Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Maurício, ou Os paulistas em S. João d’El-Rei, de Bernardo Guimarães


Edição de referência:

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A MINA MISTERIOSA

CAPÍTULO I

S. João d’ El-Rei

É bem linda a cidade de S. João d’ El-Rei, -Essa formosa odalisca, que abre as portas das magníficas regiões do Sul de Minas.

Se a não conheces, leitor, pergunta àqueles que a têm visitado, se não ficaram encantados com aquele aspecto faceiro e risonho, que sempre a reveste, e que dá-lhe a aparência de noiva gentil, que traz sempre na fronte a grinalda da festa nupcial, e nos lábios o sorriso da alegria e do amor.

Reclinada pela falda de um serrote de pouca elevação, chamada a Serra do Lenheiro, cujo dorso denegrido, árido e esburacado contrasta singularmente com a perspectiva risonha e vicejante da planície, parece travessa e risonha pastorinha, que, pousada sobre a pelúcia verde dos prados, com os braços abertos e o sorriso nos lábios, como que está dizendo ao viandante fatigado:

-Vem a meu seio gozar do repouso e do prazer.

O ambiente tépido e voluptuoso, que a envolve, agitado de brandas virações, a bafeja constantemente com os aromas da flor de laranjeira, da rosa, do jasmim, do jambo, da manjerona e das fragrâncias que se exalam de seus inúmeros jardins e pomares.

Esses pomares e jardins, que se entreveram com as casas como arabescos de esmeralda, estão sempre toucados de flores e frutos, porque ali só se conhecem duas estações -a primavera e outono, -que ali reinam todo o ano conjuntamente na mais perfeita e inalterável harmonia.

É a terra dos frutos e das flores, dos perfumes e das canções, dos risos e das festas, da beleza e do amor. É a Nápoles de Minas.

Um ribeiro, que desce das vizinhas serras e que atravessa pelo meio passando por baixo de duas lindas pontes de pedra, a embala com seus murmúrios.

Mas infelizmente não se poderia dizer, sem faltar à verdade, que ela banha os pés e mira-se orgulhosa no espelho transparente dessas águas.

As águas turvas desse ribeiro, que desce da Serra do Lenheiro coberta de uma argila negra revolvida pelos trabalhos de mineração, formam um espelho por demais embaçado, e só servem para enxovalhar de lama negra os mimosos pés da formosa odalisca do Sul de Minas.

Todavia tal senão nem por isso desfigura muito a linda cidade. Para disfarçá-lo, os habitantes têm guarnecido parte das margens de um belo cais sobrepujado de arcadas, trabalho que a ser continuado em ambas as margens muito realçará o aspecto interior da feiticeira cidade.

Deitada ao longo da falda da serra amparam-lhe brandamente a cabeça, pelo lado do sul, verdes e boleadas[1] colinas, enquanto os pés estiram-se espreguiçando pela planura, formando o pitoresco arrabalde de Matosinho, cujas casas alvejam afofadas em ondas dos mais frondentes e viçosos pomares.

Seguem-se a norte e a leste as extensas lizerias[2], no fundo das quais rola as ondas rápidas o caudaloso Rio das Mortes, que em distância de cerca de meia légua se encurva em torno da cidade como serpente colossal posta em guarda aos pés do escabelo, em que repousa a fada mimosa dos países do ouro e do diamante.

Tudo nessa linda cidadezinha hoje parece respirar paz e alegria, prazeres e amor. Entretanto, em eras mais remotas por aí restrugiram ecos de morte e de vingança. Essa terra hoje tão risonha e tranqüila já foi teatro do embate e desafogo de ferozes e sanguinárias paixões; já fumegou o sangue de espantosas carnificinas por aí, aonde agora só respiram auras embalsamadas dos perfumes dos laranjais, das mangueiras e dos jambeiros em flor.

Como se sabe, à heróica e nobre cidade de Amador Bueno, à terra dos Tibiriçás, cabe principalmente a glória de ter devassado, explorado, e em grande parte povoado as montanhosas e auríferas regiões do centro de Minas. Ao passo que pelo lado de leste aventureiros portugueses se entranhavam pelos sertões e descobriam os terrenos diamantinos das margens do Jequitinhonha e Abaeté, e penetravam mesmo até o Ouro Preto, os bravos e infatigáveis conterrâneos de Amador pelo lado do sul faziam as mesmas tentativas, organizando expedições, a que chamavam bandeiras. Estas expedições tinham duplo fim, que eram por sua natureza conexos, a descoberta de novas regiões, principalmente de terrenos auríferos, e a submissão das tribos indígenas.

É admirável e quase inconcebível a audácia, a perseverança e a incansável atividade daqueles inquietos aventureiros, que através de mil perigos e fadigas insanas exploram e atravessam em todos os sentidos, durante quase um século, toda a vasta extensão da América portuguesa, nem sempre bem sucedidos, porém por vezes levando a cabo as mais incríveis e arrojadas empresas.

Uns arrojam-se através da província de Goiás e, varando inóspitos e medonhos desertos, vão submeter as tribos selvagens das margens do Tocantins e travam luta com o governador do Pará, que lhes queria tolher o passo.

Outros entregam-se às águas do Paraná em troncos desmesurados transformados em canoas e, subindo pelos afluentes do grande rio, penetram no coração do Mato Grosso, onde descobrem novas riquezas minerais e lançam os alicerces de futuras povoações.

Outros ainda mais audaciosos penetram nos domínios espanhóis, descem às reduções do Paraguai e delas expelem os jesuítas, que pretendiam suprimir o tráfico de escravos indígenas, com que aqueles aventureiros tanto se enriqueciam.

Enfim não há província nenhuma do interior, que não guarde as pegadas ainda mal apagadas daqueles audaciosos exploradores e, não conserve em suas tradições uma vaga lembrança de seus hercúleos cometimentos.

Hoje mesmo, quem viaja por esses sertões do interior ainda tão broncos e inóspitos fica pasmo imaginando as dificuldades imensas que naquela época esses homens teriam a vencer, os azares e perigos de toda a sorte, que a cada momento teriam de afrontar.

Mas esse núcleo de homens valentes e resolutos, que ocupava o vale de Piratininga, forte pela atividade e pujança de ânimo, era fraco pelo número para tão vastas empresas e, não podendo manter-se por muito tempo na larga extensão dos países que exploravam, deviam confinar-se nos limites de sua capitania, que já por si só oferecia espaço imenso e alimento ilimitado à sua atividade e ambição.

A história dos primeiros tempos coloniais, incompleta e cheia de lacunas, bem pouco nos satisfaz no que diz a respeito das primeiras explorações e descobertas.

Não ficou vestígio, nem documento algum de muitas coisas, que se passaram nessa época de atividade e agitação febril, desse viver inquieto e aventuroso dos primeiros íncolas do Brasil, abrasados na sede do ouro e, procurando-o por toda a parte da América com o mesmo açodamento com que o povo hebreu morrendo à sede, procurava uma gota de água pelos tórridos areais do país de Horeb. Pouco se sabe das contínuas lutas travadas já entre si mesmos, já com os filhos da metrópole, já com as hordas indígenas, as feras e a natureza selvática da terra americana.

A sombra e o silêncio das florestas adormeceram para sempre em seu seio o eco de muitos combates mortíferos; a terra bebeu muito sangue, que não transuda mais, e pulverizou muita ossada de vítimas de horrorosas carnificinas.

O cronista das eras, que foram, mal pode colher aqui e ali nos lábios dos velhos ou de algumas escassas notícias escritas uma lenda obscura, um conto mutilado, em que todavia sempre ressumbra um pouco de espírito daqueles homens tão singulares, daquela época tão curiosa.

S. João d’ El Rei, como todos os terrenos auríferos do centro de Minas, deve sua descoberta e exploração aos paulistas. Por sua posição geográfica, servindo como de porta ao sul às regiões auríferas, devia ser uma das primeiras, senão a primeira, com que depararam aqueles denodados aventureiros em sua marcha de sul para norte.

Ali foi o principal teatro do antagonismo violento, da luta enraivada, que nos primeiros anos do século passado se travou entre paulistas e forasteiros, luta que terminou pelo horroroso e traiçoeiro morticínio dos paulistas, ordenado por Bento do Amaral Coutinho, agente do famoso e opulento português Manuel Nunes Viana.

Esse atentado tão tristemente célebre, que deu ao rio, que passa por perto de S. João, o sinistro nome de Rio das Mortes, teve lugar em Janeiro de 1709. As rixas, porém, e desavenças, que por vezes se tornaram lutas sanguinosas, já vinham desde o ano de 1700, em que Artur de Sá de Menezes, nomeado governador da Capitania, chegou às Minas, trazendo consigo bandos de aventureiros da metrópole e de diferentes capitanias.

Este fato excitou o ciúme dos paulistas, que, na qualidade de primeiros descobridores das minas, se consideravam como tendo direito exclusivo de explorá-las, e começaram a votar ódio mortal àqueles aventureiros, que pretendiam usurpar seus tesouros, e, principalmente aos portugueses, que apelidavam emboabas.

É nessa época, -dois anos pouco mais ou menos antes da terrível carnificina, -que se passam os fatos, cuja narrativa agora empreendemos.


CAPÍTULO II

Os mineiros

A nascente povoação das eras remotas, a que nos reportamos, estava ainda mui longe de ser S. João de hoje. Naquele tosco e selvático embrião ninguém poderia ainda adivinhar a risonha e faceira cidade dos nossos dias.

O vale, por onde passa o ribeiro e onde se acha assentada a parte principal da cidade, tinha o aspecto de uma roça derribada de fresco, e ao longo das margens se viam dispersas as pequenas arranchações dos faiscadores, -esses respingadores das minas, -que com suas bateias apuravam a beira do córrego as fagulhas de ouro, que escapavam às lavras dos opulentos mineiros.

Pela encosta das colinas viam-se disseminadas algumas casas de melhor aparência e outras ainda em construção.

O trabalho ativo e incessante transformava de dia em dia o aspecto selvático daquele solo virgem. Aqui retinia a alavanca e o almocafre[3] do mineiro em socavões profundos, ou em lavras de talha aberta. Ali troava compassado sobre a bigorna o martelo do ferreiro. Além gemiam grossas madeiras aos golpes do ferro do carpinteiro. Mais longe o machado do derrubador abatia uma floresta para dar lugar a plantações, fábricas e engenhos.

As ruínas da natureza bruta, -troncos prostrados, rochedos aluídos, terras retalhadas, cômoros desmontados, -avultavam ainda sobre as obras e construções da indústria humana.

Era a luta gigantesca, que então começava a se travar ali, como em toda a face da América, da indústria com a natureza bruta, da civilização com a barbaria.

Oxalá, que a vitória tivesse sido completa, e que os civilizadores desta incomparável terra do Brasil não tivessem também trazido em suas leis, hábitos e costumes tantos elementos de barbaria, de cujas conseqüências até hoje nos ressentimos!

O Rio das Mortes ainda não tinha esse fúnebre nome, e não se sabe qual lhe davam os naturais do país; pelo menos eu não sei, pois nunca o li, nem ouvi a ninguém. Portanto lhe darei o nome, por que hoje é conhecido.

Um pouco retirado do núcleo principal da povoação, para o lado de leste, em um suave lançante, que dominava os vargedos, onde hoje é o bairro de Matozinho, notava-se um vasto edifício inteiramente novo, e que parecia ter recebido naquele mesmo dia os últimos toques das mãos dos operários.

Era uma casa espaçosa de madeira, solidamente construída, vasta e cômoda, do tipo da maior parte das vivendas dos abastados fazendeiros de Minas. Tinha um pavimento, elevado cerca de dois metros acima do solo. A um lado corria em toda a extensão do edifício larga varanda guarnecida de um peitoril com balaústres de jacarandá torneado.

Por uma escadaria de pedra, de dois lances, que desciam à direita e à esquerda, se baixava da varanda para um vasto pátio quadrado, comunicando com a rua, ou antes com a estrada, que lhe passava em frente, por um largo portão formado de dois sólidos batentes de cedro, firmados em duas truculentas colunas de cangerana[4].

Pelos outros dois lados o pátio era circunscrito por uma série de casinholas ou senzalas destinados aos escravos e camaradas.

Por esse pátio e pelas imediações do edifício viam-se diferentes grupos conversando com animação, e muitos vultos se cruzavam amiudadamente com certa agitação, que dava a entender, que algum acontecimento extraordinário vinha interromper naquele dia o monótono viver dos mineiros do Rio das Mortes.

Esta multidão, que se agitava em torno do edifício e pelas avenidas da povoação nascente, era um composto de gente de todas as classes e condições, de todas as procedências e de todas as raças.

Eram paulistas e forasteiros de todas as capitanias, portugueses ou emboabas, escravos africanos e indígenas de diferentes tribos.

Do tom por demais animado, azedo e às vezes rancoroso, que reinava em quase todas as conversações, que mais pareciam rixas, se depreendia a profunda discórdia, que lavrava no seio daquela sociedade formada de elementos tão heterogêneos, o ódio irreconciliável, que dividia aqueles ânimos superexcitados pela sede do ouro.

Era isto em dias de Dezembro de 1707.

-Por Deus, que já me acho bastante aborrecido com a demora do tal capitão-mor. Estou cansado de estar aqui a estaca à espera de quem não conheço, nem nunca vi.

Isto dizia um velho paulista que se achava a um canto do pátio sentado sobre um toro de peroba, resto da recente construção, fumando tranqüilamente o seu cachimbo.

-Tem paciência, mestre Bueno; espera ainda um pouco, que ele não pode tardar, -retruca um emboaba, que andava todo trêfego e radioso daqui para acolá dando mostras da mais viva alegria.

-Qual paciência!... já tenho tido demais. Estou aqui firme como este cepo desde o meio-dia. O sol já está baixo, e ainda não botei nada na boca... figa!... e quem me assegura que esse homem chega hoje mesmo?...

-Eu, mestre Bueno. Já não te disse, que o Sr. Maurício teve carta do capitão-mor, em que o avisava, que hoje por tarde estaria aqui sem falta nenhuma?...

-Mas o sol daqui a nada está entrando e, nem poeira eu vejo no caminho. Vão ver que o homem já começa por nos pregar uma peça... Ai que o capitão-mor mesmo antes de chegar já vai nos sendo pesado!

-Não digas tal; o Sr. capitão-mor Diogo Mendes é um fidalgo de mão cheia. E a filha, mestre Bueno!... oh! vale a pena esperar só para ter o gostinho de vê-la; é a figura mais linda que o sol cobre. E a comitiva do capitão-mor há de ser luzida, que ele é homem de gosto e de muitos cabedais. Espera, que te não hás de arrepender, mestre Bueno.

-É a pura verdade, -acudiu outro emboaba, -eu conheci a menina em S. Paulo de Piratininga, e confesso que é o rostinho mais mimoso, que tenho visto em dias de minha vida. Demais disso, mestre Bueno bem sabe que é o Sr. Maurício quem manda, que estejamos aqui todos os moradores do povoado para o recebermos com as devidas honras o Sr, capitão-mor, e não há motivos para escusar-se.

-E que me importa a mim a ordem do Sr. Maurício, a fidalguia do capitão-mor, nem a boniteza da filha! Caramba! Com eu estar ou não estar aqui não deixarão de chegar ou não chegar, conforme Deus for servido.

-Não fales assim, mestre Bueno! ... pois não tens vontade de conhecer esse homem, que aqui vem para bem e sossego de nós todos?

-Que esperança!... pobre de mim, se meu sossego estivesse nas mãos do tal capitão-mor! A mim pouco me embaraça que ele chegue hoje ou amanhã, ou nunca mais. A mim não vem ele dar nem tirar coisa nenhuma. Não tenho lavras de ouro, louvado seja Deus!... de minha bigorna e minha forja, e essas ninguém me há de cobiçar.

-Alto lá, mestre ferreiro! a vinda do capitão-mor é um benefício para nós todos. Agora sim é que vai haver sossego e segurança nesta terra. O governador da capitania não podia fazer coisa mais acertada do que mandar-nos um capitão-mor para acabar com tantas ladroeiras e desordens, que por aí vão. Muitos vadios altanados, que por aí andam, agora hão de abaixar a proa.

-Isso é que é verdade, atalha o outro emboaba. -E ninguém mais nas circunstâncias de poder endireitar as coisas nesta terra do que o Sr. capitão-mor Diogo Mendes. Eu o conheço muito bem; é homem de têmpera; guardem-se dele os vadios e desordeiros, que por aí andam. Agora sim, tenho eu fé, que as minhas lavras serão respeitadas, e não virá aí qualquer farroupilha atrapalhar-me o serviço e roubar-me o meu ouro.

-O meu ouro! -exclamou mestre Bueno com uma risada de amarga ironia. -O meu ouro!... ora vossas mercês têm boas!... -continuou levantando-se impacientado. -O ouro Deus o pôs no seio da terra para nós todos, e em primeiro lugar para quem se deu ao trabalho de descobri-lo. O meu ouro!... Vossas mercês entendem que todo o ouro da terra lhes pertence, e que nós paulistas à custa do suor do nosso rosto e a risco de vida o viemos descobrir só para termos o gostinho de vê-lo entrar todo para as algibeiras de vossas mercês!... Ah! meus gajões, -acrescentou abanado tristemente a cabeça, -Deus queira que este negócio de capitão-mor, em vez de endireitar as coisas, não venha torná-las ainda mais tortas, do que andam.

-Não tenhas susto, meu velho; tu há de tomar rumo. Pede a Deus, que te dê mais um bocadito de vida para veres como daqui em diante tudo vai andar direito.

-Deus o queira, mas duvido muito... enfim, seja como for, vou-me embora. Olhem como o céu está preto e fuzilando para aquela banda... Sou eu quem lhes digo, que não tarda a desandar uma grande tormenta dágua. Sou velho e doente, não posso apanhar chuva. Venha ou não venha o tal capitão-mor, vou-me mexendo para a casa.

Entretanto, várias outras pessoas, paulistas quase todos, atraídos pelo tom animado daquela conversação, se tinham agrupado em torno dos três interlocutores, e começavam a aplaudir o velho ferreiro.

Os emboabas, receando que a conversação se azedasse mais em vista do mau humor, com que se achava o velho, e vendo que os paulistas eram em maior número, foram-se retirando prudentemente.

-Estes cães tinhosos! -dizia o velho ferreiro a seus patrícios: -estão muito altanados com o seu capitão-mor de uma figa! temos de vê-los agora mais altanados que nunca. Querem nos pôr o pé no pescoço. Meus camaradas, hoje mais do que dantes, é preciso cuidado e olho vivo com estes birbantes.

-Eu os trarei sempre debaixo da mira de minha escopeta, acudiu um dos paulistas, e se abusarem de minha paciência, de nada lhes valerá o seu capitão-mor.

-E eu também, acrescentou outro, se até agora não pude congraçar-me com tais zangões, juro que daqui em diante não lhes aturarei o mínimo desaforo.

-Nem eu!

-Nem eu!

-Nem eu! ... murmuravam uma porção de vozes em torno do velho ferreiro.

Entretanto o sol baixava rapidamente para o ocaso. Era dezembro, quadra de aguaceiros e tempestades.

Violentas rajadas de oeste passavam zunindo pelo meio do arraial, e levantavam ao céu turbilhões de poeira, de folhiços, de cavacos de madeira, que toldavam e escureciam a atmosfera. A serra do Lenheiro cobriu-se de um toldo negro de nuvens, que rapidamente se foi desdobrando por todo o firmamento despejando com horrendo sussurro um dilúvio de águas entre o estouro de uma infinidade de raios.

O humilde riacho de S. João em poucos minutos tornou-se ribeirão caudal e furioso, arrastando troncos, devorando as barracas e levantando de rojo os serviços, os utensílios e mesmo alguns ranchos dos pobres faiscadores.

Cumpriu-se então à risca e literalmente o adágio popular: -foi água fria na fervura.

Todo aquele rebulício, agitação e entusiasmo, que ainda há pouco animava a população, em um momento abafou-se como por encanto. Cada qual tratou de ir correndo a toda pressa a abrigar-se debaixo de seus telhados sem ter inveja alguma à sorte do capitão-mor, que sem dúvida vinha agüentando por sertões desabridos toda a força daquele furibundo temporal.

Entretanto a noite não tardava a cair, a tormenta continuava sempre com a mesma fúria, e o capitão-mor não chegava.

Tudo estava deserto, toda a população se abrigava encolhida e silenciosa em suas casas, e só se ouvia o medonho rugir da procela, o ronco das enxurradas, e de quando em quando um raio que estalava parecendo quebrar as abóbodas celestes. Era uma tormenta descomunal, uma chuva diluviana, que causava horríveis estragos, enormes prejuízos, e enchia de pavor os mais valentes corações.

Um vulto saído do interior do edifício assoma na balaustrada de jacarandá, que dava para o pátio.

Era um mancebo de alta estatura, de tez um tanto morena, de barba espessa e negra, de feições firmes e regulares. Tinha na cabeça chapéu de feltro negro de abas largas arregaçadas dos lados por cordões com borlas nas extremidades, e embuçava-se em uma capa também negra.

-Antônio! bradou ele em voz bem alta debruçando-se sobre o parapeito.

-Pronto! acudiu uma voz de dentro de uma das casinholas, que cercavam o pátio, e imediatamente saltou dela um robusto caboclo, descalço, arregaçado até os joelhos, e embuçado em uma tipóia de couro de veado. Atravessou rapidamente o pátio alagado, e vencendo aos dois e aos três degraus da escadaria, em um momento se achou aos pés de seu patrão.

-Antônio, -lhe diz este, -isto está mau! Não tarda a anoitecer, a tempestade não cessa, e o capitão-mor até agora!... quem sabe o que terá acontecido! esta tempestade... caminhos péssimos... ribeirões cheios... índios ferozes... não posso, não posso ter sossego.

-Não há de ser nada, patrão; sem dúvida os ribeirões cheios é que o atrasaram na jornada. Amanhã de certo ele está aí. No entanto o patrão veja o que se pode fazer, e vamos a isso.

-Ele avisou-me, que sem falta nenhuma hoje estaria aqui, e tu sabes, Antônio; ele é da mais restrita pontualidade mesmo nas coisas insignificantes. Nada! não posso estar sossegado, enquanto não me encontrar com eles aqui ou em qualquer parte. Antônio, sela depressa nossos animais os mais valentes, e vamos encontrar seja a hora que for.

-Mas com esse temporal, patrão?

-Não importa; é por isso mesmo, que é forçoso ir já em seu encontro, e quem sabe se em seu socorro.

-Está dito, patrão; em um abrir e fechar de olhos tudo está pronto.

-Espera ainda, Antônio; talvez sejam precisos mais alguns companheiros para nos ajudarem; quem sabe o que haverá. Chama também o Gil, e mais três ou quatro dos nossos amigos, que estejam mais a mão, e pede-lhes de minha parte, que estejam prontos a me acompanharem com a maior presteza possível.

-Sim, senhor, -disse Antônio, e em três saltos, descendo a escada, foi dar cumprimento às ordens do patrão.


CAPÍTULO III

Saída ao encontro

Cerca de meia hora depois montavam a cavalo no pátio do edifício, debaixo da chuva, que ainda batia com toda a fúria, Maurício, seu índio, o Gil, e mais sete cavaleiros, jovens paulistas, que de bom grado se ofereceram a acompanhá-los.

Ainda restava um pouco da luz do dia.

Embuçados em compridos capotes e com o rosto coberto por largos chapéus de feltro desabados, bem armados e apercebidos contra qualquer emergência, ei-los que galgavam pelas colinas fronteiras ao morro do Lenheiro em direção ao sul de Minas, por onde esse dia devia ter chegado, vindo de S. Paulo, o capitão-mor Diogo Mendes.

A tempestade amainara, porém o céu continuava negro, e a noite descia escuríssima sobre a terra.

Caminhavam silenciosos, e com a maior presteza, que permitiam a escuridão e os péssimos, estreitos e esburacados caminhos. Digo mal, não eram caminhos, eram leitos de enxurradas, que ainda desciam aos borbotões do alto dos espigões.

Assim foram andando. A noite já ia avançada, e eles apenas haviam caminhado cerca de duas léguas, galgando e descendo colinas escabrosas, transpondo grotões profundos, vencendo atoleiros e vadeando córregos cheios, com água pelos arreios, apenas alumiados por alguns escassos relâmpagos, que lançava de tempos a tempos a tempestade que se dissipava ao longe.

Nada tinham ainda encontrado, e Maurício desesperava, entregue à mais viva inquietação.

-Meu Deus!... que será feito deles?... deviam chegar hoje sem falta, a não haver grande contratempo... Pode acontecer tanta coisa por esses sertões!... Que noite medonha!... Tais eram as exclamações, que de quando em quando Maurício ia soltando aos ventos da noite para desabafar suas inquietações, enquanto seus companheiros, descuidosos e indiferentes a sorte do capitão-mor, só tratavam de tanger para diante.

-Deixa-te de cuidados e lamentações, -exclamou por fim o Gil, um dos mais resolutos e queridos companheiros de Maurício. -Eles não podem correr risco algum; foi a chuva que os atrasou. Mas seja como for, já agora toquemos para adiante até romper o dia, e mais ainda se for preciso. Mais tarde ou mais cedo, hoje ou amanhã, havemos de encontrar por força o teu capitão-mor, salvo se caiu no inferno.

-Enquanto a mim, -atalhou outro, -bem pouco se me dá que ele tenha caído no inferno, no papo de alguma onça, ou nas unhas do gentio. Que o leve o demo!... esses cães de emboabas é que deviam agora andar por estes ermos a cata de seu capitão-mor... cambada de poltrões! Mas, enfim, eu não sou homem que me negue a uma empresa destas, principalmente convidado por Maurício.

-Também eu é por súcia, -acudiu um terceiro, -e por servir ao nosso amigo Maurício, que aqui me acho, e nenhum empenho tenho de ver a cara do tal capitão-mor, de quem Deus me guarde.

-Nem eu tampouco, -retrucou um quarto, mas confesso, que tenho grande desejo de ver a carinha da filha, que dizem ter um rosto lindo como o de um anjo, e alma boa como de uma santa.

-Ah! se é linda! -gritou da retaguarda um quinto; -lembro-me de a ter visto uma vez em S. Paulo na igreja dos Jesuítas. É uma formosura pasmosa! nunca vi coisa que mais me enchesse os olhos. De boa mente eu me sujeitara a passar trinta noites de azares como esta e piores ainda para conseguir um beijo, um beijo só nas rosas daquela boquinha encantadora...

A estas palavras, Maurício, que já os escutava com impaciência, abafou um rugido de cólera, e se não fora a escuridão da noite, tê-lo-iam visto passar alternativamente do vivo rubor da indignação, prestes a fazer explosão, à palidez marmórea da cólera concentrada.

Nesse momento acabavam de descer o lançante de um grande morro, e acharam-se à boca de espessa mata, por onde o caminho se enfiava por um trilho estreito, que se perdia na escuridão impenetrável.

Ao chegarem à entrada daquele antro pavoroso, os cavaleiros, tocados de súbito e passageiro terror, estacaram e hesitaram um momento.

-Cruz! que brenha medonha! exclamou um.

-Parece a boca do inferno, -observou outro.

-Será possível, que seja por aí o caminho? -refletiu um terceiro.

-É por aí mesmo que bem o sei eu; -bradou o Gil, -toca para diante; agora não há mais que recuar, nem que se abram diante de nós as gargantas do inferno. E picando o cavalo arrojou-se para a entrada da mata.

-Espera, Gil, -gritou Maurício. -O Antônio que encherga no escuro melhor que um gato do mato, e além disso tem faro de cão, e ouvido afiado como o do veado, que vá adiante e nos sirva de guia. Anda, Antônio; toca adiante.

O índio esporeou o cavalo e penetrou na mata. Após ele os outros cavaleiros desapareceram um por um naquela escuridão medonha.

As patas dos cavalos quase não faziam estrupido algum sobre o chão úmido e mole; e quem visse aquela troça de cavaleiros embuçados em mantos negros desaparecendo um após outro silenciosamente na escuridão da selva, cuidaria estar vendo uma turma de duendes esvaecendo-se por encantamento.

Por uma picada cheia de atoleiros e buracos, atravancada de tocos e raízes foram avançando lenta e cautelosamente no meio da mais completa escuridão, que nem permitia enchergarem-se uns aos outros, posto que marchassem sempre o mais unidos possível, e guiando-se apenas pelo ruído dos passos do cavalo do índio, o qual também os orientava com a voz, para que se não metessem em algum precipício.

Assim foram avançando com muito custo e vagar, e teriam se internado coisa de um quarto de légua pela mata, quando o índio estacou de repente.

-Esperem lá, -disse ele com mistério e precaução. -A modo, que estou ouvindo voz de gente.

Os cavaleiros pararam instantaneamente como tocados por uma vara mágica. Vozes humanas naquela solidão profunda, a tais desoras, no seio de uma floresta primitiva, apenas tocada pelo pé do homem, devia com efeito causar mais estranha impressão no espírito daqueles denodados cavaleiros, do que se ouvissem os rugidos do tigre, ou os urros da sussuarana.

Posto que tivessem saído de propósito ao encontro do capitão-mor, estavam longe de pensar que se tivesse abalançado a penetrar a tais horas com sua família no medonho labirinto daquela espessa mara, que a eles mesmos tinha inspirado pavor.

Portanto não deixavam de experimentar a mais ansiosa emoção, quando afiando o ouvido com toda a atenção e suspendendo até a respiração para melhor escutarem, sentiram uns sons como de voz humana chegarem confusos e interrompidos a seus ouvidos.

Um calafrio percorreu todo o corpo de Maurício, que tremeu pelos perigos a que estavam expostos o capitão-mor e sua filha, e deu graças à providência, que lhe inspirara o pensamento de sair ao seu encontro a despeito da tormenta e da escuridão da noite.

-É com efeito gente, que fala por este caminho além, -diz ele. -Avancemos mais um pouco, porém, com a maior cautela, a fim de melhor escutarmos, e depois... iremos ao encontro de quem quer que seja. Porém cautela!... bem pode ser alguma horda de bugres, ou quadrilha de bandidos. Vamos!...

De feito avançaram mais uns cem passos com a maior precaução e silêncio, que lhes foi possível. As vozes iam-se tornando mais distintas.

Pararam de novo a um sinal de Maurício. Ouviam já perfeitamente tudo.

Eram um homem e uma mulher, que falavam e pareciam estar parados.


CAPÍTULO IV

Na floresta

-Ah! não, senhor! não darei nem um só passo para diante!... exclamava uma voz lastimosa de mulher, cujo timbre suave e angélico fazia o mais vivo contraste com o horror daquelas broncas solidões, avesadas somente a ouvir o rugido das panteras e as pocemas selváticas dos aborígenes. -Que empenho tem o senhor em adiantar-se tanto de meu pai? hei-de esperá-lo aqui.

-Esperaremos, minha querida, -murmurava uma voz de homem; -ele não pode tardar.

-Não pode tardar?... já nem se ouve a fala dele... para que havíamos de nos adiantar tanto nestas matas horríveis!... não ouço nem o menor tropel, nem a menor fala... quem sabe se estamos errados! ah! meu Deus!... valei-me... que medo!...

-Medo de quê, minha adorada Leonor?... não estou eu aqui ao seu lado? quem a poderá ofender, homem ou fera, que não sinta logo o alento deste braço e o denodo deste coração consagrado ao teu amor e ao teu culto.

-Ah! Sr. Fernando, que triste lugar, que triste hora para se falar em amor? eu tremo e sou toda medo...

-Não tem confiança em mim? não me ama, senhora?...

-Eu?... algum dia disse que o amava?... ah! Sr. Fernando, por piedade, falemos de outra coisa, ou fiquemos calados até que meu pai chegue... meu Deus! e como tarda! quem sabe se lhe aconteceu alguma coisa?...

-Tranqüilize-se, senhora; nada lhe pode ter acontecido; mas enquanto não vem, minha querida prima, permita-me que lhe fale de meu amor. Que melhor ensejo, que esta solidão profunda e o mistério das trevas, que nos rodeiam? Oh! Leonor! minha prima! recompensa por piedade este amor tão leal, tão puro e tão ardente, que vos consagro; deixa que em penhor de minha lealdade e constância eu imprima nessas faces adoradas este primeiro beijo...

-Ah! não, não!... deixe-me, deixe-me, senhor!...

-Ah! cruel!... um beijo só, um abraço...

-O senhor é um infame, um desleal... eu grito... mas quem me valerá... meu pai!...

Estas últimas palavras foram gritadas com voz pungente e aguda.

O coração de Mauríco pulava-lhe no peito com tal violência, que parecia querer arrebentar-lhe.

-Pára, infame!... foi o grito, que lhe estourou dos lábios e reboou por aquelas pavorosas brenhas.

No mesmo instante Maurício e seus companheiros, atirando os cavalos através da escuridão e da espessura, se achavam ao pé dos dois viajantes.

Apesar do susto e da surpresa, que devia sentir, Fernando, ao ouvir aquele brado estranho e inesperado, esporeou seu cavalo, e dando dois ou três arrancos para adiante, com a espada em uma das mãos e uma pistola engatilhada na outra, esperou resoluto o assalto de quem quer que fosse. Disparou a ermo a pistola, porque naquela escuridão não podia fazer mira; foi talvez para dar o alarma ao capitão-mor e sua gente, que não podiam estar longe.

Leonor, transida de medo, mal se podia suster sobre a cavalgadura, e deixando-se escorregar foi cair meio desfalecida a um lado do caminho entre as urzes úmidas da espessura.

No mesmo instante Fernando se achava envolvido e apertado entre os cavaleiros, que apeando-se com toda rapidez, lançaram mão às rédeas de seu animal e agarrando-o vigorosamente pelos braços o impossibilitaram de tentar a mínima resistência.

-Senhores, -bradou Fernando com voz rouca e convulsa, -pelo que vejo, estou irremessivelmente entre as garras de uma quadrilha de salteadores; podem largar-me; estou em seu poder e não tenho meio algum de livrar-me. O que trago comigo, a minha liberdade, a minha vida, disponham de tudo, como quiserem. Mas ali está uma infeliz moça, que vinha em minha companhia; se ainda lhes resta no coração lagum sentimento de humanidade, tenham piedade dela, respeitem-na, eu lhes suplico.

-Basta, senhor! -atalhou vivamente Maurício. -Essa senhora em nossa companhia está muito mais segura do que o estava ainda há pouco, e será mais respeitada do que o era até aqui.

A esta inesperada exprobação Fernando empalideceu nas trevas, e ficou mudo e fulminado por alguns instantes.

-E quem são os senhores, -pergunta enfim reanimando-se, -que de modo tão descortês me assaltam, e me põem mãos violentas?...

-Sossegue, Sr. Fernando!... não somos salteadores, como apraz a vossa mercê acreditar. Somos pacíficos habitantes do novo povoado de S. João, que viemos ao encontro do nosso capitão-mor o Sr. Diogo Mendes, que esperávamos esta tarde, e como não chegasse, receando que a tempestade e maus caminhos lhe tivessem ocorrido algum contratempo, viemos ao seu encontro a despeito do mau tempo e da escuridão.

-Ah! mas isso não os autorizava a virem tão brutalmente...

-Perdão, senhor; ouvimos suas falas e a voz de uma mulher, que pedia socorro. Outro não podia ser o nosso procedimento, e se lhe pusemos as mãos, foi para estorvá-lo de fazer alguma loucura contra pessoas que o não queriam ofender. Agora queira vossa mercê dizer-nos, onde deixou o Sr. capitão-mor?...

-Ficou um pouco atrasado; não pode tardar, -respondeu secamente Fernando.

-Iremos a encontrá-lo.

Ditas estas palavras, Maurício dirigiu-se para a moça, que a alguns passos de distância jazia quase desfalecida encostada a um pau à beira do caminho embaixo de sua cavalgadura, repassada até a medula dos ossos de frio, chuva e medo.

-Senhora D. Leonor, -lhe diz Maurício em tom respeitoso, -sossegue seu coração; nenhum mal viemos lhe fazer; pelo contrário viemos para encontrá-la e guiá-la, e ao senhor seu pai.

-Quem me fala? exclamou Leonor com vivacidade e alongando o colo, -bem estou reconhecendo esta voz!... não é o Sr. Maurício?...

-É ele mesmo, senhora; um humilde servo de vossa mercê...

-Ah! quanto lhe sou grata!

-Não vejo muito por que, senhora minha; -desempenhei o meu dever...

-Oh! devo-lhe muito, Sr. Maurício... como veio vossa mercê a propósito... nunca mais me esquecerei...

A moça não teve ânimo de dizer mais; Maurício, porém, compreendeu todo o seu pensamento.

Durante este diálogo Maurício dava a mão a Leonor, que toda ensopada e tiritando de frio mal podia suster-se, erguia-a e ajudava a montar a cavalo.

Fernando, que a certa distância não deixava de compreender aquela cena, humilhado e forçado a devorar o seu despeito, mordia os beiços em desespero a ponto de tirar sangue.

Nesse momento ouviram-se gritos e tropear de animais.

-Leonor!... Fernando!... minha filha!... vinha gritando o aflito e desatinado capitão-mor, que tendo ouvido o tiro precipitava os passos através da escuridão e dos horríveis empecilhos daquele caminho.

-Oh! meu pobre pai! como não há de estar aflito!... por favor, Sr. Maurício, corra, vá depressa tranqüilizá-lo!...

Maurício não quis ouvir mais; num momento saltou a cavalo, e, deixando seus companheiros junto a Leonor e Fernando, acompanhado só de Antônio, foi ao encontro do capitão-mor.

Poucos minutos depois já estava de volta com o capitão-mor e sua comitiva. Este, ao ver a filha, apeou-se e foi apertá-la estreitamente nos braços.

-Oh! minha Leonor, que susto mortal!... que cruel ansiedade me causaste! felizmente nada foi, louvado Deus! já o sei da boca de Maurício. Foi um pânico ali do meu sobrinho Fernando, que é a verdadeira causa do susto terrível, que rapei. Mas, tu, minha filha, e tu, Fernando, fostes bem imprudentes em vos adiantardes tanto da comitiva em uma hora destas, por estas matas escuras.

-Desculpe-nos, meu tio -acudiu Fernando, -foi insensivelmente; quando demos fé já estávamos longe; nossos cavalos são mais ligeiros.

Ah! vilão! -murmurou Maurício entre si, -se teu tio soubesse de tuas tenções danadas não abandonaria assim a filha!... Estes velhos são bem cegos!... mas a este um dia eu abrirei os olhos.

O generoso Maurício, contando ao capitão-mor a causa do tiro, ocultara a circunstância mais grave. Fernando, confuso e aniquilado, não teve remédio senão aprovar com seu silêncio a explicação do pânico tão pouco honrosa à sua valentia, e não ousou abrir a boca para dizer uma palavra a respeito do ocorrido. Também o que poderia ele dizer?

Toda a caravana montou de novo a cavalo e se pôs em marcha. De caminho o capitão-mor contou a Maurício os motivos que lhe haviam retardado a viagem. O seu guia lhe havia assegurado que nessa tarde poderia estar facilmente em S. João, mas tendo sobrevindo alguns contratempos e transvios, demoraram-se mais do que esperavam, e sendo surpreendidos por um horrível temporal sem achar onde abrigar-se, viram-se obrigados a vir prosseguindo a marcha esperando encontrar ao menos alguma choupana, a que se acolhessem.

Descendo a noite escuríssima, sem que nada encontrassem, sem saber como se achavam embrenhados naquela escura mata, e como lhe asseguravam, que era esse mesmo caminho, assentou que o melhor partido a tomar era vir rompendo ainda que mui lentamente, até que o dia alvorecesse.

Maurício espreitava com ansiedade e procurava mesmo ajeitar um ensejo, em que pudesse dizer duas palavras a Leonor, sem ser ouvido do resto da comitiva. Como a cavalgata marchava nas trevas desordenadamente, avançando uns a sondar o caminho, outros se atrasando em razão de embaraços, que encontrava em uma estrada esburacada de diferentes trilhos, como o são até hoje todos esses caminhos do interior de Minas, a desejada oportunidade não tardou muito a oferecer-se.

-Senhora, -disse o mancebo à filha do capitão-mor. -Quanto sou feliz de torná-la a ver, e, sobretudo por assinalar este encontro prestando-lhe um pequeno serviço. Ah! esta noite afortunada nunca mais me sairá da lembrança...

-Nem da minha, Sr. Maurício. A sua presença fez-me esquecer todos os sustos e horrores, porque tinha passado... Parece que vossa mercê foi enviado por Deus para me proteger...

Não puderam dizer mais; o tropel de um cavaleiro, que se aproximava, os interrompeu; mas foi bastante para entornar gozo inefável no coração do mancebo, que daí em diante não falou mais, pois ia absorto e como que levado nas asas de um sonho, que o inebriava de venturas.

O cavaleiro, que se aproximava, era Fernando, que mordendo-se de raiva pelo incidente humilhante, de que fora vítima, procurava também tomar de parte a Maurício. Apenas o conheceu, Leonor tangeu seu cavalo para junto de seu pai que cavalgava a curta distância.

-Senhor cavaleiro, como quer que se chama, -disse Fernando apenas achou-se a sós com Maurício, -há de reconhecer que foi bem descortês para comigo. A ocasião não é própria, não digo para tomar satisfação, mas para castigar a sua ousadia; mas espero que não faltará ensejo para ajustarmos nossas contas. Vossa mercê não sabia com quem tratava; cuidava, por certo, que era um dos seus iguais. Estou que para diante saberá respeitar-me, como deve.

-Meu caro fidalgo, -replicou tranqüilamente Maurício, -se vossa mercê souber dar-se ao respeito, esteja certo, que sempre o respeitarei; mas quando se comportar com ainda há pouco ali na mata, eu saberei cumprir o meu dever, ainda que vossa mercê seja o filho do rei.

-Atrevido!... bradou Fernando; mas um tropel de cavaleiros, que os acostou, veio pôr ponto final a seus doestos[5].

Os dois mancebos, que ainda não se conheciam, pois apenas haviam trocado algumas palavras nas trevas, já se odiavam com ódio de morte.

Estes dois curtos diálogos, de que acabamos de dar conta, um de amor e outro de ódio, foram os dois únicos incidentes dignos de nota, que ocorreram no caminho.

O dia começava a alvorecer pelas verdejantes cimas da serra de S. José, quando o capitão-mor e sua comitiva em longa caravana desfilaram pelas colinas, que dominavam S. João d’ El-Rei, e molhados até os ossos, tresnoitados, opressos de fadiga e tiritando de frio, faziam sua entrada na povoação entre foguetes e repiques de sino.

Os emboabas e paulistas interpretaram por modos bem diversos o aguaceiro diluviano, que assinalou a chegada do capitão-mor.

-Tudo que vem do céu é de bom agouro, -diziam aqueles. -Esta espantosa chuva quer dizer que teremos paz, fartura e riqueza.

-O mundo escapou do dilúvio para um dia acabar pelas chamas, diziam os paulistas.

O governo deste homem, que começa com água, é sinal de que há de acabar com fogo.


CAPÍTULO V

Ligeiro retrospecto

Não podemos prosseguir na presente narrativa, sem determos por alguns momentos a atenção do leitor, a fim de informá-lo sobre quem era o capitão-mor Diogo Mendes, sobre alguns antecedentes de sua filha Leonor e de várias outras pessoas, que compunham o seu doméstico.

O capitão-mor era um português e o leitor já terá adivinhado, que era fidalgo de boa linhagem, de solar e cota d’ armas.

Era um homem de seus cinqüenta e tantos a sessenta anos, de estatura regular, robusto, reforçado e mesmo valente. Já se tinha distinguido em seu país na carreira militar, quando veio para o Brasil, e estabeleceu-se na capitania de S. Vicente, onde em breve adquiriu considerável riqueza e casou-se com uma gentil paulista, de quem teve diversos filhos, entre os quais eram os últimos Afonso e Leonor, que o acompanhavam às Minas.

Quanto ao moral era um desses caracteres mui sediços em todas as histórias e romances de todos os tempos, muito comum nos séculos passados, e que ainda hoje não são raros. Zeloso ao último ponto de sua fidalguia, enfatuado de pertencer à pátria de Fuas Roupinho, João de Castro, Albuquerque e outros lidadores por glória, tinha para si que a nobreza do nascimento é o primeiro dote do homem, e o valor marcial a principal virtude.

Posto que avezado a atos de mando e despotismo, nem por isso era de más entranhas, e aninhava no coração sentimentos de humanidade e às vezes mesmo de generosidade.

Tendo recentemente perdido a esposa, os mais ternos afetos de sua alma se concentravam agora em sua filha Leonor, única, que tinha desse sexo, e em Afonso, que era o seu mimoso Benjamim. Os filhos mais velhos há muito que se haviam desgarrado do ninho paterno.

Nascida em S. Paulo de Piratininga, nas veias de cujos habitantes parece que circula grande dose de sangue espanhol, Leonor tinha esse admirável tipo de beleza que caracteriza as filhas de Cadiz ou de Sevilha, com esses toques de lânguida suavidade, que o céu da América tropical imprime na fisionomia de suas formosas filhas.

Negros e longos cabelos de seda, olhos ora cheios de fulgores deslumbrantes, ora embaçados de meiga languidez como lâmpadas veladas, boca pequena e voluotuosa, porém grave sempre e avara de sorrisos, o que os tornava ainda mais preciosos e sedutores, porte esbelto e nobre, telhe incomparável, tudo isso, e outros mil encantos mais, faziam de Leonor uma das mais perfeitas entre as filhas de Eva.

Desabrochando à vida debaixo do céu risonho da heróica Paulicéia, entre os largos e esplêndidos horizontes da América, onde o espírito de liberdade como que circula na atmosfera, cicia nas asas da brisa, e murmura pela grenha das florestas, Leonor não podia partilhar os preconceitos de seu pai, mas respeitava-os como filha submissa e afetuosa.

Em sua infância, que correu com aquele resguardo dos antigos tempos no interior do lar, na escola ou no templo, ela só conheceu, além de seus irmãos, um único companheiro, um órfão desvalido, que seu pai havia recolhido por compaixão, tendo o pai dele morrido em uma expedição em serviço do mesmo Diogo Mendes, e deixando na miséria a mãe, que não lhe sobreviveu muito tempo.

Era um belo menino, cheio de vivacidade e inteligência. Interessando-se vivamente pelo órfão, que de dia em dia desenvolvia novos dotes de espírito, e excelentes qualidades de coração, Diogo Mendes o fez entrar para o colégio dos jesuítas, a fim de ser educado para o estado clerical. Aí esteve ele por três ou quatro anos, durante os quais aqueles padres, apreciando a inteligência clara, o espírito vivaz e penetrante, e a índole audaciosa, que o menino então já adolescente ia revelando em sumo grau, achando que ali havia massa para se formar um excelente missionário de Loyola, empregaram grandes esforços para atraí-lo ao seu grêmio. Foi tudo embalde; o menino não tinha nascido para a roupeta. Havia nele um elemento, que se opunha diametralmente à obediência passiva, essa condição cardial imposta aos discípulos de S. Inácio. Era um extremo amor da independência, uma rebeldia indomável contra todo e qualquer jugo.

Em conseqüência, forçoso foi a Diogo Mendes retirá-lo do colégio com bastante pesar seu, mas nem por isso se revoltou contra seu pupilo, antes procurou outros meios de lhe assegurar no futuro próspera e honrosa posição.

Conhecendo então melhor as tendências do rapaz, que reclamavam vida ativa e aventurosa, associou-o a uma bandeira, que partia para as minas. Saído apenas da infância, Maurício se distinguiu entre os mais bravos e inteligentes, e nessas longínquas, fragueiras e perigosas excursões teve ocasião de desenvolver todo o vigor de sua feliz organização, todos os dotes de seu entendimento claro e atilado.

Nessa expedição Diogo Mendes deu a seu protegido um companheiro, antes um amigo, que lhe foi de imenso auxílio. Um célebre chefe de bandeira amigo de Diogo Mendes, Antônio Dias, o valente e ousado Taubateno, que descobriu as minas de Ouro Preto, lhe tinha enviado de mimo um belo columim ou caboclinho de dez a doze anos da tribo dos Aimorés, que ocupavam as cercanias da serra do Itacolomi. Batizado como escravo de Diogo Mendes, trocou na pia o nome selvático de Itaubi (que parece que quer dizer filho dos rochedos) pelo de Antônio.

Era ele mais velho talvez dois anos do que Maurício. Este encarou logo com o mais vivo interesse aquele novo e estranho hóspede do lar de Diogo Mendes. Por uma natural simpatia e mesmo como não tinha companheiro algum para seus brincos de infância, foi-se achegando ao caboclinho. Os filhos de Diogo Mendes quase sempre fora de casa, na escola, nos colégios, em passeios, e mesmo por um certo orgulho inato de fidalguice, pouco se congraçavam com Maurício.

A vinda do columim foi portanto uma preciosa aquisição, um tesouro para o órfão desvalido.

A princípio o pequeno selvagem mostrou-se desconfiado e esquivo; mas dentro de em pouco foi-se deixando catequizar por Maurício, e no fim de alguns meses tinha-se estabelecido entre eles a mais viva e íntima afeição. Parece que a identidade dos destinos desses dois meninos, ambos desvalidos, ambos não conhecendo nem pai, nem mãe, nem família, ligava-lhes as almas pelos laços de uma instintiva e secreta simpatia, que não deviam romper-se senão com a morte.

Maurício não se cansava de mirar o jovem Aimoré, de interrogá-lo, e de procurar todos os meios de fazê-lo desenvolver-se. Como o caboclo ainda muito ainda[6] pouco entendia do português, Maurício por sinais e outros meios lhe ia explicando tudo, e ensinando-lhe a língua dos brancos, ao passo que sempre curioso e vivo ia com ele também aprendendo muitos vocábulos e frases da língua túpica, bem como alguns usos e costumes das tribos americanas.

Graças à sua inteligência e docilidade e aos esforços de seu oficioso mestre, dentro de um ano Antônio estava completamente transformado. Já nada restava do selvagem senão o tipo fisionômico, a força e agilidade juntas ao amor da independência.

Antônio era trêfego e turbulento, e muitas vezes incorria em severos castigos por seus atos de selvática rebeldia; mas Maurício corria imediatamente a interceder por ele com as lágrimas nos olhos, e desarmava a cólera de Diogo Mendes justamente irritado.

Quando Maurício foi para o seminário dos jesuítas, Antônio pensou morrer de paixão. Para matar as saudades pedia licença amiudadas vezes para ir visitar a seu jovem patrão; e como essa licença bem raras vezes lhe era concedida, os dois combinaram entre si um meio de se verem mais freqüentemente.

Às horas mortas da noite, um vulto ágil e flexível como um silfo aéreo grimpava ligeiramente por uma corda para uma alta janela do convento e penetrava na sela do estudante, como faria o mais extremoso amante para introduzir-se furtivamente no aposento de sua bela.

Foi indizível o prazer de Antônio, quando seu senhor o designou para acompanhar Maurício na expedição às minas.

Tornar a ver as montanhas, que o viram nascer e onde passou o tempo da primeira infância, era um gozo, que já de antemão o embriagava, e não fosse a amizade, esse laço mais forte, que o prendia àquele a quem ia servir de companheiro e guia, ele procuraria meios de por lá deixar-se ficar para sempre.

De volta ao seu país, no fim de três a quatro anos, Maurício, traquejado nas fadigas, riscos e asperezas da vida sertaneja, na primeira flor da mocidade, possuía já todos os predicados de um homem talhado para as grandes e árduas empresas da época, todas as qualidades de um chefe de bandeira.

Diogo Mendes, nomeado capitão-mor para uma região nova, bronca e selvática, onde faltavam não só os confortos, como mesmo muitas vezes os recursos indispensáveis à vida, mas onde, segundo as informações dos bandeirantes, lhe sorria a espectativa de uma assombrosa riqueza, não quis todavia transportar-se para ali, antes que tivesse lá preparada uma habitação digna dele e todas as comodidades possíveis naquele sertão. Tendo Maurício em casa e à sua disposição, inepto seria ele, se encarregasse a outro daquela delicada comissão.

Maurício partiu com plenos poderes para esse fim, levando consigo Antônio, diversos oficiais de pedreiro, carpinteiro e ferreiro, e grande número de escravos indígenas e africanos. Apenas chegou tratou com atividade e ardor da construção do edifício, que já conhecemos, bem como da fatura de roças, plantios e de tudo que era mister, a fim de que, quando chegasse o capitão-mor, achasse abundante provisão de víveres e todas as comodidades possíveis.

Resta-nos informar ao leitor a respeito de Fernando, o que faremos em poucas palavras. Era um parente de D. Mendes, que veio ao Brasil procurar fortuna à sombra deste. Moço, gentil e fidalgo, era muito natural que se apaixonasse por sua linda prima, e a considerasse logo como boa e certa presa. Assim ficava feita a sua fortuna sem trabalho nenhum, e ele já de antemão bendizia a hora em que pôs o pé nas plagas de Cabral.

Este pensamento apossou-se de sua alma com toda a força, e cumpre confessar que não esvoaçava longe das vistas de Diogo Mendes.

Fernando acompanhava o capitão-mor na qualidade de seu secretário particular. Tendo chegado de Portugal há poucos meses, Maurício o não conhecia.

É quase escusado dizer que Maurício e Leonor se amavam desde a infância, e sabe-se que os amores, que têm raízes no berço, só podem extinguir-se no túmulo.

O leitor agora compreenderá melhor o motivo da solicitude que esse moço empregava em receber bem o capitão-mor, sua inquietação e sua surpresa, e os rugidos de raiva que arrancou ao presenciar na floresta aquela cena entre Fernando e Leonor.

Quanto a Afonso, filho do capitão-mor, é inútil ocuparmo-nos dela agora; brevemente ele dará o pano de amostra no decurso desta história.


CAPÍTULO VI

Aprestos de caçada

Mostrou-se o capitão-mor mui satisfeito com tudo quanto fizera Maurício, o qual em verdade lhe havia preparado uma vivenda a mais cômoda e agradável, que o tempo, de que dispunha, e as circunstâncias do país permitiam. Além de outros acessórios, que tornavam sumamente aprazível aquela habitação, Maurício tinha tido o cuidado de construir do lado oposto a grande varanda de entrada, que já conhecemos, um pequeno e formoso terraço de alvenaria guarnecido de grandes vasos de barro e flores.

Desse terraço avistavam-se as lezírias e vargedos, por onde corre o Rio das Mortes, e aqui e ali o veio do rio brilhando ao sol, como a escama cintilante da jibóia, que se esgueira por entre as moitas.

Embaixo do terraço estendia-se um bonito jardinzinho já todo coberto de flores. Maurício, que andava mostrando ao capitão-mor e sua filha um por um todos os cômodos e compartimentos da casa, demorou-se com certa complacência no terraço. Leonor adivinhou o pensamento íntimo, antes o sentimento delicado, que tinha inspirado o mancebo na construção daquele gracioso acessório. Agradeceu-lhe com um olhar e com leve sorriso, que o capitão-mor não viu e que Maurício compreendeu perfeitamente, pois lhe penetraram até o íntimo da alma.

-A vista que daqui se goza, disse Maurício respeitosamente, talvez faça a senhora D. Leonor lembrar-se de S. Paulo, das margens do Tietê e dos passeios e brinquedos de...

O moço ia dizendo, -de nossa -mas reportou-se e concluiu -de sua infância.

-É verdade; suspirou Leonor, não deixa de ter certos longes de parecença...

-Neste ponto compareceram no terraço Fernando e Afonso, que também andavam examinando a casa por todos os cantos. Maurício, que já votava ódio de morte ao primeiro, e antipatia profunda ao segundo destes cavalheiros, tratou de ir-se retirando polidamente.

Passados alguns dias, durante os quais nenhum incidente ocorreu digno de menção, o capitão-mor, que era um extremos apaixonado pelas caçadas, ordenou uma grande correria de veados, antas, pacas, enfim de tudo, que desse e viesse, pelas faldas da serra de S. José, que diziam ser muito farta de caça de toda qualidade.

No dia aprazado, ao romper d’ alva, já se achava reunida no grande pátio toda a cavalgata, que devia tomar parte na caçada.

Era uma caçada à fidalga, que o capitão-mor queria, com certa regularidade e aparato, assim à guisa das grandes montarias, a que tinha assistido em sua terra. Pretendia por essa forma ostentar-se aos olhos do povo, que vinha governar, julgando ser esse um dos meios de fazer respeitar o seu poder e autoridade.

Além disso, como valente guerreiro daqueles bons tempos, apraziam-lhe todos os exercícios e divertimentos fragueiros e aventurosos , uma vez que neles reinasse certa ordem e disciplina. Mas foi em vão que ele e seus monteiros se esforçaram para manter alguma regularidade na disposição e marcha da turba de caçadores.

Eram mais de quarenta cavaleiros emboabas e paulistas, fora alguns índios, camaradas e escravos, uns a pé, outros montados, conduzindo provisões, armas e cães se seus senhores ou patrões. Era indizível a algazarra e alvoroto, que reinava no pátio apinhado de homens, cães e cavalos.

Os caçadores, berrando, altercando, chamando os cães com gritos e assovios, escorveando suas armas, os cães em número extraordinário, açulados pelos tiros, a ladrarem e ganirem desesperadamente, os cavalos rinchando e dando patadas faziam um alarido infernal.

No meio dessa balbúrdia e confusão, onde ninguém se entendia, como era possível introduzir ordem e disciplina?

À exceção do capitão-mor, Fernando e mais alguns poucos portugueses de melhor condição, que já tinham visto caçadas européias, a maior parte dos emboabas eram aldeões vindos há pouco de Portugal, que nunca em dias de sua vida haviam caçado nem lá nem cá. Os paulistas e alguns forasteiros de outras capitanias eram em geral caçadores adestrados, mas à moda americana, e que nada compreendiam da disciplina e etiqueta, que o capitão-mor queria que se guardasse; caçadores rudes e incansáveis das montanhas e das florestas virgens, e não de préstitos aristocráticos.

No meio da confusão de pessoas e animais, que inundavam o pátio, uma coisa havia que causava bastante estranheza aos circunstantes, e maior causará talvez ao leitor, porque ele não está e nunca esteve em nossos usos. Era um lindo e garboso cavalo negro, um verdadeiro palafrem, com ricos e elegantes jaezes próprios para senhora, seguro pela rédea por engraçado pajenzito negro e agaloado.

Isto em uma caçada pelas broncas e selváticas regiões da América, em um sertão apenas descoberto, era de feito caso para causar expectação e surpresa.

Quem seria a Diana ousada e aventureira ? que amazona gentil iria cavalgar o elegante ginete ?

Era sem mais nem menos a jovem e formosa filha de Diogo Mendes; era Leonor !...

Tinha ela forte predileção pelo exercício da caça, -mania talvez herdada do pai. Já em sua terra natal tinha assistido com ele algumas corridas de veado nas belas planícies de Piratininga. Vendo portanto os aprestos extraordinários daquela grande caçada, seu co­ração bateu de entusiasmo. Justo com o pai para que consentisse que ela também tomasse parte na caçada, não só para assistir a um divertimento, de que tanto gostava, como para ver o país em derredor, que tinha muita vontade de conhecer.

-Minha Leonor, diz-lhe o pai, pensas por ventura que as caçadas por aqui são como aquelas, em que estiveste nas Campinas abertas e planas de Piratininga. Aquilo lá era um brinquedo; mas aqui temos de nos enfiar por meio de brenhas e lugares escabrosos e des­conhecidos ; isso não é para ti.

-Não é porque, meu pai? atalhou com vivacidade a moça, pois quem viajou de S. Paulo até aqui com os trabalhos e perigos, que meu pai bem sabe, pode mais ter medo de brenhas, barrancos, nem montanhas ?...

-Mas em viagem, minha filha, caminha-se pausadamente e tem-se tempo de escolher caminho, e na caçada é preciso galopar...

-E por ventura tenho eu medo de galopar?

-Sei que cavalgas admiravelmente; mas galopar por meio dessas matas e barranceiras, minha filha !...

oh ! não serei eu que o consinta.

-Não é preciso que me meta nesses perigos...

-Mas onde ficarás ? sozinha, enquanto os caça­dores se embrenham ?...

-Ora, meu pai !... ficarei em companhia de Afonso, do Sr. Maurício e de... mais alguém. Estou certa, que não se recusarão...

Aqui a moça perturbou-se e corou; nomeando Mau­rício e não querendo falar em Fernando, viu que involun­tariamente havia traído o segredo de seu coração. Mas o capitão-mor nem disso deu fé, de preocupado que an­dava com a sua grande caçada, e mesmo porque os olhos do pai não são tão perspicazes como os do amante. Ah ! se Fernando tivesse ouvido aquele colóquio !

-Eu sei, minha filha ! respondeu o pai hesitando; tenho medo...

-Medo de que, meu pai ? mais medo tenho eu de ficar aqui sozinha neste casarão, apenas com alguns escravos, no meio de uma povoação, onde, — creia-me, meu pai, — há alguns perversos, que nos querem mal. Antes nas brenhas a seu lado e junto dos nossos, do que aqui sozinha.

-Não tenhas susto... mas, enfim, quero fazer-te a vontade, minha filha. Demais vejo que no meio de tão boa gente, que nos acompanha, nenhum risco podes correr.

Além disso o velho refletiu consigo, que a presença da menina contribuiria para dar maior realce e esplendor àquela caçada festival e lhe comunicaria certos ares das montarias dos antigos castelões de sua terra.

Estando tudo e todos prontos, o capitão-mor' com sua filha, seguidos de Afonso e Fernando, se apresenta­ram na varanda.

-Toca a montar a cavalo, bradou o capitão-mor, debruçando-se sobre o parapeito.

E saindo com sua filha ao lado pela cancela, que Fernando abrira com toda a cortesia, foi descendo com ela vagarosamente a escada, parando de degrau em degrau para dar algumas ordens, de que se havia esque­cido.  De repente uma espantosa assoada de vaias e apupos veio-lhe ferir os ouvidos.

-Olhem o Minhoto ! ah ! ah ! ah !

-Lá caiu o Minhoto ! ó lê !

-Vejam que triste figura ! chiii !

-Olha a piruca !... lá ficou no chão !

-O diabo montou de uma banda e caiu da outra... ah ! ai !...

Estas surriadas e outras muitas partiam de uma multidão de bocas quase ao mesmo tempo. O capitão-mor olhou para o páteo; a princípio ficou surpreendido, depois indignado com a cena que viu, e que vinha perturbar de modo tão cómico a gravidade de sua nobre caçada.

O caso é este.

Os paulistas, como excelentes cavaleiros, que eram e são até hoje, à voz do capitâo-mór, montaram a cavalo com toda agilidade.  Os emboabas, porém, dos quais uns raras vezes e outros nunca haviam montado a cavalo, viram-se bastante embaraçados naquele tumulto, e deram aos paulistas, que os contemplavam, o mais risível espetáculo, que se pode imaginar.

Um aqui quer montar pelo lado direito, o animal,

que não está acostumado a isso, afasta-se, negando o estribo, e o traz por muito tempo atrapalhado.

Outro, que não soube apertar bem as silhas, lá escor­rega no chão com a sela, tendo levado desta um furioso sopapo no queixo.

Outro mais adiante monta sem se lembrar das rédeas, e lá vai o cavalo desgovernado, arrastando-as pelo chão, e levando para onde quer o cavaleiro.

Outro lá enfia no estribo o pé direito, e quando dá fé de si, acha-se montado a cavalo com a cara para trás.

Quem souber que as bandeiras, que varejavam e po­voavam nossos sertões, à exceção de alguns chefes, viajavam a pé, e que na Europa as classes baixas não sabem o que é cavalgar, não estranhará que a maior parte dos emboabas, que se achavam no pátio do capitão-mor, não soubessem absolutamente montar a cavalo, e represen­tassem as cenas cômicas, que acabamos de desenhar.

Os paulistas estouravam com vontade de rir; mas em respeito ao capitão-mor e com medo de provocar al­guma estralada, continham-se o mais que podiam, con­tentando-se em soltar alguns motejos em voz baixa, cochi­chando entre si e rindo-se a sorrelfa. Quando foi, porém, da vez do Minhoto, não puderam mais conter-se; as vaias e surriadas romperam com irresistível explosão.

