Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Odolan, de F. Auto Pereira


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

Revelações generosas

Verdades de sangue

Ciência negativa

Pústulas expostas

Abutres

Corações de ouro

Vibrações agudas

Elemento e fundamento

Apóstrofes do século

Página comum

Vítimas fatais

Autópsias

I A oficina

II O tribunal

III O cárcere

IV O hospital

V O cemitério

VI O templo

Força e equilíbrio

INTRODUÇÃO

Vi-o cair pra sempre na vala mortuária

como o ponto final de um doloroso assunto.

Ninguém o acompanhara à casa solitária

para jogar no corpo do lívido defunto

as flores da saudade e a carnívora cal.

Dir-se-ia que na terra passara o peregrino

sem ter o coração de velho e bom amigo

que lhe pagasse o enterro, alguns dobres de sino,

levando-lhe o sudário ao derradeiro abrigo,

nos olhos uma lágrima, na voz o adeus final.

Morrera o pobre moço no sol dos vinte e um ano

com o bravo estoicismo de verdadeiro herói.

Nunca o viram chorar perante os desenganos

nem rir ante a alegria que o senso nos destrói;

era uma alma difícil de a outrem se expandir.

Coitado! Quantas vezes o mísero leproso,

de tripas flatulentas e estomago inquieto,

vagou de porta em porta atrás de um caridoso

que lhe matasse a fome no limiar do teto,

— a fome que o devora e fá-lo sucumbir?

Pedira a nutrição e deram-lhe os insultos;

como calmante o sol; as chuvas por unguento;

temiam-no as crenças, fugiam-lhe os adultos,

e o pobre que se via sem Deus e alimento,

não maldizia os homens nem seu penoso ser.

Há destas almas grandes, de têmpera de ferro,

bravas como cadelas a ciumar os filhos;

que tentam corrigir no Sábio Eterno o erro

de nos cercar a vida de tantos empecilhos

coroados pela morte, depois de tanto sofrer.

Mas veio a natureza — a mão dos indigentes —

tirá-lo felizmente das mãos da sorte ímpia

como quem salva a vítima das garras inclementes

de abutre que a passava por trances de agonia ...

e Odolan morrera na praia como um cão!

Era um cadáver feio aquele corpo imundo

suando instantemente, porém suando pus

Podia-se contar-lhe o osso mais do fundo...

Nem tanto padecera o martírio da Cruz...

Ai! Quanto é triste e horrível morrer de inanição

Pobre de ti, mancebo! O Deus que te criara

seria o mesmo Deus do grande Rottschild:

este que na opulência vivera e se acabara

e tu, que não tiveras ao menos um ceitil

para comprar a veste do mundo sepulcral?

Mentira! Ou Deus existe sublime, santo e útil

e sábio e caridoso, perfeito e onipotente;

ou ele é uma quimera reles, fugaz, inútil,

apenas criação de espírito demente,

delírio metafísico ou sonho oriental!

Sumiu-se entre camadas de terra, dentre os vivos,

o filho da miséria , a vítima do apodo;

sua alma evaporando fosfóricos, nocivos

miasmas venenosos, vai transformar-se em lodo,

obedecer à lei da química real.

O cínico coveiro guardando os instrumentos,

com que todos os dias revolve as sepulturas,

fecha o portão sombrio e vai de passos lentos,

mal grado àquela cena de naturais tristuras,

meter o combustível no órgão estomacal.

Depois a lua cheia vagava em meio espaço

com aquela palidez de cera um pouco antiga;

dir-se-ia uma mulher que a luta de um devasso

matasse extenuada no gozo da fadiga,

após de lhe roubar a virgindade sã.

Então penetra ao adro do infecto cemitério,

passando pelas grades do lúgubre portão,

de quando em vez tomando o faro grave e sério

como se fosse um homem, se o homem fosse cão,

ele - o íntimo amigo do mísero Odolan.

Trazia pelos dentes um carunchoso embrulho

manchado pelo tempo e o transpirar da mão:

era um poema escrito por coração sem orgulho,

um livro para a escola da nova geração,

a Bíblia social que ele Odolan compôs.

Vinha o cão de pupilas ardentes e crescidas,

banhadas pelo pranto da dor e da saudade:

da dor que sobrevém às grandes despedidas,

da dor que nos perturba os éstos da amizade,

quando a morte um amigo nos rouba dentre nós.

Vinha trazer o espólio do seu amigo e dono

a quem não viu morrer nem se tirar da praia,

porque se erguera cedo, mal o deixara o sono,

e foi ganhar a vida entre pedrada e vaia

de grupos de meninos que iam pra lição.

Por entre o zig zag dos túmulos pomposos,

das sepulturas rasas, das covas por socar:

— aqui tomando o faro de uns ossos calcinosos,

— ali deixando o embrulho para poder uivar,

andava inquieto, a esmo, o miserável cão.

Mas de repente para. Festeja-lhe os quadris

a cauda brincalhona. Deixando o embrulho ao lado

rodeia a sepultura, onde estacou, e diz

nos traços salientes do rosto perturbado

e no ganir constante de melica alegria:

“Por que dormes assim? A noite já vai alta

e aqui faz tanto frio! E aqui nos faz horror!

Oh! Ergue-te! Partamos! Eu sinto tanta falta

da tua companhia, do teu sincero amor ...

que custa-me viver assim nesta agonia!”

E nisto houve um palpite naquele entendimento:

cavava a sepultura com viva animação.

Lutara toda a noite; mas conseguiu o intento:

estava de manhã vitorioso o cão,

pois tinha descoberto o rosto de Odolan.

Era um quadro de efeito aquele seu trabalho:

os olhos do cadáver nas órbitas vazados

banhavam todo o rosto de fedorento coalho

de sangue apodrecido; nos lábios mal cerrados

via-se a língua presa na dentadura sã.

E o cão, que o vigiava com lacrimal seroso,

a língua quase em meio dependurada ao ar,

ora a lamber-lhe o rosto tão lívido e nodoso,

ora avançando às moscas que nele iam pousar,

parece que esperava o morto pro seguir.

É nesta posição que o surpreende o coveiro

e fá-lo se ausentar a custo de vergalho.

Mal sabe o importuno que nesse bom rafeiro

achara o sentimento um sólido agasalho,

um tabernáculo eterno, difícil de exprimir.

Foi ter o manuscrito às unhas do vigário

que o leu franzindo a testa, fungando suas pilada

às vezes em seguida de ler o breviário,

às vezes antes mesmo das missas resmungadas,

às vezes à tardinha depois do bom jantar.

E tal foi o interesse do bom do reverendo

que em menos de três dias iria o Livro mal

(como lhe pôs a lápis, quando o estava lendo)

ter sorte de mortalha de podre bacalhau,

se a tempo eu não o visse sobre o balcão parar.

Pois que o salvei das garras do bruto taverneiro,

entrego, à luz da imprensa, nas mãos da mocidade,

o livro do leproso, para que o mundo inteiro

profira-lhe a sentença da sua utilidade,

e diga se fiz mal mandando-o imprimir.

Penso que todo escrito, de bom ou mau efeito,

se deve divulgar, fazendo o povo o ler.

O livro sempre instrui; é o prisma mais perfeito

por onde as gerações melhor nos podem ver,

por onde nós entramos na senda do porvir.

O livro é que prepara os séculos e os povos:

é gérmen poderoso na choça de operários;

incute-lhes por dentro uns pensamentos novos,

e, onde quer que ele entre, não faltam missionários,

nem o poder da força de estúpida opressão.

Deixai passar o livro, ó alma santa e boa,

pais — não fecheis a porta; mães — ele vos conduz

à nova aspiração que o século apregoa:

virgens — abri-lhe os seios; moços — fitai a luz;

povos — amai o livro. Amai a Redenção!

Auto Pereira

I

REVELAÇÕES GENEROSAS

I MEDITAÇÃO

REVELAÇÕES GENEROSAS

Rômulo, de Moisés, de 92.

Ninná, meu cão fiel, ó alma altiva,

que estas chagas imundas, dolorentas,

lambes com a língua cheia de saliva,

sem receio das bavas purulentas;

tu, que és mais humano que os humanos,

mais caridoso que os fiéis dos templos;

recebe nestes versos soberanos

o louvor dos teus ótimos exemplos!

Eu creio que tu tens o sentimento

mais nobre do que os homens têm nos peitos.

Maldito quem denegue o pensamento

aos cães — estes amigos tão perfeitos.

Olha. No livro escuro da existência,

que eu arrasto nas ruas da cidade,

vou imprimir teu nome, tua clemência,

vou-te erguer paralelo à Humanidade.

Há dois anos, num fétido monturo,

eu passava de leve pelo sono

sonhando o meu misérrimo futuro

quase a tombar das mãos do abandono.

Ia a noite bem alta. O frio intenso

descia a visitar a minha palha,

e me acordaste desse peso imenso,

— sombrio como o aspecto da mortalha.

Eras tão pequenino! A piedade

moveu-me o coração para amparar-te.

