeça pendida sobre as mãos, diante da Bíblia aberta. Era moço e robusto — largos ombros, pescoço forte, muito sangue a rosar-lhe as faces escanhoadas.

Desde que chegara àquele miserável lugarejo, entre montes, com uma população mesquinha de sertanejos, ruas estreitas, desertas, entre fendidos muros de taipa, com o mato a crescer, desimpedido e viçoso, e um grande rancho à beira da estrada onde pernoitavam os que vinham em lentas jornadas do mais fundo sertão comboiando gados, sacudira da alma toda a alegria, tornando-se taciturno e tristonho.

Encerrado na casinha que alugara, a dois passos da igreja, no largo que um córrego barrento atravessava e onde, dia e noite, animais soltos pastavam, porcos fossavam o lodo grunhindo de gozo e urubus enegreciam esvoaçando em abaladas à aproximação de alguém ou fugindo aos saltinhos desconfiados, alheiou-se do mundo, pensando apenas em Deus e no sagrado ministério a que se votara. Um velho negro fazia-lhe todo o serviço doméstico — varria a casa, espanava os livros, arranjava-lhe a comida, enchia, com água da cacimba, a grande talha que refrescava à sombra de uma latada de maracujás.

Ninguém o procurava; mesmo na igreja, depois da missa, raras eram as mulheres que ousavam ir beijar-lhe a mão, à sacristia. As velhas tinham-no como uma criança que não infundia respeito, “um coroinha”, diziam com desprezo: as raparigas continham-se retraídas de pudor por verem-no tão moço e, comparando-o com o finado vigário, que mal podia levantar a hóstia nas mãos trêmulas, ainda mais se encolhiam. Os homens davam de ombros, com indiferença, quando o viam passar lentamente, de cabeça baixa, muito cozido com as paredes de taipa como se receasse os grandes bois que levantavam para ele os mansos olhos melancólicos.

O velho negro era interrogado nas lojas, nos ranchos, sobre a vida recatada do moço padre. Certas senhoras mais curiosas, mostrando-se penalizadas daquele “encerro”, chamavam o negro, seduziam-no com presentes, forçavam-no a sentar-se: Queriam saber: “quem lavava para ele, quem o visitava, se recebia cartas, como vivia?” E o negro, sorrindo, encolhia os ombros, cocando a carapinha e ia dizendo — “que a roupa quem lavava era sá Emerenciana; ele mesmo levava-a suja e trazia a limpa; lá não ia ninguém. De tempos a tempos seu Firmiano levava cartas, mas, quase sempre, eram só jornais e seu vigário, quando estava em casa, era sempre com o livro na mão ou escrevendo. Às vezes, de noite, ele acordava e via luz na sala — era seu vigário estudando”.

Efetivamente, o livro era o companheiro único do padre, que nem mesmo com o fâmulo conversava, fazia muito quando correspondia à sua saudação humilde. O sacristão, revoltado com a frieza do vigário, que não dava atenção às suas tagarelices e maledicências, vingava-se espalhando, com desprezo: “Que nem latim sabia, que engrolava tudo, era uma vergonha. Aquilo o que tinha era ronha. Haviam de ver o santinho!”

Depois do jantar, já noitinha, estava o vigário muito embebido na leitura, sem mesmo dar pelo negro que ia e vinha guardando a louça, quando bradaram fora com atroantes pancadas na porta. Levantou a cabeça e, como batessem de novo, com desusada violência, fez sinal ao negro para que fosse ver quem era e, recostando-se, de braços cruzados, ficou à espera, entediado:

“De certo alguém que morria por aqueles alcantis desertos ou no fundo de alguma grota, sem uma luz ao menos”. E logo se pôs de pé, sacudiu a batina como a preparar-se para a santa missão. Mas o negro reapareceu com um pesado maço de jornais e duas cartas, dizendo “que uma tinha recibo”.

Havia uma registrada. Tomou da pena, trêmulo, garatujou o nome e, apalpando o envelope, sentiu-o cheio; rasgou-o e, abrindo a larga folha de papel, caíram de dentro, sobre a mesa escura, embrulhados num retalhinho de filo, dois alvos botões de flores de laranjeira, unidos pela mesma haste. Tomou-os entre os dedos, mirou-os, cheirou-os e, sem compreender aquele presente estranho, chegou-se mais à vela que ardia e, curvando-se, pôs-se a ler a carta. Era da mãe.

As letras trêmulas, de um grande talhe incerto, enchiam as quatro páginas. Queixas. Que ele bem podia tirar meia hora para escrever umas linhas, dizendo como ia, que tal era a paródia, como fora recebido pela gente. Depois notícias: da terra, a sua terra, dos conhecidos — mudanças, nascimentos, batizados, mortes, casamentos. Entre os casamentos o da Bosaura, do Bambual. E uma descrição minuciosa da festa e da noiva, que estava muito linda!

Ela lembrara-se dele e mandava-lhe aqueles botões e aquele pedacinho de véu para que nas suas orações pedisse por ela a Deus, que a fizesse feliz. Tremiam-lhe as mãos, os olhos ficaram-lhe como duas brasas.

Releu a parte que se referia ao casamento. O noivo era o Fábregas, conhecia-o: um gordo, negociante de ferragens, estabelecido perto do mercado. Passou à outra carta: felicitações de um amigo do seminário. Ia desatar o maço de jornais quando os seus olhos foram atraídos pelos pequeninos botões de flores de laranjeira vincados pelos dentinhos da Bosaura. Sentou-se e, tomando-os nos dedos, ficou a contemplá-los e o seu espírito voou longe, muito longe, vencendo o tempo e o espaço.

Ah! A linda e alegre cidade em que nascera, com os relevos suaves das colinas verdes, onde casinhas de colônias alvejavam brilhando ao sol entre cafezais escuros; com as suas ruas largas, compridas e direitas, de prédios novos e palacetes com jardins gramados e áleas sinuosas, cobertas de cascalho, alegres com o fresco ruído da água dos repuxos; com a grande igreja de duas torres, a cadeia entre paineiras altas, o mercado sempre farto, regurgitando de verdura e de frutas; a estação, de tijolos vermelhos, onde, à hora azafamada dos trens, era uma alegria, um movimento como de festa — um ir e vir de troles e carrocinhas, um afluir de gente, os jornais que chegavam, colonos que desembarcavam em turmas — os homens corados, robustos, com arcas às costas, cachimbos fumegando entre as barbas ruivas; as mulheres com os filhos pela mão, trouxas à cabeça: — umas muito louras, de um fulvo quente, outras morenas, queimadas, as saias enrodilhadas nas cintas grossas, deixando ver os rijos sapatos de homem muito largos, desbocados nas canelas finas. E algaraviavarn sentadas nas trouxas, nas arcas, pelas barrancas, dilatando a vista curiosa pela cidade que alvejava entre pomares e bambuais, procurando no horizonte azul as grandes culturas ricas.

Às vezes, quando chegava da capital o coronel Meira, lá ia a banda de música recebê-lo e era um estralejar de foguetes durante todo o dia. À noite, baile na casa da Câmara. O povo juntava-se no largo e, em torno dos tabuleiros de doces, rapazes e raparigas, aproveitando a música, dançavam às chufas, às gargalhadas.

E no tempo das feiras! Três dias grandes de feriado e pagode. Lá ia ele, desde cedo, correr as tendas, admirar os objetos expostos, ouvir os pregões, as cantigas dos violeiros ou acompanhar a sorte dos jogadores em torno das roletas e dos “jaburus”.

No meio da praça os cavalinhos de pau giravam ao som de um realejo. O cosmorama numa barraca toda embandeirada — à porta, de pé num banco, a bradar, rouco, um homem anunciava prodígios — o que engolia espadas, o que comia fogo e uma moça que se deitava e dormia entre dois tigres de África.

Ceguinhos esmolavam cantando, outros tocavam sanfonas. Ele ia de uma à outra barraca, parava, a olhar, a ouvir. Às vezes chegava até à cortina — lá dentro riam, uma voz fanhosa resmungava, guinchava, estralavam palmas, era depois um alarido até que uma sineta soava repetidas vezes e o povo saía apertadamente, ainda sorrindo, comentando os prodígios, maravilhado.

De repente um vozeirão atroava — era a criançada que desembocava no largo acompanhando o palhaço negro, vestido de vermelho, com uma carapuça de baeta, guizalhando um pandeiro, de pé no lombo de um cavalo lerdo, que percorria a cidade, anunciando a função da noite.

E lá ia ele também, a correr, juntar-se à garotada e, até o palhaço recolher ao circo, seguia-o fazendo coro: “A mulata é bonita?” “É sim sinhô?” “É macota no sarilho?” “É sim sinhô? ...” E o colégio, no caminho de “Monte Alegre”, perto da ribeira, com o seu grande recreio todo ensombrado de bambus e o pomar cercado de espinheiros. O João Meirelles, o Passos, o velho Dioclécio a esmoer latim e a fungar pitadas, sempre com o baralho de cartas no bolso da rabona sebosa; o Mendonça, cheio de conhecimentos, contrariando irritadamente a opinião de todos, a esputar injúrias sobre a cidade “uma tapera onde o lodo das ruas só era comparável à podridão das almas”, a escrever para o “Baluarte” formidáveis artigos sobre pronomes e galicismos, nos quais sempre coleavam perfidamente alusões azedas ao Torquato coletor e ao nariz monstruoso do Simeão da botica. Lá andavam os cândidos botões entre os dedos do moço padre. Vinham de Rosaura. E Rosaura? Amores de infância... E teriam sido amores?

Ela, mais nova do que ele, três anos, era quase uma moça — já se lhe ia sentindo o colo em dois botões que atesavam o corpinho, o vestido descera-lhe até o cano da botina e a mãe, quando a levava à igreja, tinha-a sempre perto, resmungando, repuxando-a se ela se punha a olhar para a porta da sacristia onde se juntavam os rapazes.

Fora pelo S. João, em “Monte Alegre”. Frio agreste de junho, bruma de não se ver o caminho. Ele lá estava e ela... Última noite de vida, primeira noite de amor! Depois nunca mais: o seminário, a tonsura, a primeira missa e aquele degredo, ainda assim por empenho. Brincavam. Como o frio crescia só as crianças ousavam chegar à varanda para olhar a fogueira crepitante. Ele debruçou-se à grade e sentiu-a tão loura, cheirando a flores, com os cabelos soltos dourando-lhe as espáduas como um manto de santa.

O frio fez com que se aproximassem. As crianças saltavam no terreiro, aos gritos e eles, mudos, apertadinhos, sem ânimo de voltar o rosto, olhavam. De repente, tiritando, ela disse como em segredo: “Que frio...!” e, retirando uma das mãos debaixo do capotinho: “Olha aqui”; entregou-lha. Ele sentiu-a morna e conservou-a para aquecê-la, talvez; apertou-a. Ela estremeceu, fez menção de querer deixá-lo. Ele, então, pediu-lhe que ficasse e olharam-se. Uma grande chama subiu da fogueira avermelhando a varanda. Uma lufada de ar quente acariciou-os e os dois, corados, gozando aquele bafejo afagante, não se moveram. Por fim ela murmurou de olhos baixos: “Você vai ser padre, Américo...” Ele negou, pediu um juramento: Se ela prometesse ele não se ordenaria. Ela insistiu sorrindo: “Se é sua mãe que quer...”

— Você prometendo...

— Eu, por mim, prometo.

— Jura por Deus!

— Juro!

As mãos apertaram-se vivamente, Mas uma das crianças, rolando perto da fogueira, rompeu a chorar e os velhos acudiram chamando todos para dentro.

Viram-se ainda depois, renovaram os juramentos, mas ele teve de partir e lá foi. E ali estava, padre e ela nos braços de outro, do Fábregas, lá longe, entre os palmares verdes da sua cidade. Ali estavam apenas os botões com as marcas fundas dos seus dentinhos. E ele havia de pedir a Deus que a fizesse feliz? Se ainda, com o prestígio do coronel Meira, pudesse ser transferido para a sua cidade, a sua linda cidade... Rosaura!

Ficou em êxtase, a esmagar os botões nupciais sem sentir, vendo a linda menina agasalhada no capotinho cinzento, a tremer de frio, a oferecer-lhe a mão. Era um delírio. Arrancou-se dali frenético, entrou no quarto, mas levantando a vela, deu com a cruz negra abrindo os braços na parede nua.

Era aquela a sua amada, única, verdadeira e eterna! A outra lá estava, longe, para o sempre perdida, para o sempre! De novo fitou a cruz e pareceu-lhe que ela tremia, crescendo, pareceu-lhe que se agitava como se quisesse desprender-se da parede.

Ficou lívido, a olhar, e a sua sombra imensa tremia ao longo do soalho, e na parede ao lado da cruz sinistra. Tomou, ao acaso, um livro na estante e fugiu para a sala assombrado. Examinou-o à luz: era a Bíblia.

Sentou-se e, apoiando a fronte na mão, pôs-se a folhear lentamente. Deteve-se com um suspiro e seus olhos entraram como por uma floresta de encanto:

Osculetur me osculo oris sui: guia meliora sunt ubera tua vino...

Os versículos animavam-se e ele via a moça, não morena como a do Cântico, mas loura como a do seu idílio único, à luz de um grande fogo que ardia, estender-lhe os braços, chegar a boca à sua boca, envolvê-lo na luz macia dos seus cabelos finos, trêmula de amor, de timidez e de...

Um calor subiu-lhe do coração, todo ele arripiou-se nervosamente e o perfume de Rosaura encheu todo o ambiente triste:

Quam pulchra es, amiea mea, guam pulehra es! Oculi tui columbarum absgue eo, guod intrinsecus lalet. Gapilli tui sicut greges caprarum guae ascenderunt de monte Galaad.

O uivo de um cão, voz única e melancólica no silêncio, abalou-o, tirando-o violentamente do abatimento em que caíra.

PRIMEIRO A OBRIGAÇÃO

— E que tal é ele, Clotilde?

— Madame ainda não o viu? Ele costuma vir aqui, aos domingos. Não é por ser meu noivo, mas é um belo rapaz: alto, espigado, moreno, com os cabelos muito negros, em cachos. Depois — muito sério, trabalhador. Os patrões adoram-no. É o empregado de confiança da casa.

— É do comércio?

— É cabeleireiro.

— Cabeleireiro?! Assim bonito... E tu não tens ciúme?

— Não, madame, Eugênio é um tímido. Oh! conheço-o bem: criamo-nos juntos. É incapaz de ousar isto. Demais... Ama-me até à loucura.

— E tu?

— Oh! Eu... Se não o amasse... Sei lá! Madame não imagina as propostas vantajosas que me têm sido feitas. Eu era ainda menina e já recebia presentes. Eu é porque entendo que não há dinheiro que valha a honra de uma rapariga. Isto é um preconceito caduco, já de todo esquecido, mas... Que quer? Criaram-me com tais ideias e eu respeito-as como respeito a religião. Meu pai era de uma severidade! ... Serei uma simplória... Deu de ombros com indiferença. Há quem diga que vivo a dar pontapés na fortuna, pois sim. Mas ninguém rirá das minhas flores de laranjeira nem do meu pobre Eugênio, quando ele for meu marido. Posso andar com a cabeça levantada. Suspirou: Mas o que eu tenho lutado! Em casa do barão, por exemplo... (isto eu digo à madame) não imagina o que sofri! Eram os dois: pai e filho. A um rumor correu à janela e debruçou-se: é o carro...

— O coupé? — Sim, madame.

— Mas vamos...

— Ah! Não me deixavam em paz com ofertas de dinheiro — contos de réis! — e joias, vestidos de seda. O barão quis até montar casa para mim.

— Quê? Aquele velho!!...

— Velho?! Se madame soubesse o que ele me propunha!

Luciana desatou a rir, um riso alegre, cristalino, cheio de mocidade. E ria diante do espelho compondo os finos cabelos que esvoaçavam, quando o marido apareceu, muito grave, limpando os óculos.

— Estás muito alegre, Luciana.

— Histórias de Clotilde. Tem sempre um caso novo para contar quando me vem vestir.

Clotilde, de olhos baixos, ia e vinha arranjando o toilette, pondo em ordem o psyché, recolhendo grampos, alfinetes, fitas, ferros de frisar, todos os pequeninos apetrechos de aformoseamento que se confundiam nos mármores dos móveis.

— Olha, Luciana, dize à tua mãe que eu pretendia ir contigo, mas infelizmente, tenho de responder amanhã ao discurso do Barros sobre o caso do arrendamento e preciso tomar umas notas. Além disso estou indisposto, mau estômago, uma pontinha de enxaqueca. Aqueles camarões não me fizeram bem.

— Não, não foram os camarões. É que não descansas, Luiz: Mal acabas de almoçar é logo para o trabalho. Nem sei mesmo como ainda não tiveste uma coisa séria.

— É preciso, filha.

— Nem tanto. E fitando-o carinhosamente: Mas tu podias vir, também não é só a política. Mamãe fica tão contente quando apareces.

— Sim, mas hoje não é possível. Não é vontade que me falta, mas primeiro a obrigação, bem sabes.

— E jantar, ao menos: não podes? Lá janta-se às sete horas.

— Pode ser. Se eu concluir o trabalho... Todavia não me comprometo. Vê se queres alguma coisa.

— Não. Ia saindo quando a mulher o chamou com meiguice: Olha, Luiz, faz um esforço: Vai jantar, ao menos; mesmo para eu não vir por ai sozinha, à noite. Prometo sair logo que queiras. Vais?

— Pois sim, acedeu depois de pensar.

— Palavra?

— Vou.

— Olha lá! Não nos sentamos à mesa sem chegares.

— Pois sim.

E foi-se vagarosamente, pensativamente, coçando a nuca. De novo sós, Luciana, já pronta, deu um olhar ao espelho e, tomando as luvas, muito direita, voltou a sorrir, pensando no barão.

— E que lhe disseste, Clotilde?

— A quem, madame?

— Ao barão.

— Ah! Foi uma campanha! Tive de ameaçá-lo com a baronesa. Ainda assim o homem continuou a perseguir-me: ele e o filho. O filho é doente, como a senhora sabe: tem uma moléstia de olhos, anda sempre com umas lágrimas muito compridas pela cara e madame não imagina como era ridículo aquele chorão, muito magro, mal se aguentando nas pernas bambas, a limpar os olhos amarelos e a pedir-me beijos, pelos cantos. Um dia zanguei-me deveras e perguntei-lhe se não sabia que eu era donzela! Pois soubesse. Ele ficou a olhar-me espantado e, a chorar com a moléstia e a tremer como se estivesse com sezões, perguntou-me: “Se eu queria casar com ele”. Luciana explodiu a rir diante do espelho.

— E tu!

— Ora, madame... pois eu sou alguma tola? Para livrar-me de tais importunos deixei a casa, bem contrariada, porque a baronesa é uma excelente senhora, coitada!

— E aqui? Perguntou Luciana, com malícia... O nosso doutor... Fala com franqueza.

Clotilde fez uma cara de espanto e, entre séria e risonha, murmurou: — Nossa Senhora! Madame quer saber? Eu até tenho medo de olhar para ele. Trata a gente tão de resto.

— Pois sim, vai-te fiando, disse a rir. Desceu o véu, tomou a carteira, fez ainda uma volta como à procura de alguma coisa e decidiu-se. Bem. Olha: Se a costureira vier não te esqueças do meu recado. Os figurinos estão na minha escrivaninha, em cima; as rendas no chiffonier.

— Sim, madame.

Luciana atravessou a galeria, de uma luz doce, velada pelos stores de linho e bateu à porta do gabinete, onde o marido trabalhava:

— Até logo, Luiz. Não faltes, sim?

— Sim.

— Até logo.

— Até logo.

Desceu a escada vagarosamente. Clotilde, de cima, acompanhava-a com o olhar, sorrindo. Ela voltou-se:

— Adeus. E vê lá a costureira.

— Vá descansada, madame.

Os passos de Luciana soaram no vestíbulo de mármore. Clotilde, encostada ao balaústre da escada sob a claraboia de vidros policrômicos, com uma luz azul descendo-lhe da cabeça aos ombros, como era fino manto diáfano, olhava um fresco mural, mordendo preocupadamente o lábio. O rápido rodar do carro tirou-a daquela preocupação enlevada; deu de ombros, numa resolução e, vagarosamente, depois de lançar um olhar à porta do gabinete, voltou a câmara e pôs-se a arranjar as gavetas, a pendurar as roupas, a esticar os tapetes engelhados. Às vezes detinha-se e ficava a pensar, imóvel, de olhos perdidos, mas logo sorria despreocupada e contente.

A câmara recendia à verbena. Parou diante do espelho, a mirar-se. Tomou o pente de tartaruga loura e alisou os cabelos dourados, perfumou as mãos, as faces, o pescoço. Viu-se, reviu-se, ao psyché, de frente, correndo a mão pelo avental; de flanco, tufando as rendas dos ombros e sorria, satisfeita com as suas cores de saúde, com o brilho úmido dos seus olhos verdes.

Foi à janela, empurrou as persianas e debruçou-se. A rua estava deserta, ao sol. Lá muito em baixo, lampejando, o coupé diminuía, desaparecendo. Então, arqueando os braços, com os dedos enclavinhados, dobrou-se num langor, espreguiçando-se voluptuosamente e sorrindo com todos os dentinhos claros à flor dos lábios sanguíneos.

Mas um estalido fê-la voltar a cabeça com um susto de gazela arisca: O doutor estava em pé, à porta, e contemplava-a risonho. Ela baixou os olhos e ele, adiantando um passo, empurrou a porta e ia fechá-la à chave quando ela o reteve com um gesto. Correu à janela e, de novo, lançou um olhar à rua e ali teria ficado se ele, ansioso, não se resolvesse a abraçá-la pela cinta, atraindo-a. Ela murmurou:

— Mas... o senhor não tem medo?

— Medo de quê! Deu volta ao ferrolho da janela e adiantava -se, quando Clotilde, com um “ah!” abafado, correu ao psyché e, tomando uma velha moldura de prata com o retrato de Luciana, em trajo de caça, de pé, risonha, destacando- se de um fundo sombrio de folhagens, escondeu-o, à pressa, em uma das gavetas e como o doutor, com uma voz surda e trêmula, lhe perguntasse — “que era?” ela, fitando-o e sentindo-lhe o hálito quente, murmurou sorrindo: — É a patroa, coitada!

O FUTURO

Quando ela entrou no gabinete, onde o pai a esperava, pautando os dentes, a olhar o jardim — todo de branco, com chinelas novas de marroquim, o ventre a estalar o colete muito liso, ornado com uma grossa corrente de ouro antigo, do Porto — sentiu no coração um aperto pressago. Deteve- se junto à secretária de mogno, muito arrumada e lustrosa, sobre a qual reluzia um tinteiro de prata, que era uma carreta tirada por um jumento, carregada com duas pipas de cristal.

Numa corbelha de porcelana abriam-se rosas vermelhas entre crótons e malvas. O armário solene, com altos livros negros forrados de pano, empertigava-se em uma das faces da saleta forrada de azul e, em frente, num consolo, sob uma redoma de vidro, brilhava um relógio de bronze dourado, com os ponteiros desgarrados e imóveis como dois braços abandonados na inércia de sono calmo.

Diplomas, encaixilhados em negro, inclinavam-se nas paredes atestando as virtudes, os préstimos e a previdência do dono da casa.

Ela ficou um momento à espera; vendo, porém, que o pai não a sentia, falou:

— Papai mandou chamar-me?

Ele voltou-se ligeiro, como sobre um eixo, com um sorriso na face gorda, os óculos no meio do nariz, olhando por cima das lentes.

— Sim, mandei. Preciso conversar contigo. Lançou-lhe um olhar ao corpo airoso. Puseste o vestido novo, hein? Está bem feito. Poste tu mesma, não? Senta-te. Sorriu de novo, irrequieto, contente e, puxando uma cadeira para junto da secretária, ofereceu-a com um gesto: Senta-te. E espapaçou-se na poltrona sobre um couro macio. Ora muito bem! Exclamou, mas como se lhe faltassem as palavras, ficou a tamborilar com a espátula de osso, com o sorriso sempre a brincar-lhe no rosto anafado. Por fim, disse com uma voz muito lenta, muito cheia, como se viesse carregada de sabedoria: Mandei chamar-te, Luíza, para conversarmos sobre... Levantou-se, foi encostar a porta que abria sobre o corredor para que não saísse dali o segredo da confidência e, tornando à poltrona, continuou: ...para conversarmos sobre o teu futuro.

Uma onda de sangue subiu às faces da menina e, nervosamente, puseram-se-lhe os dedos a amarfanhar do vestido.

— Minha filha, a minha saúde não anda boa: estas pontadas no coração... Franziu o rosto em caramunha de desânimo, abanando com a cabeça descorçoadamente. Além da moléstia, cá está a velhice: começo a sentir-me fraco para lutar, não sou o mesmo homem. Isto está como uma casa velha, a cair aos pedaços. Se fôssemos ricos, outro galo nos cantaria, mas que temos nós? Estes cacos e duas casitas que nem dão para os concertos e para os impostos. E é só. Por enquanto ainda aqui estou para furar e tua mãe, coitada! Vai economizando o que pode e vivemos. Mas se eu fechar os olhos de uma hora para outra, que há de ser de vocês, duas mulheres, sem conhecimento do mundo? Isso é que me tira o sono e ainda me põe mais doente. Suspirou abatido, passando a mão pela testa alta e lisa. O que há é o seguinte, ouve lá:

Tu és uma criança, bem sei e, por nossa vontade, nunca nos sairias daqui, mas o mundo tem as suas leis. Hás de casar, mais hoje, mais amanhã e, assim como assim, se hás de ir parar às mãos de um homem indigno de ti, que te maltrate, que te não compreenda, o melhor é irmos pensando nisso enquanto é tempo...

— Em casamento, papai?

— Sim, pois então? Olhou-a risonho.

— Mas eu não penso em casar-me.

— Pois sim, minha sonsa. Morde aqui, se és capaz... e estendeu-lhe o dedo mínimo. Achas-me com cara de tolo? Então eu não tenho olhos? Picou sorrindo; depois acentuou com gravidade: Isso é bom como passatempo, Luíza, mas não serve, não serve. Eu nunca te quis falar porque, enfim, entendo que toda a moça deve gozar um bocado e o namoro é um bom divertimento, deixem lá; riu fazendo-lhe festas no rosto. Esperar o bonde em que ele passa, trocar olhares, atirar uma flor ... Ah! Pensas que não conheço essas coisas? Conheço-as muito bem, também fui rapaz, tive o meu tempo. Tornou-se sério. Mas nós agora não tratamos de brinquedos, já te divertiste bastante.

Ela, não achava uma palavra para opor às declarações do pai: calada, num vexame que a oprimia, continuava a amarfanhar o vestido.

— Anda cá: Que te parece o Travassos?

Ela levantou a cabeça impetuosamente e, no mesmo instante, como se o nomeado houvesse surgido do chão, ante os seus olhos muito abertos, viu um homenzinho magro, moreno, sardento, o nariz achatado, de ventas muito abertas como dois túneis numa colina, a falar arquejando, numa canseira de asmático. Não se conteve:

Seu Travassos!

— Sim, sussurrou o pai.

— Pois um homem que está tísico! ...

— Tísico, tísico... Tísicos estão os que falam. Conheço-o há mais de vinte anos sempre assim. Tem uma saúde de ferro. Quem me dera a mim a saúde que ele tem.

— Ora, papai...

— Ora, por quê! Que tem ele!

— Pois papai quer mesmo que eu me case com seu Travassos! exclamou em voz chorosa.

— Então? Não é por ele: é por ti, sabes? É por ti. O Travassos é o marido que te convém: bom homem, homem sério, rico. Ela encolheu os ombros. Não te agrada! Preferias, sem dúvida, um desses franganotes que andam a alisar-me a calçada, não?