Antes de contar como o caso foi, é bom saber quem era o Minhoto.

Davam-lhe este nome os seus patrícios por ser o único da terra do Minho, que andava entre eles. Era um português de meia idade, corpo grosso e baixo, pernas demasiadamente curtas em relação ao tronco, enorme carão pálido e comprido; como era de todo pelado, usava uma peruca muito mal arranjada, que lhe dava ao rosto, grosseiramente talhado, visos de um cepo coberto de capim.

Além destes dons corporais, com que o dotara o céu, era de caráter baixo, aleivoso e intrigante e, portanto, o alvo do ódio dos paulistas, sem ser muito bem quisto dos emboabas.

Em compensação de tão belas qualidades, tinha ele sabido adquirir por meio da usura e rapacidade alguns bens da fortuna, o que, a despeito de ser ele da mais baixa extração, dava-lhe entre seus patrícios posição al­gum tanto respeitável. O próprio capitão-mor, que já o conhecia de S. Paulo, o tratava com alguma conside­ração .

Este Minhoto era, nem mais nem menos, aquele emboaba, que já vimos conversando mui lépido e prasen-teiro com o velho ferreiro mestre Bueno.

Para tornar mais ridícula a cena, montava ele um magro murzéio lazarento, mal e andrajosamente arreado. Acontece que quando o pobre homem vai galgar a sela, sem que o animal fizesse o menor movimento, perde o equilíbrio e cai para o outro lado, e com tal infelicidade, que não sei como a escopeta que tinha na mão agarra-lhe . o chapéu e a peruca, e os atira longe, deixando-lhe inteiramente à mostra o crânio amarelo e hediondo.

À vista de espetáculo tão eminentemente cômico, bem se vê que os paulistas tinham razão de prorromperem naquela estrondosa surriada, em que também desabafa­ram seu ódio.

O capitão-mor foi às nuvens de cólera e despeito. Fernando, espumando de raiva, sustentava que aquilo era um desacato solene e premeditado feito não só aos portugueses, como à pessoa e autoridade do capitão-mor ali presente.

O jovem Afonso, se bem que rindo-se a goela des­pregada à custa do cômico incidente, sustentava a mesma opinião, e pedia a seu pai severos castigos.

O capitão-mor bem queria punir o atentado; mas refletindo que a gargalhada era geral, não só de paulis­tas, como de portugueses, como o estava mostrando seu próprio filho, que ali pertinho dele soltava risadas ho­méricas, limitou-se em dirigir aos paulistas uma exemplar reprimenda, e como era a primeira, contentou-se em chamá-los de pícaros, desordeiros e malcriados.

Estes, posto que indignados ao último ponto, soube­ram conter-se sem fazerem manifestação alguma de revol­ta, mas ficaram compreendendo que o governo de um homem, que assim principiava, lhes seria pelo tempo adiante insuportável, e murmuravam entre si vozes surdas de descontentamento, de revolta e de vingança.

Abafado este incidente, e montados todos a cavalo, abriram-se de par em par os pesados batentes do grande portão de cangerana para dar passagem à cavalgata. Apenas esta começava a pôr-se em movimento, eis novos rumores se propagam entre os cavaleiros, e gritos de — misericórdia ! aqui d’el-rei ! — chegam aos ouvidos do capitão-mor, que à frente dos cavaleiros já tinha trans­posto o portão.  Este, enfurecido, volta as rédeas ao cavalo e torna a entrar a ver o que era.

Era ainda o mísero Minhoto, que de novo viera ao chão, mas desta vez de modo mais trágico, tão maltra­tado e contuso, que foi mister ajudarem-no a levantar-se.

O autor desta brincadeira fora o Gil, aquele com-pauheiro e amigo de Maurício, a quem já conhecemos. O Gil era um belo rapaz, de nobre e generoso coração, mas de gênio extremamente fogoso e assomado, a quem mais tarde conheceremos melhor.

Como ele se achasse por detrás do Minhoto no mo­mento em que a cavalgata se abalava, e o cavalo deste, que lhe embargara o caminho, de maneira nenhuma quisesse mover-se, impacientado com isto e já de antemão altamente agastado com o atrevido repelão do capitão-mor, o moço lascou tão forte guascada nas ancas do ani­mal do emboaba, que este deu um violento arranco para diante e o atirou de costas no chão.

Desta vez não podia haver remissão.  O atentado era mais grave, o delinqüente um só e determinado indi­víduo; a vítima o tinha indicado, e muitos outros emboabas, que tinham presenciado o caso, o denunciavam em altas vozes.

Em vão Maurício procurou interceder, alegando al­gumas razões em favor de seu amigo. O capitão-mor, i eu já cólera ainda era açulada por seu filho e seu sobri­nho, estava inexorável.

Leonor, a boa e compassiva Leonor, também tentou balbuciar algumas palavras em defesa do infeliz Gil.

Os gritos ásperos e atroadores do irmão e do primo abafaram-lhe a meiga voz.

Gil foi recolhido a um quarto forte da casa do capitão-mor, feito de propósito pa:'a servir de prisão a livres e escravos, e aí foi ele metido em um tronco.

O Minhoto foi conduzido em braços para sua casa, e posto em sua cama, donde não pôde sair por muitos dias.

Ambos ficaram presos. Era um par de menos na funçonata vexatória.

CAPÍTULO VII

A marcha para a caçada

Deixemos o infeliz Gil, essa primeira vítima da tira­nia do capitão-mor, sentado sobre o soalho de um cala­bouço com ambos os artelhos embebidos em uma grossa prancha de madeira, que se estendia ao longo do quarto, crivada de buracos, e onde havia cômodo para os artelhos e pescoço de muitos outros. Deixemos o nobre moço devo­rando sua raiva e arrancando rugidos surdos, como o leão cativo.

Deixemos também em sua cama o pobre Minhoto,

com uma costela quebrada, soltando urros de dor, vomi­tando pragas contra os paulistas e dando a todos os dia­bos quanta caçada há por esse mundo.

Deixemo-los, visto que por agora não lhes podemos valer, e acompanhemos a brilhante montaria do nobre capitão-mor através dos montes e vales, brechas e Campinas.

A cavalgata, ao sair do portão, ia com efeito guar­dando uma tal ou qual ordem processional, que dava-lhe ares de uma caçada real em miniatura, ou antes em caricatura.

Abriam o préstito quatro batedores armados de gran­des facas, fouces e outras peças além das armas de fogo. Os dois da frente inchavam as bochechas soprando o corno venatório, ou busina.

Seguia-se o capitão-mor ao lado de sua filha, que atraia a atenção geral por sua formosura e porte dono ao, e pelo garbo e desembaraço com que sabia governar o seu lindo ginete.

Vinham imediatamente Fernando e Afonso, cujos luzidos trajes de caça e bonitos corcéis ricamente ajae­zados faziam abrir a boca aos pobres sertanejos.

Sucediam-lhes alguns emboabas mais ricos, homens de fidalgia dúbia, mas que em todo caso formavam a aristocracia do lugar e que sabiam cavalgar um pouco melhor do que Minhoto.

Atrás destes vinham os homens do povo, cerca de trinta cavaleiros brasileiros e emboabas promiseuamente. Estes tinham mais ares de aldeões, que iam a feira, do que de caçadores.

Maurício, a quem o capitão-mor tinha conferido as honras de seu monteiro-mór naquele dia, foi por este convidado a tomar lugar entre os fidalgos.  Maurício recusou-se, pretestando que, como diretor da caçada, lhe era mister estar em toda a parte, e ficou entre o povo, mas colocou-se na frente para não perder de vista a filha do capitão-mor.

Rematavam o préstito camaradas, pagens e escravos índios e africanos, uns a pé, outros a cavalo, levando pela mão as matilhas treladas, as quais ganindo, uivando e ladrando formavam a mais apropriada orquestra para aquele saimento venatório.

Entre os pagens notava-se o índio António, montan­do um robusto cavalo arreado apenas com uma encherga sem estribos e puxando uma cela de dois lindos rafeiros.

Faltavam os falconeiros com os seus falcões e nebris em punho.

Mas o espírito fértil do capitão-mor engenhou um meio de suprir essa falta. Ordenou que alguns de seus pagens levassem ao ombro ou ao punho araras e papa­gaios domésticos, a protesto de que aquelas aves com seus gritos atraíram os companheiros do mato, e assim aqueles que quisessem passarinhar, teriam com que se divertirem. A população dos arredores, que já não era pequena, acudia em peso para gozar de tão estranho, quão curioso espetáculo, e se achava estendida em alas de um e outro lado do caminho. Era isso justamente o que queria o capitão-mor. Uns, -principalmente os bugres, -queriam ver que qualidade de bicho é um capitão-mor. Outros queriam ver a filha, pois a fama de sua beleza já corria mundo. Outros tinham especial curiosidade de ver o aparato da caçada, cujo programa, se bem que não impresso, há muitos dias andava de boca em boca excitando a expectação geral.

-Queremos mostrar como se faz uma caçada em regra, dizia o capitão-mor todo orgulhoso, e não da maneira brutal por que elas aí se fazem. Em S. Paulo já quis ensaiá-la; mas aqueles paulistas são uns cabeçudos, uns emperrados... Quando embicam para um lado, não há quem lhes torça o nariz. Aqui, porém, tenho a faca e o queijo na mão; quero doutrinar meu povo.

O seu povo com efeito viu muita coisa, que lhe encheu os olhos; porém o que mais o surpreendeu e embasbacou, foi ver uma moça tão bonita, tão mimosa e tão bem trajada como a filha do capitão-mor, metida em uma caçada no meio de tantos homens através das brenhas selváticas e desertas.

Enquanto não saíram das ruas, antes caminhos ou avenidas da povoação, que era ainda um esboço informe, a cavalgada foi guardando mais ou menos a ordem marcada. Mas depois que se achavam no deserto, e se enfiaram no caminho, que serpenteando através de uma extensa planície coberta de arbustos e carrascais, vai ter ao Rio das Mortes, tudo se desmanchou.

Os emboabas quase todos, uns de propósito e por medo, outros por diversos acidentes, foram-se deixando ficar no caminho.

Aqui um caiu à toa e nunca mais pode apanhar sua cavalgadura, que se embrenhou no matagal.

Acolá outro, a quem coubera por sorte um animal manhoso e empacador, cansado de esporear sem conseguir tangê-lo para diante, nem para trás, apeou-se desesperado, largou-o no caminho e voltou para a casa dando a todos os diabos o cavalo e a caçada.

Além, um cavalo arisco e ligeiro, aborrecido da carga, voltou rapidamente sobre os pés, largou o cavaleiro de costas no chão, e disparou para trás a todo galope.

Enquanto os emboabas assim se iam ficando esparramados pelo caminho, os paulistas ao contrário se iam agrupando e isolando deles, à exceção de Maurício e mais dois outros fiéis companheiros seus, que se conservavam sempre a pouca distância do capitão-mor.

Maurício não podia abandonar a vanguarda, e tinha boas razões para isso. Não queria perder de vista a filha do capitão-mor, e não era isto só pelo amor de contemplá-la, mas principalmente para ampará-la de qualquer acidente, de qualquer perigo que a ameaçasse, fosse qual fosse a sua natureza. Bem sabia que alma perversa tinha Fernando; aquela cena sinistra da floresta no dia da chegada do capitão-mor não lhe saía da lembrança e o punha de sobreaviso.

Demais disso era seu dever marchar sempre na frente, pois que ele e Antônio eram os únicos que podiam servir de guia à comitiva, os únicos que estavam práticos nas mal trilhadas veredas daquelas broncas e mal conhecidas paragens.

Maurício sempre previdente e acautelado agregara a si dois dos seus mais valentes e resolutos patrícios, e dos que mais lhe eram afeiçoados e mais confiança lhe mereciam. E que falta não lhe estava fazendo Gil, esse companheiro sempre tão fiel e dedicado!

O grupo dos paulistas, vendo-se livre dos emboabas, que iam ficando atrás, e achando-se bastantemente distanciados da comitiva do capitão-mor, que já ia longe diante deles, começou a desabafar seus ódios e ressentimentos.

-Para princípio não estava mau, começou um. Principia pelo tronco por uma leve falta, se é que falta houve; por onde acabará ele?

-Pela forca de certo, meu caro, retorquiu outro. Preparemos nossas gargantas para a corda, ou quando não, aprontemos nossas espadas e escopetas para darmos cabo desta corja de emboabas.

-Isso sim; e devemos preparar também uma boa corda para a garganta daquele velho casmurro, que tanto berra. Que desaforo! Chamar-nos pícaros e malcriados, como se fôssemos negros de sua senzala!...

-Isso ainda é nada! E o tronco no pobre Gil!... Amanhã será bolos; depois açoites; e assim iremos de martírio em martírio até a forca. Nada! Isto não vai bem; é preciso bater-lhe o pé.

-Quando ele estava hoje lá na varanda a nos xingar como os cães, estive por um triz a meter-lhe pela boca adentro a bala de minha escopeta para fazê-lo calar.

-E eu, se não é o Maurício, que estava perto de mim a me puxar pelo braço e a dizer -tenham paciência! Tenham paciência! -Eu... Não sei o que faria.

E não me dirão vocês que sal achou o Maurício naquele esturro de emboaba para andar lhe fazendo tanta zumbaia? ... Estão vendo?... Larga de nós e lá vai juntinho com eles, que não se afasta um dedo.

-Você é bem simples; cuida então que é por amor dele...? Tão asno não é o Maurício.

-Por amor de quem, então?

-Por amor da filha, pateta; pois você não percebeu desde o dia da chegada?...

-Ai! Ai! Ai! Pior é essa. Logo vi; não devemos mais contar com ele.

-Isso é que é; não viram como ele, que é todo lá do capitão-mor, deixou o Gil ir parar no tronco, o Gil, que é capaz de dar alma e vida por ele?

-Lá isso não, patrício. Eu bem ouvi o Maurício querer punir por ele; mas a corja de emboabas com suas berreira nem o deixava falar.

-Seja lá como for, bradou com mais força uma voz, se Maurício é amigo deles, não pode ser a nosso favor, e em todo caso morram os emboabas, e leve o diabo ao Maurício.

-Cala a boca, minha gente; deixem o Maurício; vocês não sabem em que talas ele se meteu. Deixem-no, que ainda um dia ele mesmo há de ir ao tronco, levar bolos da mão do capitão-mor, depois... Talvez dançar nos três paus.

-Por quê?

-Pois ainda perguntam?... Por ter o atrevimento de andar fazendo foscas à filha do capitão-mor.

-E há de ser bem feito...

-Calem a boca; vocês estão falando à toa; eu conheço bem quem é o Maurício, e juro por minha alma, que ele não é capaz de ser contra nós...

-E eu também! Eu também, acudiram uma porção de vozes.

-Mas nem por nós...

-Sempre por nós, eu o juro ainda...

-E eu também! Eu também! Repetiram as mesmas vozes.

-Mas eu não era capaz de ter amor à filha do carrasco de meus patrícios, quanto mais de um meu amigo particular.

-É porque vocês nunca tiveram amor a mulher nenhuma, murmurou um belo e esbelto mocinho que pela primeira vez falava. Eu dou desculpa ao Maurício.

-Quem fala aí? ... Ah! É o Calixto!... Logo vi que era algum namorado. Mas você, meu menino, quer bem a filha de um pobre ferreiro, nosso patrício, e ele tem amor à filha do homem, que nos quer levar todos a tronco, a bolos e a chicote. O Gil foi o primeiro, que tomou tronco, e você está me parecendo que será o primeiro a levar bolos.

O mocinho raivou com o gracejo.

-E eu sangro a quem me vier dar bolos, bradou ele, rubro de cólera.

-Se tiveres faca, se tiveres mão...

-Eu mordo.

-Quebrante-te os dentes...

-Eu morro de raiva, gritou o moço trincando os dentes e quase a chorar, como se já fosse uma realidade o caso figurado.

-Não, não morras já, não, meu Calixto; temos ainda muito que fazer. É preciso viver ainda, e ver as coisas como marcham. Mas se as coisas continuarem como principiaram, -continua o mesmo interlocutor, avolumando a voz, -então, meus amigos, em vez de morrermos nós, morra o capitão-mor.

-Morra! Repetiram uma multidão de vozes.

-Morra tudo quanto é emboaba!

-Morra!...

-Morra também Maurício, se com eles estiver!...

-Morra!...

Nisto ouviram o tropel de um cavaleiro, que lhes vinha a galope pela frente. Logo o reconheceram; era dos companheiros de Maurício.

Embrigados pelo ódio, aqueles paulistas, moços quase todos nem se lembravam que poderiam ser ouvidos pelo capitão-mor, que talvez não andasse muito longe, e davam livre expansão ao seu ressentimento.

Como de fato estava por bem pouco. Os dois paulistas, que iam na frente com Maurício, tendo-se atrasado um pouco para poderem conversar a seu gosto, começaram a ouvir a imprudente algazarra de seus patrícios. Um deles, homem circunspecto e respeitável, partiu a todo galope para trás a fim de avisá-los e contê-los.

-Que é isto, patrícios! Bradou-lhes ele, apenas chegou à distância de poder ser ouvido. O capitão-mor vai aí muito perto e está quase a ponto de vos ouvir, e...

-E que nos importa a nós que ele nos ouça ou não! Atalhou com vivacidade. Tomara eu apanhá-lo a um canto, que hei de ensinar-lhe a não ser tão malcriado.

-Prudência, meus amigos! Replicou o encontradiço, que já tinha parado diante deles; -prudência por agora! Nós todos temos motivo de sobejo para andar com esse homem pela gorja. O ultraje que nos foi feito por esse perro vil não é coisa que se ature a sangue frio; ninguém mais do que eu o compreende, e queira Deus não seja o sinal para outros agravos e vexames ainda mais atrozes. Porém, por enquanto, paciência, meus amigos!... Ainda não é ocasião de nos vingarmos; tudo tem seu tempo.

O cavaleiro proferia estas palavras em tom quase baixo, porém com voz seca e vibrante, com o acento da cólera concentrada. Pela figura, pelo porte e pela linguagem parecia ser homem de distinção e dotado de nobres qualidades.

Os cavaleiros o ouviram com respeito e abafaram suas vozerias.

-Sigam seu caminho, prosseguiu ele, e falem com a maior prudência e circunspeção; sou eu que lhes peço. Não há de tardar o dia de nosso desforço[7].

E esporeando o cavalo foi de novo a galope alcançar seu companheiro.

Os paulistas não berraram mais, e a comitiva foi marchando sem novidade até a beira do Rio das Mortes, onde o capitão-mor havia parado à espera do resto de sua gente, a fim de tomarem alguma refeição.

Havia aí já uma ponte de madeira, tosca mas solidamente construída pelos primeiros exploradores, um pouco acima da que atualmente existe. Era por essa ponte que os habitantes de S. João, rodeando o topo ocidental da serra de S. José, se comunicavam com os da povoação deste mesmo nome, onde já existia também um rico descoberto aurífero.

À sombra de um imenso e frondente sicômoro ou gameleira, talvez coeva[8] de Tamandaré, que ficava mesmo à entrada da ponte, o capitão-mor descansava com sua família e seus monteiros à espera da falange venatória[9].

Seriam oito horas da manhã. Teve-se de esperar mais de uma hora, apesar de não exceder a uma légua o caminho percorrido. Os paulistas pouco se demoraram. Os pagens com as matilhas também não se fizeram esperar por muito tempo. Os emboabas, porém, à exceção dos que vieram juntos do capitão-mor, foram chegando de espaço em espaço, um a um, dois a dois, e no cabo de uma hora não haviam comparecido senão uns nove ou dez.

Assim, pois, a turma dos emboabas, que era superior em número, tendo perdido mais de metade pelo caminho, ficou sendo muito inferior a dos paulistas, dos quais nem um só desertou. Havia além disso a turba dos pagens, índios e camaradas, gente que não era lá muito afeiçoada aos emboabas.

Fernando atentou sobre este fato, e concebeu sérias apreensões. Os espíritos estavam irritados com os acontecimentos da manhã. Ele, Fernando, tinha ouvido, se bem que mui confusamente, as vozerias dos paulistas. Seria bem fácil a estes, aproveitando do favorável ensejo que a fortuna lhes deparava, vingarem-se cabalmente da afronta, que nessa mesma manhã haviam recebido do capitão-mor.

Fernando, pálido e inquieto, observava os paulistas, como querendo sondar-lhes o pensamento, e vomitando mil pragas contra os fracos e pusilânimes patrícios, que assim os abandonavam em tão graves e delicadas conjunturas, mal podia disfarçar sua agitação, e os cuidados que o preocupavam.

Bem mal conhecia ele esses valentes e leais conterrâneos de Bartolomeu Bueno, e não sabia que jamais seriam capazes de tão torpe e aleivoso antetado.

Bastava ir ali uma donzela, sua patrícia, para não cometerem o menor desacato, o menor ato violento.

Além disso, lá estava Maurício, e posto que sobre sua cabeça começassem a pairar algumas suspeitas, era ele querido e respeitado entre os seus, e Maurício, só no último transe, só em desespero da causa, consentiria em qualquer ato de revolta contra seu benfeitor, contra o pai de Leonor.

Mas Fernando, capaz de todas as perversidades e aleivosias, conforme a regra comum, julgava os outros por si, e portanto sua alma inquieta andava sempre entregue a mil receios e desconfianças. Tão forte era a sua apreensão, que esteve a ponto de chamar o capitão-mor de parte e ponderar-lhe o caso, e fazer-lhe sentir a conveniência de deixar a caçada para outro dia, e voltar para casa. Mas o orgulho sobrepujou o medo; teve pejo de se mostrar covarde aos olhos de Leonor, e sobretudo de Maurício. Este, porém, perspicaz e penetrante como era, bem estava percebendo a inquietação e o medo, que lhe torturavam a alma, e com isso saboreava um certo prazer maligno, que comunicava sorrindo a seus amigos.

Ao contrário, o capitão-mor, tranqüilo e folgazão, com todo o descuido e seguridade, não se preocupava senão com os cuidados de sua caçada.

Isto fazia raiva a Fernando, que dentro em si maldizia a cegueira do tio que não enxergava o terrível e eminente perigo, em que se achavam.


CAPÍTULO VIII

A caçada

O dia estava belíssimo; nem uma nuvem no céu, nem uma névoa no horizonte, o que permitia contemplar em todo o esplendor de sua beleza, ao longe como ao perto, as risonhas paisagens, que se estendem pelas faldas setentrionais da serra de S. José.

Tinha começado o veranico de Janeiro, essa curta primavera de quinze dias, que em nossos climas interrompe constante e regularmente o rigor das chuvas hibernais. O tempo portanto estava firme, e não havia a recear temporal algum. Contra os ardores da canícula os bosquetes do campo e as orlas dos capões ofereciam fresco e delicioso abrigo.

Transposta a ponte, o caminho seguia por algum tempo acompanhando o rio águas acima à sombra das matas, que lhe orlavam as margens. Mais além inclinando-se à esquerda trepava por uma extensa encosta ainda coberta de mato e ia sair nas colinas descobertas, que ondulam aos pés da serra de S. José.

São muito aprazíveis e pitorescas essas campinas ligeiramente acidentadas a tapizadas de viçoso capim, que ficam no socalco da serra. À vista daqueles campos, a fronte a mais torvada de cuidados se desenruga, o coração, por mais pejado que o tenhamos de angústias e dissabores, se dilata bebendo a longos tragos aquela aura suave e vivificante, inebriando-se nas ondas daquela luz, que enche a solidão de fulgores deslumbrantes.

A serra de S. José terá talvez duas léguas de extensão desde o lugar chamado Ponta do Morro até o ponto em que ela, baixando-se com rapidez, suprime-se completamente para dar passagem ao Rio das Mortes, fonte do soberbo Paraná.

É um ramo isolado não sei de que sistema, porque neste núcleo central de montanhas da província de Minas não vejo que se possa achar sistema. É um caos de serranias, um labirinto de vales. Os rios, que por ali tem sua origem, revolvendo-se em mil curvas, se vêem atrapalhados para acharem um caminho, que os leve ao oceano.

É assim que o Rio das Mortes, que é o mais remoto manancial do Paraná, -tendo as fontes na serra da Mantiqueira, -tão perto, quase à vista do Atlântico, se vê obrigada a dar uma volta de mais de quinhentas léguas para ir levar seu tributo ao seio do pai das águas.

O Rio Doce, que nasce nas montanhas do Ouro Preto, vê-se torturado entre montanhas e penedias, e se estorce como uma cobra esbordoada até ir achar muito longe o rumo, que a natureza lhe indicara a leste em direção à província do Espírito Santo.

A serra de S. José não tem a catadura austera, sombria e enrugada da maior parte das montanhas do centro de Minas. É um respaldo elevado, bastante íngrime, deixando apenas aparecerem nuas aqui e ali as coroas de algumas penedias soterradas, e no mais coberto até o cimo de capim e vegetações rasteiras.

Na base tem grotas e capões, a cuja sombra nascem frescas e cristalinas lágrimas. Daí se estendem para norte leiras de campinas ondulantes, -à semelhança de mamilas de uma leoa deitada, -que descendo em suave declive vão morrer de encontro às colinas fronteiras.

À meia altura da serra corre à maneira de um friso -uma espanada ou taboleiro coberto de relva, longo, direito e quase perfeitamente nivelado. À vista daquele fenômeno, que se observa em muitas outras serras de Minas, acreditareis que ali é o leito abandonado de uma estrada monumental, que aí houve há séculos, talvez em eras antediluvianas.

Para tornar mais plausível esta conjuntura, a esplanada se abate e alarga à medida que se avisinha do Rio das Mortes, perdendo-se nas baixadas selvosas, por onde ele corre nas imediações de S. João d’ El-Rei.

Nossa cavalgata, como íamos dizendo, largou o rio à direita, e depois de ter subido uma encosta coberta de mato, galgou a uma eminência descoberta, donde se divisava um magnífico horizonte. À esquerda estavam as formosas e risonhas ondulações das faldas da serra e uma série de colinas, capões, morros e vargedos, que em sucessão infinda lá iam perder em longes confusos e nebulosos; à direita os vales cobertos de sombrias e opulentas matas, por onde vinha se espreguiçando o caudaloso Rio das Mortes.

Leonor, que impressionada com os desagradáveis e nefastos acontecimentos da manhã, viera até ali sempre triste e silenciosa, sentiu-se reanimar e o coração se lhe expandiu à vista daquele alegre e esplêndido panorama.

-Bonito! -Exclamou a moça, cheia de entusiasmo; -aqui sim, a gente pode divertir-se e caçar!... Olha, meu pai!... Que bonitas campinas lá vão por aí além!... Parece o acolchoado de um imenso espreguiceiro...

-É verdade, minha filha; isto é bem lindo -respondeu maquinalmente o pai, que todo embebido com a caçada, pouco se importava com a paisagem. -Então, Maurício!... Já não é tempo de lançarmos os cães ao mato?...

-Sem dúvida, senhor capitão-mor, -acudiu Maurício; -podemos já soltar os cães. Aqui à esquerda é mata geral e fora dela muito morro. A caçada de mato é boa, mas além de perigosa não é muito divertida. O melhor é nós soltarmos os cães lá embaixo na mata, de maneira que façam lá um cerco e venham tocando os veados para estes capões, que vão beirando a serra. Há por aqui muito veado, e vossas mercês poderão ver do campo a caçada, e também, se quiserem, tomar parte nela e darem o seu tiro sem grande incômodo. Afianço-lhes que não lhes faltará em que atirar. Os veados aqui andam às manadas.

-Faze o que entenderes, Maurício -disse o capitão-mor; -e vamos com isto; mãos à obra quanto antes!

-Vou cumprir as suas ordens, senhor capitão-mor; mas será melhor que vossas mercês vão postar-se um pouco mais adiante lá naquele alto fronteiro. Dali se encherga toda a beira do mato e é mesmo muito boa espera. É carreira certa de todos os veados, que saem da mata, e vindo pelo capão acima, saltam nesse campestre, atravessam-no e vão afundar-se naquele outro capão, que lá está mais adiante.

-Pois vamos, vamos com isso quanto antes; não percamos tempo.

Maurício guiou a comitiva a uma eminência mais distante, da qual com efeito podia-se contemplar a sabor quase todo o teatro da caçada. Desse lugar descortinava-se toda a orla do capão e viam-se todas as esperas na extensão de cerca de meia légua.

Ali apearam-se junto a uma moita de pequenas árvores, que deitavam deliciosa sombra sobre o capim fresco e mimoso.

-Aqui, creio, que ficarão muito à vontade, -disse Maurício. -A sombra não é má, e se tiverem sede, aqui embaixo na cabeceira deste capão há água muito limpa e fresca.

Dito isto ordenou a Antônio e mais alguns paulistas, que conhecia por bons caçadores, que descessem a mata e fossem desatrelar os cães.

Estes imediatamente desceram com os cães pelo mesmo caminho, por onde tinham vindo e desapareceram na mata.

-Vossas mercês não querem também ficar em alguma espera? -perguntou Maurício a Fernando e a Afonso.

-Eu não! Deus me livre, replicou Fernando... Tenho lá paciência para ficar aí à estaca entregue a estas malditas vespas e motucas, que desde pela manhã nos estão atormentando!... Se algum veado vier para minha banda, pretendo pegá-lo à unha, de cavalo. O meu murzelo galopa furiosamente e não me deixará ficar mal.

-Que esperança! -Exclamou o capitão-mor sorrindo-se. -Pensas que estás caçando em nossa terra a escaramuçar lebres e raposas por aqueles prados sem tropeços nem barrancos e onde as florestas são limpas por baixo, que parecem um pomar. Mete-te nisso e verás o que acontece...

-Ora, meu tio? Respondeu-lhe o moço enfadado; -eu também tenho olhos para ver as coisas: deixe-me, que eu cá saberei haver-me.

-E eu cá também -acudiu Afonso; -como não estou para ficar de plantão para matar o tempo vou com o meu perdigueiro por esse campo afora atirar algumas perdizes.

-Perdão, senhor Afonso, -atalhou Maurício, -só se vossa mercê for para bem longe, de modo que daqui não se ouçam os seus tiros. Os cães veadeiros ouvindo qualquer tiro acodem logo, desorientando-se e perdem o rasto da caça.

-Pois bem; irei para bem longe; lá por isso não seja a dúvida.

-Também não pode ser assim, meu filho, -replicou o capitão-mor, -quem há de ficar aqui comigo e com tua irmã? Demais não é prudente que te afastes muito assim sozinho.

-Pois não ficam tantos caçadores aí mesmo debaixo de suas vistas, meu pai?...

-Tem-te, aí, menino; não quero que saias de ao pé de mim; não faltará ocasião de caçares as tuas perdizes...

Afonso, contrariado, mordeu os lábios com despeito.

-Que caçada enfadonha, meu Deus! -Murmurava consigo; -se eu adivinhasse, por Deus, que cá não vinha.

Já alguns paulistas se achavam postados aqui e acolá ao longo do capão, que partindo da raiz da serra ia por um suave declive perder-se na extensa mata, que orlava o rio.

Ocupavam as diferentes esperas, onde sabiam ser a carreira ordinária dos veados. Maurício ocupava a última espera, que ficava mais próxima à serra e ao lugar em que se achava o capitão-mor.

Os emboabas com poucas exceções pouco se importavam com a caçada, e sem se arredarem muito espalharam-se em roda pelo campo. Uns deitaram-se com a face para o céu à sombra de qualquer arbusto, e cobrindo o rosto com o chapéu, puseram-se a dormir. Outros, sonhando com o Eldorado, andavam a esgravatar a terra pelo leito das enxurradas, esperando a cada momento encontrar um rico veio de ouro, ou um grosso diamante.

Em breve o eco das grotas e das valadas acordou repercutindo os primeiros latidos dos cães, que vinham rastejando a caça. Pouco a pouco esses latidos foram-se tornando mais freqüentes e animados. A orquestra, que começara por uns sons frouxos, soltos e interrompidos, foi se aviventando em um crescendo progressivo, e de repente converteu-se em um alarido estrondoso, imenso, atroador, cujos ecos se refrangiam sonoros e vibrantes pelas quebradas e grotões da serrania. Os cães tinham dado na moita dos veados e os traziam em fuga diante de si. Os caçadores apercebidos puseram-se em atitude de atirar, vigilantes e alerta ao menor rumor. Os próprios cavalos, erguendo a cabeça, aprumaram as orelhas a escutarem aqueles ecos estranhos, que vinham perturbar o silêncio das brenhas.

Passados alguns minutos, depois que os cães encartados nos rastos vinham no mais animado e brilhante toque pelo capão acima, ouviu-se um tiro ao longe. Era o caçador da primeira espera, que por certo lá tinha tombado um cabrito. Depois mais uma e mais outra detonação reboaram cada vez mais ao perto.

Por fim retroou um último tiro mesmo na baixada da encosta, em que se achava o capitão-mor. Era Maurício, que à vista dele e toda a comitiva, com um tiro certeiro, havia feito rodopiar pelos ares e tombar exânime um nédio e formoso mateiro.

Daí a instantes três ou quatro veados, espantados e bufando, cortavam o campo aos pinotes e em diversas direções à vista de toda a comitiva e quase ao alcance de tiro.

O capitão-mor e Afonso dispararam suas armas; porém foram tiros perdidos.

-Oh! Como são lindos!... Como saltam ligeiros? -Exclamou Leonor; -o que eu queria era pilhar um vivo!...

-É o que eu vou fazer, bradou Fernando, e esporeando o cavalo partiu a toda brida atrás dum dos veados, sem atender aos reclamos do capitão-mor e de outros, que procuravam dissuadi-lo.

O cavalo corria admiravelmente, e se fosse em uma campina mais espaçosa, talvez o gentil e ousado cavaleiro tivesse alcançado a sua presa, e agarrando-a pelos cornos teria vindo depô-lo aos pés da dama de seus pensamentos. Mas o maldito veado pilhou logo o leito de uma vertente seca e embarafustou-se por entre a moita de pequenas árvores que a orlavam.

Na fúria do galope não reparava o cavaleiro no que ia por diante, e viu-se embaraçado por tal forma, que o cavalo já ia muito adiante, quando ele se achou suspenso no ar pendurado pelas mãos a uns galhos, a que a intuição rápida e instintiva do perigo o fizera agarrar-se.

Se tivesse cabelos compridos ficaria também suspenso por eles, como aconteceu a Absalão[10].

O capitão-mor e toda a sua gente e também Maurício, que vinha chegando com um gordo veado à garupa, viram o perigo, em que Fernando se achava envolvido; Maurício e mais dois companheiros correram para lá.

Fernando achava-se bastantemente maltratado, todo arranhado e contuso, com as roupas rasgadas, enfiado e indeciso sem ao menos ter resolução para ir buscar seu cavalo, que se embrenhava pelo matagal.

-Peguem-me esse maldito cavalo! -Bradou com voz áspera, apenas viu chegar Maurício com seus companheiros. -Arre! Com mil diabos!... Por aqui nem sabem doutrinar os cavalos!... São de cabeça tão dura como aqueles que os ensinam.

Maurício escutou sorrindo aquele remoque, e nem fez caso algum do tom arrogante, em que falava Fernando, em vista do humilhante e deplorável estado, em que o via.

-Tenha paciência, meu fidalgo, -replicou-lhe friamente. Vamos já pegar o seu cavalo. É bom tomar dessas lições para não se meter mais em cavalarias altas. Já não é a primeira...

Fernando bem compreendeu a terrível alusão. Mas naquele momento nada podia replicar. Calou-se e guardou mais aquela gota de fel no coração já tão saturado de ódio e perversidade.

Trouxeram-lhe o cavalo e ele tornou a montar com ar altivo e desdenhoso, sem proferir uma palavra de agradecimento e dando ordens, como se estivesse entre seus pagens.

Largando assim descortesmente aqueles que o socorreram, meteu esporas ao cavalo e foi a todo galope reunir-se ao capitão-mor.

Maurício com seus companheiros deixaram-se ficar mais atrás correndo a meio galope.

-Que atrevido! -Dizia-lhes Maurício, vocês mal sabem que peste de emboaba está ali na pessoa daquele fanfarrão! É ele que está pondo a perder o capitão-mor. O capitão-mor tem boa alma, podem acreditar-me. Não é por ser meu benfeitor e quase um pai, que digo isto... Não. Eu sempre o conheci amável, compassivo e generoso... Até o presente não tinha queixa dele... Mas esta manhã o desconheci... Por uma brincadeira mandar um homem no tronco!... Ah! Meu pobre Gil!...

-Meu caro Maurício, és muito moço, e não conheces os homens. Ele era bom e compassivo para contigo e para a gente de casa. Sabes lá o que ele faria por fora?... Demais, lá em S. Paulo ele era um simples particular.

-Nunca ouviste o ditado que diz -queres conhecer o vilão, mete-lhe a vara na mão?

-Tudo pode ser... Mas enfim sou-lhe tão grato!... Há de me doer muito n’ alma, se um dia me vir obrigado a ser contra ele. Se, porém, continuar a oprimir-nos e nos entregar ao capricho desse maldito sobrinho, não sei... Não sei o que farei...

-Hás de sabê-lo, quando um dia tu mesmo fores a vítima...

-Eu vítima!... Como!...

-Não sei, Maurício; bem conheço que a tua posição é bastante melindrosa... Mas, calemo-nos; já vamos chegando. Não faltará ocasião de conversarmos.

Calaram-se e apearam-se. Nesse meio tempo já tinham chegado os caçadores paulistas trazendo os seus despojos de caça, quatro gordos e luzidos veados mateiros, que o capitão-mor se extasiava em contemplar.

Fernando corrido e desapontado se ocupava em consertar o fato todo desarranjado e desabafava seu despeito em falar mal da América.

Afonso, encostado a uma árvore, palitava os dentes com ar risonho, pois aproveitando melhor o seu tempo tinha recorrido aos alforjes das provisões e acabava de comer salsichas, que havia regado com um bom copo de vinho, enquanto seu primo corria como um possesso atrás do veado.

O capitão-mor recomendava que tirassem com todo o jeito o couro dos veados, pois queria mandá-los de mimo ao governador da capitania.

Leonor descuidosa e prazenteira mirava e remirava os pobres animais, e ao mesmo tempo, possuída de dó e compaixão ao vê-los ensangüentados e transpassados de balas, exclamava:

-Que lindos bichinhos!... Coitados!... Antes quisera vê-los vivos e tê-los em meu terreiro!...

-Isso é fácil, senhora; -acudiu Maurício. -Não é custoso pegar um veadinho novo... Eu lhe prometo um... Eles acostumam-se muito bem em casa.

-Olhe não vá acontecer-lhe o mesmo que a meu primo, disse Leonor sorrindo.

-Não tenha susto, respondeu Maurício no mesmo tom. -Eu conheço muito bem a nossa América, e sei em que me fio.

Fernando tragou em silêncio mais esta gota do fel da humilhação.


CAPÍTULO IX

Fim da caçada

Já todos, à exceção de Fernando, contentes com o resultado da caçada, que havia corrido sem o menor perigo, sempre feliz, divertida e animada, se dispunham alegremente a voltarem para a casa.

-Acho muito cedo ainda para voltarmos, diz o capitão-mor, consultando o relógio. É apenas uma hora. Se te parece, Maurício, iremos ainda ver se matamos mais algum veado.

-Pronto, senhor capitão-mor; isso é o que menos custa. Deste para aquele outro capão saltaram alguns três ou quatro, fora os que nós não vimos. Não podem estar longe: estão cansados e devem estar amoitados por aí mesmo; agora é que é o aproveitar. Da minha parte também estou com vontade de vingar o senhor Fernando da peça que lhe pregou aquele maldito veado.

-Lá por isso não se incomode, replicou Fernando trincando os dentes. Perdôo de bom grado ao pobre animalzinho; guardo a minha vingança para outras vítimas menos inofensivas.

Maurício bem viu que estas palavras vinham sublinhadas para ele, mas fingiu não compreender.

-Não importa; redarguiu-lhe. Quero fazer umas botas do couro daquele diabo. Bem o conheci, é um mateiro atrevido, o chefe da manada, se não me engano...

-Está bem, Maurício; interrompeu o capitão-mor impacientado. Deixemos de parolagem; vamos levar a caçada adiante.

Reunidos de novo caçadores e cães, montaram aqueles a cavalo, e se encaminharam para as imediações do capão, em que se haviam mergulhado os veados, que escaparam.

Imediatamente Antônio e seus companheiros de mato desceram ao capão e lançaram os cães. Estes, porém, recusavam-se obstinadamente a tomar rasto e seguir a batida dos veados. Davam alguns passos pelo mato adentro e voltavam de novo para junto dos caçadores, de cabeça baixa, a cauda entre as pernas, o dorso arrepiado e soltando uns ganidos roucos e abafados.

Antônio logo compreendeu o que aquilo significava.

-Por aqui anda onça, disse ele a seus companheiros.

-E é mesmo, Antônio; procuremos o rasto e vamos a ela.

-De certo, não serei eu que a deixe escapar. Mas esta cachorrada não presta; deixem-me chamar os meus onceiros mestres, que ainda não me chegaram.

Antônio levou os dedos à boca, assoviou e depois chamou pelos nomes os seus onceiros. Imediatamente acudiram aos pulos quatro formidáveis e truculentos molossos[11].

Não tardaram muito em dar no rasto da onça. Os cães eriçaram o dorso e seguiram soltando uns latidos grossos e interrompidos. A turba dos veadeiros foi-lhes no encalço.

Esta notícia derramou pavor imenso entre os emboabas, que ali se achavam todos reunidos em torno do capitão-mor, aflitos e agora mais que nunca aflitíssimos para voltarem à casa.

-Dar caça à bicha! Deus nos livre! Já não me apanham. Nós viemos caçar veados e não onças; deixem isso lá para os bugres. Também já é tão tarde!... A que horas chegaremos à casa, se formos por esse mundo atrás da tal maldita. Em má hora apareceu semelhante peste! O tal caboclo, que a descobriu, que lá se avenha com ela, que eu daqui não me movo senão para casa.

Assim diziam eles entre si; e como se a onça já ali se achasse ao pé deles, uns se avizinhavam de umas pequenas árvores, que por ali havia, preparando-se para treparem; outros queriam já tomar o caminho de casa, mas ao mesmo tempo temerosos de se encontrarem com a bicha pelo caminho, deixaram-se ficar, e todos se agruparam em um bolo em roda de Maurício e Antônio à maneira de uma ninhada de pintos que se encolhem reunidos bem juntinho da asa paterna, quando ouvem o guincho do gavião.

Justiça seja feita ao capitão-mor, a Fernando, a Afonso, a alguns poucos portugueses mais, e mesmo a Leonor. Todos eles sentiram-se envergonhados à vista da pusilanimidade de seus compatriotas, e como para os punir deliberaram perseguir a onça e ordenaram que ninguém se retirasse.

Os emboabas obedeceram de mau grado e murmurando: prefeririam talvez ir ao tronco e tomar bolos da lei, do que ir se expor às garras de um bicho tão feroz.

-Se vossa mercê permite, disse Maurício, dirigindo-se ao capitão-mor, nós vamos acossá-la, e se ela der pau aqui por perto, terão vossas mercês mais esse divertimento.

-Divertimento! Safa! Exclamou um emboaba. Vá vossemecê só divertir-se, que eu não lhe invejo o regalito.

-Nem eu!

-Nem eu tampouco; depois de morta, sim, tenho vontade de vê-la.

-Lá isso também eu, que de tal bicho só tenho visto a pele.

-Não tenham medo, meus senhores, não há necessidade de se irem lançar às garras da onça. Além disso a onça do campo, não estando acuada, não faz mal a ninguém.

-Eu, da minha parte, disse Leonor, confesso que não deixo de ter algum medo, mas ao mesmo tempo tenho a mais viva curiosidade de ver uma onça acuada no pau.

-Talvez hoje possa satisfazer sua curiosidade, minha senhora, replicou Maurício. Mas deste lugar isso não será fácil. Se apraz a vossas mercês, subamos até aquela assentada, que lá fica quase no meio da serra. Daquele alto se avista todo esse capão até uma grande distância. Se não puderem ver a onça, ao menos apreciarão melhor o toque dos cães.

-Tu, porém, deves ficar conosco, Maurício, disse o capitão-mor.

-Como vossa mercê determinar. Antônio e seus companheiros são de sobejo para perseguirem e matarem a bicha, e juro que se os outros não puderem com ela, de Antônio ela não escapa.

Enquanto o índio descia ao capão e ia reunir-se a seus companheiros para perseguirem a onça, a comitiva do capitão-mor, por trilhos que Maurício conhecia, trepava com alguma dificuldade e lentidão por uma encosta íngrime, e galgava a uma esplanada, que ficava quase a meio da serra. Formava ela parte do extenso friso, de que já falamos, e que se estende ao longo da serra quase de uma extremidade a outra.

Para o lado de S. João d’ El-Rei a esplanada continuava pelo viso da montanha abaixando-se suave e progressivamente. Do lado oposto, porém, era bruscamente interrompida por um grotão profundo, ou um boqueirão estreito e despenhado, todo coberto de mato. Esse mato continuando e se alargando pela serra abaixo formava a cabeceira do capão, por onde a onça, que Antônio perseguia.

Era aquela esplanada coberta de grama espessa e rasteira, toda matizada de florinhas à semelhança de uma tapeçaria bordada. Mas essa tapeçaria estava toda ouriçada de lascas de rochedos agudos, que brotavam do chão.

Do lado da serra era limitada por uma linha de rochedos inacessíveis, de cujas fendas brotavam algumas árvores enfezadas, que penduravam sobre a esplanada seus galhos áridos e tortuosos. Pela frente e à esquerda eram despenhadeiros.

A comitiva pela maior parte conservou-se a cavalo sobre a esplanada, a fim de melhor contemplar a imensa e formosa perspectiva que tinham diante dos olhos, e devassarem a cavaleiro a extensa grenha do capão, teatro da caçada, que se estendia debaixo de seus pés crespa e ondulada à semelhança da lanuda carapinha do africano.

Quem da planície observasse aquele grupo de cavaleiros imóveis sobre o friso da montanha, cuidaria ver um baixo relevo antigo esculpido por mão de mestre sobre a cornija de um muro ciclópico.

O toque dos cães já se ia perdendo ao longe em ganidos roucos e interrompidos.

-Ainda não acuou, disse Maurício, e Deus queira que não vão parar muito longe.

-São apenas duas horas, disse o capitão-mor, depois de consultar o relógio; esperemos até as três; se até lá não tiverem dado conta de si, deixá-los-emos lá com sua onça, e voltaremos para casa.

Passaram-se alguns minutos de silenciosa expectação. Pouco a pouco os latidos dos cães foram-se tornando mais claros e amiudados; dir-se-ia que vinham-se avizinhando.

-Que te parece, Maurício? Pergunta um dos paulistas, que o acompanhavam. Não ouves?... Os cachorros estão tocando para trás... Está me parecendo que a onça está de volta.

-Bem pode ser, respondeu Maurício. Mas talvez a estejam acuando, e por isso latem mais alto... Ou talvez seja o vento, que mudou... Escutemos.

Um emboaba que estava perto deles e ouviu a conversa, enfiou com o caso, e pálido de susto foi-se a seus patrícios.

-Meus amigos, diz-lhes ele, estamos perdidos! A onça aí vem direitinho para nós.

-Deveras!... Quem te disse?

-Ora quem?... Maurício e aquele sujeito... Esles lá estão à escuta, e eles lá se entendem...

-Mas eles não a viram; como sabem que vem para cá?...

-Eu sei lá... Enfim, eles ainda estão na dúvida; vamos escutar o que eles conversam...

Os emboabas se acercaram dos paulistas, que estavam escutando e olhando com atenção para o capão, e guardavam com a maior ansiedade a primeira palavra que lhes rompesse dos lábios.

-Não há a menor dúvida! Exclamou por fim um dos paulistas, a onça aí vem de volta; os cães a vem tocando para trás.

-Pior é essa! Murmurou um emboaba; que vem ela fazer cá?

-Vem procurar a morte, amigo, e seremos nós mesmos que havemos de matá-la.

-Eu não! Vomcês lá que se arrumem.

Os emboabas, transidos de pavor, uns se conservam cosidos com Maurício e seus companheiros, outros já se ensaiavam para ao primeiro sinal de perigo treparem nas pequenas árvores, que ali se viam esparsas pela esplanada. Um deles, querendo campar de mais valente, preparava a carabina, e dizia a seus patrícios:

-Vocês estão com medo sem verem de quê; deixem a bicha vir para cá. Se investir para mim de boca aberta enfio-lhe o tiro com espingarda e tudo pela goela adentro.

Entretanto os cães se aproximavam com rapidez encostando-se cada vez mais à raiz da serra, o que denotava que a onça viria surgir bem perto do lugar em que se achava a comitiva.

-Talvez ela venha saltar aqui mesmo no meio de nós, disse Maurício em meia voz a seus companheiros para não aterrar os circunstantes. A onça perseguida não gosta do campo, e para aquele lado é quase tudo campo só. É por isso que ela voltou, e sem dúvida é por este grotão o caminho que ela procura para sair na serra e descer por esta chapada afora até enfiar-se na mata. Com isto não contava eu... Estejamos alerta.

Maurício e os dois paulistas apearam-se, e com suas armas preparadas puseram-se de observação à borda do grotão.

Daí a instantes ouviu-se o mata ramalhar entre estalos de paus secos. Um dos paulistas despejou um tiro à toa no fundo do grotão para espantar a onça, pois bem sabiam que era ela, a fim de que não viesse saltar entre os cavaleiros. Os mais valentes sentiam-se aterrados.

Os cavalos bufando inquietos, de colo alçado e orelha a prumo, queriam quebrar as rédeas, e era a muito custo que seus donos conseguiam sofreá-los. Os emboabas pela maior parte trêmulos e sem pinga de sangue encolhiam-se todos e como que queriam sumir-se pela terra adentro.

Leonor, sem perder nada do vivo encarnado, que o sol dos trópicos lhe acendia nas faces, sopeava com admirável garbo e seguridade o seu lindo e sôfrego ginete, e com um pouco de pavor, porém, com mais curiosidade ainda, aguardava sorrindo o desfecho daquela temerosa cena.

O capitão-mor, Fernando, Afonso e os cavaleiros portugueses acercaram-se dela e formaram-lhe em torno um muro de defesa.

Um instante depois de ter reboado o tiro do paulista, um formidável e truculento canguçu amarelo mosqueado de grandes malhas negras surgiu à tona do matagal da espelunca, e saltou no campo a uns cem passos do grupo dos caçadores em um ângulo agudo, que se formava no fim da esplanada entre a borda do despenhadeiro e os rochedos a prumo da serrania.

Saltando ali, o desígnio da onça era sem dúvida romper pela esplanada abaixo para ganhar a mata, mas vendo tanta gente junta trepidou por um instante, passou um olhar fosforescente sobre a turba dos cavaleiros, e imediatamente encolhendo as orelhas e tornando-se esguia como uma cobra, em dois ou três arrancos galgou a penedia e se acocorou sobre o tronco tortuoso de uma árvore, que se dependurava sobre a esplanada.

No mesmo instante uma descarga de seis ou sete tiros rompeu sobre ela; mas com tal terror e precipitação foram dados que nenhum pegou. A onça, talvez ofendida levemente, de um pulo assombroso caiu sobre a esplanada, passou como um raio por entre os cavalos, e em um momento perdeu-se das vistas, deixando a todos ilesos, mas petrificados de susto.

Leonor achava-se montada, bem como o capitão-mor, Afonso, Fernando e outros muitos, e a muito custo conseguiram sofrear seus cavalos espantados ao último ponto com a presença da onça. Alguns emboabas, que não se tinham apeado, foram a terra e tiveram de voltar a pé, porque seus animais desembestaram pela serra abaixo, e não houve mais meio de pegá-los senão em casa.

Mas o pior não foi isso. O cavalo de Leonor, cada vez mais irritado, dava pinotes e saltos assustados. Ela sustinha-se admiravelmente, procurando em vão domar e acalmar o seu ginete de modo que faria inveja ao mais destro picador. O animal, porém, quanto mais reprimido e castigado, tanto mais se enfurecia, e estava a ponto de despenhar-se com ela pelos abismos, ou de arrojá-la de encontro aos rochedos agudos, de que o chão se achava alastrado.

O perigo crescia de instante a instante. Todos olhavam para aquele espetáculo aflitivo estonteados e sem saberem o que fazer. O capitão-mor galopava em torno de Leonor gritando na maior angústia.

-Acudam!... Acudam minha filha!...

Fernando se tinha apeado, e atirava-se com todo o denodo e dedicação a ver se agarrava o cavalo pelas rédeas, ou tomava sua prima nos braços.

Afonso lembrou-se de outro expediente. Picou o seu cavalo, e puxando dos coldres uma pistola avizinhou-se de sua irmã e disparou um tiro na cabeça do cavalo de Leonor.

Infelizmente errou, e o cavalo continuava a pinotear, ficando quase a prumo, ora abaixando a cabeça e sacudindo-se com tal raiva, que parecia ter uma seta envenenada no lombo.

Aos dois cavaleiros, se bem que cheios de coragem e dedicação, faltava a principal qualidade, imprescindível na hora do perigo, o sangue frio.

Maurício, no momento em que a onça havia pulado ao chão e corrido por entre os cavaleiros, tinha galopado um instante atrás dela a ver que rumo levava, mas estacou instantaneamente ouvindo os gritos da comitiva.

Quando olhou para trás, Afonso acabava de disparar o seu tiro inútil. A moça, agarrada às crinas do cavalo, balanceava-se no ar como por milagre, pendurada sobre abismos.

Maurício arroujou para trás a toda brida o seu cavalo, desembainhou a comprida faca do mato, antes espada, e avizinhou-se. procurou jeito, e vibrando uma cutilada certeira cortou os nervos das pernas traseiras do cavalo. Este imediatamente afrouxou os movimentos, perdeu o jogo das pernas, e foi-se deixando cair.

Lesta e ágil como quem se via livre de um grande perigo, Leonor saltou fora dos arreios; mas um instante depois, pálida, extenuada e quase desfalecida em razão dos sustos e dos supremos esforços que fizera, assentou-se sobre a relva.

Esta cena passou-se em muito menos tempo, do que levamos a contá-la.

Maurício deu a mão a Leonor, e ajudando-a a levantar-se, a conduziu para seu pai que já vinha correndo para ela.

Este, depois de a ter abraçado entre lágrimas, voltou-se para Maurício.

-Maurício, meu filho! Disse-lhe com o acento da mais terna efusão. Devo-te muito!... De dia em dia tu me dás novas ocasiões de abençoar o momento em que te recolhi em minha casa, e te coloquei junto de mim... Agora acabas de salvar minha filha... De salvar a mim mesmo...

-Senhor capitão-mor, não fiz mais do que cumprir o meu dever, balbuciou confuso e comovido.

-Muito mais do que o dever!... Tens a nobreza d’ alma e as ações generosas de um verdadeiro fidalgo. é pena que não o sejas. Mas eu te juro!... Empregarei todos os meus esforços para que El-Rei te conceda os foros de fidalgo... Ninguém mais do que tu o merece. Desejo recompensar-te pelo serviço imenso, que acabas de prestar-me. Fala; o que desejas? Abre a boca e serás servido.

O capitão-mor, que na expansão de sua gratidão começara revelando o lado belo e nobre de seu caráter, não pode deixar de mostrar o reverso da medalha, o seu lado ridículo -a mania aristocrática.

-Para mim nada desejo, respondeu cortesmente Maurício; estou contente com a minha sorte e a minha condição. Para minha recompensa basta-me a sua estima. Mas se apraz a vossa mercê dar-me alguma prova de apreço por esse pequeno serviço, que era de minha obrigação, a única coisa que peço é...

-É o quê? Fala, Maurício; não te acanhes.

-É dar perdão e liberdade a meu amigo Gil.

-Pedes bem pouco, meu caro Maurício. Fica certo, que apenas chegarmos em casa, teu amigo estará solto.

Esta tocante cena não agradou muito a Fernando, nem mesmo a Afonso.

-Meu pai está caducando, dizia Afonso em voz baixa a seu primo. Dar o título de fidalgo a um bandoleiro, só porque é bom caçador...

-De certo pretende dar-lhe o título de onceiro-mor de S. Majestade, retorquiu Fernando galhofando. Ele que vá se fiando muito nesse aventureiro, que um dia lhe há de amargar a boca.

No entanto Antônio, seguido de perto por mais dois outros companheiros, com os cavalos arquejantes e esbaforidos, acabava de assomar na esplanada.

-A onça espirrou por aqui? Não, meu amo? Perguntou Antônio.

-Há poucos instantes, respondeu Maurício. Não estás vendo o esparrame que ela fez?...

-Chê!... Santa Virgem!... Exclamou o índio. Não é que a maldita aleijou o cavalo de sinha Leonor!...

-Não foi ela, fui eu, que cortei as pernas a esse medroso, que quase ia matando tua sinhá...

-Com medo da onça, não foi assim! Ah! Bichinha, hoje mesmo tu me pagas!...

-Bem, Antônio; não percamos tempo. Agora passa depressa os arreios do cavalo de D. Leonor para o teu, e vai a pé atrás da onça. Encarrego-te de vingar-nos do perigo a que aquela maldita expôs tua sinhá, e do susto que nos pregou.

-Eu que tenha as pernas cortadas como este pobre cavalo, disse Antônio desempenhando com toda a presteza as ordens de seu amo, se de hoje até amanhã não trago a pele daquela excomungada para a minha sinhá botar os pezinhos em cima dela.

Os cães que vinham chegando, ganindo e arquejando com a boca aberta e a língua dependurada, em breve se encartaram de novo no rasto da onça, arrepiaram o dorso e soltando uns latidos abafados partiram como setas e desapareceram pela esplanada abaixo.

Antônio a pé com a escopeta ao ombro, saltando com a agilidade do gamo, correu após eles.

Alguns paulistas quiseram acompanhá-lo.

-Não é preciso, gritou o índio, que já ia longe; por aqui não há caminho para cavaleiro. Deixem-me que eu só dou conta da bicha.

A comitiva desceu a rampa da montanha, e reunidos na campina todos os caçadores a toque de buzina, voltaram tranqüilamente para a povoação, levando em troféu os opimos[12] despojos da caçada.

-Esteve muito boa e divertida a nossa caçada; dizia o capitão-mor. Mas, ah! Por fim ia me custando a própria vida... Se não fosses tu, Maurício...

-Não fui eu, senhor capitão-mor. Foi Deus, que nunca se esqueceu de proteger os seus anjos.


CAPÍTULO X

Apreensões

O capitão-mor ao chegar da caçada cumpriu lealmente a sua palavra de fidalgo. Gil foi imediatamente posto em liberdade.

Mas se Gil foi perdoado, nunca mais em seu coração poderia perdoar ao capitão-mor a prisão, ou melhor, o suplício ignominioso por que passou, embora este não tivesse durado mais que algumas horas.

Já ele, como todos os paulistas, tinham aversão e ódio terrível contra os emboabas. Irritado por aquele ultraje, seu rancor não conheceu mais limites.

Além de tudo, Gil era sumamente estimado e benquisto entre os paulistas. Além de possuir alguma coisa de seu, era ele um rapaz robusto, denodado e de índole muito independente. Tanto a sua bolsa, como o seu braço valente estavam sempre à disposição dos amigos. Tinha defeitos, mas eram eles de tal natureza, que o tornavam ainda mais simpático a seus patrícios.

Se era de gênio assomado e irascível, turbulento e estouvado, era em compensação o mais serviçal e generoso dos homens.

Não podia ver de sangue frio o menor desaforo feito a seus patrícios, e arrostaria mil mortes para desafrontá-los. Também os portugueses fracos e desprotegidos o viram muitas vezes defendê-los com valor e coragem não só contra os vexames de seus próprios compatriotas, como também contra alguns caprichos por demais odientos dos mesmos paulistas. Os emboabas muitas vezes tiveram de sentir a força de seu braço, mas também muitos deles, mormente os desvalidos, lhe deveram serviços e proteção em casos apertados.

Como bem compreende o leitor, Gil devia ser idolatrado por seus patrícios e muito respeitado e mesmo temido entre os emboabas.

O primeiro ato de tirania do capitão-mor, recaindo fatalmente sobre esse moço, veio exacerbar de modo desastroso os ódios, que de há muito existiam entre paulistas e emboabas. Foi uma ofensa, que doeu profundamente no coração daqueles, e encheu de assombro e de terror a muitos destes.

Apenas Gil se viu solto, correu logo à casa de Maurício, não só para agradecer-lhe, como também para desabafar no seio do amigo a mágoa e o rancor profundo que lhe entumecia o coração.

Maurício tinha construído para si uma linda casinha, pequena e modesta, mas asseada e com cômodos necessários para um homem solteiro. ficava a umas duzentas braças da vasta e magnífica vivenda de Diogo Mendes, e dela se avistava toda esta do lado do pequeno terraço de Leonor e dos aposentos interiores.

Nessa casinha vivia ele em companhia de Antônio, que lhe bastava para todos os misteres domésticos.

Convidando e instado pelo capitão-mor para ser seu comensal, Maurício raras vezes aceitava essa honra. Amava muito sua independência, e além disso, se tinha supremo prazer em se achar na presença de Leonor, sentia ao ver Fernando tal repugnância e asco, que mal podia disfarçar. Demais, tinha cabal certeza de ser amado por Leonor. A presença assídua de seu rival junto dela não lhe causava inquietação, pois bem sabia que essa presença importuna ainda mais sensível tornaria a sua ausência. É quando temos defronte de nós um ente aborrecido que mais saudades sentimos do objeto que nos é caro.

Todavia um grande receio, uma grave apreensão se havia apoderado do espírito de Maurício. Esse receio era como um pesadelo, que o atormentava dia e noite, e o trazia em contínuo sobressalto. Desde a noite em que foi ao encontro de Diogo Mendes, ficou conhecendo até que ponto podia chegar a perversidade de Fernando. Sua imaginação, exaltada pela paixão, exagerava ainda a malvadez daquele homem devasso, atormentado pelo amor e ciúme, pela ambição e cobiça, sem nobreza nem energia de alma para sofrear os ímpetos de tão violentas e ruins paixões.

O capitão-mor, em negócios de certa ordem, era homem de alma cândida e simples ao último ponto. Como Fernando era português, e era seu parente, e era fidalgo de nascimento, entendia que devia ser um cavalheiro de lealdade e pundonor a toda prova, e não duvidava em confiar-lhe tudo, até mesmo a honra de sua filha. Entretanto, Leonor tinha-lhe aversão e medo mais do que a uma onça, pois já tivera ocasião de conhecer a quanto chegava a sua audácia e perversidade.

Maurício de sua parte estremecia ao lembrar-se que Leonor, filha sem mãe, morava debaixo do mesmo teto com aquele homem perigoso.

De feito, Leonor estava confiada unicamente aos cuidados de uma portuguesa, mulher algum tanto idosa, que desde a infância lhe servia de aia. Esta mulher, como boa criatura que era, desempenhava sempre com pontualidade os deveres de criada particular da menina, mas não tinha aquele zelo e dedicação, aquela solicitude e afeto maternal, de que tanto hão mister as moças quando chegam a essa quadra da vida, em que o coração vai devassando um mundo novo e desconhecido, cheio de flores e harmonias, mas também todo cortado de abismos e despenhadeiros.

A aia, porém, velha celibatária, que nunca tivera outros amores mais do que o seu rosário e o seu livro de orações, desconhecia esses perigos, e como boa e fiel servente contentava-se em desempenhar fria e maquinalmente os seus deveres materiais.

Confiada à inexperiência e indiferentismo dessa mulher, e à descuidadosa e cega confiança do capitão-mor, pode-se dizer que Leonor estava entregue a si mesma, e não tinha outro escudo senão o seu pudor, a energia e nobreza de sua alma para amparar-se dos perigos, de que a rodeava a paixão insensata e desordenada de seu parente.

