Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

A Esmo, de Raul de Azevedo


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

PRIMEIRA PARTE

Jornais e jornalistas

Um escritor

Religião e C.ª

Teatros

O prêmio Deutsch

Um livro de versos

?

A lição dos boers

SEGUNDA PARTE

O meu jornal

TERCEIRA PARTE

Amores

Na plateia

Feliz!

A carta anônima

Vida real

PRIMEIRA PARTE

JORNAIS E JORNALISTAS

Maio de 1901, Manaus.

MEU CARO, MARQUES DE CARVALHO

Foi aquele grande romancista francês nascido em Tours e morto em 1850 em pleno Paris, o autor célebre da Physiologie du mariage e o mestre indiscutível de Eugénie Grandet — Honoré de Balzac, quem teve um dia esta frase amarga e desoladora: se os jornais não existissem, não seria preciso inventá-los...

Estas palavras talvez fossem ditas num momento de cólera, talvez quando alguns desses mesmos jornais abocanhasse a obra gloriosa do escritor de além, no ódio e na inveja vulgares que não são uma intenção da imprensa, porque pertencem ao homem, desde que o mundo é mundo.

Certo que a jornais e jornalistas se deve, nestes séculos de progresso e de evolução, uma boa parte das reformas de hoje, uma soma larga de benefícios e vantagens, muita vez a vitória do direito e da justiça. Certo também, — sejamos justos e imparciais, — que a imprensa com o seu poder absoluto não raro ampara causas ingratas, explorações imorais, campanhas inglórias e desprezíveis.

Mas, quem como eu ainda se enfileira entre os jornalistas crentes e tem um ideal puro e honesto, comparando o bem e o mal que esta mesma imprensa tem feito, não vacilará em afirmar lealmente que a obra benéfica e digna está superior à cobarde e à mesquinha.

Jornais e jornalistas há por aí às centenas, aos milhares. No nosso país raro é o Estado que não tem gazetas a granel. Mas verdadeiramente, jornais e jornalistas temos poucos, uma cifra de uma ridicularia pasmosa.

Eu compreendo merecer este título barateado de jornalista quem saiba fazer uma folha do começo ao fim; quem lance um editorial vibrante analisando o fato do dia com a mesma facilidade e precisão com que estude a política europeia, à chegada dos telegramas; quem dê o eco e o boato de ocasião com uma finura de Mestre, faça a crônica ligeira, leve, no alto, a de arte, inspecione atento o noticiário, tirando daqui um adjetivo e colocando ali uma ironia, dirigindo as seções desde a de maior responsabilidade até a mais insignificante, escrita para o riso e para a galhofa, e administrando, vigilante e sagaz, a parte material da folha, a artística, dispondo os trabalhos com felicidade e gosto pelas quatro páginas do jornal, porque — digamos a grande verdade, — a gente começa a seduzir, a ganhar, a prender o leitor pela disposição material da folha, pela sua feitura artística...

E você, meu amigo, é jornalista como eu entendo, — daqueles que têm o segredo de fazer leitores.

A imprensa de hoje revoluciona, derrui ministérios, abala tronos, faz situações do dia para a noite. Na Inglaterra, onde ela é uma potência, como na França, à frente jornalistas experimentados, homens de educação sólida e liberal, alheios a questiúnculas de campanário, tem feito verdadeiras apoteoses, e nada se faz sem a sua opinião.

De resto, a imprensa é necessária sempre ao sábio como ao artista, ao padre como ao industrial.

É a imprensa, disse um dia Fialho de Almeida numa página feliz, que reforça e purifica a voz da opinião — essa complexa voz feita do rumor de todas as aldeias e cidades — com a sua tuba de bronze que fustiga as torpezas, tetaniza as consciências, dá aos governos força, expurga do mando os nomes conspurcados, e exalta os mártires, recompensa os trabalhadores, e cristaliza em bronze, ao centro das praças, a memória de todos os que de alguma forma souberam cumprir o seu dever!

O que é preciso, o que é imprescindível, é o jornalista ter critério e gramática. Já dizia mesmo um amigo meu que era necessário mais critério que gramática...

Infelizmente, para mal do país, na maioria dos nossos jornais — as exceções são tão poucas... — triunfa sempre a politicagem barata e ridícula, sem ideal, pois que é de um pessoalismo atroz, bárbaro e enfastiador, porque o leitor nada tem absolutamente com as questiúnculas do indivíduo A com o indivíduo B, com as tergiversações políticas do amanuense José ou as maroteiras do comendador Antônio.

A descompostura soez, a calúnia esfarrapada, o insulto da marafona vulgar, o atassalhamento do Lar, não raro nodoam páginas que mereciam e reclamavam campanhas sociais, polêmicas elevadas e nobres, o estudo de uma época ou a solução de um problema de momento.

Trabalhar sincera e honestamente pela Pátria, e pelo povo, sem mercadejar ao balcão, sem explorar na mais reles das chantajes os fatos do dia, tendo um ideal sério e digno, — eis aí um roteiro que, certo, nenhum jornalista bem intencionado desprezará.

Já dizia Horácio, — bis repetita placent. E é por isto que nesta pobre carta-aberta estou a repisar ideias sabidas e íntimas de quem me lê.

O jornalista neste Brasil pouco intelectual, apesar de todos aos dezoito anos cantarem em versos alambicados os olhos verdes da menina Maria e os cabelos pretos da senhorita Luíza, — o jornalista, dizia, não tem ainda em nossa Pátria o lugar que lhe compete, isto porque o público errônea e tolamente julga uma classe inteira por meia dúzia de corruptos, sem inteligência e sem moral, que mancham páginas de jornais numa exploração baixa, servida por insulsa prosa.

Mas tudo isto é incabível porque na sociedade, desde os altamente colocados até àqueles sem posição social, no país ou no estrangeiro, há gente ignorante e sem imputabilidade moral, sem critério e sem inteligência, e ninguém, abona fide, condena com um julgamento leviano uma classe inteira por alguns exemplares degenerados.

Entretanto, parece que só abre uma exceção odiosa aos jornalistas, julgando-se todos, de sul a norte, pelas façanhas de um grupo que exatamente faz a restrição nada lisonjeira.

A injustiça é clamorosa e merece reparos. Entre médicos, padres, engenheiros, bacharéis e políticos, como em todas as ramificações em que se subdivide o organismo social, há bons e ruins. Esta observação mesmo, à puridade, não é minha; deve ser do senhor de La Palisse.

O público não condena em massa esta ou aquela classe, fazendo bem clara a separação do joio e do trigo. Entretanto, que para a imprensa...

Talvez, pelo jornalista estar em convivência direta e diária com o público, sabedor dos seus gostos e defeitos, obrigado pela profissão a ser bom e mal, e elogiar hoje e a condenar amanhã, conhecedor daquilo que se convencionou chamar fraquezas sociais, talvez por isto mesmo que se julga em globo, deslealmente, jornais e jornalistas.

Outro dia li em um escritor conhecido esta opinião: — “Em tempos democráticos, em meio de uma população que sabe ler, não há honrarias comparáveis à influência permanente e aos vastos recursos ao alcance do jornalista, que entende do seu ofício. Nele se concentram todos os atributos de uma soberania real. Desfruta quase que exclusivamente o direito da iniciativa, conserva a faculdade permanente de orientar e dirigir, e, acima de tudo, melhor do que qualquer outro homem, está apto para gerar essa dinâmica da opinião pública que é a maior força dos partidos”.

A questão é ter sensatez, saber discernir o bem do mal e ter o segredo da confecção da folha. Porque até para traduzir ou transcrever é necessário critério e gosto, conhecer o que vai agradar ou não a seu público.

Certo que muitos jornalizam com uma pilha de papel, uma tesoura e o competente vidro de goma-arábica. É a monomania, a doença se permitem a frase, da tesoura, por incompetência ou preguiça. E depois, cheios de ironia e de graça, queixam-se ingenuamente do público, que não recompensa os seus esforços os sacrifícios feitos...

A confecção de muitas dessas folhas que enxameiam por aí, abarrotando o povo e entupindo lugares, é uma delícia. Quase ninguém trabalha e todos querem ser redatores, — para figurar, ser falado na gazetilha, ter entrada gratuita nos teatros, frequentar as festas. E, à última hora, quando o chefe de oficinas reclama originais, vazios os galeões e o bando de tipógrafos à espera, é um cortar doido, um furor de transcrição que deixa esburacados, em farrapos, os jornais da última mala, do sul ou do norte, porque os do estrangeiro, esses ainda precisam ser traduzidos...

Já disse alguém, com fina observação, que muitas das nossas gazetas nada mais são “que um pretexto para o artigo de fundo”. E de fato. Diários há que, tirado o editorial da primeira coluna, duma politicagem estreita e barata, só fica restando a transcrição tola e improfícua, feita a esmo, duas ou três mentiras e perfídias no noticiário, e as notas da malandrice, colhidas na polícia pelo repórter indiferente.

Felizmente, em todo este imenso Brasil já há uma dúzia de jornais, verdadeiramente jornais, bem feitos, alguns artísticos, variados, com um largo serviço telegráfico, a matéria bem distribuída, o noticiário desenvolvido e farto. É exato que não fiz a conta a dedo, como um colegial. Mas não deve ir além de doze.

Há verdades que não se dizem, bem sei. Mas “a convenção social” há de permitir, meu amigo, que abra uma exceção aos preconceitos do muito nobre senhor conselheiro Acácio.

UM ESCRITOR

Agosto de 1901, Manaus.

MEU QUERIDO, BERTINO DE MIRANDA

Certo que neste país, de sul a norte, há muita gente que escreve, que faz livros, livros em profusão, livros a granel. Mas escritores, verdadeiramente escritores, na significação precisa da palavra, há poucos, raríssimos.

Para a infelicidade da nossa já pobre literatura nacional, foi um destes, dos bons, que a morte golpeou, não há muito. Santana Néri pertencia ao número restrito daqueles que honravam o Brasil intelectual, sabendo guardar as tradições da língua maravilhosa de Camões.

E é por isto, meu amigo, que deixei lá no alto esta frase: — Um escritor. E se tratando de Santana Néri nada mais justo do que a classificação referida, infelizmente malbaratada, aqui e além, para este e para aquele.

Toda a obra, nada vulgar, do patrício ilustre, todo o seu estudo detalhado e exaustivo, toda a investigação derramada em centenas de páginas, todo o estilo admirável do grande morto, toda a sua verve cintilante e adorável, fizeram desta mesma obra um patrimônio nacional, uma honra para o Brasil literário.

Afirmava o fertilíssimo Pinheiro Chagas, ao escrever sobre Latino Coelho “que toda a vida deste se condensava no gabinete”. O mesmo podemos dizer hoje deste admirável Santana Néri, ao minuciar a sua obra alevantada e patriótica.

Toda a vida do paraense festejado foi passada em estudos, no gabinete. Um acidente político é que o arrancou, por meses, do seu trabalho intelectual, atirando-o a um presídio.

Eternamente moço, com o espírito fino e dia-a-dia parece que mais apurado, mais cintilante, o barão Frederico de Santana Néri era um palestrador exímio, delicioso, direi mesmo encantador, pontilhando a frase com a ironia sutil ou com a anedota sem ofensa e com malícia...

A sua obra, a sua grande obra, ficará eterna no espírito daqueles que tem cultivo intelectual. Ela não é destas que desaparecem com o autor, que morrem muitas vezes antes de quem as fez...

Brasileiro, foi um amigo incondicional da nossa Pátria, talvez o seu maior propagandista na Europa. No jornal, no panfleto, no livro, na tribuna, Santana Néri fez a campanha cerrada da defesa do país, amparado pela verdade, escudado no seu patriotismo eficaz, — campanha esta que lhe valeu muito dissabor, muita injustiça até de compatriotas.

Longe de mim a preocupação, meu querido amigo, de, nesta carta muito íntima, sem as lantejoulas do estilo, sem o brocado dos períodos cuidadosamente rendilhados, estudar a obra do patrício eminente. Mas é grato para mim, nestas linhas modestas, falar do estremecido amigo, daquele a quem eu — você bem o sabe, — sempre admirei e quis.

Como estudo, como reflexão, como obra “para ficar” — empregando uma velha forma de Jules Lemaitre, — aí temos Le Pays des Amazones, um livro sincero, real, verdadeiro, e que é a reivindicação dos nossos direitos, obra traduzida hoje em línguas diversas; Le Folk Lore Brezilien, prefaciado pelo príncipe Roland Bonaparte; Aus États Unis du Brésil; Le Brésil em 1899; o Dicionário Enciclopédico, e tantos outros volumes; — como obra de espírito, de charge, entre outras muitas, onde rebrilha todo o seu talento, toda a sua graça, toda a sua verve sadia e boa, aí temos De Paris a Fernando de Noronha, a história do seu degredo político no Brasil, contada com um chiste delicioso e arrastando a uma bulha tremenda, a uma troça irresistível, aqueles que o perseguiram, que o desterraram.

Já dizia Camilo “que é preciso ter chorado para imortalizar o riso no livro, na estrofe, na sentença, na palavra”. E Santana Néri, deste exílio, nos deu um livro soberbo, vibrante de ironia, adorável e deveras causticante.

Ele era bem o que um escritor de além-mar disse de um seu patrício, ao analisar toda uma obra célebre, — um maravilhoso Proteu que sabia tomar todas as formas, adaptar-se a todos os gêneros, ser mordaz e comovente e profundo e brilhantíssimo.

Mas, meu bom Bertino de Miranda, entrego a outros, certo mais autorizados e competentes, a tarefa de criticar, de analisar, de dissecar, se você permite a frase, toda a obra vasta e patriótica, genuinamente, nacionalística, de Santana Néri. O que eu quero, o que eu desejo, nesta carta despretensiosa, é relembrar o palestrador inimitável, delicioso, cheio de graça e de chiste que foi o morto amigo.