— Eu não prefiro ninguém.

— Não preferes... bem sei. Olha a tua amiga Eurídice: casou com um dos tais e lá está a comer o pão que o diabo amassou, chorando lágrimas de sangue, a lamentar a sua má cabeça. Foi atrás das bonitezas, dos bigodes encalamistrados e é o que se vê. Pois, minha filha, eu não tenho dezoito anos, como tu; sereias não me seduzem. A vida é isto. Poesias não enchem barriga nem agasalham. Quando os filhos vierem, não há de ser com as bonitas palavras nem com os bigodes torcidos que lhes nas de dar de comer e o que vestir: há de ser com isto, e pôs-se a esfregar os dedos todo inclinado para a filha. Com isto, estás ouvindo? O que vocês vêm no casamento é a festa, o tal amor... Histórias! Tudo passa, o que fica é a verdade positiva, o real. Os rapazes casam por entusiasmo, mas o entusiasmo é fogo de palha: arde, faz chama e morre depressa. E como o sangue lhes ferve na guelra, cessada a impressão, lá vão eles atrás de outra e temos os amuos, as ciumadas, as brigas, a desgraça, enfim. E com um homem como o Travassos, que constitui família para ter um lar repousado, a vida será de paz ininterrompida. Nada te faltará. És moça, bonita, bem educada, só não terás dele o que não quiseres, isso digo-te eu: só o que não quiseres! garantiu. Olha, minha filha, não há nada pior do que desejar sem esperança de possuir. A mocidade e a beleza passam e a velhice sem pão é triste. Antes a morte. Tu conheces o Travassos de vista apenas, lida com ele e hás de ver a pérola que está ali. Ela resmungou sorrindo. Que dizes tu, perguntou ele risonho; ela continuou a sorrir. Vai falando, vai... Olha, só no ano passado ele tirou da casa oitenta contos líquidos e neste ano há de ir a mais, se Deus quiser. Que melhor? E os prédios que ele tem por ai, e as apólices, a fazendola em Mendes... Então? Pergunta agora a um desses bonifrates que te cercam quanto têm no bolso. Nem um níquel para o bonde. Conheço-os!

Tu não és mais moça que a Terezinha e ela não vai casar com o Guedes e não está tão satisfeita? Por quê? Porque o Guedes é um homem como convém a uma moça de juízo. Olha, só o enxoval que ele mandou vir de Paris ficou em mais de dez contos de réis e eu não deixarei que faças má figura ao lado da Terezinha. Isso fica por minha conta, descansa. O Travassos pode mandar buscar do bom e do melhor e manda, tenho certeza. É caprichoso e mesmo tem muito mais do que o outro. Inclinou-se e, confidencialmente, disse: Pensas então que ele está mandando levantar aquele chalet na rua dos Voluntários à toa? Ela fitou no pai os olhos brilhantes. Ora! Hás de ver. Eu só te digo que nasceste em boa hora, sob uma boa estrela. O homem não fala em outra coisa. Paixão de velho é o diabo! Riu.

Ela não pôde contrariar o sorriso.

— Depois tu não vives sempre a dizer que o teu sonho é ver a Europa? Então? ... Está em tuas mãos. Deixa lá os rapazes, isso é bom como passatempo, repito, mas só... só! Se tivéssemos fortuna nem eu te falaria nisso: podias casar com quem quisesses, mas... deu de ombros, esticou o beiço. É preciso, minha filha. E sussurrou: o doente não procura o que lhe sabe, vai ao que lhe faz bem. Mais tarde verás que me preocupei com a tua felicidade e darás graças a Deus por não te haveres sacrificado a fantasias.

Depois, minha filha, casada com um moço, serias sempre a oprimida, a humilhada, o mesmo ciúme faria com que padecesses em silêncio para que ele, a pretexto de aborrecimento, não evitasse a tua companhia procurando distrações fora do lar. Com um homem como o Travassos, que já não é criança, serás a senhora, imporás a tua vontade, trá-lo-ás preso, submetido aos teus caprichos porque, para garantir o teu amor, sempre receoso de perdê-lo, ele fará tudo quanto quiseres, até fechará os olhos a muita coisa.

É isto, Luíza. E o mundo todos os passos devem ser cuidadosamente estudados como os lances de um jogo, um pequeno descuido, um movimento menos pensado podem prejudicar a partida. Tens na mão todas as peças principais: a beleza, a mocidade, a educação; podes ir certa da vitória, porque o teu adversário dispõe apenas de uma pedra valente, as outras já estão em teu poder, só te falta a fortuna. Garanto-te o cheque mate se me deres o “sim”.

Ela ouvira tudo através de um sonho: vendo-se naquela casa rica, com a fortuna a servi-la, mais solicita do que um gênio dos contos maravilhosos, sentindo sob os pés a maciez dos tapetes, arrepanhando sedas pesadas de reposteiros lavrados, roçando em móveis preciosos, aspirando aromas finos, olhando o lampejo prismático dos cristais, o brilho das baixelas, repousando em moles divãs ou no seu leito, alvejando sob o cortinado, no fundo da câmara luxuosa, toda recamada de ouro como uma capela.

A seu lado, porém, a apertar-lhe a cinta, a dobrar-lhe a cabeça, procurando, com ânsia, a sua boca úmida e quente, via Ramiro, o seu adorado Ramiro, louro, lindo, tão leve no voo delicioso das valsas durante as quais tantas vezes ela jurara ser dele, dele só e sempre, sentindo-lhe o hálito morno e o aroma do seu corpo airoso e flexível.

— Então, que dizes? perguntou o pai vendo-a distraída, de olhos extasiados. Ela sorriu fitando-lhe o rosto gordo, onde os olhos esbugalhados pareciam rir, faiscando. Sim, hein? Ela encolheu os ombros baixando a cabeça. Ele, então, tomando-lhe uma das mãos, afagou-a e, levantando-se, triunfante e aliviado, desabafou: Isso, filha; isso. Não desprezes a fortuna que te procura. E, como ela se pusesse de pé, apertou-a nos braços, beijou-a na fronte. Agora vai e que Deus te faça feliz. Olha... Tomou uma das rosas vermelhas, deu-lha, dizendo: Isto é para que faças o mesmo comigo quando eu for à tua casa, entendes?

— A minha casa será sua, papai.

— Obrigado, minha filha. Deus te faça feliz.

E acompanhou-a com os olhos enternecidos até que ela desapareceu no corredor escuro. Voltou-se, então, contente, esfregando as mãos. Foi até à janela, olhou — era quase noite.

Ficou ali a contemplar o céu que se ia abotoando em luzes, a pensar naquele homenzinho achando que tossia com angústia, cavernosamente, as vezes cuspilhando sangue, sempre a agitar frascos, engolir cápsulas, numa dieta rigorosa, peregrinando pelas serras onde borbulham fontes, bebendo tudo a goles sôfregos, para manter aquela vida Liril que se ia consumindo como a luz numa lambada sem óleo. E ela, moça, robusta, ardente...

Encolheu os ombros e, fechando vagarosamente a janela, disse como se falasse à noite:

— Ora! tenha ela dinheiro, o mais...

E saiu da saleta apressadamente, como se fugisse à visão de um remorso.

HORTÊNSIA

O sol começava a luzir nas folhas úmidas, polvilhando de ouro o azul dos montes quando Soeiro atravessou o jardim areado, relvado de novo, com flores moças, daquela noite, ainda entrefechadas e tímidas. A sala de jantar tinha todas as portas abertas à aragem da manhã. Os canários cantavam estridulamente nas gaiolas douradas, que oscilavam entre as ramas entrelaçadas das ipomeias e dos jasmineiros do terraço.

O Luiz, com o seu comprido avental branco sem a mais leve nódoa, espanava, com serenidade, os pratos preciosos que ornavam as paredes cor de malva e o jardineiro, o robusto e atarracado Mendo, ia e vinha descalço, abarcando as tinas de pântanos e de latânias, dispondo-as, com simetria, entre os móveis, para dar à sala a frescura e o verdor agradável dura horto.

Ao verem-no, os criados detiveram-se, perfilando-se com uma saudação murmurada.

Soeiro parou, olhando vagamente a sua sala, os seus móveis esculpidos, sobrecarregados de cristais e pratas que rebrilhavam por trás dos límpidos vidros esmerilhados, as suas velhas faianças preciosas como se tudo visse, examinasse, avaliasse com o interesse de um comprador, não como dono que conhecia a história de cada um daqueles objetos adquiridos em lentas pesquisas, por bom preço, nos leilões ou nas casas dos revendedores.

Como os criados voltassem ao serviço, indeciso, bocejando, pousou o chapéu e a bengala sobre a mesa e caminhou até o terraço, cujo ladrilho, vermelho e branco, conservava ainda a humidade da lavagem e ali quedou, a olhar o líquido penacho do repuxo que sussurrava, pulverizando o ar com uma névoa translúcida.

Sentia-se amolecido, atordoado daquela noite de tanto esplendor e ruído que lhe adensara mais no espírito as dúvidas que tinha sobre aquela admirável mulher, cuja posse vinha docemente, vagarosamente, saboreando em sonhos, como se se quisesse dirigir para a felicidade, passo a passo, por um caminho discreto de sombra e silêncio, afastando ramos finos, até o momento de a surpreender já sua, toda sua, a sorrir, linda e lânguida, ainda coroada de flores, com o véu ainda a abrumar-lhe o rosto.

Nem ela mesma sabia daquele amor — nunca lho demonstrara, sempre reservado, à distância, deixando-a livre com os seus instintos para poder analisá-la, espreitá-la, estudar-lhe a alma, com vagar e astúcia, decifrar o enigma daquele eterno sorriso.

Tirou do bolso o camet, abriu-o e, na caligrafia feia e trêmula que o enchia, logo notou as letras desiguais, traçadas vagarosamente por aqueles dedos afilados e mais brancos e macios que as pétalas dos lírios, compondo desgraciosamente o gracioso nome de Hortênsia.

Encostou-se à balaustrada, sempre a olhar as letras daquele nome adorado de mulher e de flor. Esteve a fitá-las como se as quisesse interpretar, uma a uma, ou nelas descobrir alguma coisa, um leve, fugidio vestígio da mão delgada que as traçara. Voltou-se, porém, e, de novo, relanceou a sua gala onde tudo resplandecia e o silêncio só era interrompido pelo trilar dos canários ou, nos dias quentes, à hora mais incendida, por alguma abelha volúvel que esvoaçava, pousando um minuto nalgum florão, logo saindo a zumbir, para o seu doce trabalho.

Caminhou para a mesa, tomou o chapéu e a bengala e, vagarosamente, vergado, seguindo pelo esparto do corredor, chegou aos seus aposentos, a cuja porta o impassível François, muito grave, esperava imóvel como uma sentinela.

Entrou e, enquanto o criado, sem rumor e sem falas, o ia despindo, descalçando, oferecendo-lhe o role de chambre, as fofas sandálias de felpos de linho, revia-se ao espelho desconsoladamente, achando-se pálido, com olheiras, a pele lustrosa como repassada em óleos, desfigurado, abatido por aquela noite de agitação e excessos.

François murmurou uma pergunta sobre o banho: “Se o queria morno ou frio?”

— Frio, disse, estirando-se no canapé de couro diante do leito antigo, de pau santo, largo e raso, com retorcidas colunas enastradas de crespas folhagens, toldado pelo dossel de damasco cor de morango, com arrepanhadas pregas que se engelhavam, pesadas, aos lados da cabeceira alta, onde a almofada alvejava, destacando-se da colcha de um verde de água, como uma duna à beira de uma praia.

Quieto, deixando errar o espírito, lá tornou à mulher admirável, à divina Hortênsia, toda carnal, recendendo a amor, exalando volúpia, se sorria, se falava, se caminhava. Mesmo na imobilidade, quando apenas se lhe notava a ondulação do colo arfante, branco e cheio, os olhos prendiam-se nela com o êxtase sôfrego de um gozo material.

Dava-lhe a impressão alvoroçante de uma deusa lasciva que exigia sacrifícios impuros, como a Milita asiática.

Nos salões, nas ruas via-a sempre seguida de um cortejo de admiradores que a aclamavam triunfalmente, enaltecendo-lhe a beleza e o espírito, sorvendo o ar que o seu aroma perfumava, procurando ver a ponta delicada do seu pequenino pé travesso que ariscamente aparecia, como espiando, a medo, por entre as rendas da fimbria da saia farfalhante, lambendo-lhe as curvas fortes com olhares lúbricos, estremecendo-se ela voltava para os seus rostos a luz azul das suas pupilas mágicas, se lhes sorria com todo o sangue à beira dos lábios úmidos.

Não, não era aquela a mulher que lhe convinha. Tinha-a como um sonho, não a aceitava na realidade. Servia para logradouro da imaginação. Que o seu espírito a gozasse, mas para a calma da vida, achava-a perturbadora e incômoda com a sua formosura, com a sua vaidade, com o seu estouvamento.

Sabia-se forte, havia de querer dominar, impondo-se pela beleza, ameaçando sempre com a sua carne jovem e apetecida, fazendo menção de desnudar-se para oferecer-se em represálias cruéis. Não! Toda a sua vida remansada de homem metódico seria revolvida, ficaria toldada como água de um lago sereno e límpido que, subitamente, uma convulsão agita e turva, fazendo subir à tona toda a vasa rebalsada.

Adorava-a, repelindo-a por julgá-la incompatível com a sua norma de viver, com os seus planos egoísticos de felicidade. Com ela ver-se-ia sempre cercado de receios, o silêncio e a ordem desapareceriam daquela casa, onde eram tão doces os dias e as noites tão repousadas e sua alma, que nenhum cuidado visitava, encher-se-ia de cuidados, talvez de cóleras ciumentas.

Nunca mais poderia receber com franqueza os amigos prediletos, porque todos, ignorando o seu amor, à mesa do jantar ou nos cavacos noturnos, enquanto o Nunes, sempre a recordar scherzos e sonatas, fazia soar o piano, falavam com exaltados elogios e comentários picantes, desnudando e apontando os encantos daquela virgem magnífica, amadurecida precocemente, que ardia por amar e pelo amor. As palavras desprendiam-se-lhe dos lábios voluptuosamente como se viessem em beijos, o seu olhar parava e adormecia no rosto dos interlocutores com a fixidez de duas estrelas que brilham.

Soeiro imaginava-a ali, caminhando airosamente pelas salas e pelos corredores, onde a noite jamais encontrara uma mulher. Imaginava-a naquele plácido aconchego onde encerrava, com egoísmo e serenidade, a vida sem sobressaltos e via tudo mudado: o rumor em vez do silêncio, a desconfiança em vez da tranquilidade espiritual que todos lhe invejavam.

Não, não era a mulher que lhe convinha. Ia preterir toda a felicidade pela incerteza de um sonho, por uma fantasia, um capricho inconfessável, quase obsceno.

E conservaria a esposa a encantadora plástica e a graça insinuante da donzela? O que ele via era a amazona astuciosamente armada para a luta, compondo ciladas hábeis para conquistar um marido. Depois da vitória, despidas as armas que tanto luziam, seria ela a mesma? Não, por certo.

Havia beleza, não negava, mas havia também artifícios que desapareceriam na manhã seguinte à noite do casamento e o encanto de Melusina havia de mostrar-se fatalmente como se mostrou a Raimundo, na torre alta do castelo do Poitou, quando, curioso de ver a mulher na nudez e na verdade, espiou pela frincha e deu com a retorcida serpente que, ao senti-lo, silvou e partiu pelos ares noturnos, desaparecendo para nunca mais.

Não, não...! Ele bem sentia a serpente sob a ilusão da Beleza. Demais, era um corpo cobiçado, profanado por todos os olhares, gozado pela imaginação de quantos o viam. Era a amante ideal de todo aquele mundo fútil que a cortejava, soprando-lhe para a vaidade o incenso dos louvores.

Ele mesmo não a amava, desejava-a — não ia para ela levado por uma simpatia, mas atraído por uma sensação.

Tais amores são como os confeitos que, sob um doce revestimento, que logo se dilui, encerram a amêndoa amarga e, não raro, venenosa.

Ocorreram-lhe, então, as palavras perversas do Lino, sempre dicaz, e a sua singular e anedótica analogia.

“Para ele, Hortênsia não era mais que um aperitivo fino. Contou que certo sibarita pobre tinha sempre à mesa uma lasca de presunto e iludia-se com o aroma de sorte que, mastigando o pão seco e a carne insípida, tinha a sensação delicada de estar saboreando febras do fiambre que os olhos contemplavam com resignada gula e o olfato ia chupando, aos sorvos, para temperar, na imaginação, o almoço e o jantar mesquinhos. Aquilo era uma mulher para a ideia, um “modelo” para o espírito — guardava-se-lhe na memória a beleza e, com ela, podia a gente sentar-se à mesa mais parca, porque teria o doce engano de estar saboreando aquele manjar delicado”. E riu maliciosamente, arrepiando os bigodes atrevidos.

Subitamente Soeiro estremeceu. Pareceu-lhe ter ouvido a voz macia e preguiçosa da moça repetindo-lhe, num tom de queixume, as palavras que lhe dissera naquela tarde tristonha, doentia, em que a vira na varanda, toda de branco e pálida, com os cabelos muito louros atados numa grossa trança, que lhe escorregava pelo colo alto, como uma torrente de lava chamejante que rolasse por uma colina: “Eu bem sei que me julgam vaidosa e até mais do que isso... Mas... Que culpa tenho eu de ser assim?”

Ser assim ... Com tal frase ela referia-se à beleza, à graça, a todo o encanto da sua pessoa divina, a toda a sedução do seu corpo, a toda a doçura enervante da sua voz, traduzindo em música os pensamentos ligeiros da sua cabecinha estroina. Ser assim ...

E se ela fosse honesta, pura, formosa, mas sem culpa!? Sim, se fosse inocente, apesar daquelas aparências lânguidas?

A porta abriu-se de leve e François apareceu com o jupon no braço.

— Já vou, disse Soeiro.

O criado esgueirou-se e ele, espreguiçando-se, estrincando os dedos, deixou escapar um sincero: “Coitada!” E, de novo, voltou aos seus pensamentos:

— Quem sabe se não está ali uma vítima da própria beleza? Eu mesmo que razões tenho para julgá-la impura? Até hoje, apesar de todos os meus cuidados, só consegui descobrir nela a criança, uma alma infantil que brinca sem compreender a puberdade em que entrou. Pobrezinha!

Decididamente a mulher precisa da malícia para afetar inocência: a ingenuidade é prejudicial porque é franca — é como uma nudez: encantadora para os que nela vêm a inocência, mas desfaçatez obscena para os que a tomam por descaramento insólito. E é o que ela é, a pobre Hortênsia — uma ingênua, uma vítima dos pais que a lançaram nos salões sem os cuidados e os conselhos prévios, de sorte que, a todo o momento, é preciso que uma mão amiga a esteja arredando do perigo como se afasta uma criança do tumulto onde fica errando deslumbrada e a rir, sem imaginar que a morte a rodeia e atrai com o mesmo deslumbramento que a fascina e atordoa.

Pobre Hortênsia!

Encolheu os ombros e, molemente, fatigado, seguiu nas surdas sandálias pelo corredor sombrio, caminho do banheiro e, pela primeira vez, achou triste o silêncio daquela casa tão rica, tão atulhada e tão deserta.

A LÍNGUA PORTUGUESA

Tu que andas a explorar a selva venerável dos romances, mais batida que muita estrada de caravanas, onde não há florinha — e já não falo de árvores — por mais oculta que nasça, que não tenha um nome rebarbativo, composto em latim erudito ou em grego clássico por algum Linnett de óculos e gorro, e uma doce e mimosa alcunha com a qual o povo, sempre poético, singelamente a apelida, hás de achar encanto nesta aventura que eu comparo, pela sua originalidade, a uma delicada bomba de silvedo, pequenina e efêmera, dessas que desabrocham com o nascer da lua e morrem ao primeiro luzir do sol.

Ouve-me e terás, a um tempo, assunto para um dos teus contos — se ainda os escreves — e a explicação que, há dias, me pediste, no Laemmert, quando lá me achaste a procurar gramáticas seletas portuguesas.

Perguntaste se eu queria enriquecer o meu cabedal linguístico e eu respondi, com mistério que tratava de coisa mais séria e mais útil. Efetivamente, tratava. Para o meu gasto basta-me o que aprendi nesse tempo, menos sábio e mais fecundo, das pequenas gramáticas de nomes fáceis e de regras simples. Leio e entendo o meu Bernardim e o meu Garção, ando, com vagar e segurança, pelas agruras floridas dos príncipes da crônica, redijo um bilhete inteligível para saber das minhas lavouras, ao sul, e do meu gado nas terras centrais onde tenho pastores como um patriarca bíblico e ainda sirvo ao meu amor que só me pede, com sobriedade rara, flores de retórica, em vernáculo.

Dirás que estou abundante e difuso. É o calor, meu amigo; o calor dilata os corpos e o espírito. O meu espírito poreja facúndia e este champanhe gelado torna-me crisólogo. Confesso-te que estou lânguido, lânguido e falador como um gaulês; disse molemente, espreguiçando-se.

Que horas são! Três; tenho tempo. Às cinco devo estar ajoelhado aos pés de Milady, explicando- lhe o particípio. Mas vamos ao caso. Pelo brilho de teus olhos vejo que ardes em curiosidade. Se achares a aventura banal não me deixes chegar ao fim. Eu acho-a divina! Mas é bem possível que neste velho mundo, onde é tão velho o amor, outra mulher tenha precedido a minha irlandesa, entregando-se, toda lânguida, a algum homem só com ouvir-lhe a música da voz; é possível. Aos ouvidos delicados das divinas atenienses devia causar estranheza a rude e áspera linguagem de um cita ou o rouco bramir de um trácio e, como a mulher foi sempre o espelho da incoerência, não duvido que, antes de Betsey, alguma branca e formosa filha de Athena se houvesse despido e, toda. nua e toda trêmula se desse à bruta sensualidade de um daqueles gigantes pedindo, já embriagada de amor, que atroasse os ares com o seu dialeto ríspido e mais trovejante que a cólera de Zeus. Esta é a verdade, meu amigo: A mulher é capaz de tudo e eu não creio que haja um capricho inédito. Enfim — ouve e fala.

Refrescou os lábios na taça, enrolou uma cigarrilha e continuou, com mole preguiça, encolhendo-se no chambre de seda sobre o divã de couro pardo.

Conhecemo-nos a bordo, na tolda do Clyde, logo ao deixarmos Lisboa, em outubro. Ela e Mymph, a cadelinha, eu e Djinn, o meu pointer. Em inglês trocamos as nossas impressões sobre a cidade de Ulisses, a florida Lisboa e sobre a beleza do Tejo e entrei, com o meu vago saber, a falar de história, dizendo-lhe coisas memoráveis dos briosos tempos da grandeza e do heroísmo daquela terra e daquela gente: as guerras, as navegações ousadas em barinéis ligeiros, grandes como chalupas, que iam descobrir terras; os avanços no mar virgem, os transmontos de cabos procelosos, a glória divina da poesia e o triunfo terreal do descobrimento das praias verdes e largas do nosso Brasil.

Ela ouvia-me sorrindo, as duas mãos no colo, toda embebida nas minhas palavras como se tivesse apenas cinco anos e eu lhe estivesse a contar fábulas.

Descíamos com uma aragem fresca e tocada de aromas, perdíamos a vista da terra. Lá ficavam os moinhos e as torres, lá se afundava em bruma a veneranda cidade e ela a insistir em pormenores, curiosa, ávida de saber, interessada na história e com os olhos tão azuis e tão grandes que eu, às vezes, ficava-me a olhar para eles com a certeza de que contemplava o céu por duas vigias. E assim permanecemos duas ou três horas e só nos apartamos quando ela sentiu que era tempo de ir fazer a sua toilette para o jantar.

Do pouco que me disse fiquei sabendo que era da Irlanda, terra da harpa e dos santos, casada; que ia para o Rosário, na Argentina, onde o marido cria carneiros e cavalos e outras coisas mais. Ah! Meu amigo, que encanto de voz! A harpa gemente da pátria de santa Brígida perpétua os seus sons na boca das irlandesas. Queria que a ouvisses, não a falar ligeiramente e sem interesse, mas murmurando, na intimidade do amor, pondo o vocábulo no hálito, deixando-o ir lento e sutil como um fumo que se sopra e que, ao de leve, sobe e some-se desfeito. Assim é que é ouvi-la!

Depois do jantar, junto à amurada, falava eu a um gordo minhoto, que vinha ao Brasil colocar o seu azeite e o seu vinho, quando dei por ela e tão viva, tão irrequieta, tão nervosa, olhando-me tão fixamente e com uma tal ânsia a soerguer-lhe o colo, que receei pela sua vida — adiantei-me e ela, firme, rígida, a encarar-me com um brilho mais quente nos olhos, perguntou-me: — Que língua é essa que o senhor fala!

— Portuguesa, milady; a mesma em que, há pouco, ouvimos tão lindos cantos entoados por estivadores.

E ela, pálida de emoção, erguendo os mãos brancas como uma santa em súplica, suspirou:

— Ó, a bela língua!

— Em português?

— Não, homem de Deus — em inglês. Eu vou traduzindo para não dar à nossa palestra o caráter de uma dissertação enxertada de textos. E logo, toda agitada, pediu-me que lhe falasse português, muito e sempre, que lhe dissesse tudo em português, tudo! Buscamos as nossas cadeiras e, à luz das estrelas, eu tudo lhe disse em português e ela (ó sagacidade da mulher!) tudo compreendia com uma tão lúcida inteligência que os mais sutis idiotismos da nossa língua, tão rica em idiotismos e em idiotices gramaticais, principalmente agora que tão mal a escrevem os que põem tanto empenho em reformá-la, enchendo-a de complicadas raízes como um bocal de boticário, eram logo divinalmente adivinhados, interpretados, traduzidos com tanta graça que eu, maravilhado, relanceando em torno um olhar ligeiro e vendo que estávamos sós, ajoelhei-me e, beijando-lhe as mãos, ofereci-me para iniciá-la nos segredos da língua encantadora. Nessa mesma noite, ali mesmo, ao som do mar, enveredamos pelo substantivo. E até o Rio só falei português com ela para deliciá-la.

Ao entrarmos a barra, com o coração partido, reunia coragem para dizer-lhe a última e uma das mais tristes palavras da nossa língua, que é Deus! certo de que ela seguia, com virtuosa pressa, para o aprisco conjugai, no Rosário, quando a vi aparecer linda e mais airosa que nunca, num esguio traje de flanela, com a cadelinha, reclamando as malas e um garrulo kakotoes que comprara em Dakar, a um negro. E disse-me, muito séria, abrindo a sua carteirinha de notas:

— Fico uns dias aqui, uma semana, talvez, para ver a terra, que parece bela, e concluirmos o substantivo.

Foi tão grande a minha surpresa que, em vez de atirar-me, ali mesmo, de joelhos, agradecido e alegre, beijando-lhe as mãos, fiquei imóvel e mudo, como fincado nas taboas do navio, com um tremor nos lábios, os olhos úmidos e o coração numa fúria, aos esbarros ao peito.

Desembarcamos juntos e subimos para a Tijuca e, num hotel dos mais agasalhados no bosque, com águas vivas brincando em torno, quedamos todo um mês estudando a gramática e as seletas. Todavia, sem esquecer os nobres deveres de esposa, escrevia, por todos os paquetes, minuciosas cartas ao marido falando, com sincero entusiasmo, da natureza do Brasil — a nossa incomparável natureza! — e louvando a rica, sonora e doce língua portuguesa, mais doce ainda em boca brasileira. E, lendo-me as suas cartas graves, sem as explosões dengosas que transbordam da nossa flácida correspondência de latinos bastardos, empalidecia e corava e toda tremia se os nossos olhos se fitavam num encontro fugitivo e lânguido. Por fim, ao cabo de um mês, reclamada pelo marido, que telegrafava diariamente, partiu. Levei-a ao Nile e, a bordo, na cabine, com lágrimas e beijos, recapitulamos algumas regras com a pressa assustada de um crime.