Na exaltação de seu amor puro e desinteressado, Maurício entendeu que, uma vez que nenhuma esperança lhe restava de ser um dia esposo de Leonor, devia ser ao menos o seu gênio tutelar, velar constantemente sobre ela, amparando-lhe a vida e a honra, sem que ela, sem que seu pai, Fernando ou quem quer que fosse, o percebessem senão na hora oportuna. Já duas vezes o destino lhe havia deparado ocasião de desempenhar essa nobre missão; ele acabou por acreditar que ela lhe era confiada pelo céu, e foi esse sempre daí em diante o único e ardente anelo de seu generoso coração.

De volta da caça Maurício nem apeou-se em casa do capitão-mor; foi logo encerrar-se em casa para dar livre desafogo aos pensamentos, que lhe turbilhonavam no cérebro. Estava em verdade contente e ufano por lhe ter a sorte deparado ocasião de a um mesmo tempo salvar a vida à sua amada, e restituir a liberdade a seu amigo. Mas essas suaves emoções não eram bastantes para arrancarem sua alma do estado inquieto e aflitivo, em que se achava. A posição em que se via era das mais difíceis e embaraçosas, em que um homem se pode achar.

Com a nomeação de Diogo Mendes para capitão-mor de S. João d’ El-Rei, Maurício havia concebido as mais lisonjeiras e esplêndidas esperanças. Essa nomeação, e a escolha que dele fez o seu protetor para auxiliá-lo em seu novo estabelecimento, como pessoa de sua maior confiança, abriram-lhe de par em par aos olhos da imaginação as portas de um futuro cheio de venturas e prosperidades.

Maurício tinha o capitão-mor em conta de homem prudente e atilado, e reputava o mais próprio possível para acalmar e extinguir mesmo de todo a cizânia, que a longo tempo lavrava entre paulistas e emboabas. Gozando ele da confiança de Diogo Mendes e de grande estima e popularidade entre seus patrícios, estava em circunstâncias de poder servir de intermediário e conciliador entre o espírito independente e revolto de um, e a autoridade despótica de outro, e contribuir para que o governo do capitão-mor corresse sempre tranqüilo, próspero e benéfico.

Demais, com os relevantes serviços que esperava e podia prestar ao seu benfeitor, contava por tal modo captar-lhe a benevolência e a gratidão, que o velho fidalgo, em despeito de seus preconceitos nobiliários, não duvidaria em conceder-lhe o preciso galardão, pelo qual unicamente suspirava -a mão de sua filha; -a mão somente, porque o coração dela desse estava ele bem certo que já o tinha conquistado.

Com a chegada do capitão-mor, porém, o moço viu com indizível desgosto, que as coisas iam saindo ao invés do que havia calculado.

Não contava com o aparecimento desse personagem intruso, que vinha com tanto orgulho e arrogância interpor-se entre ele e o capitão-mor, entre ele e Leonor!... Perspicaz como era, Maurício entrevou logo sua futura situação, e compreendeu que esse homem trazia nas entranhas perversas o germe de sua própria ruína e de toda a família de Diogo Mendes, ou de grandes calamidades e desastres para a nova povoação. O ódio, que existia entre forasteiros e paulistas, algum tanto sopitado[13] pelo tempo, como faísca debaixo das cinzas, ia reviver e levantar-se como labareda irresistível ao sopro satânico daquele gênio do mal, e essa labareda não se poderia apagar senão com sangue entre cenas terríveis de furor e canibalismo[14].

E nesse caso o que faria Maurício? Abraçar franca e resolutamente a causa de seus patrícios, revoltar-se contra o seu benfeitor, contra o pai de sua adorada Leonor e expô-los ambos às mais horríveis catástrofes? Ou, desleal a seus conterrâneos, que tanto o amavam, ajudar o capitão-mor a oprimi-los, vexá-los e esmagá-los?

Em tão apertada e dolorosa colisão, que decisão tomaria ele?

Restava-lhe só um meio de furtar-se a qualquer dessas alternativas. Era retirar-se, desaparecer, fugir para bem longe, e deixar o capitão-mor, Leonor, Fernando, paulistas e emboabas entregues ao destino, que a Deus aprouvesse dar-lhes.

Mas esse passo repugnava igualmente ao seu nobre coração, mais talvez do que qualquer dos outros.

O amor, que votava a Leonor, a gratidão e respeito, que devia a Diogo Mendes, a amizade, que o ligava a Gil e tantos outros seus patrícios, não lhe permitiam abandoná-los assim covardemente, expostos a uma conflagração, que só ele talvez poderia conjurar.

Maurício compreendia vagamente a cruel conjuntura em que ia achar-se enleado, e só entrevia trabalhos, angústias e perigos, que vinham como um borrão negro apagar o risonho panorama que sua fantasia havia debuxado com tão formosas cores na tela do futuro.

Tais eram as reflexões, que passavam tumultuosas pelo espírito do mancebo, que ora se debruçava a uma janela e ali ficava largo tempo imóvel e silencioso com a cabeça entre as mãos, ora passeava rápido e agitado ao longo da pequena sala em que se achava, exalando de quando em quando em exclamações soltas as preocupações que o atormentavam.

-Isto vai mal!... Bem mal estreado vai o teu governo, meu capitão-mor!... Pões-te a perder a mim, a ti e a todos... Bem sei que a culpa não é tua... Mas quem te mandou trazer contigo esse infame... Guardas no seio uma víbora... Em breve lhe sentirás o dente!... Ah! Leonor! Leonor!... Se soubesse em que cruéis apuros vai me pôr teu pai!... Teu pai, não, esse maldito Fernando!... Oh! Se eu fosse um canguçu, com que prazer não devorava aquele coração? ... Por ora esperar... Vejamos as coisas em que dão... Tenho coragem para tudo... Hoje tenho mesmo a coragem da paciência, essa que tanta falta faz a meu bom amigo Gil... Ah! Gil!... Meu pobre Gil...

Maurício foi interrompido pelo tropel de uma pessoa que entrava. Era quase noite fechada e a sala se achava em quase completa escuridão.

Era Gil, que, apenas se viu posto em liberdade, correu à casa de Maurício para agradecer-lhe e desabafar no seio da amizade a sua cólera e justo ressentimento.

-Parece-me que ainda agora falavas no meu nome, disse a pessoa que ia entrando.

-Ah! És tu, Gil?... É verdade, lembrava-me de ti neste momento.

-Com quem estás conversando?...

-Comigo mesmo; aqui não há ninguém.

-Estás às escuras, e eu fui entrando... Desculpa-me.

-Não faz mal; às escuras ou às claras a casa é sempre tua, Gil... Eu estava cismando...

-Em teus amores de certo, não é assim?

-Não; penso também neles muito, mas agora eu estava a cismar no que hoje te aconteceu e na triste sorte que nos espera, se as coisas continuarem assim...

-Pois eu cá, só penso numa coisa; é no modo por que hei de vingar-me daquele cachorro.

-Sim! Tens razão de sobra, mas...

–Mas o quê?... Tarde ou cedo aquele casmurro há de me pagar. Tenho muita gente por mim, louvado seja Deus, e aquele patife ou há de sair bufando e pinoteando com três nós no rabo pelo caminho por onde veio, ou há de aqui largar a casca.

-Mas... Esquece por ora essa ofensa, meu Gil... Foi um ato precipitado, de que ele parece estar arrependido...

-Arrependido!... Que esperança!... Não digas tal, Maurício. Se não fosses tu, ainda agora eu estaria com os pés entalados no tronco!... Ah! Maurício! Maurício!... Isto é duro!... É insuportável!...

Dizendo estas palavras o moço chorava de raiva e desesperação. À vista de tão justa indignação, Maurício não sabia o que dizer.

-Meu Gil, diz ele, enfim, depois dum longo silêncio, as coisas deveras vão tomando um péssimo caráter, e tu bem sabes, sinto tanto o ultraje que sofreste, como se fosse feito a mim próprio. Mas não acho prudente tomarmos já uma resolução extrema; esperemos...

-Esperemos para quando ele nos levar à forca, não é assim?... Ah! Maurício, beijo-te as mãos por me teres restituído a liberdade, mas tenho dó de ti.

-Por quê?...

-Não tens os pés em um tronco, é verdade; mas tens no pescoço uma canga pior e mais pesada, que quanto tronco há... Pobre Maurício!... Não podemos contar contigo...

-E por que não? -Replicou Maurício com vivacidade, um pouco magoado das palavras de seu amigo; -é verdade que tenho sumo interesse e desejo ardente de que se acabem estas nossas fatais desavenças, e que o capitão-mor seja respeitado e querido de todos. Mas se assim não puder ser, se ele continuar a nos acabrunhar com injustiças, ultrajes e perseguições, pensas acaso que eu hei de ser traidor a meus patrícios?...

-Traidor, não; se eu te suspeitasse capaz de uma traição, nunca mais queria nem ver-te a cara. Mas não é isso, Maurício...

-Se não é isso, nada mais pode ser. Já te disse; eu hei de procurar todos os meios, empregar todos os esforços para que haja paz e boa harmonia nesta terra, e para que não haja motivo de queixa do nosso capitão-mor. Ele tem boas intenções e é bom homem, mas o tal senhor Fernando... Esse... Esse é que o há de pôr a perder e a nós todos; se não procurarmos meio de nos desfazermos dele. Desapareça de entre nós o tal fidalgote, e tu verás como tudo se endireita.

-Qual Fernando, nem meio Fernando!... É toda essa caterva! É preciso dar uma boa lição mestra a toda essa corja de emboabas. De outra sorte não teremos redenção...

-Não é tanto assim, escuta-me Gil. Tu estás muito apaixonado, e eu sei encarar as coisas com mais sangue-frio. Tu não fazes idéia do veneno que o capitão-mor nos trouxe na figura daquele homem. É ele, eu te afianço, a causa única do transtorno que vai aparecendo. Vejamos se podemos dar cabo dele, seja como for, e tu verás como as coisas tomam caminho...

-Mas se ele é carne e unha com o capitão-mor!... Para dar cabo de um, é preciso acabar com o outro.

-Talvez não seja. O capitão-mor não sabe bem ainda quem é o tal Fernando, que poucos meses há que veio de Portugal. Mas eu... Eu o conheço já como as palmas de minha mão, e talvez um dia possa abrir os olhos do velho...

-Tu!... Que esperança! A gratidão e o amor te cegam, meu caro Maurício.

-Pode ser, mas também é certo que tu não podes conhecer o capitão-mor melhor do que eu, que fui criado em casa dele. É um pouco grosseiro, arrebatado, fanfarrão, e todo cheio de sua fidalguice; mas não deixa de ter boa alma. É o tal Fernando quem lhe está virando a cabeça...

-Seja como for, o certo é que o teu homem já não é o mesmo. Foi o teu protetor, é verdade, e lhe deve ser grato; mas toma tento, Maurício; um dia talvez o raio te caia em casa, e então nesse caso respeitarás teu carrasco, porque já foi teu benfeitor, e continuarás a beijar a mão que já foi benfazeja, mas que agora te esbofeteia?...

-Não; mas nesse caso evitarei, como puder, os golpes dessa mão, que não posso cortar.

-Se tiveres tempo para isso, se ela não cair sobre ti imprevista e veloz como o raio.

-Tu me farias pensar, meu Gil, se já desde o momento de tua prisão eu não tivesse esta cabeça fervendo em mil pensamentos, que me acabrunham. Mas eu conto ainda com a tua amizade, e peço-te, em nome dela; -vamos prudenciar por enquanto. Mais um pouco de paciência; por ora não acho bom que nos revoltemos. Desgraçadamente talvez em breve nos acharemos cobertos de razão, e então -terminou Maurício, suspirando -então não haverá remédio...

-Senão acabar de vez com essa corja, disse Gil, completando a frase de seu amigo.

-Entretanto é bom excogitar algum meio de nos desembaraçarmos desse homem terrível, que para nosso mal veio em companhia do capitão-mor. Talvez possamos consegui-lo: não desesperemos.

-É bem louca essa tua esperança; mas, enfim, não quero magoar-te; farei tudo por abafar no fundo d’ alma o meu ódio, e mesmo procurarei acalmar os nossos bons patrícios, que estão ardendo por vingar-me. De mais a mais, meu amigo, estou certo que com isso não conseguimos mais do que encher a medida de nossa paciência e retardar a hora da vingança, que tarde ou cedo tem de estalar por força e com tal fúria, que ninguém mais a poderá conter.

-O céu há de permitir que assim não aconteça. Em todo caso, Gil, agradeço-te de todo o coração o sacrifício que faz por meu respeito o teu justo ressentimento, pois bem sei quanto isto te custa; e a mim também, Deus sabe quanto me custa a tragar a tua injúria, que também é minha.

-É verdade, não posso negar; este sacrifício me é bem custoso, mas tu me mereces muito mais, Maurício. Quando estavas nos braços do teu capitão-mor todo ufano e glorioso por lhe ter salvado a filha, a quem aquela turba de patifes não soube acudir, tu te esqueceste de tudo só para lembrar do pobre amigo, que cá gemia em um tronco...

-Ah! Gil! Nem falemos nisso; qual era o meu dever?...

Os dois amigos conversaram ainda por muito tempo sobre o mesmo assunto. Já eram talvez onze horas da noite, quando foram bruscamente interrompidos por um vulto, que entrava pela sala arquejante e desalinhado, trazendo ao ombro uma volumosa trouxa flácida e balofa, e que tresandava horrivelmente a sangueira e carniça.

-Uff! Exclamou o recém-chegado, arrojando ao chão a carga, que fez estremecer o soalho. -Custou, mas sempre veio!... Eu não disse ao patrão que havia de trazer o couro da bicha?

-Eu contava com isso, Antônio; caçador valente como tu não há outro; mas por que não foste levar isto a D. Leonor?... Não foi a ela que o prometeste?...

-A esta hora, patrão?

-Tens razão; mas amanhã hás de levá-la.

-Eu não; isso toca lá ao patrão; ela há de ficar muito mais satisfeita, se o mimo lhe vier das suas mãos.

-Mas foste tu que a mataste...

-Isso não importa... Mas vejam que bicha! -Continuou desdobrando o couro da onça no soalho; -doze palmos da cabeça à ponta do rabo -custou-me a pegá-la; a maldita não quis dar pau senão daí a uma légua; já era boca da noite, quando acuou e dei cabo dela; para descascá-la foi-me preciso acender fogo.

-E foste tu sozinho que mataste este monstro?! Perguntou Gil.

-Sim, senhor! Com a ajuda de Deus, e de meus cachorros.

-Apre! Continuou Gil, és um terrível mata-onças. Assim tu nos desses cabo também de outro bicho ainda mais feroz e traiçoeiro, que anda infestando esta terra...

-Qual bicho, meu senhor?

-Pois não sabes? O emboaba, Antônio.

-Oh! Quem dera!... Desse também tenho eu gana, a não ser de meu senhor Diogo Mendes, pai de sinhá Leonor...

-Pois é justamente da pele desse, que mais precisamos.

-Lá isso não, salvo se meu patrão aqui me mandar...

-Não! Não! Atalhou vivamente Maurício; -não se trata disso agora. Vai descansar, que deves ter bastante fadiga e fome.

-Com efeito, Gil! Disse Maurício, apenas o índio se retirou -começas a cumprir belamente a tua promessa de não assanhar ninguém contra o capitão-mor.

-Tens razão; mas desculpa-me; a ferida ainda está tão fresca, que não pode deixar de sangrar e arrancar-me gritos de dor e de raiva.

Como a noite ia avançada, os dois mancebos se separaram e foram ver se no leito encontravam repouso, um para seu coração ulcerado pelo ódio, e outro para a cabeça fatigada de mil desencontrados pensamentos.




CAPÍTULO XI

Ódios e amores

Passaram muitas semanas depois dos sucessos que acabamos de relatar, sem que nenhum acontecimento notável viesse perturbar a paz aparente do povoado de S. João d’ El-Rei.

No entanto, surdo descontentamento lavrava entre os paulistas, os ódios fermentavam em segredo, e em todos os ânimos havia grande desgosto e inquietação.

No palácio do capitão-mor, -e era mesmo um palácio, ao menos em relação às outras pequenas e modestas casas do povoado, -parecia reinar a mais perfeita tranqüilidade, filha do bem estar, seguridade e contentamento geral.

Não era assim entretanto.

Quem pudesse testemunhar a vida íntima dos habitantes daquele vasto edifício, compreenderia logo que não reinava entre eles essa franca e íntima união, que constitui o encanto do lar doméstico, e que cada um nutria no coração desgostos e inquietações, que não queria revelar aos outros.

O mais tranqüilo de todos era o capitão-mor. Velho soldado, afeito aos trabalhos e lides da guerra, mas de espírito imprevidente e descuidoso, era de todo impróprio para os cuidados da administração. Ao arbítrio de Fernando, que era homem de algumas letras e em quem depositava toda confiança, entregava os principais negócios da governança.

Nem por isso deixava de ter certas apreensões, que o incomodavam, mas que a ninguém comunicava. Havia julgado por demais fácil e suave a tarefa de que se havia encarregado, e leve a responsabilidade, que pesava sobre seus ombros. Mas logo ao começo foi-lhe entrando a convicção de que a sua missão tinha algum tanto não só de árdua, como de perigosa. Ele ainda não havia bem avaliado, até que ponto chegava a animosidade entre paulistas e emboabas, e a despeito de ser um homem de coragem, não deixava de arrepender-se lá consigo de ter-se metido com sua família em sertão bruto, sujeito a tantos riscos e azares.

De feito, o capitão-mor encontrava uma sociedade feita de elementos heterogêneos, que se repeliam todos, e se abalroavam em risco de terríveis explosões. Eram portugueses de rivalidade e ódio antigo travado contra os paulistas. Eram índios escravos, que só esperavam uma ocasião para massacrarem seus senhores. Eram tribos indígenas, que giravam pelas florestas, inimigas da raça européia, que os massacrava e escravizava.

A cobiça desenfreada de uns, o espírito independente e revolto de outros, o amor da liberdade selvática dos indígenas -eram outros tantos fachos de discórdia prestes a tomarem fogo ao primeiro atrito.

Só uma autoridade ditatorial armada de grande força, ou uma prudência e tino descomunal, poderiam introduzir a ordem, a harmonia e a concórdia naquele grande caos.

Estas considerações contudo não eram bastantes para perturbar o sono, nem alterar a seguridade de ânimo do capitão-mor, que cheio de confiança em si, na sua prosápia e na autoridade de que se achava revestido, com uma das mãos descansada sobre os copos de sua espada, outra sobre o bastão de capitão-mor, encarava tranqüilamente o futuro.

O que mais o incomodava era o estado de abatimento e tristeza a que via entregue sua filha. Notava que desde que havia chegado a  S. João d’ El-Rei havia ela perdido aquele ar prazenteiro e risonho, que era natural. Por mais que ela o quisesse dissimular, bem se via que lhe pesava sobre o espírito alguma grave preocupação.

O capitão-mor bem procurava saber os  motivos reais da indisposição de sua filha; mas nunca obtinha senão desculpas triviais e evasivas pouco plausíveis.

Nós, porém, bem sabemos o verdadeiro motivo de desgosto da pobre menina.

A presença de Fernando, rodeando-a por toda parte dos desvelos de seu amor, era para ela um pesadelo perene; era o espectro do infortúnio, que por toda parte a acompanhava.

Leonor era perspicaz, e não deixava de compreender a que perigos estavam expostos ela e seu pai no meio daqueles sertões habitados por tanta gente má e sem lei. Mas nada disso a aterrava tanto como o amor de seu parente Fernando. Lembrava-se com terror que, segundo todas as aparências, estava nos planos de seu pai o seu futuro enlace com esse homem, que tanto detestava, e esta idéia era como um véu negro, que cobria de trevas todo o seu porvir.

Por outro lado, Fernando, sempre sombrio e reservado, bem conhecia a aversão profunda que a moça lhe votava, e o amor extremoso que consagrava a Maurício. Já sabedor dos precedentes de ambos em S. Paulo, bem via que esse amor tinha fundas raízes no passado, e que os laços que prendiam essas duas almas se poderiam quebrar, mas nunca desatar.

Esta consideração, posto que o fizesse espumar de raiva e de ciúme, não o detinha nem embaraçava no prosseguimento de seus planos sinistros.

Cumpria-lhe a todo transe aniquilar completamente o seu rival, e para esse fim combinava noite e dia no espírito astuto e perverso os mais atrozes planos. A posse de Leonor com todas as vantagens que dessa união lhe resultavam era o único e ardente anelo de sua vida; embora a infeliz moça fosse arrastada como vítima ao altar, isso pouco lhe importava. A presença de Maurício, porém, além de ser um estorvo, fazia-lhe ferver o sangue em cólera e ciúme. Era preciso quanto antes esmagar aquele homem, fazê-lo desaparecer da face da terra.

Tinha ele para esse fim um meio bem fácil e seguro; consistia simplesmente em abrir os olhos ao capitão-mor sobre a mútua afeição dos dois jovens. Este jamais perdoaria a Maurício tal desacato a sua alta prosápia, e pelo menos o baniria para sempre de sua presença. Mas o jovem fidalgo, que queria levar a vingança muito mais longe, guardava para mais tarde esse golpe, que devia servir de complemento ao seu trama sinistro.

Demais, aquela delação desacompanhada de outros fatos arredaria simplesmente Maurício, mas acarretaria sobre ele, Fernando, todo o peso do ódio de Leonor, que nunca lhe perdoaria a desgraça de seu amante. Era-lhe mister que o jovem paulista ficasse irremediavelmente perdido no conceito não só do capitão-mor, como no de sua filha. O plano já estava assentado e ele só aguardava ensejo oportuno para pô-lo em prática.

Maurício, por sua parte, também andava entregue a bem graves apreensões. Poucas vezes ia à casa do capitão-mor, e quase sempre a chamado deste a fim de incumbi-lo do arranjo de negócios particulares, ou para pedir-lhe informações a respeito dos terrenos confiados a seu governo.

Leonor nunca deixava de aparecer-lhe, e de cumprimentá-lo com um meigo e significativo sorriso. Era essa também a única consolação que restava ao mancebo nas tribulações de seu espírito.

Nesses sorrisos e olhares, posto que dissimulados com cuidado, o espírito perspicaz e cioso de Fernando não podia deixar de enxergar o amor. Leonor estava longe de suspeitar que o primo tivesse percebido esse afeto, que julgava escondido aos olhos de todos nos mais íntimos recessos do coração. As desconfianças de Fernando, porém, já vinham de muito longe. Desde a aventura noturna da floresta na chegada de Diogo Mendes metera-se-lhe em cabeça que naquele cavaleiro, que tão audazmente viera perturbá-lo em seus colóquios com Leonor, ia encontrar um rival. Não se enganara; mas pesquisas posteriores vieram dar mais vulto a essa suspeita, e convertê-la em certeza. Por vezes a surpreendera sozinha debruçada sobre o parapeito do terraço, absorta e pensativa a olhar para a casa de Maurício, que este como de propósito parecia haver construído com vista para a do capitão-mor. Esta circunstância, a extrema dedicação do mancebo, combinando-se com o que já sabia dos precedentes de ambos em S. Paulo, geraram no espírito de Fernando a plena convicção de que eles se amavam muito e há muito tempo. Vendo confirmarem-se as suas suspeitas sentia sangrar o seu orgulho, e a muito custo podia sopear e disfarçar o ciúme furioso, que por dentro o lacerava.

Uma vez, porém, como Leonor se achasse no terraço na posição habitual, não pode conter-se, que não fosse interrompê-la em sua solitária contemplação com seus remoques e sarcasmos.

-Boa tarde, prima; -disse com sorriso malicioso.

-Ah1... O senhor estava aí!... Disse a moça voltando-se sobressaltada. -Boa tarde.

-Se não é indiscrição da minha parte, poderei saber em que está aí a cismar tão sozinha?...

-Em nada; estava tomando o fresco...

-Não está lá tanto calor... Parece-me que os horizontes desta banda têm um encanto irresistível que lhe cativam os olhos...

-Gosto de olhar para aqueles vargedos; não dão certos ares das margens do Tietê?...

-Não acho lá grande semelhança, prima, e quer me parecer que não são eles que lhe prendem os olhos; por aí há outro atrativo qualquer.

-Qual será, senhor Fernando?... Não me fará o favor de dizer!... Replicou a moça enrubescendo e erguendo a fronte.

-Parece-me que seus olhos não saem daquela casa... Acha bonita a sua arquitetura?

-Pode ser, senhor Fernando, tornou ela, levantando-se altiva e rubra, mais de indignação que de pudor.

-Mas creio que posso empregar meus olhos naquilo que bem quiser.

Fernando não deixou de desconsertar-se algum tanto com a nobre e altiva atitude da moça; mas uma vez começado o assalto, não lhe ia bem bater-se em retirada.

-Sem dúvida! -Prosseguiu ele; mas é certo que as mulheres têm certos caprichos e apetites...

-Não lhe compete julgar de meus caprichos nem de meus apetites...

-Mas se eu me interesso tanto pela senhora... Devo adverti-la...

-Advertir-me!?... De quê?

-De que está descendo de sua dignidade, rebaixando-se...

-Em que, senhor Fernando?... Por favor, fale claro.

-Já que a senhora assim o quer e se faz de desentendida,  vou falar-lhe sem rubuço... A senhora desdoura a si e a toda a família em... Em empregar seu afeto em um miserável peão.

-Ah! É isso?... Bem adiantado anda o senhor; quem lhe contou essa?...

-Meus olhos, senhora.

-Oh! São bem curiosos esses seus olhos; mas esse peão...

-Esse peão é um indigno, um ingrato, que paga o bem com a traição, e tenta levar a desonra ao lar que o abriga desde a infância.

-Ah! Senhor Fernando!... Quem sabe se não será outro, -e não esse miserável peão, -se não será algum fidalgo, quem não duvida levar a desonra aos lares que o acolheram?...

Fernando por única resposta mordeu os lábios dardejando sobre Leonor um olhar torvo e ameaçador.

-Senhor Fernando, -continuou ela sem turbar-se, -há peões muito nobres e dignos de serem fidalgos; e fidalgos há, que desonram a humanidade...

-Tudo isto é certo, senhora, mas deixemo-nos de belas palavras... Todavia não é menos certo que a filha de um capitão-mor não pode sem desonrar-se abaixar olhares de afeição sobre um miserável bandoleiro... Mas esse vilão tem de pagar bem caro a sua audácia.

-A audácia de me ter salvado a vida, não é assim, senhor Fernando?

-Ah!... Então a senhora sabe de quem falo?...

-Sei muito, senhor Fernando, e nada mais tenho a dizer-lhe, e nem é preciso que o senhor me diga mais nada.

-Dona Leonor!...

-Que me quer mais, senhor!...

-Dona Leonor, tome tento!... Breve a senhora ficará conhecendo o aventureiro para o qual dignou-se olhar com afeiçao. Eu a emprazo para breve. Cedo ele mostrará quem é, e a senhora será a primeira a amaldiçoá-lo.

-Eu?!...

-Sim; a senhora mesmo.

-Mas explique-se...

-De que serve?... A senhora não me acreditará... Os acontecimentos lhe explicarão tudo.

Ditas estas palavras, Fernando retirou-se bruscamente.

Com aquelas expressões vagas, mas sinistras e ameaçadoras, vingava-se do altivo desdém, com que a moça o tratara, deixando-lhe n’ alma o germe de uma dúvida e ansiedade cruel, ao mesmo tempo que lançava as sementes da intriga, com que pretendia cavar a ruína de Maurício.

Ao entrar na sala de visitas, onde se achava o capitão-mor, Fernando, que com o coração sangrando de despeito e furor, vinha ruminando ódios e vinganças, encontrou-se face a face com Maurício, que acabava de entrar acompanhado de Antônio. Mal deu com os olhos no paulista, estacou e ficou fulminado. Aquele encontro inesperado o desconcertou por tal forma, que tendo apenas saudado ligeira e secamente ao paulista atravessou o salão sem parar e saiu pela porta exterior, que dava para a varanda, como se alguma ocupação o chamasse para fora de casa. Ia porém somente refazer-se de sua perturbação, e recobrar o sangue frio. A presença de Maurício naquela casa era para ele um suplício, e por modo nenhum se resignaria a deixá-lo por muito tempo em face de Leonor, sem que viesse envolvê-los com o olhar inquieto, feroz e sombrio de seu eterno ciúme. Portanto, poucos minutos se demorou. Qual porém não foi o seu pasmo, quando ao voltar ao salão avistou Leonor risonha e prazenteira recostada negligentemente sobre uma enorme pele de onça estendida no chão, e cuja felpa macia e aveludada ela afagava complacentemente com sua rosada mãozinha. Em sua fronte calma e radiante de infantil contentamento tinha-se dissipado de todo a sinistra nuvem, em que ainda há pouco as palavras de Fernando a haviam envolvido.

Naquela interessante atitude, a moça estava fascinadora de beleza! Nadavam-lhe os olhos em um mar de alegria, de amor e de felicidade. Dir-se-ia a ninfa da fábula, quando sobre o dorso do touro divino atravessava as ondas risonha e triunfante, dizendo eterno adeus às praias de Creta para ir gozar mais longe os prazeres da liberdade e do amor. O capitão-mor, Afonso, Maurício e Antônio em pé em torno dela a contemplavam sorrindo.

-Como é bonita! -Exclamava Leonor alisando o pêlo marchetado e luzidio do monstro. -É pena que seja um bicho tão feroz!... Então foi esta mesma... Tu me afianças, Antônio?... Foi esta mesma que quase me ia matando... Se não fosse o senhor Maurício!... Que transe, meu Deus!... Ainda hoje fico a tremer só de me lembrar...

-É a mesmíssima, -replicou Maurício por Antônio. -Ele a matou naquela mesma tarde, e à noite trouxe-me o couro. Mas era preciso curti-lo e prepará-lo, o que leva muito tempo; é esse o motivo por que só agora veio desempenhar a sua palavra.

-E por sinal, que fui eu mesmo quem o curti, -acudiu Antônio, -e com casca de angico, que é o melhor curtume que há. Não ficou tão bonito e tão macio, minha sinhá?...

-Muito, muito, Antônio! Tu és incomparável; de um bicho feroz, que nos quer matar, sabes fazer um tapete macio e delicado...

-Como não?... Tudo quanto quiser fazer mal à minha sinhá, cai mesmo nas mãos de Antônio, seja bicho,  seja gente, ou seja diabo. Quem se atrever a respingar com ela, perde seu tempo; há de vir a ficar macio e de rastos aos pés dela, como essa pele, que aí está.

-Está bom, Antônio, -disse o capitão-mor, batendo familiarmente no ombro do índio; -sossega que ninguém quer fazer mal a tua sinhá; mas já que és tão bom caçados de onças, quero que me esfoles mais algumas destas. Por cada couro que me trouxeres dou-te duas oitavas de ouro...

-Ouro!... Que quero eu fazer com ouro?... Guarda o ouro para minha sinhá; não falta onça por aí, e meu divertimento é mesmo dar cabo delas.

Antônio retirou-se. Leonor, de enlevada que se achava com a sua pele de onça e talvez mais com a presença de Maurício, não dera por Fernando, que estacara a algum passo de distância, e também contemplava aquela cena, com a íntima satisfação que se divisava na fisionomia dos outros, mas com um olhar esguio e carregado em que o ódio e o ciúme acendiam todos os seus sinistros lampejos.

Assim esteve ele por algum tempo quedo e silencioso cevando sua raiva naquele interessante painel vivo, que lhe ralava o coração. Enfim sentiu que não lhe ficava bem o papel de estafermo, e entendeu que devia envolver-se também na conversação com os apodos e motejos sarcásticos, que lhe eram costumeiros. Avançou alguns passos, e achegou-se do grupo.

-Bravo, minha prima! -Esclamou com sorriso forçado; -como está bela sobre essa bonita pele!... É um soberbo troféu!

-Pois não é mesmo, senhor Fernando, -replicou Leonor, sempre com o mesmo sorriso de ingênua alegria.

-Foi Antônio quem o arrancou ao inimigo, que nos queria matar. Agora estou me vingando do perigo, que esta fera me fez correr... Também lhe digo e juro, que enquanto o senhor Maurício e o seu índio andarem junto de mim, não terei medo de bicho algum, por mais feroz que seja.

Enquanto Leonor dizia estas palavras, o capitão-mor se ia retirando para a varanda a conversar com Afonso; e Maurício, que sempre procurava evitar o mais que lhe era possível a presença de Fernando, os foi acompanhando.

-Pois eu lhe advirto, prima, -disse Fernando, retomando um ar grave e apreensivo, apenas se viu só em face de Leonor, -eu lhe advirto, que essas duas criaturas, que lhe inspiram tão cega confiança, devem causar-lhe mais medo quanta onça feroz há por esses matos.

-Que está dizendo, homem? -Replicou a moça, ainda com o mesmo ar jovial e descuidoso. -O senhor está zombando.

-Zombando?... Quem dera!... Imagine a prima, que um belo dia estando a dormir tranqüilamente sobre essa macia pele, sente-a estremecer subitamente debaixo de seu corpo, soltando um horroroso rugido. A senhora acorda sobressaltada, quer levantar-se, mas duas enormes patas armadas de agudas garras já estão pousadas sobre o seu peito, e o comprimem e sufocam. Abre os olhos, e vê diante de si a goela escancarada do monstro rosnando furioso por entre os alvos e navalhados dentes. A senhora vai bradar socorro, e ela atraca-lhe na garganta as agudas presas, e a leva de rastos para o fundo das florestas...

-Oh! Meu Deus!... Que horror!... Exclamou Leonor. -Mas isso é um sonho...

-Um sonho!? Sim... Por agora: mas em breve será uma realidade, se não estivermos apercebidos. Dormimos sobre um abismo, que de um dia para outro nos pode engolir; e creia-me, senhora; esse paulista, que agora todo humildade e dedicação se roja a seus pés, um dia se transformará em pantera para devorar-nos a todos, se não lhe cortarmos as garras.

-Oh! Por piedade, senhor Fernando! Deixe-me!... O senhor me assusta com suas palavras sinistras!...

Assim falando Leonor pálida e assombrada retirava-se precipitadamente da sala.

-Ah! Leonor! Leonor! -Exclamou Fernando, vendo-a partir, -louca e leviana que és!... Breve hei de ver abaixo esse teu orgulhoso desdém. Quando não tiveres no mundo proteção, nem amparo senão à minha sombra, então cairás a meus pés; eu o espero.


CAPÍTULO XII

A mina misteriosa

Gil ia cumprindo do melhor modo que lhe era possível a promessa, que como um sacrifício à amizade, fizera a Maurício de não concitar, antes procurar acalmar a animosidade dos paulistas contra os emboabas, salvo se novos vexames a isso o compelissem. De feito, por muito tempo, se algumas rixas e pequenos distúrbios se deram, nunca foi ele o provocador, e se alguma vez neles tomava parte, era para apaziguá-los.

Além da palavra dada a Maurício, havia mais um motivo, um freio, que contribuía poderosamente para conter a índole fogosa e arrebatada do mancebo, a coibir as explosões do ódio, que votava ao capitão-mor e a todos os portugueses, e é o seguinte.

Gil, que viera pobre de S. Paulo, ia adquirindo rapidamente considerável fortuna, sem que ninguém soubesse como. Na ocasião da grande caçada, nesse dia, que lhe foi tão fatal, começava ele apenas a sentir os primeiros bafejos da fortuna; mas três a quatro meses depois a contar dessa data já ele se podia ter na conta de um dos mais ricos e opulentos habitantes de S. João d’ El-Rei. Comprava escravos índios e africanos em grande número, aposseava e comprava terras, e fazia transações avultadas em valores de toda a especie. Sua natural generosidade aumentava também na proporção de seus haveres.

Não havia paulista pobre a quem não valesse com sua bolsa, como sempre lhes valera com seus serviços. Os mesmos portugueses desvalidos o achavam sempre pronto para socorrê-los.

Esta crescente e inexplicável prosperidade do jovem paulista dava muito que pensar aos habitantes de S. João, principalmente aos emboabas, que raivando de inveja procuravam atribuir à origem desonrosa tão rápido enriquecimento. Alvo do ódio, e agora também da inveja daqueles homens famintos de ouro, era-lhe mister proceder com a maior circunspecção possível, a fim de não desencarrilhar-se da senda da prosperidade em que o destino o havia lançado. Qualquer imprudência, qualquer desacato que cometesse, podia servir a seus inimigos de pretexto para a mais encarniçada perseguição. Eles aproveitariam com sofreguidão a primeira ocasião que se lhes oferecesse para aniquilar o homem, que tanto temiam e detestavam.

Demais, Gil bem conhecia o poder do dinheiro. Tinha presente o exemplo de Nunes Viana, desse opulento português, cujo nome nessa época era respeitado e temido em toda a região das Minas, e que mais tarde fez recuar o governador general da capitania tratando com ele como de potência a potência. Se conseguisse ficar rico, bem rico, Gil poderia talvez um dia calcar debaixo dos pés os seus opressores de então. A fortuna começava a sorrir-lhe de modo descomunal; convinha-lhe, pois, resignar-se a sofrer no presente para poder vingar-se cabalmente no futuro.

Todavia a prudência e abstenção de um só homem, por importante que este fosse, por maior ascendente que exercesse sobre os seus, não era bastante para abafar tantos e tão vivazes elementos de discórdia, prontos a fazerem explosão ao contato da mínima centelha.

Para esquivar-se a conflitos, e mesmo para evitar invejas e rivalidades, Gil continuou a conservar sempre o mesmo gênero de vida simples e modesta, que até ali tinha tido, e vivia quase solitário em uma casinha um pouco retirada da povoação, à guisa de um mero faiscador. As únicas pessoas que com ele moravam eram duas criaturas quase inteiramente desconhecidas do resto da população, e que apenas uma ou outra vez tinham sido entrevistas de relance.

Eram um velho selvagem e sua filha. O índio chamava-se Irabussu, que quer dizer “papa-mel”, ou “descobridor de mel”, nome que lhe deram os seus por ser ele muito amigo do mel, e muito mestre em descobri-lo e roubá-lo às abelhas do mato. A filha chamava-se Judaíba, nome que lhe vinha de Judai ou Judaíá, por ser ela de estatura esbelta e elevada, como essa formosa palmeira, que se balanceia pelas margens do alto S. Francisco.

Estes dois entes passando vida selvática e misteriosa nas imediações de um povoado já bem florescente, davam em cismar ao povo e forneciam aos emboabas assunto quotidiano para murmurações e maus juízos a respeito de Gil.

-Aquele aventureiro, -conversavam eles um dia entre si, -aqui chegou com o Maurício há pouco mais de ano, sem eira nem beira, e de repente apresenta-se dispondo de uma soma de mil cruzados!... Isto, se não é ladroeira grossa, não sei o que possa ser...

-Que o é, não pode haver dúvida alguma. Ele nenhuma lavra tem, nem rica, nem pobre; nunca teve negócio, e nem herdou coisa alguma, que eu saiba. Donde lhe vem então esse ouro?... Só se lhe cai do céu...

-Do céu!?... É mais fácil vir-lhe do inferno.

-Estou por isso; mas por que maneira...

-Muito fácil; pois vocês não conhecem um índio velho, que ele tem em casa?

-Sei, sei muito bem quem é; chama-se Irabussu; e por sinal, que é um bugre alto, seco e fino que nem um varapau; pouco aparece; mas às vezes se encontra aí pelos recantos como um fantasma assombrando a gente. Mas a que vem ao caso esse diabo de bugre?

-Ora a que vem?!... É que aquele bugre é um bruxo, um formidável feiticeiro.

-Oh, se o é!... Também eu cá o conheço; aquele maldito tem parte com o diabo, e já agora ninguém me tira da cabeça que é ele quem arranja todo aquele ouro para o Gil... É como dizia ali o patrício: o ouro não lhe cai do céu, sobe-lhe do inferno.

-Ah! Ah! Ah! -Gargalhou um emboaba, que até ali escutara com certo ar sardônico e desabusado. -Vocês parecem-me umas crianças!... Pois homens com barba na cara ainda acreditam em bruxarias?... Patetas, que ainda não atinaram com uma coisa tão simples!... Estejam certos que a riqueza do Gil não lhe cai do céu, nem tampouco lhe vem do inferno.

-Donde lhe vem então?

-Da terra; donde mais pode ser?

-Mas se ele não tem nenhuma lavra...

-Mas tem-na o bugre. Aquele ermitão das matas tem por aí melgueira oculta, alguma furna, algum buraco, onde apanha ouro aos punhados para vir trazê-lo tudo a seu senhor. Sei-o eu de ciência própria, que o tal bugre sai todas as madrugadas da casa de Gil, mete-se aí por essas brenhas, onde fica o dia inteiro, e só volta à noite, e tudo isso assim às escondidas, em horas mortas e por caminhos ocultos. Vejam lá se a coisa está ou não mais que clara?...

-É isso! É isso! Não há a menor dúvida! Vossemecê deu com o trinco! -Exclamaram muitas vozes.

-Mas se ele tem pacto com o diabo, -ponderou um, -o que poderemos fazer com ele?

-E dizem que tem uma filhota, que deve ser bruxa, mula sem cabeça ou coisa que o valha, e que o ajuda nos malefícios diabólicos, -acrescentou outro.

-Valha-me Deus! -Interrompeu impacientado o emboaba mais desabusado. -Quando se deixarão vocês de semelhantes toleimas?... Seja ele bruxo, feiticeiro, ou o diabo em pessoa, não devemos tolerar semelhante desaforo. O ouro, que sai desta terra, que El-Rei nos deu, deve ser para nós todos, e não ir inteirinho sumir-se nas algibeiras daquele maldito paulista, que tanto mal nos quer, e que se pudesse, nos engolia vivos.

-E como nos não pode engolir, pretende engolir todo o ouro destas minas!... Devemos cortar-lhe a vasa e quanto antes...

-Isso é bom de se dizer; agora resta saber por que maneira havemos de consegui-lo...

-Se o índio é bruxo, deve ser queimado vivo...

-E juntamente com o seu patrão, o tal senhor Gil...

-Por certo; tão boa é a corda como a caçamba.

-Não é preciso queimar ninguém, -atalhou aquele emboaba mais autorizado, que parecia ser o presidente daquele conciliábulo. -Basta pegar o bugre, e obrigá-lo a descobrir-nos a mina, donde tira tanto ouro...

-Mas como, se o maldito é feiticeiro, e ainda não houve quem lhe pudesse botar a mão.

-Não creia em tais patranhas, -ponderou o maioral; -ele anda por aí sozinho, e encontra-se por toda a parte. Não custa nada armar-se-lhe uma emboscada. Três, ou quatro ou cinco de nós ficam em uma espera, como se foi aos veados, e quando passar, mãos ao bicho. E eu cá bem sei onde é a melhor espera. Ali por um pequeno trilho, que vem da banda do rio, e entra pelos traseiros da casa do Gil... Percebem?... Por ali sai ele todas as madrugadas, e entra dez a onze horas da noite, trazendo a seu patrão um saquitel[15] cheio de ouro, pesando talvez de seis a oito libras!...

Estas palavras, ditas a meia voz, e em tom misterioso, puseram os emboabas boquiabertos de assombro, e com os olhos lampejantes de cobiça.

-Oito libras!!... Oito libras de ouro por dia?!!!...

-Uma arroba em quatro dias!... Quatro mil e noventa e seis oitavas!... Mais de quarenta mil cruzados!... Oh! É muito ouro!...

-Santa Virgem!... Isto é para se ficar doido!... Era quanto bastava para enriquecer todos nós, que aqui estamos.

-E entretanto tudo isso vai para o mealheiro de um maldito paulista, que se servirá desse ouro para nos espezinhar. Oh! Não; isto não se pode tragar.

-De modo nenhum!... Agarremos o maldito bugre, e ou ele nos há de mostrar a mina, ou a vida lhe há de custar.

-Isso mesmo!... O que primeiro devemos fazer é lançar mão ao bicho; o mais deixem por minha conta. E isto quanto antes. Amanhã mesmo faremos uma tentativa?... Que dizem?...

-Prontos! Prontos!... Exclamaram todos a uma voz.

Agarrar o índio era para eles o mesmo que tomar posse do Eldorado.

-Pois bem, meus amigos; coragem e disposição, que eu lhes juro que em breve tudo isto, seja bruxaria, ladroeira, ou mina oculta, há de se pôr em pratos limpos.

Esta conversa, de que acabamos de dar conta, tinha lugar entre oito ou nove portugueses. Era à tardinha e achavam-se eles tomando o fresco sentados sobre alguns toros de madeira em frente de uma bonita casinha, sita nas abas da serra do Lenheiro, e que olhava para as colinas, que lhe ficavam fronteiras além do riacho de S. João d’ El-Rei.

As últimas palavras foram ditas por aquele que parecia ser o principal de entre eles, e que era o dono da casa. Este, sem tirar nem pôr, era o mesmíssimo Minhoto, do qual creio que o leitor não se terá esquecido.

Já era mais noite que dia. Os conversadores dando por terminada a palestra já se despediam e dispunham e se retirarem, quando subitamente um deles bradou:

-Olhem! Olhem!... Ei-lo ali vai!... Não estão vendo?...

Todos os olhares se volveram espantados para o lugar que indicava o emboaba. Por diante deles, a umas vinte braças de distância, ia passando rapidamente um vulto indefinível. Ao primeiro aspecto ninguém diria que era uma criatura humana; parecia mais uma aranha gigantesca, que lá ia fugindo em movimentos desordenados e atarantada, ou galho de árvore seca, que lá rolava impelido por um furacão.

Duas finas e compridas pernas, dois braços da mesma natureza, um dos quais empunhava um arco, outro uma grande manguala, um corpo curvado para adiante, e quase tão fino como as pernas, trazendo às costas um molho de longas flechas, formavam tal composto de linhas quebradas, confusas e extravagantes, que á primeira vista era custoso dizer-se que coisa ali se movia.

-É ele!... É ele mesmo!... Bradou um dos emboabas. -Vamos!... Vamos agarrá-lo!

-Mas como! -Acudiu outro, -se ele já lá vai tão longe...

-Gritemos!... Talvez acuda, e venha!... Olé!... Quem vai lá!...

-Irabussu! Respondeu uma voz forte, áspera, gutural e medonha. E o vulto, que já ia longe, sumiu-se completamente nas sombras do crepúsculo.

-Cruzes!... Credo!... Murmuraram os portugueses benzendo-se, e sentindo arrefecer-lhes no íntimo d’ alma a coragem para a projetada empresa da prisão do índio.


CAPÍTULO XIII

O índio bruxo e sua filha

Não podemos prosseguir nesta narrativa sem nos demorarmos um momento a fim de darmos a conhecer ao leitor quem era Irabussu e sua filha.

Gil havia chegado a S. João d’ El-Rei em companhia de Maurício um ano antes da vinda do capitão-mor. Era um amigo dedicado e um excelente auxiliar que Maurício associava a si na comissão, de que fora encarregado por seu protetor.

Viera muito pobre, mas sempre alentado pela esperança de em breve enriquecer-se por meio da mineração. Sempre porém malfadado tentou ali algumas explorações e serviços, que não lhe sortiram senão trabalho e prejuízo. Desanimado de encontrar fortuna em S. João resolveu separar-se temporariamente de Maurício, agregando-se a uma turma de aventureiros, seus patrícios, que pobres também como ele e animados do mesmo desejo de descobrir ouro partiram para as minas de Ouro Preto e Ribeirão do Carmo, que começavam então a gozar de grande reputação. Gil, já conhecedor desses lugares, que alguns anos antes havia percorrido com Maurício, era ótimo companheiro, e por sua intrepidez, inteligência e traquejo da vida sertaneja, devia ser o chefe natural do bando. Nas excursões, que faziam pelos socalcos da serra do Itacolomi em procura de jazidas auríferas, um dia estes aventureiros, em número de quinze a vinte, bordejando um ribeiro, que corria por leito escarpado, profundo e pedregoso, foram-se entranhando por estreito vale coberto de espessa mata. Depois de se haverem internado bastante pelas brenhas foram surpreendidos por uma vozeria estranha, que partia do seio da floresta. Era uma orquestra horrenda de gritos selváticos e guturais, de uivos lamentosos, de bramidos de raiva e de pocemas pavorosas. Aos primeiros sons, que lhes chegaram aos ouvidos, os paulistas sentiram arrepiarem-se-lhes os cabelos, e estacaram por momentos.

-São os botocudos, que por aí andam; -murmurou um deles transido de terror; -melhor é voltarmos.

-Voltemos mesmo; -acudiu outro, -estes bugres são terríveis, e andam em bandos, que não tem conta. São dos comedores de gente, e não viemos cá para irmos parar no bucho de semelhante caterva!... Melhor sorte nos dê Deus!...

-Voltar por que, minha gente!?... Bradou Gil. Vocês estão com medo sem ver de quê. Bugre é bicho mole e espantadiço: um só de nós basta para dez deles; e basta um tiro de nossas escopetas para os espalhar todos por esse mato. Nada de voltar! Vamos ver o que significa esse berreiro. Vamos! Vamos! Vamos espiá-los. Devemos saber ao menos de que fugimos.

-Vamos! Vamos a isso! Prontos! -Exclamaram quase todos reanimados pela voz de Gil.

-Talvez não sejam muitos, -continuou Gil, -e visto não termos achado ouro por hoje, talvez possamos agarrar ao menos uma dúzia desses perros, que venderemos por um bom dinheiro aos mineiros de Ouro Preto, e assim não perderemos de toda a jornada. Vamos adiante, minha gente!... Mas não façam rumor; é preciso que não nos pressintam.

Os paulistas se puseram em movimento e foram avançando com a maior precaução e silêncio possível para o lugar, donde partia a estranha vozeria, acompanhando o curso do córrego, e rompendo a mata com a sutileza do jaguar, que rastreia a presa. Teriam andado cerca de uns mil passos, quando através dos ramos por uma aberta da floresta puderam descortinar distintamente uma das mais pavorosas e revoltantes cenas do canibalismo selvático.

Era um sítio em que o ribeiro saindo do leito profundo e solapado, em que rolava, se expandia mais desafogado ao longo de uma larga praia arenosa, formando pelo lado, em que se achavam os paulistas, uma espaçosa clareira. Derramados por essa praia, via-se agitando um numeroso bando de selvagens de todas as idades e sexos, em número talvez  de oitenta a cem. Uns porém moviam-se alegres e remoinhavam gritando, e saltando daqui para ali, enquanto outros de mãos atadas, sentados sobre a areia, estendidos no chão, ou amarrados aos troncos pelas bordas da floresta, imóveis, torvos e cabisbaixos, soltavam de quando em quando bramidos de furor, vibrando olhares de fogo e sangue sobre os que em torno deles giravam livremente. Estes, -homens, mulheres e meninos, -rodopiavam em torno das míseras presas entoando pocemas pavorosas, fazendo-lhes horrendos esgares e caramunhas, atirando-lhes bofetadas e pontapés, e cobrindo-os de maus tratos e afrontas de toda sorte. Viam-se também aqui e acolá sobre a areia alguns guerreiros mortos, e horrivelmente mutilados, e sobre eles se debruçavam alguns vultos em pleno vigor, que se ocupavam com açodamento em arrancar os dentes e cortar as orelhas aos cadáveres, que depois esquartejados e feitos em postas eram arrastados pela areia por mulheres e meninos, e arrojados na torrente, que os ia rolando nas águas ensangüentadas.

No meio porém desse bárbaro e hediondo tripúdio passava-se uma cena, se é possível, talvez mais sinistra e revoltante ainda. Na extremidade da clareira, do lado em que se achavam os paulistas, sete velhos indígenas com as mãos atadas por detrás das costas com fortes mussuranas, com os joelhos cravados na areia e o dorso alquebrado e pendido para adiante, esperavam o golpe fatal, que os devia roubar para sempre ao mundo e a sanha de seus inimigos.

Quando chegaram os paulistas, iam esses míseros velhos sendo garroteados um por um, e horrivelmente massacrados a golpes de tacape por dois jovens e robustos guerreiros, que desempenhavam alegremente tão abominável tarefa cantando e escarnecendo das miserandas vítimas.

Os paulistas logo compreenderam que era uma horda de botocudos que acabavam de vencer e aprisionar uma porção de seus inimigos, os Carijós, com quem andavam em contínuas hostilidades. Era costume entre aqueles selvagens matar os prisioneiros que a idade tornava imprestáveis, reservando os moços para vendê-los aos brancos, com os quais já se comunicavam e mantinham algum comércio, a troco de qualquer arma, droga ou quinquilharias.

Já seis dos infelizes velhos jaziam imóveis ou estrebuchavam na areia entre as últimas vascas da morte. Dois truculentos tacapes já se erguiam sobre a cabeça do derradeiro, quando uma súbita descarga de mosquetes retumbou como uma trovoada ao longo dos grotões.

Os dois executores e grande parte dos botocudos mortos ou gravemente feridos ficaram estendidos no chão estortegando-se de envolta com as suas vítimas de a pouco. Os que escaparam fugiram espavoridos soltando medonhos alaridos, e embarafustaram-se atropeladamente pelo mato, deixando aos paulistas a arena daquela cena atroz, e sem se importarem com os fugitivos, trataram logo de se apoderarem dos prisioneiros carijós, que distribuíram amigavelmente entre si como escravos, que lhes não tinham custado mais que algumas cargas de pólvora e chumbo.

Compadecido do pobre velho, que escapara, e que ninguém queria para si, mostrando-se os outros paulistas resolvidos a abandoná-lo no mato exposto de novo à barbaridade de seus inimigos, Gil o tomou para si. Mas entre os outros prisioneiros havia uma filha do velho bugre, linda cabocla, da qual um dos companheiros de Gil se tinha avidamente apoderado. O velho porém lastimava-se e rogava instantemente a Gil fazendo-se entender do modo o mais suplicante, que lhe era possível, que não o separassem de sua filha, e forçoso foi portanto, que também esta fosse adjudicada a Gil. Esse velho e essa menina eram Irabussu e Indaíba.

O velho indígena e sua filha nunca mais quiseram deixar a companhia de Gil. Quando depois de algumas exploirações sem resultado pelas serranias de Ouro Preto, Gil resolveu-se a de novo voltar para S. João d’ El-Rei, deixou-lhes a liberdade de ficarem, ou de irem para onde lhes parecesse.

Mas eles obstinaram-se em acompanhá-lo sempre. -O resto dos dias de Irabussu, -dizia este, -pertencem ao branco, que os salvou, eu devo nunca mais deixá-lo. Irabussu está velho, mas suas pernas ainda sabem andar muito, e seus olhos enxergam no escuro como os da jaguatirica. Quem sabe! Talvez um dia ainda Irabussu possa ser útil ao branco.

Irabussu acompanhava a Gil com a fidelidade do cão, obedecia-lhe como servo submisso e tinha por ele a solicitude e dedicação do mais extremoso amigo. Instalado em S. João com seu amo, raras vezes aparecia entre a gente do povoado; mesmo em casa de seu senhor bem poucos tinham ocasião de vê-lo. Andava sempre sozinho pelos matos com seu arco e flechas procurando a caça, de que se sustentava, e sumia-se às vezes dias e dias, sem que ninguém, nem mesmo seu amo, e sua filha soubessem que rumo levara. Gil não se inquietava com estas ausências, pois estava certo que no fim delas voltava o seu velho bugre trazendo-lhe punhados de ouro em pó e em folhetas. Aquele viver misterioso do bugre dava que cismar ao espírito supersticioso do povo, que o tinha já em conta de um grande feiticeiro, e se alguém acaso o encontrava pelos ermos, benzia-se uma e duas vezes, e acelerava o passo o mais que podia, afastando-se dele. Se o povo dele fugia, também ele por seu lado o evitava quanto podia, de modo que bem poucos o conheciam em pessoa, ao passo que o seu nome andava de boca em boca, e sua sombra pairava como um duende sinistro sobre o espírito do povo, que na imaginação supersticiosa já havia inventado por conta dele um sem-número de bruxarias e coisas estupendas.

Resguardado na reserva de sua vida particular, que não tinha por testemunhas senão o velho índio e sua filha, duas criaturas algum tanto misteriosas, mas inofensivas, o jovem paulista via com íntima e tranqüila satisfação ir crescendo a sua fortuna, sem que incidente nenhum viesse comprometê-lo, e cada vez mais por se coibir e comportar-se com a maior sisudez e moderação.

Mas os ódios abalados, como os materiais vulcânicos comprimidos nas entranhas da terra, têm extraordinária força de expansão, e acabam tarde ou cedo por achar uma válvula por onde rebentem, fazendo fatal e assoladora irrupção.


CAPÍTULO IV

Diligência malograda

De todos os emboabas o que mais enraivava e mordia-se de inveja pela riqueza do Gil era o minhoto. Tinha altamente gravada na memória e na costela quebrada a ofensa que recebera do mancebo no dia da grande caçada. Ficou furioso quando lhe vieram contar que naquele dia mesmo Gil fora perdoado e posto em liberdade. Queixou-se amargamente em alto e bom som e jurou por estas formais palavras:

-Uma vez que o Sr. capitão-mor não sabe desafrontar os seus patrícios, juro pela cruz de Deus vingar-me por minhas próprias mãos e da melhor forma que for possível.

Os emboabas fariam coro com as queixas e lamentações de seu bom patrício levando muito a mal o ato de clemência do capitão-mor. Mas eram lamentações abafadas e aplausos em voz baixa, que não pudessem chegar aos ouvidos do homem do tronco e da palmatória.

O enriquecimento rápido e maravilhoso do jovem paulista levara ao cúmulo o despeito do Minhoto, escaldava-lhe o cérebro, e dia e noite o enchia de tribulações, e o cercava de pesadelos e aflições mortais. A prosperidade do inimigo, ao passo que lhe assanhava o ódio e a inveja, tornava-lhe mais difícil a vingança. Pode-se com facilidade e impunemente amesquinhar, maltratar, aniquilar, matar mesmo um pobre diabo; mas suplantar um rico é negócio de maior monta; é preciso ser também rico, e além disso ter coragem e habilidade.

Mas nem por isso o Minhoto desanimava. A própria riqueza do Gil, por sua origem misteriosa, sugeria-lhe ao espírito malicioso e astuto um combinado plano de intrigas e perseguições, em que esperava bem cedo colher o inimigo e arruiná-lo completamente. Depois de indagar muito, pelos ouvidos e pelos próprios olhos veio ao conhecimento de que Gil com efeito não possuía lavra alguma, e vivia quase sozinho em companhia de um índio velho, o qual todos os dias saía-lhe de casa sem almocafre nem bateia, armado somente de arco e flechas, e trazendo a tiracolo um saquiel de couro, que saía vazio e entrava sempre cheio. O Minhoto observou este fato por mais de duas vezes e dele tirou as naturais conclusões.

-É ouro, que traz ao patrão, não resta a menor dúvida, -refletia consigo. -E de certo ele o apanha aos punhados. Está sabido donde vem a fortuna ao biltre paulista... Mas onde irá o maldito bugre descobrir tanto ouro?!... Ladroeira não pode ser. Em que lavra pode ir ele furtar assim sem ser descoberto?... Pacto com o demônio... Ah! Ah!... Ah!... Os néscios que acreditem nessas toleimas!... Eu cá não!... É mina oculta; ninguém me tira isto cá da cachola; mas juro por meu pai, que tais manhas hei de empregar, que hei de descobrir a melgueira. Deixa-te estar, paulistinha de uma figa, que em pouco hei de secar-te a gorda teta, em que chupas!...

O Minhoto, depois de muito banzar sobre o caso, não querendo repartir com ninguém um tesouro, que já julgara seu, entendeu que o melhor partido que lhe cumpria tomar era nada revelar a pessoa alguma, e ir ele sozinho espreitar o bugre em suas excursões e espiar-lhe os passos. Pungido pelo demônio da cobiça, uma bela madrugada o bom homem, superando a custo sua habitual preguiça e poltronice, foi-se meter em uma moita a alguma distância da casa de Gil, espreitando a saída do índio. Apenas viu este sair e ganhar distância, foi acompanhando-o de longe e cautelosamente procurando não ser visto. Bem cedo, porém, compreendeu que tal empresa lhe era impossível. O bugre, além de mover-se com incrível rapidez, quase nunca andava por veredas já trilhadas; metia-se pelas brenhas, atravessava brejos, trepava e descia íngrimes e escabrosas rampas, deslizando como um fantasma sem deixar o menor vestígio à flor da terra. De mais a mais dava tais e tantas voltas, que não era possível seguir-lhe a pista. Convencido de que nem com as vistas poderia acompanhá-lo, e não tendo coragem para aventurar-se sozinho pelos ermos, o Minhoto desistiu de seu propósito, e tomou a deliberação de associar à empresa mais alguns companheiros. Convidou, portanto, os seus mais íntimos, e que tinha por mais fiéis e resolutos, contou-lhes o que sabia, e de acordo com eles combinou o plano, em que já os vimos assentarem, e no dia seguinte trataram de pô-lo em execução.

Logo que anoiteceu, cinco ou seis dos mais valentes e decididos, armados e bem apercebidos, foram-se postar de emboscada em um lugar, onde, segundo as observações do Minhoto, o bugre tinha de passar impreterivelmente.

-Olhem lá, não façam fogo senão em último caso, -recomendava-lhes o Minhoto, que não quis fazer parte da diligência. -Se matarem-me o bugre, adeus ouro!... Lá se vai tudo com ele para a aternidade.

-Em todo caso, morra ele antes do que qualquer um de nós, -replicou um dos emboabas. -Ao menos o peralta do paulista ficará sem a mamata.

-Lá isto é verdade, -advertiu o minhoto. -Mas se puderem meter dois proveitos em um saco, tanto melhor. Façam todo o possível por trazer-mo vivo, mas bem amarrado e, quer queira quer não, há de ser ele mesmo, quem nos há de ir mostrar essa mina assombrosa.

Emboscados em moitas estiveram os emboabas alerta e vigilantes durante quase toda a noite, mas o bugre não apareceu. Na noite seguinte fizeram o mesmo, postados em outro lugar; mas do bugre nem a sombra viram. Mais algumas emboscadas fizeram em diferentes lugares, mas sempre sem resultado algum. Irabussu, matreiro como era, já andava desconfiado com os portugueses, e havia pressentido que o andavam espionando. Havia passado mui perto dos conservadores naquela tarde, em que formaram o plano de agarrá-lo, e alcançara por alto o sentido da conversa. Portanto, desde então redobrou de precauções, e variava todos os dias a hora e o lugar de sua entrada e saída, e de tal arte se houve, que os portugueses nunca puderam pôr-lhe as vistas.

-O maldito bugre, -diziam eles, -de certo tem pacto com o diabo, ou aliás é encantado. Não há quem o veja mais.

-Quando não, é adivinhador; de certo já sabe de tudo, amoita-se em casa e não sai mais...

-Oh! Se sai!... -Interrompeu o Minhoto, -vocês é que são uns palermas, uns homens sem disposição. Sai, que bem o sei eu. Ainda ontem um sujeito contou-me que o viu lá para as bandas do rio, e por sinal que estava a comer uma cuia de jacuba, e o sujeito fugiu a bom fugir, como se tivesse visto o diabo em pessoa.

-E nem outra coisa ele é, cá a meu ver; mas, senhor Minhoto, se ele sai e entra, não é por certo da casa do Gil.

-É de lá mesmo, sim senhor; é que Vossemecês estiveram a cochilar, senão haviam de vê-lo entrar e sair todas as noites.

-Como ele é bruxo, talvez saia pelos ares, ou tome a figura de algum bicho, de modo que nem o diabo poderá reconhecê-lo.

-Deixem-se de toleimas; não há aí nenhuma bruxaria; e que o bugre é um velhaco de trinta diabos. Mas eu cá já excogitei um plano, uma armadilha tal, que, se ele escapar, cortem-me o pescoço.

-Qual é, senhor Minhoto! Vamos a ela! Vamos a ela!

-Nada mais fácil; é fazer-se um cerco em regra à casa do Gil. Fiquem todos dois a dois postados em derredor da casa, em cerco bem apertado, de maneira que com um assovio se possam ouvir e acudir uns aos outros em caso de necessidade. Vocês são só oito; bem vejo que é pouca gente; não há remédio senão chamar mais alguns patrícios; isso é mau, porque um tesouro, por grande que seja, repartido entre muita gente, torna-se migalha, mas enfim, que remédio!... Haja cautela e boa escolha, que tudo irá bem. Fiquem pois vossemecês conchavados para amanhã mesmo se pôr as mãos à obra.