Lembra-me bem, como se fosse de ontem, o fato. Voltava Santana Néri, de Fernando de Noronha, com destino ao Amazonas, quando lhe fui apresentado, já a bordo de um antigo paquete do Lloyd, por um dos seus irmãos, o que hoje dirige o destino dessa riquíssima terra.

E, trocados os primeiros cumprimentos, numa bela noite de junho, — a lua lá no alto como uma salva de prata, nós no tombadilho do Alagoas, conversamos, ou melhor, falava o Mestre, ininterruptamente, e eu, ávido de conhecê-lo já há anos, bebia sôfrego as suas palavras, admirando toda a sua graça, toda a sua ironia faiscante, o seu vocabulário riquíssimo e puro, clássico, sem afetação, pontilhada a palestra de quando em quando, com uma anedota irresistível, um caso delicioso e original.

Brasileiro, residente em Paris, educado na Europa, — toda a sua vida passada lá fora — Santana Néri falava e escrevia o português o mais correto, o mais cristalino e joeirado, sem uma acentuação estrangeira, quem sabe se pensando com Eça de Queiroz, que a gente deve falar muito bem a sua língua, tendo o direito de falar muito mal a língua dos outros... Se ele também ao falar ou ao escrever o francês, o inglês, não parecesse um francês ou inglês educado.

Foi nesta viagem, — na travessia de Belém a Manaus, — sulcando o Amazonas imenso, que Santana Néri me contou, naqueles seus períodos arrebatadores, naquela sua palestra adorabilíssima, todo o seu exílio, a sua prisão na ilha temida, os seus tormentos e pesares longe da família, de todos os seus, perseguido, — páginas estas que mais tarde reli no livro causticante em que conta o seu martírio, quase com a mesma precisão de fatos, de datas, e com a mesma verve de Mestre.

E, ao ler o volume de combate, pareceu-me estar ainda a ouvir Santana Néri, naquelas noites enluaradas de junho, a bordo do Alagoas, a contar casos estupefacientes do Biriba e do Azulão...

Desde aí, admirador que já era da sua obra escrita, o fui e sincero da sua “obra falada”, — porque ninguém, que eu tenha ouvido, tinha mais graça na palestra, mais chiste, mais verve, um repositório maior de anedotas, de facécias, de casos, contados todos habilmente, com uma finura única, com um espírito raro, com uma ironia excepcional.

E, todos os dias, quando Santana Néri, o eternamente moço, estava na terra hospitaleira e generosa dos Barés e dos Manaus eu ia pressuroso ter a minha “hora de palestra” com o grande e gentilíssimo homem, hora que por vezes se prolongava em duas e três, quando o círculo amigo argumentava, — círculo a que você, meu bom e distinguido confrade, pertencia como eu, todos nós admiradores da obra escrita e falada do brasileiro eminente.

Certo que Santana Néri, no estrangeiro, representou o Brasil quase em toda a última metade do século XIX. Ele foi, spont sua, o advogado da nossa Pátria em terras da Europa, zelando pelo nosso bom nome, desmanchando intrigas, desfazendo calúnias, em artigos e estudos vibrantes, sérios, justos, ou numa alta ironia gaulesa sob o mal disfarçado pseudônimo de Mr. Purand.

Que ele, o Mestre, amou o Brasil, idolatrou-o, — estão aí, para atestar, centenas de páginas, folhetos, livros, polêmicas, aqui e acolá, os seus quatorze anos de colaboração efetiva no Jornal do Comércio, do Rio, com a criação dos belos folhetins Ver, ouvir e contar, onde boiava sempre e sempre a saudade da Pátria querida, enfim, toda a sua obra que, pelo patriotismo que a inspirou, pelo aprimoramento da linguagem, pelos conhecimentos desdobrados, pela ironia sutil, muito delicada e muito fina, — uma filigrana, — não se apagará com a sua morte, honrando o Brasil intelectual.

Santana Néri bem podia dizer com Horácio, — non omnis móriar. Eu não morrerei todo, porque minha obra me sobreviverá.

E, ao fechar esta pobre carta aberta, sobre o amigo comum, roubado à nossa admiração e ao nosso afeto, receba, meu caríssimo Bertino de Miranda, um aperto de mão do seu confrade ex-conde.

RELIGIÃO E C.ª

1901, Manaus.

MEU BOM LIGINIO SILVA

Não estranhe você, meu velho amigo, o título escandaloso — para os convencionais, — desta modestíssima carta-aberta. Certo que a religião, a verdadeira religião, é um belo culto, muito alto e muito nobre, outrora a força dos povos, o laço que os unia, o poderio incomparável da Igreja; certo também que hoje, salvo as exceções obrigadas a toda regra geral, a religião já perdeu o brilho que a manteve, que a fez dominar, deixando fugir almas pela inépcia da maioria dos seus príncipes, por uma intransigência descabida, por uma má compreensão ou por uma larga desorientação, convertendo o culto católico em objeto de luxo, em exposição de toalete, fazendo-se religião por chic, indo-se ao templo sagrado com a mesma indiferença, sem fé e sem crenças, com que se vai ao teatro, ao baile à quermesse.

Não desejo, não quero minuciar fatos. Mas, no nosso país, proclamada a República e separada a Igreja do Estado, a religião entrou numa fase de estacionamento, ou melhor, de abandono. Aqueles que eram os principais responsáveis do catolicismo, os seus diretores, perdido o amparo oficial, parece que só tiveram por lema a salvação própria, o “eu” desolador e eterno.

Não digo que neste país de indiferentes haja indiferença absoluta pela religião. A Igreja, nas suas festas mais populares, ainda consegue despertar um pouco a alma de parte do povo, — mas nem se estender pode uma comparação com as festas de outrora, onde compareciam, fervorosas e crentes, populações inteiras.

Mas nos dias que atravessamos, a fé, — a verdadeira crença, — só é encontrada entre aqueles que propositalmente chamarei a “alma velha”. A gente nova, a de hoje, toda uma mocidade, esta vai ao templo, frequenta a religião por desfastio, em busca de um divertimento contínuo e gratuito, para ver o desfilar de toalete, e diga-se a palavra precisa, nua, e crua, para namorar.

E deste desrespeito, deste abandono da religião, desta falta absoluta de crenças não se podem queixar muito aqueles que são os guardas do belo e nobre culto, que ainda tem a brilhar lá no alto, — com uma enorme estrela isolada e triunfal em noite escura, — o vulto desse grande e doce velhinho Leão XIII...

Os grandes oradores da Igreja em nossa Pátria, aqueles que pela erudição, pela palavra quente e persuasiva, pelo talento e pelo saber, ilustravam a tribuna sagrada, — esses parecem que se foram para nunca mais voltar, como aqueles sonhos deliciosos do bardo patrício. Se há ainda, em todo o nosso país, quatro ou cinco grandes oradores sacros, é caso de nos darmos parabéns.

Aqueles que visitam as nossas Igrejas sabem bem quanta verdade vai nestas linhas. As Casas dos Santos, então, e apesar das pingues esmolas, denotam verdadeiro desmazelo, senão abandono. Mas, apesar disto, enchem-se; aqui e ali velhos rezam, sinceros e contritos, remexendo rosários com as mãos débeis; moças trajando toaletes caras e chics, de cores, garridas e joias faiscantes; e, nos portais do carcomido templo, os dândis, os adoráveis “leões” preciosos, no rigor da moda, grande flor à lapela, luzidia cartola, ostentando um alto desrespeito pela religião, com olhares babosos para o bando das senhoras, tentando, os preciosíssimos “leões”, jeter du ridicule sur la religion.

... No púlpito, com raras exceções, numa voz cansada e rouquenha, como um realejo qualquer, um pregador vulgar repisa ideias velhas e gastas ou atemoriza os poucos fieis com o diabo, a perfídia do espiritismo e do hipnotismo, ameaçando parvamente com o purgatório àqueles que nas terças e sextas não usam e abusam escandalosamente do bacalhau...

Compreende-se, meu amigo, que com tal desrespeito e desorientação de parte a parte, a Igreja perca o seu poder e a sua grandeza, lógico a sua força, e se converta insensivelmente em passatempo agradável e barato aos moços de hoje.

E a grande verdade ressalta como uma espada nua brilhando ao sol: e é que os velhos, só os velhos vão ao templo por espírito religioso, ainda com grande fé e puríssima devoção.

Mas, quando desaparecerem estes velhos... A Igreja perderá de todo o seu poderio, como já perdeu o seu esplendor, porque — diria qualquer conselheiro Acácio, os velhos de amanhã são os moços descrentes de hoje.

Um causticante escritor português disse que “a Igreja perde efetivamente o seu lugar, não já como fornalha de fé, mas mesmo como empresa e casa de espetáculos. E o seu grande drama trágico anual — a paixão de Cristo, — com música e canto, calvário no claustro, para os fiéis, e bródio de amêndoas e vinho, para os irmãos, na sacristia: esse grande drama lírico, que por séculos foi considerado a obra prima do teatro papista — os próprios padres o confessam, —começa hoje a tornar-se banal, pela imutabilidade dos mesmos efeitos, e falta de lógica do seu conjunto cênico”.

E de fato. Já o povo, farto de cenas usuais, duma monotonia fastidiosa, porque são de ano em ano, abalado profundamente em sua fé, assistindo à derrocada tremenda porque é a confiança, o alívio, o consolo, a esperança que se vão, principia a cansar, a perder a fé, minado no âmago, — como estas árvores que têm a raiz tocada do mal que as há de matar, mas que ainda tem um ou outro galho frondoso e verdejante a iludir o viandante descuidado.

A grande verdade é que hoje o amor profano, mesmo dentro da Igreja, substituiu o amor divino, como bem observou o escritor de quem recortei o trecho deixado aí acima. A espetaculosidade, a monomania da exibição, as toaletes riquíssimas vão tomando o lugar da crença e da fé. E os “guias espirituais” não podem desenrolar queixas que seriam amargas, porque da maioria deles foi que partiu o abandono, a indiferença, a intolerância, o desregramento mesmo, — comprovando involuntariamente o saber, e a enorme distância que vai entre os eminentes e perspicazes chefes, da Igreja de ontem e os inábeis e pouco cuidadosos chefes da de hoje.

Há verdades amargas. E nesta época, meu amigo, em que muita gente é ainda religiosa por especulação, por sórdido cálculo, para parecer bom moço num tempo de desvarios e de debacle social, e onde os verdadeiros crentes rareiam dia-a-dia, mais e mais, é possível que, entre as quatro paredes de um gabinete isolado, em solilóquio, se perfilhem as opiniões aqui deixadas despretensiosamente e se vá, com grande desplante e maior petulância ainda para a rua, para o jornal, afirmar que a Igreja nunca resplandeceu como hoje, que ela não está nem nunca esteve em decadência, e que a fé parece até que argumentou e se avoluma...

Mas já a Bíblia — este encantador e doce poema em prosa, — abençoou aos preciosos de todos os tempos, para gáudio e estupefaciente júbilo dos companheiros do Snr. de La Palisse.

E eu, meu amigo, ao fechar esta longa carta, com o clássico e rançoso — Amém! Envio-lhe muito saudar.

TEATROS

Continua em decadência o nosso teatro. Já vai longe a época em que resplandeceram todo o talento de Pena, toda a observação e ironia de Macedo, toda a ilustração de Alencar e de tantos outros que souberam honrar a Arte patrícia.

Hoje o drama e a comédia foram substituídos pela revista desenxabida, falha de espírito e de senso. A moral — essa anda então bem arredia dos nossos palcos. Não que eu me enfileire no número dos Catões, que, portas a dentro, pela calada da noite, devoram — é precisamente o termo, — a biblioteca escandalosa dos Rabelais e, na rua, afivelada a máscara de uma moralidade intransigente, vá blasonar uma pudicícia falsificada, alardear uma inocência que hoje se perde, e de uma vez para sempre, aos doze anos.

Mas, sejamos justos e desapaixonados. O que domina nos nossos teatros, já se vê que no gênero nacional, não é a tragédia, o drama social, psicológico, a comédia fina e esfuziante de espirito, de graça, de ironia, de verve, mas sim a revista ensossa, parva e imbecil, o maxixe desbragado e revoltante, a libertinagem da frase e do gesto.

Autores dramáticos já não os temos mais. De Norte a Sul, bem contados, podemos mencionar três ou quatro escritores que ainda se dedicam ao gênero dificílimo do teatro. O resto é a revista monótona e fatigante, com luxuoso cenário, guarda-roupa lantejoulado, paupérrima de espírito, infelicíssima de enredo, a música uma coberta de retalhos, tirada daqui, dali, da acolá.

Ora, se o teatro é realmente para educar, como os livros me ensinaram e eu ingenuamente creio, é necessária haver muito boa vontade, muito critério, senso e moral para uma regeneração que já não pode ser imediata, mas que se deve fazer, embora aos poucos, lentamente.

É tristíssimo ver a que reduziram o nosso teatro. Outrora, ele honrava esta Pátria querida, tinha uns tantos nomes aureolados, — talentos de escol. Hoje, que nós temos também muitas ilustrações, o gênero foi barateado e em vez de progredir, retrocedeu.

Alguns desses, reduzidos hoje a “revisteiros” tem capacidade para nos dar belos dramas, esplêndidas comédias. Mas a revista é tão fácil e cala tanto no espírito do público.

Mas aí é que está exatamente o erro. O povo, se enche os teatros quando vão à cena as revistas marotas, é porque só lhe dão revistas ou dramas de arrasar qualquer paciência de Job, gênero José dos Telhados, Poder do Ouro, Pedro Cem que já teve e hoje não tem.

Como, em tempo que vai bem longe, quando o meio social era menos desenvolvido, mais acanhado, Pena, Macedo, Alencar fizeram e representaram obras de valor indiscutível, alcançando o sucesso verdadeiro e espontâneo?

O gosto do público, pelo abuso escandaloso da revista abandalhada, vai-se depravando. E se não houver uma repressão, clara e forte, então é que nunca mais teremos o teatro nacional.