Em uma lancha acompanhei o paquete até a barra que nos devia separar e, ainda algum tempo, vi o lencinho de Betsey palpitando entre a cordoalha negra do transatlântico como uma borboleta cativa que se debatesse numa teia.

Voltei triste e recolhi a esta casa, que me pareceu mais fúnebre do que um jazigo, buscando esquecer esse sonho, delicioso e curto, certo de que nunca mais, oh! Nunca mais! Volveria à ventura e à utilidade daquelas horas de bem aplicado amor. No sábado, porém, com todo aquele frio, chegou-me pelo correio este bilhetinho.

Voltou-se e, de uma concha de madrepérola, pousada sobre uma trípode de bronze, tirou um pequenino cartão e leu:

“Senhor, aqui estou no mesmo hotel, na Tijuca; espero-o. Não posso compreender o particípio. — Betsey”.

Pôs-se de pé num salto ágil.

— Diabo! E eu que apenas desci para escolher Champanhe e Eheno na minha adega e aqui estou a tagarelar. É que me sinto fatigado, meu velho, fatigadíssimo...! E ajuntou, com malicioso sorriso: É árdua, em verdade, a vida de professor.

E lá foi para o quarto, lento e derreado, com o robe de chambre aberto e escorrido como as asas bambas de um escaravelho enorme.

— E o marido, homem?

— Ignoras que estamos no tempo da tosquia? Está a apurar lan.

— E tu aqui...

— Eu... Reapareceu em mangas de camisa e, abrindo os braços nos umbrais da porta, perguntou: Mas, dize: conheces fantasia mais original?

Uma mulher que se impressiona por um idioma?

— Fazes bem em dizer idioma.

— Por quê? Ah! Não, refutou logo depois, sisudo: Estás enganado — é séria.

E, a vestir-se, pôs-se a cantar, com música improvisada, desenvolvendo a sua bela voz de barítono, os versos do grande e puríssimo Ferreira:

Floresça, fale, cante, ouça-se e viva

A portuguesa língua e já onde for

Contente vá de si soberba e altiva...

UMA AVENTURA

Thomaz d'Alvite, o guapo Thomaz, com a perna estendida, enrolada em panos, estava, havia dois dias, naquela tolhida atitude, entre livros e charutos, lendo, fumando, cochilando e amaldiçoando as mulheres. Sim, as mulheres, porque todas as suas desgraças na vida, mais serena e afortunada do que a de Polícrates, vinham do feminino e era a inabalável certeza de que jamais conciliaria essas duas volubilidades — a Mulher e a Ventura, que o mantinha arredio ao casamento, inflexível no seu programa de continuar a viagem pelo mundo sem a companhia de uma esposa, só com o José e o Camilo, o alegre, o abacial Camilo, aluno de certa cozinha conventual onde recendia, espalhando por toda a província baiana a sua apetitosa fama, o gênio de um gordo beneditino, grande inventor de molhos.

Thomaz passava os dias no gabinete, que era a peça mais celebrada desse encantador retiro do Cosme Velho, Foi ai que me recebeu, estirado numa cadeira de complicadas molas, fazendo festas ao seu lindo angorá branco que o cercava, corcoveado e guloso, farejando uma caixa de hóstias de baunilha.

— Aqui me tens, meu amigo; e, com um gesto desolado, mostrou-me a perna espichada.

— Mas como foi isso, Thomaz?

— Como havia de ser ... Encolheu os ombros e, repassando maciamente a mão pelo dorso felpudo do bichano, suspirou: A mulher, meu amigo; sempre a mulher! Eu estava justamente a conversar com este felicíssimo animal, que não conhece as terríveis solicitações da carne e por isso engorda, como vês. Falava das gatas apresentando-lhe os inúmeros inconvenientes a que se expõe um gato íntegro quando chega a lua do amor, e ele concorda absolutamente comigo — acha que a tranquilidade é tudo e não lástima o prejuízo mesquinho porque a compensação é grande.

Mas vamos à verdade: Que há lá por fora, à grande luz Que tal é a malabarista que estreou no Cassino? Bom corpo Boa cara? Queres fumar! Experimenta um destes havanos, são ainda do tempo da paz. E fala-me da vida, conta-me tudo, tira-me desta ansiedade.

— Mas não tens os jornais, homem?

— Ora, os jornais... Os jornais são como essas essências destiladas em laboratórios: nada têm da flor e eu amo a vida verdadeira na agitação, no tumulto. Quero o perfume na própria pétala e não às gotas escorrendo de um vidro suspeito onde só entram composições quimicamente impuras. Pois eu vou lá julgar a vida pelo que dizem os jornais?

Estou lendo a Hécuba, de Eurípedes. Já leste?

Passou-me o volume e eu, sem abri-lo, descansando-o nos joelhos, falei-lhe da hedionda malabarista servi-lhe os mais frescos boatos, anunciei-lhe o reaparecimento da Edmeia, que chegara do Prata, mais corada e mais viva e com um grande cão vermelho com açamo e coleira de prata. Disse-lhe o que sabia sobre o frustrado duelo do Menezes com o Pânfilo, fiz, enfim, o retrospecto elegante daqueles dois dias e o pobre Thomaz ouvia com ânsia, mordicando o charuto, como se eu lhe falasse de coisas muito graves, das quais dependessem a honra e a vida do país. Quando terminei ele suspirou desesperado, eriçando os cabelos com os longos dedos hirtos:

— E eu aqui! aqui inerte entre velhos quadris e velhos livros, tresandando a panaceias e ouvindo a voz da minha incomparável vizinha, que anda agora em delírio romântico, ganindo lamentosamente a Adelaide. Abriu muito os olhos e afirmou, voltando-se para um canto, mostrando-me uma linda mesa de laça: Olha, tenho ali um revólver — se isto durar mais seis dias, suicido-me.

— Mas afinal, como foi! Fugias à fúria de algum Otelo? Poste surpreendido...?

Qual! a aventura — se o caso é digno de tal nome — é simplesmente cômica. (Eu tenho um breve contra as tragédias, preferia não tê-lo, porque gosto das emoções violentas, chego a procurá-las, mas fogem-me). Eis o caso, julga-o.

Na manhã de sábado, que foi admirável, lembras-te! Tinha eu um almoço no Metrópole com o dinamarquês, para tratarmos daquele negócio dos quadros. Saiu ao jardim para colher uma rosa, enquanto esperava o bonde, mas não sei que me deu, foi talvez o sol, o esplêndido sol que brilhava e aquecia maciamente, o culpado de tudo. O caso foi que me senti impelido para a rua com um desejo, novo nos meus hábitos preguiçosos, de descer a pé, vagarosamente, olhando os jardins ainda frescos, as casas mal abertas, surpreendendo as damas do meu bairro no gracioso desalinho matinal e as vivas crianças rindo com as cabecinhas loiras aninhadas nas rendas das capelinas.

(Esse amor às crianças preocupa-me seriamente — é a voz imperativa da natureza, é a impulsão do instinto e eu ando a fugir às companhias femininas com receio de algum disparate). Mas vamos ao caso. Parti a pé, num lento e curioso andar, bisbilhotando: aqui uma varanda onde canários cantavam, ali uma sala entrevista em penumbra, além outra de cortinas cruzadas; adiante o fundo de um quintal — o galinheiro, o tanque, criados, animais... De mulheres nada: ou dormiam ainda ou já se preparavam para a ilusão, compondo a beleza e reparando a velhice.

Ia eu assim nessa espionagem malévola quando vi escritos na casa do Andrade, conheces? Aquela de tijolos vermelhos, no fundo de um jardim sombrio que tem o ar recolhido e discreto de um parque fidalgo, onde há uma figura do inverno, de mármore enegrecido, com grandes barbas e cabelos derramados sobre um capote que a envolve toda.

Gosto daquela residência — tem aspecto e é silenciosa como me convém: longe da rua e com aquelas lindas árvores que lhe dão tanta sombra e a enchem de um aroma silvestre que dá a ilusão de florestas em torno. E o interior... um encanto! Tetos apainelados, frescos do Bernardelli, do Brocos, uma decoração soberba do Zeferino. Tive curiosidade de rever aquele recinto onde tanto gozei no tempo do comendador, principalmente quando ele lá não estava.

Tinha ainda uma hora, podia passá-la com as minhas reminiscências. Retrocedi e fui à venda pedir as chaves. Deu-me as o taverneiro, eram oito — uma imensa e pesada e as restantes pequena nas, fendidas, chaves para o bolso do colete, chaves que pareciam berloques.

Uma delas — qual seria? — trouxera eu muito tempo, dera-me a, com um beijo, aquela adorável Placídia que lá anda a visitar os lugares santos com o marido e o Mendonça, que se fez palmeiro por amor. A bordo, quando se despediu de mim, galhardamente e sem ciúme, porque o marido e ele são os dois únicos homens que ignoram que eu fui da intimidade da graciosa penitente, sussurrou-me ao ouvido, com vaidade e preocupação de espírito “Que ia levar a sua cruz ao Calvário”; e foi. Escreveu-me de Jaffa, ela escreveu-me de Jerusalém, espero carta do comendador, talvez do Santo sepulcro.

Mas vamos ao caso. Sim, vamos. Com as chaves encaminhei-me apressadamente para a linda casa. Abri o portão, travessei o jardim, onde a erva começa a crescer, ameaçando aqueles extraordinários caládios que eram o maior cuidado de Placídia. Junto às grandes árvores havia um veludo de limo e tortulhos pululavam. Lezardos fugiam ariscos, metendo-se pelos matos e, ao fundo, no pátio, sob a verdura florida do caramanchão de ipomeias, rolas mariscavam.

Subi à varanda, abri a porta que dá para a saleta de espera e, para arejar a casa, que tresandava à umidade, escancarei todas as janelas.

O sol entrou. Mas que tristeza, meu amigo, quando me pus a olhar aquelas paredes manchadas, com o papel despegado, esvoaçando aos farrapos, o grande lustre sem pingentes, com os globos quebrados e negros de poeira!

Ah! No tempo dela! Como tudo aquilo brilhava, como cheirava bem aquela sala muito confortável, muito aconchegada, muito macia ao andar com os seus tapetes felpudos, com os seus móveis de estilo, com os seus mármores alvejando nudezas de ninfas, com os quadros que eram como janelas de ouro abrindo sobre campos, sobre lagos, sobre interiores ou simplesmente com uma cabeça risonha ou severa como a espiar curiosamente a vida.

Eu olhava, parado no meio da sala, quando ouvi passos no corredor. Voltei-me e dei com uma senhora de preto que se encaminhava para mim com certa timidez e desconfiança. “Vem ver a casa, pensei. Achou o portão aberto, entrou. É natural”. Tirei respeitosamente o chapéu e afastei-me.

Ela parou, visivelmente vexada, a olhar-me. Apesar do véu, que lhe encobria espessamente o rosto, pude vê-lhe as feições um pouco “ultrajadas pelo tempo”.

Devia ter sido bela... Quando eu andava às voltas com o grego no meu último ano de humanidades. Os olhos grandes, pestanudos, conservavam um resto de brilho, o corpo era ainda airoso, sentia-se, porém, que se aprumava a custo como mantido por um colete inflexível que, se não era de aço, era ainda mais forte porque era de vaidade. Entreabriram-se-lhe os lábios num sorriso, pretexto para mostrar-me os dentes magníficos... Eu — o maldito hábito, que queres? — olhei-a também e também sorri. Ela, então, adiantou-se e, baixando os olhos, com uma voz trêmula de donzela que, pela primeira vez, confessasse o seu amor, falou-me:

Peço-lhe que me desculpe por me haver feito esperar tanto: não vi bem os números das casas e fui parar nas Águas Férreas; voltei a pé.

Fiquei verdadeiramente atordoado, a olhar aquela mulher que eu via pela primeira vez, numa casa vazia e que me falava em tom de amor, toda pudibunda, a torcer a borla do guarda-chuva. Senti um grande calor no rosto e as pernas tremiam-me, tremiam-me como se eu estivesse com sezões. Quis dizer alguma coisa, desculpar-me: Que ela estava enganada, mas não me saía uma palavra da boca que se ia ressecando como se a queimasse uma grande febre. Foi ela ainda que falou. “A sua carta chegou-me às mãos ontem à noite...”

— Positivamente tratava-se de um caso de amor, mas o que me intrigava era que ela me confundisse com o seu misterioso amante, que devia parecer-se estranhamente comigo para que o engano durasse tanto tempo numa sala clara, cheia do sol das onze horas. Eu conjecturava quando lhe ouvi, de novo, a voz bem timbrada e afagante:

— O senhor é casado?

— Não, minha senhora.

Passavam bondes, eu receava que da rua me vissem com uma mulher naquela casa vazia. Felizmente lá estavam as árvores, as boas árvores, defendendo-me da curiosidade perversa.

— Sim, porque... Com franqueza ... Eu teria remorso se soubesse que um pai de família deixava de cumprir os seus deveres por minha causa. E não tem ligações? .

— Vivo só.

— É formado?

— Sim, senhora.

— Médico? perguntou, inclinando graciosamente a cabeça, com uma faceirice de pássaro.

— Não, minha senhora: Sou formado em direito, mas não exerço.

— Ah! Suspirou, ajuntando: Os médicos saem sempre à noite e eu... Sou um pouco ciumenta.

E, expondo o pé bem calçado e fino, pôs-se a espetar a biqueira com a ponta do guarda-chuva. De repente, relanceando os olhos pela sala, disse:

— Mas nós não podemos conversar à vontade aqui. Venha à minha casa, moro só, ou, se prefere...

Adiantei-me então e, tremulamente — porque eu estava comovido, eu! procurei explicar-me:

— Perdoe-me, minha senhora, mas V. Ex.ª. está enganada, eu não sou quem julga.

Ela franziu o sobrolho, fitando-me:

— Como?!

— Entrei nesta casa como entraria em outra qualquer. Com simples intenção de escolher uma residência.

Depois de um silêncio, ela interrogou-me em voz surda:

— Então não foi o senhor que me escreveu para o Jornal, em resposta a um anúncio, marcando um encontro para hoje, às onze horas, aqui!

— Não, minha senhora.

Ela encolheu ligeiramente os ombros, mordeu os lábios e ficou a bater com o guarda-chuva no soalho que reluzia. Eu esperava uma solução e ela deu-me, pronta e decisiva, inclinando-se cerimoniosamente diante de mim com um: “Então queira desculpar-me, cavalheiro”. E solene, muito aprumada, saiu fazendo ressoar a sala deserta com o forte bater dos seus altos tacões.

Acompanhei-a com um olhar até que a vi desaparecer além das árvores, sempre ereta, sem o menor indício de indignação ou de amuo, com uma sobranceria distinta. Piquei ainda um instante pensando e rindo daquela cena original até que me lembrei do almoço.

Fechei, então, todas as janelas, fechei a porta e descia vagarosamente a escada de pedra, quando avistei um homenzinho bojudo, purpúreo, de largo chapéu de Manilha, que vinha esbaforidamente por entre as árvores, seguido de um pequenote em mangas de camisa. Dando por mim, o homenzinho parou junto a um banco e, disfarçadamente, pôs-se a enrugar o suor da fronte, abanando-se com o chapéu pequeno, que era da venda, falou-me em nome do patrão — “Que eu podia deixar as chaves com aquele senhor”.

Caminhei para ele com curiosidade e entreguei-lhe a penca de chaves. Resmungou um agradecimento e lá se foi muito afogueado, deixando patadas fundas na terra mole. Um suíno!

Não me contive compreendendo que era aquele mostrengo o autor da carta e, lembrando-me da mulher, ainda airosa, mais airosa na lembrança do que na realidade, tive um movimento de repugnância... por ela e, como esse movimento foi feito justamente quando eu me achava sobre o verde tapete de limo, à sombra de uma das velhas árvores, torci um pé não sei como e aqui me tens. Foi o pequenote que me foi buscar o tilburi que me trouxe à casa. Mandei um recado ao dinamarquês e aqui estou, há dois dias. É cômico, pois não é?

— É novo, Thomaz. E o homem?

— Sei lá. Agora o mais interessante em tudo isso é que eu não me perdoo o desfecho do caso. Foi indigno de um homem.

— É de uma mulher.

— E se eu anunciasse, que dizes?

— Para quê?

— Para quê?! Para provar-lhe que não sou quem ela pensa. Não admito que uma mulher fique a fazer de mim juízo tão humilhante. Mas eu sempre queria que visses o homenzinho da aventura. Ora, quem sabe lá! É bem possível que tenha sido mais gentil do que eu fui, com franqueza.

— Realmente, Thomaz...

— E o pior é que não penso em outra coisa. Estou aqui, estou a vê-la muito aprumada, espetando a biqueira da botina com a ponta do guarda-chuva. Calou-se um instante, depois, como para desculpar-se, disse: Sabes! O que me desorientou em tudo aquilo foi a falta de mobília. Uma casa vazia, cheia de pó. Que havia eu de fazer?

TRECHO DE CARTA

Não há grande homem para o seu criado particular, e eu acrescento, com segurança: nem para a mulher. A superioridade dos predestinados é uma pura ilusão que se esvai mais depressa do que um leve fumo que o vento esgarça e espalha no ar.

O homem é o mesmo, poeta ou pastrano — o que dele fica, quando a nossa fragilidade cede, é a bruteza animal. O ser divino que imagináramos rebaixa-se à materialidade vil.

Os próprios deuses olímpicos, quando desciam do Éter, trazidos por uma forte necessidade de amor, e buscavam as mulheres da terra, deixavam no Zodíaco a super essência e, só ardor, e só malícia, estendiam os braços robustos por entre a folhagem retendo ninfas ou perseguindo lascivamente as moças de Ceres, que ceifavam.

Quem os visse não os tomaria pelos numes que acumulavam as nuvens tempestuosas e disparavam os raios fulminantes ou, em plaustros, tirados por fulvos leões, realizavam prodígios com um leve mover do tirso a que logo respondia o som airoso dos coros sagrados.

Tu estás em crise de “intelectualismo”, acredita. Se é verdade que amas, com a alma apenas, a esse lindo Arnaldo, poeta e músico, — que tão bem me pareceu com a sua cândida reserva de maneiras e a sua doce voz de um timbre quase feminino, ainda puro, sem hipocrisia — (creio que foi o teu marido quem o introduziu no nosso mundo, que tanto estraga as almas com suas exigências de elegância e galanteria) — que tão suavemente diz os seus versos e com tão puro estilo interpreta Chopin e Schumann, deixa-te estar nesse amor contemplativo. Goza-o de longe, com o espírito apenas. Faze com ele o que se faz com uma flor rara a que se aspira o aroma, mas sem tocá-la para que se não fane.

Lembras-te que me disseste que um dia bebeste extrato de jasmins? Foi o perfume que te tentou. Que sentiste? Gosto de álcool, nada mais.

A minha frenética Heloísa deu-me há dias um grande e forte exemplo, que talvez te aproveite na situação em que estás. Íamos as duas pelo jardim — ela à frente, eu mais retardada, lendo uma carta em que o Alfredo se desculpava de não poder vir no próximo sábado. De repente, uma viva exclamação da pequena tirou-me a atenção da leitura. Heloísa, muito vermelha, com os dedinhos esticados, mostrava-me qualquer coisa que os manchava.

É uma violeta, disse. Não imaginas como cheirava. Colhi-a e, pensando que, se a espremesse, faria exalar-se mais intensamente o aroma, esmagaria e — já não cheira. Por quê?

“Mataste-a, minha filha e a alma, que era o perfume, lá se foi para onde vão as almas. Foi tudo quanto pude dizer à criança”.

O ideal é como o aroma da violeta — para que dure é necessário que a gente deixe a flor intacta e tu minha amiga queres justamente fazer o que fez Heloísa. Continua a admirar o teu artista se o queres amar sempre, com esse amor que sublimas porque, no dia em que cederes, todo o sonho se desvanecerá e ficarás apenas com o homem... Que não difere do teu jardineiro, como Heloísa ficou com os dedinhos maculados pela borra escura do que fora uma violeta.

Uma de minhas amigas de infância, romântica como tu, senão mais, apaixonou-se também, alucinadamente, por um poeta lírico, autor de um livro sentimental que muitas lágrimas nos fazia correr dos olhos quando, juntas, o líamos à sombra das velhas mangueiras. Casada com um oficial de marinha, dos mais distintos da nossa armada e que fora verdadeiramente amado pela infeliz, achou-se só quando o marido saiu para um cruzeiro de meses, com uma turma de aspirantes, e veio-lhe, de novo, a paixão dos versos tristes até que, um dia, — e foi em minha casa (sempre as malfadadas recepções!) que se realizou o sonho daquela cabecinha louca: o caso aproximou-a do poeta. Como já havia o pré-moral — ou imoral — em poucos instantes o grande lírico avassalou o coração da minha pobre amiga e ...

A mísera — disse-me ela mesma — dias antes da desejada entrevista sofreu horrivelmente com a ideia de parecer indigna aos olhos daquele homem admirável, cujo nome todos os jornais exaltavam em louvores magníficos. Construirá a residência do seu ídolo com os próprios versos da “Saudade”, a incomparável Elegia em que vem descrito o célebre retiro: um canto de misterioso silêncio, recatado em densa folhagem florida, com as finas águas de uma ribeira murmurando em torno e aves pacíficas e familiares cantando e tecendo ninhos por entre os ramos das árvores copadas. Via-o na penumbra pensativa do seu gabinete de trabalho, com a mesa, como um altar, carregada de flores, compondo versos eternos com a mesma facilidade natural com que um deus criaria mundos resplandecentes.

Como havia de falar, de corresponder, com a sua linguagem chan e balba, aos soberbos alexandrinos sonoros, mostrar o seu corpo àqueles olhos acostumados a contemplar os astros, beijar aquela boca que dizia tão perfeitas palavras?

Foi a tremer, como se caminhasse para o suplício, mais vergonhosa da sua ignorância do que do crime que ia cometer, que se dirigiu para o “silvestre retiro”. Ah! O “silvestre retiro...!”

Entrou pálida, as mãos frias, tremendo e, quando o grande homem a recebeu com um beijo de sátiro, fazendo-a sentar-se na mesma cadeira em que costumava ficar horas e horas compondo estrofes imortais, ela mal teve tempo de olhar as paredes nuas os móveis de uma vulgaridade paupérrima, o fino artista, o poeta sutil portou-se com verdadeira brutalidade. Ao deixar aquela casa banal, desarranjada e obscura, onde só vira desmantelo e pó a mísera trazia o coração torturado e por que não dizê-lo? Verdadeiro asco.

Dirás que o poeta era um sensual. Não, filha: era simplesmente um homem.

Se amas em Arnaldo o homem, procede como entenderes — não me quero dar ares de moralista, porque tenho que tal papel é sempre ridículo; mas se amas em Arnaldo o “espiritual”, a “alma” como disseste, evita o encontro para que não despertes na realidade mesquinha. Lembra-te do caso de Heloísa. A matéria é, em todos, a mesma.

Vais cometer um duplo crime: o de adultério e o de iconoclastia — contra a honra e contra o ideal. Evita-os, se tens força.

Ainda outro exemplo: (faço a minha moralidade à maneira de Montaigne). Em certo cantinho do interior do meu Estado alguém, a quem o caso interessava, anunciou, com alvoroço, que descobrira, no fundo de uma lapa, uma figura de pedra que chorava — e logo se disse que era uma santa. Tão depressa espalhou-se a notícia como se moveu a miséria enferma de todos aqueles recantos sertanejos. Carros com entrevados e cegos, liteiras, redes com febrentos e imensos hidrópicos arquejantes cardíacos ansiados, bandos de leprosos, caravanas hediondas de tísicos e pelas estradas e caminhos de Vale e monte, dia e noite, era um tumultuar de gente como nas retiradas tristes dos tempos de seca.

Em torno da lapa arranchava-se o povaréu gemente e todos, correndo à imagem, ajoelhados as mãos estendidas, recebiam uma gota de lágrima com que reacendiam os olhos, saravam as úlceras destravavam as paralisias, apagavam as febres reabriam a fala e os milagres eram apregoados ao som de cânticos e tantas e tão generosas foram as esmolas que, em dois anos, houve dinheiro para levantar-se uma capela.

Certa noite, porém, um homem que viera de longe, com grande angústia, sem paciência para esperar a manhã, foi direito à lapa implorando, baixinho, a misericórdia da santa.

O povoado dormia sob o céu estrelado, fogos alumiavam lividamente as barracas.

Entrando no santuário agreste, como só no fundo, junto do altar, resplandeciam lâmpadas e círios, o penitente, protegido pela sombra, ajoelhou-se e rezava quando viu um homem aparecer por entre as pedras da abobada, retirar a cabeça da imagem para ajustar-lhe um tubo à nuca e logo a água entrou a escorrer em fios dos grandes olhos da figura.

O penitente, que surpreendera a fraude infame, em vez de calar-se, saiu a contar o que vira e, na luz primeira da manhã, seguiram todos, em amontoada balbúrdia, para a furna, examinaram a imagem para cuja cabeça esfiava um filete da água canalizada e logo rompeu o tumulto, aos brados de ameaça contra o mistificador.

Mas um grande velho trêmulo, com as barbas esvoaçando ao vento, levantou-se no carro em que jazia e, de olhos erguidos, agitando os magros e compridos braços, falou:

“Por que havia esse homem de ir à lapa em hora imprópria? Nós todos que aqui estamos, uns já curados, outros melhorando, sem falar dos sãos que voltaram às suas terras, devemos o benefício à santa da pedra. Uns, que não andavam, já vão sós por seus pés; outros, que não falavam, louvam a bendita imagem; eu mesmo começava a rever o céu e a terra e, ai! de mim, reentro na escuridão, perdida a esperança de olhar o meu campo e os netinhos que por ele correm e que eu não conheço. Maldito seja o que viu e falou! Maldito seja o perverso! Não era a santa nem eram as suas lágrimas que nos curavam, era então a mesma fé que ele matou. Maldito seja o que viu e falou!”

E todos que ouviram as palavras lamentosas do velho levantaram vozes de maldição. E queres saber sobre quem recaiu a fúria dos infelizes? Sobre o denunciante que matara a ilusão.

Cuidado com o teu amor! Que ele não seja como o penitente. Não te aproximes do sonho — a realidade sempre desilude. As lágrimas da santa curavam como impressionam os versos do teu Arnaldo, não chegues perto, porém — darás com a desilusão, não queiras perder a fé que, no teu caso, é o ideal. E adeus.

Não te recomendo que destruas esta carta pois que é de teu interesse que dela não fique uma vírgula.

O final da curiosa carta perdeu-se ... O mesmo destino tiveram, com certeza, os conselhos da marona (o estilo é ... A mulher) que tão adocicada e perfumadamente a compôs.

EPITALÂMIO

Abriu os olhos e logo todo o seu dia da véspera, atordoado e novo, encheu-lhe o cérebro como uma grande e forte levada a que se houvesse corrido a comporta e se arrojasse violentamente, espraiando-se desimpedida e solta. Devassou a câmara larga e rica, com um mobiliário fino que rebrilhava aos toques do sol, em filetes e em nimbos, faiscando nos espelhos, dourando os rebordos das grandes peças de imbuia que ainda cheiravam a cola e a vernizes.

O soalho era todo um tapete com grandes flores abertas e retorcidas ramas graciosas. A um canto, um terno de damasco cor de morango: o divã, pequenino e baixo como um trono nupcial e duas poltronas largas, amplas, fofas, onde o corpo afundava em um ninho agasalhado e macio.