Fui ver-te e fiz de irmã de caridade:

dei-te um pouco de palha, e nós desta arte

passamos essa noite sem deleite:

eu te dando calor, sossego e vida,

tu me pedindo a nutrição de leite,

as tetas mornas de tua mãe querida.

Jogaram-te na praia as almas cruas,

as mesmas que me enxotam de suas portas,

quando a lei da miséria pelas ruas

me leva a mendigar às almas mortas.

Oh! Que noite feliz! Que noite santa!

Foi talvez a melhor desta existência.

Senti uma alegria doce e tanta,

como se me arrancassem da indigência.

Ia ter um irmão e um companheiro

que velasse por mim pelo relento:

que haveria de amar-me, pois primeiro

eu o amara também nesse momento.

E fizeste inda mais que eu merecia:

abriste-me tua alma cegamente,

e não pensas em ti sequer um dia,

porque me vês morfético e doente.

Ah! Ninná! Bom Ninná! Não sei se devo

por te acima de mim ou de meus pais,

pois, quanto mais me humilho por teu servo

tu me rendes afetos por demais.

Nesta luta belíssima e serena

De uma força sobre outra desigual,

eu creio que a vitória fica em cena:

empata o racional com o irracional!

Vem cá. Deixa beijar essa cabeça

onde fervem-te ideias salutares.

Amanhã te darei mais uma terça

do pão que se me der nos lupanares.

Eu quero ver-te nédio qual eunuco

do coro musical do Vaticano;

que viva magro eu só como um trabuco,

que tu vivas qual lord ou soberano.

Hoje, que faz o sexto aniversário

da noite que deixaram-te comigo,

dou princípio num livro doutrinário

escrito para ti, meu bom amigo.

Assim, quando eu morrer terás presente

um lenitivo à minha eterna ausência;

saberás o que vai-me ardentemente

queimando o coração e a inteligência.

Basta. Vamos dormir, que felizmente

o judeu que de gesso vende santo,

atirou-me ao passar, como presente,

duas moedas de vintém. Que espanto!

É que foi grande a venda das imagens;

furtou licitamente com a igreja.

Oh! Benditos judeus destas paragens,

que se fazem cristãos! Assim o seja!

II

VERDADES DE SANGUE

II MEDITAÇÃO

VERDADES DE SANGUE

Virgílio, de Homero, de 92.

Desperta, meu pensamento,

desce dos mundos etéreos,

vamos cavar um momento

os ossos dos cemitérios.

Antes que triste sucumbas,

É mister abrir as tumbas

onde enterraram meus pais.

Eles são réus de um delito

perante mim, filho aflito,

perante as leis naturais.

Nesta página sensível

fique o libelo de um erro,

como fado inesquecível,

o gume de duro ferro

rasgando o livro fechado

da vida do seu passado

que nem souberam viver.

São eles, sim, os autores

dos meus grandes dissabores,

de lodo este meu sofrer.

Gastaram dias inteiros

nos beijos da mocidade,

nos prazeres lisonjeiros,

nos braços desta inverdade.

E nem cuidaram da vida,

da sanidade exigida

para bons filhos gerar;

como se o sangue estragado

não me fosse mau legado

para a saúde abortar.

Ó moços, que pretendeis

com estudada cobiça

a noite, em que vos fareis

de fera sobre a carniça;

a noite em que o bom vigário

lendo no seu breviário

pouse a estória em vossa mão;

não façais vosso noivado

sem terdes bem depurado

o sangue, que é a geração.

Ide às casas de saúde

beber a salsaparrilha,

pois é perverso quem ilude

o dever que na alma brilha.

Curai-vos de reumatismo,

dartros, gomas, histerismo,

toda a moléstia por fim;

senão tereis uma prole

magra, raquítica e mole,

de melindroso alfenim.

Tomai os banhos termais

antes dos banhos de igreja;

aqueles vos servem mais,

o sangue neles viceja.

Assim casareis seguros

de que tereis filhos puros

para a pátria e para si.

Não serão entes nojentos,

corpos imundos, leprentos...

Mirem-se todos em mim!

Não provocai vossos filhos

a maldizer-vos também;

são eles doces atilhos

da vida de quem os tem.

Não penseis que o casamento

é simples ajuntamento

de dois corpos, nada mais.

Vede o campo do futuro

— este horizonte obscuro,

lembrai-vos que sereis pais!

Que vale a vida de um ente

que a enfermidade prostrou?

Antes morto que doente

o filho que se gerou.

O alimento e a saúde

são que nos fazem a virtude,

que nos dão palmas de heróis.

A doença é o inimigo,

que leva a rastro consigo

o que há de belo entre nós.

Se teve amigos, um dia,

quem sofre deste meu mal,

viram-lhe a cara sombria,

quando ele pisa ao portal.

Ai! Destas almas de gelo

não há quem possa prevê-lo

quem tem delícias a flux!

Mas cai na desventura

que tereis, ó criatura,

fome, sede e membros nus!

São estes os meus venenos

as fezes do meu viver,

desde meus passos pequenos,

quando me pude entender.

Como então calar as dores

— prêmio de progenitores

de quem me faço juiz?

Não! Que estas chagas malvadas

tem garras bem amoladas

e sede de meretriz.

Eu sei que o filho não deve

cuspir na cinza dos pais;

tocá-las, mesmo de leve,

nas dores fundas, nos ais!

Mas é quando os pais compreendem

que do seu sangue dependem

novos e bons corações.

Caia, pois, a mão de ferro

a esmagar-lhes o erro,

cobrindo-os de maldições.

Fique esta página escura

como se fora um borrão

que o escolar, da leitura,

deixou cair na lição.

Não lede, ó almas sensíveis,

estas palavras terríveis,

estes gritos do dever;

não me os ditara a impiedade:

somente o culto à verdade

me os faria hoje escrever.

III

CIÊNCIA NEGATIVA

III MEDITAÇÃO

CIÊNCIA NEGATIVA

Sócrates, de Aristóteles, de 92.

Hoje vi pelas ruas da cidade

o médico Loggy,

— este bom protetor da humanidade,

que matara na Europa um velho abade,

três cônegos aqui.

Dizem que este marruco Satanás

é pai dos armadores funerais;

que não poupa os barões — estes patetas,

bacharéis e poetas,

que lhe caem nas mãos como eu caí.

Oh! Bendito este médico Loggy!

Olhou-me e desviou-se de repente

com medo do doente

de cujos pais ganhara bons mil reis

sem lhe curar o mal.

Seria a consciência que lhe fez

um escrúpulo tal?

Ou foi medo de ver-me junto a si

pedindo-lhe uma esmola,

que fez correr o imbecil patola,

o caridoso médico Loggy?

Deixe traçar na página do dia

a minha teoria

sobre a ciência de esculápio antigo.

Eu penso que a senhora medicina,

de quem Loggy é velho e bom amigo,

não chegou a crescer, ficou menina.

Não passa de invenção

de coisas de alfarrábios,

pensadas pelos sábios

da velha geração.

Serve às gentes antigas

que gostam de purgantes e cristeis;

às vezes faz deitar muitas lombrigas

aos comilões de doces e pastéis.

Combate indigestões,

cura dores de dente,

ataques de hemorroidas e sezões,

bagatelas somente.

Mas quando se lhe torna o caso sério

ela veste seus ares antipáticos,

não salva o científico critério,

restringe-se aos princípios dogmáticos

Diz que são incuráveis as doenças

das respirações do peito;

e ninguém lhe conteste suas crenças

estúpidas, sem jeito.

Não cura a dentição das criancinhas,

nem combate mórficas.

No seu receituário de mesinhas

não adianta ideias.

E chamam-na ciência! ...

Que pílula dourada!

Examinai-lhe a essência:

não passa de pomada.

Discípulos de Hipócrates, não invertei os termos,

que passareis de médicos a tolos charlatões.

Não é ciência a indústria que dá cabo aos enfermos,

e não nos salva os filhos e nem nos salva as mães.

Quando observo os homens, os pândegos marrecos

que se intitulam médicos por pergaminho vão,

linfáticos, anêmicos quais fúnebres padrecos,

eu chamo a medicina indústria de vilão.

Pois vós, que conhecendo a fundo o iodureto

não combateis a sífilis do sangue vosso impuro,

é que denuncias o negativo efeito

da água arseniosa e dozes de mercúrio.

Em vendo vossos filhos tão pálido — doentes

como filhos de pobres e míseros plebeus,

indago da ciência se os médicos são gentes

que possam nos curar, quando não curam os seus,

Oh! Não chameis ciência o ardiloso meio

de pôr nossos metais nas mãos do boticário.

Isto é furtar deveras a vida, o suor alheio,

em troca de lhe dar o nome em obituário.

Nem médicos vós sois! O médico adormece

à luz do gabinete a ler e a estudar;

e, quando alguém o busca, não há o que o impeça

dele salvar o rico e o pobre mais vulgar.

O médico não deve fugir ao sacerdócio,

quer pelas invernadas, quer pelo sol ardente,

de noite — a qualquer hora, sacrificando o ócio,

de dia — a todo o instante, quando o precisa o doente.

E vós fugis, ingratos, dos pobres miseráveis

que não vos pagam sedas, veludos e ouropéis;

à noite lhes negais receitas confortáveis,

morrendo os indigentes fora de tempo e vez.