E não se diga que vai pessimismo nesta observação. O povo, não tendo quem o oriente, deixa-se levar como uma criança pelo mais ousado. E o teatro, abandonado pelos bons escritores, entregue somente aos maxixeiros de cena, aos exploradores da Arte, aos seus inimigos mais ferrenhos, visando somente o negócio do balcão, esquecido o nome e a responsabilidade artística, — vai calando no espírito do povo, eternamente bom e eternamente ingênuo, e a dança desenfreada e lasciva, e a palavra imoral e de marafona, o gesto de bordel e os usos de alcouce, insensivelmente foram tomando o lugar da comédia cheia de graça e do drama bem observado.

Negociantes, os “revisteiros” sabem bem que vender barato é vender muito. E assim, dos magros dez tostões do “paraíso” aos cinco mil réis da cadeira de primeira classe, o povo pode, a fartar, ver e ouvir as revistas de nomes pomposos e atraentes, precedidas de altos preconícios e recheadas de escandalosíssimas cenas.

No palco, todos nós sabemos o que se passa. Um cenário vistoso, guarda-roupa encarnado e azul, faiscantes os pingos doirados, diálogos de uma parvoíce desesperadora, cenas desencontradas, desconexas e ridículas, a peça sem um enredo, — sem uma história na frase picante do povo — a música roubada daqui e dali, de óperas, operetas, zarzuelas, etc., fazendo uma confusão arrasadora, e, quando Deus Nosso Senhor é bem servido, a pilhéria — porém, geralmente baixa, grosseira, ofensiva, despertando gargalhadas aos parvos.

Do palco, as “atrizes”, zelando também interesses próprios, procuram ávidas a plateia, deitando a este ou àquele olhares alambicados, sorrisos com tentativas a provocantes e que só deixam ver bocas sujas e dentes mal cuidados, e, para completar as belezas falsificadas, de carregação, os decotes escandalosos por onde se vê o carmim e o pó de arroz barato numa confusão doida, de arrepiar, fazendo pendant com as pernas magras, à mostra, envoltas porém com algodão em rama, para engrossarem, para ficarem gordas e roliças...

E aqui temos hoje o teatro nacional, com duas ou três exceções. Maxixes e pernas entrouxadas.

Belém, novembro, de 1901.

O PRÊMIO DEUTSCH

O problema da navegação aérea sempre preocupou o brasileiro. Em época remota, quando era um crime as descobertas científicas, patrícios nossos já cuidavam da direção dos balões. E parece que esta glória, desde séculos, estava destinada ao Brasil.

O padre Bartolomeu de Gusmão, o Voador, filho desta Pátria que tem dado tantos talentos de escol, sofreu torturas pela navegação aérea. E não foi só ele, em século de atraso social, que pagou sabedoria e ilustração com sofrimentos morais e materiais. Ainda hoje, em pleno século XX, em que nós blasonamos muita educação, muita civilidade, reinar uma nítida compreensão dos homens e das coisas, dos nossos deveres, dos nossos direitos, em que nos enfeitamos com sentimentos altruísticos geralmente não possuídos, hoje, que alardeamos uma justiça absoluta, completa, imparcial, criteriosa, independente, — aqueles que se entregam de corpo e alma aos grandes trabalhos não comuns às massas, desconhecidos destas, sofrem a mesma guerra de outrora, agora não com barbária, mas com um requinte de civilização, por isso mais dolorosa, mais ferina, porque não é a vingança física mas a moral, aquela que vai certeira sangrar o nosso coração e a nossa alma.

Comparemos. No reinado de D. João V, quando não havia ainda esta decantada civilização de que tanto nos gabamos, o padre jesuíta Bartolomeu Lourenço de Gusmão inventa uma máquina aerostática e por isto é perseguido. Hoje, mais de um século depois, quando o progresso é um fato, a civilização um dos nossos mais discutíveis orgulhos, a obra gloriosa e extraordinária de Santos Dumont é posta em dúvida e, depois dele descobrir a dirigibilidade do balão, não com palavras mas com fatos, há gente que lhe faz cerrada oposição, por despeito, por inveja, ou por um mal entendido patriotismo — em todo o caso por um sentimento pouco nobre, nada elevado, — e gasta-se mais de mês em discussões, mais ou menos violentas, para saber se se deve entregar ao brasileiro ousado o prêmio Henrique Deutsch...

Isto na capital da França, em plena Paris, numa associação composta de gente de talento e de saber, no século XX.

Mas Santos Dumont obteve enfim o prêmio Deutsch. Não por uma maioria absoluta, como era de esperar, se a justiça fosse realmente um fato, — mas, dentro do Aero-Club, por 13 votos contra 9, se não falham telegramas recentes.

Neste momento desaparece a citra, aliás considerável, de 100 mil francos do celebre prêmio Deutsch, para ficar somente o valor moral que traduz esse mesmo prêmio, universalmente ambicionado e disputado.

Ele diz, bem alto, comprovadamente, ter sido um brasileiro quem descobriu o problema até hoje irresolvível da navegação aérea. O que nisto vai de doloroso para muitos, bem o prova estes 9 votos contrários, — votos que são o reflexo ou do despeito ou de um patriotismo mal compreendido.

Vibra a nossa alma de brasileiro com o triunfo excepcional de Santos Dumont. Ele é, até agora, o maior homem do século XX, isto sem paixões, sem parcialidades, sem patriotismos estreitos e insustentáveis. O que esta vitória traduz, o que ela diz, está bem claro no espírito claro, na inteligência medianamente cultivada.

Sabem todos, desde que seja um fato a navegação aérea, e esta já está descoberta e por um patrício, faltando apenas detalhes que ele saberá aperfeiçoar ou inventar, — a transformação completa, absoluta, por que passará a vida de hoje, aqui e além.

Outros brasileiros, de Sul a Norte, cuidam seriamente da navegação aérea. E desta concorrência tudo temos a lucrar, pois que lá fora, na velha Europa, muitos são os que se entregam ao estudo exaustivo e arriscado que fez de Santos Dumont um popular e um consagrado, — duas coisas dificílimas de reunir-se hoje.

Moço, rico, com talento e ilustração, ousado, corajoso, calmo e patriota, Dumont reúne qualidades raras e de verdadeiro herói, de homem já hoje considerado de lenda.

O ambicionado prêmio Deutsch veio oficiosamente consagrar a sua obra valiosa e admirável, obra que já tinha o apoio e o aplauso do povo francês, como de quase todo o mundo.

Registremos as glórias nacionais, sem orgulho, mas com Justiça. E tenhamos, nós os brasileiros, as melhores palavras de saudações para o moço herói vencedor do prêmio Deutsch, e enviemos-lhe, de longe, através do Jornal, toda a expressão dos nossos melhores sentimentos, das nossas alegrias, as vibrações da nossa alma e do nosso coração, — “porque alma que não vibra não é alma, coração que não bate não é coração”

Belém, novembro, 1901.

UM LIVRO DE VERSOS

Versos para serem lidos é necessário que a gente esteja calma, tranquilo o espírito, a alma sossegada. Certo podem ser vistos a qualquer hora, até num alcazar, mas não compreendidos. E então versos de amor, doces, suaves, falando ao coração, cheios de saudades...

... Outro dia, — uma tarde quente, abrasadora, — num esfrangalhado bond, tentativa de barca rompendo pacíficas águas, um amigo meu, serenamente, lia um livro de poesias. Ao seu lado dois engravatados cavalheiros discutiam calorosamente a política local, e, bancos atrás, uma mulher afirmava às companheiras de compras, no mercado, que a carne nesse dia estivera gorda e mais barata. E o meu amigo, abnegadamente, continuava com o olhar parado numa das páginas do formoso volume. Era os Troféus, de Heredia.

Ora, impossível compreender o verso marmóreo de José Maria de Heredia naquela lufa-lufa, passageiros a desembarcar, a altercar com o condutor, a discutir este ou aquele assunto. Obras e obras de Heredia, reclamam o maior silêncio, todo o repoiso para entendê-las.

E, estabeleçamos o dilema, ou o meu amigo, homem dado às letras, lia Heredia sem compreendê-lo ou fingia ler o volume requintado do acadêmico eminente “para parecer que sabia francês”. Isto não é de estranhar, desde que é uma das admiráveis fraquezas sociais.

Em bem diverso estado de espírito, em local agradabilíssimo e diria mesmo poético, — se os extraordinários conselheiros Acácios da nossa literatura não tivessem abandalhado o termo, — li, calma e refletidamente, um forte volume de versos que amigo meu, homem de letras e dos mais festejados do país, me enviou há meses da capital da República. O livro chama-se Poemas da Morte, e o poeta, seu burilador, é Emilio de Menezes.

Foi neste aprazível e encantador Mosqueiro, onde há dias estou, numa manhã agradabilíssima e fresca, numa paz e quietude absolutas, e, como diria o poeta patrício:

“longe do grande luxo e vivendo distante

do fausto babilônico e da pompa chaldaica”.

que li a Obra de Emilio de Menezes, os seus belos versos cantantes e sonoros, cheios de vida, de muitos pesares e poucas alegrias.

Disse aí acima que há meses tinha em meu poder os Poemas da Morte e, confesso-o, ainda não o lera. Sabendo que se tratava de um bom poeta, o que realmente é Emílio de Menezes, e de um livro muito falado, muito discutido em rodas literárias, aguardava ocasião oportuna para apreciar a obra do bardo nacional.

E ninguém estranhe este proceder. Repito que os bons versos precisam de tranquilidade para serem entendidos, como toda a obra de arte.

Esta, coitada, anda tão malbaratada que já há uma prevenção absoluta por parte de todos. O verso, então, é uma debacle. Mesmo os intelectuais, aqueles de coração bom e generosidade ilimitada, já há muito estão em guarda. Os poetas de fancaria invadiram as páginas dos jornais condescendentes e hoje, em que temos uma multiplicidade de coisas a tratar, em que a vida material nos rouba o maior tempo, somos obrigados — e aqui vai a grande verdade, — a procurar primeiro a assinatura do poeta. Se este é um Mestre, um consagrado ou quase um nome feito, nós lemos toda a poesia, se não... Deixamos a outrem, que afinal não existe, esta tarefa.

E culpados foram estes mesmos pretensos poetas. Eles têm a monomania da exibição — uma doença já estudada por Max Nordau, — e abarrotam, dia-a-dia, as páginas dos jornais amigos. Ora, neste país raro é aquele que não se considera poeta e raríssimo o que não é criminoso no verso...

Se a gente fosse ler toda a produção nacional, ou aquela que as gazetas inserem, não dispúnhamos de tempo para cuidar de outros imprescindíveis afazeres. E o resultado muita vez é desprezar-se uma boa produção, porque vem firmada por um desconhecido.

Entretanto este país de poetas, de gente que verseja espontaneamente, não tem dado agora bons poetas. Fiados na inteligência, quase ou nada estudam. E o resultado é brilharem ainda, sem competidores, aqueles que há anos encontramos na liça, os Mestres da rima, Bilac, Raimundo Corrêa, Alberto de Oliveira e mais dois ou três.

Porque a maioria dos nossos moços, entende, e entende mal, que a poesia é cantar em péssimos versos os cabelos, os olhos, a boca, os dentes, e tudo mais, das respectivas namoradas. Certo a mulher, que é o amor, sempre foi e será a inspiração básica do poeta. É a vida de hoje, foi a de ontem e será a de amanhã.

Mas é necessário o estudo, e para fazer a psicologia da mulher amada, ou mesmo endeusar os seus cabelos ou as suas formas, sempre incomparáveis, é preciso muito talento, muita observação, muito critério. Se não, é cair no ridículo, atirar à galhofa a namorada, com todas as suas formas excepcionais e estupefacientes.

É um belo livro este de Emílio de Menezes. O verso é cheio e sonoro, a rima difícil e precisa, o assunto muita vez pouco vulgar. Os Poemas da Morte, sem desdoiro, podem figurar na estante do artista distinto, a par das nossas melhores obras poéticas.

É um livro que cabe profundamente no espírito do leitor atento. O título esse é sugestivo: parece que há um sopro de morte em todas aquelas páginas.

A produção nacional anda tão pobre que este volume, além de ser um verdadeiro sucesso literário, é um conforto para todos nós. Parece que os bons poetas, os de raça, ainda não se extinguiram nesta Pátria amada.

Leiam esta Noite de insônia arrancada das páginas dos Poemas da Morte:

Este leito que é o meu, que é o teu, que é o nosso leito,

Onde este grande amor floriu, sincero e justo,

E unimos ambos nós o feito contra o peito,

Ambos cheios de anelo e ambos cheios de susto;

Este leito que aí está revolto assim, desfeito.

E onde humilde beijei teus pés... as mãos... o busto,

Na ausência do teu corpo a que ele estava afeito,

Mudou-se para mim num leito de Procusto!...

Louco e só! Desvairado ! — a noite vai sem termo

E, estendendo, lá fora, as sombras augurais,

Envolve a natureza e penetra o meu ermo.

E mal julgas talvez, quando acaso te vais,

Quanto me punge e corta o coração enfermo,

Este horrível temor de que não voltes mais!

Está aí um belo soneto, cantante, sonoro, resplandecente de forma. O assunto é banal, mesmo vulgar, — mas Emílio de Menezes, bom poeta, disse em versos adoráveis e admiráveis aquilo que outros têm escrito em má rima, forma esdrúxula e intolerável.

Eis como se conhecem os bons poetas.

Não há obra impecável. E, se propósito houvesse de minha parte em catar senões neste livro, certo os encontraria. Mas deixo a outros, aos monomaníacos que procuram erros em todo o volume, em todo o escrito, esta tarefa, que é, afinal, a da galinha em terreiro.

Tenho outra noção da obra de arte. Estudo-a em conjunto, analiso-a englobadamente. Uma ou outra falha, lógica e natural porque é humana, desprezo-a.