As cortinas de rendas afiavam de leve como em respiração e, por todos os cantos, apareciam flores e fitas em laços. Um grande ramo de cravos brancos com canutilhos trêmulos recendia mira vaso de Sevres; outros jaziam abandonados ao mármore raiado do lavatório, na almofada do psyché, fanados, morrendo naquele ambiente morno.

O cortinado, que encerrava o leito, estava todo entrelaçado de fitas e de torsais de flores de laranjeira. O rumor da rua chegava surdamente, abafado, como se toda a vida corresse vagarosa, silenciosa, para não interromper aquele primeiro sono nupcial.

Ele pensava. A seu lado, no mesmo leito forrado de seda, um corpo jazia encolhido e imóvel. Voltou-se e o seu olhar deteve-se naquele vulto de mulher, cujos cabelos douravam a almofada — fartos, de um brilho quente, tão finos que o seu hálito arrepiava-os. Olhando, via o relevar e o abaixar macio daquele corpo que respirava dormindo.

Era ela, a desejada Eulina, a sua sonhada noiva. Ela ali estava, aquela que ele tantas vezes desejara nas suas noites solitárias, evocando-lhe o perfil, toda a sua graça viva de virgem quando, recolhendo à casa vagarosamente, ainda a ouvir, como um eco, o leve murmúrio das suas mimosas recriminações ciumentas, sentindo ainda o aroma que lhe transmitira no apertado adeus a sua pequenina mão, com uma flor que ela tirara do colo para oferecer-lhe.

Deitado, insone, com que ânsia contava ele os dias que o separavam daquele divino momento em que, sós, ele e ela, na casa que ia sendo vagarosamente, caprichosamente preparada, longe de todo o bulício, num recanto novo de bairro, quase isolada como para maior segredo e liberdade, pudesse sentir o sabor daquela boca vermelha. Tinha-a ali, sua, toda sua e para o sempre!

Afinal, toda aquela ânsia desfizera-se na desilusão. Que era o sonho? Uma mulher. Todos os seus pensamentos, todos os seus êxtases, todo o seu longo e ardente desejar ali estavam naquele desengano material e comum.

Voltou rapidamente a cabeça e ficou um instante a olhar o corpo encolhido e imóvel. Que havia nele de superior aos outros corpos, tantos! Cujo calor, cujo aroma ele havia sentido e aborrecido com tédio? Eram as mesmas as curvas, era a mesma a alvura da carne, era o mesmo o brilho fulvo dos cabelos, era o mesmo o lento alongar de membros, era o mesmo o estremecer das carnes, o mesmo o negar, o mesmo o ceder. Vê uma era ver todas.

O que nelas diferia era apenas a exterioridade falsa, a aparência enganadora, a originalidade da sedução: nesta o arranco brutal, naquela a languidez, um cerrar de olhos mimoso, um carminar de faces, um sorrir meigo e pudico, por fim um abandono passivo de escrava humilde. Em outra sempre um tremer, um esquivar-se, um pedir choroso e risonho; ainda em outra a inércia da terra que se deixa lavrar insensivelmente; na virgem o medo, o terror inocente do desconhecido... Que mais que aquilo, aquilo só, falsas expressões externas de uma mesma banalidade efêmera.

O que torna a vida aprazível é justamente a variedade que dá a ilusão do novo e como poderia ele viver eternamente jungido àquela mulher já lhe parecia um encargo, um tropeço na vida que ele sempre levara fácil e contente, variada e a rir. Como poderia ela descobrir encantos diários que lhe dessem o imprevisto indispensável à manutenção do desejo?

O amor é um puro instinto no bruto; no homem o amor é uma estesia. E ele havia de viver até quando? Repetindo aquela mesma cena, como o enfermo que não pode ir além da dieta e, no regime em que vive, mais deseja os acepipes que cheiram, as finas iguarias dos banquetes, os pratos artisticamente combinados dos jantares finos. Ele então, que fora sempre um caprichoso, que, nos hotéis, exigindo flores à mesa, levava a reler os menus com vagar, num antegosto lento e saboreado e compunha receitas de saladas, buscando ingredientes como um poeta rebuscaria rimas para um poema. Teria ele forças para manter perpetuamente o juramento que lhe fizera, se já se sentia atraído pelo passado que procurava reivindicá-lo? Todas as lindas criaturas que apertara nos braços nas suas noites delirantes — umas louras, outras morenas, passando e fugindo como sonhos que se não deixassem sentir muito tempo para não criar o enfaro, revoavam em névoa nas suas reminiscências, falavam-lhe com a voz sutil que se ouve a sonhar, desfaziam-se, recompunham-se, riam, torvelinhavam como as visões indecisas e fluidas do sono que se esvaem a um leve voltar no leito e raramente tornam, amedrontadas, talvez.

E era toda a sua vida que se havia de modificar por imposição dos deveres do cavalheirismo e da vida.

Ainda na véspera, àquela hora, já o seu criado lhe havia servido o café e ele, com todas as janelas abertas, recebendo o sol do azul e o ar puro dos carapos que por além se estendiam, verdes e deleitosos, com casebres de palha e gados como uma tela, só, agasalhado no robe de chambre, o charuto a arder desfiando uma fina espiral de fumo, lia os jornais, informando-se do mundo, conhecendo toda a história da véspera, desde os combates no Tien-Tsin, à margem do Pei-ho, nas raias do Rio amarelo, até o assalto a um poleiro, a dois Zassos do seu jardim, numa chácara cujas árvores lhe entaipavam um trecho de paisagem.

Toda essa liberdade feliz ali estava, sentia-a subjugada por aquele corpo imóvel, era a sua própria alma que jazia cativa, para o sempre, irremissivelmente.

Ela acordara e, de olhos abertos, grandes e lindos olhos azuis, meigos como os de uma criança, com medo de que ele desse pelo seu despertar, conservava-se quieta, imóvel, batendo as pálpebras, pensando. Era aquilo! ...

Ela não ignorava de todo o mistério nupcial — a sua própria carne lhe fora desvendando aos poucos em suaves iniciações de sonho, adivinhara ainda alguma coisa, mas nunca pensara que fosse tão ríspida a verdade, tão cruel e brutal como um crime. Era aquilo o amor!

Toda a sua delicada esperança reduzira-se a um desacato, a um como assalto selvagem, no qual os mesmos beijos eram como punhadas que a magoavam doridamente na boca e nos olhos.

Sentia-se mole, quebrantada como se saísse de uma luta violenta. Tremiam-lhe os lábios secos um frio passava-lhe ao longo da espinha arrepiadamente, a espaços. Tinha as pernas dormentes, pensava em estendê-las, tirando-as daquela posição contrafeita. Mas ele ali estava, ele, o cruel, o mau, sentia-o perto, espreitando-a e escondia-se quietamente em fingido sono, refugiava-se naquela humildade apavorada.

Com que medo ela o vira caminhar no quarto onde apenas ficara uma lamparina sob a campana azul, vigiando como a lâmpada perene das capelas!

Com que medo ela o sentira no leito, agasalhando-se delicadamente como se lhe não fosse permitido ainda aproximar-se, temendo alguma surpresa: a repulsa, a ameaça, um grito que alarmasse toda a casa.

Com que medo ela ouvira o seu apelo trêmulo e logo sentira a sua mão gelada que a buscava, seguindo-lhe os contornos do corpo virgem.

Oh! A vergonha daquele instante, o assombro, a agonia e, ao mesmo tempo, o ferver do desejo naquele momento tremendo! ...

Que haveria no amor além daquela inenarrável tortura?

Por que não se deixará ela ficar na pureza com os seus idílios imaculados e incruentos do sonho? Um instante, como se a alma a houvesse abandonado, ficou como vazia, sem vida espiritual, alheia a tudo, de olhos muito abertos, parados, com uma nuvem a empaná-los. Um suspiro que lhe subiu do peito reanimou-a pelo terror — conteve-o. Pouco.

Pouco, porém, como se um calor a fosse envolvendo o corpo se lhe foi aquecendo, o coração pôs-se a bater com força, vagos frêmitos esfuziavam-lhe à flor da carne.

Ele! Sim, ele ali estava e era dela, só dela, para a eternidade! Outra não o teria, jamais! E, como o pensamento febril criasse instantâneos delírios, mergulhou ansiosamente o olhar na mocidade daquele homem que lhe pertencia e ficou como a debater-se em sombras, querendo descobrir as outras, as que ele amara, as que ele beijara, as que ele magoara com aquela irrefreável violência, subjugando, martirizando e ameigando. Teria ele jurado a alguma outra o que lhe havia jurado a ela? Não!

Uma suave sensação de afago passou-lhe pelas faces finas, aflorou-lhe a nuca e ela lembrou-se do contato do rosto amado e por todo o seu corpo foi então uma deliciosa carícia, um como bater de sol. Abriram-se-lhe os lábios úmidos, os olhos pararam extasiados e, esquecida do sofrimento, ia-se insensivelmente, irresistivelmente entregando ao sonho.

Devagar, como uma cobra que se desentorpece, desenroscando-se ao sol, foi esticando as pernas, repuxou a colcha e logo sentiu que ele se movia também, vagaroso.

Estremeceu sorrindo e sorria quando ouviu a voz que a chamava com doçura, interrogando-a sobre a noite.

Conservou-se calada, sem querer render-se ao carinho voluptuoso que a atraía, mas à insistência da voz, teve de responder: Que dormira bem. E ele? Não teve resposta, mas sentiu o braço que se lhe insinuava sob o corpo, colhendo-o, buscando-o. Voltou-se lânguida, olharam-se e ela viu-lhe os olhos amortecidos e ele viu-lhe os olhos envergonhados.

Ao vê-lo sair, animou-se a deixar o leito, sacudindo as cobertas, linhos alvos e seda rósea e, afundando os pés na felpa espessa do pelego, ficou a mirar-se ao espelho, toda branca na sua camisola de noiva, os cabelos rebrilhando ao sol que entrava pelos vidros acanelados de uma janela.

As suas sandálias ali estavam, juntas como dois veículos mimosos que a deviam conduzir. No respaldo de uma cadeira antiga, incrustada a marfim, dobrava-se o penteador de surah.

Hesitava, braços cruzados, encolhida como se estivesse à beira de uma água muito fria, temendo afrontá-la, buscando coragem para o mergulho. Resolveu-se, por fim, e, ligeira, numa corridinha infantil, foi dar volta à chave, isolando-se. Ele lá estava, no banho.

Só, então, certa de que ninguém a veria, adiantou-se airosa e, pondo-se diante do espelho, que a refletia da cabeça aos pés, procurou ver se no rosto alguma coisa anunciava a sua transfiguração. A boca parecia mais vermelha, talvez da pressão dos beijos; os olhos pareciam maiores, talvez do espanto; o colo parecia mais alto, mais cheio; talvez da angústia. E lá fora esperavam-na com maliciosa curiosidade, comentavam, com certeza, a sua demora. Que horas seriam? A pêndula de bronze lá estava sobre o pequenino chiffonier de pau rosa. Dez horas.

Juntou as mãos num espanto:

— Deus do céu! Tão tarde! Estavam todos de pé...

Como havia de ser?! Ficou a pensar, sorrindo e todos os seus dentinhos, em claros renques, brilharam no espelho. Como havia de ser! Sentiu um arrepio e, acolhendo-se junto ao leito, no pelego, ficou a imaginar os disfarces de que se serviria para mentir à verdade, para iludir a curiosidade que a esperava. Deu de ombros com indiferença... Não era a primeira! E, calçando as sandálias, sentiu a maciez e o aconchego do almofadado e, já esquecida de tudo, viveu um momento para aquele gozo, arregaçando, com faceirice, a camisola para admirar os pezinhos brancos naquele estojo de seda e ouro. Saiu, então, travessamente pela câmara a olhar, a examinar os objetos, a admirar aqueles arranjos que ela mesma dirigira, revendo tudo, com o pensamento nele.

Estaria ele satisfeito? Ele, tão exigente, que vivia a falar sempre em Arte com um conhecimento raro. Estaria satisfeito? Lembrou-se, então, dos quadros, dos bronzes, dos mármores, dos estofos, das armas que ele trouxera.

O gabinete era ali ao lado. Lá estava a porta defendida apenas por um reposteiro. Ele deixara as janelas abertas, ela sentia o sol a iluminar todo aquele admirável interior. Abandonou as sandálias, pés nus, tímida, caminhou vagarosamente com o coração sobressaltado. Colhendo o reposteiro, afastou-o e pôs-se a olhar, deslumbrada e orgulhosa.

O sol enchia o aposento de uma luz geral e alegre que fazia realçar todo aquele conjunto rebuscado de damascos e metais, mármores e madeiras todas escuras e severas, o ouro das molduras e os livros muito ordenados, todos com as lombadas vermelhas, com ferros simples, nas altas estantes negras.

A mesa sólida sobre pés retorcidos, com pregaria e entalhes, as cadeiras de couro tacheado, o espaldar aprumado e alto, obrigando a atitudes graves, um grande sofá, venerável relíquia tradicional dos seus que ele aceitara do sogro com muitos louvores ao trabalho e ao gosto respeitoso da família, que vinha trazendo do passado, através das gerações, aquele móvel reforçado e solene.

Ali, em pequena, ela brincara com as amigas: batizados de bonecas, comédias infantis da vida que apenas sentia. As suas companheiras, que o destino espalhara, umas conservavam-se ainda solteiras, outras, casadas, já tinham filhos. Umas viviam longe, em fazendas; Emília na Europa, Cândida... nem lhe falavam dela. Vagamente lhe haviam chegado os rumores de um escândalo: que deixara o marido, que andava perdida. Lá estava o velho amigo que as acolhera crianças, lá estava como remoçado na companhia daqueles alegres quadros, daquelas luzentes armas que fulguravam em panóplia na parede, daqueles bronzes, daqueles mármores.

De repente, num ângulo, uma mancha muito clara chamou-lhe a atenção: apertou os olhos, e para ver melhor, adiantou-se, inclinou o busto, atreveu um passo no gabinete, por fim, resolutamente, atravessou-o em pontas de pés e lá foi ver de perto e pôs-se a rir ao dar com um menino, um rechonchudo menino nu, os cabelinhos encaracolados, rindo, rindo contente, com um ninho nas mãozinhas gordas como a mostrá-lo e ela, diante daquele riso da pedra, esqueceu tudo e enlevada, enternecida, ficou sorrindo, não da graça ingênua da figura, mas da beleza, da inocência, da travessura da criança, que parecia vir de um sonho, acentuando-se pouco a pouco linda, meiga e viva como se viva fosse.

Em torno, o sol da manhã rebrilhava e aquecia e ela sorria ao mármore da sombra.

VIÚVAS

— Sinto que ele ainda não se foi de todo, Hermínia: a morte não é uma destruição, é um lento acabar, um lento sumir. Vai-se o cadáver, mas... O corpo que morre é como um frasco de fina essência que se quebra deixando a casa, por muito, impregnada de aroma, até que o tempo o vai desvanecendo, e fica somente a saudade, que é a memória do coração.

À hora em que ele costumava chegar, encaminho-me instintivamente para o gabinete, colo o rosto à persiana e fico à espera. Se ouço passos, volto-me, com o coração transido, certa de que o vou ver sorrindo, a estender-me os braços, como dantes. Nada, ilusão. Torno ao meu posto e toda a melancolia do crepúsculo condensa-se em minha alma, enche-me de tristeza e fico a chorar, a chorar chamando-o baixinho, com uma voz soluçante e cheia de beijos.

Se abro um móvel, sempre encontro alguma coisa que me recorda: uma carta, uma nota a lápis, às vezes cigarros. Em um dos seus casacos achei um lenço ainda perfumado. Enquanto durou o perfume vivi com ele. Às vezes acordo, a horas altas, sentindo-me afagada. Sento-me no leito, fria toda gelada, a tremer, e passo o resto da noite em claro a pensar nele, com saudade e com medo.

Os móveis estalam, o soalho estremece, os cristais ressoam, névoas empanam os espelhos; por vezes a chama da lamparina inclina-se como a um sopro... É ele que anda em torno de mim, a espreitar-me ciumento.

Uma noite alarmei a casa com os meus gritos, porque o vi distintamente: de pé, no meio do quarto, pálido, imóvel, os olhos fitos em mim. Eu quisera esquecê-lo, mas não é possível, porque ele faz-se lembrar a toda a hora. O corpo, esse nós sabemos que jaz sob a terra, mas a alma...?

— E tu acreditas na alma!

— Sim, acredito.

— És muito nova. Tu o que sentes é a falta do companheiro de dois anos felizes. Ainda não te habituaste à viuvez.

Dá-se contigo um caso idêntico ao que sempre refere o coronel Juvêncio. Sabes que ele foi gravemente ferido na revolta: esteve entre a vida e a morte e, para salvá-lo, foi necessário que um cirurgião lhe amputasse a perna direita. Deixando o leito — disse-me ele mesmo — sentia dores na perna que perdera: eram alfinetadas, dormências e, até hoje, volta e meia, carrega o sobrolho, trinca o beiço, mastiga uma praga, porque um terrível fio que ele tinha no pé direito — que Deus haja! — lá lhe finca uma ferroada que o faz ir às nuvens. Tu estás assim.

Há uma grande e inquebrantável solidariedade entre os membros do corpo e a saudade física, feita de sensações, é, sem dúvida, muito mais violenta do que a saudade sentimental que a Poesia apregoa dando-lhe por sede o coração.

Tu o que sentes é a falta do marido que te acariciava. Não creias em almas. Se me disseres que a alma reside nos lábios e manifesta-se em beijos, bandeio-me com o espiritualismo; de outro modo, não: fico a intransigente, a inconversível materialista que sou.

— Não acreditas, então, no amor desinteressado, feito apenas de sentimento?

— Não. Todo amor é interesseiro: o homem ama a terra pelo que ela lhe dá e não pelo que ela é. É o seu trabalho, o seu esforço, o lucro que ele ama. Cada flor que nasce lembra-lhe um minuto de fadiga — é o seu amor que desabotoa, são as suas penas que frutificam. O amor de mãe que é, na aparência, o mais desinteressado, é um puro egoísmo, inconsciente, dirão, não sei — egoísmo sempre. Não é o filho, o adventício, que ela acaricia e defende, é a sua própria natureza, a dilatação do seu “eu” que ela garante. O ramo novo que rebenta na árvore é árvore. O filho é a recordação viva de um gozo.

— E de um sofrimento.

Não se ama por amor, ama-se por fatalidade. O amor é uma função fisiológica que o espírito reveste de um sentimentalismo puramente decorativo. Os nossos avós, nas cavernas, gozavam e devoravam. Nós inventamos o amor e o comer. No fundo somos ainda os mesmos trogloditas brutais: sem o flirt, sem os menus delicados, encontramos o mesmo espasmo e a mesma posta de carne sangrenta.

— Tens ideias extravagantes.

— Verdadeiras, minha amiga. Vejo claro e falo sem rebuço. Em sociedade, para não ir de encontro ao convencionalismo, componho conceitos sutis cheios de moralidade; mas, aqui, entre nós, digo o que penso e como penso.

A mim sucedeu o mesmo — conheço bem esse estado em que te achas e sofri muito, garanto-te. O que dizes da morte é verdadeiro, há efetivamente duas mortes — a primeira a do corpo, que é rápida; a segunda a da alma, — quero dizer: a do hábito, que é lenta: é como o findar de um dia.

Vai-se o sol, desce no horizonte, mas o céu fica, ainda algum tempo, iluminado, fulgem nuvens de fogo, pouco a pouco, porém, o violete vai invadindo o oceano e esbate-se em cor de pérola, esmaece e a sombra desenrola-se por fim.

Tu estás no pior momento que é o do começo do crepúsculo. É o instante dorido das evocações quando o coração recapitula o dia que passou.

É triste, não nego, mas, que seria de nós se as horas não fossem aladas? Virá a noite que tudo escurece e dormirás, não sem sonhos, mas com a consoladora certeza de rever o sol da nova madrugada.

És viúva de ontem. Eu já duas vezes fui ao cemitério levar coroas de saudades e acender círios a mortos.

Começa agora a tua noite, eu já sinto frescor, já entrevejo a claridade da manhã que espero. As minhas cores são menos carregadas do que as tuas, os meus olhos já se não abrumam com o véu funéreo e preparo-me para gozar o sol, o alegre sol da vida.

Há muitas que não esperam o luzir da manhã. Para não tremerem de medo, isoladas na triste noite da viuvez, buscam uma lâmpada discreta que, em casos tais, é o amante. Não tomes as minhas palavras como conselho, acho, porém, que te não deves entregar à melancolia, que é devastadora.

És nova e formosa, sem filhos e com fortuna; que mais queres! Cumpre a tua pena suavemente, mostra-te à sociedade viúva, bem enlutada, bem comovida, mas vai tratando de escolher o partido que te convém. Não creias que se possa viver de saudade. As viúvas da índia conservam-se fiéis porque se suicidam, só por isso.

Há alguma coisa mais forte do que o sentimento, acredita: é a vida que nos corre nas veias, que vibra em todos os nossos nervos, que freme em relâmpagos sensuais à flor da carne. Reagir! lutar? tolice. O destino material da Espécie é um único, não queiramos corrigir a obra divina. Se nos perdemos pelo amor a culpa é daquele que nos fez amorosas.

Estás no período triste, atravessa-o e, ao longo da travessia, vai recordando o que gozaste durante a vida do Alberto. E não repitas mais as palavras imprudentes que saem da tua superexcitação. A mim podes dizê-las, porque eu as tomo como as devo tomar; outras, porém, que te invejam, rirão, mais tarde, da tua leviandade, acusando-te de hipocrisia. Há mulheres que têm prazer em ser mártires. Há muitas, algumas conheço eu: são como freiras que fazem voto de castidade, mas, se queres que te diga: não troco as minhas noites pelas de tais “virtudes” e afirmo-te que, por mais que faça, eu que passo por estroina e não sei que mais, nunca farei tanto com os amantes que me atribuem como essas solitárias fazem com os seus pensamentos. Ser casta não é fugir ao amor, é saber amar. Vem passar uns dias comigo para conversarmos sobre os nossos maridos... Que o meu também, refiro-me ao segundo, que conheceste, era um belo homem, lembras-te?

E, passando a mão pela cinta de Augusta, Hermínia atraiu-a docemente obrigando-a a sentar-se-lhe ao colo. Ambas suspiraram e, de olhos perdidos, ficaram um momento caladas, na penumbra carmesí do boudoir silencioso, olhando vagamente, extasiadamente, a rever o passado... talvez a forçar as sombras do futuro.

SONHOS

Ao entrar, com uma assustada vivacidade, comovida e agitada das emoções daquelas horas tão curtas, sentindo ainda uns arrepios de gozo fosforejarem-lhe à flor da pele, fogosamente passeada por aqueles lábios adorados que iam deixando, onde tocavam, um fervor de beijos, beijos que pareciam ter ficado, vivos e quentes, escaldando-lhe a carne, foi logo para os seus aposentos, fechando-se, com receio de que a esperta criada aparecesse e, com a longa prática que tinha de mulheres, despindo-a, descobrisse nas suas brancas espáduas e no seu colo turgido, onde os pequeninos seios, abotoados em bico róseo, conservavam ainda a resistência virginal, algum vestígio daquela boca alucinada que andara como a querer arrancar-lhe a vida, sorvendo-a, sugando-a pelos poros.

Mesmo no ajustar do colete, no abotoar do corpinho devia haver enganos denunciadores porque ele, a rir, desajeitado e trêmulo, pusera uma tão estouvada pressa, que tudo devia estar em desordem fácil de ser constatada por quem era tão hábil e cuidadosa no vestir e ainda a vestira naquela manhã, observando, com intenção, talvez, todos os jeitos, as mínimas dobras e arrepanhos da cambraia e da seda para certificar-se, ao despi-la, da sua virtude ou sorrir maliciosamente do seu primeiro pecado.

Vendo-se ao espelho alto achou-se mais bela, com cores mais vivas nas faces, um brilho mais cintilante nos olhos e ficou a rir, recordando peripécias daquela manhã tão cheia de surpresas para a sua alma ingênua e de gozos tão novos para a sua carne honesta: assaltos lascivos que a faziam rir, contorcida, rebolcando-se no largo leito, a debater-se numa aflição deliciosa, fugindo àquelas mãos nervosas e àqueles beijos loucos.

Começou a despir-se ligeira, com a pressa saltitante e trêfega de um passarinho que se espaneja e sacode na água, batendo tremulamente as asas, arrufando as penas. Em camisa, espezinhando a roupa, correu para a cama, atirou-se de costas e, estirada, as pernas cruzadas, ainda com as botinas que lhe comprimiam a carne roliça que transparecia nas meias abertas, os braços em curva na almofada, como um reverbero à cabeça muito loura, ficou a cismar, arrependida daquele crime ingrato e ansiosa pelo dia do futuro encontro e dos novos delírios.

Mas as horas corriam — resolveu, então, chamar a criada. Abriu a porta, tocou a campainha e, quando Dolores apareceu, toda assustada, estranhando que ela se houvesse despido só, pretextou uma vertigem — “subia as escadas a correr, com a vista turva, tonta; nem mesmo se lembrara de a chamar, fora arrancando tudo”. E mostrou a roupa em amontoado abandono pelo chão, nos tapetes, atirada a esmo na ânsia do sofrimento. Descansara, estava melhor; ficara-lhe apenas um atordoamento.

A criada, sem dizer palavra, foi recolhendo as peças do vestuário e ela, da cama, olhava, ainda receosa de que alguma coisa dele houvesse ficado para denunciá-la — o seu perfume, talvez, que ela bem o sentia nas mãos, na boca, como um sabor, e subindo-lhe de todo o corpo, em eflúvios.

Que diferença entre ele e o marido! Um claro, esbelto, com tão lindos olhos, de um verde transparente, os cabelos muito louros, as mãos brancas e finas; o outro pesado e gordo, com banhas flácidas, moreno, a pele áspera e viscosa, uma voz mole passando-lhe através das barbas negras como uma água grossa e lodosa que rola vergando as ervas de um pantanal, sempre com o sarrido da asma e a tosse.

Quando desceu para jantar, depois de uma ablução ligeira, perfumada a feno, de branco, os lindos cabelos em bandos, à antiga, com uma penca de angélicas no seio, o marido, que discutia finanças, no terraço, entre dois amigos bojudos, recebendo-a risonho, com ar de triunfo, mirando-a toda, a gozá-la, e ela com a sua compostura recolhida e modesta de educanda, inclinou-se, oferecendo-lhe a fronte por onde a grossa barba roçou, áspera e dura.

Os amigos, que eram da intimidade, gabaram-lhe o esplendor de saúde afirmando que aqueles ares puros da serra e aquelas águas que brotavam das pedras, entre folhas, pelos verdes cantos dos bosques haviam de lhe ser mais úteis do que todas as drogas que ela andara a ingerir na cidade. Aquilo sim é que era viver. Quando tivera ela lá em baixo aquela encantadora surpresa de receber visitas de borboletas na sua própria câmara? Disso só ali na serra. Ela sorria.

À mesa a conversa encaminhou-se para as festas que se preparavam: o cottillon do Club, a garden-party do ministro russo e o baile na legação japonesa, do qual já se diziam maravilhas — que a senhora do ministro, a elegante madame Nádura traria os trajos tradicionais do seu país e um dos amigos rosnou: que ouvira falar em certos vinhos preciosos, de uma ilha célebre do grande império, que alcançavam grandes preços, mesmo em Tóquio.

