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O renegado, de Gomes Leal
Edição de referência:
GOMES LEAL
O
RENEGADO
___________
A ANTONIO RODRIGUES SAMPAIO
CARTA AO VELHO PAMPHLETARIO
SOBRE A PERSEGUIÇÃO DA IMPRENSA
— — < > — —
LISBOA
TYPOGRAPHIA — Largo dos Inglezinhos, 27
1881
A
MANUEL DE ARRIAGA
Eu bispo doutra diocese...
Guilherme Braga
«António Rodrigues Sampaio, do meu conselho, par do reino, presidente do conselho de ministros, ministro e secretario d'estado dos negócios do reino. Amigo, eu El-Rei vos envio muito saudar como aquele que amo.
Tendo na mais elevada estima os reconhecidos merecimentos que concorrem na vossa pessoa, e que haveis manifestado no honroso e ilustrado desempenho dos mais altos cargos do estado, e em diferentes e importantes comissões de interesse público; e querendo por estes respeitos e pelo subido apreço em que tenho os vossos distintos e relevantes serviços prestados à dinastia, às instituições, à causa pública e à liberdade, conferir-vos um testemunho autêntico da minha real consideração: hei por bem nomear vos comendador da antiga e muito nobre ordem da Torre e Espada, do valor, lealdade e mérito, e elevar-vos conjuntamente à dignidade de grã-cruz da mesma ordem.
O que me pareceu participar-vos para vossa inteligência e satisfação, e para que possais desde já usar das respectivas insígnias, vos mando esta carta.
Escrita no paço de Cascais em 28 de setembro de 1881.
— El Rei. — António José de Barros e Sá.
Para António Rodrigues Sampaio, do meu conselho, par do reino, presidente do conselho de ministros, ministro e secretario d'estado dos negócios do reino».
* * * * *
Já que El-Rei, teu Senhor — contra a sua Mãe cara,
assim te premiou a ensanguentada ofensa,
eu, um Juiz também — Juiz duma outra vara,
contra ti, velho Réu, lavrei esta sentença:
I
Eis-me em frente de ti, velho urso na caverna —
Eis-me em frente de ti erguendo uma lanterna,
lanterna que acendi na grande escuridão
sobre a plebe açoutada, erguendo a minha mão,
lanterna que acendi nesta era ensanguenta,
lanterna que acendi, como em sinistra estrada
por causa dos ladrões perdido viajante.
Eis-me em frente de ti, eis-me de ti diante
cheio d'ódio, rancor, com asco, sem respeito,
perguntando-te, ó Velho — Onde está o Direito?
O que fizeste ao Povo, à Consciência, ao Brio?
Onde está o Pudor, rude ancião sombrio?
Quem és? Quem és? Quem és?... velho cheio de fel.
Onde está ó Cain o teu irmão Abel?
Quem és? Quem és?... Ó glória, ó nome hoje aviltado?
Tu foste a Alma do Povo — hoje és um renegado.
Eu sou a voz do humilde e desses maltrapilhos,
desses rotos e nus a quem mandais os filhos
ás palhas da enxovia em vez da luz da escola.
Eu sou a voz de baixo, eu sou o mar que rola
toda uma orquestra d'ais, um mundo de lamentos
maior que a voz de Deus, e a voz dos grandes ventos,
Sou a voz que maldiz, o pranto que suspira.
Trago na minha mão a lâmpada da Ira.
Eu sou esse rebelde herege, extraordinário
que chamo ao biltre um biltre, e a ti um latrinário,
que preguei neste tempo às turbas assombradas
a União e o Direito, e fui pelas estradas
como S. Paulo foi na noute de Damasco,
armado do Rancor, cheio do grande asco
contra os Escribas vãos, os sórdidos judeus,
sem ver fender-se a terra, ou ver-se abrir os céus.
Nós hoje — os infiéis — não cremos nos milagres.
Não me importa que tu, ó Velho, me consagres
o epíteto brutal de herege ou de maldito.
Eu sou o Pranto e o Ódio! Eu sou o Ai e o Grito!
Eu sou a voz da turba estranha e inominada
que uma vez é soluço, outras a gargalhada
que chamam poviléu, a plebe envilecida,
numa era de sangue, uma era fratricida
riscada por um sol velho e sanguinolento.
Eu sou o que Marat chamou o Sofrimento.
Sou o que Ezequiel chamou Rebelião.
Eu sou a voz do Pó, eu sou a voz do Chão.
O que alguns chamam Zero, os outros chamam Charco.
Ando a erguer uma Ponte, e a abrir um grande Arco.
Em nome pois do Povo, o velho e antigo cedro,
sangrento como a cruz, e a quem como S. Pedro
tens renegado sempre, ó sórdido traidor,
em nome da sua ira, e em nome do suor
que ele verte a chorar, na Terra, o chão antigo,
que faz corar a rosa e rebentar o trigo,
em nome dos seus mil cuspidos sacrifícios
do seu Cálix, da Cruz, da Esponja, dos suplícios,
das suas mães sem pão, seus filhos no abandono
como um farrapo velho e como um cão sem dono,
em nome da Miséria, em nome da Inocência
de tudo que há de humano e grita na Consciência,
em nome do Direito, em nome desta Pena,
escuta a minha voz, a voz que te condena
Tu foste noutro tempo um homem justo, um crente,
forte, obscuro, plebeu, filho da santa gente
da plebe que trabalha, e com as mãos possantes
sabe arrancar da terra as eiras e os diamantes,
dessa raça animal dos grandes infelizes
que são na sociedade assim como as raízes
que em quanto estão no chão, na solidão, no escuro,
dando a seiva e o vigor ao tronco bem seguro,
vivendo humildes sempre, obscuras, silenciosas
— estão as folhas no ar, altivas, gloriosas,
olhando para o azul sereno das esferas,
todas cheias de flor nas verdes primaveras,
sendo a glória da leiva, a sombra dos caminhos,
tendo as bênçãos do Sol e os cânticos dos ninhos.
Sim, tu foste um plebeu — da raça antiga e rude,
que trabalha no escuro assim como a Virtude.
Sim, tu foste um plebeu — raça obscura e sem luz,
donde eu também saí, e donde vem Jesus.
Mas tu velho sem fé, mordeste-a como um cão.
Atraiçoas-te-a, sim, e riste como Cam
se riu do velho Pai dormindo num caminho!
Sê maldito como ele, e seja o teu espinho
o teu espinho eterno, o teu atroz tormento,
ouvir-lhe sempre os ais e as maldições no vento!...
Tu tinhas a teu lado outrora os homens fortes
das Alas do Dever, todas as sãs coortes
dos grandes corações, férreos, e verdadeiros,
que trabalham na sombra assim como os mineiros,
a lâmpada na mão augusta da Verdade,
para arrancar do lodo o ouro da Liberdade.
Tu tinhas a teu lado os corações valentes
dos heroicos plebeus, todos fortes e crentes
todos filhos, como eu, da Plebe, nossa mãe!...
Mas tu, Velho sem fé, mas tu plebeu também,
que ambicionavas já as pompas gloriosas,
sentiste o asco e o horror daquelas mãos calosas
que trabalham por nós noutes, dias inteiros,
na oficina, no val’, nas minas, nos outeiros,
e quiseste antes ser hoje o leproso Réu,
de que ser como eu sou — simples, leal plebeu.
Vergonha sobre ti que tanto te abaixaste!...
Vergonha sobre ti, Velho, que profanaste
a fronte d'ancião, a auréola sagrada
que seria por nós mais do que idolatrada,
teus louros de escritor, teu gladio justiceiro,
terrível como Deus, teus louros d'homem puro
para os lançar, ó Velho, ao charco dum monturo!
Vergonha sobre ti e os teus cabelos brancos!
Vergonha sobre ti que como os saltimbancos
foste lançar teu nome ao vento duma feira!
Vergonha sobre ti, que como uma rameira
que vende os seios nus em sórdida estalagem
ao cobre do quartel e ao rir da marinhagem,
em quanto a mãe talvez jaz sobre um catre morta,
e o arcanjo do Pudor geme e soluça à porta,
foste vender a honra ao ouro dum senhor.
Vergonha em teus laureis, e sobre ti traidor
que quiseste antes ser rico, ministro, e nobre,
do que ser um ninguém puro, plebeu, e pobre.
Vergonha sobre os vis apóstatas da Idea
que negam como Pedro o fez depois da ceia
na noute de Sião, o Céu e Deus três vezes!
Vergonha a quem entrega o Povo como as rezes,
que levam a matar, balando, ao matadouro!
Vergonha a quem trocar seu nome pelo ouro,
sua aureola santa e seu brasão de glória
por um título em vida — e um pontapé da História!