Uma bela e forte leitura é os Poemas da Morte. De resto, é um livro sincero. E a sinceridade é o essencial na obra de arte.

Mosqueiro, novembro, de 1901.

?

É uma verdade inconcussa esta: o teatro nacional está muito em decadência. Há mesmo quem diga que a sua agonia é um fato.

Passou a época dos Pena, Alencar e Macedo. Se o teatro brasileiro, no drama, há comédia, ou em suas outras modalidades, teve uma fase feliz onde brilhou o talento múltiplo desses escritores e de mais alguns, hoje, — força é confessá-lo, — retrogradou, podendo-se mesmo com justiça dizer que vivemos do passado, de recordações.

Exceção de Artur Azevedo, que é um comediógrafo de talento e de espírito, não sabemos mais quem perseverantemente haja escrito para o teatro. E mesmo Artur, que há mais de vinte anos tem batalhado cerradamente para que tenhamos algo de nacional neste assunto, vendo ele só não poder vencer um meio ainda relapso às coisas de Arte, deixou o drama e a comédia, entregando-se à revista repudiada por todo verdadeiro intelectual, — revista que tem os aplausos do populacho e de muita gente que se diz civilizada, e a preferência absoluta dos empresários que exploram no Norte e Sul as nossas casas de espetáculos.

Entretanto, se Artur escrevesse em francês ou em um meio artístico consagrado, rivalizaria com Alfredo Capus, pois a viveza no diálogo, a ironia cintilante, a observação justa, o enredo leve e impressionador, a frase de uma simplicidade encantadora, nada falta na comédia do conterrâneo ilustre.

Estas considerações deixadas aí acima, na despretensão de um artigo lançado currente caramo, motivou-as o último drama de Rubem Tavares, um patrício nosso de talento comprovado.

Se por acaso tivéssemos um teatro, certo um dos primeiros lugares caberia ao moço ilustre. Ele dedicou-se ao drama, — como ilimitado para rebrilhar o seu talento e todas as suas múltiplas qualidades de Artista.

Antes do drama que dá lugar a este esboço de crítica, e que original e curiosamente se intitula — ? — Rubem trazia uma bagagem literária avultada, constando de uma farsa, Embrulhadas de Amor; A Intrusa, comédia de Sabatino Lopes, que traduziu fazendo um prefácio criterioso; Pelo teatro, estudos críticos e A Razão Social, drama que mereceu benévolo acolhimento do público e da crítica sensata.

Não se trata de um estreante, e, muito menos, de um desconhecido. Não pede benevolência; reclama justiça.

Tratemos da obra.

Ao espírito desatento ou pouco observador há de ter despertado sorriso de ironia o título do drama. Uma interrogação, em tinta preta, na capa de uma alvura absoluta, e, abaixo, as palavras de Schuré: “Les âmes profonde et téndres ont besoin de silence et de paix pour éclore...”

Mas, quem ler e refletir a obra como nós, há de chegar à convicção que o título, à primeira vista extravagante, foi bem achado. É uma questão que se debate, uma tese que se apresenta muito discutível e muito melindrosa, e a sua solução verdadeira e definitiva esta não é para o momento, agitado por soluções práticas que assoberbam os espíritos requintados e eminentes da época.

A divisa, na arte, do nosso conterrâneo é esta: — A fé em busca da verdade. E se o seu drama não é verdadeiramente Religioso e histórico, ele quis com personagens antigos “refletir os ideais dos tempos modernos”.

O drama gira em volta de Nazaro, um ente superior, que é o Cristo para Rubem Tavares, de acordo com filósofos diversos; Mortheu, astucioso e mau, traidor e perverso; Magda e Miriam, dois tipos opostos, completamente diferentes: esta adorável e boa, coração sempre aberto ao bem, alma feita para o Amor, aquela impetuosa e ardente, como foi historiada na tela e na pena.

Em toda a obra o leitor tem em jogo e em confronto estes quatro temperamentos diversos: Nazaro e Magda, Mortheu e Miriam. São estudos psicológicos de uma felicidade que aqui salientamos, e que nitidamente marca a educação filosófica do moço brasileiro.

Diz o autor: “O pecado pode ser perdoado, esquecido nunca; e como a fraqueza na mulher, em o nosso fim moral, é um delito grave, não há absolvição que lhe baste. A mulher é o protótipo da honestidade; em si encerra todas as belezas de sua organização humana, e a menor falta constitui um título de menoscabo, de dúvida, senão de desprezo”.

O problema não é novo. Ele já foi estudado pelos irmãos Goncourt, Daudet, Maupassant, Bourget, Tolstoi, Ibsen, Amicis, Echegaray e tantos outros. Há despertado a atenção de escritores célebres, de filósofos de nomeada. E, na impossibilidade de minuciá-lo, de dissecá-lo, — em artigo ligeiro destinado às colunas de jornal, limito-me a registar o assunto que é uma das bases do drama do escritor patrício.

Nem sempre estou de acordo com o autor. A sua tese, apresentada com uma intransigência de convicto, parece-me discutível. E, nestes tempos modernos, em que só os crentes incondicionais podem sonhar, em que o mundo é demasiadamente prático, a gente pergunta quantas Miriam existem por aí...

Rubem Tavares estuda perfeitamente o tipo de Nazaro, — do homem calmo e eminente, filósofo e sonhador que só tem um escopo em sua vida, a salvação do seu povo. O Cristo devia ser assim.

O caráter de Mortheu, caráter que já foi magistral e superiormente estudado por Shakespeare, está bem observado. É o egoísta, que finge obedecer para depois se vingar, intrigante e ruim, Iago de ontem, de hoje e de amanhã.

Magda foi estudada talvez com demasiada predileção. A sua alma é límpida e inocente, enquanto o corpo rolava no lamaçal. Leviana por temperamento e educação, o seu espírito paira em região superior...

Esta Miriam mereceu todo o carinho e todo o amor do autor. É inocente, é pura, é casta; uma esplêndida e adorável figura de lenda.

Que belas palavras são as de Nazaro, ao morrer do drama! Aí está condensada toda a tese da obra: “Amai-vos reciprocamente. Convosco deixo a Paixão, o princípio fundador dos direitos da consciência livre, o modelo, o exemplo vivo para as almas sofredoras, que deverão meditar, fortificar-se e consolar-se. Eis a legenda dos séculos que se sucederão por entre a realidade das coisas. Sereis abençoados se não abandonardes a sublime doutrina que há de emancipar, regenerar a humanidade, — praticando o amor, a justiça, elevando a verdade à mais assinalada das virtudes”.

Se houvesse neste país uma escol de Arte, um teatro só frequentado por intelectuais, — filósofos e poetas, — é que podia ser representado o drama — ? — de Rubem Tavares. O problema é delicadíssimo, a tese melindrosa e transcendental e, nos termos em que está lançado, não é para ser posto em cena. Falta-nos teatro com escol, escasseia o público de intelectuais, não há empresário abnegado. E é por isto, eu o creio, que o artístico drama do nosso patrício há de ficar eternamente em livro, sem nunca receber os aplausos da plateia.

Manaus, Agosto, de 1902.

A LIÇÃO DOS BOERS

Os pessimistas e os descrentes de hoje pensavam que só nos poemas legados pela antiguidade é que se casavam o valor e a generosidade, a coragem e o perdão. Para estes, o egoísmo dominante nas sociedades modernas não deixava uma brecha para o bem, para os sentimentos afetivos.

Quando começou esta campanha extraordinária dos boers, houve em todo o mundo um frêmito de surpresa. Nação tão pequena a aceitar a poderosa guerra com o temido leopardo bretão era realmente de pasmar. E, a una voce, admirando-se no íntimo a coragem desse povo fanático pela terra natal, sacudia-se os ombros e lamentava-se, desde logo, a perda dos boers, — que estes não venceriam, nunca poderiam sair triunfantes de uma guerra travada com a onipotente e indiscutível Inglaterra...

Passaram-se dias, esgotaram-se semanas, meses findaram. Os boers iam dizimando os inimigos, destroçando o colossal exército inglês, vencendo a flor dos oficiais do orgulhoso país de além. E quando todo o mundo olhou, depois de um ano, o pequeno e heroico povo, de pé, altaneiro, desfraldada a bandeira em prol da integridade da Pátria, — viu, sentiu, que aqueles homens não eram homens comuns, que defendiam com o sacrifício da vida o pedaço de terra que lhes pertence e que não entregarão nunca porque, para outros o possuírem, é necessário que deste povo não exista mais nenhum filho...

A lição que os boers vêm de dar ficará indelével e como um exemplo de generosidade excepcional. Resume-se a um nosso telegrama de Capetown. O famoso general inglês Methwen, que tem sido um encarniçado inimigo dos valentes guerreiros, comandava uma coluna de 2.500 homens. Os boers, em número de 400, derrotaram Methwen, e o fizeram prisioneiro.

Toda a Inglaterra estremeceu de despeito e de ódio. Um dos generais em que ela depositava maior confiança caíra, como um recruta, nas mãos dos arrojados batalhadores.

A imprensa inglesa, rezam ainda os despachos telegráficos, revoltou-se. E toda ela, indignada, pedia uma providência imediata ao Governo, que este mandasse rechaçar o inimigo para vingar a vida de Methwen, que, a essa hora, naturalmente já teria caído crivado pelas balas dos encarniçados guerreiros...

... E, no mesmo momento, numa generosidade excepcional, extraordinária, estes homens de lenda, estes boers admiráveis, que reúnem toda a admiração e simpatias universais pela causa santa que defendem, davam a mais ampla liberdade ao prisioneiro, soltavam Methwen, deixavam completamente livre o general inimigo que nunca os tinha poupado! ...

Este rasgo de generosidade do povo heroico será o filão de ouro em que há de inspirar-se o poeta extraordinário que escreverá o poema da vida gloriosa dos boers. E — Quem sabe? — Se neste momento, a Inglaterra pasma, admirada ainda deste ato de bondade e de perdão, não se arrepende, não tem em pensamento os versos estupendos de Dante Alighieri no seu mais emocionante poema:

... e quale é quei che disvuol ció che volle,

E per nuovi pensier cangia proposta,

Si che del cominciar tutto si tolle...

Manaus, Março, 1902.

SEGUNDA PARTE

Ao amigo Júlio Nogueira

O MEU JORNAL

4 de outubro, 1903.

A morte de Zola — anunciada há dias pelo telégrafo, — surpreendeu brutalmente a todos nós. Inesperada como foi, é claro que emocionou profundamente aos que se dedicam às letras ou àqueles que apenas leram a sua obra de um vigor extraordinário e incontestado.

O espírito público não estava preparado para receber golpe tão desolador. Zola estava bom e forte, apesar das campanhas tremendas em que se envolvera não há muito. Lutava sempre, com energia e desassombro, defendendo a causa nobre e justa, — do fraco contra o forte, da vítima contra o algoz.

Não queremos frisar nesta página simples, sem refinamentos de Arte, toda a campanha feita pelo Mestre em prol da causa sensacional e escandalosa de Dreyfus, a inocência deste proclamada e provada bem alto pelo polemista vibrante, e nem a questão religiosa tratada ainda há pouco com denodo e uma lealdade extraordinária, inspirando a esse doce e justo velhinho LEÃO XIII esta frase que é o maior elogio ao escritor francês... “Émile Zola era um inimigo da igreja, porém um inimigo leal que a combatia abertamente. Que Deus tenha a sua alma em santa Paz!”.

Pretendemos salientar apenas todo o valor estupendo da sua grande bagagem literária destacar neste capítulo dedicado ao grande morto, o talento que ele espalhou por milhares de páginas, toda a sua observação minuciosa e rara, o seu estilo cristalino e joeirado com a paixão do artista consciencioso, a frase burilada com o amor com que Celini, o ourives florentino, tratava a sua obra inapagável, enfim, a pintura apanhada em flagrante, numa só frase, da natureza eternamente triunfal e maravilhosa.

Ele era bem o príncipe dessa literatura francesa, já gloriosa com os nomes de Daudet e Bonrget, Taine e Renan, Flaubert e Maupassant, Goncourt e Dumas Filho, e de tantos outros, tantos, eminentes e consagrados pela alta intelectualidade do mundo que lê, ou, se preferem, que sabe ler.

Na culta França vai ser erguido um monumento à memória do psicologista dos Rougon Macquarts. É uma obra de gratidão e de justiça, mas certo não é para perpetuar o nome do observador do Germinal, porque este viverá eterno nos corações de todos os intelectuais e do povo francês, por quem ele sempre e sempre se bateu com energia desusada.

O mestre grandioso de Rome, Lourdes e Paris, desse estupendo livro, Fecondite, do Travail, da Terre, Assomoir, Docleur Pascal, etc., fechou a sua glória literária com La Verité, livro prestes a aparecer e que certo será a batalha da justiça contra o crime.

É morto Zola. Digamos com o Papa: — “Que Deus receba a sua alma!”

8, outubro.

Lembro-me agora de uma página de Eça de Queiroz — o luminoso espírito que pelo talento, observação e ironia é bastante para fazer uma literatura. Naquele estilo, tão propriamente seu, de uma feitura admirável, que canta aos ouvidos como cristal, estalando, joeirado e rico, Eça, o divino Eça, numa carta que Fradique Mendes subscreve e envia presto a um amigo, analisa jornais e jornalistas, num pessimismo intransigente e amargo, dizendo mal dos dois com uma graça deliciosa e única, que o “jornal matou na terra a paz”, que é o pomo da discórdia, enfim, que sei eu!

E, ao fechar a missiva, quando o leitor ingênuo supõe achar uma frase tremenda, algo de pavoroso, condenando irremediavelmente gazetas e pessoas que as redigem, o grande Eça tem as palavras que reproduzo no desalinhavado destas páginas “... Mas escuta! Onze horas! Onze horas ligeiras estão dançando, no meu velho relógio, o minute de Gluck. Ora esta carta já vai, como a de Tibério, muito tremenda e verbosa, verbosa et tremenda epístola; e eu tenho pressa de a findar, para ir, ainda antes do almoço, ler os meus jornais, com delícia”.