Ah! Quando eu vir o médico entrar no pardieiro

e lá passar a noite de alguma enxerga ao pé,

em honra à caridade que não colhe dinheiro,

quando semeia o bem, custe-lhe mal até;

eu erguerei meu canto aos novos operários

das leis humanitárias pregadas por Jesus;

de todas as cabanas farei mil santuários,

de todos miseráveis uns corações de luz!

IV

PÚSTULAS EXPOSTAS

IV MEDITAÇÃO

PÚSTULAS EXPOSTAS

Strabon, de Arquimedes, de 92.

Ei-lo que corre as ruas para esmolar migalhas

de andrajos, aguardente, de pão, tabaco e palhas.

O tipo desta besta é todo detestável

no físico e moral. Que grande miserável!

Quem quer que o vê passar, conhece-lhe os instintos

no corpo seminu e nestes sinais distintos:

a pele embaciada de nódoas poeirentas,

olhar de espertalhão ou de aves agourentas,

os músculos tão fracos, de tanta laxidade,

que logo denunciam nenhuma atividade,

suada cabeleira—asilo de piolhos,

caída sobre a testa a confundir-lhe os olhos.

Quem é que o vendo assim trocar pernas no mundo

não diz instintamente: “La vai um vagabundo?”

Neste abjeto vulto prepara a indolência

um negativo efeito da boa inteligência.

A pátria vai perdendo um cidadão prestante,

um poderoso auxílio a indústria palpitante;

e, à proporção que nele o ócio acha agasalho,

rebenta vigoroso o ódio pro trabalho.

É destes elementos que se preparam crimes

para abortarem as leis das coisas mais sublimes.

Quem é que o fez assim? Pois não sabeis quem é?

Culpai primeiro o Estado — este tão vil galé.

Foi ele que negando ao povo a instrução

deste imbecil fez monstro, deu-lhe o punhal à mão!

O rei pensa, coitado, que a treva dá bom filho

e a luz uma cabeça de fera ou vil caudilho.

Ah! Quando um dia o povo souber o seu dever

o que será do rei? O povo o que há de ser?

Agora, ó da Polícia, dai caça ao vagabundo

que o rei mandou que fosse um elemento imundo.

Prendei-o nas algemas, em negras enxovias,

quando esta pobre besta roubar em noites frias

a casa de comércio para dar culto ao vício

imposto pelo rei com tanto malefício!

Vós que quereis as coisas alheias respeitadas

Por que não preparais as mães tão descuidadas?

Delas e que devíeis tomar contas seguras

se lhes fosseis credores de algumas coisas puras.

Mas vós adormecestes... Melhor: vós lhes negastes

escolas bem montadas. Dizei hoje que errastes

no péssimo sistema das vossas vis doutrinas,

negando a educação às pobres das meninas.

Entanto lá se escoam dos cofres nacionais

milhões de libras de ouro montando-se arsenais;

entanto geme a indústria , extingue-se a lavoura

ao peso dos impostos — a força esmagadora.

Pudesse eu trabalhar! Não me enxotasse o mundo

por causa da doença que lavra-me do fundo

e vos veríeis, rei, se eu estaria assim

neste monturo póreo a me lembrar de mim.

Bendito quem trabalha, desde que nasce o sol,

até que vem a estrela servir-nos de farol;

quem vê por sobre si a Humanidade erguida,

e não cansa de dar-lhe amor, trabalho e vida!

Fazei do vosso povo — analfabeto e inútil —

um elemento sábio, um povo grande e útil,

que lhe sereis na terra um Pai, ou mais: um Deus —,

se Deus é mais que um Pai e um lar menos que os céus!

Sim. Quando preparardes do povo os corações

e os cérebros latentes, das aulas com as lições,

vós dormireis tranquilo no vosso altivo harém,

porque não há remorsos para quem faz o bem.

Não precisais de guardas, nem desses trens de guerras

guardando vossa vida, vossa nação e terras,

não precisais de cárcere — antítese do templo,

que nos desperta o Ódio e não nos dá o Exemplo.

O povo vos trará lá dentro da memória

como um herói, coberto pelos troféus da glória,

em paga de lhe dardes o bem mais radical

tirando o vagabundo do seio social!

V

ABUTRES

V MEDITAÇÃO.

ABUTRES

Leônidas, de Cesar, de 92.

Foi ao cair dos raios do sol meridiano.

Paris todo agitado como revolto oceano

tinha uma negra ideia nos cérebros latentes,

um sentimento só nos corações das gentes:

queria a desafronta, a punição severa

de um braço de verdugo que vítimas fizera

para dar pasto a lei do lúbrico interesse,

como se sobre si nenhuma lei tivesse.

O que pedia o povo? Meter na guilhotina

de Troppman a cabeça — o monstro da rapina.

Mas é com a lei da morte que se castiga o crime?

A lei destruidora, será justa e sublime?

Dizei vós que pensais na boa Humanidade

se a lei, que mata o homem, é lei de caridade;

se o crime se depura no sangue da torpeza;

se o homem tem direito de ser a Natureza?

O que serão, portanto, subindo o raciocínio,

dois povos que cultivam as leis do assassínio,

como se dois cutelos levando em derribadas

milhões de vidas caras contra a Razão roubadas

às Artes, às Indústrias, às Letras, às ciências,

em prol dos desvarios das régias imprudências?

E nesse campo odioso, na festa de ruínas

teve o Brasil a coroa de flores assassinas.

Fora melhor não tê-la comprado por tal preço

que veio dizimar-nos: o povo pelo terço,

pelo total de certo a vida do tesouro

que morre asfixiado por falta de ar — o ouro;

enquanto que no Prata erguiu-se o Paraguai

pupilo deste império o filho deste pai.

Nero — o terror antigo, o instinto sanguinário

metido em corpo humano — de espírito quase vário,

querendo distrair-se nos gêneros de mortes,

mandou fazer dos homens lucíferos archotes

nos públicos jardins de Roma — esta cidade,

cadela amortalhada no vício e porquidade.

E diz o Mundo inteiro: “Há nada mais medonho

do que ver Nero — o louco a cogitar no sonho

um meio que destrua com prontas inclemências

as flores vigorosas, de belas existências,

ao som dos ditirambos das bacanais ardentes,

em honra da luxúria dessas Venosas quentes,

que zombam do martírio de aflitos moribundos

vivem nos prostíbulos ébrias — os mais imundos.

Oh! Não! Nero de humano só tinha a forma bruta.

Sua alma se criara pras solidões da gruta

como o chacal, o tigre, a hiena e a pantera...

Nero seria grande, se antes nascesse fera! ”

Pois bem. Pior instinto de eternas maldições

eu vejo na Alemanha, na Prússia — estas nações,

que à luz deste presente de paz e de bonança

tentaram destruir a França — a grande Franca!

Travou-se o pugilato! A luta horrível, feia

que assassinando os homens não lhes matara a ideia;

a luta dos abutres na pútrida carniça

por causa de um pedaço de carne ou de justiça,

lá bravejou de novo nos tons das metralheiras,

ao cheiro pestilento de pólvora e de caveiras.

Oh! Que duelo estúpido! Nas páginas da história

procura a Rússia um ninho para sonhar suas glórias,

sem lhe doerem dentro os dentes dos remorsos

de ter feito a Turquia um cemitério de ossos!

Pois dê-se o ninho ao monstro cansado da carnagem,

na página mais negra, na página selvagem!

Sempre o cruzar das armas! Sempre o tinir dos ferros

para pregar doutrinas e combater os erros!

Quando contemplo os homens assim tão sanguinários,

eu ergo dentro em mim àqueles missionários

que andavam pelas selvas — apóstolos inermes,

sujeitos ao tacape e aos bavejosos vermes —

um canto fervoroso, digno de tal corte,

faço do peito um templo, do eu um sacerdote,

porque no grande mapa de todas as nações,

distingo um só princípio — o fel das ambições.

Eis um exemplo mais de um grande e nobre povo

que dizem pertencer ao movimento novo:

os ruivos ingleses, fleumáticos, em alarmas

carregam sobre os Zulus para ensaiar as armas!

Parece que esta lei de guerra e mortandade

tornou-se epidemia a toda a Humanidade,

porque vejo dos povos, até os mais somenos,

ela estragar a vida com bélicos venenos.

Quem sabe se este mal lhes vem pelas camadas

etéreas, que respiram, dessas nações faladas?

Olhai para essa luta do Chile e do Peru,

esse espetáculo triste e de aspecto cru,

que fez um mar de sangue nas águas do Pacífico,

um céu cheio de fumo por combater dorifico.

E chamam-se estas lutas titânicas, selvagens,

direito de defesa? Eu digo de carnagens!

Enquanto a fogo e ferro se mutilar a gente,

e em vez de ser o verbo, à geração presente,

o único instrumento de conquistar a glória,

não se lhe dê abrigo nas páginas da História,

onde adormecem os sábios de auréolas fulgentes,

os Franklin passados, os Edison presentes;

que fiquem tais abutres carnívoros, exangues,

metidos na mortalha da podridão dos sangues!