O Minhoto dava o plano e as ordens destas operações com ares de grande capitão, e era ouvido e aplaudido como um oráculo. Contudo, posto que fosse ele a alma da conspiração urdida contra Gil, eximia-se de servir de braço e entrar em ação, não só por pusilanimidade, como também pela importância, que ligava à sua própria pessoa, limitando-se a combinar planos e expedir ordens de sua casa, que era o quartel general dos emboabas.

Na noite seguinte uns quinze ou dezesseis homens organizavam o cerco em roda da casa de Gil, e foram esperar o bugre pela madrugada à hora da volta, conforme as prescrições de Minhoto. Era um bloqueio formidável, que fazia honra ao comandante, que o delineara. Dois aqui, dois ali, dois acolá, postados em curta distância, e escondidos em moitas, cercas e valados, formaram uma linha de assédio inexpugnável. Nem um fantasma poderia rompê-la sem ser pressentido.

O índio tinha de passar impreterivelmente entre esses diversos pontos ao alcance de tiro de pistola, e seria difícil senão impossível atravessá-los sem ser visto.

Enfim lá pelas três ou quatro horas da madrugada, depois de terem passado quase toda a noite alerta e firmes em seus postos, avistaram ao longe, a uns duzentos passos de distância, alguma coisa que parecia mexer-se, avançando lenta e cautelosamente em movimentos tortuosos e estrangulados. A lua já muito minguada descendo no horizonte deixara ver alguma coisa a algumas centenas de passos. Os dois homens, que se achavam no ponto a que o vulto se dirigia, logo reconheceram o bugre e, soltando um forte assovio para despertar os camaradas, avançaram a embargar-lhe o passo.

-É ele! É ele mesmo! Mãos à obra! -Gritou um deles, e imediatamente disparou à toa um tiro de pistola. Este alarma intempestivo serviu de salvação ao bugre; ele, que até ali vinha sempre avançando, ao ouvir semelhante rebate, estacou de súbito e, acachapando-se com estranho ruído por trás de uma pequena moita de arbusto, desapareceu como duende, que se tivesse sumido por debaixo da terra. Dir-se-ia a ossada de um esqueleto, que desconjuntou-se rapidamente, ou travada de paus secos, que a um golpe de vento desarmou-se, e de um só baque veio à terra.

-Que é dele?! -Perguntava um olhando atarantado para todos os lados. -Parece que derreteu-se nos ares!...

-Qual derreter-se!... Sumiu-se não sei como acolá por detrás daquela moitazinha; não viste?

-Não.

-Pois vi-o eu com estes olhos.

-Ali!... Não digas tal!... Pois semelhante almanjarra podia ali esconder-se?! Só se fosse um coelho, homem!...

-Pois sumiu-se ali, quer creias, quer não, e ali deve estar, salvo se soverteu-se pela terra adentro.

Entretanto tendo sido ouvido o alarma em todos os outros pontos em roda da casa de Gil, acudindo ao sinal os outros camaradas foram prontamente chegando.

Então, que é dele?... Que é do bugre?... Já está agarrado?... Viram-no?... Onde está ele? -perguntavam arquejantes na maior curiosidade e sofreguidão.

-Está ali! -Responderam-lhe apontando a moita.

-Ali aonde?... O que vejo ali é uma pequena moita de ramos.

-Pois atrás dela está ele agachado.

-Deveras!... É incrível!... Mas em todo o caso, avante, amigos! Coragem! Não percamos tão bela ocasião! Agarremos o bruxo, e se for preciso demos cabo dele. Avante!...

Apesar de tão entusiástica proclamação, e do heróico exemplo de coragem que dava o proclamador, avançando intrepidamente alguns passos para o lado da moita, nenhum de seus companheiros ousou arredar pé. Aqueles homens robustos e valentes por certo não teriam medo de um mísero bugre velho; mas acaso tinham eles a certeza de que não era o próprio diabo, que andava na figura daquele misterioso velho?...

-Avante, camaradas! -Continuou o mesmo intrépido proclamador. -Que vergonha!... Nós, que somos tantos, recuarmos diante de um velho caboclo estropiado!... Oh! Lembrai-vos do ouro, que iremos colher aos punhados nas minas daquele patife...

-Virgem santa! -Interrompeu com um brado de espanto um dos companheiros. -Vejam, continuou apontando para a moita, -vejam aqueles dois olhos de fogo!

Todas as vistas convergiram para o lugar indicado, onde de feito dois pequenos globos de luz fosforescente lampejavam por entre as ramas da moita, que se agitava com certo rumor surdo semelhante ao rosnar de um cão. Em ato contínuo um miado agudo, horrendo, lamentoso troou aos ouvidos dos emboabas estupefatos, e um grande gato amarelo surdiu subitamente da moita, e com os olhos em fogo pinoteando, bufando e miando desesperadamente avançou para os emboabas, e em um abrir e fechar de olhos atravessou por entre eles e desapareceu como um corisco. Confusos e trêmulos desde os pés até a cabeça aqueles homens ficaram por alguns instantes mudos e imóveis a olharem espantados uns para os outros.

Tal influência exercem sobre o nosso sistema nervoso as coisas sobrenaturais, ou que ao menos tais nos parecem.

-Não resta a menor dúvida!... O maldito bugre é encantado, feiticeiro, bruxo ou o próprio satanaz! Não há poder humano que o agarre! -É escusado teimar; vamo-nos, minha gente; vamo-nos embora daqui, antes que o cão nos apareça de novo em forma de lobisomem ou coisa pior, e que nos pregue alguma nova peça.

Assim diziam os emboabas e benzendo-se e sem olharem para trás a passos precipitados enveredaram para seus ranchos estremecendo a cada instante com medo de toparem de novo o bruxo de alguma forma ainda mais pavorosa.

CAPÍTULO XV

O gato do mato

O minhoto ficou muito desgostoso e contrariado com a notícia do mau resultado da diligência para agarrar Irabussu.

Seus patrícios tiveram o mau gosto de levar-lhe essa notícia logo ao romper do dia.

O Minhoto ainda estava deitado e em jejum natural, quando lhe bateram à porta.

Saltou da cama quase nu, embrulhou-se no capote, e foi abrir.

-Então?... Que é o bugre?

-É escusado teimar, meu caro senhor...

-Que diz?!...

-É escusado teimar, o maldito bugre é bruxo.

-Bruxo!?? Está bem!... Entrem que está fazendo frio... Tomemos uma pinga e conversemos de portas adentro... Hoje em dia os negócios não estão de se facilitar...

Entram os emboabas, que eram quatro, e mal cotando broa fria com vinho zurrapa, conversavam sobre o caso.

-Senhor Minhoto, é como lhe eu digo; o bugre tem parte com o diabo; aquela almanjarra agachou-se por trás de uma moitazinha assim... da altura de meu joelho, sumiu-se todo e quando de lá saiu, era um gato do mato.

-É tal e qual, senhor Minhoto, e que gato!... Tinha os olhos de fogo e tresandava a enxofre que tonteava...

-Que ele tem parte com o diabo não resta dúvida; mas eu sei um remédio muito bom para quebrar-lhe o encanto. Com esse ou ele há de arrebentar, ou o diabo lhe há de sair das tripas, quer queira, quer não...

-Também eu sei, um padre de boa vida para benzê-lo e esconjurar o demônio...

-Para que, patrício? Basta o cordão de S. Francisco. Pegue-se aí um cordão bento de S. Francisco, dobre-se em dois e soltem com ele duas ou três lambadas no bruxo, e se ele não se entregar manso e humilde como um cachorro, o diabo que me entre também nas tripas...

-É verdade; lembrou bem, patrício. Eu já vi lá em nossa terrinha uma mulher, que tinha o diabo no corpo; berrava e pulava como cabra, trepava pelas paredes, andava por cima dos telhados, e fazia estrepolias, e diabruras, que era um desespero. Também diziam por lá que ela virava coruja, morcego e outros bichos mais; mas lá isso eu nunca vi, mas agora acredito, pois vi ontem com estes olhos o bugre virar gato do mato... Mas voltando ao caso, não houve reza, esconjuro, nem benzedura que fizesse o diabo sair das entranhas da pobre mulher. Passou por lá um homem de Santarém, irmão leigo de um convento de S. Francisco, que sabia muitas rezas e benzeduras, e para tirar o diabo do corpo não havia outro. Chamado para ver a mulher, apenas botou os olhos nela, e que olhos, meu Deus!... Parece que ainda os estou vendo!... Grandes, arregalados!... Mas como eu ia dizendo, apenas botou os olhos nela, a mulher caiu de joelhos tremendo, e suando; o diabo começou logo a berrar-lhe nas tripas; o velho irmão desatou logo da cintura o cordão de S. Francisco, dobrou-o em três, torceu-o bem torcido, e arrumou com toda força uma vergalhada nos costados da pobre mulher, e o diabo sempre a berrar... Chorava como criança, berrava como o boi, grunhia como porco, balava como cabra, ou como ovelha, dava zurros como um asno, e enfim era uma coisa que espantava e ao mesmo tempo fazia a gente chorar de tanto rir...

Neste ponto houve muitas risadas e galhofas, das quais é escusado dar conta ao leitor.

-Vamos ao resto da tua história.

-História, não; é verdade, pois eu vi...

-Pois vá lá...

-Pois aí vai -disse o contador da história depois de ter molhado a garganta. -O velho soltou segunda vergalhada na cacunda da mulher, mas o diabo aí estava a berrar, a berrar... Soltou terceira; a mulher levantou-se de um salto, e deu um pinote, que quase esbarrou com a cabeça no teto, e caiu no chão a fio comprido desacordada...

-Arre diabo!... S. Antônio! Cruz! Ave Maria!

-Ouviu-se um estouro, como de bomba, que rebenta...

-Santa Bárbara!

-E toda casa ficou fedendo a chifre queimado... Quando a mulher voltou a si, estava livre do espírito mau! Isso eu vi com estes olhos!!

-Ah!... Estão ouvindo!... Cordão de S. Francisco no bugre!... É o único meio de pegá-lo!

-Mas ele é pagão.

-Que tem isso?... Quem tem o diabo no corpo é pior do que pagão; tira-se o diabo do corpo até dos bichos.

-Aí não é que está a dúvida, meus amigos; como é que havemos de tocá-lo com o cordão, se ele se derrete como fumaça, e não há quem lhe ponha a mão nem de leve, quanto mais dar-lhe três boas vergalhadas?...

-Para tudo há remédio, homem. Um de nós fica de tocaia armado com o competente cordão; quando o bugre tiver passando, e for dando as costas, avança a ele por detrás, já está com as três lambadas no espinhaço e humilde e entregue como um cordeirinho.

-Pois então vá você aplicar-lhe as lambadas.

-Eu não; sofro de reumatismo no braço, e não poderei puxá-las bem puxadas; aqui o compadre é que está mesmo no caso; é forçudo e animado.

-Eu!... Deus me livre!... Mandem-me entrar pela boca de uma onça, mas negócios com o capeta!... Abrenúncio[16]!...

-Então vá ali o Maneco, que é rapazinho bem disposto...

-Eu de noite não enxergo nada, nem um elefante, que esteja um palmo diante do meu nariz...

-Eu iria de boa vontade, mas estou ainda desensarado de umas maleitas, que tive; não posso apanhar sereno...

-Pior!... Então quem há de ser?...

Esta cena fazia lembrar os ratos de Lafontaine, que reunidos em conselho deliberavam atar um guiso ao pescoço de um gato, que fazia entre eles quotidianamente pavorosos estragos. Quando porém se tratou de pôr em execução o tão aplaudido alvitre, todos se recusaram.

Zangado e roendo as unhas, o Minhoto guardando completo silêncio escutava a burlesca palestra dos emboabas, e dentro d’ alma dava mil diabos a poltronice e imbecilidade de seus patrícios.

-Basta, patrícios!... Isto é uma vergonha! -Exclamou ele por fim. -Pois vocês deveras ainda têm medo de bruxarias e coisas de outro mundo?!... Eu pensei que vivia no meio de homens; agora vejo que ando a lidar com crianças, que ainda têm medo do papão. Que vergonha! Com medo de um gato largarem mão do bugre, que tinham já nas garras!...

-Mas se o gato era o próprio bugre!...

-O próprio bugre!?... Era o próprio diabo.

-É porque Vossemecê lá não estava, senhor meu; se estivesse, havia de correr como qualquer de nós.

-Eu correr de um gato! -Redarguiu o Minhoto. -Sou lá poltrão, como vocês?... Ajustava-lhe um tiro na cabeça, e fosse gato, bugre ou o diabo, estava tudo acabado.

-Isso é bom de se dizer; o bicho não deu tempo nem de se engatilhar a pistola...

-Ora! Ora! Não deu tempo! -Atalhou o Minhoto com sorriso de mofa. -Que está a dizer, homem?... Diga antes que vocês todos são uns miseráveis, que não podem com um gato pelo rabo. Ah! Ah! Ah! Ah!... O rifão[17] vem mesmo de molde para vocês... E como não hão de os paulistas chacotear de nós, e fazer-nos negaças e desfeitas?...

Como este desapiedado apodo os emboabas foram às nuvens e não fosse o Minhoto um homem de consideração em razão de seus haveres e do favor que gozava junto do capitão-mor, ali mesmo ter-lhe-iam dado uma boa lição.

E pois os emboabas corridos e indignados engoliram prudentemente o remoque, e contentaram com morder os próprios beiços.

-Pois haja-se Vossemecê lá com o seu bugre, -ousou dizer um deles depois de alguns instantes de silêncio; -que eu cá juro não meter-me em tais alhadas. O que eu digo é que se nós não pudemos pegá-lo, muito menos Vossemecê.

-Ora pelo amor de Deus, não diga asnidades, homem!... Pensa então que sou algum toupeira, como vocês, que não enxergam um palmo adiante do nariz? E que não sei o que digo, nem o que faço?... Deixem, deixem o negócio correr somente cá por minha conta e risco; tanto melhor para mim! Maior quinhão me toca, e quando vocês virem todo aquele ouro, que todos os dias vai para as algibeiras do Gil, cair-me cá no mealheiro, então é que vocês hão de torcer as orelhas comendo-se de inveja tarde e a más horas... E eu cá me rir bem ancho e satisfeito...

-Que lhe faça bom proveito; mas tenho para mim que vossemecê há de pôr a mão naquele ouro quando eu tocar as estrelas com o dedo.

-Ou quando me choverem diamantes do céu...

-Ou quando eu tiver galinhas que me ponham ovos de ouro.

-Ou quando eu...

-Calem-se, senhores tagarelas! -Interrompeu bruscamente o Minhoto -dentro em oito dias vocês verão; em menos disso espero lhes tapar a boca. Oh! A inveja e o arrependimento que vão ter já me enche de satisfação e me regala cá por dentro. Oito dias, somente, ouviram? Esperem e verão.

-Nessa não creio eu;... por que maneira?... Não me dirá, senhor Minhoto?

-Isso queriam vocês saber... Tenho os meus planos; ... ninguém os mandou serem tão poltrões e desajeitados?... Vão-se, vão-se com Deus, que eu com vocês não conto mais.

Os emboabas foram-se retirando, descontentes ao último ponto e despeitados com o Minhoto, que em verdade os havia tratado com o mais humilhante e protervo[18] desdém.

-Que pedaço de malcriado não vá ficando este piegas, depois que tem um pouco de ouro! -Iam eles conversando entre si pelo caminho.

-Cuida que tem o rei na barriga, e vai tomando assim ares de maioral... Comigo está enganado; não aturo desaforos...

-Em má hora nos meteu ele nesta toleima de agarrar o bugre. Deixem-no estar, que ainda há de precisar de nós, e muito sem brio será quem ainda lhe escute as cantilenas.

-E o biltre a nos chamar de covardes!... Ele, que é o rei dos poltrões, e que à noite não é capaz de dar um passo fora de casa!...

-Deixem-no; ele está muito altanado cuidando que já tem nas unhas o ouro do bugre; mas desse está ele tão livre, como eu de herdar a coroa de Portugal.

-Ou como eu de ser imperador de Moirama.

Assim chasqueando e maldizendo o Minhoto, os emboabas foram-se embrenhando por um caminho fundo entre duas barranceiras, espécie de vala cavada pela roda dos carros e pelas enxurradas. Essa vereda estreita e profunda descia para o ribeirão, à borda do qual tinham eles suas habitações.

Eis senão quando um vulto colossal, saltando de um barranco a outro, passou-lhes rapidamente por cima das cabeças como uma galhada de pau seco, que lá ia volando impelida pelo furacão.

-Santa Virgem! -Misericórdia! -Valha-me Nª. Senhora?! -Com mil diabos!... Que é isso, que lá vai?!... Exclamaram a um tempo os emboabas transidos de pavor.

-Irabussu! -Respondeu de cima do barranco uma voz estridente, gutural, terrível.

Benzeram-se os emboabas e, apertando o passo, o mais que podiam, não respiraram tranqüilos enquanto não saíram do caminho escavado, e não se acharam entre algumas casas, que havia adiante. Olharam para todas as partes, tudo esquadrinharam com os olhos, e nem sombra viram de Irabussu. Acabaram de convencer-se de que era ele um duende, um ente sobrenatural, contra o qual nada podiam as forças, nem astúcias humanas.

Estou certo que o leitor não será tão simples e crédulo como aqueles bons campônios de Portugal, que tanto acreditavam em bruxarias e visões sobrenaturais. Todavia, para que em seu espírito não reste a menor dúvida, é bom que eu lhe conte antes de terminar este capítulo, como foi o caso do gato de mato.

Ao ver-se atacado pelos emboabas, o matreiro velho saltou rapidamente a esconder-se por trás de uma pequena moita de ramos, único abrigo que encontrou mais perto; ali estendeu-se chato sobre o chão, de modo que ele com seus longos e descarnados membros, com todo o seu armamento de arco, flechas e manguala, acaçapando-se de chofre como um feixe de ossadas, sumiu-se como por encanto. Abriu com presteza o tampo do balaio e ao mesmo tempo mordendo com força a cauda do animal, que saía pela extremidade oposta, o fez saltar sobre os emboabas furioso, com os olhos em brasa, pinoteando e soltando uivos horríveis.

Graças a este ardil o bugre pôs em fuga precipitada os seus inimigos, e pode entrar tranqüilamente em casa de seu patrão.


CAPÍTULO XVI

Ir buscar lã e sair tosquiado

Se o Minhoto trazia Gil atravessado na garganta e só excogitava meios de aniquilá-lo, Fernando, que votava a Maurício ódio mais sério e mais profundo ainda, também de sua parte só aguardava um ensejo de vingar-se dele, arrastando-o à última perdição. E não só aguardava, procurava mesmo provocar esse ensejo.

Com grande desespero seu a povoação de S. João d’ El-Rei ia vivendo até ali com inalterável sossego. Maurício, como sabemos, tinha sumo interesse em manter a boa harmonia entre paulistas e emboabas. Gil também, depois que começara a enriquecer-se, sopeava quanto podia, o seu gênio arrebatado, e punha o maior empenho em evitar qualquer conflito entre eles.

Graças aos conselhos e à influência desses dois homens, que por seu caráter e importância exerciam grande ascendente sobre o ânimo de seus patrícios, durante alguns meses não se dera o menor distúrbio, a menor querela entre os habitantes daquele povoado, e com grande desgosto de Fernando a palmatória pendia ociosa e os troncos cobriam-se de bolor à míngua de fregueses.

O capitão-mor, homem pacato e pouco avezado aos trabalhos administrativos, contentava-se com desfrutar as vantagens e honras inerentes a seu cargo, e deixara a Fernando, seu secretário e confidente, o cuidado dos mais importantes negócios da governança.

Fernando, com efeito, além de possuir alguma instrução, era inteligente, dotado de espírito penetrante, de caráter enérgico e resoluto. Teria eficazmente auxiliado as boas intenções do capitão-mor, se as ruins paixões, a desmesurada cobiça e ambição não lhe frustrassem aqueles belos predicados, dando-lhes quase sempre funesta e maléfica direção.

Estudava mil planos para assanhar de novo os ódios mal extintos entre paulistas e portugueses, e não poupava meios para provocar uma explosão, um ato de rebeldia da parte daqueles. Fazia o capitão-mor expedir ordens arbitrárias e tirânicas, dar decisões injustas e trazer os paulistas debaixo da mais humilhante e vexatória vigilância. Enfim, para levar ao extremo a longanimidade e paciência destes, não lhes foi permitido reunirem-se além de um número mui limitado, e foi-lhes proibido darem jantares, folguedos ou outras quaisquer festas sem expressa licença do capitão-mor.

Mas nem assim Fernando até ali havia conseguido ver realizados os seus perversos intentos. Os paulistas, aconselhados por Gil e Maurício, suportavam com a maior resignação todos os vexames de que eram vítimas; viam sem articularem uma só queixa, o favor odioso com que eram tratados os emboabas, curvavam-se submissos a todas as ordens do capitão-mor, ainda as mais iníquas e vexatórias. Esperavam cobrir-se de razão para poderem reagir em tempo e sem precipitação contra a opressão, de qualquer modo que fosse. E, pois, contanto que lhes não tocassem na pele, por enquanto tudo iam suportando.

Às dez para onze horas dessa mesma manhã, em que o Minhoto havia despedido tão grosseiramente seus patrícios por não terem podido servi-lo à medida de seus desejos, Fernando, pensativo e agitado, passeava sozinho a passos largos no salão do capitão-mor.

Poucos momentos antes Maurício acabava de sair desse mesmo salão. Viera solicitar do capitão-mor licença para ir a uma caçada em companhia de dez ou doze patrícios seus. O capitão-mor estava disposto a conceder-lhe, sem a menor hesitação. Mas Fernando interpôs-se. Com mal disfarçada hipocrisia declarou que nenhuma desconfiança nutria a respeito de Maurício; mas como semelhante licença tinha sido recusada a outros paulistas igualmente importantes e dignos de conceito, estes de certo se magoariam com aquela exceção odiosa.

Alegou mais outras razões igualmente especiosas, às quais o capitão-mor, depois de breve hesitação, acedeu com a costumada facilidade.

-Maurício, não te enfades; -disse o capitão-mor, como para consolar o mancebo, e excusar-se de seu rigor para com ele; -é preciso acomodarmo-nos às circunstâncias; as coisas hão de melhorar, e em breve terás a liberdade de fazer o que quiseres.

-Com vossa mercê jamais me enfadarei, -respondeu o moço em voz alta, e acrescentou mentalmente; -se vossa mercê infelizmente não é quem governa!... Pobre velho!... Tu não vês que a esse perverso, que tens ao lado, convém manter-te o espírito em eterna desconfiança contra nós outros, os paulistas?... Não sei, não sei onde isto irá parar!... Mas soframos e esperemos um pouco ainda...

Assim murmurando consigo o paulista retirou-se; o capitão-mor recolheu-se ao interior da casa.

-E não é que estes perros com a sua paciência já vão cansando a minha! -Resmungava Fernando achando-se só no salão, e passeando a largos passos, como já o vimos. -Em Maurício tão altaneiro e atrevido parece-me agora um cordeiro!... Será medo?... Por certo que não; eu bem os conheço, estes tais paulistas! Indomáveis e manhosos como os seus burros de Sorocaba!... Tudo isto é manha, eu bem os compreendo!... Estão tramando alguma! Mas... comigo estão enganados. Hei de desconcertar todos os seus planos por ardilosos que sejam!... Entretanto, o tempo passa; o tal Maurício vai cada vez mais ganhando consideração, e o Gil riquezas, que eu não sei donde as tira!... Nada! Isto não vai bem!... É preciso abatê-los, calcá-los aos pés, e quanto antes.

Neste ponto batem palmas à entrada da varanda, e Fernando ouve uma voz esganiçada:

-Dá licença, senhor capitão-mor?...

-Quem será mais este maldito importuno?... Quererão mais alguma licença?... -Dizia consigo Fernando, indo ver quem era. Mal reconheceu o novo visitante.

-Ah! É o senhor Minhoto? -Exclamou com afabilidade e cortesia, -muito bem aparecido!... Faça favor de entrar.

-Não está em casa o senhor capitão-mor? -Perguntou o Minhoto entrando.

-Está, meu amigo; mas... passou mal a noite; está ainda acomodado.

Fernando gostava de ir receber no topo da escada as pessoas que procuravam o capitão-mor, e sempre que lhe era possível, o dava por ausente, ou por doente. O bom fidalgo queria livrar de inúteis importunações o seu velho parente, e sobretudo queria primeiro do que ele ser sabedor de todos os negócios, e para isso tinha boas razões.

-Sinto muito!... Isso é mau; -tornou o Minhoto coçando a peruca; -tinha a conversar com ele sobre um particular... Coisa bem importante, senhor Fernando.

-Coisa importante! -Exclamou o fidalgo, cujo interesse e curiosidade se estimulara. -Mas, se não é segredo, por que não a diz a mim? Bem sabe que faço as vezes do Sr. capitão-mor.

-Sei disso, senhor meu, mas...

-Mas o quê, senhor Minhoto?

-Mas enfim, -respondeu o emboaba, depois de um instante de hesitação, -o caso não é de segredo, ao menos para vossa mercê, que mais tarde ou mais cedo enfim de contas há de vir a saber de tudo.

-Muito bem! Nesse caso queira sentar-se, e vamos ao seu negócio importante.

Fernando recostou-se à cabeceira de um largo sofá de sola lavrada, e convidando o Minhoto a sentar-se em uma cadeira junto dele, pôs-se em atitude de escutá-lo com a maior atenção.

O Minhoto contou-lhe mui detida e circunstanciadamente a história, que corria pela povoação a respeito de Gil e do seu índio; exagerou a crescente e misteriosa fortuna do paulista, e relatou com toda a minudência quanta historieta extraordinária e miraculosa circulava entre o povo acerca do bugre feiticeiro, e concluiu que se todo aquele ouro não era adquirido por meio de malefícios diabólicos, então provinha de algum roubo, ou de alguma mina escondida. -Em todo caso, -terminou ele, -semelhante negócio é mal permitido, e o senhor capitão-mor deve dar providências, para que não continue.

-Sem dúvida, meu caro senhor Minhoto! -Exclamou Fernando levantando-se e esfregando as mãos com mostra de visível satisfação! -Sem dúvida!... O negócio é importante, e mais do que vossemecê pensa. Se é roubo, -no que não creio, -deve ser descoberto, e enforcado o ladrão. Se é mina oculta, é ainda um roubo que fazem a El-Rei, que tem direito ao quinto, e então também, ai do ladrão! Se é por malefício diabólico, também a lei do Reino pune com penas severas todos os que usam de mágica ou nigromancia, o que tem pacto com o diabo, e bem assim todos os que com eles se conluiam.

-Muito bem!... Eis aí o que é conversar com pessoas que entendem!... De maneira que se eu a mais tempo tivesse a lembrança de cá vir, há há muito tempo o índio estaria agarrado?...

-De certo; e não só o índio, como o Gil, e todos que com eles pactuam. Vossemecê fez mal em não trazer a mais tempo ao nosso conhecimento um fato tão criminoso.

-Desculpe-me, senhor; eu sou um ignorante, que nada entendo dessas chicanas. Mas enfim ainda é tempo;... tal melgueira não é para se perder. Dê vossa mercê as providências de concerto com o senhor capitão-mor, agarremos os bichos, obriguemo-los a descobrir a mina, e depois forca ou degredo com eles! Oh! E nós três ficaremos donos de uma riqueza!... Oh! Meu nobre senhor! Que riqueza!... Ouro aos punhados!!!...

-Devagar com isso, meu caro senhor Minhoto! Devagar!... Então vossemecê se julga com direito em todo ou em parte a essa mina, se for descoberta?...

O Minhoto olhou embasbacado para Fernando, como quem não entendia a pergunta. Este repetiu-a.

-Como não?! Respondeu o emboaba atordoado com semelhante pergunta. Pois quem descobriu a melgueira e a trouxe ao conhecimento de vossas mercês?... Se não fosse eu...

-Deixe-se disso, senhor Minhoto, -interrompeu Fernando, rindo-se muito. Então quer que façamos o mesmo que está fazendo o Gil e o seu bugre, e que incorramos nas mesmas penas? Ora, senhor Minhoto!...

Fernando continuou por algum tempo num frouxo de riso, que não lhe permitia falar. O Minhoto, que tinha menos vontade de rir do que de se enforcar, a princípio ficou vermelho como lacre; estava corrido de vergonha; depois foi voltando pouco a pouco a sua cor natural, a cor de defunto, que nessa ocasião o despeito e a raiva ainda tornavam mais lívida e hedionda.

-O que é isso, senhor? Então vossa mercê galhofa em coisas tão sérias?...

-Não galhofo, não, -respondeu Fernando conseguindo abafar o riso; -estou falando muito sério. A sua simplicidade é que me fez rir; descupe-me.

-Mas então por favor queira dizer-me, se descobrimos a tal mina oculta, a quem ficará pertencendo?

-A quem? Oh! Está claro... Ao capitão-mor... Digo mal... Tal mina não pode ser explorada senão por um ato criminoso com lesão dos direitos d’ El-Rei. Portanto, punido o criminoso, deve ser confiscada em proveito dele.

-Dele quem?

-De El-Rei.

Fernando hesitava na resposta, porque também ele por sua parte desejaria subtrair aquele sonhado Eldorado à voracidade do erário real.

-De El-Rei!? Como assim?... Acudiu o Minhoto consternado. -E eu, que tive a fortuna de descobri-la...

-Que diz?... Pois já está descoberta?...

-Ainda não; mas fui eu quem descobri-lhe o rasto e hei de achá-la, custe o que custar.

-Não se incomode; fica isso a meu cuidado; darei as providências, e se tal mina existe, havemos de descobri-la...

-Para El-Rei, não é assim? -Disse o Minhoto com voz lastimosa e quase chorando. -E eu, que tinha o segredo da coisa, eu que me sujeitei a tantos riscos e trabalhos para saber donde vinha aquela enchente de ouro, que de um dia para outro ia enriquecendo o Gil; eu, que assim dei um canga-pé naquele maldito paulista e em todos os seus patrícios, que tanto mal nos querem, eu hei de ficar aí assim às moscas?!...

-Não se aflija, senhor Minhoto; El-Rei é justo e agradecido; vossemecê como delator, há de ter boas alvíssaras; alguma honra ou emprego... Pode ser nomeado alcaide, por exemplo...

Ora valha-me Deus, senhor meu!... Que quero eu fazer com honras e alcaidarias!... Não dera eu um punhado de ouro por todas essas bugigangas. Entretanto eu já me contentava com um terço, um quarto mesmo do produto...

-Oh! Então vossemecê quer ter mais que El-Rei, que se contenta com o quinto?...

-Pois seja como vossa mercê quiser; -redarguiu o Minhoto perdendo a paciência e no cúmulo do despeito; -mas eu tenho para mim que nem vossa mercê, nem El-Rei, nem o diabo hão de enxergar nunca o ouro de semelhante mina.

-E por que não? Perguntou Fernando sorrindo.

-É o que lhe digo, senhor meu; é mais fácil pegar uma enguia dentro dágua do que botar a maõ no maldito bugre; e é ele, ele só, que sabe.

-Pois esse bugre não será de carne e osso?

-Eu sei lá... Mas que o tratante é bruxo, ou encantado não resta a menor dúvida...

-Pois deixe-o estar, que eu me encarrego de quebrar-lhe o encanto. Vá sossegado para casa, senhor Minhoto, que de amanhã em diante todo esse ouro, se é que existe, deixará de correr para a algibeira do paulista...

-Nem para a de ninguém mais.

-Salvo, se vossemecê está me contando histórias da carochinha.

-Da carochinha ou não, vossa mercê há de ver.

O Minhoto despediu-se e saiu bruscamente torcendo as mãos e trincando de raiva e desespero.

O infeliz viera em busca de lã, e saía horrivelmente tosquiado. O seu sonho de ouro quebrou-se em um momento, como o pote da leiteira de Lafontaine, desfazendo em lama todas as suas risonhas esperanças.

-Asno! Asno, que eu sou... Ir descobrir tudo sem rebuço, e a quem?... Ao homem mais velhaco e ambicioneiro que há debaixo do sol!... Fui ensinar-lhe o caminho da mina; fui fazer-lhe dádiva de um tesouro, fui entregar-lhe a chave de uma burra que seria minha, se houvesse mais um bocadito de tino nesta cachola, que para nada presta!... Eu devia ter dito simplesmente:

-Senhor Fernando, sei que há por estes arredores uma mina de ouro de riqueza espantosa; é ela que está enriquecendo o Gil; mas ele mesmo não sabe onde ela existe; é mistério de que só eu tenho a chave... Mas que estou eu a dizer?!... A boas horas me lembro de ter juízo!... Ah! Minhoto! Minhoto! Merecias vestir uma camisola e ir para o hospital dos doidos!... Esta cabeça!... Esta cabeça de burro!...

Dizendo isto o Minhoto levou ambas as mãos à cabeça para arrancar os cabelos, mas não os achando amarrotou desapiedadamente a peruca.

Enquanto o emboaba assim voltava para a casa raivando e vomitando pragas contra si e contra todos, Fernando exultava ébrio de orgulho e de contentamento.

-Se é verdade o que me diz este tonto do Minhoto, cá os tenho enfim presos ambos nas malhas de minha rede, o Maurício e o Gil, esses dois infernados e atrevidos paulistas... Se é dessa fonte que vem a riqueza do tal Gil, ela em breve há de secar-se... Ora o Gil é o maior amigo de Maurício... São dois coelhos de uma cajadada, e que coelhos!... Cumpre dar providências... O caso é sério... Vejam lá como isto anda! Um mísero paulista com minas ocultas, se enriquecendo às escondidas, e isto aqui às nossas barbas!... Ah! Deus te abençoe, meu bom Minhoto!... Não fazes idéia de quão boa nova me trouxeste!... Mas se acaso me vieste embair com tuas toleimas, ai de ti!... Mas por que não há de ser verdade?... A coisa tem todo cabimento, e não só é possível, como muito provável... Como explicar por outra forma a súbita riqueza do Gil? Em todo caso, haja ou não haja mina, o ensejo não é para desprezar. Sempre é um pretexto e dos melhores para persegui-los e quebrar a proa a estes dois insolentes paulistas... Eia! Mãos à obra!... Vamos falar ao capitão-mor.


CAPÍTULO XVII

Rapto e violência

No outro dia, ao levantar do sol, Maurício, debruçado à janela de seu quarto, olhava para a casa do capitão-mor com o espírito embebido em mil contrários pensamentos, ora risonhos, ora sinistros. Infelizmente estes predominavam. Se um ou outro ponto luminoso lhe sorria fugitivo no horizonte, para logo era abafado por um montão de nuvens espessas e tenebrosas.

Apesar do aparente sossego, que a algum tempo reinava na povoação, o futuro se lhe antolhava carregado e sombrio e despertava-lhe na alma cruéis apreensões.

Ali bem perto, a uns duzentos passos de distância, sorria-lhe o éden, que era o alvo único de seus ardentes desejos; ele aspirava-lhe os perfumes, ouvia-lhe as harmonias e entrevia o anjo, que de lá lhe acenava com a esperança de inefáveis venturas. Entretanto, à porta desse éden estava postado não o arcanjo empunhando a espada chamejante, mas um gênio infernal brandindo o facho da discórdia, dó ódio e da vingança.

Se por um lado laços de amor, de estima e gratidão recíproca prendiam estreitamente o jovem paulista ao solar de seu velho protetor, por outro via ir-se cavando um abismo cada vez mais fundo de cizânia e ódio, que ameaçava exilá-lo para sempre de seu éden querido. Ele bem via que a antiga e mal extinta animosidade entre paulistas e emboabas era como um imenso paiol de pólvora, que ele e Gil embalde se esforçariam por preservar do contato das inúmeras centelhas, que em torno dele esvoaçavam. Fernando lá estava sacudindo o facho, e espiando com satânica ansiedade o momento favorável para uma horrível e fatal explosão.

Outra circunstância contribuía ainda para abater o espírito do nobre e infeliz mancebo. À exceção do capitão-mor, que era sempre afável para com o seu antigo pupilo e protegido, e Leonor, que tinha sempre para ele um gracioso sorriso e um olhar de amor mal disfarçado, Maurício era acolhido com frieza e às vezes com desdém em casa do capitão-mor. Era isto devido a ordens e insinuações de Fernando, o qual não contente com ter em suas mãos a direção dos negócios governativos, ingeria-se também nos arranjos domésticos, e se arrogara por assim dizer a mordomia da casa de seu velho parente. Maurício não se queixava, e tragava em silêncio aquelas humilhações; para elas encontrava sobeja compensação na estima do capitão-mor e no amor de sua filha.

Mas esse mesmo amor, essa mesma estima, esses laços sagrados, que desde a infância tão estreitamente o ligavam àquela família estavam em perigo de serem despedaçados a cada momento pela mão de Fernando, esfinge fatal, que entre eles se colocara com olhos vigilantes e afogueados de ciúme e sede de vingança.

-Oh! É preciso acabar com tantas incertezas e hesitações, -murumurava Maurício já com a cabeça fatigada de tanto cismar e refletir. -É absolutamente preciso que eu morra, ou que acabe com aquele maldito!... Mas como consegui-lo?... Eu, órfão, sem nome, sem fortuna, miserável peão, como nos chamam esses perros vis... Deveras que é difícil... Se ao menos a sorte me deparasse novas ocasiões de me sacrificar por eles!... De salvar-lhes a vida, a honra, a fortuna!... Oh!... Desta vez não deixaria de aceitar o foro de fidalgo, com que o capitão-mor já me acenou... Tolo, que eu fui em rejeitá-lo!... Então de fronte erguida iria reclamar a mão de Leonor... Ó Leonor... Com que prazer tu me cederias, e com que ardor eu beijaria essa mão adorada, única recompensa que ambiciono, e a que me julgo com o mais legítimo e sagrados dos direitos!... Mas... Não é só fidalguia que me falta; falta-me coisa melhor ainda;... falta-me ouro, muito ouro... Talvez a mina do Gil...

Nestas reflexões se perdia quase desvairado o espírito do mancebo, quando foi bruscamente interrompido por uma pessoa, que a passos precipitados entrava familiarmente pela casa adentro. Quando Maurício deixando a janela, voltava-se para ver quem era o indivíduo que vinha entrando, já este se achava no quarto. Era Gil. Vinha muito agitado, os cabelos em desordem, os trajos em desalinho e os olhos fuzilantes despendiam relâmpagos de cólera.

-O que é isto, Gil? -Perguntou Maurício com surpresa.

-Ora!... O que há de ser!... Retrucou Gil com voz ofegante de raiva e cansaço, atirando o chapéu a um lado e deixando-se desabar sobre um taborete. -O que te diria eu, Maurício?! ... É chegada a ocasião! Infâmia!... Desaforo!

-Mas enfim, Gil... conta-me... O que há de novo?

Gil respirou com força exalando um gemido surdo, antes um rugido de raiva, que lhe empolou o largo e vigoroso peito, passou a mão convulsa pela testa, que apesar do frescor da manhã escorria suor em bagas, e levantou-se.

-Esta noite, -começou ele a narrar com voz rápida e seca, -estava eu em casa de mestre Bueno com o Calixto e outros. Ali ficamos conversando, contando histórias e nos divertindo até alta noite. Quando voltei para casa, seria já talvez meia-noite. Quando vou chegando perto de casa, começo a ouvir falar em voz alta. Olho com atenção e vejo que lá se moviam uma multidão de vultos, e que dentro e em roda da casa reinava uma confusão de mil diabos. Corro para lá, e o que havia eu de ver, meu amigo?!... A porta da rua tinha sido arrombada e uma chusma de emboabas entrava e saía em uma berraria infernal. Entendi e com razão, que estavam me roubando, e de fato era isso mesmo, que estavam me fazendo. -Alto lá!... Que é isso!... Olhem que lá vai o dono da casa!... -Bradei com toda força. -Nenhum caso fizeram de meus gritos; e que poderia eu fazer contra tanta gente?... Todavia, através da multidão investi para a porta. Apenas dou o primeiro passo para dentro de minha casa, dou com os olhos em meu índio, o Irabussu, e em sua filha que vinham saindo agarrados e arrastados por toda uma troça daqueles infames entre insultos e gritarias. -Agora hás de escorrupichar para ali o ouro, que andas roubando, maldito bugre feiticeiro. -Está quebrado o seu encanto, meu bruxo de uma figa. Quer queiras, quer não, hás de nos mostrar donde vem o teu ouro. -Se tu podes, vira outra vez gato do mato; anda ladrão!... -Um dos que assim falavam tinha nas mãos uma corda, que me pareceu cordão de frade, e com a qual descarregava vigorosas lambadas nas costas do pobre índio. Irabussu quase não fazia resistência e deixava-se arrastar roncando dentro do peito umas palavras surdas, que ninguém entendia. A menina com a cabeça baixa era levada aos empurrões por aquela corja de brutos. À vista daquele espetáculo revoltante fiquei compreendendo tudo... Ah! Ladrões!... Ladrões!... Não querem ver nós outros guardarmos uma migalha de ouro na algibeira!... Querem tudo para si!...

Gil calou-se tomando fôlego por alguns instantes.

-Mas então que queria dizer todo esse barulho? -Interrompeu Maurício impaciente por saber o resto.

-Tu bem sabes, -continuou Gil, -que o meu velho índio me é inteiramente dedicado; que ele me traz de dois em dois dias uma boa porção de ouro nativo, que eu mesmo não sei onde ele vai descobri-lo. Logo a princípio, querendo eu saber donde ele o tirava, respondeu-me: -Foi Tupã, que me mostrou esse ouro; Tupã não quer que ninguém, senão Irabussu saiba donde ele sai. Enquanto Irabussu for vivo, o patrão há de ter sempre ouro com fartura; mas quando sentir que a luz vai morrer para sempre em seus olhos, Irabussu há de mostrar tudo. -Não quis teimar com o bom do velho; mas bem vês quanto a existência desse índio é preciosa para mim. Às vezes me traz ele em um canudo de taquara mais de uma libra de ouro em pó. De ordinário traz-me 6 ou 4 oitavas muito misturado com areia e esmeril. Não sei onde ele apanha tanto ouro sem bateia, sem almocafre, sem nada; de certo o apanha aos punhados... É coisa que me tem maravilhado... Deve ser mina de espantosa riqueza. Ora os emboabas já haviam farejado esse ouro, meu amigo!... E diabos me levem, se não foi o velhaco e poltrão do Minhoto quem deu pela coisa. Verdade é que Irabussu já me havia avisado que os emboabas lhe andavam fazendo tocaias. Para não cair-lhes nas unhas o índio até ali fazia suas sortidas ao fechar da noite, e voltava nos dias às mesmas horas, ficando assim vinte e quatro horas em casa, e outras tantas no mato. Depois disso começou a sair lá pela alta noite, voltando sempre no dia seguinte à mesma hora. Parece que, desanimados de poderem agarrá-lo, os emboabas recorreram ao capitão-mor; pois é preciso que saibas, Maurício, que aquele assalto à minha casa era feito por ordem dele, e do tal seu infame secretário, que eu lá bem vi a um canto todo embuçado em seu capote. Fará idéia de como fiquei eu, quando vi aquele bando de malfeitores dentro de minha casa arrastando para fora um velho e uma menina, duas pobres criaturas incapazes de fazerem mal a ninguém!... Perguntei-lhes, indignado, o que queria dizer aquele desacato em minha casa, e se porventura existia ali algum criminoso. -Não é de sua conta; responderam galhofando. -Vá perguntar ao Sr. capitão-mor. -Entre para sua casa, sou siga seu caminho, se não quer ir de companhia com os seus bugres!... -Ah! Eu era sozinho contra tanta gente!... Calei-me para não ouvir mais desaforos, que me poriam a perder. Eu bem podia matar pelo menos três ou quatro daqueles perros vis, mas tinha de morrer também, e com isso nada remediava. No fim de muita algazarra, um deles gritou: -Vamos, minha gente! Para a casa do capitão-mor!... -Vamos! Vamos! -Acudiram todos, e formados em um bolo em roda dos dois infelizes prisioneiros os foram levando em charola para a casa do capitão-mor. Corri depressa ao meu quarto de dormir, onde tinha o meu ouro e mais alguns efeitos de valor. Felizmente achei-o fechado como o deixara; não me haviam tocado em nada. Saí de novo curioso de saber em que daria tudo aquilo, e fui acompanhando a certa distância aquele troço de malfeitores. Chegados à casa do capitão-mor entraram no pátio; quatro de entre eles subiram a escada conduzindo dos presos; iam de certo recolhê-los ao calabouço e talvez metê-los no tronco. Por fim o farrancho foi se dispersando, e retiraram-se em pequenos grupos uns para aqui, outros para acolá, conversando misteriosamente entre si, e eu também nada mais tendo que ver ali recolhi-me para casa, onde estive até agora sem pregar olho esperando ansioso pelo alvorecer do dia. E agora, Maurício, o que me dizes?... Havemos de poupar ainda aqueles algozes, aqueles infames perros?...

-Tens razão, Gil, -acudiu Maurício com acento grave e melancólico, -infelizmente tens razão de sobejo para te revoltares;... foste vítima do mais inqualificável desacato. Desse jeito as coisas vão tomar péssimo rumo, e por fim a paciência nos há de faltar...

-A mim já de todo me falta...

-Mas que pretendes tu fazer?...

-Eu sei lá!... Vingar-me de certo;... a uma desfeita responde-se com outra maior, a uma bofetada com um tiro ou uma facada... Mas antes disso quero esperar ainda um pouco a ver o que pretendem fazer com os meus pobres índios...

-É justo, -atalhou Maurício, sôfrego por achar um meio de impedir, ou ao menos adiar o rompimento dos ódios. -Iremos agora mesmo à casa do capitão-mor.

-Eu!... Eu ir lá!... Não esperes tal, Maurício; não quero pedir o mínimo favor a tão infame gente...

-Não é favor que vamos pedir, Gil; é justiça, que vamos reclamar. Vamos saber por que razão prenderam de modo tão brutal os seus índios, e o que querem fazer com eles...

-Boa coisa não pode ser, e demais cedo ou tarde nós havemos de vir a saber tudo sem ser preciso lá ir.

-Escuta um pouco, Gil; não será má irmos nós mesmos conversar com o capitão-mor. Ali, tu bem sabes, são todos nossos inimigos, à exceção dele, que é homem são, e de sua filha, que é um anjo de bondade. Se nós porém deixarmos tudo correr a revelia sem fazermos a menor tentativa em favor daquelas duas pobres vítimas, não teremos direito de nos queixar, se elas forem imoladas à cobiça e ao rancor daqueles perversos, e o capitão-mor se justificará plenamente dizendo-nos: -A culpa tem vossemecês, que nada me disseram.

-Por mais que digamos, nada conseguiremos daquela gente, eu te afianço, Maurício. São lobos que nos querem devorar...

-Talvez consigamos, senão tudo, ao menos alguma coisa. E demais devemos nós ficar esperando de braços cruzados?... Não devemos nós, e tu principalmente, fazer todo o possível em favor daqueles desgraçados?

-Isso é verdade; tem razão, Maurício. Da minha parte estou pronto a todo o sacrifício em favor dos meus pobres bugres, a quem devo tanto...

-Pois bem, Gil; além disso, -vou falar-te com franqueza de amigo, -além disso, é preciso confessar que não é muito legítima a fortuna que vais adquirindo com ouro tirado às escondidas...

-Como não?! -Bradou Gil, endireitando-se e pondo-se nas pontas dos pés. -Sei eu lá donde vem esse ouro?... Só sei e juro que não é roubado a ninguém, e se não é roubado é o mesmo que se ele me caísse do céu.

-Não te alteres, meu Gil, -retrucou Maurício sorrindo-se com toda a calma; -no que eu digo-te não há a menor ofensa ao teu pundonor. Escuta; todo o mineiro tem dever de pagar contribuição a El-Rei, e tu te furtas a esse dever...

-Ah!... É o quinto!... Estou pronto a pagá-lo...

-Mas se a tua mineração é oculta e misteriosa, quem há de fiscalizar o ouro que tiras, para dele deduzir o quinto?...

-Creio que já te disse que o bugre por modo nenhum quer mostrar o lugar da lavra?...

-Sim, mas forçado pela gente do capitão-mor não terá remédio senão descobri-la e ficarás sem mina e sem bugre.

-Oh!... Lá isso não!... Eu conheço muito o Irabussu. Nem que o façam em pedaços, não é capaz de mostrar a mina a ninguém...

-Pois nem a ti?...

-Nem mesmo a mim, é o que te digo.

-E eu não sei o que te diga, Gil. Está me parecendo que o bugre, sendo o único sabedor da mina, donde tira tanto ouro, e o único dono dela e, portanto, pode mostrá-la e dá-la a quem quiser, e de certo a não dará senão a ti.

-Não creias, Maurício, Irabussu é velhaco e desconfiado como um velho mono; não se fia de ninguém, é capaz de levar o seu segredo para a sepultura.

-Embora!... Sempre é bom tentar, e em todo caso Deus sabe o que quererão fazer com os pobres índios. Devemos patrociná-los com todas as nossas forças.

-Por Deus, que dizes verdade; e não serei eu, que os deixe ao desamparo...; ainda que me cosam a facadas, até o extremo hei de punir pelo meu bom e leal Irabussu. Vamos, Maurício!

-Vamos!...

Neste momento são interrompidos por alguém, que aparece inesperadamente no quarto.

Era Antônio.


CAPÍTULO XVIII

Antônio e seus amores

-Precisa de mim hoje, patrão?... Perguntou Antônio ao entrar.

-Por que perguntas? -disse Maurício.

-Por que queria ir hoje ao mato ver se arranjo mais um couro de onça para o senhor velho; a que tempo ele me encomenda e eu até hoje só pude aprontar três; não quero que ele se queixe de Antônio.

-Muito bem, meu Antônio, vais em bom caminho!... Disse Gil com ironia cheia de azedume. -Vai arranjando couros de onça para esse bom velho, até que venha o dia em que lhe dê na cabeça tirar-te também o teu...

-Como assim?! -Exclamou o índio olhando espantado para Gil. -Que quer ele fazer com meu couro?...

-Talvez algum tambor, Antônio; se queres saber melhor, vai perguntar a Irabussu, mais Judaíba.

-Que tem Irabussu, mais Judaíba?...

-Não sei, Antônio; vai ver em casa do capitão-mor, lá estão nas garras dele...

O índio ficou pasmado e silencioso por algum tempo interrogando com o olhar, ora a Gil, ora a Maurício.

Maurício tratou logo de satisfazer a ansiosa curiosidade do caboclo, e relatou rápida e concisamente o revoltante incidente, que Gil a poucos momentos acabava de contar-lhe. Depois de ter ouvido tudo com a maior atenção, em pé e de braços cruzados, Antônio por alguns instantes ficou pensativo, com os olhos em terra, e abanando a cabeça. Depois batendo com força o pé no chão ergueu a fronte e soltou um rugido surdo, como o rancor do jaguar enfurecido.

-Não é nada, meus brancos!... -Exclamou com voz firme e resoluta. -Só aqui estão três que valem por dez. Não custa nada ajuntar mais alguns companheiros daqueles bons, daqueles, que tem sede de sangue do emboaba. Não é Antônio que há de deixar mais nem um instante Judaíba nem Irabussu nas unhas daquela gente ruim... Vamos, meus brancos!... Que estão esperando?!... Vou chamar mais gente, se for preciso...

Este súbito desgarro do índio não deixou de causar alguma surpresa aos dois jovens paulistas. Entretanto era nele mui natural aquela impulsão. O homem da natureza, ainda que tenha vivido por muito tempo no estado social, nunca perde de todo a nativa rudeza; tem sempre os mesmos arrojos selváticos, e não conhece recurso contra a violência, senão outra violência, a força contra a força.

-Alto lá, meu Antônio! -Exclamou Maurício procurando acomodar o seu índio; -nem tanto açodamento!... O caso ainda não é para isso; talvez possamos livrar teus irmãos sem recorrermos à valentia de nossos braços...

-Maurício tem razão, Antônio! -Atalhou Gil pondo a mão sobre o ombro do índio. -Tenhamos ainda um pouco de paciência; mas em breve, tu verás, meu valente, -em breve não teremos remédio senão alvejarmos nossas armas naqueles cachorros!...

Antônio anuiu a estas palavras com um aceno e um olhar expressivo.

-Mas também não irás à caça, -continuou Maurício, olhando atentamente para a casa do capitão-mor; entrevia talvez lá ao menos a sombra de Leonor. -Hoje precisamos de ti.

Antônio não sabia replicar a seu patrão. Cruzou os braços, e disse:

-Antônio aqui fica!... Quando for hora, chamem por ele!...

Antes de irmos adiante com esta história, é mister informar o leitor sobre uma circunstância até aqui ignorada, mas que vem muito ao caso. E nem o leitor poderia adivinhá-la, pois era um segredo, de que nem Gil, nem Maurício mesmo eram sabedores. Desde muito tempo Antônio conhecia e queria bem a jovem Judaíba. Eis aí todo o segredo.

Gil, como sabemos, era o mais antigo e íntimo dos amigos de Maurício. Tinham ambos grande estima por muitos de seus patrícios, e por todos em geral suprema dedicação. Os trabalhos, os perigos, a opressão a que se viam longe da terra natal, formavam entre os paulistas liga estreita, inabalável. Se não os ligava todos, -e nem era possível, -íntima afeição e estima recíproca, ao menos comungavam na mesma taça, -a taça do ódio contra os opressores.

Maurício, porém, e Gil eram dois amigos no rigor da palavra, em tudo quanto tem de santo, belo e grandioso este nobre sentimento.

Levava Gil uma vida quase idêntica a de Maurício. Tinha uma casa a princípio mui pequena, mas que depois foi aumentando com desígnios que ele lá sabia. Nessa casa, situada em um recanto nas abas do Morro do Lenheiro, isolada do resto da povoação, ele as mais das vezes não entrava senão para dormir. Portanto, todos os seus amigos e conhecidos não iam lá procurá-lo, pois sabiam que era o melhor meio de não encontrá-lo.

Entretanto Maurício e o seu caboclo tinham franca entrada naquela casa, uma vez que lá se achasse qualquer dos seus habitantes, -Gil, Irabussu, ou Judaíba.

Antônio lá ia muitas vezes conversar em língua túpica, que ainda não tinha de todo esquecido, com o velho Irabussu, e com sua mimosa filha. Aí passavam eles horas esquecidos junto ao fogão, relembrando as cenas da vida selvática, da qual Antônio, aprisionado muito criança, apenas conservava uma vaga reminiscência.

A jovem carijó podia assinalar-se como beleza entre as filhas da floresta. Como todos de sua raça, sua tez não era de cor muito carregada. Os olhos pretos, um pouco levantados nas fontes, eram grandes e tinham muita meiguice. As feições não eram totalmente irregulares e o corpo era esbelto e bem feito.

Quanto ao nosso aimoré era um guapo rapagão, capaz de encantar os olhos da mais formosa entre as filhas de Tupã.

Tez cor de bronze bem carregada, fisionomia esperta e animada; como era botocudo, tinham-se furado as orelhas, e o lábio inferior. Apanhado ainda em verde idade esses furos ainda não se tinham distendido com o uso dos botoques, ou rodelas de pau. Pelo contrário, tinham quase desaparecido. Os furos das orelhas serviam-lhe para neles dependurar uns brinquinhos de ouro, e o furo do lábio inferior servia-lhe para soltar um assovio agudo e estridente como o da anta.

Tudo isso reunido à sua fisionomia vivaz e inteligente, e à meia civilização, que possuía, davam-lhe muito prestígio no espírito dos dois bugres, e o tornavam encantador aos olhos de Judaíba.

Posto que de raça hostil, sua nova sorte e o cativeiro comum lhes faziam esquecer os ódios e rivalidades das duas tribos para só se lembrarem que eram todos três filhos das florestas americanas.

Nada faltava portanto para que os dois jovens indígenas se amassem extremosamente; e assim aconteceu. Eis aí o motivo do rugido de cólera, que Antônio soltou, e do ímpeto com que instantaneamente queria correr em socorro dos dois bugres, apenas soube do seu infortúnio.

-Vamos, Gil; -disse Maurício pondo o chapéu na cabeça. -É preciso falar ao capitão-mor, antes que a matilha dos perros se ajunte em redor dele. E tu, Antônio, espera aqui, até que nós voltemos.

-Por quem é, patrão. -exclamou Antônio com acento de extraordinária angústia, arrojando-se aos pés de Maurício. -Pelo Deus, que está pregado nesta cruz, e que vossemecê desde pequeno me ensinou a adorar, -continuou tirando do seio um pequeno crucifixo, que trazia ao pescoço pendente de um rosário; -pela sinhá Leonor, patrão!... Não deixe a minha Judaíba no poder daqueles homens... Senão, -continuou erguendo-se bruscamente altivo, audaz e fremente como a palmeira do deserto batida pelo furacão, -senão... Por Tupã, que é ainda o Deus de Judaíba, por Tupã eu juro, hei de vingar Judaíba!...

Os dois paulistas ficaram atônitos a princípio com aquela veemente explosão, que rompia dos lábios apaixonados do jovem selvagem; mas para logo compreenderam o que aquilo revelava e se entreolharam sorrindo.

-Então queres muito bem a Judaíba? -Perguntou Maurício com emoção.

-Oh! Muito, patrão! Muito! Judaíba é meu coração.

-Pois não tenhas receio, meu Antônio; custe o que custar, Judaíba te há de ser restituída.

Os dois amigos saíram e juntos se dirigiram silenciosamente para a casa do capitão-mor, cada qual fazendo consigo reflexões diametralmente opostas sobre o que acabavam de presenciar.

-Bom! -Dizia Gil consigo, -é mais um inimigo irreconciliável contra estes perros; mais um auxiliar, que nos pode ser de sumo proveito.

-Mau! -Pensava Maurício; -no fim de contas o capitão-mor não terá a seu favor senão a mim, a mim somente!...


CAPÍTULOXIX

O interrogatório

Eram nove para dez horas. Havia aglomeração de povo e reinava certo movimento e agitação dentro e fora da casa do capitão-mor, o que denotava algum acontecimento extraordinário.

De feito, a nova da prisão de Irabussu e sua filha desde o romper d’ alva percorria o povoado de habitação em habitação, excitando geral curiosidade e interesse. Há muito que a imaginação do povo andava preocupada com aquele bugre misterioso, que era tido por todos em conta de mandingueiro, e do qual não só as mulheres e crianças, como também muita gente de barba na cara, tinham medo como coisa de outro mundo. Grande número de pessoas do povo movidas de curiosidade se iam agrupando no pátio e nas imediações da casa do capitão-mor, ansiosos por saberem o que quereria ele fazer com o índio e sua filha. Muitos também lá iam levados pelo desejo de conhecerem aquela estranha figura, que nunca tinham vista, e de quem ouviam falar tantas e tão estupendas coisas.

Eram nove para dez horas da manhã. O capitão-mor achava-se em sua sala de audiência com Fernando, Afonso, um escrivão e mais algumas pessoas gradas, entre os quais se notava o Minhoto. Maurício e Gil acabavam de chegar, e ambos tinham tido ingresso na sala, um como interessado de alguma maneira no negócio, de que se ia tratar, outro como pessoa de confiança e amizade de Diogo Mendes.

Ia este submeter Irabussu a um rigoroso interrogatório, e proceder a uma minuciosa devassa sobre as minas de ouro de prodigiosa riqueza, das quais, conforme a denúncia do Minhoto, só ele, Irabussu, tinha conhecimento.

A sala de audiências, bem como a sala de visitas, a que era contígua, também comunicava com a varanda por duas largas portas, que nesse dia estavam abertas de par em par. A espaçosa varanda ainda era estreita para conter a multidão que a invadia, e as duas portas não davam espaço bastante para tantos olhos curiosos. Tornava-se incômodo o tumulto e atropelamento de tanto povo.

Fernando, sempre precavido e desconfiado, entendendo que aquele ato não devia ser um espetáculo público, fez ver ao capitão-mor a conveniência de ser particular e secreta a devassa a que iam proceder. Este anuiu, e mandou despejar a varanda e o pátio. O povo retirou-se descontente e murmurando, mas conservou-se em grupos pelas imediações à espera ao menos de alguma notícia.

De espaço a espaço entreabria-se o reposteiro de uma porta interior, e aparecia de relance como um anjo entre nuvens uma suave e formosa figura, que passeava pela sala um olhar inquieto e ansioso, e desaparecie instantaneamente. Aquele súbita aparição não escapava a Maurício, sobre o qual resvalava sempre um rápido e furtivo olhar. Fernando também a via de esguelha e mordia-se de raiva.

Fecharam-se as portas da sala, e nela ficaram somente, fora as pessoas já mencionadas, alguns emboabas amigos do Minhoto, que podiam dar esclarecimentos a respeito do negócio de que se ia tratar.

Daí a pouco, por ordem do capitão-mor, compareceram na sala Irabussu e sua filha, escoltados por quatro aguazis. A figura do velho bugre causou espanto a quantos ali se achavam, menos a Gil e Maurício, que já com ela estavam familiarizados. Aquele corpo alto e esguio, que mais parecia monstruoso manequim composto só de braços e pernas finas e nodosas, rematado por uma cabeça leve, móvel e altiva com dois olhinhos fundos, mas vivos e despedindo chispas chamejantes, e uma boca rasgada guarnecida de dentes amarelos, tudo isso coberto apenas por uma esquálida e grosseira tanga, que dos quadris lhe descia até os joelhos, dava ao bugre um aspecto sinistro e hediondo, e no caso de existirem bruxos e feiticeiros, aquela figura quadrava-lhes perfeitamente. Os emboabas, que ali apenas o tinham visto na sombra e de relance, transidos de terror estiveram a ponto de fugirem espavoridos.

Com o vulto medonho e extravagante do velho pajé formava notável contraste o todo em verde selvático, mas assim mesmo belo e harmonioso da jovem indígena. O porte esbelto, flexível e espigado justificava o apelido, que lhe deram, derivado da gentil palmeira indaiá. Tinha a cabeça pendida sobre o seio, e uma cascata de cabelos negros e corredios ocultavam-lhe quase inteiramente o rosto moreno e redondo, e via-se na sombra refulgirem-lhe os olhos tímidos e deslumbrados como os da veada prisioneira, que do seio das selvas natais se vê de repente transportada para os pátios do paço real. Vestia apenas uma saia, que lhe descia até pouco abaixo dos joelhos, e tinha os ombros e os seios envolvidos em uma grosseira manta de algodão. Mas assim mesmo era airosa e engraçada, e seu aspecto inspirava no mais alto grau interesse e comiseração.

Depois que entraram na sala os dois selvagens, a figura angélica, que de quando em quando entreabria o reposteiro, não saiu mais daí, e fixou sobre eles um olhar cheio de assombro, interesse e piedade.

Ao encetar-se o interrogatório de Irabussu suscitou-se logo uma grande dificuldade. O velho bugre, que havia sido aprisionado não havia ainda um ano, quase nada entendia da língua portuguesa. O capitão-mor, Fernando e o escrivão debalde procuraram dar-se a entender ao ancião das selvas. Este, além de compreender bem pouco do que lhe queriam explicar, de matreiro que era, ainda mais desentendido se fazia, pois bem sabia o de que se tratava.

-Não há nenhum dos que aqui se acham presentes, que entenda alguma coisa da língua destes tapuias? -interrogou o capitão-mor.

-Eu me entendo perfeitamente com Irabussu, -acudiu Gil; -se vossa mercê o permite posso servir de língua.

-Alto lá, senhor meu! Isso não pode ser, -interveio o Minhoto. -Vossemecê é interessado e suspeito como o único que se aproveita da tal mina. Com a devida vênia, senhor capitão-mor, este senhor não pode nem deve entrar nesse negócio.

O Minhoto há havia perdido a esperança de ser herdeiro da mina de Irabussu, mas ao menos queria impedir por todos os meios ao seu alcance que ela continuasse a enriquecer o Gil, a quem sabemos, votava a mais entranhável aversão.