...Li ou ouvi algures que o indivíduo habituado ao álcool não pode mais romper com o vício poderoso. A sua vida não seria vida se deixasse de beber. E quando, numa suprema vontade surpreendente e rara, deixa ex-abrupto de se embebedar, dias ou meses depois, já magro e abatido, a Morte vem pressurosa buscá-lo para a eterna região.

Assim esta vida da imprensa. Quem uma vez escreveu para jornal, quem ouviu o bater apressado dos tipos nos componedores, quem sentiu o cheiro da potassa e da tinta de impressão, na azáfama da confecção da gazeta, aqui escrevendo-se o editorial, ali traduzindo-se os telegramas, acolá fazendo-se a crônica e o noticiário, a palestra viva e cintilante das salas de redações, — não pode, ainda que o queira, fugir de vez a esta tentação diabólica exercida com onipotência por folhas impressas!

Claro que há intervalos de dias, meses, mesmo anos. Mas numa bela noite, bela ou má, a gente insensivelmente se surpreende a escrever um artigo, uma crônica. Está, outra vez, no jornal! É o molusco cefalópode, o polvo, que nos arrasta, prende e subjuga.

Sabemos todos quão dolorosa e amarga é esta vida da imprensa. Em terras nacionais, então... E, se de bárbaros, ainda quiséssemos minuciar uma, a do Norte... Mas, não. Nenhum de nós, que temos um passado de lutas, desconhece a engrenagem sempre a mesma e nem possui mais as ilusões e as esperanças dos quinze anos em flor. Mas, que fazer? Sentimo-nos impelidos por uma força estranha para o trabalho mortificante e inglório que é este do jornalismo, e, certos de dissabores, de contrariedades, de injustiças, lá voltamos entregando-nos de corpo e alma à vida agitada e emaranhada da imprensa moderna.

O que de bom e de mau tem a gazeta bem conhecemos nós. E pode Fradique proclamar alto, em frase triunfal, que a folha impressa é o “Juízo ligeiro, a Vaidade, a Intolerância”, que os jornalistas julgam homens e coisas “superficial, leviana e atabalhoadamente”, que a gazeta é “uma massa espumante de juízos frívolos”, que o “jornal exerce hoje todas as funções malignas do defunto Satanás, de quem herdou a ubiquidade; e é não só Pai da Mentira, mas o Pai da Discórdia”, que o papel impresso é o principal senão o único explorador da vaidade, “pois até o velho instinto da conservação cede ao novo instinto da notoriedade: e existe tal maganão, que ante um funeral convertido em apoteoses pela abundância das coroas, dos coches e dos prantos oratórios, lambe os beiços, pensativo, e deseja ser o morto”, enfim, o que quiser, que eu...

Há dias um amigo, em palestra íntima, interrogava-me, penalizado: “Então, disseram-me que voltas para a imprensa? ” E, sem esperar resposta, numa catadupa de palavras justas, ajuizadas, incontestáveis: “Mas, não é uma tolice? O que tu vais buscar sei eu: contrariedades, desgostos, pesares, trabalhos, e meia dúzia de desafetos. Também, eu já contava com tal: toda a vez que deixas um periódico dizer que é o último, “definitivamente...” isto há alguns anos e com oito ou nove gazetas! Afinal, já há dois meses estavas em descanso...”

Fazia-se tarde. Despedi-me às pressas do amigo e, como diria o Eça, fui para o jornal, com delícia.

14, outubro.

Ah! A reportagem como se faz hoje! Viva, surpreendente, inesperada, cheia de sensações novas, de detalhes estupefacientes, minucia todos os fatos, bisbilhoteira e ávida da nota escandalosa, que há de emocionar o leitor curioso.

A notícia é agora a alma do jornal. Nesta época do trabalho, de pressa, em que a gente em algumas horas do dia tem múltiplos e emaranhados negócios a tratar, a resolver, não há tempo para se ler mais do que a local gritante, o telegrama ou o artigo pequeno, quando muito pequeno.

E como a legião de repórteres serve bem o público! Como, pressurosa, dá os detalhes mais particulares do caso vulgar, deliciando-se com a publicação de informes íntimos e cartas ainda mais íntimas...

O fato mínimo é o pretexto amplo para detalhes. Nada escapa à argúcia e à finura do repórter de hoje. Tudo ele sabe, tudo, e quando há pouco, inventa para que a notícia apareça bem esfuziante e escandalosa.

Conta Fialho de Almeida que o duque de Elchingem disse de uma feita:

— Eu estimava bastante M. de Woestyne. Mas desde que o sei jornalista, começo a embirrar com ele.

E se Woestyne fosse então um repórter...

A propósito de reportagem recorda-me uma anedota contada por um jornal parisiense, logo depois da morte de Villemessant, que tinha muito talento e espírito e que foi o fundador do Fígaro.

Era no tempo do império, no reinado de Napoleão III. A propósito de um duelo Villemessant, testemunha, teve de ir dar o seu depoimento. Sucedeu-lhe porém ter de esperar largo tempo, antes de ser convidado a entrar no gabinete do juiz encarregado da instrução do processo, e impacientou-se.

— Previna ao juiz, disse ele ao contínuo do tribunal, que, se ele não me chamar dentro de cinco minutos, eu volto para a minha redação, onde tenho que fazer.

O juiz, que tinha ouvido tudo, irrompeu furioso, e disse-lhe interpelando-o bruscamente:

O senhor tem de ficar aqui enquanto me aprouver. Por acaso ignora qual é o poder de um juiz instrutor? Se amanhã eu citasse o príncipe Napoleão, e ele recusasse obedecer-me, eu tinha o direito de fazê-lo trazer até aqui entre dois soldados. Calcule, portanto, quais são as minhas atribuições.

Villemessant, que tinha reconquistado a calma, respondeu modestamente:

— Pois bem, Snr. juiz, se eu estivesse no seu lugar, não persistiria no seu projeto de fazer prender o príncipe Napoleão, que, no caso da morte do príncipe imperial, será o herdeiro do trono e que pelo menos é Senador, general de divisão e governador; geral da Algeria.

— Estou vendo que não fui compreendido, replicou vivamente o juiz. Eu quis tão somente recordar-lhe que, se quisesse fazer tal coisa, tinha poder bastante para isso.

— Afinal de contas, o senhor fará o que quiser, continuou fleumaticamente Villemessant, mas prender assim o príncipe Napoleão é coisa muito grave!

— Eu, porém, nunca tive semelhante intenção.

— E, continuou Villemessant, quando o imperador souber que o senhor quer arrastar seu mais próximo parente pelas ruas da cidade entre dois soldados...

— Mas é inexato, não há tal! Gritava o infeliz magistrado, com a cabeça perdida.

— Quanto a mim, não posso deixar de referir amanhã aos leitores do Fígaro o que o senhor acaba de me comunicar; eu intitularei o artigo:

“PRISSÃO PROVÁVEL DO PRÍNCIPE NAPOLEÃO”.

O juiz receando algum escândalo, que viesse a prejudicar-lhe a carreira, fez imediatamente entrar o jornalista, para o seu gabinete, e assim que o interrogatório terminou, acompanhou-o delicadamente até à porta, suplicando-lhe que não divulgasse a conversa que tinham tido...

18, outubro.

Um causticante escritor estrangeiro, de visita à minha Pátria, escreveu esta frase no seu livro de impressões: “No Brasil, mesmo os que não sabem ler... fazem versos”.

A par da ironia há uma observação relativamente exata. Os filhos deste país são quase todos poetas, ou melhor, cultivam as Musas. E é claro que aí não me refiro aos verdadeiros poetas, àqueles que no Norte e Sul honram as letras nacionais.

Falo do bando que faz versos, dia e noite, chamado principiante. É composto de mocinhos bem intencionados, muito distintos, mas, como diria Camilo, “com uma negação decidida para as musas”. Certo haverá um ou outro que, com cultivo e tempo, ainda venha a fazer versos regulares... Mas, se a vocação é outra, para que contrariá-la?

Tudo isto vem a propósito de um pertinaz que, de três em três dias, manda-me um soneto para publicar. Nem sei quantos já estão nessa minha pobre gaveta, que outros denominaram do “limbo...” E, sempre, eternamente sonetos! E, sempre, eternamente ruins!

Quando, pela manhã de hoje, o correio trouxe a correspondência, vi que havia carta para mim. Era dele, do meu, do nosso poeta! Não adivinhei pelo cheiro, como Alberto de Oliveira conhecia, antes de abrir, a carta de amor... Mas aquela envelope era tão minha íntima! A letra miudinha, fina, delicada... como esquecê-la?

Abri. Ainda versos:

“Rugia o mar silenciosamente

Quando Ela passou”.

Não, poeta. Que dano te fez o mar para o tratares assim? Ele rugia ou estava silencioso? Escolhe, amigo ou não amigo meu, uma das duas. O dilema é cruel, bem o sei. Mas é preciso, é necessário — ouve bem, — é imprescindível. Resolve.

Sabes o que me fizeste lembrar? Um caso conhecido, lido algures e narrado por espirituoso cronista português. Era o benefício da Volpini, uma atriz de talento. Teatro cheio, repleto. Inesperadamente, de um camarote, toma a palavra um taverneiro de nome Duarte, que andava doidamente apaixonado pela artista e, sem mais, berrou:

Pérolas de ouro!

Brilhante de marfim!

Oh! Sim!

O amor não se define

Adeus, Volpini!

Um poeta, diz o cronista, que se achava na sala de espetáculo, não se podendo conter, replicou em meio da gargalhada do público:

Couves de batatas,

Cebolas de feijão,

Ai! Coração!

O amor é tomate

Adeus, Duarte!

Adeus, adeus!

Não, amigo ou não amigo meu. Ou deixas o mar bramar ou ficar mudo... Escolhe.

22, Outubro.

Falemos do teu livro, Jonas da Silva! Falemos, nesta página simples e sempre sincera, do Uhlanos, — o livro de versos fidalgos que entregaste ao público e que, claro, é uma vitória como foi uma vitória a tua estreia com as Amforas.

Li, reli diversos dos teus sonetos. E, não me acoimem de suspeito, de parcial, pela simpatia espontânea e desinteressada que te votei desde a tua aparição em letras; e, outros não me increpem de apaixonado, por não dissecar aqui, nesta ligeira crônica que não é e nem tem pretensões à crítica, os senões, os defeitos da tua obra, — que ela não é impecável, extraordinária, maravilhosa.

Deixo aos Romero, aos Veríssimo, aos Araripe, a tarefa difícil e delicada. Que, para criticar, — critica como eu entendo, à Taine, — falham-me elementos principais... Se bem que, neste país, haja mais “críticos” que poetas e cronistas, contistas e romancistas, pois, na frase deles, é mais cômodo censurar que produzir.

Fechemos, porém, o parêntesis. Digamos algo sobre o Uhlanos.

Abre o belo volume um esplêndido soneto, que emoldura o retrato do poeta: a cabeça dentro de um prato. A ideia, que é original e viva, palpita nestes quatorze versos:

Ó Salomé das flores e alvoradas

Por quem sorrindo entrego-me ao cilício,

Trago te hoje a cabeça em sacrifício.

Deste S. João de trovas e bailadas.

Tu, que longe dos paramos do Vício

Fulges do Sol nas rutilas estradas,

Abre do riso as pétalas rosadas

E darei por bem pago o meu suplício.

Triste de mim se apresentando a salva

Dos teus olhos à dupla estrela d'Alva

Pareça a oferta miseranda e louca...

Do desgraçado era a loucura tanta

Que ainda a espada cortando-lhe a garganta

Teu nome em festas lhe cantava à boca.

Jonas tem o verso sonoro, cantante. A gente lê com requintado prazer os seus sonetos. Advinha-se que é um consciencioso, um limador do verso, calmo e senhor da sua Arte.

O artista deve ser sincero. A obra que não for verdadeira não deve, não pode ser realmente bela. E, daí, as duas últimas partes do livro, Vozes do Nada e Evangelho de um mau, não terem para mim o mesmo valor que a intitulada Uhlanos.

Não que o verso seja mau, não que a ideia seja falsa; mas, o leitor atento percebe, que, através de todas as encrespações, das gargalhadas, do estilete que disseca, do sangue, do pus, dos cadáveres, — está um temperamento de um bom, de um justo que, para acompanhar a maioria dos de hoje, finge odiar, quer iludir dizendo-se um insubmisso, um revoltado, um mau!

É o poeta quem lealmente confessa, nestes esplêndidos versos:

Alma finge que és má, sendo assim como as pombas.

E, fechando o mesmo soneto:

... Pois que a tribu dos maus é tão grande e tão forte

Que é preciso ser mau para ser bom no mundo!

Há verdades amargas nesta parte crua, em que só de quando em quando vibra o lirismo novo e sadio de Jonas da Silva. Seria de um pessimismo amargo o poeta, à Schopenhauer, se aí não fosse falso, ou melhor, se a gente não percebesse que não estão na sua alma e no seu coração todo aquele desespero e toda aquela raiva...

Exclama:

E eis a vida afinal: surgir de um ventre

E sepultar-se no outro ventre, a cova!

Não! Eu prefiro o poeta das Mazurkas, com a sua musa cristalina à B. Lopes, — o poeta dos Brazões, quando diz em versos joeirados:

Para engastar no meu verso

Essa que à glória me anima,

Fico em delírios imerso

Ante os bazares da rima.

A rubra cor dos morangos

Canta-lhe à boca em sorrisos

Mil cançonetas e tangos

Com castanholas e guizos.

O moço poeta tem a rima fácil e a metrificação sempre correta. O verso é cheio, às vezes sonoro como fanfarras, ou suave como pombas flaflando asas.

Se quisesse dizer nesta página do meu diário os versos de Jonas que mais me deliciaram, pela ideia e pela forma, teria de citar quase todo o livro.