A palestra aquecia-se. Romperam as indiscrições dos fins de jantar: casos da vida elegante, cochichos maliciosos. Um dos amigos, médico, a propósito da influência irresistível que certo secretário de legação, homem feio e grosseiro, enercia sobre algumas senhoras da alta roda, falou do domínio imperativo da vontade de uns tantos privilegiados sobre criaturas frágeis. “Há homens tão poderosos que, com um simples olhar, seriam capazes de arrastar ao crime a própria Penélope”.

O comendador protestou escandalizado, o médico, então, para o convencer, referiu um caso de sua clínica: Certa dama que, depois de haver sido, por ele, tomada pelo hipnotismo, ficara de tal modo escada à sua vontade, que ele, ao sair, sempre citava com medo de que ela o fosse acompanhado. Riram. Foi então um longo citar de casos e de nomes: Madame F.; a menina L.; a mulher de fulano; a filha de sicrano; esta que, durante as crises, cantava com uma voz admirável e recitava Musset; aquela que ficava dias a dormir, em imobilidade de morte; outra que profetizava; uma, sonâmbula, que errava pela casa, à noite, sem esbarrar em um móvel, de olhos abertos, mas cegos. Foi então que o comendador, um tanto excitado, lançando um olhar malicioso à mulher, disse:

— Eu também posso contar alguma coisa; e, com intenção, explicou: Conheço certa senhora que ao sonhar, é a coisa mais engraçada deste mundo.

— Quem é? Perguntaram os dois. O comendador fitou a mulher que descascava tranquilamente uma pera.

— Ora! Quem há de ser!? Todos voltaram-se para Dulce.

— Fala-se de mim?

— De quem há de ser?

— Não sei porque... Tornou com risonha indiferença.

— Ah! não sabes...? Sei eu. E fitando-a, com os cotovelos na mesa, o cálice do Porto entre os dedos: E se eu disser?! Não te zangas?

— Zangar-me? Eu...! encolheu os ombros. Não me zango assim.

— Pois então lá vai. Virou o vinho de um trago e dirigiu-se aos amigos: sejam testemunhas de que eu vou falar com o consentimento dela... sem isso eu não seria capaz de quebrar o selo do segredo.

— Eu não tenho segredos.

— Ah! para mim não os tem, nem os teria, mesmo que quisesse, garantiu com um vozeirão e certeza. Pois ai vai o caso. Os dois amigos sorriam atentos, no antegosto daquela confidência. O comendador, voltando-se todo na cadeira, encarou de frente a mulher: — Então decididamente não danças mais com o Bráulio? E desatou a rir com estrondo. Ela olhava-o impassível. Vamos lá, responde. E não danças mais com o Bráulio?

— Por que me faz esta pergunta?

— Por quê? Porque tu mesma juraste à tua amiga Clotilde que nunca mais dançavas com tal sujeito, e olha que o caso é para felicitações.

— Pois não! Concordaram os dois.

— Eu ouvi tudo, minha amiga. E nota que não andei a escutar pelas portas: estava tranquilamente deitado, quase a dormir, quando começaste a resmungar e depois a tagarelar, que foi um gosto. E pensas que só sei que o Bráulio foi posto à margem por insuportável? Sei muitas coisas mais, sei toda a tua vida, dia por dia, hora por hora. Ela empalideceu e o marido repetiu: Sei tudo! E, afagando-a, ajuntou: Tenho em ti mesma um espião que me conta tudo. Basta que durmas para que eu saiba o que fizeste durante o dia: onde andaste, com quem conversaste, até as continhas que foste deixando ai por essas lojas. De olhos muito abertos, lívida, Dulce fitava o marido triunfante. Um dos amigos, sentindo o peso do silêncio, murmurou:

— É curioso, pois não... É muito curioso!

— E é isso todas as noites, não falha. Eu já lhe acho graça e estou tão acostumado, que não durmo sem a habitual exposição que me faz a senhora minha mulher.

— De sorte que, disse o médico, é como se ela lhe fizesse todas as noites a leitura do seu diário.

— Exatamente. Dulce mantinha-se calada, brincando com um raminho de violetas, sentindo o coração crescer-lhe no peito, tremendo, sem ânimo de levantar os olhos para o marido, que ria. Depois do conhaque passaram ao terraço que o luar prateava. Enquanto os homens falavam ferindo ligeiramente assuntos vários, ela, debruçada à grade, olhando o jardim, pensava nas palavras terríveis do marido. “Sim, tudo quanto ele dissera era verdade. Aquilo com o Bráulio... ela só falara à Clotilde... Portanto ele soubera por ela mesma, que lhe dissera na inconsciência do sono. Assim, antes de amanhecer, ele ouviria da sua própria boca a narração minuciosa de todos os episódios infames daquele dia: a sua ida ao cottage, a entrevista com o amante, os beijos que trocaram, tudo quanto, no delírio de um primeiro encontro, haviam praticado. E ele? Oh! conhecia-lhe a fúria ciumenta...! Como havia de ser? Como havia ela de dormir a seu lado? Não! Passaria a noite em claro, uma, duas, três, sempre, se preciso fosse; deixar-se-ia morrer esgotada pelas vigílias, preferível à morte violenta e dolorosa a punhal ou a tiro porque tinha certeza de que ele à mataria”.

Tremia e, apesar do frio da noite, estava ali ao relento tão insensível como aquelas figuras de mármore, nuas, que branqueavam na quietação do luar entre as moutas escuras. Súbito, porém, numa necessidade de ficar só, de pensar, pretextando uma dorzinha de cabeça, pediu licença e retirou-se.

Subiu para os seus aposentos seguida de Dolores, deu toda a luz ao gás, despiu-se e, com um leve penteador de surah, recostou-se derreadamente na espreguiçadeira, com um romance.

Quando se achou só não pude conter o pranto e, a soluçar, toda fria e arrepiada de medo, olhava para o leito alvo como se fosse um altar de imolação. “Que horror! meu Deus. Que horror! E é verdade que eu falo à noite, já mamãe me dizia e Lúcia ria de mim. Ele não mentiu. Em solteira eu contava tudo... E esse homem é capaz de matar-me!”

Foi à janela, abriu-a sobre a noite luminosa e quieta vendo, ao longe, como uma paisagem a carvão, o bosque negro sobre o fundo alvacento do luar. “Se fugisse?! mas como? Para onde? Só se fosse para o cottage, mas era tão longe, ao fim de um caminho tão deserto e àquela hora Bruno estava no Club. Deus do céu! Que ia ser dela, tão só, com aquele homem que vivia a espreitá-la, que tinha sempre uma observação a fazer, à volta dos bailes, por isto ou por aquilo — uma conversa mais longa, duas valsas com o mesmo cavalheiro... Que ia ser dela?”

Um cheiro suave de jasmins embalsamava o ar de longe, em suave surdina, vinham sons de instrumentos, tão leves como aquele aroma disperso na noite — era a orquestra do Club.

“O que é preciso ó que eu não durma. Passarei a noite aqui na cadeira, lendo e amanhã... Amanhã desço com ele, a pretexto de ver mamãe e ... Abro-me com ela, digo-lhe tudo, peço-lhe que me salve. Mas que loucura! Onde tinha eu a cabeça? E é só à noite que sonho e falo. É só à noite... Por quê? De dia, não.” Levantou os olhos para o céu; uma coruja atravessou os ares chirriando, o coração bateu-lhe com mais força e celeridade em presságio de morte.

Romperam vozes no jardim: “Até amanhã. Adeus! Respeitos! ...” Eram os amigos que partiam. Sentiu todo o sangue fugir-lhe, as pernas dobravam-se-lhe, de novo lhe subiram lágrimas aos olhos. Agarrou a cabeça a mãos ambas apertando-a com frenesi e, por entre os dentes cerrados, numa voz surda, pôs-se a dizer: “Mas, meu Deus! Eu estava louca! Eu estava louca”. Conteve-se, de repente, ouvindo o pigarro do marido; correu para a cadeira, com o romance e estirou-se a ler. Ele entrou vagaroso e vendo-a, muito sisuda, deteve-se à porta, perguntando:

— Estás zangada? Ela teve uma inspiração instantânea e conservou-se imóvel, de olhos no livro, seria. Ele adiantou-se, insistindo: Estás zangada?

— Ah! Não, hei de estar muito satisfeita... se lhe parece. E encarou-o com severidade: Pois o senhor acha decente o que fez? Humilhar-me em presença daqueles homens, como me humilhou. Amanhã toda a cidade saberá que eu conto em sonhos, tudo quanto faço e que o senhor, curioso de detalhes, querendo informar-se da minha vida porque, certamente, desconfia de mim, vela até tarde, como um tirano, para ouvir o que digo... E todos rirão de nós, mais do senhor que de mim. Algum deles já lhe fez confidências escancarando a sua alcova para a devassa ridícula a que o senhor sujeitou a nossa intimidade? Não! É que preza, talvez, mais a sua casa e respeita, como deve, a sua família.

Ele passeava cabisbaixo, alisando a barba negra e dura. Eu sei que falo quando durmo, sei: já em solteira era assim, muitas vezes mamãe levantava-se para acordar-me: sonhava com as minhas leituras, com as minhas palestras, com os meus brinquedos e nunca mamãe andou a repetir as palavras que eu pronunciava na irresponsabilidade do sono. O senhor não: escolheu-me para assunto ridículo da palestra, sujeitou-me às gargalhadas dos seus amigos e ao riso dos criados. Fez muito bem. Eu, francamente, sempre pensei que o respeito que se deve a uma senhora não consistia apenas em não injuriá-la e em lhe não bater... estava enganada. O homem pode fazê-la corar tanto que o sangue lhe rebente das faces...e desatou a chorar.

Ele ajoelhou-se arrependido, tomou-lhe as mãos e, beijando-as, beijando-lhe os cabelos, pôs-se a pedir perdão, confessando que fora uma tolice, “um pouco mais de vinho...”

— Sim, sim... Mas, que diabo! Não fora com intenção de ofendê-la... Até lhe pedira licença. Bem percebera que ela se havia retirado magoada. Quisera acompanhá-la, mas... Com aqueles homens lá em baixo. Eram águas passadas. E levantou-a, apertando-a nos braços, raspando-lhe o rosto fino e molhado de lágrimas com a barba negra e dura. Deita-te, anda! E não se fala mais nisso. Foi uma tolice, foi, confesso. Põe-te à vontade e nada de choros. Sentes alguma coisa? Doe-te a cabeça? Não... Melhor. Tu o que estás é nervosa.

— Ah! Não hei de estar... Nem eu sei mesmo como não tive aqui um ataque. E, despindo o penteador: Quem é que liga importância a sonhos? Só um homem como o senhor.

— E quem te disse que eu ligo importância a sonhos? Não ligo tal, falei por falar. Tolices. Mas deita-te. Diminuiu o gás. Queres que apague? Fechou-o e, à luz branda e rósea da lamparina, dirigiu-se para a cama onde a mulher já se havia agasalhado, e pensava: “Que faria ele se a ouvisse? Não, o melhor mesmo era conservar-se acordada. Dormiria durante o dia”.

Quando o sentiu no leito, ouvindo o sarrido da asma, estremeceu. Um brilho fino e acerado do biseau do espelho deu-lhe a fria impressão de uma lâmina mortal! Encolheu-se com um grande medo, combatendo o sono. Sentiu que o braço do marido se lhe ia insinuando sob as costas, soergueu-se de leve.

Despertou sacudida e, sentando-se, estremunhada, deu com o marido a mirá-la e logo, com terror compreendeu que sonhara e que tudo dissera. Passando então as mãos pelos olhos, como a limpá-los de uma visão, exclamou:

— Que horror! Que horror de sonho! É isto! Quando estou nervosa. E, voltando-se para ele: Eu falei? Que disse eu? Ele coçava vagarosamente o peito largo e respondeu:

— Tolices... Tolices... Mas dorme, descansa. Instantes depois, no silêncio, aconselhou: O que tu deves é deixar essas leituras de romances franceses. E ela, compreendendo a alusão, acolhendo-se ao seu peito, fazendo-se pequenina junto dele murmurou:

— Eu, às vezes, sonho cada extravagância... E tu ainda dizes que eu conto a minha vida.

— Pois sim, pois sim... Não se fala mais nisso. E dorme que estás nervosa... e, meigamente, a ofegar com a asma, pôs-se a amimar-lhe a cabecinha loira.

CORAM

Digo-te, e com a certeza firme de um convicto, que o homem, rastreando, desde o Paraíso, o coração feminino só tem conseguido rebalsar-se numa cerrada floresta de enganos — a caça vai-lhe fugindo sempre, deixando, para desorientá-lo, um almiscar nas trilhas enviesadas que formam o labirinto intrincado da dissimulação. Mais depressa o bronco pastor da serra surpreende, na poeira rutilante das nebulosas, um novo astro do que o psicólogo, de mais aguda sagacidade, penetra a intenção de um olhar ou de um sorriso de mulher. Os gregos, que eram sutis, representavam a Esfinge sob a figura de um monstro híbrido, cujo corpo era o de um leão alado com o busto de uma virgem de seios túrgidos, como para significar que só uma cabeça de mulher podia conceber o astucioso enigma cuja interpretação, sendo uma vitória, foi o início do tormento do desventurado Édipo. O que me contas da tua heroína é um caso banal sem relevo e mais comum que a vaidade.

A minha vida jamais teve enredos complicados porque, desde moço, por egoísmo, fugindo, como sempre fugi, aos lances violentos que perturbam a alma e comprometem o cômodo conforto, mantive-me nos limites estreitos de uma existência pacata, quieta e igual, pautando, com método, as minhas despesas e os meus ardores. Nunca fui pródigo nem homem de imaginação: amigos poucos, compromissos, nenhum.

Nunca me surpreendi, ao recolher de um passeio, ao voltar de uma festa, com uma dessas impressões perturbadoras que descerebrisam, reduzindo o homem mais equilibrado ao passivo joguete dos caprichos de uma mulher. Sou um refratário, ou melhor: reajo, ainda que a besta, de que fala De Maistre, sempre que lhe chega o apetite, brame, forçando-me a levá-la ao pasto. É natural. O que, porém, ela não consegue é escravizar-me ao seu instinto.

Apesar da minha natureza impassível, fui o herói involuntário de uma aventura, junto à qual o teu romance é um episódio frívolo. Foi isso no fim da guerra, ainda o país celebrava a sua vitória difícil — era eu bem moço: vinte e quatro para vinte e cinco anos.

Nesse tempo o meu maior prazer, senão o único, era caçar — sair na fresca da manhã, com as névoas ainda soltas, rolando, fluindo ao rés da terra molhada, num rijo cavalo, entre cães, a surpreender, na beira das lagoas ou nos matos, a paca esquiva, o caititu atrevido, a jaguatirica ou correr no campo o veado arisco, mais ligeiro que o vento que assobiava aos meus ouvidos.

Um dos meus tios, caçador celebrado, hospedava-me, todos os anos, durante dois meses, na sua fazenda que era como um paraíso com as suas grandes águas, os seus densos bosques onde a caça era tão abundante que o cão menos destro, solto, ao acaso, nas trilhas, logo farejava um rastro e partia acuando o porco ou afuroando o tatu. Uma delícia!

Caçando nossas terras ricas foi que apanhei a febre que me devia levar pelo mundo, em convalescença longa, desde o tépido clima de Lisboa até às ríspidas neves de S. Petersburgo, durante dois anos bem gozados, os únicos em que verdadeiramente vivi.

De volta dessa viagem, antes de recolher-me à Benfica, decidi passar um mês no Rio, mas como o verão ia rigoroso e febrento, refugiei-me em um hotel da Tijuca, um pequenino hotel, isolado num vale, entre colunas sempre verdes, dirigido por uma senhora suíça que tinha a religião da montanha e da cítara

Ali, instalado com uns poucos de livros, resolvi ficar à espera de que a alfândega, sempre morosa, me entregasse os objetos que eu fora arrecadando pelo mundo, para dar à minha agreste residência de lavrador um pouco de conforto e de arte. No hotel encontrei, entre os poucos hóspedes — éramos quinze, ao todo — um casal que logo me impressionou.

Ambos novos — o marido, robusto homem de trinta e dois a trinta e quatro anos, se tanto, alto, bem feito, louro e corado como um saxônio, com uma barba fina e dourada, tão fina que toda tremia à aragem, tão de ouro que rebrilhava ao sol. A mulher — morena, cabelos negros, boca pequena e voluntariosa, tinha pouco mais da altura requerida pelo poeta. Os seus olhos, de negrar cintilante, eram de uma vivacidade de aves e um jeito leve, moroso e lânguido de passar maciamente a mão pelos cabelos, dava-lhe uma garridice dengosa que seduzia.

Airosa, o seu andar era todo um meneio e, como se ela mesma achasse encanto e graça na sua pessoa senhoril, sorria sempre, com a boca entreaberta como quem tem ânsia de ar e respira aos haustos, com todo o peito.

Só no terceiro dia da minha residência no hotel foi que, uma tarde, conversando com um suíço, vim a saber que o homem era cego. O meu informante pouco adiantou — disse apenas que o desventurado era rico, formado e que cegara repentinamente, um ano depois do casamento, que não devia datar de muito, a julgar pela viçosa mocidade da senhora.

As nossas relações começaram como começam todas as relações, rápidas e efêmeras, a bordo e nos hotéis — um cumprimento, uma palavra vaga sobre o calor do dia ou sobre a beleza da noite, um pouco de política e de Arte, depois as confidências ligeiras, lances inesperados, desses episódios que todos temos e que são como curiosidades, ingênuas relíquias queridas ou bugigangas cômicas de aventuras alegres do tempo da mocidade, verdadeiros bibelots da vida.

Depois de jantar saíamos para a varanda, alguns alongavam o passeio até um bosque vizinho, onde brotava uma fonte, e era um encanto a volta lenta, com o frio, pelo silêncio dos caminhos toldados de folhagens que peneiravam o luar.

A noite reuníamo-nos no salão. O salão! Uma pequenina sala burguesa, com uma mobília disparatada, da qual sobressaía, como mais antigo e mais cômodo, um largo sofá de couro com pregaria. Junto à janela jazia um piano Excelsior, com algumas teclas sem marfim, como dentes cariados.

O cego, taciturno, grande amador de música, ouvindo-me, uma vez, tomou-me para seu David.

Mal cerrava a tarde, fazia-se conduzir à sala e, afundando em uma das otomanas, imóvel, de olhos baixos, como se tivesse vergonha de mostrar aquelas pupilas inúteis, ficava a ouvir-me, enlevado, e, se eu demorava na varanda, em palestra com o suíço ou com um taciturno americano, que lamentava o abandono de uma terra tão rica como a nossa, boa para americanos, impacientava-se, reclamava a minha presença e eu deixava-me arrastar e lá ia para o piano, sacrificar Beethoven e Chopin, até à hora do chá.

A senhora, sempre grave, apesar da fisionomia risonha, citava autores, lembrava composições elegíacas e, uma vez, muito tímida, sentou-se comigo ao piano para repassar uma peça a quatro mãos, do seu repertório triste.

Durante o dia raros, raríssimos eram os nossos encontros — ou eu descia à cidade correndo à alfândega, ao correspondente afim de apressar as remessas para a fazenda ou deixava-me ficar no meu quarto, que por duas janelas altas, empanadas de cassa, respirava o ar puro da montanha, quando não sabia, em vagorosos passeios solitários, a explorar os recantos deliciosos daquele sereno retiro onde sempre havia que ver e gozar.

Uma tarde, ao jantar, notei que a mesa do casal conservava-se deserta. À noite não se fez música porque, não aparecendo o meu amador, esqueci-me em palestra, na varanda, com o suíço e Madame, relembrando pontos pitorescos da Helvécia, monumentos, mesmo episódios da história viril da pequena república e a vida bucólica das suas montanhas. Na manhã seguinte, ao almoço, a mesma ausência.

Resolvi, então, informar-me, e à criada que me servia, uma gorda e açodada alemã sardenta e de óculos, perguntei se o cego já havia descido. “Não, a senhora estava incomodada: ia a comida ao quarto”.

Entendi que era dever de cortesia — levando em conta a nossa quase intimidade — interessar-me pela saúde da senhora e, depois do lunch, que para mim consistia em um bom copo de leite, lá fui ter aos aposentos do cego, isolados em uma das alas do hotel, entre árvores, à beira de um valo pedregoso e todo forrado de fetos, em cujo fundo rolavam, escachoavam águas fragorosas. Bati. Foi a senhora quem me apareceu — de branco, os cabelos soltos e mais negros ainda em contraste com a cambraia e as rendas do penteador.

Dando comigo, estremeceu e recuou como assustada, voltando ligeiramente a cabeça para o fundo da sala; depois fitou-me muda, com os olhos muito abertos. Achei-a pálida e, apesar da pressa com que levou o lenço ao rosto, pareceu-me vê-lhe na face uma roxa equimose.

Correndo o olhar pela sala descobri, ao fundo, repoltreado numa cadeira de vime, junto à janela, o marido: a cabeça descaída ao peito, as mãos abandonadas nas pernas, como se dormisse. Sombras de ramos brincavam na janela, e uma camaxirra, familiarizada com o seu hóspede inofensivo, saltava alegre no peitoril, toda arrufada e chirriando.

Eu ia falar quando a senhora, inclinando o busto, com o dedo nos lábios, que se fizeram de um vermelho de purpura, me impôs silêncio, e, chegando-se muito a mim, trêmula, com uma voz que tremia, segredou-me:

— Preciso falar-lhe...

Depois de olhar, de novo, o marido que dormia, acenou-me — que eu saísse.

Recuei. Ela ficou no limiar da porta, olhando-me, muda e pálida, com um tremor que lhe crispava a fina pele do rosto, como a aragem frisa em frêmitos a lisa superfície de um lago. De repente, rompeu a chorar — as lágrimas saltavam-lhe dos grandes olhos com violência, como essas primeiras gotas grossas que precedem os aguaceiros de verão.

Sem atinar com o motivo daquele pranto, atordoado e vendo-lhe a negra mancha na face e os olhos denegridos, eu fazia conjecturas vagas, quando ela, com uma voz que silvava, tomando-me a mão e levando-a à própria face, impondo-a, calcando-a, como para me fazer sentir o seu opróbrio, palpar o seu sofrimento, disse, aos surdos arrancos:

— Pode-se ser mais infeliz? Pode-se sofrer mais? E isto é o que aparece. Tenho assim todo o corpo. E por quê? Que fiz eu? Diga! O senhor deve saber, visto que é ao senhor que ele acusa, porque — explicou com um sorriso cruel que lhe descobriu todos os dentes brancos — o senhor é o meu amante!

Vacilei como em vertigem, com os olhos subitamente escurecidos. Quis protestar, ela impôs-me silêncio e continuou:

— Nunca trocamos uma palavra longe dele, nunca! Não é verdade! Ninguém o respeitaria mais do que eu o tenho respeitado, ninguém! Exclamou vibrando, e não tenho um momento de paz, um curto instante de liberdade. Ele quer sentir-me sempre a seus pés, como um cão, e as desconfianças injustas tornam-no grosseiro e vil. Há sempre pretexto para uma injúria, para uma brutalidade e anteontem — nem sei como não ou viram meus gritos — ao voltarmos do salão, só porque toquei com o senhor, não imagina o que dele sofri. Atirou-me ao chão e, com os joelhos sobre o meu peito, maltratou-me, feriu-me, injuriou-me “que eu andava a oferecer-me ao senhor, que lhe dava entrevistas, que ia ao seu quarto...” Uma série de infames calúnias.

Tentei desculpar o homem, mas não me saiu da boca uma palavra, tão grande era a minha surpresa por ver-me assim comprometido em uma cena de tão desagradáveis consequências. Vencendo a minha perturbação pude, enfim, balbuciar:

— Mas, então, é por minha causa que V. Ex.ª. sofre?

—Sim, é! Respondeu fitando-me duramente com os seus negros olhos que ardiam.

— Pois de hoje em diante, minha senhora, o marido de V. Ex.ª. não terá motivos para suspeitas injustas.

— Que vai fazer?

— O que devo: retirar-me.

— Não! Não senhor! Não quero! Exclamou imperativamente, travando-me da mão com furor de louca. Não quero...! Será pior. Ele dirá que lhe falei, que combinamos, e fundará as suas dúvidas na certeza. Não! Fique! Quero que fique!

Olhou-me com um ríctus estranho. Os lábios tremiam-lhe, as narinas aflavam e o seu colo ondulava crebro, como se seguisse as apressadas palpitações do coração ansiado. Súbito, de arranque, atraiu-me, arrastou-me com força de homem, aquela criatura frágil e meiga que eu comparara, na doçura e na piedade, à Antígone. Achei-me peito a peito com ela, na sala.

O cego lá continuava imóvel, dormindo. Quis reagir, tentei uma delicada repulsa. Ela fez-me sinal para que me não movesse e eu sentia-me dominado — era uma fascinação que aquela mulher exercia sobre mim ou era o assombro de tão insólita cena que me tolhia e avassalava.

Vagarosamente, com um cuidado de ladra, chegou à porta e deu uma silenciosa volta à chave e, tomando-me de novo a mão, justamente como, às vezes, nos estreitos caminhos do bosque, eu a encontrava guiando o marido, foi-me levando, pé ante pé, um dedo nos lábios, sorrindo e com a face tão radiante que parecia iluminada por um clarão de magia.

Eu sentia um grande medo covarde e retive-me repeli-a. Ela lançou-me os braços ao pescoço e, apertando-me, num desvario, beijando-me, segredou-me numa voz que gemia e escaldava:

— Pois o senhor não é o meu amante? Não é! Ele não disse?

Insensivelmente, quase levado por aqueles braços frágeis, achei-me no quarto do casal. Ela, com uma fúria que lhe abrasava o rosto transfigurado, abriu, de par em par, as portas, e o leito alvejou. O cego lá estava, imóvel. O que se passou então, meu amigo, é inenarrável. Eu tinha vinte e quatro anos e todo o vigor de uma saúde refeita...

O cego levantou a cabeça, voltou-a ansioso, inclinou-a, à escuta. Nós acompanhávamos todos os seus movimentos — eu tremendo, ela sorrindo cruelmente, vitoriosa. Ele chamou-a e a mulher, aquela tão meiga e tão pura mulher, dentre os meus braços e torturando-me, sem acusar na voz a mais leve emoção, respondeu.

— Onde estás!

— Estou deitada, lendo.

E o desgraçado, satisfeito com a resposta, recaiu na cisma, pendendo a cabeça sobre o peito.

A verdade, meu amigo, é que aquela mulher, de uma audácia incrível, falava com os olhos. Eu lia-lhe nas pupilas todas as afrontas do ódio, todo o referver de uma represália infamante e era horrível! Afirmo-te, era horrível!

Houve um momento em que o cego moveu-se na cadeira como para levantar-se. Eu quis fugir, ela travou-me os braços, cerrou-me todo o corpo numa constrição sensual, prendeu a minha boca na sua, alucinada, sem mesmo sentir que a sua ânsia explodia em altos arquejos estertorosos.

Por fim, exausta ou satisfeita, acalmada do ódio, deixou-me e toda ela respirava saciedade, não de bacante lúbrica, mas de vingativa erínias e, compondo-se ao espelho, com uma fisionomia feroz, sorria contente para a sua imagem, felicitando-se, louvando-se, aplaudindo o seu estupendo desforço. Voltou-se e, já sem pudor, desnudando-se, mostrou-me, aqui, ali, no lindo corpo, os vestígios da mão ciumenta do marido, como vincos de tenazes candentes. Eu olhava em silêncio.

De novo, enlaçando-me com os braços, colou a boca ao meu ouvido e sussurrou:

— Não me julgue uma devassa, não sou, mas a injustiça revolta, a calúnia insistente desvaira. E agora há de ser sempre assim, aqui e lá, sempre, sempre! E diante dele. Isto é melhor que a morte... Concluiu arrancadamente sacudindo a cabeça como para envolver-se toda no negror dos cabelos.