VI

CORAÇÕES DE OURO

VI MEDITAÇÃO

 

CORAÇÕES DE OURO

Heloísa, de S. Paulo, de 92.

Eu sei de mães tão boas, tão santas criaturas

que as minhas expressões não sobem às alturas

do mérito que as orna e tal as nobres almas,

cheias de amor e afetos e de bondades calmas,

para fazer dos filhos, os mais endiabrados,

homens de índole ordeira e cidadãos honrados.

Oh! Essas mães angélicas que têm sempre no lábio

o riso da virtude, educador e sábio,

para domar o instinto travesso dos filhinhos

e antepor à cólera seus beijos e carinhos;

que em vez de castigar as pobres das crianças

as enchem de conselho, amor, paz, esperanças;

oh! Essas mães não morrem dos ledos corações,

porque lá deixam eterno o gene das lições!

Conheço-as eu modelos de extasiarem a gente

como Cornélia Graccho - está heroína ardente,

mães que se transformaram, desde que foram mães,

para educar os filhos enchendo-se de cans;

que vivem, se eles vivem: que choram, se eles choram,

e neles se refletem e neles se enamoram.

Ah! Se eu tivesse mãe! — o anjo da família

que, quando o filho dorme, alenta-se em vigília

junto do berço amado de palha ou de veludo,

em que seu ideal esquece-se de tudo!

Ah! Se eu tivesse mãe, embora uma leoa,

havia de adorá-la como uma coisa boa!

Entanto solitário eu vivo a divagar,

porque não tenho mãe — que me pudesse amar.

Não é dessas fidalgas que fazem dos maridos

uns pais apadrastados de filhos impedidos,

e roubam das crianças as tetas e os afetos,

que vão dar aos amantes nos lábios inquietos:

elas que se estragaram para lhes dar moral,

tornando-se esqueleto da vida maternal:

Não é dessas cadelas que atiram-se no cio,

como quem vai sedenta beber água no rio,

a iludir o mundo, a iludir os pais,

e fogem porcamente das regras naturais,

deitando em porta estranha o filho do seu crime,

lavrando em própria causa sentença que as oprime

tornando-as delinquentes, mulheres detestáveis,

primeiras no cadastro das grandes miseráveis:

Não é dessas panteras de coração perverso,

que pegam nas filhinhas e fazem terem ingresso

na porta dos bordéis, no leito da penúria,

vendendo-lhes a honra a troco de luxúria,

antes que nasçam as telas das pobres inocentes

que vão cobrindo os rostos com suas mãos algentes:

Que venho engrandecer nos meus pálidos versos,

o mérito real dos corações imersos

em ondas de virtude. Eu trago as minhas coroas

para depor nas plantas das mães santas e boas,

enquanto que abomino e cuspo sobre a face

das fêmeas que se fazem aberrações da classe.

Mas vós que dais o ensino de umas doutrinas sãs,

acima de mulher sois mais inda: — sois mães!

Ah! Quando junto a mim vejo passar na praça

uma mulher perdida e cega, por desgraça,

a mendigar o pão dos sujos taverneiros,

levadas pelas mãos dos filhos feiticeiros;

e, apenas obtendo um pouco de farelos,

primeiro os dá aos filhos — estes anjinhos belos:

Ah! Quando de uma vaca eu sinto o choro agro,

porque prendeu-se longe do bezerrinho magro —

para dar leite à venda, logo ao nascer do dia,

— indústria em que se assenta do dono a economia;

e, lá tarde da noite, se desfazendo o laço,

a vaca vai contente, já livre do baraço,

lamber o filho preso e dar-lhe o leite quente,

deitando-se a velar bem junto ao inocente:

Pergunto à Natureza: “Quem deu tanto ideal

à pobre da mendiga e à vaca do curral?

Se posso chamar mães as duas criaturas

que dão para seus filhos sustentos e ternuras?”

E ouço dentro em mim o grito da razão

bradar: “É nestas almas que as boas mães estão!”

Mulher, ó vós que tendes uma missão tão nobre

sentindo as mesmas dores, quer sobre a enxerga pobre

quer sobre ornada cama de colcha adamascada,

expondo a vossa vida numa hora tão sagrada:

vós, que gerais os filhos — mimosas esperanças

do lar e do paz — dotai-nos de crianças

que sejam para o mundo uns válidos esboços

de velhos venerandos e virtuosos moços.

As mães são que governam os tronos e as igrejas:

cumpre fazer dos filhos heróis para as pelejas,

meter em cada esboço uma alma de Titã,

Lutero ou Garibaldi, Jesus Cristo ou Satã.

Depende unicamente da boa ou má doutrina

ser guarda do Direito ou ave de rapina.

VII

VIBRAÇÕES AGUDAS

VII MEDITACÃO

VIBRAÇÕES AGUDAS

S. Luís, de Carlos Magno, de 92.

Detesto as gerações dos déspotas horrendos

que nos abriram a chaga da negra escravidão!

Visse-os agora o século — o látego tremendo

que açoita o vandalismo com a lebre da razão —

que fora dos misérrimos, das almas de egoísmo,

deles que nos cavaram as faces deste abismo?

Escravos? Que blasfêmia! Eu só conheço escravo

o cérebro que foge das luzes da instrução

para imitar o bruto no seu instinto bravo,

viver com a natureza bem como vive o cão.

Ó grande Humanidade! Foi teu maldito sono

que pôs estes forçados nas garras do abandono.

Se, quando veio o homem ao mundo geológico

não desse-lhe a Natura o dom da liberdade,

eu maldiria o ser de tal poder ilógico

perante o nobre esforço das leis da Atividade.

Mas como indiferentes olhamos as desgraças

de um povo que é vendido no martelar das praças?

É belo o trabalhar do braço voluntário,

ou mais que belo — é útil; serve de exemplo à vida;

mas quando se obedece à voz de um donatário,

em vez de ser cautério, transforma-se em ferida,

porque sufoca na alma risonho sentimento

e faz do homem livre mecânico instrumento.

Eu creio que as paixões, que se reprimem dentro

do peito repisado por infernal castigo,

são gotas de veneno, que vão-se para um centro

crescer e gangrenar talvez um peito amigo.

A alma que reprime o riso, o afeto, o amor,

prepara-se de certo, pra reação do horror.

É livre o negrejento abutre das ossadas,

a fera que divaga nas matas dos sertões,

a rola que se aninha na sombra das ramadas,

o inseto que se expande do sol pelos clarões...

E fez-se escravo um povo que sente nas artérias

bater o sangue livre, de vividas matérias!

Por quê? Ide-o saber na lama do passado,

nas páginas da história, na noite das nações,

quando a nobreza estulta plantara seu reinado

e o trono e a tirania calcaram as multidões.

Mas neste refulgente dominó da verdade,

quem ama o servilismo e odeia a liberdade?

Em nome do que é nobre e grande e santo e belo,

em norte deste século que nos cerca de luz,

fazei-vos, Mocidade, não corações de gelo,

mas filhos da Justiça, da Redenção, da Cruz!

E para o novo século, que deve ser de mel,

levai livres do jugo os filhos de Ismael.

Eles, que foram outrora os dóceis instrumentos

daqueles que os compraram pelo alvejar dos dentes,

vão se tornando aos poucos selvagens incruentos,

hienas sanguinárias, um povo de descrentes.

Nem fora de esperar pior revolução,

quando se quer o braço em vez do coração.

É tempo de os amar, de tê-los como amigos,

fazê-los entidades nas coisas do paz.

Assim nós os veremos tornados de inimigos

outros Damon da História, um povo bem feliz.

Limpemo-nos da chaga na piscina probática

da lei deste progresso, frutífera e simpática!

Vós sois os enviados das gerações futuras!

Eia! Tirai do esquife o morto de Nain:

a pátria é a viúva, que chora as amarguras,

porque levam-lhe o filho para um trevoso fim.

Vinde imitar ao Mestre, fazei ressuscitar

um povo que nascera para também se amar.

O sol da liberdade deve aquecer-lhe o peito.

Convém que esse cadáver levante-se entre nós,

para que veja a Europa no seu faustoso leito

quanto nos dói a chaga feita por mãos de avós;

e que nos entregamos a duro sacrifício

para emendar o erro do seu vil artifício.

Eu vejo a tempestade nas almas desses pobres,

que não se batizaram nas águas da instrução,

gerar-se lentamente contra o poder dos nobres

para, chovendo sangue, fazer sua redenção,

Faça-se, pois, de um povo de braços assassinos,

neófitos da luz, um bando de meninos!

VIII

ELEMENTO E FUNDAMENTO

 

VIII MEDITAÇÃO

ELEMENTO E FUNDAMENTO

Camões, de Dante, de 92.

Coragem, professor! Que sois um sacerdote

sublime, edificante, eterno, universal!

Fazei vossos discípulos estoicos contra a sorte

criando nas suas almas doutrinas do Real.

Vós lhes servis de pai. Depende o seu futuro

da vossa inteligência e boa direção.

Cuidado. A sociedade vos chamará de burro,

se um dia um destes anjos matar ou for ladrão.