Arranco do Uhlanos, em despedida, este soneto, No Palco. E digam-me se é ou não um primor:

De risonho perfil e de ondulados traços

Entra em cena a sorrir nuns infernais meneios

Traz ao colo a tremer os pássaros dos seios

E nos ombros, desnudo, o mármore dos braços.

Há da orquestra febril nos lúbricos compassos

Desesperos de amor, incendiários gorjeios.

Em choréas requebra o corpo em bamboleios...

Parece abrir-se o chão aos seus lascivos passos...

Se assemelha o recinto a uma sombria tasca

Onde rema do aplauso a ríspida borrasca...

— Mil Sultões tendo em frente uma escrava da Armênia!

A loucura, o furor de súbito redobra

Vendo-a loura, de pé, — uma esquisita cobra

Febril, espinalando em contorções de tênia.

Uhlanos é um livro mais artístico que Amforas, não tendo porém em todas as suas páginas a espontaneidade deste. E Jonas, que na sua estreia se revelou um bom poeta, firmou agora com o seu segundo volume um nome no meio intelectual do país.

Ainda não falei, no desalinhavado desta palestra, da parte material da obra e nem agradeci, o que faço, a dedicatória honrosa de um exemplar. Casa-se bem com o valor do livro a sua feitura: o trabalho artístico é um primor, que honrando a Arte nacional, logicamente distingue a tipografia fluminense Leuzinger, que o editou.

O papel é excelente e os versos são emoldurados em finíssimas vinhetas multicores. E, se faço reparo neste ponto, é que os nossos editores são geralmente tão descuidados...

Uhlanos, como obra de arte, deve figurar na estante dos nossos melhores intelectuais, e, pelo primor da sua confecção, pode também encontrar-se nas salas de gentis patrícias...

29, outubro.

Uma página sobre a vaidade. Dizem que ela é filha do homem. Do homem e da mulher. Deixemos aos psicólogos a análise da asserção e narremos o caso do célebre Balzac, contado numa revista estrangeira.

Há uma frase de Salomão, sobre uns tantos sentimentos, que anda aí em palestras e gazetas... Vánitas, vanitátum. O grão de verdade que ela encerra, não é para este capítulo despretensioso e ligeiro. Mas, vamos ao caso.

Quando Balzac visitou a Rússia, num grande jantar em casa do príncipe Nicolau Nadylof, este notou que o eminente romancista gostara de um prato, e, voltando-se para o criado que servia a mesa, disse:

— Serve outra vez ao Snr. Balzac.

O criado, pasmo, de olhos desmesuradamente abertos, em vez de cumprir a ordem, deixou cair a travessa, que se partiu.

— Que tens tu? Interrogou rápido o príncipe.

— Perdoai, senhor, mas não pude evitar um momento de surpresa ao saber que tinha a alta honra de servir ao Snr. Balzac.

— Mas, tu o conheces?

— Ah! Senhor, tendo lido as suas novelas!

Dizia Balzac, no seu regresso, aos seus amigos de Paris, que nunca sentira tanta alegria e tanta vaidade... O seu nome era conhecido vulgarizado no estrangeiro, numa terra distante, a Rússia, pois até um simples criado lera e admirara os seus livros!

... Anos passados, morria Nadylof e as suas Memórias foram publicadas. Num dos capítulos da obra conta, com muita graça e naturalidade, que quando Balzac visitou a Rússia andava profundamente triste e impressionado. Indagando o motivo, soube, por madame Balzac, que o eminente romancista via com desprazer e amargura que, na Rússia, o seu nome passava despercebido, quando era admirado em toda a França...

O príncipe Nicolau Nadylof era um homem de espírito. E comprometeu-se com a esposa do poderoso escritor a tornar de bom humor o grande Balzac.

Assim, antes de ser servido o jantar que nessa noite oferecia ao escritor francês, chamou o criado de copa, um farsante inteligente, e preparou-o para a comédia tão bem representada...

É ainda o fidalgo russo quem diz ter sido, daquela noite em diante, verdadeiramente encantador o orgulhoso Balzac, mostrando-se o homem capaz que era.

O criado esse recebia benévolas gorjetas do romancista ilustre, que de uma feita, dedicou-lhe um dos seus livros de novelas.

E, comenta deliciosamente o príncipe, o criado nunca lera uma obra de Balzac, porque não sabia francês... “e a verdade é que tão pouco sabia ler! ”

Mas, desde que outros enchem esta página com anedota interessante e eloquente, deixem que reproduza mais uma, talvez conhecida de muitos, mas, nem por isto, merecedora de esquecimento.

Victor Hugo e Lesseps encontraram-se, pela primeira vez, em casa de Bonnat.

O pintor célebre acabava o retrato de um e ia começar o do outro. Hugo, no fundo do atelier, esperava que Bonnat encetasse a tarefa. Nisto entra Lesseps, fala alegre com o artista, e cumprimenta ligeiramente o autor de Os Miseráveis que, indiferente, corresponde à saudação, como pessoas que nunca se viram.

O pintor, admirado da atitude de ambos, exclama:

— Como! Os senhores não se conhecem? Se houvesse dois, apresenta-los-ia um ao outro, dizendo: “Os dois sóis!”

A essas palavras, Lesseps adianta-se com a mão estendida para o poeta, gritando:

— Hugo!

E Victor Hugo, respondendo com o mesmo movimento, exclama:

— Lesseps!

2, novembro.

Sinos bimbalham, dobrando a finados. Paira em toda a cidade uma grande e indefinível tristeza. E o dia dos mortos, que a tradição consagrou para o povo chorar, alma alanceada pela dor.

Cantam e gemem os velhos sinos. Gente, vestida de preto, passa apressada para as grandes necrópoles. As fisionomias, estas vão tristes e acabrunhadas. Meninos sobraçam cestas de flores, — enormes rosas abertas, entoando hinos à vida...

... Flores, sim, Filho meu que dormes o último sono há ano e meio, braçadas de flores eu ei de levar-te hoje, e com elas encher a pequenina pedra da tua sepultura, perfumando-a, pois se é certo que as rosas têm Alma, elas não a terão mais pura e imácula, que a tua, Filho adorado e querido! ...

TERCEIRA PARTE

Ao amigo João Batista

AMORES

(EXCERTOS)

Agitado e febril, Renato passeava. Cortava em meio a sua sala de rapaz solteiro, em largas passadas. Sentia-se impaciente, preso de uma preocupação que abalava todo o seu corpo. Olhava o relógio de instante a instante: oito horas. E o bater monótono da pêndula, surdo, desesperadoramente regular, incomodava-o, aborrecia-o. E ainda tinha de esperar sessenta minutos, uma eternidade! Mas então para que marcara aquela entrevista às nove horas? E na necessidade de se agitar, de tentar acalmar os nervos, andava de uma a outra extremidade do aposento. Demorou-se, por momentos, junto à janela arriada tamborilando os dedos nos vidros embaciados. Chovia. Lá fora, na rua, caía a água, soprada pelo vento que vinha em lufadas, varrendo-a. Transeuntes retardatários passavam abrigados por largos capotes, encolhendo-se debaixo dos chapéus, fazendo-se muito pequenos. Uma mulher, as saias arrepanhadas, corria, deixando ver as pernas magras...

E no tumultuar confuso das ideias que lhe borbulhavam no cérebro, revoltava-se contra aquela chuva impertinente que talvez fosse adiar a entrevista. Mas não; o tempo havia de melhorar e miss Marta viria... E se não viesse, sim, ele iria a casa dela. Mas havia de falar-lhe naquela mesma noite, dizer-lhe tudo, porque se sentia incapaz de mentir mais, de contrafazer-se, de tentar enganar-se para iludi-la melhor.

Rolou lá no alto um trovão. O ruído ao princípio veio forte, atemorizador; segundos depois era longínquo, muito longínquo... E Renato, desesperado, soltou a blasfêmia fácil que nós todos temos nos lábios quando chega a menor contrariedade: — Diabo!

Há duas semanas já que projetara aquele rompimento. Mas na ocasião de falar a Marta sentia-se preso de uma comoção estranha, remorso ou compaixão, não o sabia bem. Certo que aquele viver era insustentável, a sua continuação era um infortúnio e um martírio. E não seria mais leal, interrogava-se, romper francamente com aqueles amores, do que iludi-la e torturar-se, representando uma comédia dolorosa para o seu coração?

Seria delicado, falando com a razão, tendo palavras de agradecimento e amizade; mas, se ela não quisesse atendê-las, então, tornar-se-ia inexorável, rigoroso, brutal se preciso fosse.

Batiam nove horas no relógio. As pancadas surdas, ele ouvira-as bem: contara-as uma a uma. E quando estalou a última, correu à janela, abrindo-a. O tempo serenara: não chovia mais. A noite, ainda que escura, não era má; soprava um vento frio que fustigava ao de leve o rosto de Renato. Sentiu-se mais sereno, mais calmo, mais senhor de si. Olhou a rua ao comprido, em toda a extensão: ao longe viu as lanternas brancas de um carro. Não podia despregar a vista dos dois pontos luminosos: adivinhava, sabia que aquele carro trazia miss Marta. E os dois focos, entrevistos ao princípio, aproximavam-se mais e mais, caminhavam em direção a si, cresciam, aumentavam de intensidade.

Só quem nunca teve uma destas entrevistas, onde se tem de dizer à amante que o momento da separação chegou, é que não avaliará a comoção larga que se experimenta. Fica-se preso de sentimentos opostos, desencontrados. Emaranham-se os pensamentos, outrora bem claros, bem lúcidos. E por mais indiferente que se seja, há um momento em que o coração fala mais alto do que o espírito...

O carro parara à porta. Saltara lépida uma mulher, enfiando pelo corredor a dentro. Ligeira, entrara na sala.

Renato foi recebê-la; era miss Marta. Vinha um pouco agitada, procurando dominar-se. Vestia de preto, um trajo ligeiro, de mulher que vai repetir uma conhecida entrevista de amor.

Ela, pela tarde, recebera aquele bilhete de Renato, pedindo-lhe que fosse à noite em sua casa. E perdera-se em conjecturas, em divagações as mais desencontradas. O amante ia diariamente ao seu pitoresco chalet, situado no Redondo, pequeno arrabalde da cidade. Lembrava-se, naqueles dois anos de ligação, de ter ido à casa de Renato quatro ou cinco vezes. E a última ocasião, precisava bem, fora em janeiro, e estavam agora em abril. O que seria? O que teria acontecido? Estaria ele doente? Teria algum grande desgosto, não querendo ir à rua? E as suposições multiplicavam-se, enevoando o seu espírito de mulher resoluta.

O certo é que Renato, depois de reflexão demorada, resolvera que a última entrevista fosse em sua casa. Por quê? E fazia-o por uma cobardia, por fraqueza do espírito, por falta de coragem. Ele, no chalet de Marta, sabia que não seria forte, que não cumpriria a sua resolução. Todos os objetos daquela casa eram recordações para ele, e — tinha a certeza, — vendo Marta de peignoir, a chorar talvez, caída para ali, à toa, de lhe faltar o ânimo e de ser dominado pela compaixão. Em uma palavra, fraquejaria.

Renato dissera a miss Marta, tirando-lhe dos ombros a capa espanhola: —Boa noite!

Não a beijou na boca, como de costume. Marta apertara-lhe a mão, sentando-se na primeira cadeira, ao lado. Notara-o agitado, tentando dominar-se. Tinha o pressentimento de uma coisa má... E foi com voz velada que falou:

— Está doente, Renato?

— Não.

— Mas tem alguma coisa? Uma notícia triste? Que fantasia foi esta?

Falava com voz pouco segura, acentuada de leve, ligeiramente, pelo sotaque estrangeiro que tinha.

Ele retrucou:

— Nada, minha amiga. Nem um capricho como julga. Uma indolência para sair de casa...

Mentia, na cobardia em que se refugiara para fazer aquele rompimento. E sentia-se mais apreensivo, mais atemorizado. Quisera que ela o tratasse mal, um motivo, enfim, para falar desassombradamente como planejara.

Caíra silêncio embaraçoso e morno. Cortou-o a palavra de Marta:

— Não me beija, Renato?

— Sim, ei de beijar...

Soltara a primeira frase que lhe viera aos lábios, sem refletir. Não viu quão pouco gentil e delicada era. Estava num torpor pesado, como que o pensamento alheio a tudo que se passava em redor.

Afinal, desejando acabar com uma situação que a incomodava, Marta interrogou:

— Mas o que há? Falas ou não, Renato?

Compreendeu que o momento chegara. O silêncio não podia continuar: ela adivinhara que se passava algo de extraordinário no seu espírito. E num destes momentos de resolução decisiva, que têm de quando em quando os vacilantes, —momentos bem raros, sim! Mas que quando vêm são impetuosos e cegos, — ele começou a falar, soltando as frases em turbilhões, baralhando as palavras.

Pegara-lhe nas mãos. E mais comovido do que desejava, concluiu:

— Ouça, Marta. Eu sou seu amigo, bem o sabe. Mas é preciso que fale lealmente, embora seja rude o que vou dizer. A nossa ligação não pode continuar. Estamos hoje acorrentados e nada mais. Perdoe-me se a faço sofrer; mas para que a ilusão? Hoje não sou mais um amante; um bom e verdadeiro amigo, sim... Separemo-nos, levando dos nossos dias felizes uma recordação grata para o coração. Quer? Consente? E ficaremos sempre, sempre, bons amigos.

Só então olhara para Marta. Pela vez primeira via-a com a fisionomia séria, fechada. Ruga acentuada cortava em meio a sua testa; os lábios tremiam, cheios de ódio ou amor. Os olhos fixavam-se em Renato, muito abertos, irritantes.