Passamos à sala e, caminhando em pontas de pés, ela abriu a porta com o mesmo cuidado com que a havia fechado, espiou o corredor e, vendo-o deserto, acenou-me — que saísse.

Ia eu atravessando a sala quando o cego, sentindo os meus passos, levantou impetuosamente a cabeça e chamou sobressaltado:

— Carmelita!

Não podes imaginar a calma com que a mulher respondeu, apertando, entre as suas, a minha mão que tremia. O infeliz ficou um momento hesitante por fim perguntou:

— Que horas são?

— Três e meia.

Eu, que aproveitara o curto diálogo para atravessar a sala, já estava no corredor quando ouvi a voz da senhora. Voltei-me. Ela olhava-me serenamente, com aquele doce e virtuoso olhar que eu tanto admirava e, com a mesma inflexão melancólica com que, uma vez, me falara da desventura do marido, disse-me:

— Peço-lhe que não faça mau juízo de mim. Sou uma desgraçada, digna de lástima.

E duas lágrimas rolaram-lhe pelas faces. Despedi-me. A casa parecia deserta — só havia o rumor longínquo das águas. Encolhi ao meu quarto, fiz as malas e, na diligência dessa mesma tarde, desci, fugi com remorso e horror.

Houve um silêncio interrompido pelo amigo que perguntou, escolhendo tranquilamente um charuto na caixa:

— E depois?

— Nunca mais!

O outro acendeu o charuto e, depois de uma volta lenta pelo gabinete, disse:

— Queres a minha opinião? Se, em teu lugar, houvesse ido ao suíço... Era moço?

— Sim, era.

— Teria sido ele o herói da aventura. Tu não foste o amante dessa mulher, foste apenas “o homem”, um homem desejado. Não há, no teu caso, o mais leve vestígio de amor.

— Queres dizer que há ódio, que fui apenas um instrumento de vingança?

— Também não. Foste apenas um homem necessário e oportuno. A vingança foi invocada para justificar o incidente se é que havia motivo para vingança.

— Não acreditas, então?

— No caso! Por que não, se me contas. Não acredito na mulher.

O PROTETOR

Encostada à janela, olhando através dos vidros, ouvia o taralhar monótono de uma máquina de costura, ali ao lado, além da parede enxameada de cromos: Alguma pobre mulher que adiantava a tarefa, talvez com fome.

Era, de certo, a magra, uma que costumava aparecer à porta do quarto, ao lado, quando ela subia, sempre desgrenhada, macilenta, com uns olhos negros muito grandes, pisados, o peito fundo como se a tísica o fosse cavando e dobrando. Devia ser ela... Pobre mulher!

E todo aquele imenso pardieiro era habitado por gente assim: homens amarelos, maltrapilhos, quase todos em mangas de camisa, arrastando chinelas moles pelas escadas lobregas, tresandando à maresia, a suor e à bebida.

Mais de uma vez, ela arrevessara ao passar por alguns que a olhavam com indiferença, soprando para o seu lado um hálito nidoroso. Crianças magras com camisas curtas, os ventres enormes, pandeados e duros, os gambitos nus e finos como espeques, os cabelos espalhados pelo rosto imundo, roendo côdeas, aos saltos pelos corredores empastados de lodo e uma velhinha encarquilhada, com um chalé negro pela cabeça, que descia vagarosamente, gemendo, muito agarrada ao corrimão, parando, a espaços, para arquejar.

Pois ele não achara outra casa mais asseada para recebê-la? Às vezes estremecia pensando na possibilidade de um incêndio. Que seria dela se tal acontecesse, naquele velho prédio, quase tão velho como a cidade, com a madeira a esfarelar-se de podre, rangendo ao andar de uma criança, como se todo o peso lhe fosse insuportável? E se algum daqueles homens, tão mal encarados, fosse um assassino? Se a polícia, procurando-o, varejasse a casa e levasse todos os moradores, ela inclusive, no mesmo rol, através das ruas, aos olhos da multidão?

Mais de uma vez murmurara esses receios ao comendador. Ele sorria, cruzando as pernas, tomava-a ao colo, fazia-lhe festa com os grossos dedos sempre munidos, uns “brinquedos” imbecis que a irritavam — apertando-lhe os lábios, o nariz, fazendo-lhe cócegas na nuca e dizia-lhe:

“Que se deixasse de tolices. Conhecia aquela gente: pobre, mas séria. Eram pescadores, operários; descansasse. Ali podiam ficar à vontade, estavam longe do mundo, ninguém os conhecia”.

Sempre, porém, que galgava, às pressas, os gastos degraus, através do fartum azedo daquela casa sórdida e lúgubre, ouvindo os ganidos dos petizes, os cantares guaiados das mulheres, o rouco pigarrear dos homens, todo o rumor confuso daquela colmeia sombria, acudiam-lhe as mesmas ideias, os mesmos receios assaltavam-na e era a tremer que ela metia a chave na fechadura, abrindo a porta e recuando, contendo a respiração ao bafio de mofo que vinha do aposento dos seus amores.

Ela ali estava encostada à janela, olhando, com o rosto colado ao vidro, aqueles fundos que subiam para a montanha: velhos telhados cobertos de manchas, com erva nos beirais; pátios, negros como alfurjas, onde luziam poças de água, janelas abrindo sobre interiores escuros, onde parecia reinar uma noite eterna; mulheres com as saias enroladas nos quadris, as grossas pernas nuas, arrastando os tamancos nas lages das áreas, em torno de tinas acoguladas de roupa e um velho tanoeiro rodando quintos, a bater aduelas com uma pressa de ansiedade. Numa corda branquejavam camisas engomadas, saias escorridas, lenços que trapejavam como flâmulas.

Para o alto era o casario trepando, monte acima, em atropelo tumultuoso de rebanho assustado: prédios esguios, casotas acaçapadas, uma ruína com as vigas aparecendo como um negro esqueleto, paredes nuas subindo do muradal, fundos fuliginosos da antiga cozinha. Ao lado, um sobrado amarelo com as paredes aveludadas de limo, laivos de umidade e fendas sinuosas que coriscavam de alto a baixo em ameaça de desabamento.

E o céu quente, de um azul forte, curvava-se maravilhoso sobre aquela miséria triste. Pobre gente! Parecia-lhe impossível que se pudesse viver assim como em um porão.

Então, com egoísmo satisfeito, comparava a existência abafada e misérrima daquela vermina humana, que fervilhava resignadamente no lodo, com a sua vida farta e mimosa, com requintes de luxo, derivando desembaraçada, risonha e fácil no seu chalet à beira mar, com todo o sol a entrar-lhe pelas janelas, com a brisa pura a refrescar-lhe os aposentos, portas abrindo sobre ladrilhos de pátios, sobre verdes gramados e canteiros floridos e, numa elevação, a que o comendador dava o nome pomposo de “outeiro”, a “choça” de velhos troncos, com cipoais trançados, por onde subiam enredadas trepadeiras e o jasmineiro abria as suas cheirosas flores.

Era ali que ela gozava a doçura das tardes mornas, quando as cigarras cantavam nas amendoeiras, enquanto o marido, de branco, seguido do jardineiro, ia ordenando arranjos, detorando galhos secos, quebrando velhas ramas, arrancando folhas murchas e a água saltante e alegre do repuxo cantava, refrescando o ar.

Um craveiro da índia, com as suas flores de um amarelo muito vivo, lembrava um candelabro de bronze aceso em muitas luzes e o flamboyant, que se encostava ao terraço, todo em flor, parecia copado de coral com abelhas que esvoaçavam em torno.

Um sino dobrou vagarosamente. Levantou os olhos e só então viu na montanha uma bandeira a debater-se com o vento rijo que soprava do mar. Um cheiro de cozinha subia enjoativo. Em baixo, num daqueles cacifros profundos, pôs-se uma voz a gritar e latidos de cão romperam furiosos. Houve fragoroso rolar de tábuas como uma ruinaria que desabasse e logo depois ganidos e pragas, berros obscenos e imundos.

Ela não parecia ouvir, seguindo uma ideia que, por vezes, nas horas mais calmas, lhe pousava no espírito com a impertinência teimosa de uma mosca. Encolheu os ombros e, de olhos muito abertos, parados, fitos na montanha atravancada, ficou como esquecida, vendo, por vezes, ao alto, a desfraldada bandeira que espadanava desabridamente.

Pensava no marido com o mesmo remorso que sentiria uma ladra que fosse, aos poucos, desviando em furtos, os bens de um amigo.

Era um belo homem, novo e forte, e amava-a. Sim, amava-a com insaciável ardor, bem diferente da sôfrega e abrutalhada lascívia do amante. Franziu o sobrolho, pôs-se a remorder o lábio. Mas quem era o culpado senão ele? Ele mesmo que levara o comendador quando ainda moravam em S. Cristovão, impondo-o como um amigo excelente, um protetor leal e desinteressado a quem devia obséquios inestimáveis?

Ela nunca o vira antes daquele dia funesto e quando o marido o apresentou, pouco depois da sua volta da Europa, achou-o ridículo, com a lisa e reluzenta calva que ele afagava com volúpia, passando, repassando por ela, da fronte à nuca, a mão curta e gorda, sardenta e felpuda.

Que lhe dissera o marido para conter-lhe o riso? Pedira-lhe que o tratasse bem, com amizade. E a sós, no leito, ainda insistira com interesse ganancioso: que o fosse aturando, era uma relação que convinha — homem rico, sem família, muito conceituado na sociedade e franco.

Descreveu-lhe o palacete que ele habitava, pôs-lhe diante dos olhos toda a sua fortuna em prédios, em apólices, em ações de bancos e ainda a parte que tinha como comanditário em uma grande casa importadora. Vivia com dois criados e uma velha caseira.

Lembrava-se de ele lhe haver vagamente falado em uma parenta, uma sobrinha que murchava no fundo de uma aldeia do Minho, que era tudo quanto restava da sua gente. Lamentou não terem um filho, ele seria o padrinho. Não foi ele mesmo que pediu ao comendador o obséquio de ir vendo se encontrava uma casa em Botafogo, porque estava enfarado daquele bairro industrial, onde a poeira sufocava e o fumo das fábricas mantinha sempre os ares toldados e não lhe cedera o comendador um dos seus prédios — o chalet — sorrindo com superioridade às suas objeções: “que não tinha dinheiro para um palácio como aquele, que pedia luxo e trato”, acomodando-se logo, enconchado no servilismo, às respostas do homem:

“Que se deixasse de histórias, fosse para a casa que ele não lhe mandaria os meirinhos à porta. Quando ao mais havia de arranjar-se”.

E não vira ele os olhares lúbricos que o homem lhe lançara como a dizer que tudo quanto fazia era por ela, por ela só? Não fora ele próprio que, a bem dizer, preparara a queda, entregando a casa ao velho quando teve de seguir para Minas em comissão do ministério?

Não lhe pedira insistentemente que a visitasse todos os dias, suprindo-a em toda e qualquer necessidade, acompanhando-a, distraindo-a para que a pobrezinha não se aborrecesse na solidão?

Sim, sim fora ele o culpado... por ingenuidade? Sorriu ironicamente, respondendo ao pensamento com um aceno negativo da cabeça. Não, não era possível que ele aceitasse como provas de verdadeira, pura e desinteressada amizade aqueles presentes valiosos — joias, vestidos, assinaturas do Lírico e até ofertas de dinheiro que ele fazia ostentosamente entregando-lhe, a rir, a gorda carteira para que se servisse à vontade.

Não, ele não era tolo: sabia, sabia tudo, mas não lhe convinha romper, porque a vida assim corria-lhe suave e dourada. Mesmo o comendador ia assumindo na casa uns ares autoritários e superiores. À mesa, então, era até grosseiro: falava de tudo — da carne, do vinho, da cozinheira, prometendo novos fornecimentos, a repelir os copos, opondo-se a que ela bebesse aquela zurrapa. Lembrava uma coisa, outra.

No jardim mandava mudar plantas, aparar a grama mais rente, modificava o plano dos canteiros e o marido, que o acompanhava humildemente, ia concordando, aplaudindo, chegando, muitas vezes, a curvar-se ao lado do jardineiro para apressar a execução das suas ordens e quando ele a estava o marido tinha para ela outros cuidados mais mimosos, certo respeito como se ela fosse, em verdade, um bem do comendador, como a casa e os móveis que ornavam o salão principal.

Não, ele sabia tudo, talvez, até, não ignorasse que era ali que eles se encontravam. Fora ele mesmo que lhe preparara a queda, estava convencida. A traída era ela.

E um fluxo de sangue subiu-lhe ao rosto, os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas. Ele escolhera-a para aquele fim e, quem sabe, talvez de acordo com o comendador que a vira em algum baile, ainda virgem, cheia de graça, com o esplendor da mocidade e apetecera a sua carne, o seu sorriso, o seu perfume, o seu amor. Miserável!! E havia de viver com ele? O melhor era abandoná-lo de uma vez.

Deixou a janela e pôs-se a passear pelo aposento com impaciência. Ao lado, a máquina de costura taralhava com fúria. Lá estava uma que vivia honradamente, escondendo a virtude como ela escondia a infâmia. Ficou a ouvir. O soalho tremia às trepidações da máquina. Um berro soturno reboou longamente. Algum paquete que saía.

Faltava-lhe o ar, sentia-se como sufocada entre aquelas paredes. E aquele homem que não vinha! Consultou o relógio: duas horas. Ah! Sim, era a hora da Bolsa. Mordeu-a o despeito, sentindo-se preterida pelo interesse. O idiota lá estava a multiplicar a fortuna sem lembrar-se dela. Era aquilo o seu inimigo: o dinheiro. Por ele o marido entregava-a cinicamente, sem o menor escrúpulo; por ele o amante esquecia-a, deixava-a ficar naquele hediondo pardieiro com a resignação de quem espera uma esmola.

Deixou-se cair em uma cadeira, cruzou as pernas e ficou a pensar. Um sorriso aflorou-lhe os lábios à lembrança de certo rapaz que viajara a seu lado, no bonde. Louro, elegante, distinto.

Num momento, a uma volta mais forte, sentira o contato ligeiro do seu joelho. Afastara-se com timidez e, olhando-o, vira-lhe a face fina, os bigodes frisados e os olhos azuis, muito meigos, de uma languidez que amolecia como se deles saísse um fluído de amor. Alteou-se-lhe vagarosamente o colo e um suspiro leve passou-lhe entre os lábios cerrados.

Mas na porta houve um como raspar. Pôs-se de pé sobressaltada. A porta abriu-se e o comendador apareceu muito vermelho, suado, com o colete branco cheio de dobras. Bufou, deixando a cartola sobre uma cadeira: “Que calor!” Ela concordou: “Que estava horrível!” Ele pôs-se a limpar a calva molhada.

Era meão de altura, gordo, o ventre pando, um papo mole que se lhe acaçapava sobre o colarinho, transbordando e tremendo; bigodes grisalhos e os olhos pequeninos entre pálpebras empapuçadas.

Ela adiantou-se, tirando as luvas.

— Então, que há de novo? Uff! Sacudiu os braços e, curvando-se, atafulhou o lenço por dentro do colarinho, a enxugar-se. Decididamente não se pode viver nesta terra com o calor. Olhem para isto! E abriu o lenço encharcado. Não há que vê: Vou passar o verão em Petrópolis.

Ela sussurrou surpresa:

— Em Petrópolis?!

— Então? Posso lá com isto!! Não como, não durmo. Pôs-se a sacudir as abas do casaco, passeando. De repente, voltando-se: Porque não te pões à vontade?

Passivamente, humildemente, ela foi desafivelando o cinto, desabotoou o corpinho. Ele tirou o casaco, o colete e, em mangas de camisa, pôs-se a bater no ventre mostrando as largas manchas de suor:

— Olhem para isto! Estou alagado. Desceu a cortina de chita. A luz tornou-se mais íntima, mais doce. Pois é isto, não posso mais. Vou tomar casa lá em cima, nem que seja só para dormir. Ela levantou o olhar e fitou-o. Que estás olhando?

— Eu?

Ele adiantou-se e, enlaçando-a com o braço gordo e úmido, atraía-a.

— Pensas, talvez, que te vou deixar? Descansa, vais também. Hoje mesmo falo a teu marido. Vamos todos.

Ela desprendeu-se-lhe do braço:

— A meu marido?!

— Então? Doido por isso anda ele... e riu.

Ela encarou-o e, com os lábios trêmulos, forçando um sorriso, perguntou:

— Então ele sabe? O comendador encolheu os ombros. Ela insistiu: Mas sabe? Ele sabe!

— Ora essa! Que pergunta! Sei lá se sabe... E desatou a rir. Que temos nós com isso! Se sabe, melhor para ele.

Ela ficou de pé, imóvel, olhando o amante, que ia abrindo o cortinado encardido. As lágrimas formaram-se-lhe nos olhos e, silenciosamente, desciam-lhe pelas faces quando o comendador, que se sentara pesadamente à borda da cama, chamou-a:

— Então? Ela caminhou devagar, de olhos baixos. Vendo-a chorar, ele estendeu-lhe os braços, puxou-a, fê-la sentar-se-lhe no joelho e, carinhoso, interrogou-a: Que é isso! Que tens? Por que estás chorando?

Ela, então, levantando a cabeça, de olhos apertados como para espremer as lágrimas, exclamou:

— Ah! Não, não hei de chorar... Então o senhor pensa que não tenho vergonha! Com que cara hei de eu hoje aparecer a meu marido, diga?

O comendador, de olhos arregalados, fitou-a com espanto e ela, ainda chorosa, diante daquele homem que a olhava com expressão tão cômica, contendo uma gargalhada que se denunciava por estremecimentos do rosto balofo e pelo brilho malicioso das pupilas, desatou a rir e, curvando-se, mergulhou o rosto no peito amplo e suado do amigo, cujo ventre mole pôs-se a tremer, sacudido por um riso surdo, até que duas gargalhadas explodiram...

E, no aposento contíguo, a máquina taralhava furiosamente.

OS PAIS

— Manda-o entrar, disse o barão ao criado que lhe anunciava o ferreiro.

O gabinete, que abria para o terraço, recebendo, por duas largas portas, o ar puro e a luz viva do parque, era de gosto severo, com a sua mobília maciça de jacarandá esculpido: imensos armários atulhados de livros, cadeiras de alto espaldar, com a pregaria a luzir nos rebordos de couro lavrado, quadros sérios nas paredes sombrias e dois bustos, em bronze, de pensativos filósofos, sobre colunas negras.

O barão, com o charuto ao canto da boca, revolvia distraidamente uns papéis, acamados na secretária, sob um pesado bloco de cristal, quando um homenzinho apareceu à porta, muito acanhado, a machucar o chapéu de encontro ao peito. Moreno, a pele gretada e cor de ferrugem, contrastava com os cabelos híspidos, muito rentes, de um amarelo queimado, como se o fogo da forja, diante da qual passava os dias a malhar, desde as cinco da manhã até as últimas luzes da tarde, lhos houvesse tostado. As mãos rugosas, possantes, eram quase negras.

Vestia acuradamente: calças e casaco de brim riscado, camisa de chita, e o pescoço, com o relevo das cordoveias turgidas e roxas, estava esganado pelo colarinho, que uma gravata esfiapada arrochava como um baraço.

— Entre, disse o barão.

O homem adiantou-se, curvado como ao peso de um fardo, sem levantar os olhos. O titular puxou a porta, fechou-a à chave e, caminhando serenamente para a secretária, ofereceu uma cadeira:

— Sente-se.

O ferreiro hesitou um instante, mas a um gesto imperativo do barão, sentou-se, com os joelhos muito juntos, sempre a esmagar o chapéu.

— Então, meu caro Sr. Bento, que se faz?

O homenzinho torceu-se na cadeira e, sorrindo, com a cara tisnada cheia de rugas, deu de ombros. Houve um silêncio entre os dois. O barão folheava os papéis, o ferreiro virava e revirava o chapéu nas mãos.

Fora, no terraço, os canários cantavam, e um fresco murmúrio de água tremia no silêncio.

— Ora, vamos lá ao nosso caso, Sr. Bento, disse o barão, consultando o relógio. São dez horas, e eu tenho de estar cedo na cidade. Está então resolvido!

O ferreiro pôs-se a sacudir a cabeça, com um rizinho velhaco.

— Eh... V. S.ª sabe... Cá por mim, eu já disse o que é. A gente não tem tempo para andar com justiças. Assim como assim, o mal está feito. Há de ser o que Deus quiser. Foi um mau passo, foi; mas agora... Que se lhe há de fazer? Era a única esperança da gente... Não temos outra filha, e, V. S.ª sabe: ela, casada, com um bom marido, sempre era um auxílio.

— E quem lhe diz que não há de casar?

— Uhm... Essas coisas sabem-se, por mais que se escondam. Não é lá pela mulher em si, que isso não lhe tira a virtude, cá no meu parecer, mas a honra, V. S.ª. sabe, é, como quem diz — o rótulo. Sem isso... é custoso. Esticou o beiço meneando com a cabeça desoladamente. Eu, por mim, não fazia grande questão, mas a mulher... V. S.ª sabe: Um homem não é só e, em casa, quem governa é a mulher. Ela é quem põe e dispõe.

A filha atirou-se-lhe nos braços a chorar, contou-lhe a desgraça, e ela, que tem gênio, fez um escarcéu dos demônios: Quis ir logo à justiça, aos jornais, até falou em cá vir fazer um escândalo.

Custei a contê-la, e disse-lhe: Olha lá, não te ponhas aí a berrar. Para que hão de os outros saber? Havemos de arranjar tudo pela melhor.

O Sr. Barão é um homem de bem. Eu vou ter com ele e falando é que a gente se entende. V. S.ª recebeu-me aqui assim, disse-me a coisa ao certo. Que a verdade é que V.S.ª tem tanta culpa nisso como eu. E cá estou para a combinação, sem barulho, porque eu só quero o que é justo.

A pequena é bonita, isso é ... E o moço... Que diabo! ... Eu também fui rapaz. A gente foge-lhe, mas o diabo parece que se mete no meio. Eu por mim...

O barão interrompeu-o:

— Mas, vamos lá saber, Sr. Bento: que resolveu sua senhora?

— Ela... A dizer verdade, está na mesma. Diz que a pequena é menor e coisas, fala de leis que ou viu nomear e então acha que V.S.ª devia dar um poucochinho mais, que a pequena, coitada! ... A gente com dinheiro na mão pode arranjar qualquer coisa, nem é preciso dizer o que houve, está bem visto. Mas o dinheiro, V. S.ª sabe.

— E então? Não lhe chegam os cinco contos?

— Ela é que teima. Eu cá por mim, não tornava a maçar V. S.ª. Estou aqui porque, enfim, sou o homem da casa. Ela tem sua razão, isso tem. A gente com dinheiro vê uma coisa, vê outra, faz sempre um negócio melhor. Eu não quero um vintém para mim, estou velho, mas para a casa e para o bocado ainda o braço há de dar. O que vier será para ela. Quando era perfeita, enfim... sempre havia esperança, que há por lá rapazes que a querem, isso há. Mas, V. S.ª sabe: são todos os mesmos, rezam pela mesma cartilha: rondam, rondam, mas se a mulher não está como Deus a fez, atiram-na para aí à toa e vão-se! Ela tem a carinha, que é bonita, isso é. Mas V. S.ª sabe — é costume, é lei do mundo. A mulher para casar quer-se pura, como um fato novo.

— Sim, sim... Mas resolvamos, Sr. Bento. O senhor tem a sua oficina, eu tenho o meu escritório, não podemos estar aqui a gastar palavras. Eu ofereço um pequeno dote à sua filha, não lhe estou propondo um negócio. Sua senhora insiste na ameaça da denúncia, pois denuncie. Os juízes hão de fazer justiça a quem a merecer.

Todas as provas são contra a Maria. Estão aí os criados prontos a jurar que era ela quem provocava meu filho. Ora diga-me: Que ia ela fazer todas as noites lá em baixo, aos aposentos do rapaz? Ele tem o seu criado e a única rapariga que entrava na sua sala de estudo, no seu dormitório, era a Maria. Para quê? Demais, quem poderá afirmar que ela era ainda pura quando o senhor a trouxe?

O ferreiro pôs-se de pé e afirmou com segurança, estendendo a mão num gesto de juramento:

— Lá isso, não! Tenha V. S.ª. paciência. Quanto a isso garanto.

— Ora! O senhor...

— Ela não dava um passo fora de casa sem uma pessoa de confiança. V. S.ª pode tomar informações.

— Pois sim. Mas isso não vem ao caso.

— Não, mas a verdade deve-se dizer. Que ela veio para aqui pura, isso...

Depois de um silêncio, o barão continuou secamente:

— Pois é isto, meu caro Sr. Bento. Mantenho o que disse e nem mais um vintém. Se quer o dinheiro, ele aqui está. Abriu uma das gavetas da secretária e tirou um pacote, desembrulhou-o mostrando as notas. Se não quer... encolheu os ombros com indiferença e, lentamente, pôs-se a refazer o maço, prendendo-o com um elástico. Estou pelo que quiser. Se prefere a justiça, vamos à justiça. Sua mulher que denuncie o crime, o meu advogado fará o que for conveniente e, no fim, veremos quem tem razão. O rapaz está longe. O ferreiro murmurou humildemente:

— É, eu sei. A pequena leu num jornal que ele embarcou para a Europa. E chorou, a coitada.

— Já vê o senhor.

— Mas eu já disse a V. S.ª que, por mim, isto já estava acabado. Assim como assim, não há remédio mesmo. A questão é a mulher. Eu se repetisse a V. S.ª o que ela me diz... Sei lá! Às vezes até parece maluca, palavra de honra! Não sei quem foi que lhe meteu na cabeça uma história de casamento que é, desde a manhãzinha até à noite, a mesma cantilena: Que eu vá à polícia, aos jornais e conte tudo como se deu, porque, lá diz ela, um homem que perde uma moça é obrigado, por lei, a casar com ela.

— Tolice! Resmungou desdenhosamente o barão sorrindo.

— Pois é o que eu digo. Porque eu sou pelo que é justo, isso sou. Não tenho estudos, mas sei ver as coisas. Um moço como é o filho de V. S.ª de boa casa, rico, quase a formar-se, não é para casar com uma pobrezinha, filha de um ferreiro, que mal sabe assinar o nome. Isso não! Eu sou pelo que é justo. Mas a mulher, V. S.ª sabe, elas quando teimam... é pra ali! E ninguém as tira do propósito. A coitada é mãe.

— E é por ser mãe que aumenta o preço?

— É o que ela diz. Eu por mim já ando enfarado. Garanto a V. S.ª que não é por meu gosto que vivo metido nisto. Sou um homem de trabalho e quem me tira os meus ferros tira-me tudo.

O barão ia e vinha lentamente, mordicando o bigode grisalho. De repente, parando diante do ferreiro, disse:

— Homem, acabemos com isto. Dou mais duzentos mil réis, serve? O ferreiro, de cabeça baixa, retorcia as abas do chapéu; Tenho que fazer! Não posso estar aqui a perder tempo.

— Pois, vá lá! Exclamou o Bento atirando o braço num gesto pródigo. Vá lá! Estamos aqui os dois a perder tempo e palavras. A mulher há de cansar. E que fale. O que é justo é justo.

— Sabe escrever? perguntou vivamente o barão. — Eu, a dizer verdade, faço pra aí uns garranchos, mas entendem-se. Sei pro gasto.

E bambaleava-se. O barão estendeu um caderno de almaço sobre a pasta, tomou uma caneta, molhou a pena e entregou-a ao ferreiro.

O homem deixou o chapéu na cadeira, sentou-se à secretária e, muito curvado, foi garatujando, letra a letra, o que o barão lhe ditava: “Recebi do Sr. Barão de Souzella a quantia de cinco contos e duzentos mil réis...”