Amai-os como filhos, pregai-lhes coisas boas,

para que sejam amigos da pátria e das pessoas,

bons filhos do Dever, bons filhos do Trabalho.

O Mestre simboliza um guapo lapidário,

o Mestre é um lavrador, a luz de um santuário,

o Deus que faz um sábio de um pândego pirralho.

Quebrai a palmatória, selvático instrumento

que deu-vos o Estado para educar a infância:

não pode cultivar-se o tenro pensamento

que oprime-se em castigos e se debate em ânsia.

Bater as criancinhas para lhes dar o ensino

é método brutal, é lei inquisitória,

que faz nascer o Ódio lá dentro do menino

e rouba-lhe o carinho do fundo da memória.

Ah! Quando for o Mestre um generoso amigo

que troque por conselhos o insulto e o castigo

que merecer o aluno por causa das lições,

duvido que o Estado contenha um funcionário

mais útil do que o Mestre — o novo missionário,

fabricador de ideias das vindas gerações!

Eu sei que o mundo inteiro

encara indiferente

para esse grande obreiro

trajado de indigente.

Eu sei que ele emagrece

no posto sedentário,

e lhe ninguém conhece

o péssimo salário.

Como ele vive, eu sei,

cercado de penúria

a trabalhar pro rei.

Entanto ninguém diz

que o Mestre é desgraçado,

que o Mestre é infeliz!

Não sabem porque é

que tem o Professor

missão de Redentor

e vida de galé?

Eu vo-lo aqui direi:

—E porque faz a luz

nos pensamentos nus,

contra o que quer o rei.

O Estado — este vilão,

se dá-nos instrução

é cheio de pesar.

Ele somente quer

o filho da mulher

para ser militar!

As armas, desditosa mocidade,

mas empunhando as armas do saber;

desfraldai a bandeira da Verdade,

que não tarda o porvir amanhecer.

Chamai os companheiros da Inocência

que brincam descuidados junto às mães,

e não sabem das leis da Inteligência

embalados no colo das irmãs.

Dai-lhes na mão pequena o alfabeto,

ensinai-os a ler e a pensar,

para que nenhum deles seja inepto.

A escuridão tem medo do luar;

a noite teme o sol como um inseto

o vampiro que o busca devorar.

Ide, menino, ler

para fazer-vos luz;

deveis dar de comer

ao cérebro avestruz.

Vós sois uma raiz

que deve se fartar

de seiva pro paz,

para o Universo e o lar.

Por ora sois carvão;

mas inda haveis de ser

um diamante são.

No mundo é tudo assim:

ao bem precede o mal,

— Antes de Abel, Caim!

IX

APÓSTROFES DO SÉCULO

 

IX MEDITAÇÃO

APÓSTROFES DO SÉCULO

Watt, de Guttemberg, de 92.

Pois quê? Vós pretendeis erguer o despotismo

calcando as leis sonoras da santa Liberdade

nos pés das ambições do vosso carolismo,

— este veneno agudo que mata a Sociedade?

Hoje, que vos fizestes ministros estragados

da lei sublime e grande do Cristo universal,

é que quereis lutar nos campos cultivados,

sem terdes um apoio — a força da Moral?

Vós, que lavais a Bíblia nos rios do dinheiro

erguendo os armazéns de venda pelos templos;

que vos fizestes lobos a devorar cordeiro,

quereis nos reformar, sem dar-nos bons exemplos?

Padres, fugi das trevas! Padres, fugi do erro!

O século é da Ciência, da Luz, da Liberdade.

É tempo de fazerdes à Teologia o enterro,

ela que vos atrasa no mundo da Verdade!

Pensar nas coisas grandes — é lei do pensamento!

Buscar o que é melhor — é lei da perfeição!

E vós fugis, covardes, do novo movimento,

temendo que Voltaire derribe o Altar no chão!

Não confiais na forra da cólera celeste,

e receias que os homens transformem-se em ateus?

Acaso se esgotaram a fome, a guerra e a peste

com que pune aos perversos o vosso falso Deus?

Ou tendes pouca fé nos vossos argumentos,

— essas malditas línguas de bárbaros punhais,

com que, sangrando a Plebe nos fundos pensamentos,

venceis a multidão com dogmas falais?

Oh! Não! Vós não temeis o baquear das crenças

e a morte das verdades do mártir da Cruz:

fora supor que o mundo nada nas trevas densas,

fora afirmar que os homens vivem sem ar e luz.

Vós odiais aqueles que zombam dos mistérios

fazendo guerra aberta a vil teocracia,

porque os divinizais uns lutadores sérios,

fecundos elementos contra o que Roma cria.

Vós detestais os moços da geração moderna

— discípulos de Renan, inimigos de Gousset —

porque eles assemelham a bela hidra de Lerna

que há de vencer a Roma, a venenosa ré.

Entanto eles são bons, não vos odeiam; apenas

condenam o jesuíta, louvando o missionário

que seja tolerante e de paixões serenas

e não imponha o culto de um deus imaginário.

Eles os libertinos, eles a quem chamais

ímpios, ateus , perdidos, frutos do vil Strauss,

são vossos defensores, amigos fraternais,

querem vos casar... Entanto eles são maus!

E vós não maldizeis a escravidão nojenta

que a lei dos absurdos impôs ao vosso lar,

deitando a concubina na cama brancacenta

em que devia a esposa os lábios vos beijar.

E vós não protestais contra essa lei de ferro

que chama vosso filho um simples afilhado

e vós uns onanistas, as vítimas de um erro,

cadáveres morais ante o civil estado.

Quando lobrigo um padre por suspeitosos becos

em busca da mulher dos sórdidos bordéis,

onde depure o sangue e molhe os lábios secos

na fonte da volúpia das languidas Prinés;

quando os vejo no templo fazendo desvario,

desenvolvendo instintos, nos torpes corações,

de adulterar a esposa, que deixa o lar vazio

para cair na rede das negras seduções;

quando lhes bate à porta o mísero mendigo

em nome do seu deus a suplicar-lhes pães,

e os Corações de Pedra assomam no postigo

negando-lhe migalhas, para as lançar aos cães;

quando leio as tabelas elásticas da igreja

que a troco de moedas acaba impedimentos,

e nos constrange a dar o ouro que deseja

o padre encarregado de dar-nos sacramentos:

quando em linguagem mansa eu ouço a hipocrisia

falar em céus, em anjos, eternidade e Deus,

e o punho, que abençoa o povo que a ouvia ,

vibra um punhal nas trevas para ferir os seus;

curvo a fronte a Lutero o monge incendiário,

que fez em cinza a bula do despotismo atroz:

bendigo a Lamenais o padre doutrinário

da Marselheza Bíblica, que não vendera a voz.

Faça-se o padre apóstolo destas doutrinas novas

—sementes vigorosas, caídas do Progresso:

e vós vereis o bardo erguer mélicas trovas,

saudando no presbítero a base do Universo!

Por ora enquanto fordes, ó padres, libertinos,

servos do celibato — a pústula clerical,

não mereceis um beijo dos cândidos meninos

nem podereis falar-nos em nome da Moral!

Eis porque o mundo novo, cuspindo no passado,

protesta contra a igreja dos papas imorais,

e vós dizeis que os homens são monstros estragados,

porque vos tomam contas do vício em que nadais.

Padres, fugi das trevas! Padres, fugi do erro!

O século é da Ciência, da Luz, da Liberdade.

É tempo de fazerdes à Teologia o enterro,

ela que vos atrasa no mundo da Verdade!

X

PÁGINA COMUM

X MEDITAÇÃO

PÁGINA COMUM

Madame de Sevigné, de Shakspeare, 92.

Saúdo o sentimento doce, gentil, ameno,

que desabrocha e vinga no peito o mais pequeno:

essa corrente elétrica que toca os corações

e fal-os pacientes de boas sensações.

Saúdo o puro amor estético, sublime,

que adora a honestidade e que repele o crime:

esse ideal eterno com que nos beijam as mães

e vamos descansar no colo das irmãs!

Saúdo o amor do povo, dos filhos das aldeias,

simples como a virtude que nada-lhes nas veias,

brando como a inocência da rola dos telhados,

fundo como o martírio dos grandes desgraçados!

Saúdo o amor que nasce nas gratidões sadias

e cresce como a flor das orvalhadas frias:

o amor dos bons amigos, mantido desde a infância,

como o perfume ativo de uma eternal fragrância.

Saúdo o amor do pobre, gerado na choupana,

regado das fadigas do dia e da semana,

em luta com a miséria, mas sempre vigoroso

no peito da consorte, no coração do esposo!

Saúdo o amor que nada nas almas transparentes

das ternas criancinhas de risos inocentes:

E fútil como o brinquedo da quadra juvenil,

porém que nada aspira e nada tem de vil.

Quisera ver o mundo como por um descuido,

viver deste ideal e deste eletro — fluido.

Não ter as ambições dos velhos agiotas

especulando a vida nas praças e nas portas!

Que os pais não cambiassem os corações das filhas,

pesando-as na balança de sedas e rendilhas,

olhando simplesmente os cofres entupidos,

que possam dar brilhantes, mas nunca bons marido.