Vergonha sob vós apóstatas rafeiros
que vendeis vosso deus pelos trinta dinheiros
por que Judas vendeu esse de Nazareth!
Vergonha sobre vós, apóstatas sem fé
messias sem pudor que andais pelos caminhos
pregando aos corações, embebedando em vinhos
de glória e de ideal, e que depois ao Povo
esse sublime Ancião de peito sempre novo,
o rafeiro infeliz de todos os Tibérios,
açoutado de Deus, dos reis e dos impérios,
mas que sempre enxotado — à chuva, ao vento, em pranto,
leva sempre o seu deus nas dobras do seu manto,
esse banido Ancião de todas as nações
a quem vós atirais à luta e às sedições,
mas que um dia deixais na beira dum caminho,
como um cego sem guia, esquálido, sozinho,
num noturno temporal, a errar de porta em porta,
voltando embalde aos céus sua pupila morta.
Vergonha sobre vós, ó vendilhões do templo!
Vergonha sobre ti, que eu marco, para exemplo
de todos esses vis messias das vielas,
mais vis do que ladrões, mais vis do que as cadelas,
que vão vender aos reis as suas convicções!...
Quis pregá-los na cruz, roxeá-los com vergões
do meu chicote em fogo, irado, justiceiro
para que ao vê-los nus, expostos no madeiro
da abjecção, do desdém, da vaia, da chacota
ao escárnio, ao bofetão, à ponta vil da bota
saiba o Povo afinal que é preciso escarrar
no sacerdote infiel que vende o seu Altar.
II
Tu não sabes que glória é ser panfletário!
É ser o vento rijo, o vento extraordinário
que agita as multidões como um canavial,
contra um farrapo régio, a purpura real
contra os Ritos, os Reis, Símbolos e Tradições.
É ser o que protesta, o que ergue os corações
num arranque de herói, à torre do Direito,
é dar qual pelicano, o sangue do seu peito
á Plebe sua mãe, como ele o dá aos filhos.
É ser o que não és. É não trocar os brilhos
duma libré real, dum servo, dum lacaio,
pelo seu Verbo um gladio, e pela Pena um raio.
É ser o que protesta — o que ergue uma lanterna
na grande escuridão, na escuridão moderna,
contra um rei, um Czar, altivo, omnipotente
a favor do ninguém, da Plebe, do inocente.
É ser ele sozinho o Verbo, o gladio, a pena,
a espada que degola e o grito que condena.
É ser ele sozinho, altivo rebelado,
o grito do mineiro e o espectro do enforcado
que vem correr dum leito o cortinado régio.
É ter esse condão, o enorme privilégio
d'erguendo as mãos ao céu, como sagradas palmas,
fazer gritar a espada e levantar as almas!
É ver-se às vezes só, pobre de terra em terra,
na floresta, no val’, nas rochas ou na serra,
á neve, à chuva, aos soes, nas névoas estrangeiras,
nas selvas tropicais, nas minas, nas geleiras
pela neve polar, no exilio, nas ruinas,
— mas seja na prisão, nos gelos, ou nas minas,
mal soar o seu nome — alevantar-se um peito
e gritar: — Ele é que é a Espada do Direito!
Ser panfletário é — ser um farol na noute
ser a pedra angular, Patíbulo e Açoute.
É ter todo um vulcão em lava no seu crânio,
toda a Plebe agitar, do seu subterrâneo,
como agitou Marat, — ou aguçar a espada
contra os reis, como fez Rousseau na água-furtada.
É estar sempre sozinho, altivo, no seu posto,
quando muitos têm medo, e os mais voltam o rosto
ser chamado um herege — e as pálidas mulheres
quando veem surgir esses estranhos seres
apertarem ao peito as tímidas crianças.
É andar pobre, exausto, humilde como as granças,
errante, só, banido, exausto pela terra,
— mas quer seja na paz, ou quer seja na guerra,
quer nos paços reais, nas praças da Cidade
a sua voz gritar — Alas à Honestidade!
E ser enfim tremendo, austero, altivo, e bom,
frio como é a Lei, frio como Proudhon,
chicotear sem dó os lombos dos Heróis,
vender como Marat, na fome, os seus lençóis,
mas nunca se vender, mas nunca transigir!
É saber odiar, decapitar, punir
e não se rebaixar nunca como um capacho!
É ser a voz de ferro, é ser a voz de baixo,
que aterra a noute vil dum século maldito.
É ser a voz da Plebe, é ser o grande grito
numa era de luto, infame, ensanguentada
em que a Musa do Amor quebra a Lira dourada
e morre como outrora amando o Rafael.
E ter ódio, é ter ira, é ter desprezo e fel
contra uma horda vil de infames sacripantas.
É levantar ao céu livres espadas santas
todos os campeões das Alas do Rancor.
É gritar, é gritar — «Eu sou o Ódio — Amor,
«O Ódio que tem sede, a voz do que tem fome,
«a voz daquele infeliz, a quem não dão um nome
«que morre numa estrada, ou morre numa luta
«sem bênçãos e orações — como uma prostituta.
«Sou a voz do ninguém, a voz do canavial
«que soluça, e não quebra ao rijo temporal,
«sou a voz do que chora, a voz do que suspira,
«o que ergue, alta, na mão a lâmpada da Ira,
«o que chamou a si os tristes, exilados
«sob as tendas de Cam, todos os desgraçados
«que vagueiam na terra exaustos e banidos,
«o que chamou a si todos os oprimidos
«todos que tinham sede assim como Ismael
«e tragavam na treva a sua cinza e fel!
«Eu não sou como vós uma bexiga cheia
«de cólera, de fel, de inveja que guerreia,
«e vem lançar à rua a sua roupa suja!
«Eu não sou como vós um corvo, uma coruja
«que me nutra a cevar nos que se vão ao nada!
«Eu chamei junto a mim toda a alma amargurada,
«tudo que é fraco, chão, vergado de trabalho,
«tudo que empunha a enxada ou que maneja o malho,
«tudo que andam vendendo há muito com as rezes,
«que vivem na abjecção e são chamados fezes
«que chamam poviléu, que chamam a gentalha,
«e gritei-lhes — Avante! É hora da batalha!
Ora este herege pois, ora este panfletário,
que assim sabe escarrar no biltre e no sicário,
este homem do Dever, este homem do Direito,
que em vez duma grã cruz, traz seu Ódio no peito,
que em quanto toda a escória, em toda a redondeza
dobra e curva o joelho aos tronos e à Realeza,
que em quanto tudo quer ser déspota e opulento
ele escolheu ser pobre, o exilio, o isolamento,
que em quanto tudo pensa em Luxo ou nos ruídos,
quis ser a voz de ferro, a voz dos oprimidos,
que em quanto tudo adula e lisonjeia o Forte,
ele defende o fraco, e expõe o peito à Sorte,
quando uns curvam-se ao Tudo, ele defende o Nada,
faz do Direito açoute, e faz da pena espada,
e diz a um rei, um Czar, um déspota potente
— Senhor, vós sois o cedro olímpico, inclemente
o vendaval da Terra, a sombra dos Tibérios,
o furacão da Plebe, o açoute dos impérios,
terror dos generais, dos reis, dos condestáveis.
— Eu sou como Jesus chefe dos miseráveis!...
Depois erguendo ao céu a sua Pena eterna:
— Vós tendes o knut — eu tenho esta lanterna.
Este homem inda que pobre, inda que perseguido,
roto, obscuro, plebeu, humilde, mal vestido,
inda que triste e só no seu isolamento,
ao pé do grande Czar, neste cruel momento,
inda que pobre e vil, inda que maltrapilho
é tanto como um Deus, e mais do que um seu Filho.
Assim foste também, ó Velho solitário!
Assim foste também grande panfletário
que soubeste elevar a eterna Alma do Povo!
Assim foste também quando eras puro e novo
e sabias levar à guerra os corações,
quando eras um açoute e o deus das multidões
que vinham em tropel beijar os teus joelhos!
Mas hoje tu o que és — escoria dentre os velhos
refugo de traidor, ó renegado hostil!
Mas hoje tu o que és, ó lixo impuro e vil!
alma atirada ao estrume, alma aviltada e fraca!...
És o que se vendeu! — Tu és uma cloaca.
III
Ó século de ferro! ó geração escrava!
que ouves Satã ladrar na noute do Evangelho,
no teu solo do Mal, sobre teu solo em lava,
cai a água do céu como num poço velho!
Sim a água do céu que faz viver a flor
mal que no poço cai transforma-se na lama!
Ó século de ferro, ó século de horror,
que fazes tu da Voz, que em teu deserto clama?