O barão hesitou um momento, a remorder o bigode, preocupado. Por fim, resoluto, prosseguiu: “...pelos serviços particulares prestados ao seu filho por minha filha Maria”.

Quando o ferreiro, com o rosto a luzir de suor, concluiu a frase, respirou desabafadamente, como aliviado. O barão tomou uma estampilha e, colando-a, impôs:

— Date e assine.

Concluído o penoso trabalho o ferreiro afastou-se da secretaria esbaforido. O barão passou os olhos pelo papel e, tirando a carteira do bolso, puxou uma nota de duzentos mil réis que reuniu ao pacote:

— Aqui tem, disse. É bom contar.

— Ora! Perdoe V.S.ª .... Escusou-se o Bento.

— Não, senhor; conte.

O homem, então, cedendo, desembrulhou vagarosamente o pacote, abriu as notas e, salivando o grosso dedo encoscorado e encardido, foi contando devagar, com verdadeiro gozo, os olhos muito brilhantes e fitos nas grandes cédulas novas que estralejavam. Sorriu ao barão, agradecido e guardando o maço, tomou o chapéu e inclinou-se com humildade estendendo timidamente a mão áspera.

Mas o barão, antes de abrir-lhe a porta, falou com muita gravidade:

— Meu caro Sr. Bento, o papel que ali fica é um documento, entende o senhor?

O ferreiro aprumou-se formalizado:

— Ora essa! Perdoe V.S.ª, mas eu sou um homem honrado. O que está feito, está feito. Nem precisava o papel, bastava a minha palavra.

— Pois é isso.

— Então, muito obrigado a V.S.ª. E às ordens. Desculpe V.S.ª a maçada. Eu se cá vim foi porque a mulher... V.S.ª sabe...

— Perfeitamente. Adeus!

E aos recuanços, às zumbaias, o ferreiro sumiu-se no corredor.

O barão respirou desafogadamente e, de pé no meio do gabinete, ficou um momento a pensar, carrancudo. Subitamente, ao explodir de uma ideia, tirou o lenço do bolso e sacudiu a pasta que reluzia sobre a secretária, depois caminhou vagarosamente para o terraço.

O sol rebrilhava na folhagem, já as rosas pendiam lânguidas. Debruçou-se à balaustrada e olhava os fundos maciços de verdura quando, à sombra da grande araucária, descobriu o ferreiro que, a sorrir, recontava vagarosamente as notas levando, de instante a instante, o grosso dedo à boca.

MISANTROPIA

— Vais para a Pensão Central ou para a Oremerie Buisson?

— Nem para a Central, nem para a Buisson. Instalei-me na Barra da Tijuca.

— Onde?

— Na Barra da Tijuca. Vou descansar.

— Na Barra da Tijuca?!

— É como te digo. Petrópolis, despois que lá passei um verão, aterra-me. Ainda hoje, quando, por necessidade, tenho de lá ir, sinto o mesmo estarrecimento que me acovardava em dia de exame, no meu tempo de politécnico. Porque Petrópolis, meu velho, não é mais do que uma banca de exames de mundanismo, essa disciplina social em que são eruditos os fúteis. Fazes, cá em baixo, durante o ano, o teu curso de trajo no Rabelo ou no Vale, de galanteio e maneiras lânguidas no Alvear, de tango e “flirt” nos salões, de abordagens audaciosas nos cinemas, de paladar no Jockey-Club, de nomenclatura “esportiva” nos “grounds” e nas praias, de literatura nos almanaques, de “blague” em certas pensões ou em rodas de jornalistas, de todas essas banalidades, enfim, que constituem o “trivium” e o “quadrivium”, ou digamos: os preparatórios para o “accessit” ao curso superior ou “fashion”, e, no fim do ano, sobes a prestar os teus exames em Petrópolis. Lá encontras as bancas organizadas e, desde a estação, que é como a secretaria onde a gente se inscreve, até as últimas casotas dos limites da cidade florida, tudo são passos terríveis.

Os Petrônios lá estão anotando as tuas maneiras, os teus hábitos: procurando, pelo corte do teu fato e pelo padrão das tuas casimiras, atinar com o teu alfaiate, pelo aroma da tua loção descobrir o teu perfumista, pelo polimento das tuas unhas adivinhar a tua manicura, pelas tuas olheiras, mais ou menos vincadas, penetrar o mistério dos teus amores, e etc, etc.

Se levas malas atochadas, automóvel e crédito largo, é como se levasses empenhos incontrastáveis e podes ir seguro de obter boas notas no “footing”, nas missas elegantes obrigadas a comunhão, nas festas de caridade, nas conferências, nas “garden parties”, no “tennis”, nas corridas, nos bailes das embaixadas e nos cinemas; se não, entras irrevogavelmente para o rol dos cábulas, quero dizer: dos que se fingem do “set” e que não têm onde cair mortos, como certos tipos que passam a vida frequentando escolas, dizendo-se acadêmicos, sem terem sequer, exame de português.

Os exames em Petrópolis são rigorosíssimos. As congregações resolvem nos salões ou ao ar livre, nos teatros, nos cinemas, nas igrejas, nos hotéis: onde quer que se reúnam ... E é um horror! Podem levantar as mãos para o céu os que de lá vêm apenas com a bomba, como o Dulcídio, que se recusava obstinadamente a assinar subscrições. Outros há, porém, verdadeiramente infelizes, como o Juvêncio de Castro, que, obtendo notas distintas com o seu arzinho piegas de Apollo de “biscuit” e os “costumes” que trouxe de Londres, foi premiado com uma futilidade loura ou oxigenada, avaliada em oitenta contos, um pouco de piano, tango, duas poesias em francês e ataques histéricos quando a contrariam.

Erasmo dizia tais palavras com serenidade, como se falasse da beleza da tarde límpida ou de um livro novo, de leitura doce e fácil.

— Estás navalhante, homem de Deus. Que é isso?

— É a verdade. Falo-te assim porque tenho grande zelo do nosso povo. Quisera a nossa gente mais simples, mais natural, e vejo-a lançada no artificialismo que deforma, sacrificando-se às aparências, abrindo mão de um patrimônio de virtudes para afetar nobreza e distinção, coisas que só o tempo traz, como a patina, e, lentamente, aperfeiçoa e requinta.

Conheci uma senhora que herdou preciosíssimas joias de uma parenta, que fora dama do Paço. Eram relíquias de joalheria, dignas de uma vitrina de museu. Pois a criatura, para andar na moda, trocou a valiosa herança, de ouro de bom quilate e pedras de primeira água, por pechisbeques da camelote alemã, que, além de ridículas, deixam sempre nas mãos um vago cheiro de azinhavre. Petropólis é assim.

Demais eu não aspiro às glórias de “smart”, nem sou pretendente ao título de bacharel em roupas. Estudo para saber e não para alardear conhecimentos, assim como me visto para mim e não para Mademoiselle ou para o repórter. Sou assim.

Vou para a Barra da Tijuca. Tenho lá um “cottage” entre velhas árvores e águas cantantes. Na encosta, ao fundo, a floresta; em frente, o oceano livre. E silêncio, meu amigo, silêncio apenas interrompido pela voz das vagas, pelo sussurro dos ramos, pelo canto dos passarinhos e das cigarras.

O silêncio é, para a alma, o que é a noite para a natureza: um prestígio criador. Eis? É natural. Vens do ruído e, assim como quem chega da claridade não vê passo no escuro, o que sai do tumulto não percebe a poesia do silêncio. Parsifal entendia a linguagem dos pássaros, porque vivera sempre no bosque, a ouví-los. O mundo, com a sua hipocrisia, enfara-me; só acho encanto no natural. Volto à natureza pela mão de Rousseau. Vou refugiar-me no agasalho verde do arvoredo, avizinhar-me das pontes, acolher-me no seio de Pan. Deixo Petrópolis aos que apreciam ilusões. Eu amo a Verdade.

— Misantropia...

— Não, não é misantropia: é higiene. Sinto necessidade de repouso e busco-o onde ele existe. Quando me dá na telha divertir-me, vou aos teatros, aos cinemas, aos salões, a todos os espetáculos, enfim; mas, em se tratando de descansar, meto-me em casa, visto o pijama, estendo-me na otomana, estiro as pernas e, acendendo um cigarro, deixo-me ficar na preguiça lânguida e solto a alma pelo sonho. É o que vou fazer.

— E os olhos? Não te pedem, de vez em quando, um pouco de feminino?

— Sim, de vez em quando; e eu não lhes nego. Desde, porém, que os sinto saciados, volto-os para outra visão. Se te pusessem diante da própria Vênus de Milo, não a de mármore, mas (imaginemos que isto fosse possível) a própria divina Vênus, terias o deslumbramento que tiveram os deuses, mas não ficarias eternamente anquilosado no espanto e, pela volubilidade própria do nosso instinto, deixarias a deusa por uma mulher da Terra, princesa ou guardadora de cabras, que te desse outra impressão. Lembra-te de Ulisses bocejando de tédio em Ogígia e evitando Calypso com saudade de Penelope e ... da morte.

Estou verdadeiramente enfarado de tudo, de tudo! Preciso recolher-me à simplicidade. Vou conversar com os carvoeiros da Barra da Tijuca.

Levo alguns livros, poucos e escolhidos, e, por companheiro, o velho Antônio, que me falará do passado e me dispensará de vir à cidade renovar as provisões. Passarei três meses no silêncio e regressarei repousado de corpo e de alma, sem dispepsia, porque comerei carne sã, ovos, legumes e frutos frescos, beberei leite mungido por mim, como manda Hesíodo, e água da fonte, ainda viva, no côncavo das mãos, e não ouvirei escândalos cochichados por trás dos leques, nem terei de intervir em casos complicados de amores galantes. É isto.

Quando tiveres saudade de mim, deixa um recado aqui no charuteiro, onde o Antônio passará às quintas feiras para recolher a minha correspondência, e terás condução na “Vendinha”, não automóvel, já se vê, uma “charrete”, que eu mesmo guiarei, levando o animal a passo, para que possas docemente gozar o que não conheces: o panorama da terra majestosa e florida e a maravilha do oceano, pai do silêncio, meu vizinho e amigo.

— Muito bem. Inteirado, disse Adrasto, a rir. Pois ser feliz. Eu, por mim, mantenho-me fiel a Petropólis. Tomei dois quartos no Bragança. Quando aborreceres a natureza e quiseres ver gente e arejar o espírito na civilização, manda-me um telegrama para que eu te espere. E adeus! Tenho de comprar cartas para o “bridge” e estou quase na hora do trem. Mas, olha cá — e, inclinando-se sobre o ombro do amigo, perguntou em segredo: não estarás tu apaixonado?

— Apaixonado... Eu?! Sorriu com indiferença cética. Não sou homem de paixões, nem de ímpetos. Para alguma coisa havia de servir a educação que me deram os mestres ingleses, tornando-me rijo de corpo e de alma. Queres, talvez, referir-te ao boato do meu casamento com certa criaturinha frágil, que conheci em Friburgo, que andava sempre oscilando entre o confessionário e o tango, entre a “Imitação” e os últimos figurinos. Teria graça!

E sentenciou em tom grave:

— Dos “esportes” que se cultivam na alta sociedade, o mais difícil e arriscado é o casamento, porque exige absoluta igualdade de vistas e disciplina espartana, de ferro. Ora, como é difícil achar dois parceiros que se entendam e concordem em tudo, nunca o jogo se harmoniza, por falhas nas combinações. Quando, porém, sucede encontrarem-se duas almas afins, que se identificam no amor, a luta torna-se feroz, porque o primeiro cuidado do adversário é enfraquecer a parelha, inutilizando-lhe um dos membros.

E sabes tu quem, em tal jogo, é o adversário? É a sociedade, que entra na arena, como os retrários antigos, procurando emaranhar o antagonista em todas as malhas, lícitas e ilícitas: desde as seduções mundanas (e elas são tantas!) até a intriga, a calúnia, o telefone e outras tramas que, muitas vezes, por sutis, escapam à perspicácia dos jogadores e atordoam-nos, desorientando-os.

Não! Não tenho nervos para tal esporte. Iria, de preferência, caçar tigres e leões na África. Vou para a Barra da Tijuca com o Antônio e um cão. Quando me quiseres ver, deixa um bilhetinho aqui no charuteiro. E adeus! O teu trem é às quatro e quê. Estás quase na hora.

Abraçaram-se. E Adrasto ainda segredou a Erasmo:

— Tem paciência... mas estou a ver mulher nessa história.

— É possível. Não sou misógino. Se encontrasse a mulher que imagino... quem sabe!

— Uma parceira de jogo? Mulher de “esporte” ...

— Sim, uma mulher se “esporte” ... Atalanta, por exemplo.

— Isso! Atalanta... e bem treinada. Pois olha, é procurá-la. Há mulheres para todos os gostos. Agora, então, com a guerra... rir: E, tomando um “táxi”, Adrasto ainda aconselhou, a rir:

— Põe anúncio. Talvez aches.

— Vou experimentar. Adeus.

Esteve ainda um momento à porta da charutaria: por fim, entrou, dirigiu-se ao telefone, pediu uma ligação e, baixinho:

— Alô! Que parle Oui... c'est moi. Veux tu venir diner en ville? À sept heurs. Les deux. Au premier. Cest ça.

Desligou e, acendendo um charuto, voltou à porta e, carrancudo, com o lábio arregaçado em sarcasmo, pôs-se a seguir o desfilar da multidão com um olhar que flamejava anátemas.

PAPOULAS

I

Quem lhes dera, aos fidalgos, as filhas dos toucinheiros. Os brasões de armas, meu amigo, foram vantajosamente substituídos pelas tabuletas e hoje mais vale uma boa marca de fábrica, registrada na Junta Comercial, do que um escudo heráldico, com adagas ou besantes em campo de blau, relembrando esforçados feitos de avoengos. A nobreza atual vem diretamente do balcão.

Dantes eram os altaneiros castelos de senhorio, com ameias furando as nuvens e gente acobertada a formigar no terreiro e na cárcova com lanças e espadões, mais pesados que barras; hoje são as burras de ferro, à prova de fogo, bem trancadas e recheiadas de títulos e, em torno, enxameando em luzida mesnáda, a caixeirama a servir, empunhando metros em vez de lanças, enobrecendo-se a talhar o toucinho e a carne como um parente enobrecia outrora toda uma geração com um só golpe de espada, cerce e rijo, que dividia o mouro em duas metades e ainda fendia o cavalo e se cravava na terra ensopada de sangue.

Querem lá saber de avós que andaram batalhando em terras de muslim ou turco, vertendo o sangue pela religião e pelo rei, ganhando fama em muralhas de cidades, rompendo a chusma vil ou chantando marcos em praias virgens, aos olhos maravilhados do selvagem nu. O que eles querem é ver, bem contado e luzindo, o dinheiro e bem plantada e viçosa a lavoura da toucinheira. Não faltam sabões aromáticos que lavem a gordura do toucinho paterno.

O melhor livro de linhagens não vale um livro de cheques, esta é a verdade. Eu mesmo tenho, no fundo de uma lata, onde guardo, com canfora, a papelada vetusta, a minha carta de fidalguia porque sou dos Taveiras, de Tavira, que ajudaram a conquistar o Algarve. Muito tenho lucrado com isto, pois não! Não tivesse eu a minha clínica e havia de roer um osso, de algum avô remoto, talvez, para não morrer à míngua. Histórias! E virou, de golpe, a taça!

Estavam abancados a uma das mesas, a um canto do atravancado terraço onde, sem descontinuar, estourava o champanhe refervendo e jorrando aos cachões no ladrilho sonoro.

A lua, imensa e límpida, era como um claro foco, e ainda a iluminação elétrica — porque o barão, grande acionista dos bondes, ordenara uma instalação profusa — espalhava a claridade viva de centenas de lâmpadas pelos muros, pelos lisos e espelhentos soalhos e, lustrosamente, pelas copas das árvores imóveis.

Por entre as mesas uma multidão refervia, sempre renovada e ruidosa. Cruzavam-se as damas em toilettes decorativas, os colos e os braços nus, refulgentes de joias, com as imensas caudas de rojo ou apanhadas à pressa quando viam lampejar o ladrilho molhado ou quando sentiam debaixo dos pós, esparrimando-se molemente, uma empadinha, uma lasca de fiambre caída das enormes bandejas que os criados, com segurança e destreza, levavam ligeiramente de um extremo a outro.

Os leques afiavam, trepidavam; o fumo subia em nuvens ralas e o rumor crescia porque, como a noite ia quente e abafada naqueles salões apinhados e ardentes de luzes, os pares refluíam para o terraço a respirar, com delícia, um pouco de ar puro.

O Dr. Taveira continuou a comentar os ideais do século mesquinho e sem garbo, interrompendo-se para encharcar-se de champanhe ou para mastigar, com gula, um camarão e os fartos bigodes que lhe entravam pela boca, com a comida, como esfomeados, investindo como cães à presa.

— É o que eu lhe digo, meu caro Brites. Hoje são raros os casamentos por amor, como este. Raríssimos! O que vemos, todos os dias, é a ambição a correr atrás do interesse. E não é só a nobreza que vai sendo posta à margem, é também a beleza, meu amigo e é também a mocidade.

Não há muito fui a um casamento e diverti-me a valer. Festa opulenta! Lá isso foi. Serviço de primeira ordem, serviço de paço, não imagina! Com a ceia na grande mesa estendida, à antiga. Isto de mesas soltas é mais chie, é, mas deixe lá, homem, a ceia estendida parece que dá mais ideia de fartura, não lhe parece? Aqui há de tudo, até já me ofereceram faisão, e a gente pode escolher um companheiro e conversar à vontade. Mas eu gosto das grandes mesas, são mais ornamentais, isso são...

Mas, dizia eu, tudo à grande no tal casamento, o diabo era o par. Imagine o amigo Brites um rapagão viçoso, de vinte e cinco a vinte e seis anos, com uma linda cabeça de Apolo num corpo forte de Hércules, a dar o braço a uma pobre viúva, velha e achacada, a guinchar com a asma, como uma requinta, sem cabelos e mais magra que uma espinha chupada. Mas, meu amigo, ela era a firma da casa da qual o rapagão era apenas o guarda-livros. Então? Casou com a nossa primeira fábrica de chapéus. Teve cabeça, é o que lhe digo.

Brites sorria, rodando na pequenina mesa, coberta de flores, a sua taça intacta. Era um belo homem, robusto e airoso, de fisionomia simpática e distinta. Na pele alva a barba negra, rente nas faces, fechando em ponta, ressaltava em contraste forte. Era casado com uma prima da noiva, a linda senhora D. Dolores, famosa pela graça atraente do seu sorriso e pelo verde claro dos seus grandes olhos pestanudos e alegres.

Fora agarrado pelo Dr. que o convidara para a sua mesa e ali estava inerte, como enfastiado, a ouvir-lhe a garrulice transbordante, com um sorriso afixado no rosto. Por vezes levantava os olhos e fitava as estrelas altas ou baixava-os distraído sobre o tumulto festivo dos pares que circulavam, seguindo o sinuoso e rápido esfuziar dos criados que rompiam da turba com bandejas, baldes de gelo, pratos em que tremiam galantinas, logo remergulhando, fugindo, desaparecendo na azáfama solicita do serviço.

Mas a orquestra, emboscada entre palmeiras, no fundo da sala abobadada dos pianos, iluminada por lâmpadas minúsculas encerradas em açucenas azuis, deu o sinal para uma valsa. Brites levantou-se e pediu licença: “Estava comprometido com a prima para aquela valsa”.

— Sem cerimônia, vá. Eu por cá fico, gozando a fresca e um gelado.

E, como passasse um criado, o Dr. chamou-o, pediu um sorvete. Brites seguiu lentamente, calçando as luvas, a distribuir sorrisos amáveis.

Os pares reentravam no salão que os espelhos enormes refletiam e como que afundavam e alargavam. As toilettes sobressaíam à grande claridade, despedindo cintilações de joias e era um lento passar de senhoras esbeltas, de colos alvos, braços nus e roliços, brancos como de mármore e os homens eretos, finos nas casacas esguias, iam e vinham, em moroso passeio. E um alegre sorrir, um alegre falar, um incessante mover de leques, como asas que ensaiassem voo, animavam o salão.

Brites atravessou a turba e foi oferecer o braço à Lúcia, admirável no seu vestido de noivado, com o véu preso nos cabelos negros por uma pequenina coroa refulgente que lhe dava o ar augusto de uma rainha e toda ela, da gargantilha justa no liso e branco pescoço até a fimbria da cauda longa, estava coberta de flores de laranjeira em raminhos, em nastros ondeantes e, aqui, ali, por entre as rendas, como perdido, um botão solitário.

Ao dar com o primo seus grandes olhos, negros e perturbadores, acenderam-se com uma chama mais cintilante e as suas faces aqueceram-se, abrasaram-se em rubor mais vivo. Sorriram e ela, entregando-se-lhe, lá se deixou levar majestosa e a cauda solta, pesada, onde o imenso véu flutuava leve, vaporoso, seguia-a como um sulco de claridade que ela fosse acendendo.

Por todo o salão corria um murmúrio de enlevo. O próprio noivo, que recuara para o canto em que se haviam agasalhado os sogros desvanecidos, sorria, exultava, gozando orgulhosamente o triunfo sereno da que lhe pertencia.

Brites, levemente inclinado, ouvia-a através do suave sorriso que ainda a tornava mais linda e a mesma Dolores, passando por eles, levada por um cavalheiro, louvou-os, achando-os dignos um do outro. Mas docemente, em vago e ondulante prelúdio, a valsa rompeu no bosque luminoso e logo os primeiros pares saíram em torvelinho.

Brites voltou-se para a prima, tomou-a delicadamente e, sorrindo, moveram-se, oscilaram e partiram maciamente, silenciosamente, em deslize sutil, quase aéreo que era como um fugir, um desprender da terra. Os passos resvalavam no liso soalho que lampejava e as caudas soltas, em voltas rápidas, espadanavam, curveteavam em coleantes rabeios serpentinos.

Então, como se já se não atendesse senão à dança e o rumor fosse bastante para abafar confidências, eles fitaram-se um momento e ela baixou os olhos, toda pálida, apertando-lhe o braço num frenesi. E ele, a ouvir-lhe a doce, lânguida voz, tremia de amor:

— Ah! Meu Luiz... Que medo!

— Tem calma.

— E se ele descobrir? Que vergonha!

— Vai descansada. Não vês como estou tranquilo? És bela bastante para deslumbrar e os deslumbrados não vêm. Hás de convencer-te de que é uma vitória fácil. Faze o que eu te disse e verás.

— Enfim... E voavam docemente, confundindo-se no voo dos outros pares, ao som voluptuoso da valsa que morria. Aos últimos compassos, apertando-se mais, como num adeus, olharam-se ainda, enlevados, e ela respirou tremulamente: “Antes fosse contigo...” Ele sorriu.

A orquestra calou-se, os leques reabriram-se e, arquejando, corada, seguindo regiamente pelo braço do primo, Lúcia foi encontrar o noivo e os pais e, logo ao chegar, ainda risonha, ouviu o tímido convite:

“Vamos? São duas horas”. Empalideceu.

“Pois sim...” E encarando o primo rapidamente toda se lhe entregou num rijo aperto de mão e num doce olhar.

Ele despediu-se do noivo, ainda o felicitou e, entre os pais, inclinando a nobre e altiva cabeça para passar sob uma abobada de camélias, Lúcia desapareceu. Ele ainda ficou um instante a olhar vendo aquela figura toda branca que os espelhos refletiam. Mas uma mãozinha leve tocou-lhe o ombro e uma voz alegre tirou-o do êxtase:

— Agora é a nossa schottisch.

Voltou- se: era a mulher, sempre risonha, que lhe mostrava o carnet.

Tomou-lhe o braço e levou-a, radiante, através do salão.

II

O luar brilhava ainda, mas já os galos cantavam no frescor da manhã quando, a pretexto de enxaqueca, Brites subiu para o aposento que lhe haviam reservado no segundo andar, à frente, com quatro janelas abrindo sobre o parque, em balcões salientes. A mulher, sempre trêfega, lembrando a vida que levava naquele morto silêncio do Palmeiral, entre colonos, meses e meses sem um divertimento, ficou aproveitando a noite.

Em baixo, o terraço iluminado ainda regurgitava e, lá ao canto, na mesma mesa pareceu-lhe ver o Dr. Taveira com um homem esguio, de luzente calva, que gesticulava, sacudindo furiosamente os braços. Mas o seu pensamento lá ia seguindo os noivos por aqueles silentes arvoredos da chácara das Laranjeiras.

Àquela hora já tudo se teria resolvido: sim ou não. Deu de ombros.

Que fazer? Se ela o denunciasse, negaria, pensou. Mas em brioso ímpeto, aprumou-se rijo, firme e, atirando a mão num gesto altivo, exclamou surdamente: “Não, isso não! Haja o que houver, ambos somos culpados, é justo que soframos ambos”. Uma ideia, porém, alentou-o e ele sorriu com superior desprezo: Era rica, levava um dote soberbo. Ainda que o outro descobrisse a falta não faria escândalo, não repudiaria a mulher que, além de bela, era a herdeira única de um milionário. O dinheiro lá estava para salvá-los.

Então sentiu a grande força da riqueza onipotente. Ela ali estava impondo-se, avassalando, humilhando. Era aquele palácio enorme e todo de pedra, com os seus imensos salões, os vastos dormitórios, os ladrilhados pátios onde tudo era magnífico, o parque onde trabalhavam rijos homens conservando a beleza das relvas e ativando a eclosão das flores e, ainda transbordando, as propriedades que, em duas filas, estendiam-se a um e outro lado da rua, a casa de comércio recebendo ouro, despachando produtos da terra, porque sempre corria os mares um navio abarrotado de cargas saídas dos grandes armazéns do barão. E ainda nos bancos, em companhias, o dinheiro a crescer, a medrar como planta bem tratada, bem regada em leira fértil.

Não havia escrúpulo, ainda o mais melindroso, que se revoltasse contra aquela potência, E que se revoltasse! ... Os pais lá estavam para perdoar e acolher a filha e a sociedade ainda lhe aplaudiria a resolução, louvaria o seu gosto, o seu rasgo de altiva independência desprezando, com asco, aquele homenzinho sem carne e sem sangue, tão seco que quase desaparecia a seu lado e ele voltaria a possuí-la, a amá-la como dantes, com mais ardor ainda.

Vagamente lembrou-se da mulher, fixou-se nela com piedosa ternura. Lá estava, tão linda, tão casta, de uma honestidade nunca mareada, com os seus modos estroinas e a sua graça vivaz de criança, tão meiga, tão resignada, tão pura que jamais suspeitara aquele crime, perpetrado durante dois anos longos ali e mesmo entre os muros honestos do seu quarto no Palmeiral, enquanto ela, confiante e feliz, com as raparigas da colônia, arranjava a capela para as festas do Mês de Maria. Amava-a, amava-a sim e sofreria se a visse sofrer, mas... a outra era o delírio.

Só, no amplo dormitório, Brites escancarou as janelas ao luar límpido e ao ar puro e, mesmo sem acender as lâmpadas, sem despir-se, atirou-se ao leito largo e macio que afundou molemente ao peso do seu corpo e, ouvindo a música e o rumor das danças, os risos e o ressoar das vozes no terraço, estirado, com os braços por baixo da cabeça que latejava, ficou a pensar e só, então, o assaltou um grande medo de mistura e a lutar com uma assanhada revolta contra aquele homem lívido e ossudo, de barba rala, já calvo, que aparecera para roubar-lhe a felicidade, levá-la, gozá-la, para o sempre!