É desses casamentos de inclinações erradas

que nasce o adultério, as lulas continuadas.

Depois quem tem a culpa de consequências tais?

Não fostes vós, cambistas — aberrações de pais?

Ó corações paternos! Porque sois desumanos,

deixando de ser pais, fazendo-vos tiranos?

Quem foi que inoculara na vossa inteligência

o vírus da cobiça de corrosiva essência?

Quem disse que a mulher precisa de marido

que negue-lhe carinhos e só lhe dê vestido?

Quem foi que envenenara os corações direitos,

fazendo-os manivelas de pífios preconceitos?

Calai-vos! Eu bem sei quem foi que vos traçou

a norma que seguis e que indagando estou!

É bom que obedeçais às regras imbecis

da tal Sociedade — estúpido juiz!

Ide correr as ruas, bater de lar em lar,

apregoando as formas da filha não vulgar.

Vendei-a ao milionário que a faça bem feliz,

enquanto a pobrezinha chorando se maldiz.

Que importa esse martírio da vítima do amor

que foi sacrificada ao peso esmagador

de um pai... Não! De um tirano!

Que o pai não vai nas praças

mercadejar a filha a troco das desgraças!

Um pai não diz à filha: “Tomara que te cases”

Seria lhe pedir: “Procura entre os rapazes

algum que te pretenda; pois vivo já cansado

de ver-te neste teto, assim, junto ao meu lado”.

Se um dia eu fosse pai, diria aos filhos meus:

“— Ó trabalhai, anjinhos, pois o trabalhe é Deus!

Quem vive a mourejar, banhado de suor,

honrado há de morrer, coberto de louvor: ”

“Amai-vos, inocentes, na dor ou na alegria,

desde o nascer da aurora, até que se finde o dia;

ao lado dos irmãos, dos pais e dos amigos...

Amai como Jesus aos próprios inimigos: ”

“Amai-vos desgraçados que cobrem-se de pó,

rotos, esfomeados, leprosos como Job;

a mísera criança que vive na orfandade

sem ter as atrações de mágica amizade”

Eu não cultivaria a boca do demônio,

que me fizesse a filha pensar em matrimônio.

Havia sutilmente, sem que ela percebesse,

lá dentro de sua alma deixar a boa messe

que despertasse um dia no brando coração,

quando ela se casasse e fosse mãe, então.

Eis o que eu louvo e canto nos verdadeiros pais!

Eis o que não se pensa nos centros sociais!

Os homens cultivados — os tais homens perversos,

que deixam na família os rastros bem impressos

da corrupção medonha , dos variados vícios;

os homens cultivados odeiam os benefícios!

A título de etiquetas e regras de salão

o esposo cede a esposa aos braços de um vilão;

o pai olvida a filha nas rodas imorais

e joga o voltarete sacrificando-a mais!

E o mundo libertino não cansa de louvar

o bom do cavalheiro que sabe observar

as regras falseadas dessa moral odiosa,

que traz a corrupção na seiva venenosa.

Miséria das misérias! E chama-se atrasado

o povo das aldeias, que está purificado,

só porque a virgem foge dos olhos cidadãos

e a esposa se defende com suas próprias mãos!

Negra moral! No entanto eu deixo nestes versos

aos povos das aldeias retrógrados, imersos

em funda ignorância, as minhas saudações,

como se fossem flores das belas sensações!

Oh! Quanto é nobre o amor da coisa simples, boa,

que vem da natureza e reproduz-se à toa

como a planta silvestre que dá no pedregulho

e vive humildemente sem ostentar orgulho!

O amor é que nos enche de paz e de esperança

e toma nossas almas na mão, desde criança,

e as faz uma entidade no meio social

ao lado do Direito, ao lado da Moral.

Saúdo, pois, o amor sincero e derramado

no coração materno — o adito sagrado;

no peito dos amigos, no seio das irmãos,

nas almas das consortes — estas segundas mães!

XI

VÍTIMAS FATAIS

XI MEDITAÇÃO

VÍTIMAS FATAIS

Bacon, de Descartes, de 92.

Silêncio! Não convém mexer nesse colosso

Que dorme de charrua no mórbido pescoço!

Enquanto ele adormece, coberto de baldões,

diverte-se a nobreza nos mágicos salões.

E a tirania estulta dos Césares modernos

atira na Polônia o ódio dos infernos.

Retalha-se a Turquia nas garras do egoísmo

da cavilosa Europa que a leva ao servilismo.

Silêncio! Não convém dar fogo aos inflamáveis

e revolver paixões nos peitos miseráveis.

O sono é quase morte... Deixai dormir o Povo,

a besta do Burguês — o sanguinário corvo.

Se um dia a lei do acaso terrifico, fatal,

erguê-lo da modorra, quem doma este chacal?

Quem vencerá na luta, se o monstro erguer a voz

tocando os arrebates? A vítima ou o algoz?

Silêncio! É doloroso o tétrico episódio

desses Noventa e Três — depositários do Ódio!

Enquanto reina o sono, ninguém conhece o nome

que corre da Bastilha e vai quebrar Vendôme!

A França... o mundo inteiro não cuida na ruína

do Rei decapitado na turva guilhotina.

E a fidalga — o polvo que sorve o senso ao Rei,

persegue aos desgraçados sem proteção nem lei.

Dormi, ó meus Irmãos! Quando dormis, os cetros

chafurdam-se nos vícios: não tremem dos espectros.

O dedo incognoscível, firme, fatal, cruel,

não molha-se do sangue para escrever: Thecel!

E passa a Burguesia — a moribunda fátua.

fria de sentimento como marmórea estátua.

Que fado, meus Irmãos! Que triste pesadelo

vos enche os corações... De sangue? Não! De gelo!

Pois vós não tendes inda em meio da alma heroica

a reação dos bravos, a sensação estoica?

Não fostes vós que um dia ao sol da realeza

cantastes na Bastilha a bela Marselhesa?

Não fostes vós que destes a luz da Redenção

às vítimas opressas, sem liberdade e pão?

Como caístes, pois, no lânguido letargo

sorvendo gota a gota o cálice de amargo?

Eia! Não renegueis os cânticos frenéticos

submergindo a glória nos sonos catalépticos!

Olhai aos vossos filhos — estas estrelas novas

quase a tombar, coitadas! Nas tênebras das covas.

Salvai-os! Querem luz nos cérebros opacos...

Quem sabe se os esperam esses troféus dos Grachos?

Vingai-vos, pariás, com generoso afeto,

dando por arma aos filhos o bárbaro Alfabeto!

Que importa que o Estado, para oprimir os pais,

mande fechar a infância nas trevas desleais?

Pois vós não tendes braços para salvar os filhos

das garras dos abutres, do jugo dos caudilhos?

Eu vejo espionar nos olhos desses Anjos

a cândida Inocência —perfume dos Arcanjos.

Aquele olhar tranquilo, perscrutador, sereno,

é mais do que um olhar o menos que um veneno.

É um juiz que escreve no livro do futuro

as dividas dos pais, para contar-lhes juro.

Alerta! A transgressão da vossa Lei moral

é mais do que uma pena do Código Penal:

É por a Consciência sob a pressão doida

dos dentes do Remorso, que há de sangrar-lhe a vida.

Eu quero ver o Povo, com o estertor do mar.

sorver a tirania para se libertar.

Ter a vingança atroz nos lábios e no rosto:

morrer como Leônidas, estático no posto.

Mas não vender os loiros da bélica vitória

em mão da Covardia, a quem odeia a História.

É sempre a Ignorância — a túnica de Nessus —

que nos arrasta ao Crime, ao Vício e aos Excessos.

Ela é que odeia o Bem sentada nas esquinas,

fugindo do trabalho, fechando as oficinas.

Ela é que arrasta a vida nas sórdidas tavernas,

ébria como Falstaff, bamboleando as pernas.

Ela é que não cultiva o campo e o vai agreste,

e morre de miséria medonha como a peste.

Vaga pelo relento nas pandegas orgias

e quase toda noite vai ter às enxovias.

Canta no violão modinhas imorais

e dorme o dia inteiro sonhando as bacanais.

Oh! Não deixai medrar a feia Ignorância

que afoga a inteligência no cérebro da infância:

Que foge do Direito, do Belo e da Justiça

como de carne podre, de fétida carniça.

Em cada uma inocência, em cada uma criança

existe uma existência de rútila esperança.

Fazei-a conhecer o Hino do Trabalho

a manear a enxada, a serra, o escopro, o malho:

Ter a Razão sisuda, serena a Consciência,

alegre o Coração, aguda a Inteligência.

O Povo que cultiva as leis da Utilidade,

detesta o despotismo e ama a Liberdade.

Não vaga pelas trevas para roubar alguém:

se dorme, é pra sonhar a prática do Bem.

Acorda muito cedo para o labor diário

e ganha satisfeito o lícito salário.

Às vezes quando folga, cansado da fadiga,

é para encher o Lar de uma alegria amiga.

É para se rever no riso da consorte,

no brinco dos filhinhos, e se esquecer da morte.

Ah! Quando for o Povo, livre, feliz, assim,

a Pátria não será estúpida e ruim.