Que fazes tu da Voz que ouço passar nos ventos,
pregando a Negação, num fúnebre arrepio,
que ouço clamar na noute em uivos e em lamentos
como um ladrar feroz de ruivo cão sombrio?
Que fazes tu da Voz dos teus profetas santos
que dão prantos de sangue às tuas vexações,
e do carro de fogo arrojam os seus mantos
que arrastam à Revolta o mar das multidões?
Que fazes tu? Tu ris! Tu vais como a rameira
vender teu deus, teu céu, tua honra ao lupanar.
A Justiça tornou-se em velha alcoviteira.
A Egreja ri na orgia, e Cristo deixa o Altar!
O Desespero cru esparge o seu veneno
na taça d'ouro e ônix das jovens ilusões.
O Ódio faz ouvir o seu terrível treno.
O Mal com a tenaz aperta os corações!
A virginal Poesia, a virgem d'alvas vestes
ergue aos céus suas mãos, brancas como o alabastro.
Traz a Lira na mão vestida de ciprestes.
Seu santo coração flameja como um astro!
Só ela faz ouvir num século corrupto
sua Lira de bronze ao temporal da Sorte!
Só ela faz ouvir seu alaúde em luto
que dá notas cruéis de Maldição e Morte.
É só ela que empunha o seu chicote em fogo
como o açoute de ferro indômito de Deus,
para açoutar os reis, o falso demagogo,
os biltres charlatães dos reis e dos plebeus.
É só ela que faz na noute secular,
na sua Lira ouvir — não cânticos d'amor —
mas as notas fatais que entornam o luar
da Ira, do Desdém, do Ódio e do Rancor.
Achegai-vos a mim, tristes, terríveis Liras,
que já tendes chorado e que sabeis rugir.
Quero em cordas de bronze os cânticos das iras!
É preciso açoutar, decapitar, punir!...
Deixa agora o Amor e as brisas da bonança!
Minai-me o Despotismo esse colosso ródio!
Pela noute vibrai as notas da Vingança.
Sobre a Lira cantai os cânticos do Ódio.
Ó poetas do Amor deixai vossos idílios,
os atalhos do bosque e a lua da floresta!
deixai a musa fresca e simples dos Virgílios,
numa era de sangue inóspita e funesta!
deixai de nos cantar o Tedio e o Desengano,
as nuvens da montanha e os sinceirais do val’!
porque o mundo talvez espera o seu Tirano.
A Terra vae parir algum Cristo do mal.
deixai de nos cantar as nuvens da bonança,
e a flor dos laranjais que o vento faz bulir,
por que em breve já vem a hora da matança
em que a Espada tem voz, e as torres vão cair.
Eu também vos cantei, ó cantos langorosos,
ó nuvens da manhã, ó flor da romãzeira,
ó torrentes do val’, ó beijos amorosos
da Mulher que se amou numa visão primeira!
Também já te cantei, estrela do pastor,
ó danças sobre a eira, ó lua das marés.
Mas hoje a minha voz é rouca como a Dor,
terrível como a Espada e o tribunal dos Dez.
Abandonei-te ó Amor! Meu rir fez-se trejeito.
Meu pranto fez-se fel, a voz tornou-se berro.
Foragido dos reis, armado do Direito
faço vibrar na Lira os cânticos de ferro.
IV
Pobre mulher sem pão, quando de porta em porta
tendo batido em vão foste à do lupanar,
e ali deixaste a honra e a virgindade morta,
como noiva infeliz que levam a enterrar!
quando foste bater, chagado coração
ás portas soluçando, e que ninguém te abriu,
e o leito do bordel quais taboas dum caixão
te sepultou em vida, e teu calor cingiu!
quando tendo sonhado um sonho áureo e esplendente,
ilusões duma infanta e os sonhos dum donzel,
viste tudo findar na enxerga repelente
do teu leito de infâmia — o catre do bordel!
Quando tendo elevado ao céu teus magros braços,
como outrora Jesus o fez nas Oliveiras,
só achaste o silencio e o eco dos teus passos,
o riso da caserna e a noute das rameiras!
quando ó loura mulher no berço excomungada
por um Destino férreo, inóspito, infeliz,
por tua própria Mãe talvez abandonada,
pobre flor que hão lançado ao pântano a raiz!
Quando foste forçada às bacanais rasteiras,
e a despir e a manchar as brancas vestes tuas,
e a deixar teu amor na lama das regueiras,
como os sedentos cães que vão beber nas ruas!
Quando ó filha do Povo, ó pobre filha impura,
que uma mãe não beijou, que um Pai não protegeu,
achaste a Fome vil, velha de boca escura,
numa rua infernal, por um chuvoso céu!
quando ó dália da Dor, planta dos atoleiros,
pobre filha do Povo, exausta, quase exangue,
tu vais servir de gaudio à noute dos banqueiros,
sentindo dentro em ti as lágrimas de sangue!
quando ó selvagem flor, ó poça do abandono,
sem lágrimas de Mãe, sem ósculos de irmão,
a Fome te obrigou qual magro cão sem dono
a buscar na valeta o teu imundo pão!
Dize sabias já, rainha da enxurrada,
ave que não tens ninho e que empurrou a Fome
que há entes como tu — raça vil, condenada,
que vendem seu pudor, que vendem o seu nome?
Dize sabias já, loura infeliz sem pão
que um sedutor manchou, ou que uma Mãe vendeu,
que há quem venda a sua honra, a glória, o seu brasão,
sem terem como tu os chascos e o labéu?
Dize sabias já que em quanto vais na praça
entre um círculo vil de chascos quais facadas,
eles vão afrontando a multidão que passa,
em gloriosos trens de portas brasonadas?
Dize sabias já, ó branca meretriz,
que aos homens como cães cedes teu corpo nu,
que há torpes malandrins, glória do seu país,
mais vis do que os ladrões, mais rameiras que tu?
Tu não sabes talvez, ó lama apedrejada,
por toda a rua hostil, por toda a rua séria,
a distância que vae dos outros ao teu nada.
Ó três vezes cruel! três vezes vil Miséria!
Porém eu um rebelde às Praxes como espadas,
entre a mulher sem pão e os pífios canibais,
ó prostitutas vis! cadelas açoutadas!
Ó rameiras da rua! — eu vos respeito mais.
V
Velho, escuta, esta voz. — Eu não sei perdoar:
frio como um Destino eu hei- de te açoutar
até te ver em sangue os lombos aviltados!
No estrume arrastarei teus louros profanados,
que jazerão no esterco infame das vielas,
onde vagam à lua os ébrios e as cadelas.
Marcarei para exemplo, ao mundo o renegado
que depois de haver rido, haver caluniado
uma Esposa, uma Mãe, um Lar, uma rainha,
— no que ela de mais puro e mais sagrado tinha! —
nisso que doe cruel, que mais o peito enluta,
depois de lhe chamar a grande prostituta,
nada achou mais abjeto, e nada achou mais baixo
que ser do filho-rei o humílimo capacho,
nada achou mais servil, para apagar a ofensa,
do que vender a pena e perseguir a Imprensa!
Lodo do Homem vil, ó barro da Paixão,
ó abismo duma alma, ó rei da Criação,
foi Satã que te pôs o diadema escuro!
Pode-se assim sem dó zombar do seu Futuro,
macular para sempre a virginal glória,
cuspir, manchar, poluir as páginas da História,
e envergonhar a campa humilde dos plebeus
que foram os seus pais — e a pobre mãe nos céus,
matar os louros seus — aviltação eterna!
como um ébrio que morre em chão duma taberna?
És tu que fazes isto, ó Alma, ó Alma etérea?
Acaso és tão medonha ó fúnebre Miséria,
acaso és tão infame, ó magra Messalina,
que obrigas uma alma, essa porção divina,
essa faísca eterna, eterna claridade,
a assassinar sem dó a branca virgindade
do seu passado santo e virgem coração,
e arremessá-lo ao mar no fundo dum caixão?
Acaso ó ouro és tu — tu que nos fazes nobre?
É tão terrível ser — puro, plebeu, e pobre, —
é tão torpe, é tão vil, ser simples mas honrado,
que quer o ouro infernal, que quer o férreo fado,
que em certo dia vil — dia vil entre os dias, —
se atire uma risada às santas utopias
ás crenças virginais da loura Mocidade
á aureola ideal daquela santa idade,
e vendam-se os laureis e o Verbo que era o raio,
pela libré dum servo e a farda de um lacaio?
Não! Não tem remissão este teu crime, ó Velho!
Já que tu foste exemplo, e outrora foste espelho,
o teu crime é mais vil, funesto, escandaloso!
