Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

BIBLIOTECA DIGITAL do NuPILL

A cena do ódio, de Almada Negreiros


Edição de referência:

NEGREIROS, Almada. “A cena do ódio”. Lisboa, Portugal:

Contemporânea — Grande revista mensal. 1923.

Separata d'A CONTEMPORANEA 7

A SCENA DO ODIO

POR

José d'Almada-Negreiros

POETA SENSACIONISTA

E NARCISO DO EGYPTO

1915

Collaboração inédita d'ORPHEU N.o 3

À ÁLVARO DE CAMPOS

Excertos de um poema desbaratado que foi escrito durante os três dias e as três noites que durou a revolução de 14 de maio de 1915.

Satanizo-Me Tara na Vara de Moisés!

O castigo das serpentes é-Me riso nos dentes,

Inferno a arder o Meu cantar!

Sou Vermelho-Niagara dos sexos escancarados nos chicotes dos cossacos!

Sou Pan-Demônio-Trifauce enfermiço de Gula!

Sou Gênio de Zaratustra em Taças de Maré-Alta!

Sou Raiva de Medusa e Danação do Sol!

Ladram-Me a Vida por vivê-La

e só me deram Uma!

Hão-de lati-La por sina!

agora quero vivê-La!

Hei-de Poeta cantá-La em Gala sonora e dina!

Hei-de Glória desanuviá-La!

Hei-de Guindaste içá-La Esfinge

da Vala comum onde Me querem rir!

Hei-de trovão-clarim levá-La Luz

às Almas-Noites do Jardim das Lágrimas!

Hei-de bombo rufá-La pompa de Pompeia

nos Funerais de Mim!

Hei-de Alfange-Mahoma

cantar Sodoma na Voz de Nero!

Hei-de ser Fuas sem Virgem do Milagre,

hei-de ser galope opiado e doido, opiado e doido…,

hei-de ser Átila, hei-de Nero, hei-de Eu,

cantar Átila, cantar Nero, cantar Eu!

Sou trono de Abandono, malfadado,

nas iras dos bárbaros, meus Avós.

Oiço ainda da Berlinda d'Eu ser sina

gemidos vencidos de fracos,

ruídos famintos de saque,

ais distantes de Maldição eterna em Voz antiga!

Sou ruínas rasas, inocentes

como as asas de rapinas afogadas.

Sou relíquias de mártires impotentes

sequestradas em antros do Vício e da Virtude.

Sou clausura de Santa professa,

Mãe exilada do Mal,

Hóstia d'Angústia no Claustro,

freira demente e donzela,

virtude sozinha da cela

em penitência do sexo!

Sou rasto espezinhado d'Invasores

que cruzaram o meu sangue, desvirgando-o.

Sou a Raiva atávica dos Távoras,

o sangue bastardo de Nero,

o ódio do último instante

do condenado inocente!

A podenga do Limbo mordeu raivosa

as pernas nuas da minh'Alma sem batismo…

Ah! que eu sinto, claramente, que nasci

de uma praga de ciúmes!

Eu sou as sete pragas sobre o Nilo

e a Alma dos Bórgias a penar!

E eu vivo aqui desterrado e Jó

da Vida-gêmea d'Eu ser feliz!

E eu vivo aqui sepultado vivo

na Verdade de nunca ser Eu!

Sou apenas o Mendigo de Mim-Próprio,

órfão da Virgem do meu sentir.

(Pesam quilos no Meu querer

as salas-de-espera de Mim.

Tu chegas sempre primeiro…

Eu volto sempre amanhã…

Agora vou esperar que morras.

Mas tu és tantos que não morres…

Vou deixar d'esp'rar que morras

— Vou deixar d'esp'rar por Mim?!…)

Ah! que eu sinto, claramente, que nasci

de uma praga de ciúmes!

Eu sou as sete pragas sobre o Nilo

e a Alma dos Bórgias a penar!

Hei-de, entretanto, gastar a garganta

a insultar-te, ó besta!

Hei-de morder-te a ponta do rabo

e pôr-te as mãos no chão, no seu lugar!

Ai! Saltimbanco-bando de bandoleiros nefastos!

Quadrilheiros contrabandistas da Imbecilidade!

Ai! Espelho-aleijão do Sentimento,

macaco-intruja do Alma-realejo!

Ai! maquerelo da Ignorância!

Silenceur do Gênio-Tempestade!

Spleen da Indigestão!

Ai! meia-tigela, travão das Ascensões!

Ai! povo judeu dos Cristos mais que Cristo!

Ó burguesia! ó ideal com i pequeno!

Ó ideal rococó dos Mendes e Possidônios!

Ó cofre d'indigentes

cuja personalidade é a moral de todos!