O certo é que ela nunca pressentira aquele desenlace. Contava talvez com uma destas comédias motivadas pelo ciúme, e vinha-lhe um começo de drama. Estava revoltada, os seus nervos vibravam todos. Afinal, ela, Marta Dawis, era despedida! Uma amante que ele teve, que saciou os seus desejos, que pagou, e que depois, farto, atirou à rua... Mas então tratara-a não como uma mulher, mas como uma cadela!

Estava de pé, as narinas a tremer. E falou impetuosamente, saindo em torrentes as palavras arrebatadas:

Então, Renato, expulsa-me? O que quer dizer tudo isso? Dei-lhe um motivo, uma razão para este procedimento inqualificável? E porque, sim, por quê? Está saciado, não, fatigado das minhas carícias, enojado talvez dos meus carinhos? Naturalmente quer deixar-me para atirar-se aos braços de outra? Mas não será assim... — acabou com um riso de maldade a frisar-lhe os lábios.

Agora Renato olhava-a bem de frente. Estava de pé, lado a lado com a amante. E sentia no íntimo um ódio surdo, prestes a explodir, contra aquela mulher. Não viu que ela falava revoltada, despeitada, sem reflexão, pois que era despedida. Uma onda de sangue subiu-lhe ao rosto, mas conteve-se ainda.

— Atenda, Marta. O que lhe vou dizer é brutal, mas prefiro não enganá-la. Escute: — eu não a amo mais (e iludia-a nesse momento fazendo acreditar que a amara em dias idos). Para que fazermos esse sacrifício de vivermos juntos, quando o meu coração não bate mais por si? Seremos amigos, Marta. Não compreende que será um tormento, um desespero, essa união forçada que quer impor? Os prazeres foram-se; hoje resta um monte de cinzas... Não queira espalhá-lo, derramá-lo. Guardemos uma boa recordação das alegrias extintas.

— E que me importa? Retrucou. O que me poderá suceder? Mas o que faz comigo, Renato, não é sério, não é de cavalheiro! Não se lembra que quando fui para as suas mãos, eu tinha-me há pouco separado do meu marido, e que tinha um amante que me idolatrava, que satisfazia todos os meus caprichos, todas as fantasias? Deixei-o para ir viver consigo, consigo que hoje me expulsa! E não o amei sempre? E dei-lhe por acaso algum desgosto, algum desses motivos que obrigam o rompimento do homem com a mulher com que vive?

Renato estava revoltado. Via o desplante com que ela alterava os fatos, servindo-se deles como uma arma. Não dissera que fora ela que o chamara, por assim dizer, que o namorara, que o prendera. Ele deixara-se ir, lisonjeado no seu amor próprio de homem novo. Não dissera também que ele, Renato, se opusera ao rompimento dela com o seu primeiro amante, prevendo uma ligação forçada, contraria a todos os seus planos de vida. Mas, sentindo-se amado, deixara-se ir, e aí estava o resultado da sua fraqueza e da sua vaidade.

— Acabemos com isto, Marta. Não é decente estarmos a discutir, torcendo-os fatos. Já lhe disse e repito (acentuou com voz firme as sílabas): — separemo-nos e considere-me sempre seu amigo.

— É a sua última resolução, Renato?

— Sim, a minha última resolução.

— Mas então está tudo acabado?

— Tudo.

Ela olhou-o do alto, como num desafio. Sentia o seu corpo agitado, a tremer. Atirara a capa aos ombros. E quando Renato veio deixá-la à porta da sala, falou, batendo o pé, como continuando um pensamento interrompido:

— Mas ei de me vingar dessa mulher que me o roubou...

Renato lançou-lhe um último olhar e disse:

— Adeus, Marta!

— Boa noite! Sibilou ela com voz entrecortada.

O moço voltara para a sala, estendendo-se ao comprido numa cadeira de viagem. Sentia-se cansado, o espírito fatigado. Rolou na rua um carro, abalando-a toda, fustigados os cavalos pelas vergastadas do cocheiro: era Marta que se ia. E como num sonho, Renato reincitou os seus pensamentos, divagando na brutalidade com que se fizera aquele rompimento.

Belém, 1900.

NA PLATEIA

(FRAGMENTO)

Representava-se um drama emocionante nessa noite. O teatro regurgitava de espectadores. A plateia tinha um belo aspecto feérico. Luzes em profusão, o olhar das mulheres, o borboletear dos leques variegados, o ar morno que pairava em toda a sala, as situações emaranhadas e acabrunhadoras da peça, tudo predispunha o espírito fraco a uma excitação nervosa irresistível.

Do meu camarote binoculava aqui e ali, de relance. Acompanhava em pensamento o desenrolar desse drama que conhecia e que já tinha visto por atores diversos. Era uma página real, flagrante, cheia de surpresas e de contraditas, — vida que era.

Numa das frisas, casualmente, o meu binóculo demorou-se mais, em direção ao vulto de uma mulher. Conhecia essa moça, bela como nenhuma, infeliz como poucas. Sabia a história dolorosa do seu passado, tão cheio de sacrifícios e tão cheio de angústias.

Através do vidro vi rolar uma lágrima pelas faces dessa mulher. Volvi os olhos à cena. O quadro era triste. A protagonista do drama francês estava no chão, atirada, cheia de dor, pedindo ao seu bom Deus consolo para as aflições da alma, que lhe torturavam. Amava, amava doidamente; e fora obrigada a casar-se, a sacrificar-se a um outro ente que lhe era indiferente, que repudiava no cadinho do seu coração!

Ajoelhada aos pés da cruz, ela rezava. Pedia a Deus, voz lacrimosa, olhos anuviados, que a perdoasse por não amar esse marido que lhe tinham imposto e por quem padecia.

Outro drama desenrolava-se nessa frisa do teatro. Essa bela mulher que ali estava, tipo do Norte, e que mal podia encobrir as lágrimas, tinha também uma história cheia de mágoas, como a outra que em cena dizia o papel decorado.

Corri o binóculo pela plateia procurando alguém. Lá estava, na quarta fila, aprumado e correto, esse moço elegante que, impressionado também pelo drama, comovido mesmo, olhava dolorosamente para a frisa. Os olhares da bela patrícia cruzavam-se, eloquentemente mudos, com os do cavalheiro.

São triviais cenas como estas nos teatros. Quantas vezes o drama que se desenrola na Plateia é mais assustador, mais horrível, mais emaranhado do que o do palco! Quantas vezes lágrimas correm impetuosamente, ao relembrar a gente cenas que o teatro nos faz avivar!

Eu lembro-me bem da história dessa moça. No camarote, enroupada ricamente, com as joias finíssimas a brilhar, no triunfo imortal da mocidade, ao lado do seu velho e trivial marido, o seu espírito por certo debatia-se entre ideias confusas, amargurada com esta cena que se passava no palco e que era um pedaço da sua história de moça invejada e julgada feliz.

O moço que ali estava, a olhá-la da plateia, era um dos melhores amigos meus. Uma noite, num dos intervalos de espetáculo, ele contara-me os seus amores, as suas poucas alegrias, as suas grandes tristezas, — na confiança ilimitada que dá a amizade.

Disse-me que amara, que amava doidamente essa mulher, esposa hoje de um velho tolo e ridículo. Esse casamento fora obrigado, e narrou-me então as condições precárias da família dela, sem pão e sem lar, paupérrima.

Ele, por si, naquela época, era um simples estudante, cheio de ambições, sonhando com a glória e fazendo versos apaixonados. De seu, nada tinha. Com poesias e sonhos não se vive, — acrescentou amargurado.

Afirmou-me que essa moça, hoje na opulência, casara-se obrigada. Ele pedira que essa união desigual fosse uma realidade, a fim de salvar a família dela. Sacrificara-se na ocasião, tendo não sei que esperança a bailar-lhe no cérebro...

A moça casou e ele partiu. E quando voltara, dois anos depois, em que procurou dia a dia esquecer a paixão funesta, viu-a mais linda, mais bela e então o seu amor recrudesceu, violento e impetuoso, forte e irresistível.

Uma corrente atraia-os. Ele sabia que o seu procedimento era incorreto, era desleal. Mas, disse-me com um riso ligeiro a frisar-lhe a comissura dos lábios, para que esse velho fora casar com uma moça, para que veio postar-se de permeio entre ambos? Não sabia por acaso que a amava doidamente? Não sabia que essa paixão era de cinco anos, e que era feita de sacrifícios e de dores?

O resultado estava aí. A corrente aproximou-os; estavam atravessando essa vida de angústias, de vacilações, de surpresas, de cobardias, de “casal à três”.

E ambos não podiam esperar maior castigo. O fantasma desse velho que os acompanhava para toda parte, que estava com eles em todas as ocasiões, era o remorso do crime praticado — crime a que desejaram, a que quiseram fugir, mas a que se submeteram como instrumentos da fatalidade, homem apaixonado e mulher fraca que eram.

... Continuava no palco a desenrolar-se o drama comovente. Alma torturada, alma alanceada pela dor, a moça patrícia chorava. O velho marido comovia-se também vendo o desespero em que estava a protagonista do drama. A artista, de joelhos, interpretando o trabalho admirável do escritor francês, pedia perdão ao seu marido pela falta cometida. E ele de pé, inexorável e tremendo, repudiava-a, enxotando-a, — a ela que tinha feito ruir todos os seus sonhos de amor.

Vi tremer e cair das mãos da moça o binóculo de madrepérola. O marido, pacientemente, ajuntou o objeto. Atento seguia este drama da alma que se passava naquela frisa de teatro. As peripécias não me passavam desapercebidas, não me escapavam. Seguia uma a uma as contrações do rosto da bonita filha do Norte. Ela chorava, abafando os soluços.

O velho marido seguia atentamente a cena capital do drama estrangeiro. Acompanhava com interesse a situação, esperando o desenlace. E quando, no palco, o marido ultrajado, desesperado e louco, matou a sua mulher, o seu amor, a sua vida, esse pobre espectador, vítima do mesmo crime, — olhou a sua companheira, dizendo-lhe com os olhos alguma coisa que a abalou...

A moça estremeceu e as lágrimas saltaram-lhe mais impetuosamente, na alta comoção que fazia vibrar todo o seu ser.

E da plateia, admirado pelo trabalho do artista, o moço culpado batia palmas calorosamente...

Manaus, 99.

FELIZ!

Tudo era passado. Ela correra o véu do esquecimento, e só se lembrava agora da sua dor, dos seus largos sofrimentos e desesperos, como uma coisa muito remota, muito longínqua... Não era feliz, verdadeiramente feliz? Ele não lhe tinha, ainda naquela noite recente do baile, — 21 de maio, recordava-se bem! — declarado o seu amor, como a queria, como a estimava, idolatrando-a? Não balbuciou toda a história da sua paixão, — que sentia dessa vez sincera, dissera na ingenuidade que traz o primeiro sentimento verdadeiro, — todas as suas vacilações, toda a desconfiança e temor ao supor que bem podia ela amar a alguém? ... Não lhe disse que apesar do riso que trazia nos lábios, e da indiferença com que se forrava, era infeliz, sempre tão injustamente malsinado, tão odiado, quando se sentia bom, quando tinha convicção da sua consciência estar tranquila? Não lhe falou Renato emocionado, pedindo-lhe para que não o julgasse pelo seu passado de salão, e para que não fosse má para ele, para ele que tinha encontrado enfim a sua “segunda alma?”

Sim, sentia-o bem, ele amava desta vez, cansado das pequenas lutas das salas, fatigado dos sorrisos forçados e palavras cheias de amor ditas indiferentemente, com o pensamento muita vez longe, para o além... Era sincero quando lhe falara, quando lhe dissera as frases de paixão que revivia agora, entrecortadas, inacabadas. Acreditava em Renato, sim, acreditava-o, — mesmo porque o amava, e tudo que nos vem da pessoa amada nos parece sincero, nos parece real, nos parece verídico.

E Maria ficara para ali, abstrata, olhar espraiado no espaço, a sonhar, divagando no seu amor. O trabalho que fazia, um modesto trabalho de agulha, rolara do seu colo, caindo ao chão. Na sala de jantar, recostada na cadeira de vime, a sua predileta quando costurava, pensava num futuro perto, não muito distante... E o sonho continuava, acentuando-se, avolumando-se.

As tristezas quase sempre têm largas consolações. O lenitivo parece que se apressa a chegar, e as horas de infortúnio, os momentos de lágrimas são logo esquecidos, como que se apagam da memória. Uma sombra que passou, para motivar a alegria, para torná-la mais viva, mais cheia de prazer.

Ocasiões há, quando atravessamos estes momentos tão cheios de psicologia, que os objetos mais usuais, mais vulgares, são olhados então com estima, com amor, — recordações que correspondem ao estado da nossa alma...

— Em que pensas, Maria?

Esta voz bem amada e bem conhecida fê-la estremecer. E, atenta já, respondeu sorrindo:

— Em nada, minha mãe.

Aos olhos perspicazes da velha senhora não tinha passado despercebido o estado da alma da filha querida. As mães, essas, nunca se enganam. Ela notara, desde há dias, precisamente quando houvera o sarau da casa das Melo, a mudança de Maria. Às vezes ficava para ali horas inteiras a sonhar com os olhos abertos, sem um gesto, sem uma palavra. E já via sua filha querida, tão concentrada outrora, a rir por um nada, por uma observação, a tagarelar às vezes, cantando trechos de operetas facetas, pontuando o final dos estribilhos com gargalhadas joviais... Os sofrimentos escondem-se, mas a alegria, essa, é impetuosa, ardente, como que precisa de ar, de luz, de espaço, parece que da certeza dos outros saberem que ela existe, que ela não é uma ficção.

A veneranda senhora sentou-se ao lado da filha. Queria saber, queria talvez uma confidência que não ousava pedir.

— Ouve, Maria, tu não és uma criança, és uma mulher; ocultas-me alguma coisa que se passa em tua alma, e quem sabe se em teu coração? Não tens confiança em tua mãe? Fala, Maria...