-Tem vossemecê muita razão, senhor Minhoto, disse Fernando; -mas em todo caso é de absoluta necessidade que nos entendamos com este selvagem. Ninguém mais há por aí que entenda um pouco a língua dos brugres?...

-Eu compreendo sofrivelmente a língua dos Carijós e Botocudos, -acudiu Maurício, -mas...

-Ah!... É verdade!... Atalhou vivamente o capitão-mor; -aí está Maurício, que já viveu no meio deles, e os entende perfeitamente... Já nem me lembrava...

-Mas eu também, senhor, -continuou Maurício respeitosamente, -sendo íntimo amigo de meu patrício Gil, parece-me que devo ser suspeito.

A esta observação o capitão-mor e Fernando se entreolharam como perguntando um a outro o que fazer?...

Bem desejava Fernando arredar Maurício e Gil daquele negócio, de modo que nenhuma interferência nele pudessem ter; onde porém poderiam encontrar outros intérpretes?... Naquele povoado ninguém mais se apresentava à memória dos presentes, que fosse capaz de desempenhar semelhante tarefa, a não ser Antônio. Mas este mesmo, por sua inteira dedicação à pessoa de Maurício, tornava-se igualmente suspeito.

-Acabemos com isto! -Exclamou o capitão-mor resolutamente depois de alguns minutos de consulta e hesitação. -Também não sei a que vem tanto receio e desconfiança. Sejam os senhores Gil e Maurício os línguas. Estou certo que nem um nem outro serão capazes de iludir ou inverter as perguntas e respostas e nem vejo que interesse possam ter em semelhante velhacada.

-É verdade, senhor capitão-mor; -disse Fernando lançando um olhar altivo e ameaçador sobre os dois jovens paulistas. Por bem ou por mal este bugre tem de nos dar conta da mina, se é que ela existe; e se acaso estes senhores esperam nos embaçar, tanto pior para eles e para o seu bugre.

-Senhor capitão-mor, -disse Maurício levantando-se e dardejando um olhar de desprezo sobre Fernando, -pouco me importa a mim e meu amigo sermos ou não intérpretes neste negócio, e que Irabussu descubra ou não a sua mina. O que nos trouxe aqui foi o empenho de conseguirmos que estes dois pobres selvagens não sejam maltratados nem perseguidos. Todavia, se vossa mercê digna-se aproveitar de nosso préstimo na presente conjuntura, damos nossa palavra de paulistas, juramos por nossa honra, que nada faremos para ocultar ou disfarçar a verdade, antes empregaremos todo o esforço, para que ela seja conhecida.

-Creio muito na palavra honrada de ambos, e vamos por diante com este negócio, -disse terminantemente o capitão-mor.

Esta lealdade e confiança de Diogo Mendes na palavra dos dois jovens não agradou muito a Fernando, que não pode disfarçar um sorriso sardônico. Mas lá do seu resposteiro Leonor aplaudiu com um sorriso angélico as palavras de seu lhano e honrado pai.

-Maurício, vamos lá com isso, -prosseguiu o capitão-mor. -Pergunta a esse bugre se existe uma rica mina só por ele conhecida, e donde ele tira para seu patrão avultada quantidade de ouro.

Maurício dirigiu-se a Irabussu, e depois de ter dialogado com ele por alguns instantes em língua carijó, deu resposta afirmativa.

-Muito bem! -Replicou o capitão-mor; -agora pergunta-lhe mais, qual é pouco mais ou menos e porção de ouro que ele, segundo dizem, traz todos os dias a seu patrão?...

Interrogado por Maurício o índio agachou-se no chão e unindo as mãos fez um gesto de quem apanhava com elas um punhado bem cheio.

-É verdade, senhor capitão-mor; -acudiu Gil. -Dias há, em que me traz mais de uma libra!...

-Apre! -Exclamou o capitão-mor. -Já não é tão pouco; mas disseram-me que trazia às vezes oito libras?...

-Exageraram muito, senhor capitão-mor; esse mesmo que traz, não é ouro puro; vem misturado com bastante areia e esmeril, e nem todos os dias...

-Não obstante; uma mina, em que basta abaixar a mão para ir apanhando ouro aos punhados, deve ser prodigiosamente rica, e sendo trabalhada em regra o que não produzirá!?...

A fisionomia de Diogo Mendes expandia-se risonha e radiante de contentamento com o bom resultado que iam tendo suas pesquisas. Fernando também sentia ofegar-lhe o peito na mais ansiosa expectação, mas hipócrita como era, procurava compor o rosto com a máscara da mais impassível gravidade, para que não lhe transluzisse nos olhos a voraz cobiça que lhe estirava no coração. O Minhoto mordia-se de raiva e inveja, e veria com prazer Irabussu com sua mina soverterem-se para sempre nas profundas dos infernos.

O capitão-mor mandou fazer mais algumas perguntas a fim de inteirar-se minuciosamente daquele negócio, e a tudo o índio respondeu de acordo com o que já sabemos. Por fim fez perguntar ao índio se estava disposto a mostrar o lugar onde se achava tanto ouro.

-Não! -Respondeu terminantemente o índio por órgão de Maurício.

Se Gil sabia do lugar da mina?

-Não!

Se nem a ele, Gil, quereria mostrá-la?

-Não!

Se ninguém mais sabia dela?

-Ninguém!

O capitão-mor mandou fazer ver ao índio que se ele não quisesse por bem mostrar o lugar da mina, seria a isso constrangido.

-Só se me matarem, -respondeu sem hesitar; -mas um morto o que poderá mostrar?

-Diga a esse bárbaro, -exclamou Fernando encolerizado, -que não o mataremos, não; mas que a poder de tormentos e torturas havemos de arrancar-lhe o seu segredo.

Irabussu respondeu com toda a fleuma que seus irmãos do mato também costumavam proceder assim com os inimigos prisioneiros, mas não conseguiam arrancar nem um gemido a suas vítimas.

-Que cegueira! Que pertinácia brutal! -Murmurou assombrado o capitão-mor.

-Se nada valem as ameaças, -gritou Fernando cada vez mais irritado, -passe-se a vias de fato!...

A estas palavras Gil empalideceu. O nobre coração do mancebo não podia se conformar com a idéia de ver torturado aquele pobre velho, cujo único crime era a extrema dedicação que lhe votava. Quis, portanto, tentar em favor dele ainda um último esforço.

-Senhor capitão-mor, -disse ele levantando-se, -espero que não há de ser preciso pôr a tormentos este pobre bugre; se vossa mercê me concede a licença, vou me entender com ele, e talvez possa induzi-lo a mostrar a mina.

-Pois não! -Acudiu o capitão-mor. -É bem lembrado esse alvitre; talvez com vossemecê ele se entenda melhor e se acomode, e eu muito estimarei que assim aconteça.

Gil aproximou-se do velho bugre, e em uma gíria mesclada de português e dialeto indígena travou com ele um longo e animado diálogo, cujo sentido ao menos por alto não podia deixar de ser compreendido pelos circunstantes. Gil instava vivamente o índio, para que não se sujeitasse a tormentos por amor dele, e rogava-lhe encarecida e fervorosamente que mostrasse a mina aos emboabas; fazia-lhe ver que ele pouco se importava com ouro; que Irabussu já lhe tinha dado quanto era mister para passar o resto de seus dias na abastança. A estas acrescentava muitas outras razões e rogativas; o índio, porém, mostrava-se inabalável em sua resolução.

-Irabussu, -dizia ele, -não entrega o ouro de Tupã a esses filhos de Anhangá, não. Deixe-me morrer, branco; Irabussu está velho, já para nada presta. Se o ouro, que Tupã lhe mostrou, não for de Gil, de ninguém mais será. Irabussu, bem sabe, que se ele der o ouro de Gil aos emboabas, eles em troco darão a Gil ferro e pau, tronco e algemas. Deixa, meu branco, deixa que me matem.

Falando assim, o velho fazia gestos e trejeitos medonhos, ora quase tocando ao teto com os compridos braços, ora agachando-se ao rés do chão como uma armadilha de paus, que se desconjunta e cai de chofre em terra. Os circunstantes olhavam com assombro e mesmo com terror os estranhos esgares e a enérgica e desconcertada mímica do selvagem.

Desalentado, sombrio e abatido, Gil deu conta em poucas palavras do mau resultado de sua tentativa.

-É escusado teimar com o bugre, -disse com voz rouca e alquebrada; não há nada que o faça ceder.

Entretanto Fernando impaciente e contrariado ao último grau com a obstinação do velho, pálido, imóvel e com as feições contraídas, refletia profundamente pedindo ao seu coração duro e perverso alguma inspiração que o tirasse daquela dificuldade. Passaram-se alguns instantes de completo silêncio.

-Continuemos, meus senhores, -disse em voz alta; -é preciso deslindar esse negócio. O que o velho não quer revelar, talvez a filha o saiba. Senhor Maurício, queira fazer-lhe algumas perguntas, e seja a primeira se ela conhece o lugar donde seu pai tira o ouro que traz ao senhor Gil...

Maurício dirigiu a palavra a Judaíba, que respondeu com uma simples e formal negativa.

A esta resposta Irabussu acrescentou ainda, -que o lugar de ouro sé ele e Tupã conheciam.

-Pois bem! Prosseguiu Fernando com voz rápida e imperativa. -Agora pergunte-se ao velho se ele que bem a sua filha.

Esta ordem encheu de surpresa a todos, que ali se achavam. -Para que fim tal pergunta? -Murmuravam entre si.

-É inútil fazer semelhante pergunta, -observou Gil; -eu sei que ele é capaz de dar mil vidas que tivesse.

-Tanto melhor! -Ponderou Fernando consigo; -é isso mesmo que eu quero. -Seja embora inútil, -continuou dirigindo-se a Gil, nenhum mal daí provém. Pergunte-se sempre.

O índio por única resposta à pergunta feita por Maurício enlaçou a menina com seus compridos braços, e voltando o rosto para os circunstantes passou em roda um olhar torvo e ameaçador, como quem lhes estava dizendo -ai de quem nela tocar. Parecia pantera enfurecida defendendo a toca, onde tem os filhotes.

-Agora, senhor Maurício, continuou Fernando sempre com o mesmo acento severo e inflexível, -explique-lhe que se ele teimar em não querer mostrar o lugar da mina, terá de ver sua filha passar por todos os tormentos...

Um sussurro de horror, partindo involuntariamente de todas as bocas, acolheu estas atrozes e sinistras frases. Todos sem excetuar mesmo o Minhoto fixaram em Fernando um olhar cheio de espanto e de terror.

Maurício e Gil já abriam a boca para protestarem alta e energicamente contra tão bárbara e revoltante ameaça, dispostos a impedirem sua realização por todo e qualquer meio.

O capitão-mor, mesmo atônito e indignado a um tempo, ia estranhar ao sobrinho sua indizível crueldade, e chamá-lo a sentimentos mais humanos.

Passaram-se alguns instantes de silêncio e estupefação.

Súbito se fez ouvir na sala uma voz fresca, argentina e vibrante.

-Não, não, meu pai! -Exclamava ela; -não consinta em semelhante crueldade!... É demais... É abominável. Para atormentá-la hão de também atormentar-me a mim!... Eis-me aqui!

Assim clamando Leonor saíra de trás do reposteiro, donde estivera observando tudo, correra para o meio da sala, e de fronte erguida, com imponente e senhoril donaire se colocara diante de Judaíba como para protegê-la dos tormentos de que se via ameaçada. Dir-se-ia o anjo custódio da pobre indiana, que descendo do céu vinha ampará-la com a sombra de suas asas.

-O que é isto, minha filha? -O que é isto, senhora?! -Exclamaram a um tempo o capitão-mor e Fernando.

-É o que tenho dito!... Replicou Leonor com voz firme, e quedou-se imóvel sem quebrar uma só linha se sua escultural e soberba postura.

Aquele famoso e altivo busto, alçando-se imperioso e meigo a um tempo sobre um colo alvo e admiravelmente torneado, aquele olhar firme e impávido em um mimoso rosto de donzela, o senhoril e nobre porte, a suprema graça, que ressumava de todo o seu ser, e sobretudo a santidade do motivo, que lhe inspirava o arrojado procedimento, davam a Leonor naquele momento não sei que ar divino, que incutia respeito e admiração. Seu inesperado aparecimento veio ainda produzir um instante de silêncio e assombro geral; mas bem diferente desse, que ainda a pouco haviam produzido as atrozes palavras de Fernando. Era um silêncio quase religioso, um assombro, que parecia adoração.

O mesmo Fernando perdeu por instantes sua marmórea impassibilidade, e não podendo afrontar o olhar altivo e deslumbrante da moça, abaixou a fronte confuso e humilhado. Mas não durou isto muito tempo; em breve o jovem fidalgo recobrou sua habitual  fleuma e sobranceria, e voltando-se para o capitão-mor:

-Senhor, -disse tranqüilamente, -eu entendia, que as mulheres não devem ingerir-se em negócios desta ordem...

-Bem sei, bem sei... -atalhou vivamente o capitão-mor, abafando a voz para não ser ouvido pelos circunstantes. -As mulheres não devem intervir nestas coisas, mormente uma criança... Eu vou acomodá-la, e tu, Fernando, trata de concluir este negócio quanto antes, dê no que der; mas espero que essas tuas sevícias não passaram de ameaças; entendes-me?

-Perfeitamente, -respondeu Fernando, em quanto lá consigo dizia: -hei de fazer o que entender.

O capitão-mor deixou seu assento, dirigiu-se para o meio da sala, e tomando pela mão sua filha disse-lhe baixinho e com voz meiga:

-Vamos, minha filha; aqui não é teu lugar. Tranqüiliza-te; tudo isto não passará de ameaças.

-Meu pai me afiança?...

-Afianço-te; pois julgas-me capaz de consentir em tais crueldades?...

-Então vamo-nos, meu pai.

Leonor pela mão de seu pai desapareceu além do reposteiro acompanhada dos olhares de todos, que tomados de emoção e respeito viram sumir-se aquela visão, como havia aparecido, como um anjo entre nuvens.

Fernando viu-se com íntima satisfação desassombrado da presença de Diogo Mendes e de sua filha, e podendo dar às pesquisas a direção que quisesse, tratou imediatamente de prossegui-las com novo encarniçamento.

Neste interim Maurício e Gil haviam travado entre si este curto diálogo:

-Maurício, não posso mais conter-me, nem suportar tantas atrocidades. Retiro-me neste instante; vou avisar Antônio e mais alguns companheiros, conforme o resultado...

-Espera um momento, Gil; vamos ver a resposta de Irabussu; conforme ela for, também sairei, e então veremos o que devemos fazer.

-Mas isso é perder tempo...

-Não, Gil; o negócio decide-se já... Escuta... Fernando nos fala...

-Senhor Maurício, -dizia com efeito Fernando em voz bem alta, -cumpre explicar a esse bugre o que eu a pouco disse a vossemecê; lembra-se ainda?...

-Oh! Se me lembro! -Respondeu Maurício relanceando sobre Fernando um olhar que o fez estremecer, e deu-se pressa em falar a Irabussu.

Este, sabendo que sua filha seria atormentada, se ele não revelasse o lugar da mina, deixou pender a cabeça para o chão, acocorou-se na sala, e assim ficou largo tempo; gotas de suor lhe corriam pela testa, e o corpo se lhe agitava todo em tremores convulsivos.

Silenciosos e na mais ansiosa expectação aguardaram todos a resposta do índio.

Por fim Irabussu levantou-se, e fez um aceno de cabeça a Maurício. Este aproximou-se.

-Irabussu vai mostrar a mina, -disse o bugre.

-Quando?...

-Quando quiserem...

O rosto de Gil desanuviou-se, e Maurício respirou profundamente, como se lhe houvessem tirado um rochedo de cima do coração.

Aquela resolução do índio vinha com efeito dissipar uma violenta e eminente catástrofe.

-Está resolvido a mostrar a mina, -disse Maurício a Fernando.

-Quando?

-Hoje, ou amanhã; quando quiserem.

-Ainda bem!...

CAPÍTULO XX

O anjo do lar e o anjo das selvas

No dia seguinte ao primeiro alvorecer da manhã, seis emboabas bem armados de escopetas, pistolas e zagaias, quatro a cavalo e dois a pé, acompanharam Irabussu, que saía da casa do capitão-mor para ir mostrar a mina oculta de espantosa riqueza, que era o pesadelo de toda aquela gente. Os dois peões iam nos lados do bugre segurando as extremidades de uma grossa corda, que arrochava-lhe os pulsos. Os cavaleiros iam dois adiantes e dois atrás. Para um velho bugre velhaco e feiticeiro como Irabussu tais precauções não eram excessivas.

Fernando havia escolhido os mais resolutos e destemidos, os mais fiéis e dedicados de entre seus patrícios para aquela arriscada e melindrosa empresa. Bem vontade tinha ele de ir em pessoa a ser o primeiro a pôr a mão naquele Eldorado, que tanto lhe cativara a imaginação; mas teve receio e vergonha; receio, porque bem sabia que por aqueles arredores cruzavam hordas selvagens, e temia que Irabussu não os quisesse envolver em alguma cilada; vergonha, porque desejara passar por desinteressado e não queria por modo nenhum que se atribuíssem os seus procedimentos à ganância de ouro. Entretanto não deixou de dar ordem e recomendações mui terminantes e apertadas aos seus homens debaixo de severas comunicações.

-Cuidado com o bugre!... Não facilitem!... Repetia-lhes uma e muitas vezes. -Se o deixarem escapar, terão de sofrer por ele o castigo... Depois que mostrar a mina, tragam-me provas, e marquem bem o lugar e o caminho. Mas antes de tudo não mostrem nada senão a mim. Havemos de lá ir apanhar todo o ouro, que estiver à superfície, e a vocês um bom quinhão; percebem?...

Algumas pessoas, que já estavam despertas e viram passar o bugre, com aquele sinistro acompanhamento diziam entre si:

-Que quer dizer isto?... Irão enforcar o pobre diabo?... Anda, bruxo de mil diabos!... Vai para o inferno pagar teus malefícios!...

As mulheres benziam-se, e os meninos assustados e chorando corriam para junto das mães.

Gil se achava em casa de Maurício, onde havia passado a noite, e estavam ambos naquele quarto muito nosso conhecido, e dali espreitavam com ansiosa curiosidade a saída do bugre.

-Não posso negar, -dizia Gil, -que estou com bastante cuidado a respeito do meu velho bugre. Entretanto, lembro-me que ele é fino e matreiro como raposa velha, e quer me parecer, que longe de ir mostrar ouro àqueles famintos emboabas, vai lhes pregar ainda alguma furiosa peça.

-Pior será isso; se ele escapa-se sem cumprir a palavra, então ai da pobre Judaíba!...

-Isso é verdade!... Irabussu não é capaz de desamparar a filha, nem que o façam em postas...

-Nesse caso que remédio terá senão mostrar a mina?

-Eu sei lá!... Aquele bugre é manhoso e astuto, como ninguém faz idéia; às vezes eu mesmo quase acredito que deveras ele é feiticeiro, ou tem pacto com o diabo. Oh!... Se pudéssemos acompanhá-los de longe!...

-Isso nunca!... Iríamos nos comprometer; Deus sabe o que sucederá!... Todo o mau resultado nos será atribuído. Fiquemos por aqui, e esperemos; é melhor partido, que por agora podemos tomar.

-Tem toda razão, Maurício; mas entretanto lá se vão assenhorear de uma fortuna, que era minha, e que eu comprei, sem o saber, por um ato de caridade cristã, livrando das garras da morte aquele pobre velho!... Que importa!... Fiquem esses miseráveis atolados em ouro, mas respeitem o meu velho amigo, o meu pobre bugre... Senão... Não me poderia mais vingar deles por meio desse ouro, que me roubam. Mas ferro e fogo por toda parte existem, e ninguém mais me impedirá que...

Os sentimentos generosos de Gil transbordavam no acento apaixonado e na expressão dos olhos, que se banhavam em lágrimas, que não queria derramar.

Maurício o interrompeu:

-Tem razão, meu Gil... Eu mesmo não sei o que faça, mas peço-te... Espera...

-Irabussu lá foi para o mato, de mãos amarradas, escoltado por seis emboabas... Que foram fazer dele?... Onde ficou Judaíba? ... Eim!... Meus brancos?...

Esta rápida e brusca interrupção à conversa dos dois paulistas foi feita por Antônio, que desde a véspera não pensava senão na sorte dos dois índios, e entrara no quarto ofegante, com as narinas dilatadas e os olhos chamejantes.

Os dois moços compreenderam logo o que se passava naquela alma inquieta e ardente.

-Irabussu foi mostrar a mina aos emboabas, -respondeu, tranqüilamente Maurício; -não te inquietes, Antônio; Judaíba está em casa de teu senhor velho.

-Ah!... Muito bem!... Muito bem! -Exclamou Antônio batendo palmas. -Vou lá ver Judaíba, ... e de lá vou acompanhar aquela gente... Eu é que hei de descobrir a mina...

-Tu, Antônio!... Exclamaram ao mesmo tempo os dois moços.

-Sim, eu mesmo.

-Mas como!?...

-Ora! Eu cá sei!... Conheço aos palmos tudo isto aqui em roda. Deixem-me fazer o que entender.

-Tiveste ótima lembrança, Antônio; -disse Gil; -tu és esperto, e demais ninguém desconfia de ti... Vai espiar o que eles fazem... Aqueles malditos são capazes de matar o pobre bugre; e por seu lado o bugre pode ainda usar de alguma artimanha, pregar-lhes algum logro, e só tu serás capaz de ficar senhor do negócio... Vai Antônio; vai já.

Antônio olhou para Maurício, como quem lhe pedia o assentimento.

-Vai, -disse-lhe também este.

-Vou já; mas primeiro vou ver Judaíba.

E partiu.

Ao entrar no pátio do capitão-mor o primeiro som que Antônio ouviu foi a voz argentina e suave de Leonor.

-Vai depressa à casa do Sr. Maurício, -dizia ela da varanda a um dos fâmulos, -e chama por cá por ordem de meu pai o índio Antônio. Que venha depressa, ouviste?...

-Antônio aqui está, minha senhora! -Gritou Antônio; -o que quer dele?...

-Ah!... Melhor! Melhor! -Exclamou a moça alegremente. -Parece que adivinhas, Antônio. Vem cá.

Antônio acudiu galgando aos três degraus da escada da varanda.

Leonor, como vimos, desde a véspera tinha tomado vivo interesse e compaixão pelo velho bugre e principalmente por sua inocente filha. Repugnava-lhe ao coração sensível e benfazejo o bárbaro tratamento a que queriam sujeitar os dois míseros selbagens. Sabia muito bem que o principal autor daquelas crueldades era Fernando, e que se o capitão-mor lhes dava algum assenso era de muito mau grado. Depois que fora recolhida amorosamente por seu pai ao interior da casa, conversara largamente com ele, intercedendo pelos pobres selvagens, e rogando com as lágrimas nos olhos que em caso nenhum consentisse em pô-los a trato.

-Não te aflijas, querida filha; -dizia-lhe o bom e carinhoso pai; -tudo isto não passará de meras ameaças, e nem creias que Fernando será capaz de pô-las em prática, e nem eu o consentirei. Entretanto, é preciso que o bugre nos descubra essa mina de incalculável riqueza!... Em honra ao nome que tenho, e à posição que ocupo, não terei remédio senão empregar os últimos meios para fazer esse grande serviço ao meu soberano, a quem é meu dever servir e honrar!...

-Triste honra e triste serviço!... Então para servir e honrar a esse seu soberano, meu pai, é preciso azorragar, estonar, matar a essa pobre gente do mato?!...

-És muito inocente, minha filha, -replicou o pai sorrindo. -Não lhes queremos a vida, não; o que queremos é somente o ouro desta terra, do qual não conhecem o valor, e nem sabem aproveitar-se.

-Não é assim, meu pai; não sabiam, mas agora já sabem. Por que é que Irabussu esconde teimosamente a sua mina?... A seus irmãos ele esconderia?... Não, não de certo!... Esconde-a, porque percebeu que nós damos ao ouro um valor extraordinário, maior do que ele merece. Eles bem pouco se importam com ouro. Deixem-lhes a liberdade, deixem-lhes essas matas, e esses rochedos, em que nasceram, e eles estarão prontos a mostrarem todas as minas deste país, que conhecem melhor que ninguém.

A gentil filha do Ipiranga parecia agitada por um espírito profético, e era como um eco precoce da independência da América portuguesa proclamada nas campinas de sua terra natal.

As singelas e entusiásticas palavras da moça dizeram cismar por um momento a seu velho pai.

-Anda cá, minha filha, -disse ele acordando de seu cismar, e lançando o braço ao colo da menina; -e se eu conseguir mandar para Portugal galeões atopetados de ouro?!... Minha casa erá em breve uma das mais nobres do reino, e mais um brasão, mais um título heráldico virá adornar as armas de nossa família. Já com este meu braço concorri para escorar o trono de Sua Majestade Real; agora quero também contribuir para encher-lhe o erário.

-É justo, meu pai; mas não se poderá conseguir isso sem maltratar tanto esses pobres selvagens?...

-Pode-se, minha filha, e tanto assim que lá se vai nos mostrar um riquíssimo tesouro, sem que seja preciso vexá-los. Mas, se forem precisos meios mais enérgicos, que remédio senão empregá-los!...

-Ah! Permite Deus que isso não seja preciso... Maltratar a uma pobre caboclinha, que de nada sabe, de nada tem culpa!... Oh! Perdoa-me, meu pai, eu não quero mais ser sua filha, se vossemecê consentir nisso!...

-Sossega teu coração, minha filha. Já te disse; são puras ameaças; isso não terá lugar. Pelo contrário, verás que as honras e as riquezas nos entrarão pela casa adentro sem fazermos mal a ninguém.

-Mas, meu pai, pelo menos não fazemos mal a esse Gil...

-Mal a ele, minha filha?!... Ele é quem nos ia fazendo mal, esbulhando-nos de um direito que é nosso, tirando ou fazendo tirar ouro às escondidas. Ah!... Se eu quisesse usar contra ele o rigor das leis!... Mas não desejo exacerbar os ânimos mais do que já estão, e nem reavivar esses ódios, que não sei por que fatalidade, existem entre nós os portugueses e os filhos desta terra... Enfim, Gil não continuará a enriquecer-se por esse modo ilícito, e é quanto basta... Ele por certo não esgotou a mina, que, se Deus for servido, há de ser explorada mais vantajosamente em benefício de El-Rei, de nós todos, e não só dele, como ele esperava, e como eu não posso consentir. Tranqüiliza-te, minha filha, e esperemos até amahã.

Ditas estas palavras, Diogo Mendes beijou ternamente sua filha na fronte, e recolheu-se ao seu aposento.

Leonor esperou com impaciência o alvorecer do dia seguinte. Ansiava por ver de perto com mais atenção a pobre indiana, e falar com ela alguma coisa, fosse o que fosse. Curiosidade infantil, comiseração e nobreza d’ alma, tudo influía, para que ela desse aquele passo. Mas a figura esquálida e monstruosa do velho bugre lhe metia medo. Apenas porém na manhã seguinte Irabussu saiu escoltado pelos emboabas, Leonor correu a pedir a seu pai que lhe deixasse ir ver a caboclinha.

-Que vais lá fazer, minha filha?... Ela não te entenderá, nem tu a ela. Bem viste, como ainda está brutinha e arisca, que nem uma corça...

-Não importa, meu pai; quero ir vê-la de perto, e domesticá-la, essa corça... Coitadinha!... Tão menina ainda!... Quase nua!... Tão desgraçada!... Não faz dó, meu pai?...

-Pois vai, minha filha, -disse Diogo Mendes sorrindo-se bondosamente.

-Mandarei abrir-te a porta da prisão, e poder soltá-la, que não há necessidade alguma de ficar presa aquela probrezinha, que nenhum mal pode fazer. Entretanto, é bom não deixá-la sozinha.

Leonor, acompanhada por uma escrava levando uma trouxa, entrou na prisão. Era esta uma sala espaçosa toda entulhada de troncos, correntes, pegas e instrumentos de suplício, e escassamente alumiada por uma pequena fresta aberta no alto da parede. A este salão meio subterrâneo e soalhada de lajedos, descia-se por uma estreita escada de pedra.

Judaíba estava sentada a um canto da sala sobre um cepo mui baixo, toda encolhida, com a cabeça metida entre os braços enrolados sobre os joelhos. Os cabelos bastos, corridos e mui compridos se lhe entornavam em redor do corpo encobrindo-o quase todo, e lambiam o pavimento, à maneira dos ramos desgrenahados do salgueiro chorão. Estava domritando, ou absorta em profunda mágoa?...

Leonor abriu de manso a porta da prisão, encaminhou-se para a índia, e bateu-lhe de leve no ombro. Judaíba acordou de seu letargo e levantou-se acelerada, murmurando palavras guturais e ininteligíveis com ar ameaçador. Leonor não se assustou; tomou a mão da jovem indígena, afagou-a, abraçou-a, e em poucos momentos fê-la sorrir.

Mandou a escrava colocar perto dela o embrulho de roupas, que lhe trazia, desatou-o e tirou alguns vestidos e enfeites de pouco valor, com que queria brindá-la.

Judaíba mostrou-se muito satisfeita e manifestou por gestos e monossílabos o seu contentamento e gratidão; mas depois, pondo-se de joelhos e agachando-se sobre os calcanhares, cruzou os braços sobre o peito e apontando para a porta, por onde Irabussu se partira, como quem perguntava -que é feito de meu pai? -desatou a chorar.

Leonor compreendeu a mímica com a inteligência do coração.

-Ah!... murmurou ela com os olhos úmidos dirigindo-se à escrava; -que pena eu não poder conversar com ela! Se aqui estivessem ao menos Maurício ou Gil, que entendem tanto a língua desta gente?...

Leonor ficou um momento pensativa, enquanto Judaíba chorava. Depois fazendo um brusco movimento, e batendo na testa:

-Ah! -exclamou; -achei!... E eu que não me lembrava de Antônio!... vou mandar chamá-lo...

Dito isso a moça saiu aceleradamente, deixando a escrava perto de Judaíba, dirigiu-se à varanda, e enquanto dava ordem para chamar Antônio, teve a fortuna de encontrá-lo entrando no pátio, como já vimos.

Leonor conduziu o índio à prisão, onde se achava Judaíba.

-Judaíba! -exclamou Antônio, correndo para junto da cabocla.

-Antônio! gritou esta com um sotaque singular, entreabrindo não um sorriso, mas uma risada alegre, ingênua e desabafada como o trinar de um passarinho.

-Conheço muito Judaíba, sinhá, é minha irmã do mato... Coitadinha!... tem pena dela... ela é muito boazinha...

-Tenho muita pena, Antônio; por isso é que te mandei chamar... e tu também queres muito bem a ela?...

-Sinhá quer saber, se eu quero bem a Judaíba?... eu vou perguntar também ao senhor Maurício se ele quer bem a sinhá Leonor!...

Aquela indiscreta mas ingênua alusão do selvagem fez Leonor enrubecer até os olhos.

-Está bom!... está bom!... disse ela procurando disfarçar o seu enleio. -Eu te chamei, porque quero conversar com tua irmã, e ela não entende a mim, e nem eu a ela...

-Pois fala, sinhá; eu vou dizer tudo tal e qual sem tirar nem pôr uma palavra.

Começou então entre as duas o seguinte diálogo, que era transmitido de uma a outra por intermédio de Antônio.

-Como te chamas?...

-Judaíba.

-Judaíba! ... é nome bem suave!... Quer morar comigo?

-Morarei onde estiver meu pai.

-Queres bem a Antônio?...

-Muito.

-Pois bem!... eu quero que fiques comigo para te casar com Antônio; queres?...

-Sim; mas junto com meu pai...

-É isso mesmo que eu quero; teu pai volta hoje, e ficarão todos três aqui. Eu serei tua irmã, e te hei de tratar muito bem; não consentirei que ninguém faça mal nem a ti, nem a teu pai. Queres ser minha irmã?...morar comigo, com teu pai, com Antônio, nós todos juntos?...

-Falta ainda uma coisa, sinhá, -considerou Antônio.

-O quê? -perguntou Leonor.

-Para tudo ficar direito falta aí o patrão...

-Qual patrão?... replicou a moça, fingindo-se desentendida.

-Ora! o patrão moço, o senhor Maurício...

-Cala-te, Antônio; não se trata agora disso. Querem, ou não querem, o que eu propus?... É o que desejo saber.

-Ora! pois precisa perguntar?... Eu respondo também por Judaíba... Queremos, queremos...

Falando assim, Antônio agarrou na alva e delicada mão de Leonor, beijou-a com frenesi, e mandou a Judaíba que fizesse o mesmo. Leonor não consentiu, e enlaçou-lhe o colo dizendo:

-Abraça tua irmã!

-Vou-me embora, -disse Antônio, -tenho hoje muito que fazer. Quando sinhá precisar de Antônio para conversar com a menina, manda chamá-lo, que de um pulo ele aí está.

Dito isto, trocou com Judaíba algumas palavras em língua indígena, e em dois saltos ponde-se fora da prisão, lá se foi correndo no encalço da escolta que acompanhava Irabussu.

Fernando e o capitão-mor, encerrados no gabinete deste, procuravam passar as longas horas daquele dia de inquieta expectação tratando de diversos negócios; mas o velho bugre, e sua prodigiosa mina de ouro, por mais que disso procurassem esquecer-se, voltavam teimosamente à tela da conversação. Era uma preocupação tenaz, que se lhes agarrava ao espírito como ostra ao rochedo. Tal é a fascinação que o ouro, ainda mesmo sonhado, exerce sobre as imaginações!... A cada momento pensavam estar vendo os seus emboabas voltarem vergados com o peso das sacas de ouro, que já não se pesava, media-se às quartas e aos alqueires.

Também de sua parte Maurício e Gil aguardavam com não menos impaciência o resultado daquela singular pesquisa. Gil deixaria passar para as mãos dos emboabas todo o ouro do mundo, uma vez que o velho bugre, que por ele tanto se sacrificava, nada sofresse. Mas por outro lado estimaria bastante que o ardiloso índio ainda uma vez lhes malograsse as tentativas, e os deixasse completamente burlados morrendo dessa sede fatal, que a perspectiva de imensos tesouros lhes havia ateado no peito.

Maurício também desejaria ver os emboabas nadando em ouro, contanto que com isso se esquecessem de perseguir os seus patrícios, e fazia votos ao céu, para que o bugre, mostrando essa mina fatal, que ameaçava pôr tudo em conflagração, fizesse desaparecer de entre eles mais esse pomo de discórdia.


CAPÍTULO XXI

Em busca do Eldorado

Enquanto o capitão-mor, Fernando, Maurício, Gil e toda a população de S. João d’ El-Rei esperam as horas passarem na mais viva e ansiosa expectação, façamos como o índio Antônio, e vamos espiar através de matas, morros e grotões, para onde Irabussu vai guiando os pobres emboabas a fim de lhes mostrar a tão cobiçada e misteriosa mina.

O índio conduziu os seus guardas para o lado de Matozinho, justamente por onde é hoje a estrada que conduz a Ouro Preto. Apenas ganhou as proximidades do Rio das Mortes, parou, e com um aceno deu a entender que deviam largar o caminho à esquerda e embrenhar-se pelo mato, seguindo rio acima por um lugar onde não havia a menor trilha, nem batida alguma de gente ou de animais.

-Como é isso?... exclamou atônito um dos emboabas; -pois nós nos havemos de enfiar por esse mato bravo, sem nenhum caminho aberto?... tu ou estás doido, meu bugre, ou queres zombar conosco.

-Ora não faltava mais nada! -acrescentou outro. Quero ver como havemos de varar por estas charnecas e andurriais!... ainda a pé, vá feito; mas a cavalo!... seguramente este velho bruxo quer nos debicar!... fala, bugre dos diabos, pois não há melhor caminho do que este para chegarmos à tua maldita mina?...

Irabussu, como já vimos, entendia alguma coisa de português, se bem que no interrogatório se mostrou mais boçal do que realmente era.

Portanto, auxiliando-se com gestos e sinais, deu a entender aos emboabas, não sem alguma dificuldade, que se não quisessem acompanhá-lo, não poderia mostrar a mina; que ele mesmo não conhecia trilho nenhum certo, dirigia-se pelo rumo, e alguma vez tinha acontecido desnortear-se e não encontrar a mina senão depois de longos rodeios. Confessou, demais, que sempre tinha cuidado de não deixar rasto algum nem sinal de sua passagem, a fim de que ninguém pudesse descobri-la.

-Ah!... é assim?... mau!... o caso está mais feio do que se nos pintava!... estamos bem aviados, meus amigos... -disse um emboaba.

-E por que não nos disseste isso a mais tempo, brugre de satanás?... ou tu hás de mostrar melhor caminho, ou com esta te arrebento os miolos!... -ameaçou outro erguendo o coice da escopeta.

Por única resposta Irabussu sacudiu os ombros e sentou-se no chão.

Os emboabas desesperavam de raiva e impaciência.

-Com mil diabos!... isto é abusar demais da paciência do próximo!... se eu adivinhasse, por Deus, que não me metia em tais alhadas...

-Nem eu!... nem eu!... nem eu!... repetiam todos, à exceção de um.

-Não é assim, meus amigos! -exclamou este; -não desanimemos, temos ordens apertadas, e suceda o que suceder, vamos por diante com esta empreitada; senão... vocês bem sabem o que é que nos espera. Anda lá! -continuou dando um pontapé nas costas de Irabussu; -levanta-te, bugre escomungado!... vamos adiante!... se cuidas ainda pregar-nos alguma peça, juro-te que com o coice desta escopeta te hei de pôr em marmelada essa cabecinha de pica-pau.

O índio não compreendeu, ou não fez caso da ameaça; levantou-se e pondo-se em movimento abaixou a cabeça e foi-se enfiando pelo mato adentro. Mas não era possível aos emboabas acompanhá-lo pela mesma forma em que até ali tinham marchado. Os quatro, que iam a cavalo, viram-se forçados a apear e levar pela rédea suas cavalgaduras. Os dois que pegavam nas extremidades da corda arrochada aos punhos do índio, não tiveram remédio senão largá-la, e deixaram que ele fosse adiante de todos a fim de os guiar. Mas o índio esgueirava-se com presteza admirável por entre as mais emaranhadas brenhas, ao passo que às vezes era preciso aos emboabas usarem de suas facas de mato para abrirem caminho em lugares por onde ele passava sem encontrar a mínima dificuldade. Entretanto não era prudente deixá-lo adiantar-se muito, e foi preciso que ao menos um dos emboabas por cautela segurasse a corda.

Assim andavam por largo tempo com infinita dificuldade e extrema lentidão. Parece que de propósito o índio levava os emboabas pelos sítios mais ínvios e escabrosos. Aqui era preciso romper um matagal espesso, todo emaranhado de taquaras e cipós. Acolá topavam enorme perambeira, que era preciso descer ou subir agarrando-se aos ramos e aos rochedos. Além tinham de atravessar um córrego de barrancas escarpadas, e forçoso lhes era meterem-se na água até a cintura.

Irabussu vencia todas essas dificuldades adelgaçando ainda mais o corpo já de si mirrado e esguio, mas flexível como a serpente, e ágil como a cotia. Outro tanto não acontecia aos emboabas, que rasgavam as roupas e as carnes pelos espinhais do mato, e levavam tombos e esbarradas, que lhes arrancavam gritos de dor por entre um chuveiro de pragas e maldições.

Reconheceram os portugueses que lhes era impossível levar seus cavalos, que lhes serviam mais de embaraço de que de auxílio. Consultaram entre si, o que deveriam fazer; mas Irabussu tranqüilizou-os, fazendo-lhes ver que em breve estariam de volta pelo mesmo caminho, e que se os deixassem atados a alguns troncos não deixariam de tornar a encontrá-los. Assim resolveram, e livres daquela inútil bagagem, prosseguiram a marcha com menos lentidão.

O bugre conduzia os seus guardas por lugares esconsos e vales profundos e cobertos de mato, donde não lhes era possível descortinar nada em derredor. Além disso, parava de espaço em espaço como para tomar rumo mudando freqüentemente de direção.

Era já meio-dia e eles teriam andado pouco mais de légua sem saberem a quantas andavam, nem a que rumo lhes ficava a povoação. Andaram, andaram ainda por duas longas horas entre brenhas e grotões, até que surdiram no alto de uma encosta descampada.

Os portugueses olhando em torno de si nada viram que os pudesse orientar. De um lado erguia-se uma sucessão de colinas, que se iam elevando em caprichosas ondulações até se perderem nos remotos horizontes. Do outro seguia-se um cordão de morros, intermeados de capões e campinas, e era no vivo de um destes morros que eles se achavam colocados.

Pela frente enfim estendiam-se debaixo de seus pés baixadas e vales profundos, cobertos de matos, que se ligavam a uma floresta geral, que parecia ser a do Rio das Mortes. Mas os emboabas ali se achavam como se tivessem vindo com os olhos vendados, e não saberiam dizer para que lado corria o rio, nem que direção deveriam tomar para voltarem à povoação.

Chegados àquela encosta o bugre, que sentia fome e cansaço, sentou-se no chão, à sombra de um bosquete e pediu que lhes desatassem os pulsos. Os emboabas fizeram-lhe a vontade, mas por precaução sentaram em derredor dele em círculo bem apertado, de olho vivo e a mão nas escopetas. Irabussu tirou da sacola, que trazia a tiracolo, um quarto de caça moqueada, e começou a roê-lo e mastigá-lo com toda a tranqüilidade. Estimulados pelo exemplo, e estafados de fadiga, os portugueses entenderam que era boa ocasião de darem também assalto a seus sacos de matolotagem; entretanto, iam adubando a parca refeição com injúrias ao velho caboclo, que delas nenhum caso fazia.

-Então?... quando chegaremos ao fim desta jornada, bugre dos mil diabos?... -dizia um meio engasgado com um pedaço de carne.

-Ainda está muito longe essa maldita mina?... fala, bruxo endiabrado!... bradava outro atirando à cara do pobre velho um osso, que acabava de roer.

-Se ainda temos caminhada como esta, que até aqui temos agüentado, ah! meu bugre velho, furo-te esses olhinhos de víbora! -rosnou outro arrojando aos olhos do bugre um resto de aguardente, que acabava de beber.

Irabussu, que tinha acabado de comer, limpou os olhos, levantou-se sossegadamente, entregou os pulsos para serem de novo amarrados, e pôs-se em movimento sem murmurar uma palavra. Subiu um pouco pela encosta acima para melhor descortinar o terreno, pairou os olhos sobre a imensa valada coberta de mato que se estendia a seus pés, e depois de observar por alguns instantes, apontando com as mãos atadas exclamou:

-É ali!...

É ali! -estas curtas palavras proferidas por aqueles lábios secos e mirrados, que a tanto tempo não se abriam, produziram efeito elétrico entre os emboabas.

Todos os olhos se dirigiam para o ponto que o bugre indicava com seus compridos braços de esqueleto estendidos para diante.

É ali?... ali bem perto!... ali está o termo de nossas fadigas, e a porta misteriosa dos encantados palácios de Pluto!... é ali!... está à vista!... é quanto basta!...

-Ali onde? -perguntaram os emboabas estendendo a vista muito ao largo pelos horizontes.

-Aqui mais pertinho, -disse o bugre abaixando os punhos. -Estamos quase batendo com o pé em cima da mina.

O lugar, para onde apontava o bugre, era mesmo na raiz do grande morro, em que se achava colocado com os emboabas.

Nas últimas abas desse morro destacava-se um cômoro elevado, coberto de espessa mata, e que parecia terminar cortado a prumo sobre um comprido vargedo ou clareira semeada de pequenas lagoas. Este vargedo estendia-se à raiz do morro ao longo das margens de um rio considerável, cujo veio tortuoso se mostrava aqui e acolá tranqüilo e cintilante aos raios do sol por entre as vastas e tofudas florestas, que o obumbravam, e ia coleando perder-se embebido entre as sinuosidades dos outeiros longínquos. Além do rio, e não a muita distância erguia-se a rampa colossal de uma alta serra.

Eram o Rio das Mortes e a serra de S. José, que os emboabas tinham diante dos olhos. Entretanto, na posição em que se achavam, e em virtude dos imensos rodeios, por onde os levou o bugre através de vales escuros, grotões e baixadas cobertas de brenhas, não souberam reconhecer nem a serra, nem o rio. O sol já havia descido consideravelmente do zênite, e eles tinham marchado continuamente, se bem que com suma lentidão desde a primeira alva do dia. Julgavam achar-se seguramente a sete ou oito léguas de S. João, entretanto, em linha reta não se achavam talvez bem a uma légua.

-Aqui em baixo?... -exclamaram os emboabas criando alma nova, apenas reconheceram o sítio, que Irabussu lhes indicava. -Mercê de Deus, estamos bem perto?... Vamos! vamos para lá, e depressa, meu bugre!...

Desceram para as matas, que ficavam ao pé do morro, e nelas se embrenharam guiados por Irabussu. Pensavam os emboabas que em menos de meia hora se achariam naquele sítio suspirado, que ali viam tão pertinho e quase debaixo de seus pés, e estariam tocando com as mãos aquela mina fabulosa, alvo de tantos desejos, termo de tantos esforços e fadigas. Mas em breve se desenganaram. Ou por manha, ou porque assim era mister, Irabussu fê-los dar ainda um imenso rodeio para ganharem o socalco do morro, em cuja base achavam-se o cômoro e o vargedo de que falamos. Ainda os míseros emboabas, estropiados e estafados de calor e cansaço tiveram de gramar cerca de duas horas de marcha difícil e penosa, através de matas emaranhadas e de lugares ínvios e escabrosos.

O sol já estava rente com as montanhas do ocaso, e ainda não haviam chegado ao termo da viagem.

-Arre!... com mil diabos!... -exclamou um perdendo a paciência. -Este maldito bugre quer nos esbofar e matar de cansaço para nunca mais chegarmos a tal mina, que mil diabos consumam!...

-E pela hora que é, -acudiu outro, -não teremos remédio senão lá pernoitar, isso se tivermos a dita de lá chegar...

-Pois se não chegarmos, juro por minha alma que hei de esborrachar a cachola deste casmurro.

-Alto lá, patrício!... Antes de ele nos mostrar a mina, não consinto. Esta cabaça, que aqui levo com aguardente, pretendo trazê-la cheia de ouro em pó.

-Que duvida, amigo!... se não nos gratificarmos por nossas mãos da esfrega que vamos agüentando, ninguém mais se lembrará de nós. O tal senhor Fernando é bem capaz de cumprir as ameaças que nos fez, mas as promessas... fiem-se nelas!... nada, meus amigos; este bornal, que aqui vai com farinha, há de boltar mais pesado um pouco, se Deus quiser.

-E eu nesta garrafa hei de trazer quanto caiba...

-E eu nas algibeiras do gibão, haja ouro, que elas são bem largas.

-E eu, que não trouxe vasilha nenhuma!... valha-me Deus!... té as minhas algibeiras estão em trapo!... mas... para tudo há remédio; encho até a boca o cano da minha escopeta...

-Ah! ah! ah! -interrompeu com uma gargalhada o sexto companheiro, que até ali ainda não tinha apresentado sua vasilha para encher de ouro. -Vossemecês estão dando cabo da mina do bugre, e segundo me parece não pretendem deixar nem um grão para o Sr. Fernando e o capitão-mor.

Nesse caso o melhor é fazermos outra coisa.

-O quê?

-Acabarmos com a vida deste bugre amaldiçoado, -depois de mostrar-nos a mina, está entendido, -atiramos o cadáver aí em qualquer buraco, e nos tornaremos os únicos senhores do segredo e de toda essa riqueza. Diremos depois que ele fugiu, ou que nos foi arrebatado à força por uma troça de botocudos, que nos assaltou...

-A lembrança não é má, mas não deixa de ser arriscada...; e depois como nos arranjaremos?...

-Nada mais fácil; se a mina é, como dizem, dentro de oito dias podemos ficar riquíssimos, antes que se dê pela coisa; e no fim de contas da noite para o dia nos raspamos, que o mundo é largo, e em havendo ouro nada nos faltará.

Nestas e outras quejandas práticas iam os emboabas procurando disfarçar o enfado de tão fragueira jornada, quando se acharam à entrada de um vasto e pitoresco vargedo todo recortado de viçosas balsas e de pequenas lagoas e banhados, formado pelo transbordamento de um rio, cujas barrancas se desenhavam não mui longe no limite da planície. Reconheceram ser o mesmo sítio que o índio lhes havia indicado do alto do morro. Olharam em derredor, e divisaram à direita na base do grande morro, que acabavam de descer, uma escarpa enorme e quase perpendicular de rochas branquicentas dominando a vargem à maneira de fachada ciclópica de um edifício em ruínas. No coruchéu desse bronco acervo de rochas crescia robusta e gigantesca floresta ligando-se às matas que cobriram as abas dos altos morros, a cuja base achava-se encostado.

-Lá está! -exclamou Irabussu apontando para o rochedo.

Os portugueses exultaram; estavam em terreno plano e descortinado, e quando muito a mil passos de distância do termo de suas fadigas!... Bem sabiam que haviam de pernoitar lá; mas achar a um tempo a mina e o descanso era para eles a bem-aventurança, embora se achassem rodeados de perigos e mistérios.

Entretanto, antes de lá chegarem, estava-lhes preparada ainda uma cruel provação. Achavam-se à beira de um extenso e profundo banhado, que atravessava o vargedo em toda a largura parecendo uma vertente das montanhas represada pelo rio. O índio por gestos explicou aos emboabas que era forçoso atravessá-la. Estes responderam-lhe que não sabiam nadar.

-Não é preciso, -disse Irabussu, e com um aceno significou-lhes que o acompanhassem bem de perto. Os emboabas hesitaram por alguns instantes.

-Enfim, -exclamou um deles, -já agora que estamos a ponto de ver o fruto de nossos trabalhos, é vergonha recuarmos. Demais um banho de água fria depois de tanto calor e fadiga não pode fazer mal.

-É verdade, patrício; o mais que pode fazer é levar-nos para outro mundo de alguma macacoa.

-Embora! -exclamaram outros; -já que é preciso, vamos a isso.

O bugre com suas compridas pernas foi atravessando suavemente o banhado com água pouco acima dos joelhos; seus companheiros porém a tiveram quase pela barba, e só ganharam a outra margem depois de bem ensopados e enregelados até os ossos.

-Maldita a hora em que me meti em tais funduras! bradou um tiritando e batendo os queixos de frio.

-Cala-te, menino! acudiu outro procurando alentar o comapanheiro. -Aqui vem a pelo o rifão: -não se pescam trutas a barbas enxutas. As trutas ali estão bem perto; nadamos em água; agora mesmo vamos nadar em ouro...

-Qual ouro, nem meio ouro!... pensas então que ele há de chegar para nós!... para nós é só a canseira, para eles o proveito!... as águas correm para o mar, meu amigo!... Juro pelas tripas de meu pai que pela minha boca ninguém há de saber de ouro nenhum, e hei de mandar este bruxo com sua mina e tudo para as profundas dos infernos!...

-Lá isso não, patrício!... Vá o bugre só, mas fique-nos a mina.

-Tenhamos paciência, minha gente!... dê no que der, já agora levemos por diante esta empreitada.

Assim lastimando-se, queixando-se, praguejando, ou procurando confortarem-se uns aos outros, chegaram sem mais novidades ao pé do grande rochedo.


CAPÍTULO XXII

A gruta de Irabussu

O sol já havia desaparecido no horizonte. Os emboabas tinham pela frente a poucos passos de distância uma enorme massa de rocha calcária, coroada de selvas e elevando-se a prumo como fachada em ruína de construção titânica. Pelos outros lados cercava-os um extenso vargedo, todo crivado de pequenas lagoas e viçosos bosquetes. Além um grande rio coleando entre florestas e mostrando aqui e acolá o largo veio ainda cintilante das púrpuras do céu. Mais além os topes de elevada serrania desenhando-se no fundo do horizonte sereno ainda iluminado pelos últimos reflexos do dia.

Interessante e grandioso devia ser aquele espetáculo; mas a narrativa nos punge para diante, e nossos emboabas não tinham tempo nem vontade de se conservarem em estática contemplação diante das maravilhas da natureza.

Em face de uma fortuna imensa e pavorosa, ensopados, transidos de terror e de frio, entregues às mãos de um espírito diabólico, de um bruxo, de um feiticeiro, que disposição poderiam ter para contemplar os horizontes em derredor?...

Além disso, o que lhes preocupava o espírito era o ouro, o ouro sólido e verdadeiro, que sai das entranhas da terra, e não o ouropel das nuvens, essas tintas vãs, que soem colorir o céu nas belas tardes e manhãs de nossos climas.

Que lhes importava o ouro do céu, se eles procuravam o ouro da terra?...

Em vez de estarmos a contemplar os horizontes, enfiemo-nos portanto pelo seio da terra adentro.

Estavam, pois, os emboabas estacados diante de uma arcada enorme, que servia de pórtico ou umbral a profundos e tenebrosos antros. O crepúsculo, que já então se estendia pela valada, era ali ainda mais carregado em razão da sombra, que caía do coruchéu da rocha coroada de brenhas, à maneira de melena arrepiada sombreando a torva e rugosa catadura de um gigante.

Era ali quase como noite fechada; mas se voltassem a face, veriam ainda os emboabas a extrema luz do dia esbatendo-se suavemente pelo cimo das colinas pitorescas.

Mas eles só viam a boca da caverna, que tinham diante dos olhos, e ali estavam estatelados como o sapo diante das goelas da cobra, que o vai devorar; e nada ouviam mais que o resfolgar do antro, que soltava de dentro um sussurro medonho como o gemido dos abismos, ou o rugir longínquo da tormenta.

-É aqui, meus brancos!... estamos em casa! disse Irabussu com um sorriso sinistro.

Já espavoridos diante daquele rochedo, que parecia a fachada dos palácios infernais, ainda mais aterrados ficaram os portugueses pelo tom de mofa infernal, com que o índio, mostrando os dentes amarelos, pronunciou aquelas palavras.

Se fora da caverna era quase noite, dentro reinava completa escuridão. O índio sentou-se sobre uma pedra e deu a entender que era mister acender o fogo.

-Isso vamos nós já fazer; -retrucaram os emboabas. Além de estarmos resfriados e ensopados até os ossos, não havemos de passar a noite às escuras.

Trataram imediatamente de ajuntar alguns paus secos nas moitas, que cresciam pela raiz do rochedo. O chão é úmido e quase perfeitamente plano desde a barranca do rio, que ficava como a um quarto de légua, até a base da penedia.

No tempo das chuvas com o transbordamento do rio, a água entra pela caverna e torna muito mais difícil o seu acesso. Não foi pois sem bastante dificuldade que os emboabas ferindo fogo no fuzil das escopetas conseguiram atear uma boa fogueira à entrada da gruta e ao abrigo da imensa abóboda.

Os emboabas foram logo encostando as suas armas e tratando de arranjar leitos de capim para se acomodarem à roda do fogo, como se tivessem de ali passar a noite. Irabussu tirou-os dessa ilusão fazendo-lhes ver que era forçoso entrar na gruta imediatamente. Os emboabas olharam uns para outros espantados e indecisos.

-Abrenúncio!... -exclamou um deles; -eu entrar nessa buracada a estas horas!... nem que me esfolem vivo!...

-Nem eu!... isto me parece a porta do inferno; é para lá que este bruxo nos quer levar.

-Então é lá dentro que está o ouro, bugre de satanás!?...

-É, -respondeu secamente Irabussu.

-Nesse caso entra tu sozinho e traze de lá um punhado para servir de amostra; ouviste?...

Irabussu abanou a cabeça.

-Se Irabussu não aponta com o dedo, respondeu, -ninguém é capaz de dar com o lugar do ouro.

-Mas isso não pode ficar para amanhã?

-Irabussu precisa voltar hoje mesmo.

-Isso é só se nós consentirmos.

-Amanhã Irabussu está morto e não pode mais mostrar o lugar do ouro.

-Sai-te daí, manhoso; ainda que seja amarrado de pés e mãos hás de aqui ficar hoje, e amanhã quer queiras quer não, nos hás de mostrar a mina.

-Amanhã Irabussu está morto!... murmurou lugubremente o índio, rolando-se por terra.

Esta frase repetida com acentos fúnebres toou aos ouvidos dos emboabas como uma tremenda profecia, e por alguns instantes os fez cismar mudos e transidos de pavor.

-Pior está esta!... se este diabo morre mesmo deveras e leva para a eternidade o seu segredo, deixando-nos aqui perdidos neste deserto sem ao menos termos o consolo de ver a maldita mina!... tanto ouro perdido!... perdido para sempre!... oh! não!... isso não pode ser!... aproveitemos as horas de vida, que lhe restam. -Eram estes os pensamentos que perpassavam pela mente de todos.

-Que estamos aqui a banzar, meus amigos? -exclamou por fim um deles reanimando-se. -Dê no que der, vamos por diante, porque em fim de contas naquele inferno tanto faz entrar de dia como de noite. Vamos, eim? companheiros?...

-Para que irmos todos?... basta ir um ou dois de nós...

-Pois então vai tu...

-E por que não hás de ir tu?

-Não senhores!... a não irmos todos, nenhum lá entrará. O perigo deve ser para todos se é que querem que o ouro também chegue a todos. Ânimo, patrícios!... entremos!... avante, meu bugre!...

-Avante! avante! -exclamaram todos pondo-se de pé e tomando suas armas; Irabussu porém não se moveu.

-Então?... não te mexes, bruto? ... bradou um dando um pontapé no bugre, que continuava imóvel e prostrado por terra. -Estarás já morto, bruxo de mil diabos?

Irabussu levantou um pouco a cabeça e apresentou os punhos amarrados, como quem queria dizer que assim manietado não poderia entrar na caverna. Suscitou-se entre eles então uma pequena discussão, cujo resultado foi concordarem em desatar os pulsos do bugre, e amarrarem-lhe a corda em volta da cintura segurando um deles nas pontas da mesma, com todo o cuidado, enquanto estivessem dentro da caverna. Feito isto o índio deu-lhes a entender que ainda não estava tudo pronto, e que não era possível entrar às escuras. os emboabas compreenderam, e ajudados por Irabussu aprontaram com taquaras e ramos secos sete fachos, que deviam ir acendendo um após outros, à medida que os primeiros fossem se extinguindo. Os emboabas mostraram-se receosos de que aqueles fachos não fossem suficientes; mas o índio tranqüilizou-os, explicando-lhes que a mina não estava muito longe, e que em poucos minutos estariam de volta, e fora de perigo.

-Eia, companheiros!... está tudo pronto; vamos! anda, meu bugre!... entremos nas horas de Deus...

Irabussu acendeu na fogueira o seu archote, e foi entrando pela caverna. Os emboabas o acompanharam de perto benzendo-se e rezando quanta oração sabiam.

Para fora da lapa nada mais se via; a escuridão da noite, que começava a descer, e a fumaça da fogueira tudo escondiam. Estavam segredados completamente da luz do céu, e franqueavam os lôbregos umbrais do reino das trevas.

Acompanhemo-los, e vamos também admirar à luz do archote de Irabussu as maravilhas dessa imensa e misteriosa gruta.

O pavimento é plano, liso, coberto de areia e de folhiço, como um solo de aluvião; os emboabas penetraram com facilidade pela gruta adentro. Logo à entrada, entre os broncos pilares da arcada imensa, que serve de pórtico aos outros, observa-se um curioso e estupendo fenômeno. Um enorme rochedo está como pendurado da abóbada à semelhança de lustre colossal colocado à entrada daquele templo subterrâneo. Mas o monstruoso lustre está envolto em crepe pardacento, suas luzes estão extintas, e é mister brandir o archote em volta dele para admirar-lhe as dimensões titânicas, e ver como se acha preso à cúpula por um ligamento proporcionalmente tão delgado, que faz estremecer. Está ali como a espada de Dâmocles suspensa por um fio aquela massa enorme de milhares de quintais, como ameaçando esmagar, pulverizar com sua queda os imprudentes mortais que ousarem passar-lhe por baixo para devassarem os mistérios daqueles áditos tenebrosos.

Mas Irabussu e seus companheiros não estão ali para admirar semelhantes maravilhas; passam por debaixo do imenso candelabro sem prestar-lhe atenção, internam-se mais alguns passos, e acham-se no recinto de um vasto salão, amplo e circular à maneira da nave de magnífica rotunda. Curvava-se sobre suas cabeças uma abóbada de pasmosa elevação, e de profunda que era, mal seria apercebida ao fraco clarão do archote, se não fora o cintilar das pedras úmidas, polidas e pontiagudas de que estavam crivados o teto e as paredes da gruta.

À luz daquele archote demasiado escassa para alumiar tão vasto recinto, o interior da lapa, já de si mesmo curioso e surpreendente, tomava um aspecto solene e fantástico, que inspirava a um tempo pavor e assombro. Os muros e a abóbada pareciam cobertos de ornatos e esculturas caprichosas, de frisos, relevos, cornijas, colunas, nichos e volutas em desordenada profusão. Aqui via-se um altar mutilado; ali cavava-se no muro um trono em ruínas; além ressaltava da parede um magnífico púlpito; mais além um renque de colunas decepadas se estendia a perder-se na escuridão. E tudo isto se revestia de brilhantes e variadas cores reverberando à luz do facho com reflexos de ouro e rubis, de esmeralda e safira, de topázio e ametista.

Era uma gruta de estalactites, curioso brinco, em que a natureza parece comprazer-se dando as mais singulares e caprichosas figuras a essas rochas formadas no côncavo das cavernas pela congelação de gotas de água infiltradas durante séculos através das fendas dos rochedos.

Além de tudo isso uma multidão de cordas de grossura enorme descendo perpendicularmente da abóbada em uma altura talvez de mais de vinte braças vinham embeber-se no chão. Dir-se-iam cordões, que suspendiam imensas cortinas destinadas a velar os mistérios daquele estupendo e maravilhoso santuário. Eram raízes de árvores seculares, que cravando-se pelas fendas da abóbada, e achando em baixo o espaço vazio alongavam-se até o solo, onde vinham beber a seiva, para alimentar a robusta e vicejante selva, que cobrindo o coruchéu da gruta, balanceava lá em cima, -a mais de cinqüenta braças de altura, -a coma verde negra às auras livres do céu.

Em tudo se parecia aquele antro com o interior de um templo ciclópico, por onde roçara a ara estragadora dos séculos, ou passara a mão vandálica do bárbaro destroçando e mutilando tudo.

A luz avermelhada do archote batendo nas miríades de pontas de estalactites, que incrustavam toda a abóbada, reverberando em chispas cintilantes, produziam o mais deslumbrante efeito. Os portugueses não puderam conter um grito de surpresa e assombro, e estacaram por instantes diante de tamanha maravilha.

-Que é isto, santo Deus!... -exclamavam uns. Tudo isto é ouro e pedraria!... é aqui... é aqui! estamos enfim na mina.

Outros porém pensaram estar em um palácio de fadas, e acreditando que o bugre não era mais que um formidável encantador, começaram a tremer por sua sorte receando ali ficarem encantados para todo o sempre.

Para se moverem foi mister que Irabussu os acordasse daquela estupefação. Já dois fachos se tinham consumido, e não havia um minuto a perder.

O índio avançou contornando o vasto salão como procurando entrada a outros aposentos. Viam-se com efeito em torno aqui e acolá grande número de fendas e arcadas de várias dimensões, e corredores que se perdiam na escuridão, e pareciam dar entrada a novos e vastíssimos compartimentos. O bugre penetrou pelo mais espaçoso desses corredores seguido de perto pelos portugueses. Via-se a um lado suspenso na muralha um púlpito quase perfeito de linda e grandiosa estrutura. Os emboabas cuidaram ver dentro dele um monge de joelhos e debruçado com a fronte envolta em seu capuz. Já se ajoelhavam e persignavam dispostos a ouvirem um sermão, quando subitamente troou-lhes aos ouvidos uma voz horrível, antes um pavoroso mugido.