Eu fico indignado de ver o servilismo

a gangrenar os homens matando o heroísmo.

De ver a Mocidade — a base do Futuro,

transida de miséria, como elemento impuro.

E vós dormis, ó Povo, abandonando à sorte

os filhos inocentes — as vítimas da Morte!

Entanto a Liberdade domina os corações,

coroando a Igualdade com mágicos clarões.

Miséria! Quem diria que vós dormísseis tanto,

e o Hino do triunfo se transformasse em pranto

E fosse uma quimera a século da luz

fecundo de Progresso, como de amor Jesus?

Pois bem. Dormi, tiranos! Vós nunca fostes Pais!

Quem dera a vossos filhos que não vivêsseis mais!

XII

AUTÓPSIAS

XII MEDITAÇÃO

AUTÓPSIAS

Washington, de Frederico, de 92.

Hoje tive o desejo extravagante

de passear a carro

fumando meu cigarro,

como um Comendador fátuo e pedante.

Foi debalde, porém, o meu desejo.

Por falia de dinheiro

nem carro nem cocheiro

 me quisera levar por um gracejo.

Tive de andar a pé de rua em rua,

ao quente ardor do sol,

sem ter um guarda-sol,

sem chapéu de cabeça... Oh! Sorte crua!

Mas fui. Andei por toda esta cidade

como vadio cão

que faz digestão

da fome que lhe rói a cavidade.

E não cansei neste passeio rude.

Que coisa singular!

listou a cogitar

não me seja a visita da saúde!

Também não me consome a morte dura

— esta velha carcaça,

de consciência escassa,

insensível à dor da criatura.

Sinto mais que a senhora Idilidade

relaxe-se de mais,

contratando fiscais

que gostam de viver na porquidade.

Vi nas ruas o lixo amontoado

dominando os passeios,

ratos podres e feios

inficionavam o ar envenenado.

São as praças campinas verdejantes

onde pastam cavalos,

vacas, porcos e galos,

mansos carneiros, bodes petulantes.

Não existe uma rua em que o Aceio

passe um dia contente,

fazendo rir a gente

que gosta de higiênico passeio.

Vagam promiscuamente nas vielas,

sentindo a podridão

dos estercos do chão,

o fiscal generoso e as cadelas.

Mais deixemos de lado a Sanidade

que chora e se maldiz.

Tapemos o nariz

e vamos divagar pela cidade .

I

 A OFICINA

Era nas horas, quando o sol aquece

a folha verde e a vigorosa flor,

e os passarinhos estendendo as azas

cantam nos galhos as canções de amor.

lnda dormia na macia rede,

ao morno achego do sutil lençol,

a Fidalguia que não tem cuidados

para se erguer ao despontar do sol.

Ia o silêncio abandonando as casas

dos pobres filhos do Trabalho audaz:

uns a charrua aparelhando ao ganho,

outros nos ombros conduzindo as pás.

Qual futurando pelas ruas quedas,

sob os sovacos amornando as mãos,

fazer na feria, desse dia, ao menos

mais um punhado de farelo e grãos.

Qual cabisbaixo a cogitar um meio

para da casa o aluguer pagar,

todo medroso de se ver exposto

às intempéries do invernoso ar.

Entanto o dia no horizonte belo

mostrava o colo o levantava o pó:

nas oficinas trabalhava a serra, 

a lima e o malho, a picareta, a enxó.

O sapateiro martelava a sola,

soava a plaina na madeira sã,

tinia a trolha na semalha tosca ...

Era uma orquestra na gentil manhã!

Caíam gotas das manchadas faces

curvas ao peso do feliz labor.

As oficinas são divinos templos,

levita o obreiro o aguabenta o suor!

É na oficina que se elevam os povos,

que se engrandecem corações plebeus.

Pelo Trabalho se consegue a Glória:

quem chega à Gloria se transforma em Deus!

Eis o que o mundo indiferente e frio

não vê naquele de calosas mãos;

teme abraçá-los receando as nódoas,

fedia nos lábios a palavra — Irmãos!

Embora. Um dia há de nascer à Gloria

Que lave em nardo seus grosseiros pés.

Assim fizera Madalena outrora

deponto a Cristo as devoções fieis.

 

II

 O TRIBUNAL

Passei sombriamente

por junto um Tribunal:

havia muita gente.

Entrei. E natural

a curiosidade

vencer-me este moral .

Estava a majestade

da Lei e da Justiça

posta em solenidade.

Ia travar-se a lira

entre a defesa aguda

e a acusação massiça.

No centro a estátua muda

do austero magistrado

erguia-se sisuda.

Vestia-se de beca,

como outrora Pilatos

— Aquela alma seca.

Não julgaria os autos:

só marcaria as penas

do conselho dos fatos.

Compunham-se estas cenas

de mais doce figuras,

além doutras pequenas.

Aquelas criaturas

olhavam para um rosto

banhado do amarguras.

Era o do réu. O posto

curvara-lhe a cabeça

ao peso do desgosto .

A acusação começa

lógica, audaz, de ferro,

horrorizando a peça.

Depois bate-lhe o erro

a boca da defesa,

que faz-lhe então o enterro.

Eis a que estava presa

a sorte do infeliz

que o tribunal não pesa.

Então manda o Juiz

que diga a Consciência

o que a prova não diz.

Horror! A Inocência

vai ser sacrificada

aos pés da prepotência.

Toca amolar a espada,

Verdugo da Justiça;

a pena está lavrada .

Ceva-te na carniça...

A vítima infeliz

já teve um bom juiz...

Sabes? É a injustiça.

Eis o seu crime atroz:

— puniu com a lei da morte

a pérfida consorte,

a víbora feroz!

Não há, porém, um mês

que o mesmo Tribunal

a réus de crime igual

absorveu a três.

Entanto o desgraçado,

por não comprar juízes,

vai ser dos infelizes,

de Deus abandonado.

III

O CÁRCERE

Do Tribunal passei pela cadeia

fria, tristonha , escura:

era uma sepultura

habitada de gente e quase cheia

Espiavam nas grades da prisão

os descarnados rostos,

sombrios de desgostos,

retratando o que sente o coração.

No fundo deste quadro macilento

trabalhavam os galés, de grilhetas nos pés,

gastos para o Remorso e o Sentimento.

Lá no corpo da guarda o carcereiro

baixo, calvo, rotundo,

passeava jucundo

de ser governador de tal viveiro.

Quando parava, aí vinha uma anedota

Fazei rir aos soldados

nas tarimbas deitados,

jogando o trinta e um, pacão e sota,

De uma vez o sargento quartel mestre

propôs a discussão

do castigo em prisão,

para domar aquela gente agreste.

Foi quanto lhe bastara. O carcereiro,

ofendendo a prosódia

em linguagem serodia,

não deixa mais falar ao companheiro.

Lá deixei-os assim. Sombrio e mudo

vim sentindo a desgraça

cravar-me com mão falsa

o punhal do martírio atroz, agudo.

E dizia comigo: “Ó fado! O lei!

Os cárceres fechados,

os homens congraçados,

quando posso cantar? Quando os verei ?”

“As bárbaras sentenças dos juízes,

condenando a galés,

são mortes bem cruéis,

que matam lentamente aos infelizes!”

“Não é assim que a boa Humanidade

quer espalhar o bem.

Não é assim também

que o coração semeia a Caridade!”

“Tirar a luz, o ar, a esposa, os filhos

ao desditoso réu,

é torná-lo um ateu,

fazê-lo detestar os belos brilhos!”

IV

O HOSPITAL

Passei num hospital de caridade,

— o refúgio dos míseros mortais.

Desgraçada da pobre humanidade

que se vai entregar aos hospitais!

Visitei os imundos aposentos,

onde parava a tétrica miséria:

as camas tinham cheiros pestilentos,

os lençóis tinham nódoas de matéria.

Gemiam solitários os doentes

pedindo agoniados água e pão;

lia-se-lhes nos olhos pacientes

que morriam de fome... Oh! maldição!...

Fugiram dos prostíbulos imundos,

medrosos de matá-los a doença.

Entanto ei-los agora moribundos,

condenados à última sentença.

Não lhes davam remédio; há muitos dias

ausentara-se deles o doutor;

o para lhes dobrar as agonias

veio ungi-los o rubro confessor.

Dobrava na capela funerária

o sino — este verdugo dos doentes;

dormia a Caridade — esta usurária,

com medo destes magros pacientes.

Devia ser assim. Para os mendigos

não há religião, amparo ou Deus;

despede o hospital os seus amigos

como Cristo fizera aos Fariseus.

Caridade falaz, eu te condeno,

eu te abomino, se tu és tão vil!

O que fizeste do teu riso ameno?

Onde guardaste o teu amor gentil?

Deixas morrer sem ti, desamparados,

à míngua de consolo — os filhos teus?

Quem te fez odiar aos Desgraçados?

— Burguesa, porque zombas dos Plebeus?

Athalia cruel! fecha estas portas,

deixa morrerem fora os miseráveis

pedindo nutrição ás almas mortas,

andrajos e remédios confortáveis !