Se tu ficas impune, um dia ou outro, um gozo,
faminto como tu, irá lamber o manto
do Símbolo Real, todo orvalhado em pranto,
e de rastos, no chão, beijar o pó do trono.
Por isso vou marcar-te infame cão sem dono,
e fundir-te com chumbo ao corpo essa coleira.
Vais ouvir a Justiça — a augusta, a verdadeira,
a terrível, a eterna, a antiga, a sempre forte,
a que ouve e que vê n'Alma, a que condena à morte,
com seu dedo de luz no livro do Futuro,
a que arroja à geena eterna do monturo,
e que com ferro em brasa escreve os tristes fins
dos juízes Caifás, dos pífios Severins,
e doutros a quem hei-de em breve tomar contas!
Vais ouvir a que pune as lívidas afrontas,
a que gela no lábio as frases começadas,
que há de julgar Thiers de cãs ensanguentadas,
pelas suas cruéis, fatais carnificinas,
a que condena os reis e as tropas assassinas,
a que forma e dirige a Alma Universal.
Entra ó sinistro réu! Abriu-se o tribunal.
A PLEBE (levantando os braços, clamando)
Eis aqui, ó Justiça, ó minha Mãe austera,
tua filha infeliz, que traz preza esta fera,
este sinistro Réu que vês acorrentado!
Ele, o vil me traiu, ele é o celerado
que de mim motejou, como Cham riu do Pai!
Ele era o meu bordão, qualquer soluço ou ai
que abalasse o meu peito, o peito desta escrava,
vinha bater no seu. O monstro não ladrava
como hoje ladra hostil aos meus cabelos brancos!
Ei-lo! ele aqui está! — o rei dos saltimbancos!
A JUSTIÇA
Cala um pouco essa dor. A Plebe grande e rude
deve ser também forte assim como a Virtude.
Nem sempre à pena e à dor o pranto fica bem!
A PLEBE
Deixai-me soluçar. Eu sou a sua Mãe.
JUSTIÇA (surpresa)
Ele é teu filho, ó Plebe?... Oh deve ser suprema
a injuria que te fez, ou o crime que o algema!
De certo foi bem funda extraordinária a ofensa
bem terrível, cruel, ensanguentada, intensa,
bem fundo e horrendo o golpe, infame, excepcional
pois que cita uma Mãe seu filho ao tribunal!
A PLEBE
Bem grande sim que foi! Escuta a minha pena.
Ouve primeiro, ó Mãe! Depois julga e condena.
Eu sou há muito a eterna, a grande foragida
que vou de val’ em val’, de mar em mar, varrida
como a Judeia antiga, a escrava, pela noute,
chorando por seu Deus, sob o romano açoute.
Meus filhos também vão chorando pela estrada.
«Às vezes diz-me um — Ó minha Mãe amada!
«Já temos caminhado em vão de serra em serra.
«Temos os pés em sangue! À guerra, ó Mãe, à guerra!
«Não temos vinho e pão! Não temos o sustento!
«Negam-te em toda a parte o abrigo e o acolhimento!
«Não temos luz e lar. Não temos nem vestidos!
«Não temos ar nem sol! Vem aos montes subidos
«olhar como o sol brilha em rútila grandeza!
«Deus também para nós formou a Natureza.
«Não é só para um rei, um grande, uma rainha
«que a espiga dá seu pão e pâmpanos a vinha!
«Eu já sou forte, ó Mãe, eu tenho as mãos grosseiras
«de pegar numa enxada e de malhar nas eiras,
«eu quero transformar a minha enxada em lança,
«e tornar teu naufrágio, ó Mãe, numa bonança!
Às vezes este filho enérgico, revel,
é um trigueiro aldeão, chama-se Guilherme Tell,
outras com seu olhar veste os simples e os nus
é plebeu e poeta e chama-se Jesus.
Outras é um açoute, um vento rijo e austero,
é um monge brutal e chama-se Lutero.
Mas às vezes também, ó lastima veemente!
fala-me assim, ó Mãe, a boca da serpente
dum filho que eu criei aos peitos vigorosos,
com o sangue de heróis de louros vitoriosos!
Fala-me em nome, sim, da Cólera e da Ira
a boca da Traição, a boca da Mentira,
apontando-me além teu cetro de brilhantes.
Eu levanto-me então assim como os gigantes,
a espada dos heróis empunho sem demora,
e cansada d'andar qual velho boi na nora
da Miséria, da Dor, da Fome, da Abjecção,
prego a santa Revolta à santa Multidão!
Mas então o servil, o imundo renegado,
vende-se a quem me tem o peito ensanguentado
no lodo da abjecção, no pó do aviltamento!
Fico então outra vez no meu isolamento,
na minha escuridão chorosa, amarga, e séria,
outra vez a puxar na nora da Miséria,
outra vez a roer o pão amargo e escuro,
pela fresta espreitando o dia do Futuro.
Foi assim que este fez, o indigno sacripanta.
Foi assim que cuspiu na minha fronte santa.
Foi assim que escarrou nos meus cabelos brancos.
Foi assim que o vilão, chefe dos saltimbancos,
expulsou sua Mãe ao vento da Desgraça.
Foi assim que vendeu a sua Mãe na praça
expulsando-a de casa, em desabrida noute
sob a chuva do céu, sob a ironia, e o açoute.
Tudo isto o ingrato fez pela servil Cobiça.
Justiça contra o vil! — Justiça, ó Mãe, Justiça!
A JUSTIÇA
Miséria, infâmia, e dor! Ó mundanal feitura,
barro do homem vil, indigna criatura
pode-se acaso assim cuspir em sua Mãe!
Pode acaso a Cobiça alucinar alguém
por um pouco de Luxo, um pouco de poeira,
que transforme uma alma ingênua, verdadeira,
um virgem coração, qual pajem branco e louro
que sonha no Ideal em finas torres d'ouro,
a abandonar assim as ilusões de glória,
sua auréola santa, o seu brasão na Historia,
todo o seu Verbo em fogo, assombro da Cidade,
todas as convicções da loura Mocidade,
para atirar tudo isto aos pés da sombra apenas
dum símbolo real eivado de gangrenas,
e depois sem Amor, sem nada que conforta,
a sua velha Mãe lançar fora da porta!
Alguém acaso viu o crime infame, enorme?
A CONSCIÊNCIA HUMANA
Alguém viu, alguém viu! Alguém que nunca dorme,
alguém que sonda o mar e os fundos corações
as insônias dos reis e os sonos dos leões!
Eu o vi, eu o vi, o grande celerado
toda a noute escrever, d'olhar alucinado,
panfletos cruéis na sórdida trapeira.
Eu o ouvi, eu o ouvi chamar uma rameira
e rainha assassina à trágica reinante.
Eu o vi, d'olho aceso, indômito, espumante,
pregar a sedição, direitos, regalias,
e erguer a Plebe-Mãe às santas utopias
que fazem levantar na praça os estandartes!
Eu o vi, eu o vi, queimar os baluartes
do Respeito Real, e as últimas trincheiras,
agachado na treva assim como as toupeiras,
a minar, a minar, as monarquias vãs!
Depois também o vi sobre os reais divãs,
reclinando-se já com um prazer secreto,
contemplando os florões dourados pelo teto,
com um olhar d'abade ou sátiro contente,
exclamar: «Isto é bom!... Sente-se bem a gente
«nestes almofadins, entre estes reposteiros!
«Gosto destes florões, gosto destes archeiros,
«que fazem reluzir as suas alabardas!
«Afinal os plebeus precisam — é d'albardas.
«Que querem eles mais? Comer das ucharias,
«beber como uns toneis, vir às estrebarias,
«e algum dia puxar pelas reais carroças?...
«Eu nunca fui plebeu! Eu sempre tive as bossas
«do mando, do poder, do luxo, da opulência!
«Gosto de ouvir dizer — Saiba Vossa Excelência
«que o espera à mesa já El-Rei, Nosso Senhor!
«Eu levanto-me então. Como e bebo melhor
«que todo um refeitório inteiro de bernardos.
«Não sou como os plebeus que até devoram cardos,
«negro caldo espartano e sórdidas raízes!
«Como melhor que os reis, mais que as imperatrizes!
«Amo o Porto, o Xerez, e os tépidos manjares
«da ucharia dos reis que incensam bem os ares,
«e dilatam-me o ventre ainda mais que a Glória!
A Glória é nome vão! Um fumo só na História!
«Da glória não se vive. A Glória é só quimera.
«El-Rei Ventre é que manda. O ventre não espera.
«Por isso eu tenho um ventre assim como um abade!
«Eu amo a flor da Carne e a loura mocidade,
«as faces de cetim das belas camareiras!