-Tupassumunga! -bradara Irabussu com toda a força de seus pulmões. Os ecos das profundas cavidades reproduziram por largo tempo o grito estranho em surdos e temerosos rugidos. Imediatamente dois sanhudos e truculentos canguçus, rompendo das grutas interiores, passaram velozes como o raio por entre os portugueses, e desapareceram de novo na escuridão. De susto ou abalroados estes quase todos caíram por terra, e trêmulos, cobertos de suor gélido, não pensaram senão em encomendar a alma a Deus.

-Não tenham medo, meus brancos! -disse Irabussu com um sorriso calmo e satânico; estes bichos moram aqui; são uns gatinhos que vigiam o ouro de Tupã; foi para tocá-los para fora que Irabussu gritou.

Estas palavras proferidas em tom de diabólica ironia não eram muito próprias para tranqüilizar os emboabas.

-Se temos de morrer sem falta, -murmurou um com voz desfalecida, -é melhor morrermos aqui mesmo; daqui não dou mais nem um passo para adiante.

-Se temos de morrer, -replicou outro um pouco mais animado, -tanto faz morrer aqui como acolá; vamos, companheiros!... pelo que vejo, já estamos no inferno em corpo e alma, e tão inferno é aqui, como lá mais adiante.

O terror tendo tocado ao seu cúmulo converteu-se em coragem, como sói acontecer, nessa coragem dos que se julgam irremissivelmente perdidos, e que se chama coragem do desespero.

Guiados pelo índio, os emboabas avançaram resolutamente através de um dédalo de furnas, corredores, escaninhos irregulares, em que se achava dividida a gruta à maneira de alvéolos de uma colínea[19] gigantesca. Esses diversos compartimentos eram separados entre si por grossas massas de estalactites, que pendendo do teto vinham quase tocar ao chão, como feixes de colunas carcomidas pela base, ou como os canudos de um órgão emborcado, e também por grandes camadas de estalagmites, que se erguiam do solo como restos de pilastras derruídas, ou de muros arruinados.

Já o terceiro facho estava prestes a extinguir-se, e ainda eles não haviam chegado ao tão suspirado alvo de tamanhas fadigas e perigos.

-Ainda estará muito longe essa maldita mina, bugre endiabrado?... bradou um dos emboabas. -Olha, não vá nos faltar o lume!... se ficarmos às escuras, não sei como daqui nos havemos de safar...

-Ficaremos sepultados em vida debaixo destas catacumbas, -acrescentou outro. -Voltemos, meus caros; isto não vai bem...

-É ali!... é ali! -exclamou Irabussu apontando para uma solapa estreita, que se divisava a alguns passos de distância na base de um enorme congesto de estalagnites, e pela qual mal poderia entrar um homem agachado.

-Ali!... naquele buraco! Deus me defenda de lá entrar!... ali só lagarto ou cobra...

Apenas um dos emboabas acabava de proferir estas palavras, desprega-se da abóboda e cai no meio deles uma jibóia enorme de mais de braça de comprida e grossa como a perna de um homem, fazendo um ruído surdo como a corda que despenca do alto de um mastaréu, e desdobrando-se rapidamente correu a esconder-se nas trevas entra as anfractuosidades dos rochedos. O medonho réptil acordara sobressaltado pelo eco daquelas vozes estranhas, e deslumbrado pela luz, querendo fugir, se precipitara se uma alta cornija, onde estava a dormir tranqüilamente. Os portugueses murmuravam a tremer a oração de S. Bento, advogado contra animais venenosos, e perderam de novo o ânimo de avançar.

-Meu Deus! meu Deus!... que será de nós!... -exclamavam quase a chorar de medo. -Se essa mina está lá nas profundas dos infernos guardada por tigres e serpentes, escusado é procurarmos lá ir. -Voltemos, meus amigos!... isto não está nada bom! -Voltemos quanto antes! -Irabussu, meu bom velho, por piedade, tira-nos daqui para fora; deixemos isto para amanhã... livra-nos deste inferno.

-Essa cobra não tem veneno; -respondeu tranqüilamente Irabussu; aqui há muita; é bom dar um tiro; elas fogem espantadas, e não incomodam mais a gente.

-Pois vá! -disse um deles, e sem refletir, trêmulo de impaciência, de frenesi e de terror, com mão convulsa engatilhou a escopeta e disparou o tiro.

O eco refrangido de gruta em gruta reboou como uma descarga atroadora; o ar agitou-se convulsionado; a chama do facho oscilou violentamente e as sombras dos vultos, que ali estavam, dançaram pelas paredes como um grupo de duendes. Uma nuvem de morcegos e corujas surdindo de todos os cantos revoaram em turbilhões açoitando com as asas as faces daqueles hóspedes imprudentes, e acabaram por apagar completamente o facho, que ardia na mão de Irabussu!... Acabaram-se todos subitamente mergulhados na mais completa e profunda escuridão!...

Os ecos do tiro, prolongando-se ainda largo tempo em lúgubres mugidos pelas abóbadas soturnas, pareciam estar entoando um fúnebre de profundis sobre aqueles infelizes ainda vivos e já envoltos na eterna escuridão dos túmulos.

-Acode-nos, Irabussu!... só tu nos pode salvar!... vem dar-nos a mão!... por piedade, vem livrar-nos deste inferno!...

Estas e outras exclamações faziam os míseros emboabas com voz suplicante e lastimosa, que cortaria o coração de outro qualquer que não fosse Irabussu.

-Irabussu aqui vai!... acompanhem!... -respondeu com uma voz sepulcral, que parecia romper das entranhas da terra.

-Irabussu! Irabussu! -bradavam ainda os míseros estorcendo-se nas ânsias do desespero.

Mas só lhes respondiam os ecos das cavernas subterrâneas murmurando uns sons confusos e medonhos.


CAPÍTULO XXIII

Sepultados em vida

Pavorosa e angustiada noite deviam passar os emboabas perdidos naquele antro medonho, mergulhados na mais impenetrável escuridão e em companhia talvez somente de serpentes e panteras. Mas, visto que em nada lhes podemos valer, deixemo-los lá tateando às cegas e amedrontando os ecos das cavernas solitárias com gemidos de angústia e urros de desespero e vamos testemunhar a ansiosa inquietação que agitava os ânimos da povoação.

Depois de terem esperado em vão todo esse dia e a noite que se lhe seguiu, a volta do bugre e dos emboabas, o capitão-mor e Fernando deliberaram mandar grande número de cavaleiros cruzar o país em derredor em todas as direções em procura dos pobres emboabas, cuja demora já justamente os inquietava. Por ordem do capitão-mor todos que tinham alguma cavalgadura, paulistas e emboabas, pagens e camaradas, sairiam da povoação em grupos e derramaram-se pelos arredores. Debalde bateram campos e matos durante todo o dia; o sol já estava prestes a esconder-se no horizonte e nem um só dos que compunham a malfadada expedição havia sido encontrado.

Fernando desesperava e andava como que corrido com o desastroso e miserando êxito de suas monobras.

O capitão-mor não se achava menos contrariado, porém consolava-se descarregando sobre Fernando toda a responsabilidade daquela malfadada tentativa.

-Não há dúvida, Fernando, -dizia Diogo Mendes; -aquele bugre diabólico pregou-nos uma formidável embaçadela.

-Embaçadela que lhe há de custar bem cara, senhor meu tio, -replicou com azedume o jovem fidalgo. -Não pense vossa mercê que eu sou algum Minhoto. Eu cá por tão pouco não perco as esperanças. Que a mina existe não há dúvida; a prova real e palpável nós a temos nesse ouro, que, como eles mesmos confessaram, de um dia para outro enriqueceu a um pobretão. E se ela existe, salvo o caso de se achar escondida nos abismos do inferno, há de ser descoberta.

–Às vezes isso é difícil, e até mesmo impossível. Os grandes tesouros nunca aparecem a quem os procura e mostram-se por um feliz acaso a quem com eles nem sonhava. Devemos nos dar por felizes, se os nossos homens não forem vítimas daquele maldito bruxo, e da nossa imprudência e facilidade; pois é preciso convir, Fernando, que bem mal andamos nós em expô-los assim por esses desertos à disposição de um velho bugre matreiro.

-À disposição dele!... não diga tal, senhor!... ele é que ia à disposição de nossos homens, e nada havia a recear. Pois seis homens moços, robustos e bem armados tinham nada que temer de um pobre velho desarmado...

-Mas astuto e matreiro com cem mil diabos. Cedo ou tarde havemos de saber o que houve, e então comigo terás de arrepender-te, porém tarde, do imprudente passo que demos inutilmente.

-Tudo pode ser, mas o velhaco do bugre, se também não soverteu-se pelas entranhas da terra, há de receber o castigo que merece.

-Não tenhas esse cuidado; naquele, segundo creio, não havemos de pôr mais as vistas.

-Embora!... aí estão a filha e o patrão; com esses me entenderei. É impossível que não saibam dar ao menos uma ligeira indicação do rumo em que existe a mina. Eu os forçarei a desembuchar o que souberem.

-Faze o que entenderes, Fernando; mas não sacrifiques mais inutilmente os nossos bons patrícios.

-Poupá-los-ei quanto puder, senhor, se bem que entenda que algumas arrobas de ouro valem bem o sacrifício de algumas vidas.

Também Maurício e Gil esperavam desde pela manhã com igual ansiedade o resultado daquela singular expedição. Estavam em casa de Maurício espreitando ora por uma, ora por outra janela todas as avenidas que podiam devassar com as vistas.

Quando viram passar o dia e a noite, sem que houvesse a menor notícia do bugre e seus companheiros, suas apreensões subiram de ponto.

-Que demora inexplicável! -dizia Maurício. -Dar-se-á caso que os emboabas tenham dado cabo do bugre?...

-Para quê? -replicou Gil. -Mais fácil é o bugre ter dado cabo deles. Aquele velho tem manhas e astúcias que nem o diabo. Às vezes eu mesmo chego a acreditar que ele é realmente feiticeiro, ou traz o diabo na mala.

-Mas Irabussu comprometeu-se a ir mostrar a mina por amor da filha; supões que seja capaz de abandoná-la a seus algozes?...

-Oh! lá isso não!... entretanto os emboabas também receberam ordem terminante de não fazerem mal nenhum ao bugre. Se não há razão para crer que Irabussu acabasse com eles por qualquer modo, também não se pode supor que fosse vítima deles. Enfim, meu amigo, não sei o que pense, nem como explicar esta demora, e estou aflito por ver em que dá tudo isto.

-E quem sabe, Gil;... às vezes me vem a idéia que aqueles perros, logo que lhes foi mostrada a mina, acabaram com o pobre velho, e...

-E o quê? -interrompeu Gil; -o que lucravam eles com isso?...

-E lá ficaram explorando a mina às escondidas, o mesmo que fazia Irabussu.

-E depois?...

-E depois, quando tiverem colhido quanto ouro poderem carregar, por-se-ão ao fresco, e fugirão para bem longe.

-Ah! ah! ah! -replicou Gil rindo-se. -Pois acreditas que aqueles poltrões sejam capazes de semelhante empresa, eles que não têm ânimo de ficar nem uma noite no mato, e têm medo de bruxas e almas do outro mundo? o que está me parecendo é que eles lá ficaram mortos de puro medo. Enfim só o teu Antônio poderá nos vir tirar de tantas dúvidas.

-É verdade; e ele mesmo já está nos tardando bastante.

-Olha, Maurício; lá vejo um vulto a pé, que vem descendo por aquele caminho... estás vendo? ... quem sabe se é ele?...

-Onde?... ah! já vejo... não é outro;... é ele, é Antônio.

-Estás bem certo?...

-Que dúvida!... eu conheço o meu índio às léguas.

-Bom! -disse Gil saindo da janela e indo sentar-se cheio de satisfação. -Enfim vamos ter alguma informação. Se o bom do bugre ainda desta vez burla aqueles tratantes, estou meio vingado.

Eram nove horas da manhã; a população toda agitava-se em viva e curiosa expectação; o desenlace daquele negócio interessava a muitos, e preocupava a todos. Os batedores do capitão-mor já a muito se achavam em campo à procura dos perdidos quando Antônio entrou na povoação. Como todos o supunham indiferente e até estranho às ocorrências que se davam, atravessou quase desapercebido por entre muitos grupos e entrou em casa de Maurício, onde os dois jovens paulistas o esperavam com impaciência. Vinha esbaforido e estafado de vigília, fome e cansaço.

-Uff!... -exclamou ele, deixando-se cair sobre um tamborete, apenas entrou no quarto de Maurício. -Uff!... quando eu, que estou acostumado desde criança a rondar por esses matos, estou assim... façam idéia do que será daqueles pobres diabos... aquele tio Irabussu com efeito tem o demônio nas tripas... Uff!...

-Pobre Antônio, -disse Maurício; -toma um gole de vinho e descansa um pouco para nos contares o que viste.

Maurício foi a um armário e trouxe a Antônio um copo de vinho e uma broa de milho. Este foi comendo, bebendo e contando ao mesmo tempo.

-Custou-me muito a canseira, patrão, -foi ele dizendo entre uma dentada à broa e um beijo ao copo, -mas o que posso afiançar é que descobri a melgueira; não é só Irabussu que é descobridor de mel.

-Deveras!... descobriste, Antônio?... -exclamaram os dois moços.

-Por Deus que está nos ouvindo!... e agora quer Irabussu volte, quer não... e que é deles?... ainda não vieram? -perguntou o índio interrompendo-se bruscamente.

-Até agora ainda não, Antônio, nem notícia.

-Melhor... melhor!... Deus permita que nunca mais apareçam!

-Por que dizes isso, Antônio?

-Porque então só eu ficarei sabendo da melgueira...

-Oh!... na verdade...

-E nem que me matem, não hei de mostrá-la a emboaba nenhum...

-Está bem, Antônio; -interrompeu Maurício; -mas primeiro conta-nos, como foi isso; estou impaciente por saber o que lá viste.

-Eu já lhe falo, -respondeu Antônio, engolindo o último bocado. -Ao sair daqui caí logo no rasto da gente que eu ia farejando; e os fui acompanhando sempre em distância, -já se sabe, -e escondendo-me sempre o mais que podia. O tal meu parente é velhaco como um jacará velho; andou com aquela pobre gente dando voltas à toa aí por esses matos. Quando eu cuidava que eles iam por aqui, já eles tinham tomado outro rumo muito diferente. Para poder varar mato foram largando os cavalos pelo caminho. Vi-me zonzo com tantas voltas; mas ia tomando o rasto com todo cuidado, e às vezes ouvia a fala deles. Fui andando atrás deles escutando aqui, rastejando acolá, farejando mais adiante...

-Que dizes? -atalhou Gil; -pois também tens faro como cachorro?...

-Como não?... bugre conhece no ar a catinga de sua gente... Mas como ia dizendo, fui andando, fui andando atrás deles o dia inteiro. O sol já estava quase some não some, quando eles desceram para uma baixada, que fica à beira de um ribeirão. Era aí que estava a coisa...

-Que coisa?... a mina?...

-A mina, sim senhor; é uma toca muito funda; eu já sabia dela; mas nunca me passou pela cabeça que ali houvesse ouro. É um ninho de onças; essas bichas muitas vezes me têm levado até lá. É um buraco, que a gente entra por ele adentro, e nunca mais acha fundo.

-E eles entraram?...

-Entraram, e até eu vir-me embora ainda não tinham saído. Empolerei-me sutilmente em cima de uma pedra escondida na mato e estive espiando tudo. Era à boca da noite; fizeram fogo, Irabussu acendeu umas taquaras, e sumiu-se com eles pela furna adentro. Fiquei ali a noite inteira sem pregar olho esperando que saíssem. Pouco depois que entraram ouvi um estrondo, que pareceu-me um tiro, que deram lá dentro, e pareceu-me também ouvir uns grito; mas depois ficou tudo quieto e calado, e ninguém mais apareceu. É verdade que lá pela madrugada o sono me furtou e dormi um bocadito com a cabeça encostada a um pau; mas eles não saíram, porque apenas rompeu o dia, fui ver a entrada da furna e não vi rasto de quem sapia. Eu estava morto de fome e de cansaço; vim-me embora. Também já sabia onde era a mina, e pouco me importava que levasse o diabo toda aquela gente.

-Mas Irabussu, Antônio? -perguntou Gil; -que será feito dele? disseste que ouviste um tiro.

-Irabussu?! oh! esse não tem perigo; o que eu não sei é que fim terão levado os pobres emboabas.

-O diabo que os consuma!... mas conta-me, Antônio, como é isso? Vocês levaram ontem o dia inteiro a chegar a tal furna, e como é que tu saindo de lá hoje depois que amanheceu, chegas aqui tão cedo?...

-Ora como!... pois eu já não disse que o velhaco do bugre velho andou dando voltas à toa para embaraçar os emboabas?... eu mesmo, se não fosse traquejado, como sou, em toda esta redondeza, não sei como me havia de arranjar para voltar. Mas daqui lá terá pouco mais de légua.

-Pelo que vejo, Antônio, temos agora em nossas mãos a chave da prodigiosa mina de Irabussu!... Se ele e os emboabas que o acompanharam não aparecerem mais, nós que aqui estamos seremos os únicos depositários do segredo. Decididamente, Maurício, Deus não quer que esse ouro caia nas mãos de nossos perseguidores.

-Quem sabe, Gil?... eles podem ainda chegar; esperemos ainda; parece-me impossível que nenhum deles volte.

-Eu cá para mim, -acudiu Antônio, -penso que nunca mais hão de sair daquele buraco, onde se enterraram em vida. O que me dá cuidado, -acrescentou suspirando, -é não saber o que será da pobre Judaíba.

-O que poderão fazer com ela?... disse Maurício; -seria o último requinte da perversidade maltratar uma pobre criança, que de nada tem culpa.

-Mas lembra-te, Maurício, -considerou Gil, -que ela ficou como penhor do desempenho da palavra de Irabussu; eles não largarão mais mão dela.

-Hão de largar, porque agora Antônio tem em suas mãos o meio seguro de resgatá-la.

-Eu, patrão? qual é?

-Pois não tem o segredo da mina?

-Ah! meu branco, isso nunca! Antônio nunca há de entregar aos emboabas o ouro que Irabussu deu a Gil.

-Esse ouro não era meu, Antônio; -retorquiu Gil: -era de Irabussu; se não fosse Irabussu ninguém saberia dele, a ninguém aproveitaria. Se Irabussu morreu ou desapareceu, Judaíba é sua herdeira, e foi Deus, Antônio, que guiou teus passos para confiar-te o segredo do lugar onde existe essa mina, a fim de salvá-la das garras de seus opressores.

-O que Gil fiz é verdade, Antônio, -acrescentou Maurício. -Entretanto, amanhã ou depois, quando não houver mais esperança da volta de Irabussu nem dos emboabas, eu irei ter com o capitão-mor e rogar-lhe que ponha em liberdade a tua Judaíba. Sei que aquele malvado Fernando há de se opor a isso com todas as forças; mas conto com um auxílio muito poderoso em favor dela; conto com D. Leonor. Leonor é um anjo de bondade, e não há de permitir que uma pobre criança asilada em sua casa sofra maus tratamentos. Nós já vimos o exemplo e, portanto, por esse lado fica sossegado, meu Antônio. Entretanto, se por esses meios nada conseguirmos, não deves hesitar um só momento em mostrar a mina aos emboabas.

Antônio calou-se, abaixou tristemente a cabeça, e retirou-se a passos lentos.

-Ah! meu Deus! meu Deus! -ia ele murmurando; se eles me roubam Judaíba, eu não serei mais Antônio, não; serei o Jaguar, que hei de rasgar o coração, e beber o sangue desses malditos.

Esperou-se em vão ainda todo esse dia pela chegada de Irabussu com os emboabas. Os batedores depois de terem andado todo o dia a correr montes e vales, brenhas e campinas vinham voltando desanimados sem trazerem a mínima nova dos perdidos. Era já sol posto, quando chegou a última partida composta de três cavaleiros. Estes, sim, traziam alguma coisa de novo; um deles conduzia um homem na garupa, mas que homem! com as roupas e as carnes rasgadas e ensangüentadas, lívido e desfigurado parecia antes um cadáver, e era com custo que o seu condutor podia sustê-lo sobre as ancas do cavalo. Os membros pendiam-lhe inertes, e tinha os olhos baços e desvairados como os do epilético; parecia em estado de absoluto idiotismo.

Apearam-se no pátio, e o homem da garupa, tendo descido com dificuldade, subiu quase carregado a peso para a varanda, onde o capitão-mor, Fernando, Afonso e várias outras pessoas acudiram pressurosos para vê-lo e interrogá-lo. Causou geral espanto e consternação o aspecto daquele homem, que ainda na véspera saíra corado, vigoroso e animado, e em menos de dois dias se tornara como um cadáver ambulante. Foi a muito custo e a poder de muito interrogar, que puderam obter dele alguns vagos e obscuros esclarecimentos sobre o que havia ocorrido. O homem tinha as idéias desordenadas, e o seu estado moral não estava menos transtornado do que o físico.

Além do que já sabemos, coligiu-se das palavras vagas e desconexas do emboaba, que apenas apagou-se o facho, e Irabussu os abandonou, os seus guardas perdidos nas trevas começaram a revolver-se por todos os lados entre as sinuosidades da gruta, procurando a esmo e às apalpadelas uma saída qualquer. Era um horror pior que o dos túmulos; além da profunda escuridão, que os rodeava, temiam a cada momento serem vítimas de onças e serpentes, de que sabiam estarem povoados aqueles antros medonhos, ou de escorregarem a serem engolidos por algum dos abismos insondáveis, que tinham visto por aqueles socavões. Esbarrando a cada passo nos pilares de estalagmites, batendo com a fronte nas estalactites pontiagudas, que pendiam do teto, foram-se enredando e desorientando cada vez mais no intrincado labirinto de grutas. Por fim viu-se ele inteiramente segregado de seus companheiros; ouvia-lhe as falas, porém nunca mais lhe foi possível reunir-se a eles no meio daquele dédalo de compartimentos semelhantes às células de uma colméia. Depois de muitas voltas e por um feliz acaso lobrigou finalmente uma escassa claridade; a sua boa estrela o guiara para o lado da entrada. Chegara ao grande salão de estalactites que já descrevemos; a luz do céu entrava ali por largas fendas abertas na cúpula, e que a luz fumacenta do facho não tinha deixado perceber, quando entraram. O infeliz sentiu indefinível prazer ao ver por entre elas uma ou outra estrela sorrindo-se no céu límpido e profundo. A débil claridade, que a noite sem luar por ali enfiava a furto, foi para aquele homem surgido do seio mais da mais impenetrável escuridão um dia radiante, uma aurora cheia de fulgores. Gritou por seus companheiros, e esperou-os ali por algum tempo; estes, porém, nunca puderam atinar com um caminho que os levasse ao ponto em que se achava, e pareceu-lhe que em vez de aproximarem-se iam cada vez se afastando mais; os ecos de sua voz refrangindo-se de cavidade em cavidade produziram estranha ilusão, que cada vez os desorientava mais.

Sem esperança de encontrá-los mais e aflito por se ver fora daquela fatal espelunca, não teve remédio senão abandoná-la à sua sorte. Fácil lhe foi então achar a saída da caverna.

Devia ser meia-noite, quando depois de longas horas de treva sepulcral, de horrores e agonias saudou a luz ampla do firmamento, e aspirou a largos tragos as livres auras do céu. Vagou a esmo o resto da noite e o dia que se lhe seguiu sem saber que rumo levara, até que por fortuna foi encontrado pelos cavaleiros que o trouxeram.

Perguntando-se-lhe se ele sabia indicar o rumo em que ficava a gruta, e se não seria possível achá-la outra vez, respondeu que a esse respeito estava como se lá fora com os olhos tapados, ou como se lá nunca tivesse ido; não sabia dizer se a gruta achava-se a sul ou a norte, a oriente ou poente; só se lembrava que era muito longe, a algumas oito ou dez léguas da povoação.

Eis o que a muito custo puderem inferir da exposição obscura e truncada do emboaba, cujo espírito alucinado parecia estar ainda debaixo do império do mais vivo terror, como quem ia acordando de um sinistro pesadelo. Mas foi quanto bastou para abater completamente o espírito do capitão-mor, e encher de cólera e azedume o coração de Fernando.

-Esta mina, que não quer produzir ouro, -refletia ele consigo, -queira Deus não tenha de produzir ainda muitas lágrimas, e mesmo sangue. Não se me burla assim impunemente!...

Na noite desse mesmo dia o Minhoto reunia em sua casa alguns amigos mais do peito e esvaziava com eles bom número de garrafas de vinho velho, em aplauso ao malogro das esperanças de Fernando.

Se não pode conseguir a mina para si, o avaro e invejoso mineiro teve ao menos o prazer de ver que Gil a perdera para sempre, e Fernando nunca mais a poderia achar.

Portanto, entre chufas e pilhérias faziam repetidas libações à saúde de Irabussu, o rei dos feiticeiros.


CAPÍTULO XXIV

A catecúmena

Se o desaparecimento de Irabussu a muitos encheu de indignação e cólera, desalentou a alguns, e a outros foi motivo de alegria e festa, houve com tudo um coração, em que ele ecoou dolorosamente desfechando-lhe cruel e profundo golpe; foi o de sua filha Judaíba.

Como sabemos, apenas o velho bugre partiu com sua escolta, Leonor tomou a seu cuidado transfigura-la completamente; deu-lhe alguns vestidos mais descentes, penteou ela mesma os cabelos ásperos e corredios da índia, perfumou-se e transformou dando-lhes a cor luzidia da plumagem do Açu, enfeitou-lhe o colo, a fronte e os braços com algumas jóias e adereços de pouco valor, e em poucas horas transformou a bronca e seminua virgem da floresta em lida e faceira rapariguinha.

Leonor a muito tempo vivia no mais completo e fastidioso isolamento. Não tinha uma aia, uma criada grave, nem pessoa de seu sexo, com que pudesse se entreter. Sua antiga aia e ama, que desde o berço a havia acompanhado, tinha inesperadamente falecido não havia muito tempo.

Afonso seu irmão, rapaz dissoluto e vadio, estragado pelas complacências paternas, dissipava as horas do dia em jogos, caçadas e divertimentos, e quase não parava em casa senão as horas de comer e dormir. Seu pai quase sempre atarefado com os negócios da governança, de poucos momentos dispunha para conversar com a filha. Era Fernando quem mais assíduo se mostrava junto dela, esforçando-se por disfarçar-lhe o enfado da monótona existência; para ela, porém, a mais horrível das solidões seria preferível à presença desse homem.

Não havendo ainda no lugar famílias de linhagem distinta, com as quais pudesse relacionar-se, rodeada por alguma escravas boçais, estúpidas e sem afeição, a pobre moça passava a mais triste e monótona existência tendo apenas por distração algum serviço, ou os seus próprios pensamentos.

Quantas vezes se lastimava ela por não lhe ter dado o céu uma irmãzinha mais moça, de cuja educação se encarregasse, e que preenchesse o triste e imenso vácuo, que sentia em torno de si! ...

Ermado assim e concentrado em si mesmo em tão enfadonha solidão aquele coração de dezoito anos, tão rico de viço virginal, tão ávido de emoções afetuosas, devia amar com todas as suas forças. Como planta solitária ouvindo ao largo e em derredor toda a seiva de um terreno ubérrimo e virgem, nele o amor devia medrar com pujança irresistível . Todos os seus afetos, não achando outra expansão, vinham concentrar-se em um único objeto; a imagem de Maurício o encha todo. O amor filial em Leonor cifrava-se na submissão, respeito e gratidão, que devia ao autor de seus dias. Diogo Mendes, se bem que idolatrasse a filha, sempre grave e reservado, não tinha para com ela -salvo em ocasiões críticas e extraordinárias, - esses meigos carinhos, essas expansões íntimas e afetuosas, que às vezes dão azo a ultrapassar um poucos as raias  do respeito para dar lugar a sentimentos mais termos. Leonor, portanto, só na ultima extremidade ousaria abrir-lhe o coração. Assim era para o amor unicamente, que se volvia aquela alma solitária, era à sua luz, que se aquecia, como o girassol com a face sempre voltada para o rei das luzes.

Se não fosse Maurício, se não o soubesse ali presente e amando-a sempre cada vez com mais extremo e dedicação, se não fosse aquele amor, que lhe enchia a alma, tornar-se-lhe-ia insuportável aquela solidão, e teria morrido de tristeza, saudade e nostalgia.

Nestas conjunturas veio-lhe à idéia, que a jovem indígena poderia bem ate certo ponto suprir o vácuo, que em torno dela reinava, e encher-lhe mais agradavelmente o tempo, que tão enfadonho lhe corria. Desvelar-se-ia em educa-la para a sociedade; ensinar-lhe-ia a ler, a cozer, a rezar; a menina seria sua discípula, sua catecúmena, sua irmã mis moça. Isto ao mesmo tempo que seria para ela um honesto passatempo, que lhe ia tornar mais suportável a ociosa e solitária a existência, que levava, seria também uma obra meritória aos olhos de Deus e dos homens. Demais lembrava-se que assim tinha acontecido com Maurício e Antonio; esta analogia de destinos sorria-lhe à imaginação amorosa.

Maurício nas mesmas circunstâncias, desvelando-se pela educação de Antonio, fizera dele o mais dedicado dos amigos; ela esperava também achar em Judaíba uma companheira e amiga fiel, uma confidente de seu coração. Já ela pensava nos aprestos do batizado da índia, que esperava catequizar em pouco tempo, e de quem queria ser madrinha. Depois vinha-lhe naturalmente ao pensamento o casamento de Judaíba com Antonio, e por detrás dessas idéias no ultimo plano do painel sorria-lhe em longes vaporosos como uma esperança vaga, ou um sonho nebuloso o seu consórcio com Maurício. Mas de repente uma nuvem sinistra pairava sobre o risonho painel, em que tanto se comprazia, e o sepultava todo em merencória sombra.

Era a imagem de Fernando. Ah! Com esse homem não era possível mais para Leonor nem mesmo um sonho de felicidade futura!

Judaíba mostrava-se mui satisfeita com a sua nova sorte, e prestava-se com suma docilidade a tudo, que sua nova e gentil ama exigia dela.

Leonor por seu lado estava contentíssima com a sua catecúmena. Ambas contavam com certa a volta de Irabussu com os emboabas e, portanto, com o contentamento, paz e regozijo geral. A nova porém do desaparecimento deles veio por termo de um modo brusco e doloroso aquele suave idílio tão bem começado. Judaíba de mansa e meiga rola, que se ia tornando, transformou-se de repente em arisca e bravia corça. A princípio caiu amuada a um canto a chorar e soluçar, sem querer responder a nada, sem prestar ouvidos a ninguém. Depois levantou-se bruscamente, e rasgando as roupas, arrepelando os cabelos , arrancando os enfeites começou a correr desatinadamente por toda a casa dando gritos selváticos e uivos lamentosos e procurando escapar-se a todo transe fosse por onde fosse. Debalde Leonor arrojando-se diante dela procurava conte-la e apazigua-a; a indômita cabocla não lhe prestava a menor atenção, e com as narinas dilatadas, a boca espumante, os olhos em fogo arremessava-se às paredes como para arrombá-las e abrir caminho através delas. Leonor teve medo. Foi-lhe forçoso mandar agarrar a índia à força, para que não saísse a correr à-toa e não cometesse desatinos.

Passada aquela crise de furor, que durou uma boa hora, Judaíba, desalentada e arquejante de cansaço, caiu de novo em profunda prostação; desta vez porém não chorava nem soluçava mais; deitada de bruços sobre o pavimento com a cabeça oculta entre os braços assim ficou por largo tempo imóvel como um cadáver, até extenuada pela fadiga e violência das emoções ali mesmo adormeceu.

O selvagem é como a criança; suas alegrias e pezares são tão vivos e violentos, quão passageiros e fáceis de se dissipar. À força de sofrer e chorar, como de rir e brincar, acabam por adormecer. Na mais profunda angustia uma bagatela os distrai, assim como a menor contrariedade é capaz de mergulha-los em tristeza mortal, ou de mete-los em furor. Judaíba, que além de selvagem acabava apenas de sair da infância, tinha dupla razão para ser assim.

Leonor, que sentada ao pé dela a vigiava com toda a atenção e solicitude, deixou-a dormir.

Quando acordou, ameigou-a delicadamente, deu-lhe doces e vinho, e procurou conforta-la com palavras de esperança.

-Teu pai não morreu , não, Judaíba, -dizia-lhe Leonor desmaranhando-lhe os cabelos, que cobriam-lhe a face, e enxugando-lhes o sentido. Pouco a pouco foi se mostrando mais calma e consolada, até que por fim um ligeiro sorriso, se bem que ainda envolto em certa tristeza, como um raio de sol escoado entre nuvens, lhe despontou nos lábios. Tal é o atrativo e prestigio da beleza, quando serve invólucro a uma alma boa e piedosa!

Davam-se estas cenas na manhã do dia seguinte ao em que fora trazido a casa do capitão-mor o único emboaba, que escapara à desastrosa expedição à mina de Irabussu. Eram cerca de onze horas. Leonor encostada a uma janela da frente com Judaíba se ocupava em recompor-lhe os trajes e os cabelos, que a índia em seus acessos tinha posto em deplorável desalinho, quando ao olha casualmente para fora avistou dois vultos, que pela rua ou estrada, que passava em frente, se encaminhavam para sua casa. Eram dois garbosos mancebos, de barbas e cabelos negros, altos e bem lançados. Trajavam quese uniformemente, gibão negro apertado por um cinto de couro polido, botas altas de couro de mateiro, capa sobraçada e chapéu de feltro negro com largas abas arregaçadas por cordões. Dir-se-iam dois irmãos gêmeos; tão semelhante eram a certa distancia no porte e na figura. Em um deles Leonor logo reconheceu Maurício , o outro era Gil, patrão e protetor de Judaíba. Nenhuma delas pode conter um grito e um movimento de alegre sobressalto.

Leonor pressentiu, que algum negocio grave trazia os dois mancebos à cada de seu pai, da qual Maurício a algum tempo andava bastante arredio. Pungiu a irresistível curiosidade, deixou a indígena ao cuidado das escravas e antes que os moços entrassem, correu a postar-se em um compartimento contíguo à sala de recepção, onde se achava seu pai conferenciando a sós com Fernando. O desaparecimento de Irabussu e dos emboabas devia ser ainda por muito tempo o assunto quase exclusivo de todas as conversas.

- Não só não devemos largar mão dessa menina, -dizia Fernando, - como também devemos ter debaixo da mais severa vigilância esse Gil, esse paulista aventureiro, que tanto tem de audaz e turbulento, como manhoso e astuto.

- Lá isso não, Fernando, - retrucava o capitão-mor; - de astuto parece-me, que ele nada tem; antes peca por demasiada lisura e franqueza um tanto rude; não fosse ele tão atrevido...

-Fiai-vos nele ! ... sua lisura não me inspira confiança, como também não me assusta o seu atrevimento. O que lhe digo e que se cruzarmos os braços, ele de mãos dadas com o seu grande amigo Maurício, é capaz de subverter toda a população, e que é preciso ter sobre eles olho vivo e braço apercebido.

-Pois também Maurício entre em tuas suspeitas, Fernando ? ! ... um menino, que eu criei, que me deve tudo quanto é, e de cuja lealdade e dedicação tu mesmo tens sido testemunha ? ! é levar muito longe a desconfiança.

-Gabo-lhe o descanso e a credulidade, senhor meu tio, - replicou Fernando com malicioso sorriso, - e sinto bem não poder gozar da mesma tranqüilidade de espírito.

- Pelo que toca a Maurício pelo menos, juro-te; podes ficar tranqüilo. Quando esse nos trair, não sei mais em que nos poderemos fiar.

-Que cegueira ! - pensou Fernando. Prasa a Deus que não seja isso ilusão, - replicou em voz alta, - mas Maurício não vem agora ao caso; fique cada qual com sua opinião; o tempo se encarregará de deslindar tudo. Era a respeito de Gil, que conversávamos. Quem nos diz que o velho bugre lhe tenha revelado o lugar da mina, e que tudo que depuseram, não era mais que patranha para melhor nos iludirem ? ... também essa pequena índia bem pode saber de tudo, e não é prudente lhe darmos liberdade, em quanto este trama não se desenlear de todo. E mesmo dado o caso, que nem um nem outra saibam de cousa nenhuma, quem nos assegura, que Irabussu está realmente morto, ou que desapareceu para sempre? ... Não é mais provável que o matreiro gentio, que conhece o país até suas entranhas, se tenha ocultado e se faça passara por morto para melhor servir a seu patrão? ... Tudo isto é possível, e não serei eu que me deixarei burlar tão vergonhosamente por tão ruim ralé... para com eles toda a vigilância e rigor é pouco...

Neste ponto é interrompida a conversação por pessoas que se anunciam batendo palmas do lado da varanda  Poucos instantes depois Maurício e Gil são introduzidos no salão. O capitão-mor os recebe com polidez, mas com certo ar de fria gravidade, que lhe não era habitual, mormente para com Maurício. Fernando esse ainda estava mais seco e enfarruscado que de costume. Ambos nesse dia estavam de muito mau humor, e bem quereriam não ver a cara de ninguém.

- Então, senhor Gil, como me explica isto ? - foram as primeiras palavras do capitão-mor depois de um ligeiro cumprimento. - O seu bugre em vez de nos mostrar a mina enfiou-se nas profundas dos infernos, e o pior é que para lá levou consigo os meus homens à exceção de um só, que aqui me chegou ontem com cara de quem viu o diabo em pessoa. Que me dizem a esta ? ... ainda estarão vossemecês, dispostos a darem-se por fiadores daquele velhaco ? ...

- A mim também, senhor capitão-mor, - respondeu Gil sem se perturbar, - a mim também muito maravilho semelhante sucesso, e não sei de todo a que possa atribuí-lo.

- Não sabe ! - exclamou Fernando não podendo conter o seu despeito e com certo ar insolente e provocador. - Não sabe ! ? - isso é que mais me maravilha ! ...

- Não sei, senhor Fernando; é o que em consciência lhe posso assegurar, - replicou Gil com firmeza.

- Oh! Pode ser, - retorquiu Fernando; - mas acredita vossemecê que o bugre se metesse com sua mina pelo inferno a dentro para nunca mais aparecer? Não acha vossemecê que o velhaco não fez mais do que empregar um ardil para furtar-se ao castigo, que merece ?

- Oh ! poder ser, - respondeu Gil usando de propósito da mesma exclamação de Fernando, - mas o que é certo é que eu de nada sei.

Com esta resposta incisiva e peremptória Fernando tornou-se lívido de raiva, e fazendo gestos e esgares terríveis estava prestes a irromper em uma explosão de cólera.

-Prudência, Fernando ! - disse-lhe em voz baixa o capitão-mor, que se sentava ao pé dele, puxando-lhe a aba do gibão. - Deixemo-los falarem.

Maurício, vendo azedar-se aquele diálogo, e receando algum desaguisado mais sério, julgou que devia intervir e procurar acalma-los.

- É verdade, senhor capitão-mor, - disse ele; - afianço que meu amigo Gil de nada sabe. O velho bugre iludiu-nos a nós todos; mas em todo caso, se ele não desapareceu para sempre, se algum dia for encontrado, como vossa mercês parecem desconfiar de Gil, aqui estou eu, que me obrigarei por minha vida e minha honra a fazer com que essa mina seja descoberta.

- Desculpe-nos, senhor Maurício, - interveio Fernando com o mais revoltante sarcasmo; agradecemos, mas dispensamos os seus bons serviços neste negócio. Não podemos aceitar segurança nenhuma da sua parte, pois não ignoramos que seus interesses são comuns.

- Isso é verdade, senhor; somos amigos, nossos interesses são comuns, não o nego. Mas julga vossa mercê, que para sustentarmos nosso interesses somos capazes de um ato desonroso, e de faltar à nossa palavra ?

- Não sei, e nem estou aqui para responder a perguntas ...

- Basta, senhores ! - interrompeu com império o capitão-mor no intuito de atalhar cenas desagradáveis. - Deixemos de parte esta conversação, cedo ou tarde esse negocio há de ser deslindar, e também creio que vossemecês não vieram aqui a isso.

Veio ainda a tempo esta intervenção. Os dois mancebos, tão desabridamente provocados por Fernando, julgando-se com justa razão ofendidos em seu pundonor, iam perdendo a paciência.

- Não foi precisamente para tratar disso, que aqui viemos, - respondeu Maurício respeitosamente, - mas foi para um negócio, que tem com isso muita relação. O meu amigo Gil vem rogar a vossa mercê lhe mande entregar a índia filha de Irabussu, que aqui se a há detida, visto que ele nenhum crime cometeu.

O capitão-mor abriu  grandes olhos para Maurício com gesto de surpresa.

- Pois já te esqueceste, Maurício, - respondeu-lhe ele, - que essa menina aqui ficou em penhor da palavra de Irabussu ? ... e por ventura a cumpriu ele ? ...

- Não cumpriu, é certo; mas essa menina é uma pobre selvagem, uma criança, que de nada sabe, e nenhuma culpa tem do que aconteceu.

- Não duvido; por agora porem ela não pode sair de nosso poder ...

- Lá fora, tanto como aqui, ela nenhum mal pode fazer-vos, senhor capitão-mor; por tanto viemos rogar-lhe que tenha compaixão dela ...

-Por esse lado não tenhas receio; nenhum mal lhe fazemos em conservá-la aqui. Asseguro-te, Maurício, que não será maltratada.

Maurício olho para Fernando e disse:

- Por parte de vossa mercê estou certo...

- E por parte de todos, - replicou asperamente Fernando, que compreendera a reticência. - Fique vossemecê certo, e pode também asseverar ao seu bugre, que sua filha nunca será entregue a ele nem ao senhor, enquanto ele mesmo não vier se entregar. Fora disso havemos de fazer dela o que bem nos aprouver.

- Nós já dissemos, que não sabemos o que é feito de Irabussu, e que no caso que apareça, nós seremos os primeiros a obrigá0lo a cumprir sua palavra.

- Embora, meus amigos ! - disse Fernando com sorriso de insolente escárneo. - Também nós já lhes dissemos, que a palavra de vossemecês vale tanto como a do seu bugre. Esse mesmo empenho, que mostram pela liberdade da índia, dá lugar à suspeitas.

A estas palavras transbordou-se a Gil a taça da paciência e o rubor da indignação subiu as faces de Maurício. Todavia ainda este fez um esforço para conter seu amigo. Foi debalde.

- Senhor capitão-mor, - bradou Gil pálido de cólera e erguendo-se em toda sua altura, - nós aqui viemos para fazer a vossa mercê com todo o respeito um simples pedido, e não para ouvir desfeitas e maus tratos daquele senhor. Visto que não podemos ser atendidos, nós vamos já nos retirar, e pedimos ao senhor seu secretario, que quando quiser nos dirigir afrontas, escolha outro lugar.

Ouvindo estas palavras o capitão-mor não pode mais conter-se, e perdeu de todo a sua habitual gravidade e sangue frio.

- Que quer dizer isto, senhores? ! - bradou com voz atroadora erguendo-se ameaçador e roxo de cólera. - Doestos, ameaças, desafios aqui em minha presença! ? querem vossemecês que eu os force a respeitar a minha pessoa e a minha autoridade?

- Senhor Gil, - exclamou Fernando ansioso por levar aquela pendência a um desfecho trágico, - lem­bre-se que o tronco ali. está bem perto de nós!. . .

- Senhor Fernando, - retrucou Gil com altivez, - lembre-se também, que a minha faca aqui está mais

perto ainda!. . .I

- Insolente!... - bradou Fernando alçando o punhal, que arrancara do cinto.

- O’ lá, esbirros ! - gritou o capitão-mor' com toda a força de seus valentes pulmões dando um furioso murro sobre a mesa, que se achava ao pé dele. - Prendam este homem.

Já uma chusma de esbirros e famulos ia invadindo a sala, quando subitamente apareceu Leonor.

- Meu pai! meu pai! - vinha ela exclamando, o que é isto ?  Nada, minha filha; que vens aqui fazer? - respondeu secamente o velho.

- Ah! meu pai! - replicou a moça sem se des­concertar com o tom ríspido do pai; - tudo isto por causa da Judaíba, de uma inocente selvagem, que a nin­guém ofendeu, ou por amor de uma sonhada mina de ouro, que ninguém viu que ninguém sabe onde está!. . . que lástima, meu Deus !... é por isso, que querem brigar?...

- Brigar não, senhora! - redargüiu Fernando, - não brigamos com tais aventureiros, mas não podemos tolerar que nos venham desrespeitar e ameaçar. . .

- Não são capazes disso, senhor Fernando ! replicou Leonor fitando em Fernando um altivo e desdenhoso olhar. - Vossa mercê é muito injusto para com eles; eu estava ouvindo tudo; se alguma coisa disseram, que lhe desagradou, foi em justa represália às provocações, que vossa mercê lhes dirigiu. Senhor Maurício, senhor Gil, declaro-lhes, que Judaíba de hoje em diante me per­tence. Fiquem tranqüilos sobre sua sorte; ninguém mais do que eu saberá protegê-la e tratar dela. Meu pai se vossemecê tem algum amor à sua filha, em nome dele eu lhe peço, deixe estes senhores retirarem-se em paz.

Falando assim Leonor deslumbrante de beleza tinha no porte e na fronte a majestade de uma raínha e a sere­nidade de um anjo.

Olhava em torno de si com ar tão calmo e senhoril, que a todos impunha admiração e respeito. Maravilha­dos de tanta audácia todos a contemplavam com espanto sem nada ousar responder-lhe.

O capitão-mor, posto que irritado ao último ponto, sentiu cair-lhe aos pés toda sua cólera, e no íntimo d’alma dava graças à filha, que viera como iris de bonança acalmar a tempestade, e impedi-lo de praticar atos de rigor, que além de repugnarem à sua índole não fariam senão agravar mais os males da melindrosa situação, em que se achava a população confiada a seu governo. Abaixou a cabeça, e depois de alguns momentos de reflexão, com voz grave e sentida.

- Podem retirar-se, - disse aos dois jovens paulistas.

Os dois mancebos inclinaram-se profundamente e saíram. Maurício, com um olhar e uma ligeira inclinação de cabeça­, deu a entender a Leonor quanto lhe ficava agradecido por sua benéfica intervenção.

Somente Fernando mordia-se de raiva pelo feliz e inesperado desenlace daquele incidente.

- Senhor capitão-mor, - dizia ele apenas se achou a sós com seu tio, - suas complacências hão de acabar por nos levar à perdição.

- Não duvido, Fernando; porém as tuas asperezas também não nos podem levar a melhor caminho.


Capítulo XXV

Eldorado sem ouro

Na noite desse mesmo dia, em que uma borrasca serenou-se ao aceno de um anjo, Maurício, Gil e Antônio, reunidos em casa do primeiro, conversavam sobre os graves e estranhos acontecimentos daqueles últimos dias. Judaíba, Irabussu e sua prodigiosa mina eram pois ainda o objeto da conversação.

- Se quiserem,  dizia Antônio, - hoje mesmo posso ir mostrar essa mina.

- Para que tão depressa? - replicou Maurício; - se nos virem sair juntos do povoado, isso pode excitar desconfianças. Bem sabes como andam por aí de pre­venção contra nós, graças às pérfidas insinuações de Fernando. Se não é o bom conceito, que o capitão-mor ainda faz de mim, e a nobre e corajosa conduta de sua adorável filha, em vez de nos acharmos aqui estaríamos agora na sala do tronco. Por ora não convém lá irmos; é prudente deixar isso para mais tarde.

- Mas não é preciso, que nos vejam; a lapa não é muito longe; podemos ir e voltar na mesma noite.

- Embora, Antônio; Irabussu ainda pode aparecer ao menos a Gil; ninguém sabe se ele é vivo ou morto, e melhor é esperar mais alguns dias.

- Isso lá não sei, meu amo; seja lá como for, o certo é que mais tarde ou mais cedo Antônio deve achar essa endiabrada mina, se não leva o diabo Judaíba ...

Achar? ! - exclamou Gil com surpresa; - pois não sabes onde é ela? ...

- A lapa sei eu muito bem onde é; mas mina de ouro ainda lá não vi. Sem dúvida deve ser lá por aquelas buracadas fundas e escuras, que não tem fim, e eu a dizer a verdade ainda não entrei muito lá por essas funduras.

Os dois mancebos conservaram-se por alguns instantes silenciosos e pensativos.

- Está me parecendo, Maurício, - disse Gil por fim, - que essa lapa é ainda uma formidável burla do velho bugre, ou que não é mais do que o sepulcro, onde levou a enterrar os desgraçados portugueses, que caíram na toleima de acompanhá-lo.

- Pensas justamente como eu; o que o bugre pretende é desorientar cada vez mais os emboabas, e se existe essa mina, que eles tanto cobiçam não é por certo lá nessa lapa.

- O que é que vossemecês estão dizendo, meus amos ? ! - murmurou Antônio com voz consternada  - então ai de minha pobre Judaíba !...

- Sossega teu coração, Antônio, - disse-lhe Gil. – Judaíba nada sofrerá; já não te dissemos, que D. Leonor a tomou debaixo de sua proteção? Bem sabes quanto D. Leonor é boa, e quanto pode em casa do capitão-mor.

- Ah ! ... sim ! D. Leonor ! – acrescentou Maurício; - D. Leonor é um anjo de bondade, é uma santa; mas Fernando também pode muito, e Fernando é um algoz; por amor de um pouco de ouro seria capaz de matá-la ...

- Que diz, meu amo ? ! - bradou Antônio levantando-se de um pulo do chão, onde se achava acocorado, rangendo os dentes e apertando convulsivamente o cabo­ da faca, que trazia ao cinto. - Que diz ? !. .. ai dele, se tiver o atrevimento de tocar um só fio dos cabelos de Judaíba! ...

- E nós também, - replicou Gil - nós aqui esta­mos para ampara-la, liberta-Ia ou vinga-Ia, no caso que aquele infame tenha o arrojo. .. mas não pensemos nisso agora, o que devemos fazer é empregar todo o esforço e diligência para descobrir a mina; se não pudermos acha-la, que remédio teremos senão lançar mão de outros recursos ? . . .

- Ah ! meus amos, eu falo com o coração nas mãos; se não fosse Judaíba, minha vontade era que essa mina se sorvetesse nas profundas dos infernos. E por amor daquela coitadinha, que eu desejo acha-Ia. Em troco dela eu dava todo o ouro do mundo, se fosse meu.

- Havemos de lá ir,  Antonio – replicou Maurício – mas por agora não convém; Irabussu e os outros emboabas ainda podem aparecer; esperemos por mais três ou quatro dias.

Bem a seu pesar o índio resignou-se a esperar; aqueles três ou quatro dias de cruel inquietação, que ia passar, iam ser para ele um longo e terivel pesadelo. Entretanto, esses dias passaram sem a menor novidade; de Irabussu e seus companheiros, apesar de continuar as pesquisas, não houve mais nem notícia.

Na noite do quarto dia, quando já todos recolhidos a suas casas entregavam-se nos braços de Morfeu, Maurício e Gil, guiados por Antonio, saíram a pé e misteriosamente do povoado e dirigiam-se à gruta de Irabussu. Iam bem armados e munidos de instrumentos e de archotes de resina para bem poderem esquadrinhar todos os recantos e sinuosidades da espelunca, onde chegaram no fim de duas horas de marcha difícil e penível. Entraram na caverna, e aí se demoraram largo tempo per­correndo-a e examinando por todos os escaninhos, em que lhes foi possível penetrar. Viram muita obra assombrosa da natureza, abóbadas, arcadas e colunatas de estalactites, átrios, aposentos, corredores e recessos profundos divididos entre si por enormes pilares de estalagmites. Pelo chão coberto de areia e folhiço nada viram, por mais que examinassem, senão fragmentos e detritos de pedra calcárea, de ouro porém nem um grão e nem se quer o mínimo indício de que ele por ali existisse.

Os dois jovens paulistas, que eram muito práticos e entendidos em matéria de mineração, desanimaram, e acabaram. de convencer-se, que Irabussu os havia burlado a todos.

Uma coisa porém depararam, que os encheu de horror, e diante da qual teriam recuado em fuga precipitada outros quaisquer, que não fossem os nossos três intrépidos e resolutos aventureiros. Esparsos pelo pa­vimento foram encontrando aos pedaços os cadáveres dos míseros emboabas, estrangulados e meio devorados pelas onças e outros animais bravios. O ar frio daquelas abóbadas úmidas e a natureza calcárea do terreno parece que os tinha preservado da podridão; o sangue ainda escorria dos membros dilacerados de alguns, como se houvessem expirado não a muito tempo, e toda a caverna exalava um forte cheiro de sangue e carniça fresca, como se ali acabasse de banquetear-se uma horda de antropófagos. Bem quereriam Gil e Maurício dar sepultura aos miserandos restos daquelas infelizes vítimas da cobiça; mas não lhes sobrava tempo nem mesmo para concluírem suas investigações; ainda ficavam por examinar muitos recessos e anfratuosidades quase inacessíveis, e onde só poderiam penetrar serpeando ou rastejando como as cobras e répteis. Desanimaram e pensando no lastimoso fim dos que os precederam na exploração daquela gruta fatal, deram-se pressa em sair dela, convencidos de que só depois de muitos dias de pesquisas e explorações pode­riam dar com a mina, caso tal mina ali existisse.

- Se Irabussu não aparecer mais entre os vivos, - dizia Gil, - resolvido a mostrar a mina, ninguém mais a descobrirá. Não há duvidar; o velho bugre embaçou­nos a todos, como já havia embaçado o Minhoto, o capitão-­mor e outros.

- Disso estou eu também convencido, - replicou Maurício; - não há por aqui nem a mais ligeira informação de ouro, e é evidente que Irabussu não trouxe aqui aqueles miseráveis senão para dar-lhes uma derradeira e tremenda lição, e esta foi de doer deveras.

- E o diabo é, meu amo, - disse Antônio, - que essa lição também nos vai doer bastante, pois ficamos sem mina, e eu sem a minha pobre Judaíba !. .. Nada! nada!. .. isto não pode ser; a mina deve estar por aí mesmo; hei de cá voltar e tanto hei de escarafunchar por essas buracadas, que hei de dar com ela, ainda que esteja lá nas profundas do inferno.

- É tempo perdido, Antônio, - falou Gil.- Só Irabussu e Tupá; não te lembras, que ele assim dizia?... e ele não o dizia em vão. Mas não te de isso cuidado, havemos de libertar a tua Judaíba, seja como for, e desgraçado de quem t’a quiser roubar ! Mas, meus amigos, - continuou Gil, dando à voz certa acentuação grave e solene, - se aqui nesta gruta não encontramos ouro, quem sabe se um dia nela encontraremos coisa mais preciosa ainda ! ... sim, quem sabe se talvez bem cedo precisaremos do asilo destas furnas para amparar-nos da sanha de nossos perseguidores ? ! Esta caverna, que serviu de túmulo a esses infelizes, poder ser para nós um refúgio sagrado, que o céu nos quis mostrar por intermédio do velho selvagem.

Irabussu enquanto vivo protegeu-me e sacrificou-se para minha prosperidade; se ele é morto, sua sombra, que deve habitar no seio deste covil medonho, aqui virá ainda para nos inspirar e alentar afim de podermos resistir a nossos opressores e proteger e amparar sua querida filha. Portanto, meus amigos, a ninguém revelemos a existência desta gruta; guardemos sobre ela o mais inviolável segredo.

Falando assim Gil parecia possuído de espírito pro­fético; seus companheiros, impressionados pelo tom so­lene e de sincera convicção, com que proferia aquelas palavras, o escutavam silenciosos e comovidos, como se ele estivesse lendo no livro do futuro.

- Sim, Gil; tem toda razão, - disse Maurício com voz grave e melancólica depois de um momento de silêncio e emoção. - O nosso futuro é de sombras, e Deus sabe se um dia somente nas cavernas poderemos achar abrigo para nos esquivar ao tronco e ao cadafal­so !. . . Guardaremos segredo, muito segredo, ouviste, Antonio ?. . .

- Eu serei mudo como estas pedras, - respondeu o índio.

Depois destes acontecimentos passaram-se longos dias uniformes e tranqüilos  no povoado de S. João d’el-Rei. A população em geral parecia calma e satisfeita; os ódios e animosidades se iam pouco a pouco arrefecendo; os conflitos e pendências, que quotidianamente forneciam conflitos e pendências, que quotidianamente forneciam novos hóspedes à prisão e aos troncos do capitão-mor, iam-se tornando mais raros e os mineiros em vez de se reunirem em grupos para se queixarem, querelarem, mal­dizerem e desabafarem nos rancores, entregavam-se regularmente todos os dias a seus trabalhos ordinários. Tudo parecia entrar naturalmente e sem esforço em uma fase de paz, segurança e atividade, que prometia um futuro desassombrado e sereno.

Judaíba, posto não fosse restitui da a Gil, era bem tratada e estimada em casa do capitão-mor, onde Leonor a rodeava de cuidados e carinhos. Antônio, que ali tinha entrada franca e presenciava tudo, não podia também ter motivo de queixa nem de inquietação.

Gil, por força das circunstâncias e por sua extrema dedicação aos interesses de Maurício, via-se forçado a abafar seus ressentimentos e a dar por esquecidas as injúrias passadas.

Sentia porém que não poderia viver tranqüilo por muito tempo em S. João d’el Rei; sua aversão aos emboabas era profunda e inextinguível; a seus olhos aquela calmaria dos ânimos era aparente e superficial, era ape­nas um sintoma de cansaço, uma intermitência passageira, que seria seguida de novas e violentas agitações. Bem via, que não faltariam pretextos, nem ocasiões aos emboabas para entrarem de novo em conflito com os paulistas.

Nenhum outro motivo senão a amizade, que consagrava a Maurício, podia dali em diante reter Gil em S. João d’el Rei; mas Gil compreendia também que a sua residência ali, longe de ser proveitosa ao seu amigo, podia ao contrário lhe ser funesta, como por vezes a experiência o havia mostrado. Era portanto essa mesma amizade, que votava a seu patrício, que lhe impunha o dever de retirar-se

Graças a Irabussu possuía já ouro bastante para passar a vida ao abrigo de necessidades, ou para ir a outras paragens tentar novos meios de aumentar seus haveres.

Portanto, resolveu-se definitivamente a deixar S. João d’el Rei. Maurício não ousou opor-se a tão justificada resolução; bem lhe doía separar-se do amigo, que nas difíceis conjunturas, em que se achava, ia fazer-­lhe a mais sensível e irreparável falta; mas conhecendo a índole fogosa e insofrida de Gil, não queria vê-lo exposto a novos vexames e perseguições.

Em outras circunstâncias Maurício teria acompanhado a seu amigo; mas seu destino o detinha com mão de ferro junto de Leonor e do capitão-mor. Ele se julgava ali colocado por vontade do céu como a salvaguarda, o amparo da segurança e da honra de Leonor contra os insolentes e brutais atentados de Fernando. Os anteriores acontecimentos o confirmavam nesta crença, e ele nutria a esperança de um dia libertá-la para sempre de seu odioso amante.

Além dessa, outra esperança, posto que mais tímida vacilante, lhe sorria no porvir, era a posse de Leonor, e a certeza de ser por ela amado era o único alimento dessa suave mas débil esperança.

A primeira era uma missão a cumprir, missão que ele considerava como um dever imperioso que lhe fora imposto pelo céu.

A segunda era apenas um sonho d’alma, um anelo ardente, uma aspiração louca talvez; mas era ela, que com mais força o prendia fatalmente junto de Leonor.  O capitão-mor aplaudia-se interiormente pelo restabelecimento da paz e da harmonia entre seus governados, atribuindo-as a seu espírito reto e moderado, e as essas facilidades e condescendências , contra as quais tanto se revoltava seu orgulhoso e atrabilário sobrinho. Entendeu, portanto, que era tempo de afrouxar um pouco o rigor das providencias que Fernando lhe fizera tomar contra os paulistas, no intuito de manter a ordem e a segurança na povoação. O direito de se reunirem e outras mais liberdades lhes foram restituídas.

Fernando não quis se opor a esta medida; a ordem e a tranqüilidade não convinham a seus planos, e ele ao invés de seu tio, entendia que a subordinação e sossego, que a certo tempo reinava na povoação, eram devi­dos aos meios fortes e repressivos, que havia aconselhado.

- Melhor ! - pensava ele consigo; - terão mais azo para porem as maguinhas de fora, e tornarem-se cada vez mais insolentes e insubordinados.

De feito o gênio da discórdia ainda não tinha apagado de todo o seu archote, e Fernando lá estava para avivar-lhe a chama preparando sutil e sorrateiramente novos elementos de desordens e conflagração.

A INSURREIÇÃO

Capítulo I

Estréias de um jovem fidalgo

Mais de um mês de inalterável tranqüilidade passou-se no povoado de S. João Del Rei.

Tão diuturna tranqüilidade a todos agradava menos a Fernando, que via com desgosto fugirem-lhe todas as ocasiões de perseguir Maurício. Infelizmente para fazer o mal elas não se fazem esperar por muito tempo.

Fernando e Afonso ocupavam o mesmo aposento na casa do capitão-mor, o que lhes dava aso de poderem palestrar a vontade nas horas vagas da noite ou do dia, e fazerem-se mutuas confidencias. Fernando tomara a seu cargo acabar de perverter a lama do jovem primo já bastante estragada pelos mimos e condescendências paternas, e ia conseguindo maravilhosamente o seu fim.

- Onde estiveste ontem à noite até tão tarde, que nem vi quando chegaste ? – perguntou Fernando a seu primo um manha ao acordar.

- Oh! Se soubesses, ficarias com inveja, Fernando, - respondeu Afonso acordando e espreguiçando-se voluntuosamente.

- Por que ?

- Porque estive em casa de uma menina bonita ... oh! Fernando ... bonita como os amores!...

- Oh! Deveras ! sim ! ... pois isso por aqui é fruta bem rara. Quem é ? ... como se chama ? ... onde mora?...

- Oh! Que gana de saber tudo a um tempo !... pois não te conto nada.

- Forte criança !... receias acaso, que te eu vá tirar do lance ?... bem sabes, que a minha posição, e ainda mais o amor que consagro à tua irmã, me não permitem meter-me em empresas de certa ordem... anda lá; conta-me quem é a rapariga. Em vez de te estorvar, talvez te possa ajudar em tua empresa.

- Prometes não contar nada a meu pai ? ...

- Ora essa é boa !... – retorquiu Fernando rindo-se e, levantando-se da cama, foi sentar-se à do primo que ainda estava entre os lençóis, e disse-lhe afagando-lhe a cabeça.

- Toma juízo, rapaz... que interesse posso eu ter em levar tais ninharias aos ouvidos de teu pai ? ... Temos coisas mais serias em que pensar. Deixa-te de tantas precauções, e sobretudo tem confiança em mim, e conta-me que é a rapariga.

Afonso em razão de sua pouca idade, pois contava apenas vinte anos incompletos, tinha ainda certo recato e timidez, e em razão de sua índole, que não era má, respeitava ainda ao pai seu tanto ou quanto. Foi portanto com algum acanhamento e receio, que revelou ao primo a existência dessa moça, por quem começava a tomar-se de amores.

- Chama-se Helena, disse.

- E onde mora ? ...

- Nas abas daquela serra, - respondeu o moço indicando com a mão o rumo da serra do Lenheiro, que ainda não tinha nome; - a casinha, onde mora, esta situada perto de uma fonte, e o lugarzinho é muito bonito. Quando a vi a primeira vez, estava lavando roupa. O pai dela é um ferreiro; de certo o conheces, Fernando... o mestre Bueno ? ...

- Oh! muito!... então a menina é filha de mestre Bueno !. .. um paulista velho e casmurro como trinta diabos!. .. conheço-o muito, e já ouvi falar nessa rapariga; dizem que é muito bonitinha a filha do tal bronte...; deve ter muitos amantes...

- Muitos, Fernando; e é isso que me amofina.