Eu pensava encontrar neste edifício

teus lençóis enxugando-lhes os prantos,

luas mãos lhes semeando benefícios,

teus lábios a falarem-lhes dos santos.

Eu pensei que velásseis à cabeça

dos enfermos que estão deixando a vida,

e venho le encontrar (que boa peça!)

dormindo o sono de mulher vendida.

Para não mais voltar neste cenário,

deixo uma cruz traçada no batente.

Adeus, ó Enfermeiro! ó Empresário!

Acaba de uma vez com esta gente!

V

 O CEMITÉRIO

Aqui neste lar sombrio

nivela-se a humanidade,

quando o corpo está vazio

de calor, de atividade.

É neste laboratório

que trabalha a Natureza

preparando o efusório

de nova vida e riqueza.

Aqui se desfaz em lama

imunda, nociva e feia,

o ente que se mais ama,

a coisa que mais se odeia.

A face da cor da rosa.

macia de pó de arroz,

come a terra — esta gulosa,

deixando a caveira atroz.

Entanto, cobrindo a cara

ante a cova dos Plebeus.

vai a, Vaidade em Carrara

encomendar mausoléus.

É o mundo concorre ledo

à pompa dos funerais,

como se fosse a um folguedo

das etiquetas banais.

Armam-se os templos divinos

para fúnebres ofícios;

rezam padres , dobram sinos

pela Riqueza e seus vícios.

Embalsamam-se defuntos

tirando da terra o pão:

são cadáveres — presuntos

roubados à criação.

E não se lembra a Riqueza

de vestir aos Órfãos nus,

dar esmolas à Pobreza,

criar escolas, dar luz.

O epitáfio das campas

é ridículo conforto;

basta gravar-lhes nas tampas

o simples nome do morto.

Quem põe suas mágoas na praça,

faz da campa um corredor

que a nenia transforma em farsa,

que mata o ideal da dor.

É melhor deixar as covas

às livres exalações,

sem mausoléus e sem trovas,

ao rigor das estações .

As tumbas dos desgraçados

semelham-se à de Jesus:

são fossos abandonados;

não têm numero nem cruz.

VI

O TEMPLO

 

Entrei na catedral. O povo a enchia

para ouvir evangélicas doutrinas;

a sua inquietação bem parecia

a fervura dos vermes nas latrinas.

Do movimento estúpido subia

o pó sutil, por dentro das narinas.

asfixiando aos servos do Senhor,

que esperavam o sermão do pregador.

Havia a procissão do Sacramento

recolhido-se ao templo iluminado;

iam cantar no coro um sentimento

dos salmos de David — o rei sagrado.

Nisto cresce o rumor e o povo atento

procura descobrir de lado a lado

a causa de tamanho desatino,

como se ali não fosse um lar divino.

A final descobriu-se. O povo estulto

vendo-me entrar no templo, inquieto-se;

distraiu-sedas atenções do culto,

e perante a morfea horrorizou-se.

Julgava-me um cadáver insepulto

e fugia de mim, como se o fosse,

boquejando entre si palavras surdas,

imprecações banais e absurdas.

Eis que chega no púlpito um velhote,

vermelho como um rúbido tomate,

para exercer missão de sacerdote,

trajando um vestuário de mascate;

e, sem mais atenções, perfila o porte,

encara-me iracundo como Marte

e manda-me lançar fora do templo

como o fora Jesus. Que belo exemplo!

Ao sair do recinto, fui dizendo

lá no fundo da minha Inteligência:

Fizeste muito bem, ó reverendo!

Fizeste muito bem! A Consciência

não precisa de templo. Eu compreendo

que acima desta vil conveniência

existe dentro em nós um grato aroma

mais velho do que o Templo e do que Roma”.

“Quem mandou-me transpor este edifício

onde se não cultiva a Piedade?

Por ventura se prega o Benefício

no templo que se nega a Caridade?

Não é aqui que se detesta o Vício?

Que se devera amar a Humanidade?

Como então se me expulsa da piscina,

e minha alma condena-se à ruína?”

«Contempla-me, Jesus, lá do teu Horto:

vê como se me nega o lar sagrado!

Eu que pensava achar doce conforto

neste asilo fiel ao desgraçado,

levo sombrio um coração de morto:

o Ódio vai em mim eternizado:

e tudo porque tens uma corte

de escribas ... porém não de sacerdote”.

“Tu beijavas a fronte da Inocência,

eles cospem na flor da Virgindade;

afagavas a livre Consciência,

eles querem oprimir a Liberdade;

teus lábios nos enchiam de Prudência,

os deles nos provocam Odiosidade...

Entanto querem ser Ministros teus

para vencer a raça dos Ateus!”

XIII

FORÇA E EQUILÍBRIO

XIII MEDITAÇÃO

FORÇA E EQUILÍBRIO

Galileu, de Bichat, de 92.

O meu viver irônico

como o viver de Job

humilha-se ao carbônico,

vai transformar-se em pó.

Antes assim. Talvez

eu seja mais feliz

no corpo de uma rés

ou feito uma raiz.

É próprio da matéria

tornar-se podridão,

tenha raiz ou artéria,

seja animada ou não.

Eu penso deste modo:

acho ser boa a lei

que faz do homem lodo,

que faz de lodo o rei.

O corpo do vivente,

ou Judas ou Jesus,

dissolve-se igualmente

em fedorento pus.

A alma é uma quimera

contraria à lei real;

o cérebro que a gera

é cérebro banal.

A alma é o resultado

da boa atividade

este poder sagrado,

de tanta utilidade.

A alma é o equilíbrio

das forças da maioria

que curva-se ao ludibrio

da secreção venérea.

Quando ela cedo ao agente

desorganizador,

é para simplesmente

se renovar melhor.

Mas não desaparece

com o corpo de defunto:

antes vigora e cresce

no outro melhor conjunto.

Eis o que constitui

a lei da eternidade,

a lei que tanto influi

na Ciência e na Verdade.

Eu não condeno a morte,

a lei do Transformismo

que troca por mais forte

o débil organismo.

Se fosse a vida o efeito

da criação divina,

a morte era um defeito

ou punição maligna.

Mas eu não creio tal.

Não faço a injustiça

de tê-la como um mal,

nem dou-lhe uma só missa.

Em semelhante assunto

poupo o apelido a Deus,

de — hiena — que em defunto

se vinga dos ateus.

A morte é sempre um bem

nas leis da Biologia:

é ela que mantém

do mundo a Harmonia.

Se arrasta as criaturas

aos túmulos fatais,

ganha das sepulturas

novos materiais.

Se um dia um veterano

cede ao rigor da idade

fechando o peito humano

ao ar da sanidade:

Se um dia uma família

nas mágoas imergida

abate-se em vigília

sem chefe, e pois sem vida;

Se um dia a criancinha,

que nem sabe seu nome,

fica sem pais, pobrezinha,

a falecer de fome;

O que sucede ao mundo

e ao meio social?

Ninguém virá do fundo

de tão medonho mal?

Há de nascer alguém,

como nasceu Moisés

para trazer o bem

aos povos infiéis.

E, em vez do pobre velho,

e temos um menino

que, se não traz conselho,

há de nos dar o ensino:

Eis o seu grande nome

cercado todo em luz

que o tempo não consome,

e chama-se ... Jesus!

Agora lamentai

o fim do Padre Eterno

que apodrecido cai

aos pés do Deus Moderno.

Sim. Lamentai agora

a pobre da viúva

que a Caridade — a aurora,

beija na fronte curva .

Sim. Lamentai o infante

que, sem viverem os pais,

tornara-se um gigante

nas coisas sociais.

E ainda vivereis

a combater a morte,

como lamentam os reis

os pânicos da sorte?

Entanto ela é remédio

aos grandes desgraçados:

acaba-lhes o tédio

dos corações magoados.

Eu sei que brevemente

vou lhe cair nos braços,

pois sinto o sangue quente

não me dar força aos passos.

Embora. Eu morrerei

 certo que nunca mais

morfético serei

por causa dos meus pais.

Meu sangue envenenado,

por falta de oxigênio,

vai ser talvez guardado

para um moderno gênio.

Quem sabe se o miolo

de fósforo saudável

eu vou deixar a um tolo

ou para um miserável ?

Eu sinto o meu calor

de trinta e sete grãos

diminuir... Melhor !...

Os vermes não são maus!...

Eu sinto nestas carnes

os vermes imprudentes

com sínicos escarnes

meterem-me seus dentes.

Com tudo não maldigo

seus roedores boles.

Que importa eu ser amigo

dos novos Iscariotes?

Não adianto ideia

rompendo as relações

no fim da minha estreia

no mundo dos ladrões .

Era o que me faltava

chegar ao cemitério

e não achar sua bava

por último cautério.

Não é possível, não!

devo partir em Paz!...

Ó meu Niná! Meu Cão!

não durmas assim mais!

Talvez rompendo o dia

tu fiques solitário,

transido de agonia

perante o meu calvário.

Sinto que mais não posso

traçar neste papel

feito por vós, que é vosso

este livro cruel.

Niná, meu bom Niná!

adeus, alma de luz!

Quem sabe se será

tua  alma a de Jesus !