«Eu amo estes divãs, eu amo estas roseiras
«entre plantas ideais, estranhas, fabulosas,
«que me fazem sonhar noutes voluptuosas
«como um luar d'amor entre jasmins do Cabo.
«Ah! como há de ser bom morrer como um nababo,
«apertando entre as mãos as formas femininas,
«rosadas, juvenis, pálidas, alabastrinas,
«duma mulher ideal que nos concede tudo,
«seminua, a sorrir, num leito de veludo!...»
Eu o ouvi, eu o ouvi, fria Justiça austera! —
Aqui tens, ante ti, a encanecida fera,
que tanta vez ladrou contra os brasões reais!
Aqui tens, ó Justiça, a escória dos seus Paes,
a boca da Traição, a boca da Mentira,
a pena tinta em fel que semeou a Ira,
o Desprezo, a Revolta, a Cólera, o Desdém!
Aqui tens quem cuspiu na Plebe sua Mãe.
A JUSTIÇA
Há alguém que defenda o lívido acusado?
Há alguém que erga um braço, um braço imaculado,
que não se tenha nunca achado em morticínios,
um braço reto e bom, puro dos assassínios,
derramados no chão dos campos inda quentes,
que não tenha contra ele a voz dos inocentes,
nem erga contra si a voz dos oprimidos,
há alguém que erga um braço ao céu dos perseguidos,
cheio de convicção ao meu terrível céu?
Há alguém que erga um braço, um braço a pró do Réu?
A ORDEM (erguendo o braço)
Suspende-te, ó Justiça! Eu ergo a ti meu braço!
Este réu que aqui vês não é um vil devasso,
um baixo salteador d'estradas e caminhos!
Eu vou provar que ele é mais puro que os arminhos.
Vou demonstrar que ele é mais santo que as estrelas,
mais alvo e virginal que as onze mil donzelas!
Provarei, ó Justiça, até à saciedade,
que este réu até tem cheiro de santidade!
A Plebe sua mãe é uma velha escrava,
tonta, herege, demente, em cujo sangue há lava
«de guerra e sedição contra as instituições!
«Ela é que faz que El-Rei não durma em seus colchões
«o sono da Inocência o sono bom do Justo,
«e que até, grandes céus! faça o seu quilo a custo!
«Ela é que faz que a Indústria erre paralisada,
«que o Comércio não durma e a Ordem transtornada
«mande aos seus generaes, chefes, ou coronéis,
«que toda a tropa fique em armas nos quarteis.
«Ela é que impede e trava a roda Progresso!
«Que dique lhe hei de opor? — Brado como um possesso:
«Vinde cá John Bull, Ibéria, bons guerreiros,
«fuzilai-me sem dó a horda de desordeiros
«que querem suprimir a gótica realeza!
«Enforcai-me quem cante a indigna Marselhesa,
«e clame mais do que eu as livres crenças suas!
«Encarcerai, prendei quem erga a voz nas ruas,
«ou que ande a passear nas praças sem licença!
«Levantai uma forca enorme para a Imprensa.
«Ordenai, decretai, lavrai prisões secretas.
«Guiai-vos por Platão — lançai fora os poetas
«que são os mais revéis, fatais agitadores.
«Guiai-vos por Platão — Nem sempre cantam flores!
«Também sabem cantar as notas de batalha,
fortes como os clarins, rijas como a metralha,
«e quando a Indignação a sua Musa inspira
«não há bronze que valha o bronze dessa Lira!
«No entanto não pareis! — Nada de transigências!
«Relaxai, corrompei, comprai as consciências,
«tudo que se vender como quem vende um trapo!
«Da Lei faze leilão, e da polícia um sapo.
«E sobre tudo enfim sem tréguas nem piedade
«ponde a saque e a terror as ruas da cidade
«para prender sem dó a infame biltraria,
«dessa cáfila vil da vã demagogia,
«dessa corja da Plebe hostil, extraordinária,
que inda pede mais pão, mais instrução primaria!
Ora tudo isto fez — eu juro-o pelo Céu!
para salvar a pátria este sublime Réu.
Também, Justiça, ouvi neste imortal litigio
que noutro tempo o Réu pôs o barrete frígio.
Oh doudas ilusões da douda Mocidade!
Quem pode erguer seu braço, o braço sem piedade,
contra o triste Ancião cheio de desenganos
que amou, cantou, gemeu na lira dos vinte anos!
Quem pode erguer a voz, férrea como os destinos,
contra quem soluçou ouvindo os Girondinos,
e a sua alma librou nos cantos dos Profetas
nesses cantos de bronzes! — As almas dos Poetas
fazem desabrochar os batalhões da terra!
Na primavera em flor os peitos pedem guerra,
aventuras, amor, cabeças de tiranos!
Mas depois vem a Fome! ah! vem os desenganos,
Miséria, Frio, a Dor, o trágico Abandono,
vem a Insidia, a Calúnia, as tentações do Trono,
vem os dias sem sol, sorrisos, crenças, flores,
vem os filhos sem pão, vão-se indo os desertores
deixando em torno a nós o vácuo e o isolamento!
— Então ao crânio diz a águia do Pensamento:
«Por quem foi que eu lutei? Por quem fui eu um forte,
«e o peito despi nu aos turbilhões da Sorte?
«Por quem quebrei, venci, queimei os baluartes,
desdobrando na praça, à Plebe, os estandartes
«comendo o negro pão nos solos estrangeiros?
«Onde estais, onde estais, meus velhos companheiros,
«com os quais eu clamei no val’ e na montanha,
«cheio d'ânsia, desdém, de ardor, e d'ira estranha,
«pregando o Verbo Novo às multidões sagradas?
«Por quem fiz eu da pena o exemplo das espadas?
Por quem combati eu, rubro, sanguinolento?
Foi por ti Solidão? Por ti Esquecimento?
Por ti Ingratidão? Por ti frio Abandono?
Então naquela noute árida, má, sem sono,
escuta-se uma voz, que vem como a rajada,
no vácuo e solidão da fria água-furtada,
que grita em alta voz — Combateste por mim?
Quem és tu? Quem és tu? Quem é que fala assim?
— Mas fica muda a voz. Cala-se e não responde.
O pensador então vae ver onde se esconde
quem lhe dá um tremor indômito, suspeito,
como nunca sentiu no antro do seu peito.
Quer ver o estranho ser, aquela voz interna.
Mas cheio de terror, à lívida lanterna,
num trágico arrepio, à luz baça e funérea,
— vê sentada em seu lar a fúria da Miséria!
A JUSTIÇA
Ó Ordem acabaste?
A ORDEM
Eu acabei, Justiça!
A JUSTIÇA
Quem é que quer entrar por sua vez na liça,
e à Ordem refutar o que ela diz do Réu?
OS PERSEGUIDOS
Somos nós, somos nós, que as nossas mãos ao céu
erguemos muita vez nos ásperos caminhos?
Somos nós que hemos visto o sangue dos espinhos
do abismo nos caireis, nos trágicos atalhos!
Somos nós, os fiéis, os homens dos trabalhos,
levados através dum turbilhão maldito,
como errou Ismael, como o judeu proscrito
queimado pelo sol vermelho das legendas.
Somos nós, somos nós, que errámos sob as tendas
do excomungado Cam na treva e no abandono,
ao destino, aos vaivéns, qual folha vil do outono
que depois de girar do furacão à toa
vae rebolar do azul no lodo da lagoa.
Somos nós os fiéis que nunca vacilamos,
os brônzeos corações que nunca trepidamos
ante os rostos dos reis e ante as espadas nuas!
Somos nós que ao relento, à chuva, ao gelo, às luas
das solidões austrais, nos cárceres, nas minas,
lavrámos contra os reis, com os punhais, as sinas
sem quebrar os fatais, terríveis juramentos!
Somos nós que hemos visto a Fome, a Sede, e os ventos
do exilio arrebatar os filhos degredados,
as esposas e as mães violadas dos soldados,
nossos pobres irmãos rasgados sob o açoute!
Somos nós, os fiéis, os batalhões da Noute,
que contra o férreo, hostil Destino triunfante,
temos o Ódio-Amor, feito dum só brilhante.
A JUSTIÇA
Agora ergue-te, ó Réu, desse sinistro banco!
Alça a fronte ante mim. Faze teu olhar franco.
Responde justo e bem, sem ira, com clareza.
Manda ao teu coração ditar tua defesa!
E se acaso és um Justo, indigno dessas dores,
ergue-te, ó Réu! Fulmina os teus acusadores!
O RÉU
Eu nunca fui da Plebe! Eu não sou filho dela!
Eu não sei o que ladra a rábida cadela
contra mim amostrando os assassinos dentes!
Não sei quem ela é. Não tenho tais parentes.