- Em pouca água te afogas; pois que tem isso? ... é muito natural; aqui não há mulheres; é "populus virorum... res unius etatis", como diz o teu Floro falando dos fundadores de Roma. Quero dizer que nesta terra quase tudo é homem, e rapaziada nova e bem disposta, e portanto uma menina bonita por aqui é osso, a que se atiram mais de trinta cães... uma cáfila de perros, que só com um grito podemos enxotar... Mas vamos ao caso; quais são esses amantes ?

- Eu sei lá... um magote de farroupilhas, que não conheço, e que andam sempre a rondar por perto da casa de mestre Bueno, como zangões em volta da colméia... Um deles bem conheço, eu ... um rapazote, que não sai de lá, e dizem que até mora com eles, por nome, Calixto...

- Ah ! ... conheço... e mais quem ? ...

- O Gil...

- O Gil também ? ! ... – exclamou Fernando erguendo-se com alegre surpresa. – Bom !... não está mal escoltada a pequena...

- O minhoto...

- Também 1 ?... coitado ! ... aquele pobre diabo mete-se em quanta alhada há por esse mundo. Há de ser bem feito que os paulistas lhe arranquem o couro, que de cabelos não lhe acharão um fio. Mas vamos adiante, Afonso, quem mais ?

- Os mais não conheço...

-  Pode ser;  mas nunca o vi por lá. Passo muitas vezes a cavalo pela casa de mestre Bueno; quase sempre vejo Helena ou na fonte, que fica mesmo pertinho da casa, ou na varanda cosendo; mas nunca me atrevi a apear-me, porque meu pai não gosta que me meta no meio de semelhante gentalha. Mas ontem perdi a pa­ciência, e deitei para longe os escrúpulos... arre lá ! pois a gente há de viver aqui, como quem está no seminário dos Jesuítas em S. Paulo!. .. aqui não há saraus, nem teatros, nem cursos como lá; não se vê senão poviléu e gentalha;  com quem a gente há de divertir-se senão com as rapariguinhas do povo ? ...

- Tens razão.

- Apeei-me a pretexto de descansar e beber um pouco d’água, e lá fui deixando-me ficar até horas mortas... A companhia estava muito divertida. A Helena canta...

- Ah!... e que pretendes fazer, meu rapaz?...

- Não sei, primo; tenho medo de me envolver com essa canalha.

- Se não tens animo de suplantar essa corja de maltrapilhos, o que vais fazer lá ? ...

- Tenho medo de desgostar a meu pai.

- Forte poltrão!... não pareces filho do capitão-mor Diogo Mendes. Maior desgosto teria ele, se soubesse és tão pusilânime.

- Que estás dizendo, Fernando ? eu pusilânime ?

- Sim, pusilânime, por que tens medo de uma meia dúzia de ciganos. Pois bem ! fica em casa comento biscoitos e deixa-me lá ir, que eu saberei haver-me com eles; irei requestar a menina, e depois de enxotar todo esse bando de rufiaes, tu poderás possuir a tua Helena, eu te afianço; mas há de ser em segunda mão.

- Bravo ! ...assim é que te quero ver; - replicou Fernando sorrindo. - Nada receies da minha parte; eu estou gracejando. Tudo isto por aqui é nosso; podes ir, andar por meio deles, entrar-Ihes pela casa dentro; mas não te humilhes, nem te acovardes diante desses perros, porque... ai daquele, que faltar o respeito ao filho do capitão-mor Diogo Mendes!...

- Ao vil, que me desrespeitar, - retrucou vivamente o mancebo, - eu, sem socorro de mais ninguém, saberei dar a competente resposta.

- Falando assim Afonso espumava, ,trincava os dentes e crispava os punhos, como se já estivesse sendo vítima de algum insulto. Saltou da cama, vestiu-se e penteou­:se à pressa.

- Apenas acabarmos de almoçar, - disse a seu primo, - monto a cavalo e lá estou em casa do ferreiro. Já agora hei de levar a cabo esta aventura, de no que der.

- Fernando exultou vendo a disposição do rapaz.

Temo-la travada – pensou ele. – este amor do menino há de produzir seus frutos. E o verdadeiro pomo da discórdia... Uma Helena pôs a Grécia em conflagração. Outra Helena vai dar aqui o mesmo resultado. O ponto é eu saber aproveitar-me das circunstancias. E uma ratoeira, em que tenho de apanhar todos esses insolentes paulistas, sem excetuar ao seu alnado chege Maurício... oh ! que sim !... como as outras mariposas ele há de procurar o fogo, em há de arder.

De feito, Afonso, terminando o almoço, montou a cavalo e dirigiu-se sozinho para a serra do Lenheiro.

Apesar do estimulante, que Fernando lhe aplicara, e que produziu o passageiro arreganho, que acabamos de ver, Afonso talvez em razão de sua pouca idade, a  medida que se ia aproximando da casa de mestre Bueno, sentia-se cada vez mais indeciso e acovardado, e retardava de mais em mais o passo de seu cavalo. Já estudando pelo caminho um pretexto plausível, com o qual pudesse, sem despertar suspeitas, apresentar-se em casa do velho ferreiro, em presença do qual a seu despeito, não podia deixar de sentir certo respeito e acanhamento. Caçar por esses lados era absurdo; o caminho, que trepava por aquela escabrosa encosta, muito mal dava trânsito a cavaleiros até a casa do ferreiro. Só lá iam os que tinham relações de amizade com mestre Bueno, ou alguma obra em sua oficina. O que iria Afonso lá fazer, que não denunciasse o intento de ver Helena? O jovem fidalgo já tinha esgotado os recursos de sua imaginação. A primeira vez de feito lá fora parar transviado, ou passeando a esmo afim de conhecer os arredores da po­voação. A segunda vez lá fora de propósito para beber água da fonte, que achara mui fresca e saborosa, mas não para ver Helena. A terceira fora arrebatado pelo cavalo, que tomando o freio entre dentes lá o havia levado mau grado seu; também o cavalo parecia ter gostado muito da água da tal fonte. A quarta vez tinha ido para apreciar a bonita perspectiva, que dali se gozava, e ao mesmo tempo beber ainda um pouco daquela deli­ciosa água. Agora, pela quinta vez, o que iria ele lá fazer ? ...

Preocupado com este gravíssimo problema ia ele andando vagarosamente, e largando as rédeas sore o pescoço do animal deixava-o  ir a sua vontade.

- Oh! Bem achado ! – exclamou por fim batendo na testa – vou ajustar com o ferreiro o concerto e fabrico de ferramentas para meu pai. Que excelente pretexto !... não sei como a mais tempo não havia atinado com ele!

E tomando as rédeas e esporeando o cavalo pôs-se a trotar resolutamente pelos estreitos trilhos, que galgando a encosta conduziam à casa do ferreiro.

A casinha de mestre Bueno era na verdade, como dissera Afonso, situada em um mui aprazível e pitoresco recanto. Estava assentada em uma pequena esplanada natural, que ficava a meia altura da montanha à maneira de um terraço ou belvedere, donde se gozava a vista de toda a povoação e de extensos horizontes. A fonte, que jorrava a um lado a alguns passos de distância, e que caindo dos topes vizinhos em argentadas e brilhantes espadanas vinha espreguiçar-se em límpido tanque alcatifado de variegado e cintilante cascalho, dava alegria, vida e fresquidão à interessante choupana. Consistia esta pela frente em uma varanda aberta entre dois pequenos quartos, um destes era a tenda, onde o ferreiro tinha a sua forja; comunicava com a varanda por uma porta quase tão larga como ela, e tinha na frente uma janela, que tinha mais de largura que de altura. Para o interior havia mais alguns cubículos, onde, à exceção dos donos da casa, ninguém mais penetrava.

A varanda servia de sala de visita, onde mestre Bueno se entretinha com seus fregueses e amigos.

Habitavam este casebre mestre Bueno, sua filha e Calixto. Não nos ocuparemos do primeiro, que já é nosso conhecido antigo.

Calixto, que também o leitor já viu no dia da grande caçada do capitão-mor, era um jovem paulista, afilhado e protegido de mestre Bueno, belo rapazinho, cheio de vigor e atividade, que muito ajudava a seu velho protetor nas rudes lidas de seu ofício.

Tendo ficado órfão de pai e mãe em mui tenra idade, o bom velho havia tomado a seu cuidado a criação do menino desvalido, e a par de uma boa educação moral, - Única que lhe podia dar, - ensinou-lhe o ofício de ferreiro, e o levou consigo para S. João d 'El Rei juntamente com Helena, único resto de sua família. Ca­lixto habitava o quarto fronteiro à tenda e contíguo à ­varanda.

Helena era uma linda menina, de quinze a dezesseis anos, de porte mediano, e do mais gentil e gracioso tipo caboclo. O rosto redondo era da mais mimosa cor de jambo; as feições regulares e delicadas; a boquinha semp­re risonha era uma rubicunda e fresca rosa entreabrindo-se aos primeiros fulgores da aurora; o colo perfeitamente modelado meneava-se flexível como o da meiga rola sobre o curvo e voluptuoso seio; os olhos não muito grandes eram, vivos, travessos e de uma extraordinária cintilação. Os cabelos negros e corredios seriam muito compridos, se ela não tivesse o costume de apará-los ao rês dos ombros afim de a não estorvarem na incessante lida de seus fragueiros trabalhos; mas ela os encaracolava nas pontas com os próprios dedos, e eles lhe desciam em graciosas espirais como serpentes negras a beijar-lhe as espáduas. Helena era a lavandeira, a costureira e a cozinheira da casa, e também acompanhava seu pai ao mato, quando este ia preparar o carvão necessário à sua forja, e de lá voltava trazendo um bem pesado feixe de lenha sobre a danosa cabecinha.

O leitor já deve estar adivinhando que Calixto e Helena, criados juntos desde a infância naquela vida retirada, inocente e laboriosa, deviam se amar inevitavelmente com aquele amor puro, ingênuo e cheio de confiança, que se insinua no coração quase sem ser sentido, e que se torna por fim ardente, profunda e inextinguível paixão.

Quando Afonso chegou à casa do ferreiro, estava ele na tenda com seu afilhado ocupados em forjar uma grossa alavanca. Calixto tocava o fole, enquanto Bueno, com os músculos e os braços arregaçados, amparado com um comprido avental de couro, que lhe descia do pescoço até abaixo dos joelhos, com a tisnada catadura alagada em suor, empunhava a tenaz caldeando uma pesada barra de ferro em brasa. Helena cosia na varanda.

Afonso apeou-se e, dirigindo-se para a janela, debruçou-se sobre ela.

- Bom dia, mestre Bueno, - disse cumprimentando.

- Oh! bom dia, meu moço... então anda pas­seando !. .. como vai o papai ?. .. respondeu indiferente o ferreiro sem olhar para o moço e sem distrair-se um instante do seu trabalho.

- Meu pai vai bem, mestre; e é por mandado dele, que venho procura-lo.

Pois aqui estamos às ordens, - e dizendo isto o velho bronte agarrou com a mão direita em um pesado malho e com a esquerda empunhando fortemente a tenaz arrancou do fogão a pesada barra de ferro e com rápido movimento a levou à bigorna. No mesmo instante Ca­lixto, largando o fole, empunha outro martelo e começam ambos o tan-tan-tan infernal das tendas de ferreiro.

- Arreda, moço!... Não vá se queimar, - bra­dara Bueno antes de começar a malhar. Mas Afonso, que talvez nunca tinha visto funcionar uma forja, não compreendeu a necessidade de subtrair-se incontinente ao turbilhão de fagulhas ardestes, que ao choque dos martelos saltavam da bigorna como de uma cratera em erupção, e se expandiam em derredor como um repuxo de fogo.

Afonso deu um grito e saltou para longe da janela. Uma chuva de chispas abraseadas tinha-lhe chamuscado as mãos e o rosto.

- Eu bem o avisei, meu moço, - gritou o ferreiro, - mas vossa mercê pateteou, a culpa não é minha.

Falando assim o velho levava outra vez o ferro à for­nalha e com a chegadeira o cobria bem de brasas, enquanto Helena acompanhava os gemidos de dor do mancebo com uma alegre, interminável e sonorosa gargalhada, a que servia de baixo marcante o ronco do fole, que recomeçava a funcionar com redobrado furor.

- De que estás aí a rir-te, menina? - ralhou o velho lá da tenda sem deixar o serviço. - Pensas então, que isso não dói, e que a mão de um fidalguinho é como a nossa toda encoscorada e chamuscada de fogo?.. cuida antes em ver aí um bocado de azeite para untar na mão desse moço.

Helena calou-se, correu ao interior da casa, e daí a pouco voltou com uma chícara contendo um pouco de azeite doce e uma pena, e dirigiu-se a Afonso afim de aplicar-lhe o linimento receitado por seu pai. Tudo isto fez de modo mui cortês e atencioso, porém com tal cara de riso sufocado, que o mancebo corrido e desatinado nada quis aceitar, asseverando que nada sofria, - e de fato a cousa era muito insignificante, - e quase sem se despedir montou a cavalo e retirou-se muito enver­gonhado e com muita raiva... de quem?.. de si mesmo, por certo, pois que ninguém o havia ofendido.

Ninguém ? ! ... que digo eu? ... a risada de Helena o havia ofendido mil vezes mais que as fagulhas ardentes, que lhe haviam salpicado as mãos. E este um fenômeno moral, de que é excusado dar explicação aos leitores, e creio que nem mesmo as leitoras. Um namorado quereria antes receber uma rija bofetada das delicadas mãos de sua amante, do que ser vitima de uma gargalhada de seus lábios alegres e rubicundos. Os lábios de uma moça amada são como as pétalas de uma flor, que contem em seu calix o veneno, que nos mata, e o perfume, que nos embriaga. O sorriso é o perfume; a risada é o veneno.

Capitulo II

Um Paris mal sucedido com a sua Helena

No dia seguinte àquele, em que Afonso passou pelo cruel desapontamento, que acabamos de narrar, a uma formosa tarde sucedeu uma das mais magníficas noites tropicais. - Um luar esplêndido argentava de luz maviosa o recente povoado e todos os seus pitorescos arredores. O Rio das Mortes apresentava aqui e ali entre os balsedos da vargem o veio cintilante como escamas de prata de serpente gigantesca a esgueirar-se silenciosa por entre os matagais.

A serra de S. José desenhava no fundo límpido e claro do firmamento o erguido espinhaço semelhante ao dorso de um javardo colossal, esbatendo nos flancos ondulados a luz pálida e serena da silenciosa rainha das noites.

A população satisfeita e um pouco tranqüilizada com o sossego, que gozava a cerca de um sem, paulistas e emboabas, espaireciam-se descuidados aos brandos raios da lua, misterioso e benéfico planeta, que adormenta as paixões violentas, que derrama eflúvios de paz sobre a face da natureza, e côa nos corações o bálsamo de meigas e suaves emoções. Uns passeavam, outros sentados tranqüilamente ao poial de suas toscas vivendas se entretinham em alegres e mansas conversações; outros aos sons da guitarra entoavam maviosas cantigas, em que suspiravam saudades da pátria distante, ou amores ausentes.

Era da serra do Lenheiro e da casa de mestre Bueno, que melhor se apreciava essa soberba perspectiva, e é para lá, que levaremos o leitor.

Desde o pôr do sol, Calixto e Helena achavam-se sentados junto à fonte sobre uma larga lagem, que lhes servia de sofá tendo por espaldar um rochedo musgoso, que se elevava alcantilado por detrás deles, e vendo a sem pés estenderem-se por longes sem fim o povoado, os vales e as montanhas, rios e florestas. O sol acabava de armar-se à sua direita entre nuvens de púrpura ar­dente, e à esquerda a lua erguia-se serena como fada amiga com seu condão misterioso derramando silêncio e plácida bonança pela face da criação. Calixto ao depor o malho, fatigado, arquejante e coberto de suor, viera à fonte tomar o fresco, matar a sede, e descansar um pouco ao suave bafejo das virações da tarde. Ali encontrou Helena, que tendo estado a lavar roupa também se sentara a descansar e a cismar contemplando o maravilhoso painel, que se desenrolava ante seus olhos. A fonte era pertinho da casa, e Bueno sentado a porta da varanda os via muito bem; mas podiam falarem- se a meia voz sem serem ouvidos. Entretanto conservavam-se mudos; amavam-se muito, já o sabiam, e nada mais tinham quer dizer-se, porém muito que sentir e gozar. Como que absorvidos em êxtase de puro e santo amor em presença de tão grandioso e solene espetáculo, com as mãos enlaçadas, ouvindo o palpitar de seus corações e trocando olhares, que diziam tanta coisa, estavam ali com dois esposos, cuja união era abençoada pelo Eterno, tendo por templo o universo e por lâmpadas o sol e a lua suspensos nas extremidades do horizonte. No enlevo, em que se achavam embebidos, apenas de quando em quando murmuravam uma exclamação de felicidade, um suspiro de amor, que se confundia com o soluçar da fonte vizinha marulhando entre os rochedos.

Caíra a noite, e alguns amigos e fregueses, aproveitando o belo luar, vinham trepando a encosta em de manda da casa de mestre Bueno. Muitos também aí vinham atraídos pelos lindos olhos de Helena. O próprio Gil a princípio também se deixara enlevar pelos encantos da gentil filha do ferreiro; mas notando depois, que ela e Calixto se amavam extremosamente e que seria uma indignidade de sua parte tentar perturbar uma tão santa e bela união, tratou de acabar logo sua nascente paixão, e se continuava a freqüentar a casa do ferreiro, era simplesmente por estima e amizade, que consagrava tanto ao velho como a seu afilhado. Afonso portanto se havia enganado com as aparências, quando o indicara a Fer­nando como um dos amantes de Helena.

Outro tanto não acontecia ao Minhoto, que sentia pela gentil rapariga a mais louca e devorante paixão, e que, a despeito de sua abjeta e repelente figura, fazia-lhe a corte e nutria esperanças de conquistar-lhe o coração. Tinha-lhe ela asco e aversão, que não podia dissimular, mas o seu estúpido adorador tinha demasiada confiança. no poder do ouro e não desanimava.

Além destes, Helena contava mais uma boa meia dúzia de apaixonados, paulistas e portugueses, que alimentavam mais ou menos esperanças de agradar-lhe, conforme o maior ou menor grau de juízo e discernimento, de que eram dotados. Bueno bem compreendia a razão daquele excesso de assiduidade de certa rapaziada em sua casa, mas posto que sempre zeloso e vigilante fazia-se de desentendido, e sorria-se à sorrelfa à custa dos pobres pretendentes esperando desapontá-los todos solenemente em poucos dias anunciando o próximo casamento de Helena e Calixto.

Estes, embebidos em seu mudo entretenimento, quase não davam fé do grupo de adventícios, que subindo a encosta se iam juntando em casa do ferreiro. Mas enfim o tropear de um ginete, que se avizinhava resfolegando, lhes atraiu a atenção. Cacalgava-o um gentil e airoso mancebo, que a certa distância apeou-se e dirigiu-se ao . grupo, que se achava em frente à casa.

- É ele !... é o filho do capitão-mor, - resmungou Calixto. - Não sei qual a razão porque esse fidal­gote de certos dias para cá deu em freqüentar tanto a nossa casa.

- É rico, não tem que  fazer, - replicou Helena; - anda a passear e divertir-se.

- divertir-se ! ... não é só isso, Helena. Esse moço não vem aqui só por mero passeio... quer me parecer, que ele gosta muito de ti.

- E que goste, que te importa isso ? ... não sabes que sou toda tua ? ...

- Bem o sei, minha Helena; não é por tua parte, que eu temo. Mas estes fidalgos são insolentes e atrevidos... Ah ? se ele uma dia lembrar-se de te faltar o respeito...

- Não tenhas susto; eu não lhe darei ocasião...

- Queira Deus ! queira Deus !... mas, Helena, vamos a nos recolher a nos recolher; este sereno poder fazer-te mal.

Helena compreendeu que não deviam ficar por mais tempo a sós retirados do resto da companhia, que se achava reunida em frente da casa, e ambos se recolheram. Como o luar estava mui claro, Bueno não havia acendido luz nem fogo, e seus hóspedes, uns debruçados no parapeito, outros do lado de fora, conversavam e chalaceavam alegremente sobre diversos assuntos.

Helena e Calixto recolheram-se e foram sentar-se a um canto da varanda, onde silenciosos e e escondidos na sombra escutavam distraidamente a conversação dos circunstantes.

- Então o senhor seu pai já tem notícia da boa têmpera de meus ferros, - dizia mestre Bueno a Afonso, a quem fizera recolher-se à varanda; - pois saiba vossa mercê, que não lhe falaram mentira, e se quer ver com seus próprios olhos, eu tenho aí pronta muita ferramenta de roça e de mineração ... mas está isto aqui tão escuro ... aí nesse canto deve haver um banco; sente-se e tenha paciência de esperar um bocadito, enquanto vou lá dentro acender luz.

Bueno entrou para o interior, e Afonso às apalpa­delas achou o banco, que era o mesmo em que Helena se achava na outra extremidade, quase escondida na escura penumbra, a que de propósito se havia retirado. O jovem fidalgo reconhecendo-a sentiu extraordinário alvo­roço de coração. Quis falar-lhe, mas sentiu-se tão aca­nhado, que não sabia o que dizer-lhe. Entretanto Via que a sua boa estrela vinha como que de propósito de­parar-lhe aquela ocasião a mais asada possível; achavam-se ali quase desapercebidos em um canto da varanda, enquanto os circunstantes, sem darem fé deles, riam, chasqueavam, palravam em altas vozes. Ninguém os via, ninguém olhava para eles, à exceção do Minhoto, cujos olhos velhacos e ardentes os fitavam através das sombras. Essas sombras deram ao moço certa resolução e ousadia, de que seria. incapaz em plena luz. Achegou-se um pouco para o lado de Helena, e pondo-lhe brandamente uma das mãos sobre o braço:

- Por ventura,  - perguntou-lhe em voz abafada, - não é a linda Helena, que aqui estou vendo perto de mim ? ...

- Uma sua criada, - respondeu Helena perturbada e inquieta querendo levantar-se.

- Oh ! onde vai? ... espere. Não pretendo fazer-lhe mal algum; só quero aproveitar a ocasião para dizer-lhe... que ... que... morro de amores pela senhora.

- obrigada, meu senhor; mas eu...não devo lhe ouvir mais.

- Por que não ? – replicou o moço detendo-a bran­damente pelo braço. Sente-se aí; não seja cruel assim. Ande lá; deixe-me ao menos dar-lhe um beijo aqui às escondidas.

Dizendo isto Afonso se abalançava a enlaçar um braço ao colo de Helena, que em vão lhe resistia, e ia chegar-lhe os lábios à face, quando um punho de ferro, interpondo-se subitamente entre os rostos de ambos, com um forte murro na mandíbula fez rolar no chão o mancebo com a boca ensangüentada.

- Toma! toma lá o beijo, fidalgote de uma figa! ... bradou ao mesmo tempo uma voz máscula e vibrante.

Era Calixto, que ali se achava pertinho de Helena. sentado sobre uma ruma de ferramentas quebradas, que ali estavam para concertar-se mesmo no ângulo da va­randa. No escuro recanto, em que se havia acocorado, era impossível que Afonso o avistasse. Este levantou-se furioso, e arrancando a espada, - naquele tempo nenhum fidalgo deixava de trazer espada à cinta, - arrojou-se às cegas" para o ângulo, donde partira a mão, que tão cruelmente o ofendera. A espada cravou-se na parede, a ao mesmo tempo dois musculosos braços o agarraram por detrás.

- Prendam, prendam este insolente! -  gritava Afonso debatendo-se e forcejando por desvencilhar-se dos braços de Calixto.

A este grito Bueno e sus hospedes imediatamente acudiram e rodearam os dois contendores. Foi um tumulto e vozeria infernal. Os emboabas, e a frente deles o Minhoto, queriam a todo transe levar Calixto preso à presença do capitão-mor.

- Que atrevimento ! – gritavam eles – desfeitear por esta forma o filho de nosso capitão-mor !! Hás de ir ao tronco; desta vez não escapas, meu mequetrefe!

- Se o levarem preso – bradavam por sua parte os paulistas- nos também iremos presos com ele. Quem o mandou desrespeitar a filha do nosso amigo ?! retire-se para a casa e deixe-nos em paz.

Entretanto ambos os partidos procuravam apartar a briga e conter Afonso, que perdido de todo o siso com os olhos fervendo em lágrimas de raiva botava-se a Ca­lixto como um possesso.

- Calem-se, meus senhores; - bradou Gil com voz atroadora – o ofendido aqui é somente o senhor Afonso, assim como foi ele, quem deu causa a todo este barulho. Ele que vá para a casa, e se quiser queixe-se a seu pai, que é quem poder dar ordens.

- Alto lá, senhor! - retorquiu Afonso, sentindo despertarem-se lhe, na alma sentimentos cavalheirosos. - Este negócio deve-se decidir somente entre nós dois. Meu pai nada tem que ver com isto. O insolente, que traiçoeiramente me ofendeu, há de algum dia encontrar-­se comigo, e hei de vingar-me como de um cão, que é. E também quero que nenhum de vossemecês que aqui estão presentes, ponham a mão nesse biltre, que me ofendeu, e nem tão pouco, que digam a meu pai a mínima palavra a respeito do que acaba de suceder. Ouviram ? . . .

Os portugueses nada retorquiram a tão imperiosa imposição; na pessoa de Afonso respeitavam o capitão-mor. Os paulistas também aplaudiram as palavras do jovem fidalgo.

- Este sempre mostra ser filho dos campos de Piratininga ! - diziam eles.

Afonso sem mais proferir uma palavra apressou-se em montar a cavalo e retirou-se precipitadamente.


Capítulo III

Processo sumaríssimo a meia-noite

Enquanto isto sucedia em casa do ferreiro, o capitão-mor, Leonor e Fernando achavam-se na varanda do grande pátio gozando tranqüilamente o frescor e beleza daquela esplêndida noite de luar.

Também Judaíba, a gentil carijó, ali se achava acocorada aos pés de sua jovem ama, a quem de dia em dia mais se afeiçoava, e com os olhos fitos nela já não parecia mais a ariranha selvática e arisca, mas sim a veadinha mansa, que segue todos os passos de sua dona, e lambe as mãos, que a afagam e alimentam.

- Falta-nos aqui Afonso; que é feito dele ? perguntou o capitão-mor.

- À tardinha saiu a cavalo - respondeu Fernando - como o luar está bonito, anda a passear. .

- Tenho notado, que de certos dias a esta parte o rapaz tem dado em muito passeador; não me deixa os cavalos sossegarem na estribaria. Queira Deus não ande metido em cavalarias altas ! ...

- Não tenha receio, meu tio. Afonso é muito cordato e até mesmo tímido. Não tenho medo, de que se meta em aventuras arriscadas.

- Não duvido; mas em uma povoação como esta cheia de aventureiros audazes e turbulentos, um moço de sua idade e de sua qualidade a estas horas deve-se achar em casa. Não posso tolerar tais desmandos.

Apenas o capitão-mor havia pronunciado estas palavras, entrava precipitadamente pelo pomo do páreo um pequeno vulto embuçado em um capote, e subindo dois a dois os degraus da escadaria abre sem pedir licença à cancela da varanda e pára esbaforido e arquejante em face do capitão-mor.

- O que é isto? ...  o que aconteceu ? ... há alguma novidade? - perguntaram a um tempo Diogo Mendes, Fernando e Leonor atônitos e sobressaltados; mas o Minhoto, - pois era ele, - que chegava pondo a alma pela boca, arquejava furiosamente e não podia desde logo satisfazer a ansiosa curiosidade dos interrogantes. Logo, que prorrompera o tumulto em casa do ferreiro, o abjeto e embusteiro emboaba, já com medo de que o barulho tomasse vulto e ele fosse vítima de alguma sova, já por desejo de fazer mal a Calixto, a quem não podia perdoar a decidida preferência, que lhe dava Helena, já por espírito de adulação, querendo ser o primeiro a levar ao capitão-mor a denúncia da ofensa, de que seu filho fora vítima, esgueirou-se de entre os comparsas, e deitando-se a correr pelos estreitos trilhos desceu aceleradamente e aos trambolhões a serra do Lenheiro, e depois de levar bom número de quedas chegou enfim moído e estafado à casa do capitão-mor.

- Que temos de novo, senhor? ... Não nos dirá enfim? ... Repetiu Fernando impacientado.

- Uff! ! - bufou o Minhoto arquejando - que Caminhada! ... Estou a botar os bofes pela boca ...  Mas enfim... Como é para servir a vossas mercês... Dou por bem empregado...

- O que há então? ...  Fala de uma vez, homem...

- Perdoem-me... Não é nada menos que uma enorme desfeita... Que acabam de fazer... ao senhor seu filho.

- Uma desfeita! ... A meu filho! ... - bradou o capitão-mor levantando-se exasperado. - Que está dizendo, senhor Minhoto? Isso é verdade?... - Que te dizia eu a pouco, Fernando... Está vendo o resultado dos passeios? ... Mas diga já depressa, meu amigo, continuou voltando-se para o Minhoto, - o que foi? ... O que foi? ... Quem foi o atrevido? ...

- Ah! Meu Deus! ... Que terra de maldição! ...  Murmurou Leonor dentro d’alma. - Nem um dia de sossego aqui se pode gozar.

- Que malvados, senhor capitão-mor - continuava o Minhoto. - Mil foras que houvesse.

- Deixemo-nos de exclamações. Quem foi, e Como foi isso? - atalhou Fernando.

- Foi em casa de mestre Bueno... Bom! - refletiu Fernando. - O rapaz afoitou-se enfim. O amor perdeu Tróia...

- Ainda não há uma hora, continuou o Minhoto, e o atrevido de um rapazola, que é ajudante do tal ferreiro, teve a petulância de levar as mãos à cara dele, à cara do senhor seu filho, entendeu, senhor capitão, e depois...

- Mentes, infame baturinheiro! - bradou uma voz de pessoa, que subia aceleradamente a escada da varanda.

Era Afonso, que tinha chegado cautelosamente querendo recolher-se sem ser visto afim de esconder sua afronta e meditar a vingança, que poderia tomar de seu ofensor. Mas o Minhoto o tinha antecipado alguns instantes, e o moço ouvindo do pátio a denúncia do embusteiro emboaba não pode conter sua indignação. Todos olharam sobressaltados para a cancela, por onde Afonso entrava bruscamente.

- Meu pai - continuou o moço arrebatadamente - não acredite neste homem, que não quer mais do que prestar-lhe um serviço por meio de uma torpe delação. Não houve mais que uma simples alteração, e peço a meu pai que se esqueça disso ...

- Não, meu filho; - replicou gravemente o capitão-mor; - não posso e nem devo esquecer tão depressa. Dizes, que foi uma simples alteração; mas aqui o senhor, que presenciou a pendência, assevera, que foste ofendido. E depois após uma altercação virá outra, e após esta alguma coisa mais séria, e não serás respeitado, como deves ser neste lugar. Nada !...é preciso averiguar este negócio, e por cobro a que se não repitam mais tais ocorrências. Fernando, manda vir já e já a minha presença todas as pessoas, que presenciaram o fato! Afonso e o senhor Minhoto devem bem saber, quais os que lá se achavam ... Oh! não, semelhante desaforo não pode ficar impune.

O Minhoto ficara aturdido e como que embasbacado com o desplante enérgico com que tão brusca e inesperadamente fora interrompido por Afonso; mas depois que ouviu o capitão-mor, e viu sua disposição, criou alma nova.

-  É justo, é justo, senhor capitão-mor ! - exclamou ele impertigando-se todo. - Abra-se já uma devassa, e veremos quem fica mentiroso, com o respeito devido ao senhor seu filho ... ele tem o coração bom demais ...enfim, senhor capitão-mor, eu sei bem as pessoas, que lá se achavam, e - Basta, senhor! - interrompeu o capitão-mor agastado. - Eu sei bem o que devo fazer. Não há perder tempo, diga ao senhor Fernando os nomes das pessoas, que lá se achavam, para se darem as providências.

Esta devassa, em que todos concordaram, e que Afonso em vão procurou obstar, vinha colocá-lo na mais triste e desairosa situação. O moço queria a todo custo senão ocultar, ao menos atenuar a gravidade do desacato, de que fora vítima. Tinha gravado no coração o mais implacável ressentimento contra o seu agressor, e jurava dentro d'alma que um dia havia desagravar-se, e tomar cabal vingança; mas, cavalheiro como era, não queria prevalecer-se da superioridade de sua posição, e tirar desforço por meio da autoridade, que seu pai exercia no lugar. Achava isto ignóbil, e contava vingar-se por suas próprias mãos. Mas a devassa, a que se ia proceder, vinha burlar todos os seus planos e esperanças. Desesperado de raiva na impossibilidade de contestar, o que diriam as testemunhas, foi encerrar-se em seu quarto no firme propósito de não assistir à devassa. Daí a duas horas pouco mais ou menos achavam-se em presença do capitão-mor, além do Minhoto, Calixto, Helena, Bueno, Gil e todos os mais paulistas e emboabas, que tinham presentiado a pendência, - umas dez ou doze pessoas - rodeadas de numerosos esbirros. A noite já ia avançada, como bem pode calcular o leitor, e essa devassa a tais horas tinha certo ar sinistro e inquisitorial.

Interrogados por Fernando, todos sem discrepância confirmaram o fato tal qual nós o deixamos narrado. Os paulistas porém procuravam atenuá-lo dizendo que Calixto apenas dera um leve empurrão em seu adversário afim de impedi-lo de beijar a face de sua amante, e que se Afonso foi a terra, e ficou com o rosto pisado, foi por estar mal sentado no banco, em que se achava quase às escuras. Os emboabas, pelo contrário, procuravam inocentar a Afonso dizendo que não tinham visto coisa alguma, que pudesse dar motivo ao desacato praticado por Calixto. Toda essa divergência porém dos dois partidos desvanecia-se diante das declarações do indomável Calixto, que contestando a uns e a outros confessava franca e impavidamente toda a verdade.

Por fim de contas ficava mais que averiguado que Afonso fora vítima de um desacato público e aviltante, e que o autor desse desacato fora Calixto; atentado gravíssimo, contra o qual Fernando reclamou todo o rigor das leis.

- Podem todos retirar-se, que está bastantemente esclarecida a presente devassa - sentenciou gravemente o capitão-mor. - Ficam porém em poder da justiça o autor do insulto, mestre Bueno e sua filha, para se proceder a ulteriores investigações afim de se chegar ao conhecimento dos que foram ou não coniventes no crime de desacato contra a pessoa de meu filho, Calixto irá para o tronco e os outros serão simplesmente conservados em prisão separada.

E assim se fez. Era por esta forma rápida e sumaríssima, que se instruíam e sentenciavam os processos  perante o capitães-mores sem apelação, nem agravo.

Capítulo IV

Noite de vigília e angústia

Essa noite, que havia começado sob tão lisonjeiros auspícios de paz e de bonança ao clarão de um formoso luar, transtornou-se assim inesperadamente em noite de insônia, agitação e sinistras apreensões para quase todos os habitantes de S. João. Um fatal acidente havia perturbado repentinamente a seguridade dos ânimos e a tranqüilidade de que gozavam a mais de um mês. A devassa terminara muito depois de meia noite e antes que alvorecesse o dia a notícia do ocorrido se havia propalado de casa em casa, e enchia toda a povoação.

Os paulistas recolhidos a seus lares começavam a praguejar antevendo novos vexames e perseguições por parte dos emboabas. Estes por seu lado também não dormiram pensando nas conseqüências daquele fatal incidente, e inimigos natos dos paulistas não deixavam de exultar contando com a perseguição, que contra eles moveria o capitão-mor, e principalmente Fernando, que não deixariam de desafrontar a Afonso; já de antemão congratulavam-se pela ruína dos paulistas, cuja ativa concorrência na descoberta e exploração de lavras queriam ver para sempre arredada. Perseguidos, encarcerados, degredados não teriam remédio senão abandonar-lhes inteiramente o terreno.

Na casa do capitão-mor também o sono recusava teimoso a descer sobre as pálpebras de seus atribulados habitantes. Afonso achava-se esmagado debaixo do peso da desastrada pendência, que o enchia a um tempo de rancor, de ciúmes, de confusão e de vergonha. Ferido em seu pundonor, em sua vaidade, em seu amor e em seu orgulho o coração lhe sangrava dolorosamente, considerando que não poderia aparecer senão corrido de vergonha e confusão diante de seu pai, de sua irmã, de Fernando e de todos os habitantes do lugar. Recolhido a seu aposento nessa noite nem quis falar a Fernando, e fingindo que dormia dava largas aos acerbos pensamentos, que lhe escaldavam o cérebro; maldizendo-se a si mesmo interiormente e praguejando céus e terra fatigado por fim adormeceu pela madrugada entre as imagens delirantes de mil sonhos de vingança.

A meiga e compassiva Leonor, que sabia de tudo, também não podia cerrar os olhos que não lhe aparecesse à alma a imagem aflitiva da infeliz e formosa Helena, debulhada em lágrimas implorando compaixão para o  pobre e velho pai e seu desditoso amante.

Não podia compreender a necessidade de meter em prisão juntamente com o criminoso àquele pobre velho e aquela interessante menina, que nenhuma parte tinham tomado na ofensa feita a seu irmão. Reprovava no fundo d'alma a dureza de seu pai e maldizia o momento em que este, aceitando esse cargo de algoz, viera para um país, em que nem um mês se passava, em que não se dessem cenas de tumulto, de lágrimas e sangue. Não pôde adormecer pensando nos meios, que empregaria para acalmar a cólera do pai, e obter dele a soltura de Bueno, de Helena, e também, se fosse possível, a de Calixto.

_ Amava seu irmão, mas em sua consciência reta achava justificável o arrebatamento do moço ferreiro. Lembrava-se de Maurício, e considerando qual não seria sua angústia, se o visse na mesma situação, não podia deixar de condoer-se profundamente da sorte dos dois amantes.

Estes não mui longe dela, debaixo dos mesmos tetos, gemiam em ignominiosa prisão sem se poderem consolar e confortar um ao outro. Helena e Bueno, postos em prisão separada, mas em um quarto contíguo àquele, em que Calixto se achava com os pés metidos no tronco, ouviam seus gemidos abafados, suas imprecações terríveis soluçadas entre ranger de dentes e contorções de desespero sem poderem vê-lo nem alentá-lo, e nem ao menos com ele se lastimarem. Um guarda impunha-lhes silencio, ameaçando-os com os mais bárbaros castigos. O Leonor, ainda que alojada em um aposento bastante afastado do lugar das prisões, cuidava às vezes ouvir-lhes os gemidos surdos; e esperava impaciente o alvorecer do dia suspirando pelo momento em que lhe fosse permitido levantar-se e ir oferecer algum lenitivo àqueles desgraçados. Só Fernando exultava interiormente à custa das angústias e sofrimentos, que abrigava o edifício naquela noite cruel. Essa noite, precursora dos acontecimentos, era para ele esperanças.

- E chegado enfim o ensejo, por que eu tanto aspirava! - murmurava ele dentro d'alma.

- Incomparável Helena! Tu foste um anjo lançado em meu caminho! Só mesmo uma Helena, - este nome é fatídico - podia fazer tão boa cama para seus patrícios, e dar-me ocasião tão azada para surgi-los a meu gosto. Estes amoricos do toleirão do meu primo vieram cair na presente conjuntura mesmo como a sopa no mel. Os fanfarrões do Maurício e do Gil hão de por força querer intrometer-se neste negócio, e eu não os tenho fechados na mão. Leonor, se não queres conceder-me o teu amor, ao menos hei de fazer-te sentir cruelmente o peso de minha vingança, e depois ... depois não terás remédio senão curvar-te a meus pés e ceder-me a tua mão.

Maurício, Gil e Antônio, reunidos na casa do primeiro,  também comentavam seu modo o acontecimento da noite entregues às mais sombrias apreensões.

- Não te desenganarás ainda, Maurício? – dizia Gil a seu amigo. - E impossível, por mais que nos curvemos, por mais que nos mostremos submissos e sofredores, é impossível viver em harmonia com esta cáfila de zangões inimigos de nosso sossego, cobiçosos de nosso ouro, invejosos de nossa felicidade. Querem tudo nos arrancar, nossa terra, nosso ouro, nossos escravos, nossos filhos, nossas amantes, nossas mulheres, e para obter tudo isso não duvidarão arrancar-nos a própria vida. Não vejo outro recurso, ou nós todos paulistas havemos de abandonar-lhes estas malditas minas, ou havemos de nos fazer respeitar com as armas na mão.

- Mas donde provém tudo isso, Gil 1 - replicou Maurício. - Da malvadez de um só homem, já mil vezes te tenho dito. É só Fernando, quem assanha os ódios, por que assim convém a seus malvados intentos. Se pudéssemos arredar e fazer desaparecer desta terra o infame secretário de Diogo Menes, oh! como as coisas correriam de outro modo! ...

- Não duvido, mas por que meio poderemos conseguir isso ! ...

- Nada mais fácil, - acudiu Antônio com vivacidade. - Antônio tem um punhal bem afiado, flechas, que não eram o alvo e uma escopeta, que não nega fogo, e além disso olho vivo e mão segura.

- Oh! bem o sabemos, Antônio, - atalhou Maurício; - matá-lo é bem fácil; mas isso seria infame e indigno de nós. Demais esse assassinato em nada nos aproveitaria; antes iria agravar mais nossa posição assanhando o furor do capitão-mor e de toda sua gente.

Pois é crime matar uma onça, que quer devorar a gente ? - perguntou Antônio.

- É, Antônio, - respondeu Gil, - é, quando essa onça só se ceva no sangue dos paulistas. Ele todos são contra nós, nós devemos ser todos contra eles.

- Não é assim, Gil; - replicou Maurício. Se não fosse Fernando, o capitão-mor seria incapaz de nos mover tais perseguições; eu o conheço a muito tempo.

- E que importa isso, se existe o tal Fernando, e se tangido por ele o capitão-mor nos persegue, nos esbalha e nos oprime?... se esse Fernando é o seu homem de confiança, o  seu válido, a sua cabeça e o seu braço ao mesmo tempo, e se nada é capaz de levá-lo a desfazer-se de semelhante homem? ...

- Um dia ele virá a conhecer os cálculos pérfidos e interesseiros do homem, em quem tão cegamente se confia ...

- Sim! sim! um dia! ... e até lá esperaremos! resignados gemendo ao peso dos ultrajes e da mais aviltante opressão, até que apraza à Divina Providência abrir os olhos do senhor capitão-mor... isso terá lugar talvez, quando todos nós tivermos morrido às garras desses malsins avaros...

- Talvez não nos seja preciso esperar tanto, e não serei eu também, que tenha tanta paciência. Hoje mesmo, Gil, Ah ! ... se não fosse Leonor, que me sopra a cólera, e me suspende o braço...

- Ah! esse teu amor!... esse teu amor!... foi um presente funesto do céu, uma estrela de má ventura, que luziu para ti e para nós todos.

- Não fales assim do meu amor, Gil, que me despedaças o coração, - disse Maurício sorrindo tristemente. - Esse amor pode ser um dia o farol de nossa salvação, o astro medianeiro da paz e da concórdia, se a prudência. . .

- E que pretendes tu que esperas mais, meu amigo ? ... esperas acaso, que o capitão-mor te de a mão de sua filha... - não vês que essa tua paixão insensata só pode trazer em resultado a infelicidade tua, dela e talvez de nós todos ! Se tivesses mais força de alma, há muito terias renunciado a esse mal aventurado amor ...

- Oh! de certo eu o faria, se não tivesse a certeza, que ela também me ama com igual extremo. Então seria eu só o infeliz, e iria para bem longe dela procurar esquecê-la, ou morrer de mágoa e de saudade. Mas ela também me ama e eu não devo abandoná-la aqui entregue a seus inimigos; os meus inimigos são também os dela. É por ela, que eu tremo, Gil. As onças, os selvagens, o furor de nossos patrícios, não é nada disso, que eu mais receio por ela; é de Fernando que eu temo tudo, de Fernando, que ela detesta, e que jurou possuí-la, e que para esse fim não recuará diante de meio algum, de Fernando, a quem a cega confiança do capitão-mor facilita a execução dos abomináveis desígnios forjados na mente daquele perverso. É por isso que eu aqui estou, e aqui devo ficar a pé quedo vigilante e pronto a protege-la a todo transe mesmo em despeito do capitão-mor e toda a sua gente. É por isso, que aqui ficarei vigiando aquele depósito sagrado, que o céu confiou à minha guarda, como quem defende o ninho da inocente rola, em volta do qual vagueia a jararaca astuta procurando devorá-la.

- E também Antônio aqui há de ficar com o patrão, - exclamou o índio com exaltação, - porque Antônio lá tem a sua rola nas garras do gavião. Aqui há de ficar, até que ela lhe seja entregue, e se não quiserem entregá-la, Antônio ou por força ou por astúcia há de arrancá-la de lá.

- Dizes bem, Antônio, - replicou Gil. – Agora lá geme outra rola prisioneira, a noiva do infeliz Calixto; amanhã virá uma quarta e depois mais outra e mais outra, porque estes nossos dominadores não só nos querem impedir de aproveitar o ouro desta terra, como também nos não permitem termos amantes, nem mulheres. Por mais, que faças, Maurício, com tuas prudências e acomodações, as coisas vão tomando péssimo caminho. Com elas não se aplaca a sanha dia nossos  inimigos; há sempre o mesmo ódio, a mesma inveja, e isto não se acabaria senão com muito sangue.

- Não duvido, Gil; infelizmente dizes talvez a verdade; mas entretanto deixa-me ainda fazer uma tentativa neste negócio do Calixto ... quem sabe talvez possa conseguir ainda alguma coisa a bem de nosso  sossego e tranqüilidade.

- Vai, Maurício; não posso, nem devo impedir-te; mas vais perder teus passos; o capitão-mor jamais perdoará o ultraje feito a seu filho, e Fernando não se resignará a perder este belo ensejo de nos mover a mais dura perseguição.

- Embora; farei sempre uma tentativa, se nada conseguir, tanto pior para eles.

- Vai, patrão, - acudi o Antônio, - vai em quanto eu cá fico amolando nossas armas, e escorvando nossas escopetas .

- Bem falado, Antônio, - retorquiu Gil, - a esta gente só se fala com a boca da espingarda.

O dia começava a despontar.

Capítulo V

Perdão pior que a pena

Ao romper do dia, que seguiu-se a essa noite angustiosa, toda a população amanheceu em alvoroço e ansiosa curiosidade. Mestre Bueno era um velho muito conhecido e geralmente estimado pelos habitantes do lugar, já como homem de bem, servil e prestimoso;  já como habilíssimo ferreiro, freguês quase exclusivo de todos os mineiros quer paulistas, quer forasteiros. Calixto também ,era estimado e benquisto de todos, à exceção de alguns rivais, pretendentes ao amor de Helena, que o olhavam de revés, e o achavam de gênio sumamente áspero e assomado. Helena era uma pomba meiga e inofensiva, que se perturbava o sossego de alguns corações,  era sem o querer, pelo encanto de seus olhares e de sua figura sedutora.

A todos pois devia afligir e consternar o funesto acontecimento daquela noite. Os serviços ficaram abandonados, as lavras desertas, e grande agitação se notava pelas ruelas da pequena povoação.

Afonso, acordando amargurado com a lembrança do desastroso acontecimento da véspera, ruminou ainda antes de levantar-se uma multidão de idéias e planos desencontrados. Não podia deixar inulta a cruel afronta, de que fora vítima, mas que gênero de vingança poderia tomar? eis aí o ponto, em que hesitava fazendo e desfazendo mil projetos sem saber em qual deles se fixar.

Abandonar seu ofensor à cólera paterna e esperar da ,autoridade a sua desafronta parecia-lhe pouco nobre e indigno de um fidalgo; queria vingar-se por si mesmo e por suas próprias mãos, mas como? iria provocar seu adversário a um duelo ? mas seu pai lhe dizia muitas vezes, que a espada de um fidalgo não se arranca contra um mísero peão, e desonra-se medindo-se com a dele.

O melhor e mais seguro meio de vingança, que se lhe oferecia ao espírito, era ferir o adversário na corda mais sensível de seu coração roubando-lhe a amante. Assim o amante em desespero infalivelmente o provocaria, e teriam de bater-se forçosamente, sem que ninguém pudesse intervir, e ou ele o mataria, ou lhe morreria às mãos. Para levar porém a efeito semelhante plano surgiam mil dificuldades, e Afonso não atinava com os meios de obviá-las.

Enfim já com o espírito fatigado e com a cabeça a arder entendeu que devia abrir-se com alguém que o orientasse no intrincado labirinto de seus pensamentos, e com quem melhor se poderia entender senão com o seu habitual confidente e conselheiro, seu primo Fernando.  Foi este mesmo quem provocou a confidência.

- Então, Afonso, - foi este o comprimento de bom dia, que Fernando deu a seu primo, - então que diabo andaste tu fazendo ontem lá por casa do ferreiro ? estás ainda muito bisonho no traquejo destas coisas. Se tivesses tomado primeiro algumas lições, não te sairias tão mal.

- Em que me saí mal por ventura? - replicou vivamente o mancebo. - Fui atacado por um cão, mas não me deixaram espancá-lo; eis aí tudo.

- Anda lá, - retorquiu Fernando batendo amigavelmente no ombro do mancebo; - confessa que foste bastante desajeitado e que a cousa não te saiu muito airosa; isso porém não faz mal; tranqüiliza-te, meu rapaz; sem o querer e assim atabalhoadamente preparaste o terreno de um modo admirável.

- Como? ...

- Ora como! ...  esse insolente Calixto, que teve a petulância de tocar-te, terá de sofrer prisão por muito tempo, ou será degredado, o que é melhor ainda, e a tua Helena aí ficará à tua disposição livre e desimpedida do importuno jacaré, que tanto a vigia.

- Eis aí em que não posso consentir; meu pai nada tem que ver com isto; foi uma insignificante pendência entre mim e um miserável perro; o ofendido fui eu só; a mim só compete desafrontar-me; não quero por modo nenhum, que meu pai se meta nisto.

- Mas como, se é dever dele castigar esse insolente? ... Mas eu sou o ofendido, e perdôo ao meu ofensor ...

- Imbecil que tu és ! ...  então como falas em vingança ?

- A vingança fica a meu cargo, somente a meu cargo.

- Mas de que maneira poderás vingar-te? ... de nenhuma, e esse atrevido, que te pôs a mão na face, irá para os braços de sua Helena gozar de seu triunfo escarnecendo de ti.

- Por Deus, que não há de ser assim, Fernando ! ...  hei de vingar-me, e hei de disputar-lhe a todo transe mas sem auxílio de meu pai, nem de quem quer que seja.

- Mas por que meios, não me dirás?

- Não sei; o demônio da vingança e do ciúme nos há de inspirar.

- Não duvido, - disse Fernando como a refletir; - e até, se me não engano, o tal demônio já te está inspirando. Com esse teu proceder estouvado e romanesco, sem o pensar vais preparando um plano, que pode sortir o mais completo resultado, e facilitar-te a mais cabal vingança no sentido, em que a queres.

- Deveras! ? ... mas ... explica-te.

- Queres perdoar ao teu ofensor, não é assim? - Quero, sim, para melhor poder vingar-me dele.

- Pois bem; será perdoado em teu nome, e estou certo, que esse perdão o humilhará e doerá tanto na alma como o mais rigoroso castigo.

- Embora! tanto melhor.

- Esse maroto será perdoado e posto em liberdade, mas não sem levar antes uma formidável corrimassa de bolos, que lhe sirva de lembrete em todos os dias de sua vida para não cair noutra.

- Mas eu já disse, que perdôo; não quero que o castiguem ...

- Não te importes com isso; esses bolos não são por tua conta, são por conta de teu pai, que tem a restrita obrigação de corrigir as crianças turbulentas e mal criadas. Há de toma-los, e depois será solto juntamente com o velho bronte.

- E a Helena?...

- Aí é que está o delicado do negócio. Helena tem de ficar aqui detida por enquanto.

- Detida !? ... mas por que motivo, se ela é inocente?

- És muito simples, meu Afonso. Se ela também ficar  livre e solta, em que poderá consistir a vingança ? conservá-la aqui é a condição essencial do piano, que deves seguir para possuir Helena, e vingar-te de Calixto. Só com esse fato ele ficará raivando, e rebentará de ciúme e desespero, e tu saborearás desde já os primeiros tragos de um princípio de vingança.

- Mas ela nenhum crime cometeu para ser metida em prisão ...

- Não há aí nenhuma prisão; fica simplesmente detida;. morará conosco em vez de morar com o pai e o amante, e nisso creio, que ela nada perde. Estando ela aqui fica ao teu cuidado empregar os meios a teu alcance para subjugar e vencer a inserção da menina. És um formoso Páris, e não te será mui difícil seduzir esta nova Helena, que aliás não é esposa de nenhum rei Meneláu. Quanto a pretexto, isso nunca falta. Por ventura não se acha aqui a tanto tempo essa outra caboclinha, filha daquele maldito bugre feiticeiro ! ... que crime cometeu ela também; e que mal lhe faz o estar aqui. Além de tudo, a casa do tal ferreiro estava se tornando um verdadeiro lupanar, um foco de desordem, tudo por causa dessa Helena, que para lá atraia uma corja de vadios. Eis aí um pretexto, senão um motivo muito justo para arreda-la dali. Por algum tempo estiveram os dois primos conferenciando sobre o assunto. Afonso, que conservava ainda no coração alguns restos de bons e nobres sentimentos, a princípio relutou em anuir ao plano de Fernando; mas este já com astuciosas e insinuantes considerações, já por meio de ridículo conseguiu com arte diabólica eliminar da consciência do jovem fidalgo os derradeiros escrúpulos, que aí restavam, e Afonso, instigado pelo ciúme, pelo orgulho e pelo sensualismo, três móveis poderosos, que Fernando soubera admiravelmente estimular naquela alma jovem e inexperiente, acabou por achar excelente e abraçar com entusiasmo o pérfido e ignóbil meio de vingança, que lhe era sugerido.

Deixando Afonso, Fernando foi conferenciar com o capitão-mor. Daí a uma hora a pouco, mais ou menos ambos eles se dirigiam. ao salão, e mandaram vir à sua presença os três prisioneiros. Grande porção de povo se agrupava em torno do edifício rumorejando como ondas, que começam a agitar-se às primeiras lufadas de um furacão.

Maurício, como prometera a seus amigos, também se apresentou e pediu ingresso na sala. O capitão-mor sentou-se à cabeceira de uma grande mesa, tendo Fernando à sua direita e Afonso à esquerda. Achava-se ali também certo número de pessoas curiosas, que ansiavam

por ouvir a sentença, que o capitão-mor lavraria contra o infeliz Calixto.

- Senhor Calixto, - disse o capitão-mor em tom grave e solene, - Vm. cometeu um crime atroz gravíssimo, o qual segundo as nossas ordenações, deve ser punido com açoutes, com degredo e confisco de seus bens, se os tiver. Dê porém parabéns à sua fortuna, e à generosidade do ofendido, que não quer que eu use para com Vm. do rigor das leis.

Ouviu-se um murmuro de aprovação; todos os peitos respiraram desafogados, e todos os olhos volveram-se benignamente para Afonso.

- Ele, portanto, - continuou o capitão-mor, - lhe concede o perdão da ofensa recebida, e eu também da minha parte, tendo em consideração a sua pouca idade, e o motivo da paixão, que o levou a esse ato de violência contra a pessoa de meu filho, quero usar para com Vm. de alguma clemência, e somente o condeno a oito dias de prisão, durante os quais todos os dias Vm. terá de ser castigado publicamente ali no meio do pátio com duas dúzias de bolos.

A estas palavras um sussurro confuso, um frêmito de horror circulou por todos os assistentes. Calixto tornou-se lívido como um cadáver; os olhos se lhe escureceram, as pernas vacilaram, e a cabeça lhe andou a roda, foi-lhe mistério encostar-se a Bueno, que estava junto dele para não cair. Helena soltou um grito de pavor, e Bueno exalou um gemido surdo e ameaçador, como o ronco da sucurí no fundo da lagoa, quando ouve o trovão roncar ao longe.

- Mestre Bueno, - continuou o capitão-mor, como nenhuma parte teve na pendência, seja desde já posto em liberdade, e sua filha será detida por ora nesta casa até segunda ordem.

- Senhor capitão-mor, - exclamou Bueno com voz angustiada, que vou eu fazer em minha casa sem minha filha e sem Calixto ? ... Sou um pobre velho, que por mim só nada valho. Ou restitua-me meus filhos, ou deixe-me também aqui ficar preso com ele.

- Não tem réplica, - atalhou secamente o capitão-mor, - estão dadas as minhas ordens. Não faltará quem o ajude, enquanto Helena e Calixto não voltam para sua companhia. E antes que alguém mais se lembre de pôr-lhe embaraços, desde já comece a execução da sentença. Esbirros! - disse o capitão-mor, levantando-se, - ponham Bueno em liberdade, levem o delinqüente para o pátio, e apliquem-lhe os bolos, a que o condenei. A estas palavras seguiu-se por alguns momentos um silêncio fúnebre; uma espécie de estupefação apoderou-se da maior parte dos assistentes, que sentiam gelar-lhas o coração em um sentimento indefinível de terror, de pejo, de indignação e de assombro ao verem aquele belo e altivo adolescente condenado tão brutalmente ao mais bárbaro e ignominoso suplício.

Foi o próprio Calixto quem interrompeu aquele lúgubre silêncio.

- É debalde, senhor capitão-mor, - rosnou ele com voz convulsa levantando ao céu os punhos trêmulos e crispados; - é debalde! ... ninguém me tocará com esse vil instrumento! ... podem picar-lhe em pedaços, isto não me sujeitarei.

E lágrimas de fogo lhe saltavam aos pares dos olhos fuzilantes de cólera e desespero.

- Agarrem-no e cumpram a sentença, - disse terminantemente o capitão-mor dirigindo-se aos beleguins. Imediatamente estes agarram-se vigorosamente aos braços e Calixto e o vão arrastando para fora. Mal porém o paciente voltando as costas para a mesa tinha dado dois ou três passos cambaleantes pelo salão, seu corpo estirou-se rijo como barra de ferro, os dentes lhe rangeram horrivelmente, a fronte se lhe inundou em bagas de suor frio, os olhos se enrubesceram e dilataram como querendo saltar fora das órbitas, e ele teria caído redondamente no pavimento, se os dois beleguins, que o agarravam, não lhe amparassem a queda. Não fora aquilo um simples desmaio; o pejo, o desespero, o furor impotente e concentrado tinham determinado no organismo do brioso e infeliz mancebo a mais horrível e violenta crise nervosa. Helena, que no auge da angústia e do terror contemplava aquela sinistra e dolorosa cena, solta um grito lamentoso, com os braços estendidos, avança dois passos para seu amante, vacila e cai também desmaiada. Aflito e pressuroso Bueno corre em socorro dela, e a levanta ... nos braços vigorosos. Aquele triste e angustioso espetáculo aterra e compunge todos os espectadores. O próprio capitão-mor condoeu-se dos míseros mancebos, e exprobrou-se a si mesmo sua dureza e crueldade. Os emboabas mesmo naquele momento esqueceram sua animosidade contra os paulistas, e acercaram-se dos dois

jovens desmaiados cheios de solicitude e comiseração.

Mas foi sobretudo no coração de Afonso, que essa deplorável cena produziu a mais amarga e violenta impressão. Não tinha ele ainda perdido os seus naturais bons instintos a despeito do quotidiano cuidado que Fernando empregava para corromper-lhe o coração. Considerava que ele fora o provocador, a causa primordial e culposa daquele triste acidente, que sem ele não se teria dado, e sentia remorso e pejo de si mesmo. Queria perdoar de todo, não como a pouco para ter ensejo de vingar-se por se mesmo, mas para reparar uma desgraça, que lhe pesava na consciência. Foi portanto impelido pela mais sinistra e profunda emoção, que se resolveu a falar a seu pai intercedendo por suas desditosas vítimas.

- Meu pai - exclamou ele com voz comovida mas firme e resoluta, - o perdão ou deve ser completo ou nenhum. Se julga que merece a pena da lei, aplique-a em todo o seu rigor; desterre esse moço. Mas se quer perdoar, como é o meu desejo, mande já pô-lo em plena liberdade, e quando não, castigue-me a mim também, que eu tão culpado como ele.

Os circunstantes acolheram estas palavras com murmúrio aprovador. Fernando olhou de esguelha para seu primo.

- Que parvalhão ! - refletiu ele, - mas enfim que me importa! porque me embaraça, que esse biltre seja ou não castigado. Fique por cá a Helena, e as coisas irão seu caminho.

O capitão-mor, que a muito custo representava o papel de homem severo e rigoroso naquele negócio, sentia abrandar-se a sua cólera e folgou de achar um pretexto de mostrar-se mais humano e misericordioso.

- Pois bem, - disse ele depois de ter conversado em voz baixa com Fernando por alguns instantes, - acabemos com isto; já que assim o querem, soltem esse mancebo juntamente com o velho. Helena porém ficará por enquanto em nossa casa.

Em vão Bueno rogou, e Maurício e o próprio Afonso intercederam, para que Helena acompanhasse seu pai; o capitão-mor entendeu que tanta condescendência era excessiva, e revelava nímia fraqueza de sua parte. Por tanto mostrou-se inabalável, com o que Fernando, que o insuflava, muito folgou.

Maurício, que ali viera também para interceder em favor das vítimas, viu com prazer aquele negócio terminar-se felizmente sem ser precisa sua intervenção. Helena, com os socorros que lhe prestaram, em poucos instantes recobrou os sentidos; mas Calixto, hirto e lívido, conservava-se imóvel estendido sobre a pavimento como um cadáver, a que só faltava a mortalha.

Helena, mal abriu os olhos, lançou-se sobre ele ululante e em soluços, e com suas lágrimas e beijos conseguiu chamar à vida o amante, a quem socorros estranhos nada tinham aproveitado.

- Vai-te em paz, bom velho, - disse o capitão-mor a Bueno; - não te dê cuidado a tua filha que aqui nenhum perigo corre, e nem será maltratada. Toma cuidado, em que tua casa. não se torne mais ponto de reunião de vadios e turbulentos, e vai-te em paz tratar de forjar teus ferros.

- Sim, maldito emboaba, - resmungou consigo o velho bronte; - esse será o meu cuidado; tratarei de forjar ferros bem agudos e temperados, que te rasguem as entranhas a ti e a todos os teus.


Capítulo VI

Começo de conspiração

É impossível descrever o estado, em que Bueno e Calixto voltaram para a casa. Iam silenciosos, arrancando das entranhas, de quando em quando, surdos e profundos suspiros. Nada tinham que dizer, nem explicar um ao outro; o fel, que estava no coração de um, também fervia no coração do outro; ambos esses' corações sangravam igualmente ao golpe do mais vivo e cruel ultraje, e sem se falarem compreendiam-se admiravelmente. Assim foram caminhando sempre taciturnos, ora cabisbaixos e sombrios, ora fitando os olhos no céu como invocando o castigo de Deus sobre a cabeça de seus perseguidores.

- Que iremos fazer agora, padrinho  - perguntou Calixto ao chegarem em casa.

- Ainda perguntas ? - replicou o velho. – Que havemos de fazer senão armas? ... armas bem fortes e agudas para rasgarmos o coração de nossos perseguidores. Nossas afrontas têm de ser lavadas no sangue do emboaba, meu filho, e isso mais breve do que pensas.

- Pronto! pronto! padrinho, mãos à obra! também eu mais que ninguém tenho sede desse sangue...

Passaram-se alguns dias de morno e lúgubre sossego. Havia entretanto no fundo desse aparente remanso, a cousa como um sussurro surdo e profundo, que pressagiava próximo temporal. Fernando. reativava suas medidas vexatórias contra os paulistas. As reuniões e caçadas lhes eram de novo proibidas, e só às escondidas e misteriosamente podiam agrupar-se para se queixarem dos males e perseguições, que sobre eles pesavam, e consultarem-se sobre os meios de lhes opor um dique.

Os forasteiros tornados cada vez mais insolentes provocavam e insultavam constantemente aos paulistas. Estes, por conselho de seus chefes, procuravam conter-se e abafavam seu ódio; mas nem por isso deixava de ir todos os dias um deles, por delações de seus inimigos, encher a prisão e alisar o tronco.