Ó geral da mediocridade!

Ó claque ignóbil do vulgar, protagonista do normal!

Ó catitismo das lindezas d'estalo!

Ai! lucro do fácil,

cartilha-cabotina dos limitados, dos restringidos!

Ai! dique empecilho do Canal da Luz!

Ó coito d'impotentes

a corar ao sol no riacho da Estupidez!

Ai! Zero-barômetro da Convicção!

bitola dos chega, dos basta; dos não quero mais!

Ai! plebeísmo aristocratizado no preço do panamá!

erudição de calça de xadrez!

competência de relógio d'oiro

e corrente com suores do Brasil

e berloques de cornos de búfalo!

Zut! bruto-parvo-nada

que Me roubaste tudo:

'té Me roubaste a Vida

e não Me deixaste nada!

nem Me deixaste a Morte!

Zut! poeira-pingo-micróbio

que gemes pequeníssimo gemidos gigantes,

grávido de uma dor profeta colossal!

Zut! elefante-berloque parasita do não presta!

Zut! bugiganga-celuloide-bagatela!

Zut! besta!

Zut! bácoro!!

Zut! merda!!!

E tu, também, vieille-roche, castelo medieval

fechado por dentro das tuas ruínas!

Fiel epitáfio das crônicas aduladoras!

E tu também, ó sangue azul antigo

que já nasceste co'a biografia feita!

Ó pajem loiro das cortesias-avozinhas!

Ó pergaminho amarelo-múmia

das grandes galas brancas das paradas

e das vitórias dos torneios-loterias

com donzelas-glórias!

Ó resto de cetros, fumo de cinzas!

Ó lavas frias do vulcão pirotécnico

com chuvas d'oiros e cabeleiras prateadas!

Ó estilhaços heráldicos de vitrais

despegados lentamente sobre o tanque do silêncio!

Ó cedro secular

debruçado no muro da Quinta sobre a estrada

a estorvar o caminho da Mala-posta!

E vós também, ó Gentes de Pensamento,

ó Personalidades, ó Homens!

Artistas de todas as partes, cristãos sem pátria,

Cristos vencidos por serem só Um!

E vós, ó Gênios da Expressão,

e vós também, ó Gênios sem Voz!

Ó além-infinito sem regressos, sem nostalgias,

Espectadores gratuitos do Drama-Imenso de Vós-Mesmos!

Profetas clandestinos

do Naufrágio de Vossos Destinos!

E vos também, teóricos-irmãos-gêmeos

do meu sentir internacional!

Ó escravos da Independência!

E tu também, Beleza Canalha

co'a sensibilidade manchada de vinho!

Ó lírio bravo da Floresta-Ardida

à meia-porta da tua Miséria!

Ó Fado da Má-Sina

com ilustrações a giz

e letra da Maldição!

Ó fera vadia das vielas açaimada na Lei!

Ó xale e lenço a resguardar a tísica!

Ó franzinas do fanico

co'a sífilis ao colo por essas esquinas!

Ó nu d'aluguer

na meia-luz dos cortinados corridos!

Ó oratório da meretriz a mendigar gorjetas

p’ra sua Senhora da Boa-Sorte!

Ó gentes tatuadas do calão!

Ó carro vendado da Penitenciária!

E tu também, ó Humilde, ó Simples!

enjaulados na vossa Ignorância!

Ó pé descalço a calejar o cérebro!

Ó músculos da saúde de ter fechada a casa de pensar!

Ó alguidar de açorda fria

na ceia-fadiga da dor-candeia!

Ó esteiras duras p’ra dormir e fazer filhos!

Ó carretas da Voz do Operário

com gente de preto a pé e filarmônica atrás!

Ó campas rasas engrinaldadas,

com chapões de ferro e balões de vidro!

Ó bota rota de mendigo abandonada no pó do caminho!

Ó metamorfose-selvagem das feras da cidade!

Ó geração de bons ladrões crucificados na Estupidez!

Ó sanfona-saloia do fandango dos campinos!

Ó pampilho das Lezírias inundadas de Cidade!

E vós varinas que sabeis a sal

e que trazeis o Mar no vosso avental!

E vós também, ó moças da Província

que trazeis o verde dos campos

no vermelho das faces pintadas.

E tu também ó mau gosto

co'a saia de baixo a ver-se

e a falta d'educação!

Ó oiro de pechisbeque (esperteza dos ciganos)

a luzir no vermelho verdadeiro da blusa de chita!

Ó tedio do domingo com botas novas

e música n'Avenida!

Ó santa Virgindade

a garantir a falta de lindeza!

Ó bilhete postal ilustrado

com aparições de beijos ao lado!