Não sei por que me cita a ladra ao tribunal.
Eu jamais perturbei a Ordem social.
Eu jamais sublevei as ondas populares!
Nunca, nunca, ataquei a paz santa dos lares,
e a honra ensanguentei duma leal Rainha!
Não fui eu que arranquei a espada da bainha.
Não fui eu que açoutei as santas dinastias,
ao chicote infernal dos chascos e ironias,
que sibilam no ar qual feixe de serpentes...
Jamais caluniei...
O ESPECTRO (surgindo, terrível)
Mentes, ó Velho! Mentes!
Mentes, velho histrião dum trono gasto e oco!
Mentes homem venal, mentes déspota louco!
Mentes servil plebeu, indigno latrinário!
Tu foste noutro tempo o irado panfletário
de panfletos cruéis na sórdida trapeira!
Não negues que chamaste, outrora, uma rameira
á mãe do teu Senhor, à mãe de El-Rei teu amo!
Não negues que chamaste um bom veado, um gamo
de silvestre armadura, e flórida ramagem
ao Pai do teu Senhor que tem tua homenagem!
Não negues ante mim que sou o teu Espectro
que apedrejaste o trono e enlameaste o ceptro!
Não negues que eu te vi na fria água-furtada
levantando o Direito, ou revoltando a Espada,
tendo aceso no olhar o sol da Indignação!...
Não negues, ó Caim, que assassinaste o irmão.
Não negues ter as mãos daquele sangue quentes
Não negues que nasceste assim como as serpentes,
e como elas rasgaste o ventre a tua Mãe!...
Não negues ser plebeu, não negues com desdém
tua origem plebeia, a tua Mãe escrava,
nem negues, crânio vão, ter tido a santa lava
do Ideal, da Fé, do Justo, e do Direito!
Eu sou o teu Espectro, à mesa, ou no teu leito!...
Eu sou o que te sondo os mais ocultos passos.
Onde quer que tu estás encontras os meus braços!
Onde quer que tu vás — vês o meu duro olhar!
Eu fui teu companheiro. Andei a revoltar,
e a revolver contigo o lodo das paixões!
Sou o cumplice teu nas velhas sedições,
e ambos temos as mãos de sangue maculadas
de ter à nossa voz feito arrancar espadas,
e gotejar na rua o sangue do plebeu!
Aquele sangue grita, ah! contra nós, ao céu!
Aquele sangue brada e clama contra ti!
Vejo sempre esse sangue, eu vejo-o sempre ali,
jorrando aos borbotões, em grandes cachoeiras,
inundando a calçada e a lama das regueiras!
Vejo o sangue fiel dos filhos da gentalha,
rudes heróis plebeus, levados à batalha,
pela luz do teu Verbo, e pela espada nua,
correndo em borbotões nos boqueirões da rua,
despenhando-se ao sol na vasa das valetas!
Desse sangue plebeu rompem vozes secretas,
cobrindo os ais do mundo, os gritos, os lamentos,
como o carro de Deus e os espíritos dos ventos,
gritando contra nós estranhas ameaças!
E o sangue plebeu diz: — Em quanto sobre as praças,
«corria ao rubro só das lutas fratricidas,
«quando a Espada gritava e que ceifava as vidas,
«e abraçados, ao sol, morriam os valentes,
«quando os peitos plebeus e os corações dos crentes
«erguiam para o céu, para o vermelho espaço,
«juntamente ao seu Ódio o vingativo braço,
«mal sabia eu então que tu que me levavas
«à luta, à guerra, ao ideal das gerações escravas,
«me havias renegar, infame! com desdouro,
«e, ai de mim! ai de ti! trair-me pelo ouro!
«Maldição sobre ti, que com as ímpias mãos,
«sujas do sangue quente inda de teus irmãos
«dos guerreiros plebeus, dos corações dos bravos
«que quiseram morrer para não ser escravos,
«que tentando igualar os campeões das lendas
«foram morrer ao sol heroico das contendas,
«ousaste inda pegar na pena então sagrada
«para a entregar ao rei, como vencida espada,
«para escrever servis, ignóbeis sacrilégios,
« — e com elas manchar os reposteiros régios!
«Maldição sobre ti, Velho! que atraiçoaste
«a história dos teus Paes, e sobre mim galgaste
«para chegar do Trono aos trágicos degraus!
«Hás de ouvir minha voz no meio dos saraus,
«no meio das gentis duquesas decotadas
«das camélias da Carne às luzes desbotadas
«quais rosas de Saron aos gélidos luares;
«hás de ouvir minha voz no meio dos jantares
«no fundo do teu sonho, em meio dos festins,
«entre o tinir do copo, os cantos dos cetins,
«nos carros com brasões, de flexíveis molas,
«entre o gemer das flautas e os cantos das violas!
«Hás de ouvir minha voz prenhe de vitupérios
«perseguindo-te até da treva nos mistérios,
«chamando contra ti na voz de teus irmãos,
«quando o teu lábio abjeto oscule as régias mãos,
«e a mão tinta de sangue ensanguentar a Coroa!
«Eu serei, ó traidor, o cancro que te roa
«o dente que te morda, o espinho que te fira,
«o escalpelo que te abra assim como quem vira
«à luz limpa do Sol uma bexiga cheia,
«a lanceta que te abra a mais secreta veia,
«o potro que te dê o mais horrível trato,
«o ferro em brasa, o açoute, o cáustico, o nitrato.
«Nunca te deixarei sem trégua e sem abrigo!...
«Nem nos paços reais, nem mesmo a sós contigo
«nem nos uivos da festa, os hinos do Respeito,
«nem na sombra do sonho e a noute do teu leito
«nem mesmo sobre a terra, inanimado, exangue!
«Há sangue em tuas mãos — em teus vestidos sangue!
«O sangue é que te lança a sua maldição.
O RÉU (caindo no banco, aterrado)
Sempre o Espectro cruel, sempre a eterna visão!
A JUSTIÇA
Condenou-te o teu grito infindo de terror!
Confessaste a Traição! — Traíste-te traidor!
Eis-te aí sobre o banco abjeto, confundido!
De nada te valeu ser cínico e atrevido.
De nada te serviu a tua astucia e arte...
Agora erguei-vos, vós, Justos de toda a parte,
sublimes corações que nunca transigistes!
Agora erguei-vos vós Justos, Fortes, e Tristes,
que tendes amassado o vosso pão com pranto!
Agora erguei-vos vós guerreiros do que é santo
mineiros do que é Vil, pedreiros do que é Forte,
ferreiros que forjais as armas contra a morte,
sobre a brônzea bigorna eterna da Virtude!
Agora erguei-vos, vós, homens do campo rude
que atirais vossa enxada ao solo da Justiça,
erguei-vos todos vós, fortes que andais na liça,
cirurgiões do Bem que hervaes vossa lanceta,
pedreiros que aluis o mundo à picareta,
carpinteiros que andais serrando com a serra,
erguei-vos todos vós, Simples, que fazeis guerra
a toda esta ruina, esta agonia imensa,
e acercai-vos a mim — ouvi minha sentença:
Já que, ó Velho, traíste as convicções primeiras,
e enxotaste uma Mãe assim como as rameiras
da qual se esquece o nome ao limiar da porta,
já que atiraste à vala a tua honra morta,
e atraiçoaste a Plebe a que te trouxe ao peito,
de que hão bebido o leite os homens do Direito;
já que excitaste à guerra e à luta teus irmãos,
e no sangue plebeu tintas ainda as mãos
foste vender-te ao rei a que insultaste a Mãe...
eu lanço-te ao extermínio, à cólera, ao desdém
de todo o homem de bem, de todo o homem honrado!
Toma lá a blusa infame do forçado.
Vou-te marcar na testa um grande R gigante,
feito com minha espada em brasa flamejante,
que a todo o mundo inspire — ódio, nojo e terror.
Vais agora girar nas espirais da Dor,
vais agora girar nas espirais do Inferno,
que o Dante assinalou com seu buril eterno
na viagem que fez à trágica cidade.
Vais agora pisar as ruas da Ansiedade,
subir a vil calçada amarga do Desprezo.
Desde hoje és um forçado, um criminoso, um preso,
que tens com ferro em brasa um R sobre a testa,
cuja vista faz asco e cujo bafo empesta,
— contra o qual, ao passar, todas as mãos honradas
vão arrancar, uivando, as pedras das calçadas!
Como outrora Cain com seu sinal maldito,
tu vais errar na História, ó vil, de sambenito,
metendo assombro e horror a quem te vir passar.