Ó as deliciosas noites! São era ali que o hospedavam quando ele vinha da fazenda a negócio, passar uma curta semana no Rio, só, às pressas, alongando depois a demora para alongar o gozo daquele corpo que se lhe ia entregar, branco e fremente, com uma paixão que chegava ao delírio, tão cheia de promessas, de lances desvairados, de loucuras de amor.

Não, não era ali naquela sala imensa e rica, era lá ao fundo, no extremo do corredor que ela corajosamente atravessava descalça, no silêncio e na treva da noite alta, para ficar com ele horas seguidas, enquanto a casa dormia e os cães, rondando as alamedas, rosnavam, ladravam às sombras oscilantes das árvores ou ao voo assustado de alguma ave que o luar despertava no viveiro.

Fora naquele quarto, tão simples e tão querido, que ele a possuíra, e quanto tempo durara esse amor, cortado de súbitos receios, alagado em tímidas lágrimas quando ela murmurava, aterrada, as suas desconfianças comprometedoras. Eram pesares efêmeros que um beijo ardente dissipava, logo volvia a ventura das longas noites de amor, noites a fio. Mesmo uma vez, durante o dia, à tarde, numa fuga ousada, ela surgira inesperadamente no quarto, rindo, enquanto a velha e pesada senhora, à espera do marido, andava pelo terraço ordenando arranjos sem preocupar-se com ele: um parente e casado e ela uma menina mal saída da puberdade.

Ó os tempos do verdadeiro amor, com os sobressaltos que ainda o tornam mais sensual, dando-lhe um acre sabor de crime! E tudo ia entrar no comezinho, na banalidade do adultério vulgar, se não se resolvesse em vergonha infamante. Sim, porque o outro podia descobrir e interrogá-la, ameaçá-la, e ela tudo diria, certo que diria — era mulher e fraca.

Levantou-se, foi debruçar-se à janela. Já o céu desmaiava em tons de pérola cintados de ouro, as árvores iam saindo da sombra e as folhas, confundidas em massa na treva, espalhavam-se, abriam-se, apartavam-se como se as libertasse a luz. A cascata levantava um perene e fresco murmúrio e o ar, mais frio e mais leve, gelava como um sopro agreste de inverno.

E a manhã que não vinha, a decisiva manhã salvadora ou fatal. Haviam combinado uma florida senha para o caso da esperada vitória, ele mesmo a escolhera na véspera, e ela prometera dar-lhe, ao telefone, logo que se levantasse, vitoriosa. E a noite tão longa, tão lenta...

Revoltou-se contra aquela alegria como se o baile contribuísse para aquele vagar das horas. Uma ave atravessou ligeiramente os ares. Que ave seria? A última coruja, talvez; talvez o primeiro pombo. Mas começava a debandada.

Já pela alameda central do parque desciam grupos indecisos, logo fundindo-se na sombra, ainda densa, das árvores; carros lentos rangiam no saibro; vozes sussurravam. Mas ainda a orquestra atacou uma valsa airosa e viva e o rumor arrastado dos passos subiu, de novo, aos seus ouvidos, alarmados e atentos como se esperassem um clamor de catástrofe.

O céu broslava-se, começava o piar das aves. Que teria acontecido? Pobrezinha! E, com os cotovelos cravados no balcão, baixou a cabeça entre as mãos e ficou, em arrependido cismar, vendo-a toda nua, muito branca, com arrepios de volúpia como ele a tivera, uma vez, nos braços em apaixonado, fogoso delírio.

Que faria Bolores se o seu crime fosse conhecido, se o marido, inflamado em despeitada e honrada cólera, subisse aquelas mesmas escadas, que horas antes descera em triunfo, trazendo a mulher envilecida para arrojá-la, como uma torpe imundície, aos pés dos trêmulos velhos e acusá-lo, a ele, em face, com arrogante fúria, repetindo tudo quanto Lúcia lhe dissesse no seu encolhido terror? Pobre Dolores!

Saíam novos grupos — as capas das senhoras branquejavam, quase roçando a areia e a relva. Por fim a orquestra emudeceu e, como tudo houvesse findado, os homens levantaram-se do terraço e desapareceram.

A lua no céu, sem brilho, parecia dormir. Ele cravou os olhos ao longe.

— Ainda não te deitaste, Luiz? Voltou-se e deu com Dolores afogueada, cansada e linda que lhe estendia carinhosamente os braços nus. Abraçou-a molemente, queixando-se da cabeça, ela chegou-se muito e, como inclinasse o rosto, com meiguice, ele beijou-lhe os cabelos. Então, como para agradecer-lhe o carinho, ela levantou os olhos claros e fitou-o risonha e como se lhe fossem descerrando os lábios ele fechou-os com um beijo muito longo e todo cheio de amor, do grande amor, do delirante amor... Que o outro lhe roubara.

III

O almoço corria triste, em silêncio, com as lágrimas da baronesa, quando o tímpano vibrou chamando ao telefone. Brites estremeceu, empalideceu e como o criado, a um aceno do barão, corresse a atender, Dolores disse com a alegria a iluminar-lhe o rosto:

— Aposto que é Lucia!

Voltaram-se todos para o corredor, ansiosos, à espera do criado, e quando ele reapareceu sorrindo, como para logo anunciar a boa nova, a baronesa perguntou:

— Quem é?

Ele inclinou-se junto à sua cadeira e respeitosamente murmurou:

— É a senhora D. Lucia que deseja falar a V. S.ª.

— Eu não disse! Exclamou Dolores. A velha levantou-se às pressas e, nervosa, com os olhos já secos, quase correu ao aparelho. Na sala ficaram todos num silêncio atento e as palavras da velha soavam trêmulas, em frases entrecortadas, misteriosas. Foi depois uma série de perguntas, o saudades, muitas saudades de todos e lembranças ao marido e que viesse vê-los logo que pudesse. Quando voltou à sala, mais tranquila, sentando-se, ainda suspirou. O barão quis saber da filha.

— Está bem, manda-te beijos. E a ti também, Dolores. Só então, fitando Brites que empalidecia, como à uma vertigem, disse: É verdade. Ela pediu-me que te dissesse que são papoulas...

E ficou a mirá-lo, intrigada. O barão perguntou:

— Que história é essa?

E Brites, muito vermelho, com um leve tremor na voz, explicou risonho:

— São as flores de um chapéu que ela trazia, há dias. Ela, ontem, teimava em dizer que eram rosas, eu garanti que eram papoulas. Apostamos. Ela prometeu verificar logo que chegasse à casa. Ganhei.

Sorriram.

— Sempre a mesma cabecinha no ar, murmurou o barão. Ela presta lá atenção a coisa alguma... Vamos ver se agora com o casamento, endireita.

— Quem? Aquela?! Aquela não muda, afirmou a baronesa.

E Brites rompeu a rir, um riso excessivo que despertou em todos curioso espanto. Voltaram-se com os olhos nele, sorrindo, como à espera de uma explicação que justificasse aquela explosiva alegria que lhe pusera no rosto duas rosas vivas e nos olhos um brilho cintilante.

— Que é? perguntou o barão; e ele, colhido pela pergunta, apenas murmurou:

— Lúcia... com as suas estroinices... Com a sua indiferença...

— Ora, disse Dolores, faz ela muito bem. A vida deve ser levada assim mesmo sem cuidados. Quem a toma muito a sério nunca chega a gozá-la.

— E envelhece depressa, concluiu a baronesa, palpando, de leve, o rosto como para sentir-lhe as rugas.

VINGATIVA

Dizendo-me a criada que estava lá em baixo um senhor que me desejava falar com urgência; saltei da cama e, no tempo rápido que consumi numa toilette sumária, repassei todo os meus negócios e compromissos sem poder achar um caso que com tanto mistério — porque o tal “senhor” nem sequer o nome quisera dar — demandasse tão pronta solução, para que me viessem incomodar às seis e meia de uma fria e chuvosa manhã de junho. Presságios de morte roçaram em minha alma. Minha mulher sentou-se na cama, sobressaltada, pensando em Marília; eu lembrei-me do Fernandinho que lá andava pela Suíça. E, fazendo o laço da gravata, com os dedos trêmulos e incertos, notava ao espelho que ia empalidecendo, como se todo o meu sangue fosse escoando a jorros.

Desci às pressas e, quando cheguei à sala obscura, porque a criada, obedecendo, talvez, ao misterioso visitante, entreabrira apenas uma janela e a luz escassa daquele dia triste e opaco era ainda empanada pela densa cortina que caía pesadamente, arrepanhada em graciosa ogiva, distingui apenas um vulto que caminhava surdamente, passando e repassando a mão pela cabeça.

Dando por mim deteve-se e, à sua voz, pronunciando meu nome com aflita expressão de desespero, reconheci o Landim.

— Pois és tu, homem? Que é isto? Tu por aqui, a esta hora!

— É verdade, eu mesmo.

Abri duas outras janelas, deixando apenas fechadas as vidraças e pude ver a fisionomia demudada do meu primo. Dir-se-ia um enfermo que se levantara da cama e houvesse fugido, em delírio de febre, afrontando o tempo agreste.

— Mas que tens, homem de Deus?

— Que tenho? ... deixou-se cair abandonadamente no sofá e arquejou: Minha mulher abandonou-me...

— Como!

— Fugiu. Foi para a casa dos pais.

— Por quê? Que houve?

— Um horror! Nem eu mesmo te sei dizer. Um horror! Venho de casa. Entrei cedo e, quando cheguei ao meu quarto Joana, em pranto, entregou-me uma carta de Elvira. Procurou atabalhoadamente nos bolsos; por fim, nervoso, abotoando o casaco, disse: não trouxe, ficou por lá.

— Mas, então, dormiste fora? Fitou-me e, sem ânimo de responder com a palavra, acenou afirmativamente. Logo, porém, pôs-se de pé e recomeçou o passeio ao longo da sala, suspirando. Chamei a criada para que trouxesse café e conhaque, depois, fechando a porta, procurei acalmar o pobre Landim. Não desesperes, homem — isso não passa de arrufo. Arranja-se. Eu vou ter com ela.

— Ah! Rouquejou: tu não a conheces! A cabeça descaiu-lhe ao peito e houve um silêncio pesado. Que loucura! Suspirou por fim, num arranco.

— Mas conta-me o que houve.

— É um romance, vais ver. Quando chegamos a Lambari, em meados de março, apesar do telegrama que daqui mandei ao Melo, logo ao desembarcar tive a triste notícia de que no hotel não havia um só cômodo: tudo cheio. O Mello, porém, indicou-me o hotel do Bibiano. Como estávamos moídos, porque chegamos com um atraso de duas horas e meia, sem mais indagações, abalamos, curvados sob um aguaceiro desesperador, com embrulhos, escorregando na lama da ladeira escura, a caminho do hotel indicado, numa ruela que era um tremedal, uma casa enorme, chata, velhíssima, com um largo portão de cocheira entre dois renques de janelas.

Elvira, encharcada, com os pés doídos, lastimava-se arrependida de haver deixado o seu conforto por um capricho da vaidade — porque nenhum de nós, graças a Deus, precisava daquelas águas.

Não, não foi a vaidade que nos levou àqueles lugares, foi a fatalidade. Tínhamos de cumprir uma sida, meu amigo, havíamos de cumpri-la.

Não tenho razões para dizer mal dos aposentos que nos arranjou o Bibiano, um homem admirável, cujas virtudes eu descreveria se tivesse mais calma. Não eram dignos de príncipes, mas agasalhavam e, de manhã, com as janelas abertas, tínhamos uma vista encantadora: a estação lá ao alto e boizinhos que pastavam imóveis como se fossem figurinhas de barro, postas ali para animação da paisagem.

A casa a que nos acolhemos era uma sucursal do hotel e transbordava de hóspedes. Ao almoço, numa grande sala onde a mesa, em ferradura, ia de ponta a ponta sem um lugar vago, a minha atenção foi para uma mulher, uma esplêndida loura que entrou triunfante, seguida de um mocinho pálido e tímido que parecia humilhado junto daquela deusa heroica.

Sentaram-se bem defronte de nós. Uma cabeça de erínia, os cabelos, num penteado estroina, quase soltos, esvoaçavam brilhando: por vezes uma madeixa mais rebelde rolava, ela reconduzia-a graciosamente, levantando muito o braço que, no repuxar da manga, acusava a carne forte e roliça, até a axila funda e o colo que ondulava, túmido. Os olhos verdes, inquietos, enormes, lampejavam, a boca muito vermelha, sensual, revestida de claros e pequeninos dentes, abria-se como em lânguidos e contidos bocejos e era a ponta cor de rosa e arisca da língua que saía a passear pelos lábios, umedecendo-os ou eram os dentinhos que os remordiam, avivando-lhes a cor.

Elvira observou-a e logo nela nasceu uma antipatia pela mulher que parecia procurar a nossa amizade, sorrindo, dirigindo-nos olhares e, ao fim do almoço, como saíssemos a passeio, encontramo-la junto ao poço sempre com o mocinho, garrula e risonha.

Elvira segredou-me: “Que a achava sem modos, nem parecia uma moça de família”. E já lhe conhecia toda a história — como a soubera ignoro — “que era casada de pouco com aquele mocinho, engenheiro, recentemente chegado de Manos onde andava a dirigir umas obras”.

As outras senhoras, receosas, sem dúvida, de que Elvira, com a sua bondade ingênua, se deixasse fascinar pela perigosa criatura da qual todas as famílias se afastavam, trataram de pô-la ao corrente de certos boatos que corriam na vila desde a chegada de Virgínia — chama-se Virgínia:

“Que fugira de casa para casar; que tinha uma irmã separada do marido e perdida; que provocava escândalos em toda a parte; que fumava e jogava como um homem”.

As intrigas surtiram o desejado efeito: Elvira proibiu-me absolutamente toda a conversa com a pobre moça, com a qual eu começava a simpatizar por pena, vendo-a banida de todos os grupos, afastada por um obstinado e rancoroso silêncio de todas as rodas. Imagina tu a minha situação na sala, à noite, aos jogos de prendas, os malditos jogos! Dirigindo-me a todos menos aquela bela mulher que, sobre ser formosíssima ainda, como por acinte à chusma de ciumentas, só aparecia elegantemente trajada e com um garbo que devia torturar e humilhar aquelas achamboadas que se acaçapavam nas cadeiras e ficavam chatas como grandes magois ridículos. Tocava, cantava com uma voz admirável e com uma indiferença, meu amigo, que revelava uma mulher superior ou uma grande cínica.

Eu evitava-a. Uma manhã, porém, encontramo-nos no parque. Falou-me, respondi com medo, relanceando os olhos por aquelas moutas, pelos caminhos: não estivesse por ali alguma das amigas de minha mulher para levar-lhe a notícia.

Não foi tão rápida a nossa conversa porque ela teve tempo de referir-se à guerra que lhe faziam no hotel, às calúnias que assoalhavam, à inveja de todas aquelas “virtuosas senhoras” que não a suportavam porque ela fazia duas toilettes por dia e ousava aparecer à mesa com um grande ramo de rosas no cinto. Sorriu e, encarando-me, disse entreabrindo, com um jeito todo seu, os lábios encarnados:

— Sua senhora, também, ao que parece, não simpatiza comigo — evita-me, mal corresponde aos meus cumprimentos e, brincando com uma rosa — as outras naturalmente já lhe falaram de mim. Encolheu os ombros acrescentando com orgulho: Realmente, foi preciso que eu viesse a Lambari para convencer-me de que... Não sou feia. Não há melhor espelho para uma mulher do que... Outra mulher.

— Ou... Um homem, acrescentei eu, idiotamente e ela, inclinando a cabeça, sussurrou em voz macia:

— Acha!?

E, como se me restituísse um objeto que me pertencesse, abandonou-me nas mãos a rosa com que brincava. Aceitei-a e, trêmulo, despedi-me dando intimamente razão às senhoras que tanto temiam a graça fascinadora daquela mulher.

Não sei se havia alguém no parque a espiar-me. O que te posso garantir é que Elvira foi informada do meu encontro, aliás fortuito. Fui achá-la em pranto, e, à noite, na sala, brincando-se a “berlinda”, à entrada de Virgínia realizou-se o que eu tanto temia: Encontraram-se as duas. Não ouvi as palavras de Elvira, ouvi apenas uma gargalhada sarcástica e logo em seguida um grito e mal tive tempo de acudir à minha mulher que caíra com um ataque.

É escusado dizer que houve em todo o bando feminino um clamor contra a “sem-vergonha, a oferecida” e o Bibiano, o excelente Bibiano, intimado por todos os maridos a despedir o “pomo de discórdia”, sob pena de ficar com o hotel às moscas, esteve a ponto de enlouquecer, hesitando entre o cavalheirismo e o interesse, e teria enlouquecido se Virgínia não houvesse resolvido partir dois dias depois.

Na véspera da viagem passou o dia a tocar e a cantar, sozinha na sala, sem que ninguém ousasse aparecer, porque as damas afrontadas trancaram-se com os maridos para que aquele demônio não os perdesse.

Eu não pude, confesso-te. Uma forte piedade impelia-me para a repudiada. Minha mulher fora ao quarto de uma amiga comentar os escândalos da desaforada. Aproveitei o ensejo para chegar um momento à sala, certo de que lá encontraria o marido. Entrei: Virgínia estava à janela, só e soberba.

Sentindo-me, voltou-se e, vendo-me, sorriu:

— Ah! É o senhor? Tem coragem, francamente!

— Por quê?

— Ora... Por quê! E, precipitando as palavras, disse-me: Parto amanhã, já sabe? Espero vê-lo em nossa casa. Quando chegar ao Rio dê-nos o prazer da sua visita, sim?

E entregou-me um pequenino cartão com o seu endereço

O aperto de mão que trocámos e o olhar com que nos fitámos longamente foram o selo de uma promessa que se cumpriu, infelizmente.

Lambari, com a retirada de Virgínia, ficou em calma: as senhoras respiraram, os homens puderam gozar francamente o parque; o próprio Bibiano tomou um dia para ir aos porcos, certo de que a casa ficava em paz. Mas eu, meu amigo... Eu é que não vivia! Sempre a pensar naquela mulher, vendo-a, às vezes, aparecer no fundo do corredor como uma visão, ouvindo-lhe a voz, sentindo-lhe o perfume, obcecado. Felizmente Elvira, com os dias chuvosos, começou a aborrecer a vila e propôs voltarmos. Voltamos. Dois dias depois da nossa chegada fui, à noite, à Santa Tereza.

A casa estava fechada, mas surdos sons de piano denunciavam moradores. Bati. Um cão ladrou na sombra e pouco depois uma criada apareceu na varanda, na faixa de luz que alastrava o ladrilho. Perguntei pelo engenheiro. Não estava. A criada, porém, pediu-me o nome, dei-lhe o meu cartão e, sem grande demora, vi abrir-se uma das portas da frente e fui introduzido numa pequena sala, de um gosto bizarro, onde logo senti o perfume entontecedor de Virgínia.

Minutos depois ela entrava, mais bela que nunca. E como me recebeu! Com que alegria estroina, achando-me forte, bonito, perguntando pelas suas cordiais inimigas, querendo saber como haviam ficado aquelas senhoras depois da sua partida. Falou-me do marido: Lá fora para o Norte, coitado! Ao Espírito Santo, vê umas terras por conta de uma empresa. Lamentou a vida do pobre rapaz — pouco parava em casa, sempre em viagens e ela sem poder acompanhá-lo, não que receasse, até gostava daquela vida agitada e aventurosa, com os perigos nas florestas, nos rios encachoeirados, dormindo em ranchos, em barracas, com o fogo a arder para afugentar as feras, e homens sempre em armas para o caso de uma surpresa de selvagens. Mas o marido opunha-se temendo expô-la às moléstias que reinam nesses lugares virgens, onde tudo é bravio e hostil: o homem e a terra, o ar, a água e a luz. Por fim, sem transição, falou-me de Elvira e os seus olhos brilhavam, a sua boca tornou-se ainda mais vermelha. Procurei desculpar minha mulher com a moléstia, ela sorriu derreando a cabeça e o seu pescoço alvo, polido, como que se desnudava movendo-se vagarosamente.

— Nervos... O senhor acha? Ninguém é mais nervosa do que eu, e seria incapaz de fazer a uma inimiga o que ela me fez. Paciência! Arruinou.

Encheram-se-lhe os olhos de água. Eu quis dizer alguma coisa, mas... Não sei! Aquele pranto tornava-a mais linda, creio mesmo que ela tinha certeza de que as lágrimas lhe davam maior encanto, porque não se preocupou com elas deixando-as correr lentamente em dois globos que brilharam e caíram na seda carmesí da blusa.

Ficamos um momento calados. De repente ela levantou-se respirando forte, foi à janela, fechou-a e, sem voltar-se: “Está frio, não acha?” O tempo que ela ficou a fechar vagarosamente as portas envidraçadas, depois as folhas de madeira, permitiu-me examinar-lhe o corpo ondulante e esbelto, a nuca, os cabelos fulvos. “Vai ao teatro?” perguntou encaminhando-se para o meu lado num andar lento, alisando os cabelos das têmporas.

— Não, senhora.

Ficou parada sob o lustre com um nimbo de luz na cabeça doirada, a olhar-me. Depois, serenamente, sorrindo, caminhou e, muito perto de mim, insistiu:

— Está frio!

— Nem por isso.

— Nem por isso? Veja como tenho as mãos. Estendeu-me as e adiantou-se mais, ficando tão perto que eu sentia o seu vestido roçar-me nos joelhos. Tomei-lhe as mãos ambas e todo o meu corpo pôs-se a tremer e quando levantei o olhar, dei com aqueles olhos terríveis que me abrasavam e com aquela boca em sangue, boca de vampiro, encantadora e má.

Não te sei dizer o que se passou naquele minuto — os nossos lábios uniram-se e ela, sentada nos meus joelhos, tremendo convulsa, apertava-me nos braços e eu sentia-lhe o calor da face, a ardência do hálito, o estuar do colo. Ali ficamos até à hora em que a criada, batendo discretamente à porta, veio chamá-la para o chá. Levantei-me para sair, ela prendeu-me e, aos beijos alucinados, fomos de encontro ao piano e, rindo, ela pediu-me que ficasse. Insisti na necessidade de partir, mentindo: Que deixara Elvira indisposta; que tinha uma viagem na manhã seguinte. Foi inflexível. Fiquei e, quando me despedi, ao luzir d'alva, ela, aos beijos, martirizando-me deliciosamente com uma fúria felina, exigiu que eu voltasse à tarde, prometendo deixar-me sair cedo.

Elvira dormia quando cheguei à casa, já sol nado. Despia-me quando ela acordou. Falei-lhe do Jaime que, como sabes, está convalescendo no Corcovado. Disse-lhe que fora jantar com ele e que perdera o trem, descendo no primeiro da manhã. Acreditou ou fingiu acreditar, mas como olhasse muito para o meu rosto, com uma expressão irônica, perguntei:

— Que é?

— Nada...! Resmungou, voltando-se no leito.

Eu então, desconfiado, cheguei ao espelho e descobri na face uma grande mancha roxa, uma verdadeira equimose. Aqueles beijos! Aqueles beijos! ... Ás 2 horas saí e, depois de uma volta pela rua do Ouvidor, atraído por aquela mulher, corri para o bonde e lá fui, montanha acima, sôfrego, achando que a viagem era vagarosa, que o bonde subia arrastadamente, parando de segundo em segundo, e por um caminho que me parecia mais longo. Julguei que me houvesse enganado, mas não: Lá estava a casa com as duas palmeirinhas à frente, o caramanchão de rosas e a varanda. Que te hei de dizer que não tenhas adivinhado?

Quando sai era dia e Virgínia, alegre, veio trazer-me ao jardim e ali, ao ar azul e cheiroso, no qual já se esparzia a dourada poeira do sol, deu-me o último beijo.

Ah! Meu amigo, essa foi a minha primeira manhã de tortura. Como havia eu de entrar em casa! Que havia de dizer? Não me ocorria uma ideia e, se procurava imaginar uma desculpa, só me acudiam à lembrança os delírios daquelas noites com aquela mulher, aquela desesperadora mulher!

Elvira recebeu-me severa, sem uma palavra e eu não pude mentir. Olhamo-nos calados e, como ela se afastasse, subi para o meu quarto e só, passeando, pus-me a pensar no meu procedimento infame, protestando nunca mais tornar aquela casa maldita, àqueles beijos, àquele gozo mortal. Mas, que queres? Voltei e foi ontem e só ontem compreendi que aquela mulher diabólica não se entregara ao meu desejo por amor, senão por vingança e só por vingança me fizera pernoitar em sua casa.

Só ontem me convenci de que era o instrumento do seu ódio perverso, que o seu despeito andava a saciar-se em mim. É, como vês, um vampiro da pior espécie porque, senão sugava o meu sangue, levava-me a felicidade, o amor, a honra e quem sabe? Talvez me leve a vida.

Ontem, ao meu colo, sorrindo perversamente, perguntou: “Se Elvira já não tinha ciúmes de mim? Como conseguira eu iludi-la, entrando em casa com o sol, dois dias seguidos”? Contei-lhe tudo, falei-lhe dos meus receios. Ela riu às gargalhadas, foi para o piano e pôs-se a cantar com aquela voz que é toda um amavio.

— E ficaste?

— Fiquei. Fiquei para ouvir a declaração odiosa da terrível criatura justamente quando me beijava alucinadamente: “Que estava vingada!”

— De quem? perguntei, e ela, contorcendo-se, disse-me, abrindo muito a boca, com asco:

— De tua mulher...

Quis repeli-la, tive ímpetos de maltratá-la brutalmente e ela, percebendo o meu furor, longe de intimidar-se, abriu os braços entregando-se abandonadamente e, queimando-me com os olhos muito abertos, os cabelos espalhados pelo travesseiro, seminua, alucinadora, pôs-se a silvar:

— Fazes o que quiseres, maltrata-me, injuria-me, mata-me, que me importa! Ela há de sofrer mais do que eu, porque gosta de ti...

— E tu!? Exclamei rilhando os dentes. Encolheu os ombros com indiferença. E, depois de fitar-me, desatou a rir às gargalhadas.

— Fugi, meu amigo, fugi para não cometer uma infâmia e aquela mulher nua, torcendo-se a rir, parecia acompanhar-me, perseguir-me, pairando sobre mim, a vergastar-me com a sua gargalhada. Eis o caso. E agora? Que hei de fazer? Dize...

— Meu amigo, a tua aventura é realmente sinistra e tua mulher procedeu como devia, mas eu vou falar a Adelaide para que se vá entender com ela e creio que conseguiremos restabelecer a paz. Quanto à tua Virgínia, essa não me dá cuidado porque, se ela se fez tua amante para vingar-se de tua mulher, por justiça não esquecerá as outras e, como a estação foi das mais concorridas, temos tempo para pensar. Como me parece que ela já está suficientemente vingada de Elvira, como se vingou de D. Clara, acho que podes esquecê-la.

— Que Clara?

— Uma que esteve com vocês em Lambari, no hotel Bibiano: alta, gorda, com um menino...

— Sei.

— Pois essa senhora, que nunca se separou do marido, fazendo com ele um magnífico pendant para os “bem casados” da virtuosa vila, deixou-o, a pretexto de saúde e lá foi para a fazenda. Antes disso, porém, durante três ou quatro dias seguidos, encontrei o marido no largo da Carioca, à hora em que eu tomava o bonde para casa. Ele ia para Santa Thereza jogar o pocker. Ora hás de concordar que é preciso que os companheiros sejam excelentes para que um homem se abale todos os dias do alto da Tijuca para Santa Thereza só para jogar.

— Então essa mulher? ...

— Vinga-se das que a maltratam e do marido que é um idiota ou... Mas vamos entrar porque Adelaide deve estar sobressaltada, imaginando, com certeza, que se trata de coisa mais grave.

FIM