Sentiu-se tomada de surpresa. Nunca esperara aquela interrogação, e ela vinha de sua própria mãe, precisamente quando pensava no seu amor. O que fazer? As ideias tumultavam-lhe no cérebro, baralhavam-se. E obedecendo aos impulsos do coração, começou a soluçar baixo, baixo...

— Mas, então, sofres, Maria?

— Oh! Não minha mãe! É que sou feliz, sou muito feliz...

E no desejo da confidência, natural em todo aquele que ama, obedecendo a um impulso próprio, espontâneo, querendo o conselho ou desde logo a aprovação daquela que era a sua mãe, soltou a torrente de palavras há muito contidas. E recordou todo o seu viver passado, os dias de amargura e de dor, cheios de desespero, em que ela duvidava de tudo, — até o dia dessa festa que lhe trouxe a declaração do homem que idolatrava.

— Mas agora, mãe, sou feliz, porque ele me ama, porque ele me ama! — murmurou em voz comovente e sincera.

Ambas, mãos enlaçadas, choravam. E que quadro encantador era esse, quase confundidas as duas cabeças, — uma de cabelos negros, outra de cabelos brancos, — a soluçarem as duas mulheres, respirações entrecortadas, tocadas do mesmo sentimento do amor, desse grande amor profundo e vencedor, combatente eterno e vitorioso de todas as lutas.

Caía suavemente o crepúsculo, dando uma nota comovente àquela cena íntima, de família. E Margarida, a velha e respeitada senhora, disse ao ouvido da filha, como se temesse que as suas palavras fossem ouvidas:

— E quem é esse que tu adoras tanto? O seu nome, minha pobre Maria?

— Sim, minha mãe, há de conhecê-lo. É tão gentil, tão falado, tão bom... É Renato de Mesquita, mãe.

Margarida olhou profundamente para a sua filha e apertou-lhe mais as mãos, que conservava entre as suas. A moça assustada, interrogou: — Mas há alguma coisa?

— Oh, não! Disse a velha, sossegando-a logo. É que Renato tem fama de ser tão volúvel...

Maria interrompeu-a com um gesto largo. Que não fosse adiante, pedia. Ela sabia que Renato era volúvel, mas agora, tinha a certeza, não o era mais. Ele mesmo dissera-lhe numa confidência ingênua, que o fora no passado, mas que a amava verdadeiramente, para sempre.

A mãe da Maria, comovida, beijou-a na testa. E ciciou-lhe ao ouvido, manso:

— Sê feliz, minha filha, sê muito feliz...

Manaus, 1900.

A CARTA ANÔNIMA

(EXCERTOS)

Naquela noite ele entrara em casa abstraído. A mulher, a loira Zulmira, esta dormia tranquila e serenamente.

Junto ao grande leito esteve a olhá-la, procurando ler, tentando adivinhar nas linhas do seu rosto toda a verdade tremenda que lhe anunciava a carta anônima da tarde.

Cartas anônimas, dissera muita vez em palestra amiga, só mereciam desprezo. Era a opinião que tinha há muito, sobre esta cobardia humana. Mas ali estava, há horas, com uma nas mãos, anunciando-lhe a infâmia. Desejava, queria, precisava esquecê-la. Mas, como nódoa inapagável, lá estavam as palavras, as letras, a dançar macabramente às suas vistas.

Seria verdade? Eis a interrogação fatal a persegui-lo. E se fosse... Mas não, não podia ser. Zulmira amava-o, era a companheira de pesares e alegrias. Invejas de sua felicidade.

A dúvida, entretanto, continuava a dominar o seu espírito conturbado. Todas as suas ideias ruíam, numa derrocada absoluta, sobre as cartas anônimas. Uma, uma só bastara para lhe amargurar toda a existência.

A vida é assim. Todos têm uma teoria para cada fato, para o caso do dia. Mas quando o golpe fere fundo são abandonadas as mais acaciadas teorias.

E porque, se verídica era a carta desconhecida, ela cometera a falta? Se o seu casamento fora por amor, sem interesses de outra espécie?! Se ela tinha tudo, se nada lhe faltava?

Logo que recebera a missiva da desgraça, no Club, tivera um assomo de indignação, misto de revolta e desprezo. Infamar Zulmira, a melhor, a mais doce, a mais fiel das companheiras? E, enojado, atirara a carta ao chão, despedaçara-a... Mas, depois, viera a dúvida, que não mais o deixara, que o empolgara. Se fosse exato?

E, miserável, indignado consigo, juntou, pedaço a pedaço, a carta horrorosa. Colou-a, para ler melhor. E, durante largo tempo, teve o prazer da dor, gozou-o, revolvendo a ferida aberta que gotejava, que sangrava.

Não, não era possível. Zulmira, tão boa, tão sossegada tão bela e amorosa... Não, era uma calúnia.

Mas a denúncia não o deixava, não o largava mais como se fosse polvo de cem garras. E via, precisamente via, as palavras cabriolar, e ouvia as gargalhadas de escárnio, de dó, de compaixão.

Procurou reunir fatos, coligir coincidências. Nada. Mas a carta era clara, precisa, devastadora. Dizia os dias, a hora... E marcava o nome do seu atraiçoador, um amigo, — sempre, eternamente um amigo!

E se fosse espionar? Porém, não, seria a suprema das cobardias? Ele, espionar a sua mulher? Depois, tudo era mentira, calúnia, inveja ...

Os minutos passavam. Indeciso, deixava-se ficar para ali, no salão àquela hora deserto do Club, pensando, tomando resoluções absurdas, extravagantes. O que faria?

Nada, absolutamente nada. A missiva mentia. E valia mesmo a pena ter uma explicação? Dar um grande, um inesquecível desgosto a sua mulher? Provar, afinal, que desconfiava dela?

Era tarde, a noite ia alta. Consultou o relógio: uma da madrugada. E, despreocupadamente, na força do hábito, tomou o chapéu e, rumo de casa, sem se apressar, foi indo. As ideias baralhavam-se, estava como num torpor.

Em casa, subiu, tateando as escadas. Ia aparvalhado. E só quando entrou na alcova, quando viu no leito a sua mulher, foi que lhe lembrou nítida a grande desgraça.

Olhou-a, braços cruzados. Zulmira dormia, a respiração sossegada. Os cabelos espalhavam- se pelos travesseiros. Era bonita, um esplêndido tipo de mulher.

Não, não podia ser uma criminosa. E, ali, à beira do leito de amor, foi recordando uma por uma, as felicidades extintas, acabadas talvez para sempre. Lembrou, em solilóquio, o seu noivado, as alegrias todas dos primeiros meses... Os encantos, os carinhos, os seus cuidados e as suas carícias.

As palavras saíam-lhe em borbotões, desencontradas, atabalhoadas.

Depois, a carta. E, como que sentindo prazer em revolver o estilete na ferida aberta, tirou o papel amarrotado da algibeira e releu-o. A mesma miséria, — a sua mulher, a vil, enganava-o... E, ali, na luz esbatida do quarto, Zulmira dormindo serena no grande leito de amor, ele viu, na alucinação que o começava a dominar, na loucura que se apossava de todo ele, o amigo abraçá-la, à sua mulher, beijar aquela carne feita para seus beijos, ouvindo talvez o larapio da sua honra as mesmas palavras de idolatria ditas nas melhores noites de felicidade.

Foi num momento. Louco de amor, louco de ciúmes, zelando a sua honra, o seu nome, todo um passado de brio, de honestidade, atirou-se sobre o corpo adorado, e, com as mãos férreas, apertava-lhe o pescoço, comprimindo-o, matando-a na grande obra de vingança...

Ela acordou, sobressaltada, pasma, aterrada. Quis gritar. E quando cravou os seus grandes olhos nos do marido, este, desgraçado, cego pelo amor e pelo ódio, apertava-a mais e mais entre as mãos.

... Mas o filhinho, uma loira criança de um ano, despertado pelo rumor, chorava. E foi só então que ele se lembrou que tinha um filho...

Por uma força estranha, as suas mãos abriram-se, deixando rolar no travesseiro a cabeça querida.

De um salto, a mulher ajoelhou-se a seus pés, chorando baixo, beijando as suas mãos, murmurando:

— Perdão!

Era a verdade, a confirmação plena da denúncia. A carta anônima tinha a sua vitória. Zulmira era uma zabaneira.

Matá-la? Mas, para quê? Sim, para quê? Ela era uma barregã, uma perdida. E vingaria a sua honra, a sua dignidade? Não iria fazer da criminosa uma vítima?

A criança continuava a chorar. E ele, tomando o pequerrucho no braço, numa calma aparente que o filhinho inconscientemente lhe dera com as suas lágrimas, expulsava a mulher de casa, do seu lar, gritando-lhe, apontando-lhe a rua com o braço estendido, tendo na voz e no gesto todo o ódio e todo o desprezo humanos:

— Vai-te, cadela!

Mosqueiro, novembro, 1901.

VIDA REAL

Nessa noite representava-se Os palhaços, de Leoncavalo. A elegante sala de espetáculos regurgitava de espectadores: nas primeiras filas de cadeiras os dândis, de rubra flor à Iapela, casaca e luvas, binoculavam os camarotes. Aqui e ali um mais requintado entalava o monóculo fazendo o desespero do burguês enricado e farto.

Toda a sala, esplendidamente iluminada, tinha um aspecto feérico. As lâmpadas multicores, oferecendo cambiantes diversos, as pinturas destacadas em tons vivos, os cavalheiros no chic e na suprema elegância, o odor di femina a pairar em todo o grande salão, e, como um enorme bouquet de tulipas raras, pintalgando os camarotes, o bando gracioso de senhoras e senhoritas, formosas todas, fazendo faiscar as joias finíssimas, o ouro e os brilhantes, trajando as sedas lavradas e pompadourescas, deixando ver os decotes suaves, — tudo fazia com que os nervos se impressionassem, que houvesse uma atmosfera, se possível fosse, de prazer e de luxo rebuscado.

O espetáculo ia em meio. Já os aplausos tinham reboado, choviam as palmas e os bravos. Os artistas, estes eram de alma e coração, e interpretavam com a naturalidade nata nos grandes devotos da Arte, toda a música emocionante, todas as palavras vigorosas da ópera sensacional criada pelo gênio estupendo do maestro italiano.

A plateia vibrava.

... Foi quando Clarisse entrou, pelo braço do pai, no seu camarote de primeira ordem. A sala toda voltou-se e os binóculos assestaram-se, alvejando a patrícia gentil. Alta, esbelta, graciosa, com o chic da mulher elegante, desse moreno-róseo que faz o encanto das filhas do Norte, Clarisse prendia os olhares, atraía-os involuntariamente, como a chama os pequenos insetos.

Era a nota da suprema elegância e da suprema beleza. Os seus grandes olhos buliçosos, os seus pequenos dentes perolados, a boca feita para beijos —beijos de amor, — a cútis finíssima e aveludada, os cabelos negros como a noite sem luar, a linha desenvolta e nobre de todo o corpo, as formas triunfais de mulher, cheia de vida, tudo fazia com que os adoradores se multiplicassem, os admiradores aparecessem dia-a-dia e os apaixonados e pretendentes esses surgissem em enxame.

Educada mestriamente, cultivando as belas-artes, pintora exímia, violinista de vocação rara, pianista emérita, com uma larga e apurada educação social, falando bem a sua língua nativa, o francês, o inglês, o italiano, — a bela patrícia tinha uma finíssima educação de salão, sem os tolos preconceitos de um meio acanhado e estreito.

Nessa noite de gala e de pompa trajava uma riquíssima toalete de seda clara, enfeitada de flores naturais, — um grande ramo que pendia da cinta delgada e esbelta. Na cabeça, luzidia, uma joia filigranada, faiscante e original.

Quando ela se sentou, graciosa, houve ainda um murmúrio de admiração em toda a sala.

Ia em meio a ópera magistral de Leoncavalo. No tablado do palco um artista distinto representava, fazia reviver o verso sonoro do poeta ilustre. E, a falar à plateia, Clarisse via o desgraçado palhaço, o misérrimo clown extravasar todo o seu desespero, todo o seu ódio, toda a grande e incomensurável dor que lhe torturava o coração.

Ride! Gargalhava no palco o inditoso saltimbanco. Ride! Sim, que ele precisava desempenhar o seu papel de histrião, de homem obrigado a fazer rir as massas, a uma plateia inteira e exigente.

Que importava ao público as suas lágrimas, toda a sua dor, o seu imenso desespero? ... Era palhaço; não tinha direito-de chorar.

... E Clarisse, num estado psicológico aflitivo, ia recordando um a um todos os episódios do seu amor doloroso, do seu grande amor infeliz, — enquanto o artista, no palco, fazia vibrar todo um público seleto.

Ride! E ela também, moça, bonita, educada e rica, cercada da felicidade na opinião de todos, muita vez chorava, na sua alcova elegante de moça solteira, pelo Amor desgraçado que a vitimara, — porque ela tinha dado toda a sua alma, todo o seu coração de virgem a um homem que não lhe podia pertencer, que nunca poderia ser seu!

E esse a quem ela distinguira tanto, involuntária e ingenuamente, habituara-se também a amá-la, a idolatrá-la, e aos poucos, insensivelmente, apaixonara-se. Bem sabia que a felicidade, as alegrias comuns, não se tinham feito para eles, e, torturado, tinha prazer em revolver a ferida aberta, que ainda gotejava, que gotejaria sempre.

Era a grande e eterna desgraça. E, como na ópera de Leoncavalo, como o personagem de Os palhaços, ela e ele tinham de rir, de rir eternamente, enganando toda uma sociedade assim como o clown iludia a todo um povo.

Morria a ópera. Já o público se levantava, pressuroso. As palmas redobravam, os bravos sucediam-se. E quando, em cena, se disse a grande frase final, de largo efeito artístico — La comédia é finita! — Clarisse, levantando-se, deixou cair o olhar em alguém que, na plateia, fitava-a ardentemente...

É que, para eles, a comédia ainda não tinha acabado.

Manaus, abril, 1902.