O Espectro é teu algoz — o que há de acompanhar
teus passos junto ao poste, o escuro cadafalso,
curvado, abjeto, vil, a pé, preso, descalço,
cheio de lama, esterco, apupos, irrisões,
entre as vaias da Plebe, escárnios, maldições
de todo um povo hostil que sobre ti escarra.
Ali tendo vestida a sórdida samarra,
tendo na testa o infame e cáustico signal,
— eu condeno o teu nome à pena capital.
(grava-lhe na fronte um R com a espada)
PRIMEIRO PERSEGUIDO (levantando um braço)
Maldito sejas tu — que tens escravizado
aquilo que há de eterno, augusto, de sagrado,
a Alma, o Verbo, a Pena, a Consciência Humana!
Maldito sejas tu, que arguiste uma tirana,
e hás sido, contra nós, tirano inda maior!
Maldito sejas tu, refugo de traidor!
que a nossa execração te siga em toda a parte,
que o Desprezo desdobre em ti seu estandarte,
e te acorrente a Dor qual velho boi na nora,
que o Remorso te pique e fira como a espora,
e a Vingança te siga os passos pelo escuro!...
SEGUNDO PERSEGUIDO
Maldito sejas tu, agora e no Futuro!
Maldito sejas tu nas bagas do teu pranto!
Maldito sejas tu em tudo que for santo,
no fundo do teu copo, à sombra até no estio!...
TERCEIRO PERSEGUIDO
Maldito sejas tu, à chuva, ao vento, ao frio,
no teu caminho escuro e cheio de terrores!
Maldito sejas tu na Primavera em flores,
no entardecer do Outono ou no luar d'inverno!
Maldito sejas tu na Terra ou no Inferno!
Que a execração do mundo ecoe aos teus ouvidos!
Que os abismos da Dor se encham de teus gemidos,
e a Eternidade perca a conta dos teus prantos!...
A PLEBE (lançando-lhe o véu negro dos condenados à morte)
Eu Plebe tua mãe que aos lácteos peitos santos
te alimentei do leite altivo dos heróis,
eu que a fronte te alcei à luz branca dos soes,
e te meti na mão a espada da batalha,
eu lanço-te este véu assim como a mortalha,
último e vil lençol da tua negra glória!
Para sempre terás a maldição da História,
o desprezo do mundo, a execração geral,
e já que me hás negado, ó filho desleal,
e hás seguido o infamante e tenebroso trilho,
eu nego-te também! Tu já não és meu filho!
Já não és meu amor, minha afeição mais terna.
És o que tens meu ódio e excomunhão eterna,
a quem lanço este véu de condenado à morte,
(repelindo-o de si)
Vai, segue para sempre a tua infame sorte!
Vae, segue pelo escuro a tua horrenda estrada!
Que a minha Indignação te fira como a Espada!
Que o meu Rancor se torne em tenebroso muro!...
O ESPECTRO (empurrando o Réu)
A caminho! A caminho! — À Forca do Futuro.
VI
Acabaste d'ouvir a letra da sentença.
Talvez que ó ditador, perseguidor da Imprensa,
te cause pouco abalo esta sentença augusta!
Talvez te cause riso e clames não ser justa
a ira que sacode as cordas duma Lira.
Talvez velho frascário e língua de Mentira
chames ao verso fumo, a tudo vãs ficções!
Não! A Lira é de bronze! As novas gerações
os homens d'amanhã, os próximos vindouros
hão de ver nessa fronte, em vez dos verdes louros,
pela noute da Historia esse R flamejante!
Eles dirão então — Acaso foi o Dante
que te marcou na testa esse sinal soturno!
Quem foi o vingador, o látego noturno
que na fronte te abriu a inicial horrenda?
E tu deves dizer: — Na minha ignóbil senda
não foi o Dante, não, que eu vi cheio de susto!
Não foi tão grande herói, mas foi um homem justo
que não quis em mim só vibrar o açoute amaro!
Como outrora Molière, em seu eterno Avaro,
que gravou com buril um lutulento vicio,
ele quis castigar em mim o vil flagício
desse cancro gentil, moderno, escandaloso,
que faz dum ente humano um cão servil, um gozo,
salafrário venal, baixo arlequim de feira,
rasgando a cada passo a tela da bandeira,
e fugindo a alistar-se em legião contraria;
quis vergastar sem dó a moda latrinária
desse abuso gentil, galante, deletério,
— d'ontem ser contra o Rei — hoje ir ao ministério,
o costume chinfrim, o ignóbil privilégio,
— d'ontem ser petroleiro — hoje um capacho régio!
Um homem nada é. É simples grão d'areia
nos abismos da Vida ou nas regiões da Idea.
Mas o Princípio é tudo! É força alimentar
na Consciência Humana, alerta, sem cessar,
o castigo do Mal, essa noção sagrada,
terrível como a Adão do serafim a espada.
Ah! tu julgas acaso, ó ditador de gesso,
que tu podes travar a roda do Progresso,
encarcerando a Imprensa, à qual tu deves tudo?
Ah! tu crês, num sinal, tornar o Verbo mudo,
e que todo o trabalho excepcional das Raças,
todo o calor do Gênio, as guerras, as desgraças,
industrias, invenções, tudo isto que o Céu cobre,
tudo que Fausto sonha e Galileu descobre,
todas as leis dos soes, Sistemas e Teorias,
— vão findar de repente, às tuas portarias?
Acaso crês que todo o labutar eterno
do Homem sobre o solo, a melhorar o inferno
dos seus instintos vis, das suas privações,
em guerra aberta ao mar, aos ventos, aos vulcões,
ao Infinito, ao Finito, à Besta, às más paixões,
á Terra amarga e dura, à Treva, ao Inconsciente,
todo esse fermentar enérgico, veemente,
toda a rebelião extraordinária, séria,
do Diabo com Deus, da Alma com a Matéria,
toda a guerra feroz, eterna contra o Abuso,
o cismar do que achou, primeiro, o Parafuso,
o cérebro do que achou o Esquadrio e o Camartelo,
o que inventou a Lira e cinzelou o Belo,
o que ergueu sobre a praça o primitivo Arco,
o que acende a Caldeira e o que arrojou o Barco
aos abismos do mar com a primeira Vela,
o que arredonda a Ogiva e rasga uma Janela,
o que inventa o Vapor, esbofeteia a onda,
o que descobre a Roda; o que inventou a Sonda,
o que quis ver os soes e inventa o Telescópio,
o que quis ver o inseto e achou o Microscópio,
o que contorna o acanto em torno ao Capitel,
o que constrói a Estatua, a Válvula, o Cinzel,
a Coluna, o Timão, o Escopro, mais a Serra,
o que forja as cruéis armas brancas da guerra,
Newton que descobriu o gravitar dos astros,
Fídias, ao qual ninguém nunca seguiu os rastros,
Humboldt, o que correu todo o Cosmos inteiro,
Rouget de Lisle o autor do eterno hino guerreiro,
Le Verrier que ao Céu deu mais outro planeta,
Orfeu que fez a Lira e Kempis velho asceta
que em sua cela agita a mística alma humana;
o que descobre o Fogo, o autor do Ramayana,
naquela Índia mãe de gerações guerreiras
onde erram os fakirs à sombra das palmeiras,
nesse Oriente pai dos deuses indistintos
onde Jesus cismou perto dos terebintos;
tu crês que esse animal das primitivas eras
que o Lume descobriu para assustar as feras,
o que fez a primeira e tépida Cabana,
o autor da velha Mó, do engenho, da Roldana,
da primeira Charrua e do primeiro Arado,
Juvenal que varou Roma de lado a lado
com suas corrupções, crimes, e vãos delírios
como a vã liturgia estranha dos Assírios;
Platão que ergueu à Alma um templo todo d'ouro
maior que Nero tinha e que era o seu tesouro;
Dürer esse pintor estranho, misterioso,
que achou no Panteísmo o mais infindo gozo,
e na tela onde pinta as folhas e as verduras,
entre os ramos desenha estranhas criaturas,
como monges fatais minados pela acédia
que dão todo o terror da alma da Idade Média;
Cervantes, o cruel, que faz errar a trote
toda a alma do Sul que encerra em D. Quixote,
enquanto o Fausto sonha em virgens de baladas,
e o abade Rabelais se ri às gargalhadas;
Euclides que decreta as leis da Geometria,
a Caldeia que ao Céu arranca a Astronomia
e em torres colossais, à luz das noutes belas,
traça o grande roteiro eterno das estrelas;
Goethe que se fundiu na alma da Natureza,
que cantou o Diabo e a lenda da Beleza,
a insônia da Ciência, a lâmpada do Estudo;
Goya que fez do mundo um soluçante Entrudo
de mendigos, truões, abades, estudantes;
Rembrandt esse senhor das trevas flamejantes,
Juvenal que escarrou na Vênus Meretriz,
Buda sereno mestre, hindu, grave, feliz,
pregando um culto novo entre o feroz gentio;
o que inventa o Compasso, o Leme do navio,
o que acendeu a Forja, inventa a Picareta,