Ó Arsenal-fadista de ganga azul e coco socialista!

Ó saídas pôr-do-sol das Fabricas d'Agonia!

E vós também, nojentos da Política

que explorais eleitos o Patriotismo!

Maquereaux da Pátria que vos pariu…

E vós também, pindéricos jornalistas

que fazeis cócegas e outras coisas

à opinião pública!

E tu também, roberto fardado:

Futrica-te espantalho engalonado,

apeia-te das patas de barro,

larga a espada de matar

e põe o penacho no rabo!

Ralha-te mercenário, asceta da Crueldade!

Espuma-te no chumbo da tua Valentia!

Agoniza-te Rilhafoles armado!

Desuniversidadiza-te da doutorança da chacina,

da ciência da matança!

Groom fardado da Negra,

pária da Velha!

Encaveira-te nas esporas luzidias de seres fera!

Despe-te da farda,

desenfia-te da Impostura, e põe te nu, ao léu

que ficas desempregado!

Acouraça-te de Senso,

vomita de vez o morticínio,

enche o pote de raciocínio,

aprende a ler corações,

que há muito mais que fazer

do que fazer revoluções!

Rebusca no seres selvagem,

no teu cofre do extermínio

o teu calibre máximo!

acaba de vez com este planeta,

faze-te Deus do Mundo em dar-lhe fim!

(Há tanta coisa que fazer, Meu Deus!

e esta gente distraída em guerras!)

Olha os que não são nada por te cantarem a ti!

tantos mundos!

tantos gênios

que não fizeram nada,

que deixaram este mundo tal qual!

Olha os grandes o que são, estragados por ti!

E de que serve o livro e a ciência

se a experiência da vida

é que faz compreender a ciência e o livro?

Antes não ter ciências!

Antes não ter livros!

Larga a cidade masturbadora, febril,

rabo decepado de lagartixa,

labirinto cego de toupeiras,

raça de ignóbeis míopes, tísicos, tarados,

anêmicos, cancerosos e arseniados!

Larga a cidade!

Larga a infâmia das ruas e dos boulevards,

esse vai-vém cínico de bandidos mudos,

esse mexer esponjoso de carne viva,

esse ser-lesma nojento e macabro,

esses zig-zag de chicote auto-fustigante,

esse ar expirado e espiritista,

esse Inferno de Dante por cantar,

esse ruído de sol prostituído, impotente e velho,

esse silencio pneumônico

de lua enxovalhada sem vir a lavadeira!

Larga a cidade e foge!

Larga a cidade!

Mas larga tudo primeiro, ouviste?

Larga tudo!

—Os outros, os sentimentos, os instintos,

e larga-te a ti também, a ti principalmente!

Larga tudo e vai para o campo

e larga o campo também!

—Põe-te a nascer outra vez!

Não queiras ter pai nem mãe,

não queiras ter outros, nem Inteligência!

E já houve Inteligência a mais: pode parar por aqui!

Depois põe-te a viver sem cabeça,

vê só o que os olhos virem,

cheira os cheiros da Terra,

come o que a Terra der,

bebe dos rios e dos mares,

—põe-te na Natureza!

Mas tu nem vives, nem deixas viver os mais,

Crápula do Egoísmo, cartola d'espanta-pardais!

Mas hás-de pagar-Me a febre-rodopio

novelo emaranhado da minha dor!

Mas hás-de pagar-Me a febre-calafrio

abismo descida de Eu não querer descer!

Hás-de pagar-Me o Absinto e a Morfina!

Hei-de ser cigana da tua sina!

Hei-de ser a bruxa do teu remorso!

Hei-de desforra-dor cantar-te a buena-dicha

em águas-fortes de Goya

e no cavalo de Troia

e nos poemas de Poe!

Hei-de feiticeira a galope na vassoira

largar-te os meus lagartos e a Peçonha!

Hei-de vara mágica encantar-te arte de ganir!

Hei-de reconstruir em ti a escravatura negra!

Hei-de despir-te a pele a pouco e pouco

e depois na carne viva deitar fel,

e depois na carne viva semear vidros,

semear gumes,

lumes,

e tiros!

Hei-de gozar em ti as poses diabólicas

dos teatrais venenos trágicos da persa Zoroastro!

Hei-de rasgar-te as v’rilhas com forquilhas e croques,

e desfraldar-te nas canelas mirradas

o negro pendão dos piratas!

Hei-de corvo marinho beber-te os olhos vesgos!

Hei-de boia do Destino ser em brasa

e tu náufrago das galés sem horizontes verdes!

Ah que eu sinto claramente que nasci

de uma praga de ciúmes!

Eu sou as sete pragas sobre o Nilo

e a alma dos Bórgias a penar!