o que primeiro aguça a ponta da Lanceta,
Vico, o que abre à Ciência enormes horizontes
Cook que encontra céus, reinos, terras e montes,
Dante, o rei do Terror do Inferno nas vertigens,
Lamarck que descobre as animais origens,
Aretino que açouta os reis como lacaios,
Fulton que acha o vapor, Franklin o para-raios,
Camões que salva um livro e a sua eterna glória,
Thierry o que cegou a trabalhar na História,
Espronceda que canta o hino da Miséria,
Bukner[1] o santo ateu da Força e da Matéria,
Moisés que forma um povo, Sócrates, Isaías,
Strauss o que aniquila a lenda do Messias,
Menuisier que sonda o mundo pequenino,
Miguel Ângelo ancião, o Rafael d'Urbino,
Tácito e o seu rancor contra o romano sólio,
Van-Eyck o que descobre e acha a pintura a óleo,,
Kant que abre à Razão uma moderna estrada,
Koerner que faz o hino e o cântico da Espada,
Darwin o que descobre ao mundo absorto e opaco
ser Deus uma teoria e o Homem um macaco;
Krishna o que pregou nas regiões da Ideia
o mesmo que Jesus nos montes da Judeia;
Zoroastro que elevou as almas para o Sol,
Shelley que é um ateu, Petrarca um rouxinol,
Ary Scheffer que pinta a lenda dolorida
do riso do Diabo e a dor de Margarida;
Hegel que assenta a Idea em trono de brilhantes,
Fichte que os homens torna aos deuses semelhantes,
Milton que vê no Céu, Dante que vê no escuro,
Haeckel que vê no mar, S. João sobre o Futuro,
Pascal que estuda a Causa e Cuvier o Efeito,
Voltaire o que assassina em cheio o Preconceito,
Proudhon o que acutila a gorda Ordem nédia,
Werner que deu mais sangue ao peito da Tragédia,
d'Alembert que povoa os mundos estrelados,
Lao-Tseu que canta os cânticos sagrados,
Berlioz que inventou a música do Abismo,
o que achou o Alfabeto e a chave do Algarismo,
o que fez a Atafona, o que inventou o Malho,
toda essa lenda eterna e escura do Trabalho,
todo esse bom clarão que a santa Lira entorna,
todo o fogo da Forja, os urros da Bigorna,
os silvos da Caldeira, a Roda do Progresso
crês que isto — ao gesto teu — ameaça retrocesso,
e tudo volta atrás, cheio d'horror e medo
do dedo indicador do general Macedo,
ou então dos dragões dos régios pergaminhos:
— Hintze, o que não ri, e o Arrobas três pontinhos...?
Desilude-te, ó Velho! O mundo não recua.
A História há de varrer teu nome para a rua,
como uma velha o lixo imundo na calçada.
Tu é que morrerás, tu, ó bexiga inchada
de cólera, de fel, d'orgulho, de vaidade,
que eu despejei na rua, à luz da Sociedade,
como quem lança o lixo ao pátio dum saguão.
Desengana-te ó Velho. Os reis em breve irão
curvados e servis, quais rotos saltimbancos,
mostrar de feira em feira os seus cabelos brancos,
agitando a maroma em vez do régio cetro.
E tu ó Velho irás também com teu Espectro
nesse caminho inglório e trágico também,
que se chama o Abandono, o cáustico Desdém,
de tudo isto que forma a Opinião Geral.
Mas o mundo, esse não! No giro universal
que traça em torno ao Sol com as demais esferas,
verá encanecer as legiões das Eras,
antes que role e volva às regiões do Abismo.
Procura sempre a Luz. Eterno magnetismo
o atrai sem cessar àquela claridade,
como procura a Alma a luz só da Verdade,
e na ordem moral, como umas verdes palmas,
estendem sempre as mãos as suplicantes Almas
pedindo em coro ao céu — mais luz, inda mais luz!...
Agora, ó Velho, enfim que te cravei na cruz
da Ira e do Sarcasmo e te preguei os braços
no lenho do Desprezo em meio dos devassos,
tu podes continuar a tua errônea senda!
Segue o exemplo dos reis — manda-nos pôr à venda.
Torna mais dura e amarga a lenda da Miséria.
Faze contratos vis para formar a Ibéria
debaixo de dous reis, num suculento almoço.
Arroja o teu pudor, se acaso resta, a um poço.
Lança o resto da honra ao nada da voragem.
Erige a Força em Lei, e a Ordem em carnagem.
Manda erguer uma forca e um poste a cada esquina.
Faze armar para o Povo o aço da Guilhotina.
Manda falar, rugir, as bocas dos canhões.
Atulha, a abarrotar, os ventres das prisões.
Dá que comer à Vala e à boca da Enxovia.
Senta a fome no Lar, o luto na Alegria.
Torna inda mais cruéis os ais que nos consomem.
Mas treme do Futuro! — Ouviste a voz dum homem.
FIM
NOTA
À hora de se imprimir a última folha desta publicação o velho presidente do ministério, o homem de quem aqui nos ocupamos, renegado das suas convicções doutrora, o perseguidor da imprensa, pela qual se elevou, de que é decano e presidente honorário pediu a sua demissão, não tendo o pejo de recuar perante o parlamento, ao qual teria que dar contas. Mas nem por isso a sua responsabilidade fica menos grave, nem menos atenuada. A sua sentença já lhe foi lavrada pela Opinião Pública, e na História, aonde o seu nome fica lutuosamente escrito. O homem que escreveu que antes queria imprensa anárquica que imprensa perseguida, e é depois de Costa Cabral, (tão incisivamente atacado por ele,) o único que se atreveu a reviver as perseguições e as vindictas, fica vergonhosamente vinculado, — e tanto mais vergonhosamente que foi e é um jornalista!...
Contudo por ele fugir perante o Parlamento, nem por isso se deve eximir ao castigo. É preciso que a responsabilidade ministerial não seja uma vã palavra. Se não existe a responsabilidade regia, se não existe de facto a responsabilidade ministerial, é força que estes senhores o confessem francamente: — a Constituição é uma farsa! Se ainda persistem em proclamar que o não é, façam que sejam julgados os seus ministros demitidos! Nós pedimos que eles se sentem nos bancos dos réus. O povo que o peça também conosco, os nossos tribunos que o peçam nos comícios, toda a imprensa da oposição que brade para que os julgamentos dos tribunais não sejam apenas para os adversários ou para os miseráveis e gatunos: mas que sejam também para os grandes salafrários constitucionais.
O autor destas linhas pede também o seu julgamento. há já tempo que têm capciosamente sobre ele um processo em aberto, como a espada de Dâmocles, que o priva dos seus direitos civis e políticos, e o impede de ser eleito pelo povo para alguma missão de confiança popular. É um excelente e pérfido meio constitucional para afastar um adversário! — mas muito conhecido nos arsenais políticos. É uma espada velha e enferrujada do tempo de Carlos Magno, mas que ainda dá bons botes!
No entanto o julgamento, dos ministros demitidos não se fará: — pelo menos no tempo da Monarquia. Ao inverso do ministério Saint-Hilaire, que não fugiu à responsabilidade em face do Parlamento francês, o governo português demitido não se peja de fugir a ela. São de tal forma as engrenagens do sistema constitucional que as maiores arbitrariedades se cometem e se perpetram, ficando na impunidade, na sombra do esquecimento, ou na velha alcofa dessa trapeira que se chama Política. Falamos da política monárquica. Mas é força que as cousas não continuem no mesmo pé! É preciso que à mingua da Lei jurídica, se erga a Lei da Consciência Humana! Que a cada atentado corresponda um castigo, que a cada perversidade corresponda um ferro em brasa, que a cada abominação corresponda uma guilhotina moral! A espada dessa lei moral devem vibrá-la a Opinião Pública a História, o jornalismo, os poetas, os homens justos, os homens de consciência lavada. Que todos eles repilam de si estes forasteiros, esses safardanas pulhas que especulam há 50 anos com a Constituição, como especularam com as bulas, no tempo de Leão X, e com água de Lourdes no tempo de Pio IX. Que eles fiquem certos que os seus crimes não esquecem! Que eles fiquem cientes que as suas arbitrariedades não ficarão na sombra! há quem vela, e quem registra. É a História. há quem se indigna e quem decapita. É a Poesia.
É para isso que se escreveu este panfleto.
[1] Trata-se do filósofo e cientista alemão Ludwig Büchner.