Gil julgava-se já desobrigado da promessa, que fizera a Maurício, de nunca provocar, antes procurar acalmar as animosidades. Tornara-se todavia mais avisado e discreto, e tratava de preparar os elementos para uma resistência mais séria e bem combinada. De todos os

seus patrícios, à exceção de Maurício, já não havia um só, que não votasse mortal aversão a tudo quanto português, e que não esperasse impaciente por um grito de revolta, viesse donde viesse, para lançarem-se como lobos esfaimados sobre os emboabas, e estrangulá-los  como as víboras. Estavam todos persuadidos, que se não quisessem ser algozes, seriam inevitavelmente vitimas de seus adversários. Podiam contar também como auxiliares muitos escravos índios e africanos, que comungavam no mesmo ódio contra os emboabas, e que estariam prontos a insurgirem-se ao primeiro sinal. Faltava-lhes porém combinação; faltava-lhes um chefe hábil e resoluto, que os pudesse levar à revolta com esperança de feliz resultado. Os elementos de discórdia se acumulavam de dia a dia, e ameaçavam prorromper em breve em terrível explosão. Gil bem o via, e atilado como era, bem compreendia, que se uma tal revolta viesse a rebentar por si mesma, sem combinação, sem plano traçado de antemão, em vez de melhorar a condição dos paulistas, viria por falta de resultado tornar ainda pior a sua já. tão deplorável situação.

Seu pensamento fixo foi pois organizar a insurreição de modo a garantir-lhe um pleno sucesso. Nesse intuito dizia continuamente a seus conterrâneos impacientes.

- Esperem; tenham um pouco de paciência; preparem-se, que em breve tomaremos cabal desforra desses zangões.

O chefe, que se apresentava ao espírito de todos como o mais popular, simpático e hábil, era seguramente Maurício; mas suas relações pessoais, e seu fatal amor pela filha do capitão-mor o manietavam, sopeavam-lhe os brios de paulista, e o tornavam suspeito à maior parte dos seus com grande mágoa e desgosto de Gil. Esperava este, contudo, que os acontecimentos arrojariam por fim a Maurício em hostilidade aberta contra o capitão-mor. A rivalidade e ódio de Fernando não tardaria em Cavar um abismo de separação entre ele e a família de Diogo Mendes. Este fenômeno todavia já por demais se fazia esperar. O negócio de Helena, tendo-se resolvido por uma maneira aparentemente pacífica, deixava Maurício nutrindo ainda suas vãs esperanças de quietação e concórdia, e sem ânimo de romper definitivamente com os emboabas.

Também por seu lado Gil, preso pela estreita e íntima amizade que o ligava a Maurício, via-se bastantemente embaraçado. Compreendia a melindrosa situação de seu amigo, e repugnava-lhe tomar uma atitude, que o iria colocar em hostilidade contra ele, fazendo guerra de morte àqueles, por. quem Maurício tanto se interessava, e a quem a todo transe procurava salvar do tédio de seus patrícios. Para ele, era claro que Maurício tomava a seu cargo uma tarefa impossível, querendo por meios regulares e prudentes compor as animosidades e acalmar os ódios; mas o amor é cego, e uma alma, que se alimenta essencialmente de amor, nada julga impossível. Impacientado soberanamente, Gil todavia deliberou esperar mais algum tempo, certo de que da casa do capitão-mor não tardaria a partir contra Maurício alguma afronta, que o fizesse voltar-se enfurecido contra aqueles a quem afagava.

Por prévio ajuste achavam-se reunidos na casinha de mestre Bueno, este, Maurício, Gil, Calixto e Antônio.

Era alta noite; em razão das medidas vexatórias e da espionagem exercida pelos agentes de Fernando não podiam os paulistas reunirem-se senão clandestinamente e com grandes precauções. O motivo, que agora reunia os cinco personagens, reclamava especialmente o maior segredo e circunspeção; iam tratar dos meios de se livrarem da opressão e vexames, que os emboabas, cada vez mais ávidos e insolentes, faziam pesar sobre os paulistas; era já o começo de uma conspiração. A noite estava tenebrosa, e eles achavam-se na varanda e às escuras. Posto que a casinha fosse bastante afastada e segredada do resto da povoação, era de lá avistada, e qualquer luz ou fogo, que acendessem àquelas horas, poderia despertar suspeitas.

O jovem Calixto, até ali tão lesto, jovial e expansivo, depois da afronta, de que fora vítima, e depois que não via mais Helena a seu lado, tornava-se sombrio e taciturno; aquele golpe o havia fulminado; em sua alma sonhava rancor e pesadume, e mais parecia um ancião desventurado, do que o belo e vigoroso mancebo de há poucos dias.

O leitor não deve estranhar que Antônio, sendo um pobre índio escravo, tomasse parte em conchavo e deliberações de tanta importância e melindre como as de que se ocupavam nessa ocasião. O leitor terá compreendido que Antônio não era propriamente um escravo, Mas o companheiro fiel, o amigo de Maurício. Discreto e perspicaz, além de fiel e dedicado, merecia-lhe toda a confiança. O capitão-mor, que era o seu verdadeiro senhor, ou porque pouco se importasse com Antônio, ou porque atendesse à afeição, que desde menino o ligava a Maurício, lho tinha inteiramente abandonado, e o índio, aproveitando-se desta liberdade, jamais se separara de seu patrão moço. A cooperação de Antônio na empresa, a que pretendiam atirar-se, era não só útil, como mesmo, indispensável.

- Creiam, meus patrões, - dizia o velho ferreiro batendo com a mão áspera e tisnada sobre o peitoril da varanda, - é só a força de ferro e fogo que estes lobos esfaimados de ouro nos darão sossego e liberdade. Já tenho mais de quarenta zagaias com suas competentes choupas bem aguçadas para vararem as tripas de quarenta emboabas, e estou concertando um resto de escopetas, punhais e espadas, que aí tinha; por falta de armas não havemos de nos sair mal. Velho assim mesmo ainda conto mandar ao inferno uma boa dúzia desses cães tinhosos.

- Cá por mim, - exclamou Calixto, - só espero que se dê a voz de mata emboaba. - Ninguém mais do que eu tem sede do sangue desses malditos.

- E Antônio também está pronto, - disse o índio a seu turno. - Sua escopeta não nega fogo e sua flecha, que vara o couro rijo da anta e da suçuarana, é capaz de trespassar dez emboabas de um só tiro ... Mas contra meu patrão velho, - Antônio não sabe mentir e fala.

com o coração na boca, - contra ele e minha sinhá Leonor, Antônio nunca há de levantar a mão. Ele é meu pai; foi ele quem me deu este irmão, que aqui está, - terminou apontando para Maurício.

- Ah! sim! - retorquiu vivamente Calixto, tu esperas ainda, que essa mão, que hoje te afaga, te esbofeteie, para amanhã te vingares! ... espera, Antônio, espera, que não tardará a tua vez. Ainda arrancando-lhes o coração não cevo bastante o ódio, que tenho a esses malditos. Se ainda se contentassem com o ouro, que nos roubam ... mas não; querem nos governar dentro de casa; querem ter o direito de vir requestar em nossas casas e a nossos olhos nossas noivas, nossas mulheres, nossas filhas, e se os repelimos, somos castigados com prisão, com tronco, com bolos, além de no-las roubarem !... Ah! isto não se pode aturar por muito tempo sem rebentar de raiva e desespero ! ...

- Calixto diz a pura verdade, - ponderou Gil. - Aqui estão três, que lá têm enclausuradas as suas amantes por um mero capricho de nossos tiranos. Maurício, julgas que jamais poderás obter a tua Leonor, por mais que ela te ame, sem mover guerra aberta e implacável ao capitão-mor, ou pelo menos a esse Fernando, que te disputa com a superioridade, que lhe dá o Merecimento, o parentesco e a posição, que ocupa junto a Diogo Mendes? .. E tu, Antônio, saberás me diz, qual a razão porque nos não querem restituir Judaíba ? ...

- Não sei, - respondeu o índio, - mas eu vou lá sempre, e sei que Judaíba é e será sempre de Antônio, e ai de quem tiver o atrevimento de querer tomar-lha !... sinhá Leonor já prometeu que Judaíba havia de se casar com Antônio.

- Que esperança! - exclamou Gil; - o capitão-mor não duvido, que condescenda com esse inocente desejo da filha; mas lá está o implacável inimigo de teu amo; lá está Fernando, que te detesta pelo simples fato de tua amizade e dedicação a Maurício, e Fernando é ali quem põe e dispõe de tudo. Dá graças a Deus, Antônio, se abusando de sua simplicidade de selvagem não tentaram pervertê-la ...

- Não fale assim, meu branco, - bradou o índio, levando a mão convulsa ao cabo da faca; - ai daquele, que ousar tocar em um só fio dos cabelos de minha Judaíba! esta faca irá beber-lhe todo o seu sangue.

- E tu, Calixto, - prosseguiu Gil, - consentirás que lá fique a tua Helena em poder deles, em companhia de dois moços dissolutos e libertinos? poderás dormir tranqüilo um só momento, sem que te sangre o coração de rancor, de inquietação e de angústia mortal, enquanto a noiva de tua alma se acha entregue às mãos daqueles algozes, ladrões da propriedade, do sossego, da honra e da felicidade de nós todos ? ... Não, não pode haver mais contemplação; já demais temos tragado o fel da humilhação, do desprezo e da mais tirânica perseguição. Ficam-nos três partidos a escolher;  ou havemos de nos retirar todos abandonando à cobiça e ambição de nossos perseguidores estas ricas minas, que nossos patrícios descobriram arrostando mil riscos e fadigas; ou nos devemos entregar a eles como escravos, nós e tudo quanto é nosso, trabalhando para enriquecê-los, sujeitando-nos pacientemente ao tronco, aos bolos, aos açoites e a todas as ignomínias; ou por fim havemos de nos rebelar contra tão odioso jugo, e obrigá-los à viva força a respeitar nossas pessoas e nossos direitos. Destes três alvitres o primeiro iria satisfazer plenamente os desejos de nossos opressores; o segundo é impossível; nenhum de nós, eu o afianço, nenhum haverá, que o não repila imediatamente, e que não repute uma afronta só o propô-lo. Não nos resta pois senão o terceiro.

Maurício, sombrio e triste, escutava silenciosamente aqueles desabafos de cólera e indignação, que rompiam dos lábios de seus amigos como lavas ardentes arrojadas ..de uma cratera em terrível explosão. Bem via que estava cheia a medida da longanimidade e paciência de seus conterrâneos, e que não lhe seria mais possível ''Opor um dique aos ódios, que ameaçavam irromper com furiosa exaltação. Sua situação era a mais crítica e ,difícil que se pode imaginar. Homem de grande importância e altamente considerado entre seus patrícios não podia conservar-se neutro em qualquer conflito, que rebentasse entre eles e os emboabas muito menos lhe era permitido abraçar o partido destes sem cobrir-se de opróbrio incorrendo na mais infame deslealdade para com seus patrícios. Por outro lado estavam a gratidão e lealdade, que devia a Diogo Mendes, e o amor extremoso, :;profundo, imenso, que consagrava à sua filha. Acabrunhado pela situação difícil e inextricável, em que seu destino o colocara, Maurício embaraçado não sabia o que deveria dizer a seus companheiros, nem como acolher suas frases repassadas de ódio e espírito de vingança. Bem quereria guardar silêncio; mas esse silêncio seria mais significativo que tudo, e era forçoso que se explicasse francamente afim de não inspirar desconfianças.

- Meus amigos, - disse ele por fim, - eu também participo de vossa indignação e ressentimento contra nossos opressores: o jugo de feito está se tornando insuportável, e não serei eu que tentará amortecer vossos brios de paulistas aconselhando à humilhação e a ignomínia; não; mas espero, que não porão em dúvida minha lealdade e dedicação, se eu lhes disser, que ainda não perdi de todo a esperança de terminar pacificamente estas desavenças e opor sem luta um paradeiro aos vexames, de que somos vítimas.

- Mas como ?... como ?... como ? ... esta pergunta rompeu simultaneamente dos lábios dos companheiros.

- Como ? ...  eu já lhes digo. Amanhã irei jogar a última cartada; procurarei o capitão-mor e lhe pedirei audiência particular; tentarei abrir-lhe os olhos falando-lhe com toda a franqueza, expondo-lhe sem rebuço o que sinto. Pedir-lhe-ei, que sejam postos em liberdade Helena e Judaíba, e que ponha cobro às insolências e desaforos de seus patrícios, que nos querem roubara um tempo a fazenda, o sossego e a honra. Se me ouvir com atenção e benevolência, ainda o mal não é sem remédio; se porém fizer pouco caso de minhas advertências e requisições, fica-nos a liberdade de lançar mão de recursos extremos para nos desforçarmos e defender nossos direitos ofendidos e espezinhados. Portanto, lhes aconselho ainda um pouco de resignação e paciência. E só por um dia, meus amigos; espero que por tão pouco tempo não lhes será difícil conter sua justa impaciência.

Bueno e Calixto abanaram. a cabeça.

- Vá lá, patrão, - exclamou mestre Bueno; é mais um dia perdido, mas ... paciência!... tão, certo como eu ser filho de minha mãe, Vm. vai perder seu tempo; no entanto, para não perder de todo o meu, vou malhar os meus ferros e dar têmpera as nossas armas, por que estou certo, que só quando elas falarem, o capitão-mor nos dará razão.

- Qual capitão-mor, padrinho! - retorquiu Calixto; - não há de ser ele, que nos há de dar razão. Depois que lhe cortarmos a cabeça e a toda sua gentalha ...

Neste ponto Calixto foi interrompido por um singular rumor, que vinha do lado de fora da varanda. Era'o tropel de uma pessoa, que se avizinhava arquejante e a passos acelerados. Ainda durava o sobressalto, que naquela ocasião naturalmente produziria tão inesperado rumor, quando a pessoa, que se avizinhava, penetrou rapidamente na varanda. Todos sobressaltados levaram a mão às armas.

- Ah! és tu, minha Judaíba ! - exclamou Antônio, que primeiro que todos reconheceu a sua amante, e precipitando-se ao encontro dela sustinha nos braços a índia quase a desfalecer de fadiga.

- O que te aconteceu ? ... fala Judaíba ... o que vieste fazer aqui ? ...

A índia não respondia; arquejante e opressa de cansaço deixou-se escorregar dos braços de Antônio e sentou-se no chão. Os circunstantes se acercaram dela cheios da mais ansiosa curiosidade e inquietação dirigindo-lhe perguntas sobre perguntas; mas a pobrezinha . esteve por muito tempo a arquejar sem nada poder responder.  Enfim, depois de repousar alguns momentos instada por Antonio, contou-lhe em poucas palavras e com voz entrecortada e balbuciante em dialeto carijó, o que vamos narrar ao leitor mais por miado no seguinte capítulo.


Capítulo VII

Turpe senilis amor

O capitão-mor, apesar dos seus cinqüenta e tantos anos, era ainda homem vigoroso e bem disposto; o coração palpitava-lhe ainda quente e alvoroçado ao aspecto da mulher formosa, e era com bastante pesar seu, que se resignava à insipidez e isolamento da vida celibatária.

De a muito pensava em contrair segundas núpcias, e se até então não o fizera, de certo não era, que lhe tivessem faltado noivas. Rico e ilustre de nascimento, tendo enviuvado ainda moço, não lhe faltariam vantajosas alianças; mas à força de querer muito escolher foi deixando correr o tempo e procrastinando a satisfação desta necessidade de seu coração até a idade, em que o achamos, isto é, já um pouco tarde. No isolamento em que se achava colocado em um país novo, bronco e sem sociedade, ainda mais triste se lhe tornava a solidão do lar doméstico, ao passo que lhe era impossível achar naquelas regiões um consórcio na altura de seu nome.

Nestas conjunturas, uma singular fantasia apoderou-se de seu espírito. Judaíba, como já vimos, era um dos tipos mais belos e regulares de sua raça; catequizada, doutrinada e enfeitada por Leonor, que cada vez mais se esmerava na educação da filha de Irabussu, ia-se transformando em gentil e engraçada rapariga. À força de vê-la todos os dias em companhia de sua filha, o capitão-mor foi pouco a pouco se deixando cativar dos encantos de sua linda e voluptuosa figura, e ficou verdadeiramente enamorado de Judaíba.

Uma vez rendido o coração todas as mais conveniências, todas as considerações de qualquer ordem que sejam, cedem-lhe o passo e transigem facilmente com as exigências desse caprichoso tirano chamado amor. Diogo Mendes, que enfatuado de sua fidalguia fora até ali o mais difícil e escrupuloso na escolha de uma esposa para si ou para qualquer pessoa de sua família, sem grande relutância concebeu e afagou em seu espírito a idéia de desposar uma pobre selvagem, apanhada a laço no mato. Cumpre todavia notar que para pô-lo de acordo com os seus preconceitos nobiliários, com a sua consciência de fidalgo, havia uma circunstância mui favorável e justificativa. Segundo muitas vezes tinha ouvido dizer a Antônio, Judaíba também era fidalga, senão de escudo e braça d'armas, ao menos de kanitar e tangapema. Irabussu, seu pai era um ilustre pajé, o que era entre os indígenas um título da mais alta distinção, e se quisessem bem esmerilhar-lhe a linhagem, talvez descobrissem, que descendia dos troncos dos famosos Anhanguéras e Tibiriçás. Diogo Mendes, além disso, tinha a seu favor o exemplo de seu conterrâneo, o Caramurú, Ilustre cavalheiro, que não teve escrúpulos de desposar a gentil Paraguassú.

Entretanto, o velho fidalgo, posto que estivesse inabalável no seu propósito, não ousava comunicá-lo nem a Fernando nem a seus filhos, receando que tentassem demovê-lo de sua idéia. Pretendia não lhes dar parte de cousa alguma, senão depois que tudo estivesse concertado e preparado, e surpreendê-la com o fato consumado.

Estava em sua mente resolvido o problema de seu himeneu; só faltava comunicar à noiva esta sua resolução e este passo no seu espírito estava em último lugar, porque não lhe passava pela cabeça, que a índia recusasse a sua mão, e mesmo quando mostrasse alguma repugnância, forçoso lhe seria obedecer à sua autoridade.

No dia, portanto, em que Judaíba esbaforida se apresentara em casa de mestre Bueno, ao cair da noite, o capitão-mor', aproveitando uma ocasião oportuna, havia falado a sós com a índia, e com termos insinuantes e maneiras afagadoras a fizera ciente de seu projeto. Custou

muito a Judaíba entender a verdadeira intenção do capitão-mor, e só depois que este, pondo sua destra sobre a dela, fez-lhe sentir bem ao vivo que queria casar-se com ela procurando abraçá-la, foi que ela compreendeu tudo, e fitando nele os olhos espantados disse-lhe abanando vivamente a cabeça:

- No ! no! no! Judaíba é de Antônio, - e voltando-lhe as costas fugiu precipitadamente e foi refugiar-se trêmula e assustada junto de Leonor, como a tenra veadinha, que ouvindo rugir a pantera corre e abrigar-se junto de sua mãe. Embalde Leonor vendo-a assim ofegante e sobressaltada, interrogou-a com a maior instância, a desconfiada e arisca caboclinha nada lhe quis responder; foi-se afastando sorrateiramente do lado de sua ama, e daí a meia hora, quando a procuravam por toda a casa, tinha desaparecido.

Judaíba, aterrada com a proposta do capitão-mor, como se tivesse sido ameaçada de açoites, tinha fugido. A fuga lhe foi fácil; por sua docilidade e bom comportamento gozava a muito tempo da mais ampla liberdade em casa de Diogo Mendes, e também nenhum interesse tinha em fugir daquela casa, onde era tratada com toda a bondade e carinho, e onde via todos os dias o seu querido Antônio.

Judaíba em primeiro lugar dirigiu-se à casa de Gil, mas encontrando-a deserta e trancada, correu à de Maurício; o mesmo dissabor ali a esperava. Refletiu um momento e lembrou-se de mestre Bueno, cuja casa, uma das raríssimas, que lhe eram conhecidas na povoação, sabia que costumava ser freqüentada por Antônio, Gil e Maurício, únicas pessoas, a cuja sombra poderia encontrar algum amparo. Para lá correu, e lá a vimos chegar arquejante e extenuada de susto e de cansaço.

Antônio, sabendo da boca de sua amante as intenções do capitão-mor, ficou transido de espanto e de indignação e quase não podia dar crédito ao que ouvia.

- Deveras, Judaíba ? ! - exclamava ele; - o capitão-mor, o senhor Diogo Mendes te disse isso? ... como pode ser isso? ... ouviste bem o que ele disse? ... ah ! - continuou voltando-se para os companheiros, - estão ouvindo, meus patrões! ... chegou também a vez de Antônio. O patrão velho quer também roubar-me Judaíba para casar-se com ela! ah perros! cães malditos! ... agora é com Antônio, que vos haveis de haver!... De hoje em diante, meu amo senhor Maurício, minha raiva não faz mais escolha de ninguém; minha primeira flecha é para o coração do maldito velho.

- E o meu primeiro tiro é para a cabeça de Afonso, - disse Calixto.

- E o seu, patrão, e o seu ? - perguntou vivamente Antônio.

- Todos os meus tiros não serão empregados senão contra nossos inimigos, mas...

Nova tropelada de gente, que se aproximava, veio ainda uma vez interrompê-los; desta vez porém o rumor era mais intenso e ruidoso, e entremeado de vozes de homens que falavam entre si. Era uma escolta de esbirras, que o capitão-mor', tendo dado pela falta de Judaíba, tinha expedido em procura dela. Depois de a terem procurado em vão por todo o povoado, enfim por indicação de alguém, que a tinha observado, vieram ter à casa de mestre Bueno. Quatro malsins completamente armados penetraram bruscamente na varanda do ferreiro, enquanto outros quatro cercavam a casa por todos os lados.

- É aqui, camaradas! - bradou um deles, - é aqui que a lebre se amoitou.

- Cá está ela, se me não engano, - gritou outro lançando mão de Judaíba, que tinha lobrigado nas trevas; - é ela, não pode ser outra; toca a amarrá-la.

- Alto lá ! - bradou Antônio avançando de um pulo e com um empurrão atirando para longe o esbirro, que segurava Judaíba.

- Quem é este atrevido! ? - rosnou o alguazil arrancando a chavasca e atirando-se para Antônio.

- Sou eu, que não consentirei nunca, que vossemecês ponham as mãos nesta mulher, nem que me façam em postas, ouviu ? ...

- Oh ! isso é o que vamos ver! como está valentão ...

- Se sou valente ou não, cheguem-se e verão, replicou Antônio puxando a faca e colocando-se como um bularte diante de Judaíba.

- Que vais fazer ... Antônio ! - disse Maurício em meia voz achegando-se do índio. - Por essa maneira te pões a perder a ti e a nós todos. Deixa-os levar Judaíba; eu te asseguro, que ela nunca será do capitão-mor.

- Oh! bem os estou conhecendo a vossemecês todos, senhor Maurício, senhor Gil! - disse um esbirro.

- Foram vossemecês por certo, que desencaminharam esta cabocla, e a induziram a fugir; o senhor capitão-mor há de ser sabedor de tudo.

- Pouco me importa, senhores malsins, - respondeu Gil com indignação, - que o capitão-mor seja ou não sabedor do que está se passando; esta índia me pertence, e eu estaria em meu direito, se a tirasse da casa do capitão-mor, que m'a  roubou. Não tenho que lhes dar satisfações, mas sempre lhes direi, que ela aqui apareceu não há muito tempo sozinha e de seu moto próprio, e sem: conhecimento nosso.

- Seja lá como for, - replicou o esbirro, - quer vossemecês queiram, quer não, donde saiu, para lá tem de voltar neste momento. Anda, rapariga! ... toca para a casa.

- Devagar com isso, senhores esbirros ! - tornou Gil com ligeiro e sarcástico sorriso, - olhem que essa menina não se toca assim como uma rez do campo; mais comedimento ! ... não sabem que ela é a mimosa de D. Leonor, e está para ser a esposa do ...

- Nunca! nunca o será! - atalhou com um brado furioso Antônio, a quem o sarcasmo de Gil, que os esbirros não compreenderam, havia amargado cruelmente. - Nunca o será; eu o juro por este punhal, e por Deus, que nos escuta.

Depois de alguns instantes de silêncio acalmando-se e voltando-se para a índia:

- Vamos, minha Judaíba, - disse-lhe em voz baixa; volta para a casa de nossos patrões; ainda não é tempo de sair de lá. Antônio te vai acompanhar, para que estes malditos não judiem contigo. Vamos; mas Antônio te jura, ou ele tem de morrer, ou em poucos dias ficaremos livres, livres para sempre deles ... Vamos, camaradas, - continuou em voz alta dirigindo-se aos esbirros, - eu quero acompanhar esta menina, e ai daquele, que tentar maltratá-la.

- E eu também irei.

-                E mais eu, - disseram sucessivamente Maurício e Gil, e os três amigos, seguindo a escolta, desceram o Morro do Lenheiro, e acompanharam Judaíba até a porta da casa do capitão-mor.

-                 


Capítulo VIII

Indícios e suspeitas

Diogo Mendes e Fernando ficaram impressionados e pensativos com as informações, que lhes trouxeram os apreensores de Judaíba a respeito do lugar onde a acharam e das pessoas, com quem a encontraram. Fernando, ou por que de fato receasse algum plano de sublevação, ou porque não quisesse deixar passar ensejo algum de chamar o ódio e a desconfiança sobre Maurício, Gil e todos os paulistas, procurava fazer compreender ao capitão-mor todo o alcance de um fato, que simples na aparenta, todavia bem considerado dava lugar a graves suspeitas a respeito .dos indivíduos que ali se achavam reunidos.

- Este fato, senhor, - dizia Fernando em tom convicto e veemente, - é para mim sintoma evidente de que esse seu tão estimado Maurício não é estranho ao ódio e rancor, que nos votam seus patrícios. Trama-se alguma cousa, acredite-me; Maurício e seu amigo Gil são homens perigosos entre essa chusma de paulistas aventureiros e de bugres turbulentos e indomáveis; são bandidos, que por maneira alguma se querem submeter ao jugo das leis, homens sem família, sem lar e sem pátria, capazes de por tudo a ferro e fogo para sacudirem o jugo da autoridade, e se enriquecerem sem trabalho à custa de roubos e depredações. Senão diga-me, senhor capitão-mor, com que fito poderiam estar reunidos a tais deshoras esses homens em casa do velho ferreiro, que de certos dias a esta parte deve nos trazer atravessados na garganta, bem como o seu companheiro, que não pode levar-nos a bem o conservarmos em nosso poder a sua amasia ? ...

- São amigos, Fernando, - respondeu tranqüilamente o capitão-mor, cuja natural bonomia e seguridade era difícil de se abalar. - São amigos, estariam conversando e fazendo o seu serão em muito boa paz; não vejo nisso nada de extraordinário.

- Mas como a índia foi direito lá ter ? ... adivinhou acaso, que eles lá se achavam ? ... esta fuga da índia não lhe parece a vossa mercê um fato conluiado talvez entre ela e Antônio ?

- Oh! por esse lado não tenha receio algum, meu caro sobrinho, - replicou suspirando o capitão-mor, que bem sabia o verdadeiro motivo do desaparecimento de Judaíba. - Com que fim viria o Antônio roubar-me a índia, se ele tinha entrada franca nesta casa ? ... - Com que fim ? ... esperam talvez colher dela informações que sejam úteis a seus planos, ou talvez pô-la  a salvo para melhor poderem nos atacar. A própria Helena, se não tivéssemos o cuidado de encerrá-la todas as noites, talvez também já se tivesse evadido.

- Já te disse, Fernando; não te dê cuidado a fuga da índia ... eu sei a que ela é devida.

- A que é pois ? ...

- Depois o saberás ... um motivo insignificante ... ralhei com ela pela primeira vez... sabes como é tímida ...  fugiu de medo.

- Ah ! mas as palavras insolentes do Gil e o atrevimento do bugre, que não queria entregá-la ? ...

- O Gil é conhecido como um estouvado, um fanfarrão, que não sabe o que diz; o bugre sempre é um bugre.

- E vossa mercê sempre será um cego, porque não quer ver.

- E vossa mercê à força de querer ser lince vê demais, vê até o que não existe. Não pode ver dois ou três paulistas juntos, que não enxergue por detrás deles o fantasma da conspiração, que tanto o aterra.

- Pois bem, já que assim o quer, esperemos, que os acontecimentos lhe venham abrir os olhos talvez já quando o mal não tenha remédio, quando o ferro e o fogo rodearem esta habitação, quando...

- Ora deixa-te de tolas apreensões, - interrompeu o capitão-mor com uma grossa risada; - na fuga de uma pobre índia enxergaste um trama, o que mais não verás? ... Quanto a mim, enquanto Maurício estiver a meu lado, nada receio da parte dos paulistas; eles o estimam e respeitam muito, e Maurício, estou certo, nunca será contra mim.

- Meu Deus! que estulta e invencível cegueira a deste velho! - murmurou Fernando consigo. - Senhor, - continuou em voz alta, é deplorável o engano, em que se acha. Esse Maurício, em que tanta confiança deposita, será talvez o primeiro a atraiçoá-lo.

- Maurício! impossível! um mísero órfão, a quem estendi a mão para tirá-lo do nada, e que me deve tudo quanto é, Maurício, que eu criei em minha casa como um filho!... não creias tal, Fernando ! ... Maurício tem muita lealdade e nobreza d 'alma e não será capaz de tão infame aleivosia.

- Espere os fatos, já que assim o quer; a víbora, que vossa mercê acolheu no seio, não tardará a fazer sentir o veneno de seu dente.

- E quem te assegura isso ? como sabes ? - perguntou o capitão-mor um pouco abalado pela insistência e tom de convicção, com que falava Fernando.

- De nada sei positivamente; mas há certos sintomas, que não podem enganar . Vossa mercê há de ter notado a submissão toda aparente, com que estes paulistas se curvam há dias a esta parte a todos os bem merecidos rigores, a que os temos sujeitado, eles de ordinário tão turbulentos e atanados. Desde a prisão de Calixto e Helena nada se rosna, não há o menor sussurro, a. menor manifestação de descontentamento da parte desse bando de aventureiros até aqui tão intratáveis e arrogantes ! ... Gil não fala mais em reclamar Judaíba, que diz ser sua; e que segundo afirma vossa mercê, fugiu tomada de um medo pueril. Bueno e Calixto também, não se queixaram e nem se lembram de nos pedir a liberdade da filha e amante, que está em nosso poder, e andam por aí taciturnos e amuados, sabe Deus com que intenções. Quem nos diz, que esses homens ferozes, que nada têm a perder e de tudo são capazes, não andam por aí em conciliábulos noturnos e clandestinos tramando a nossa perdição! ? ... Não duvido que a fuga da índia nada signifique, mas a reunião desses homens a tais deshoras em casa de Bueno... isto significa muito, e eu como que ouço através desse silêncio um murmúrio subterrâneo e sinistro, precursor de furiosa erupção.

Bem vejo, que não deixas de ter bastante razão para assim pensar; - refletiu o capitão-mor algum tanto abalado em sua seguridade pelas observações de seu secretário. - Eu mesmo não tenho deixado de estranhar essa calmaria dos ânimos, que me parece fictícia, e não deixa de ter o que quer que seja de sombria e sinistra. Mas o de que não posso capacitar-me, é que Maurício esteja envolvido ...

- Por que não ? ... o que estaria ele então fazendo hoje em casa do ferreiro ? ...

O capitão-mor ficou pensativo e nada respondeu.

- Esse homem, - continuou Fernando, - é talvez o mais perigoso e terrível de nossos inimigos; tenho motivos poderosos para assim pensar, não só por ser ele o mais hábil e audaz, como por outras circunstâncias, que mais tarde vossa mercê saberá.

- Mas não podemos julgá-lo assim por tão fracas aparências; devemos procurar provas mais positivas.

- Quer vossa mercê que a árvore da traição dê todos os frutos para depois cortá-la ? ...

- Não, não; cortemo-la, antes que medre. Fernando, é-nos mister toda a circunspecção e vigilância; se descobrimos o menor rastilho de sublevação...

- Bem sei o que nos cumpre fazer, - atalhou o arrogante secretário, cuja sobranceria subira de ponto desde que viu o capitão-mor um pouco abalado de sua natural calma e seguridade. Darei providências, que  lhes farão arder nas mãos o facho que preparam contra nós.

Fernando saiu deixando o capitão-mor entregue a mil sinistras apreensões. Posto que a noite já fosse muito adiantada, não pôde conciliar o somo. Os terrores que Fernando lhe lançara no espírito não eram sua única preocupação; o mau resultado de sua pretensão sobre Judaíba também muito o magoava.

-Todavia o caso não é ainda para desanimar disse lá consigo depois de muito cismar, - a menina é uma selvagem espantadiça e ainda muito criança; que muito é que se arrepiasse à primeira idéia de um casamento ! ... pouco a pouco se há de ir domesticando e acabará por familiarizar-se com a idéia... O Antônio é o mais sério embaraço, o Antônio, que ela parece

querer bem ... que belo rival tenho eu ? ... mas esse, louvado Deus, está removido por si mesmo. Ele também era da troça da casa de mestre Bueno, vou exterminá-lo para S. Paulo.

Enquanto Diogo Mendes adormecia entre estes pensamentos, Fernando também em seu leito embalava-se entre sonhos de vingança e perseguição contra Maurício e todos os paulistas. Tanto tinha o primeiro de simples e confiante, como o segundo de fino, astuto e desconfiado.


Capítulo IX

Rompimento

No outro dia Maurício, apesar das ocorrências que sobrevieram, não faltou ao que havia prometido a seus amigos, e bem cedo apresentou-se em casa do capitão-mor. Ia resolvido, como se sabe, a expor-lhe sem o menor rebuço toda a verdade, pintar-lhe ao vivo todos os sofrimentos e o profundo descontentamento de seus patrícios, e mesmo dos indígenas, que trabalhavam nas lavras dos portugueses; dizer-lhe, que aqueles não podiam descobrir uma data um pouco abundante de ouro, que os portugueses não a cobiçassem e não procurassem arrancar-lhes, já alegando falsos direitos, que sempre eram atendidos, já provocando conflitos, que sempre traziam em resultado a perseguição e prisão dos paulistas; que os bugres, esses, coitados! não podiam guardar para si nem um grão do imenso ouro, que tiravam, e gemiam debaixo do mais atroz e vigilante cativeiro. Representar-lhe-ia vivamente o perigo, a que se expunha oprimindo uma população inteira sem outra proteção, nem meios de defesa. senão os que são inspirados pelo desespero. Queixar-se-ia do novo sistema de opressão mais doloroso e vexatório ainda, que se ia introduzindo, qual era o bárbaro costume de arrancar as filhas a seus pais e a seus protetores natos para as terem em custódia em casa sem se saber por que, nem para que. Dir-lhe-ia, que os paulistas eram dóceis, e que com muito prazer tinham aceitado o governo do capitão-mor esperando que os viesse proteger contra as violências e esbulhos, de que de longa data eram vítimas da parte dos portugueses; mas que o contrário ia acontecendo, e cada vez mais pesado e insuportável ia se tornando o jugo, que os oprimia. Enfim pretendia fazer-lhe ver, que tudo isto provinha da funesta e maléfica influência, que sobre o espírito dele o capitão-mor exercia um homem embusteiro e perverso, que para desgraça daquela terra tinha vindo em sua companhia; que esse homem, que caprichava em torná-lo odioso a toda a população, era Fernando, seu secretário.

Por fim, pediria em nome de todos os paulistas providências, que pusessem termo àquele deplorável e assustador estado de coisas, e declararia que, se as não obtivesse, ver-s-ia obrigado a retirar-se, porque não desejava envolver-se nem responsabilizar-se por futuras calamidades.

A mais tempo Maurício deveria ter tomado essa nobre e enérgica resolução; agora já vinha um pouco tarde. Sabemos em que disposições vinha encontrar o espírito do capitão-mor profundamente impressionado pelas falas de Fernando.

Todavia solicitou e obteve ainda a honra de uma conversação com o seu velho protetor, mas foi recebido com tão desusada frieza e altivez, que cortou-lhe todo o aso de desenrolar a longa série de queixas e acusações, que trazia na mente.

- Então, que pretende de nós, senhor Maurício ? - perguntou secamente o capitão-mor. Este modo cerimonioso já começou a desconcertar a Maurício, não que este temesse o capitão-mor, mas estava acostumado a ser tratado por ele como um filho, com toda a lhaneza e afabilidade.

- Venho, - respondeu Maurício algum tanto embaraçado, - primeiramente cumprimentar à vossa mercê, e depois.  também... representar-lhe contra os abusos, agravos e violências, de que meus patrícios têm sido vítimas ...

- Ah! já sei, já sei, - interrompeu bruscamente o capitão-mor; - é escusado ir por diante. Seus patrícios já tomaram o pulso à minha nímia bondade, ou antes à minha fraqueza, desde que deixei impune a afronta revoltante, que fizeram a meu filho. Não vejo de que se possam queixar senão de seu próprio gênio turbulento e rebelde a todo jugo e disciplina legal. Querem viver a lei da natureza como dantes; isso não pode ser, por que não somos selvagens e nem viemos aqui para tolerar a continuação de semelhante estado. Quer queiram, quer não, hão de submeter-se ao rigor de nossas leis.

- Engana-se vossa mercê, - replicou Maurício, com dignidade, - estamos prontos a nos submeter ao império das leis; mas para nós outros paulistas não há lei, há só capricho e arbítrio para nos oprimir e vexar ao último ponto...

- Ah ! ... e é por isso que vossemecês se reúnem fora de horas a conchavar tramas e projetos de revolta ! ... O que fazia vossemecê senhor Maurício, ontem, a horas mortas, em casa de mestre Bueno com o Gil e outros amigalhões ? ...

- Pois, será também um crime achar-se um homem em casa de seu amigo?

- Sem dúvida!... a tais horas e em tal companhia, se ainda não é um crime, pelo menos faz desconfiar. A noite foi feita para o descanso, e quem a tais horas se acha em uma reunião dessas, a não ser em algum folguedo, dá muito que entender de si.

- Pode ser, senhor capitão-mor, mas eu protesto ...

- Não tem que protestar. O proíbo-lhe de hoje em diante toda e qualquer convivência com os seus patrícios se quiser vir ainda aqui e gozar de minhas boas graças. Também lhe ordeno, que me entregue o índio Antônio, que está ficando perdido no meio desse bando de aventureiros, com quem vossemecê anda.

Vê-se que o capitão-mor, apesar de nesta ocasião. procurar formalizar-se, tratava a Maurício como um fâmulo, ou como criança criada em sua casa.

- Quanto a Antônio, - respondeu Maurício, dar-lhe-ei a ordem de vossa mercê. Quanto porém ao que exige de mim, com pesar lhe digo, senhor capitão-mor, me é impossível obedecer-lhe. Não posso, não quero e nem devo renegar meus patrícios. Vivo no meio deles, me procuraram, me estimam, me rodeiam...

- Queres então ficar no meio de meus inimigos, e por conseguinte ser um deles ! ...

- De modo nenhum; eles não são seus inimigos; são perseguidos e queixam-se; são oprimidos e gemem, porque doe-lhas o jugo, que o senhor seu sobrinho faz pesar sobre eles mui de propósito para os atassalhar e levá-los ao extremo afim de melhor poder perseguí-los de novo e exterminá-los.

- Demos de barato, que assim seja; mas tu, Maurício, tu o que sofres ! não tem sido sempre estimado e considerado por mim  quem te persegue? quem te ameaça ? ...

- Por certo não é vossa mercê, senhor capitão-mor; porém seus patrícios e principalmente o senhor seu sobrinho me consagram ódio maior do que a nenhum dos meus, e eu não serei de certo poupado mais que os outros no dia da vingança e do extermínio; oh! estou bem certo disso ! ...

- E por que te envolves no meio deles ? ...

- Por que entendo que é meu dever; por que entendo que devo protegê-los e ampará-los nas conjunturas, em que se acham; por que entendo que seria uma infâmia abandoná-los.

- Pois então, senhor Maurício, haja-se lá com eles e não 'conte mais comigo, - replicou asperamente o capitão-mor enfadado com a linguagem altiva e independente de Maurício. - Quem é por eles, é contra mim...

O jovem paulista respeitava ainda e estimava muito o seu velho benfeitor, e sentiu-se profundamente magoado com aquelas ríspidas e duras palavras, quais nunca as havia ouvido de sua boca. Vinham elas lançar sinistras sombras em todo ó seu porvir, onde via eclipsarem-se todas as suas esperanças em carregada escuridão.

Maurício, porém, sumamente altivo e nobre, leal a toda prova, era incapaz de comprar sua futura felicidade a troco de uma infâmia. Não se quis humilhar, e com voz comovida, mas sonora e resoluta, disse:

- Senhor capitão-mor, sinto bastante que me retire a sua amizade e confiança; mas nunca me resolverei a conservá-la à custa de uma baixeza, abandonando e atraiçoando meus patrícios no infortúnio. Se não sou contra vossa mercê, também não posso ser contra eles. Nesta horrível conjuntura não sei o que faça; mas espero, que Deus me inspirará o que for de dever e de honra.

E sem esperar resposta comprimentou e saiu. Ao passar pela varanda encontrou-se com Fernando, que o saudou com um sorriso de maligno e pungente escárneo, como quem lhe dizia - vai-te, que de hoje em diante aqui nada vales.

Maurício retirou-se com o coração oprimido de despeito e de dolorosas e sinistras previsões. Começava a convencer-se de que tudo estava perdido, e que não restava meio algum regular e pacífico de conjurar a sua desgraça e a de todos os seus patrícios. Em casa encontrou Gil e Antônio, que o esperavam em ansiosa curiosidade.

- Não há remédio, - disse-lhes ao entrar; - é-me impossível de ora em diante deter a lava, que ameaça devorar-nos; deixo-os livres e entregues às inspirações de seu justo ódio; não há de ser mais Maurício que os estorvará na carreira da vingança; façam o que entenderem.

- Por essa já esperava eu ! - exclamou Gil; - mas tu, :Maurício, o que pretendes tu fazer ? ...

- Não sei, não sei, meu amigo, - murmurou o moço com voz angustiada lançando-se sobre um assento e escondendo a cabeça entre as mãos. Tenho a cabeça em brasa, e parece que se me rebenta o coração.

- Entretanto é preciso tomar uma resolução ... – Mas ... que devo eu fazer, Gil ? ... neste momento tenho o coração tão angustiado e a cabeça tão perturbada, que não sei deliberar ...

Pois bem, já que não te decides, vou declarar-te o que temos resolvido. Hoje, depois das dez horas da noite, na caverna de Irabussu, que bem conheces, estaremos reunidos eu, Bueno, Calixto e outros amigos afim de concordarmos nos meios que devemos empregar para sacudir o odioso jugo que nos vexa. Comparecerás aí, Maurício ? ...

- Lá estarei, - respondeu resolutamente Maurício levantando-se depois de alguns instantes de silêncio. Em todo o caso é esse o meu dever e o meu posto de honra.

- Muito bem ! - disse Gil abraçando-o; - muito bem, meu amigo! ... nem era de esperar de ti outro procedimento .

- E Antônio também lá se achará a seu lado, patrão, - exclamou o índio.

- Sem dúvida, Antônio; nunca me abandonaste no perigo ... Mas agora me lembro que o capitão-mor exige de mim que eu te entregue a ele, e bem sabes que não me pertences...

- Deveras ! ... e o patrão quer que eu seja entregue ? ...

- Eu não Antônio; bem sabes, que nunca te considerei escravo, como nenhuma criatura humana o pode ser. És livre, como eu e como ele; faze-o que quiseres...

Nesse caso Antônio breve lá irá, não para entregar-se, mas com o joelho cravado sobre o peito e o punhal alçado sobre o coração desse velho estonteado lhe irá bradar aos ouvidos: Entrega-me a minha Judaíba!


Capítulo X

Conciliábulo na gruta

O leitor já conhece a curiosa gruta de estalactites, que demora como a légua a meia de S. João d’el Rei, gruta, onde Irabussu sumiu-se para sempre como por encanto com o segredo de sua mina de fabulosa riqueza, e onde para sempre ficaram sepultados cinco dos portugueses que o acompanharam. Mausoléu soberbo, magníficas catacumbas tiveram por jazigo as ossadas obscuras desses miserandos instrumentos da cobiça de seus dominadores. É para lá que vamos de novo transportar o leitor.

Estamos em meio da noite, que sucedeu ao dia, em que Maurício teve a para ele tão desagradável conferência com o capitão-mor. No meio da sala, que se acha à entrada da maravilhosa caverna, está aceso um grande fogo; em torno dele sentados sobre pilares de estalactites, que brotam do chão como bases de colunas derruídas, ou sobre blocos de estalactites despencados da abóbada acham-se alguns vultos embuçados em largas capas e com chapéus desabados sobre os olhos. Por sua atitude grave e sombria, pelo modo misterioso, com que falavam entre si, bem se depreende que ali os reúne em negócio melindroso e de alta importância, e que interesse poderoso lhes preocupava profundamente o espírito. O clarão da fogueira lança reflexos avermelhados sobre rostos os mais divergentes entre si pelo tipo, pela cor e pela idade. A par do busto seco, rugoso e chamuscado de mestre Bueno. fulgura o semblante altivo, fresco e animado do jovem Calixto, cujos olhos negros e espertos trocam cintilações com os prismas de estalactites, que lampejam pelas paredes da gruta. Junto do bugre disforme e trombudo, de fronte achatada, de olhar vivo e sinistro divisa-se a fisionomia franca, resoluta e expansiva de Gil, cujo rosto alvo e regular se destaca vivamente no meio da espessa e negra barba. Antônio está entre um paulista de idade madura, de ar nobre e grave, e um negro mina de estatura colossal, cujos traços enérgicos e regulares abonam a inteligência, ânimo e altivez próprio dessa raça de africanos. Um pouco afastado e retraído para o fundo da gruta acha-se um cavalheiro em pé apoiando o cotovelo sobre uma estalagmite, que ali se ergue à guisa de mesa; tem o ar triste e acabrunhado, e escuta silencioso e pensativo. Distingue-se dos outros pelo porte esbelto e pela elegância do seu trajo e de sua pessoa; o clarão da fogueira iluminava-lhe frouxamente a tez pálida e ondeia reflexos bronzeados pelos anéis dos belos compridos e negros, que se lhe espalham por baixo do chapéu em volta de um pescoço digno do Apolo de Belvedere. Este cavalheiro é Maurício.

Estes são os chefes ou personagens principais daquela reunião. Por detrás deles murmuram e remoinham como fantasmas pela penumbra da caverna muitos outros vultos falando entre si com voz abafada e misteriosa, e suas falas se difundem em sons confusos pelo vão das profundas anfractuosidade como o surdo burburinho de uma catadupa subterrânea. As cintilações multicores das estalactites ao claro ondeante da fogueira, aquelas figuras sinistras e tão divergentes, umas sombrias e imóveis iluminadas de frente pelo fogo do centro, outras, em lento giro desenhando-se indecisamente entre sombras, sumindo-se e reaparecendo pelos vãos dos profundos e tenebrosos recantos, davam à gruta um aspecto fantástico indescritível. Dir-se-ia o palácio subterrâneo de algum nigromante de Ariosto, povoado de sombras e duendes, ou um concílio dos espíritos das trevas convocados pelo condão de alguma fada em lôbregos e selváticos esconderijos.

O espírito de insurreição de há muito que fermentava, e como que se organizava por si mesmo no seio daquela população oprimida. Em todos os corações levedava um ódio antigo e rancoroso contra os emboabas.

O paulista, o indígena e o escravo negro a custo .abafavam a sanha, que por isso mesmo se tornava mais violenta, esperando impacientes o dia da vingança. Os elementos estavam preparados para a mais horrível explosão, aguardando somente a mão audaz que lhes chegasse fogo.

Gil entendeu que era chegada a ocasião. Ele, como o leitor talvez ainda se lembra, no dia em que visitou aquela gruta juntamente com Maurício e Antônio, tinha tido como um pressentimento, de que ela viria a servir um dia para couto e ponto de reunião das vítimas dos emboabas. Foi ele, pois que lembrou e levou a efeito aquela reunião no misterioso e ignorado esconderijo da gruta de Irabussu, logo que convenceu-se que seu amigo Maurício não tinha outro remédio senão lançar-se nos braços da insurreição. Gil tinha em mestre Bueno um valente e ativo auxiliar, não só como hábil ferreiro e insigne armeiro, como porque ele conhecia e entretinha relações com todo o poviléu, paulistas, bugres e negros. Foi mestre Bueno quem passou a senha e a voz de alar-. ma a todos os insurgentes e lhes ensinou e guiou ao lugar, que lhes devia servir de ponto de reunião. Já de antemão tinha ele feito transportar para a caverna favor das trevas da noite grande número de zagaias, catanas, pistolas e escopetas velhas, que de tempos a essa parte o previdente velho ia concertando e ocultando em sua oficina.

Grande número de negros fugidos, que rondavam pelos arredores da povoação, foram avisados; tinham por chefe Joaquim, o mina hercúleo, de que a pouco falamos. Era ele escravo do Minhoto, bárbaro e desalmado senhor, cuja cubica explorava o trabalho dos míseros cativos a tal ponto, que os sacrificava sem compaixão em pouco. tempo; suas lavras eram um verdadeiro açougue de africanos e indígenas. Joaquim, ativo, hábil e robusto, era um excelente mineiro, e só ele apurava para seu senhor mais ouro do que três ou quatro de seus parceiros: mas nem assim era poupado mais dê que os outros. Do seu trabalho dos domingos, que passava a faiscar pelas margens do ribeirão, ia formando um pecúlio com que pretendia libertar-se, como já tinha ajustado com seu senhor, e que ia depositando fielmente em mãos dele em muito boa fé. Quando completou a soma ajustada, o negro requisitou sua carta de liberdade.

- Ainda não Joaquim; - replicou-lhe o senhor com céptico despejo: - tu fazes muito pouco em ti; vales o dobro de ouro, que me tens dado; é preciso, que trabalhes mais um ano.

O negro resignou-se, e sem se queixar trabalhou mais um ano; mas não satisfez ainda a insaciável cubiça de seu senhor. Revoltado com semelhante extorsão, declarou que não queria mais liberdade, e teve a audácia de exigir o ouro, que já tinha entregado. Em vez de

ouro recebeu descomposturas e castigos. Mas ainda isto não foi tudo. O Minhoto possuía também uma linda crioula, a quem o negro consagrava a mais viva paixão, e que por seu lado correspondia-lhe com ardor. Era ela, somente ela, quem fazia o pobre escravo suportar com resignação os rigores de tão bárbaro cativeiro. Um outro emboaba agradou-se sumamente da rapariga, e propôs a compra ao Minhoto, ficando tratado o negócio apesar do Minhoto pedir uma soma exorbitante. Sabedor disto, Joaquim, que de mais a mais tinha boas razões para crer que o comprador a queria para sua amasia, no cúmulo da angústia e do desespero, foi prostrar-se aos pés de seu senhor, pedindo-lhe com as lágrimas nos olhos,

que não vendesse a crioula, que ele daria por ela todo o ouro, que já tinha em suas mãos, e mais todo o ouro que tivesse aos domingos durante toda sua vida; e que se acaso não podia deixar de vendê-la, rogava-lhe por tudo quanto há sagrado que o vendesse também ao mesmo senhor. Foram inúteis as súplicas do pobre amante cativo; o desalmado senhor mostrou-se inexorável. Desde então o negro, até ali tão fiel, humilde e trabalhador, convertendo-se em tigre feroz, concebeu ódio de morte por seu infame senhor e por tudo quanto era emboaba, e enquanto esperava o dia de uma vingança cabal assentou de prejudicar, o mais que podia, a seu senhor, já não trabalhando com a mesma diligência, já. subtraindo, quanto podia, do ouro que tirava. Enfim para furtar-se aos castigos, em que incorria, fugiu e tornou-se chefe de quilombolas.

Não menos descontentes e rancorosos andavam os míseros índios, que trabalhavam nas lavras dos emboabas, e que ainda eram, se é possível, mais maltratados que o escravo africano. Ainda este, cuja aquisição ficava um pouco mais custosa aos senhores, era algum tanto poupado, e recebia um tal ou qual tratamento. O pobre bugre, porém, agarrado facilmente nas florestas do país, à força ou iludido por qualquer quinquilharia, tratado como um cão, gemia debaixo do mais rude trabalho, e era menos estimado do que um boi, do qual depois de morto ao menos a carne ainda é aproveitável. Ainda de mais a mais os índios eram vigiados e guardados com a mais restrita e rigorosa vigilância em razão do sobressalto, em que viviam os colonos com receio de que se unissem às troças indígenas, que vagueavam pelas imediações, e tentassem algum de seus costumados e atrozes assaltos à povoação.

O bugre, que vimos junto de Gil, era um desses ,desgraçados, que havia por longo tempo sofrido a escravidão dos brancos. Fora valente chefe de uma tribo caeté, e havia se posto corajosamente à entrada dos emboabas, que com Antônio Dias Adorno penetraram nos sertões de Ouro Preto. Derrotado porém e feito prisioneiro em um recontro com sua família e grande número de seus foi conduzido a S. Paulo, onde esteve algum anos, e daí foi levado a S. João, para onde o seu senhor viera com outros aventureiros explorar minas de ouro. Aí Tabajuna, - assim se chamava ele, - viu morrer sua mulher e quase toda a sua família ao peso do mais cruel e rude cativeiro trabalhando incessantemente ao sol e à chuva. Uma linda filha, única consolação e companhia que lhe restava em seu cativeiro, foi cubiçada por um rico mineiro, e a título de doação foi arrancada à companhia de seu pai para ser entregue ao libidinoso senhor.

Tabajuna era bastante vivo e inteligente; até ali sofrera com alguma resignação o rigor da escravidão, por que via a seu lado sua companheira e seus filhos. Quando porém todos estes lhe faltaram seu, espírito entrou em sombrio desespero, sentiu ferver-lhe no peito sanha implacável contra tudo quanto era pele branca, e jurou por sua mulher e por seus filhos mortos no cativeiro, que havia de vingar-se da opressão e ignomínia, em que até ali tinha vivido. Logrou fugir a seu senhor e embrenhando-se pelos sertões procurou empenhar seus irmãos das florestas em uma guerra de morte contra os emboabas. De feito capitaneou alguns bandos de selvagens e fez correrias e devastações horríveis pelos novos estabelecimentos dos brancos no centro das minas. Por uma singular coincidência sucedeu chegar ele às imediações: de S. João d’el Rei, disposto a tomar cruel vingança de seus opressores justamente na ocasião, em que os paulistas e os índios daquela localidade, cansados de opressão e martírio, se dispunham também à revolta. Bueno e Antônio, que o conheciam de S. Paulo, já com ele se haviam entendido de antemão. Entre as figuras, que volteavam pela penumbra das profundas espeluncas, contavam-se numerosos companheiros do valente chefe.

Gil foi o primeiro que falou aos companheiros de revolta, não por certo com a solenidade e estudada eloquência dos clubes e reuniões dos povos civilizados, mas posto que em ar de Conversa, exprimia-se com tanto fogo e vivacidade, que suas palavras e imagens pareciam coriscos, que ateavam labaredas de entusiasmo e coragem no ânimo de todos, que o ouviam. Pintou ao vivo os horríveis vexames e sofrimentos, a que os sujeitavam meia dúzia de portugueses, que queriam dominar toda a terra e avassalar o gênero humano em seu exclusivo proveito. Não havia ali um só, que não trouxesse na face, no dorso, nas mãos, nos artelhos, ou mesmo no coração em traços ainda mais dolorosos a marca dos mais bárbaros e aviltantes ultrajes. Os ouvintes o interrompiam com retumbantes aplausos, que iam morrer rugindo pelas soturnas e profundas cavidades do antro, como os gemidos da vítima amordaçada. Traçou depois um bem combinado plano de surpresa e de assalto, e fez ver que uma sublevação tão motivada seria talvez desculpada pelo governo geral da capitania, o qual em vez de puni-los cuidaria talvez em remediar seus males e protegê-los contra a tirania do capitão-mor, como já em outros lugares o tinha feito. Enfim, se por acaso, em conseqüência desse movimento, viessem ainda perseguí-los, ao menos estariam vingados, e não faltariam por esse vasto Brasil imensos e profundos sertões, onde poderiam passar o resto da vida, senão felizes e tranqüilos, ao menos livres e independentes.

- Enfim, meus amigos, - terminou ele, - o que nos cumpre agora é esforçar-nos para que não seja malograda esta tentativa; é vibrar certeiro o golpe, para quebrarmos este jugo, que nos é impossível suportar por mais tempo. Embora tenhamos de sucumbir depois ao menos morreremos vingados !

- Sim! morreremos vingados! - bradou uma multidão de vozes, que os ecos refrangendo-se de furna. em furna, multiplicaram em milhares pelo côncavo das cavernas. Dir-se-ia que milhões de duendes respondiam. das profundidades do abismo ao brado do paulista.

Os outros chefes também falaram com entusiasmo e tomaram parte ativa nas deliberações do conciliábulo, sem excetuar Joaquim e Tabajuna. Somente Maurício, triste e acabrunhado, conservou-se silencioso até o fim. Triste procedimento produziu dolorosa impressão no ânimo de seus amigos, e não deixou de causar estranheza no espírito da maior parte dos insurgentes.


CAPÍTULO XI

FATAL IRRESOLUÇÃO

Maurício tinha ido ao conciliábulo da gruta, como tomado de vertigem, como quem se deixa arrastar por torrente fatal, que o vai despenhar por abismos pavorosos.

O tratamento seco e ríspido, que recebera da parte do capitão-mor, não havia posto fim senão momentaneamente a suas cruéis perplexidade. Ainda não se resolvera, nunca se resolveria a levar o ferro e fogo à habitação do benfeitor, que lhe amparara a infância desvalida, o asilo do anjo puro, de quem dependia sua felicidade na terra. Também não lhe era permitido declarar-se contra seus caros compatriotas oprimidos, que nele depositavam tanta confiança, que tantas provas de extrema dedicação até ali lhe tinham dado. Abandoná-lo somente naquelas graves conjunturas seria uma cobardia, uma deslealdade, senão uma traição. Fugir para longe do teatro de tão deploráveis disjunções, e abandonar as duas facções ao seu destino, lavando as mãos sobre as conseqüências de qualquer conflito, era o único alvitre, que lhe restava entre os dois terríveis extremos, em que o destino lhe prendia o espírito em angustiosa perplexidade como entre as garras de tenaz ardente. Mas esse alvitre, se é possível, ainda repugnava mais a seu coração, do que qualquer dos outros dois. Só a idéia de abandonar o capitão-mor e Leonor expostos ao furor e canibalismo daqueles homens sedentos de sangue e de vingança lhe gelava o coração, e arrepiava-lhe os cabelos; seu espírito não ousava deter-se na consideração de tão horríveis calamidades.

- Não, não; eu nunca a desampararei, - refletia consigo; - velarei noite e dia a sua porta como o cão fiel; não me reunirei a seus inimigos, nem irei ao encontro deles; meu posto é aqui, e ai daquele que ousar tocá-la, paulista, ou índio, negro ou forasteiro!... mas Ah ! meu Deus! terei talvez de brandir o ferro contra os meus mais ,caros amigos!... Deus! como é possível achar-se um homem em tão horríveis conjunturas!...

não posso dar um passo, que não encontre um abismo diante de mim ! ...  Leonor! ó Leonor! ... inspira-me, anjo do céu! vem me mostrar o caminho, por onde eu possa sair deste infernal labirinto, em que me vejo fatal mente enredado pela mão do destino!

Assim cismava Maurício debruçado à janela de seu aposento olhando tristemente para a casa do capitão-mor. Era na manhã que seguiu-se à noite da reunião na caverna de Irabussu..

- Em que pensas, Maurício? - veio interrompê-lo uma voz conhecida, enquanto mão amiga lhe pousava sobre o ombro. - E' tempo de pôr-se a gente em atividade, e não de ficar aí assim pensativo e a ver moscas voarem.

Maurício, a quem a presença de Gil causava sempre vivo prazer, desta vez sentiu um terrível abalo e estremeceu desde os pés até a cabeça. Sabia que seu amigo vinha exprobrar-lhe suas eternas hesitações, e emprazá-lo ainda uma vez para a reunião na gruta de Irabussu. Pálido e abatido olhou para Gil sem ousar responder-lhe cousa alguma. Dir-se-ia que Gil era um carrasco, que vinha conduzi-lo ao patíbulo.

- Maurício, ou estar conosco ou fugir, - insistiu Gil com voz grave e severa, - não te resta outro recurso.

- Fugir! ... isso nunca! - replicou Maurício estremecendo.

- Bem; pois fica sabendo, que esta noite nos reuniremos outra vez no lugar, que bem conheces. Com parecerás ainda? ficarás outra vez mudo e quedo como um estafermo? ... olha que o teu silêncio pode inspirar desconfianças.

- Não tenhas receio... comparecerei, e exporei francamente tudo que sinto.

Maurício tinha ido àquela reunião noturna, como já dissemos, como que arrastado pelo ascendente fatal que a voz de Gil e a força das circunstâncias iam tomando sobre o seu espírito. Bruxuleava-lhe também no fundo d'alma um pensamento confuso, uma inspiração vaga, que o impelia ir tomar parte ativa na revolta. Em pensamento ainda não tomara forma distinta em seu espírito, e não era mais que um pressentimento, um palpite, a que cedia cegamente. Quando, porém, no seio da espelunca sinistra contemplou os torvos e sanhudos semblantes dos conspiradores, e ouviu-lhes a linguagem exaltada e feroz; e a sede  de vingança e de sangue, que lhes estuava no peito e reluzia nos olhos em medonhos lampejos, seu coração gelou-se de pavor antolhando as horríveis conseqüências daquela sanguinolenta revolta.

Muitas vezes tentou erguer a voz não para acompanha-la em suas furibundas execrações e brados de vingança mas para moderar-lhes a sanha e propor planos menos sanguinolentos. Um embaraço inexplicável, porém, um terror il1Sensível o detinha a pesar seu, e Maurício saiu daquele lúgubre subterrâneo ainda mais desanimado, inquieto e abatido que nunca. Todavia a voz de Gil vibrou-lhe n'alma despertando nela um pensamento vago, que a dominava.

Na noite antecedente, como ela já ia adiantada, e convinha que o dia os não surpreendesse na gruta, os insurgentes tinham emprazado nova reunião para a noite seguinte afim de tomarem uma decisão final e decisiva sobre o dia e modo de levarem a efeito sua terrível empresa.

A noite seguinte viu pois de novo reunidos debaixo daquelas broncas e gigantescas abóbadas esses homens sinistros meditando vingança e carnagem, como um bando de lobos esfaimados esperando com impaciência o dia para se arrojarem pelos campos a saciarem sua fome voraz.

Como devia suceder em uma  assembléia composta de elementos tão heterogêneos, logo se manifestou a divergência de opiniões, e após  ela a confusão e a discórdia. Queriam uns - e esses eram mais numerosos, - que desde já dessem assalto à casa do capitão-mor levando tudo sem piedade a ferro e fogo, tomassem conta da povoação, e apoderando-se de todas as riquezas e belezas dos emboabas se fortificassem ali reunindo mais gente, que não faltaria, pois que em Caeté, Sabará e Ouro Preto sobejavam descontentes, que só aguardavam ocasião oportuna para se sublevarem. Entendiam que só assim, por um levantamento geral, enérgico e vigoroso poderiam quebrar o jugo ignominioso, a que viviam sujeitos.

Estes planos grandiosos, já se vê, não podiam partir' senão de alguns paulistas mais inte1igentes, e nimiamente exaltados, que já pensavam talvez na emancipação da terra natal; os bugres e negros boçais os aplaudiam de todo o coração.

Outros mais modestos e moderados, formando porém um grupo insignificante, opinavam, que eles deviam poupar o sangue o mais que fosse possível, porque as atrocidades dos massacres tornariam odiosa a sua causa; que formando um levantamento imponente pelo número, escudados como se achavam pela boa razão eles imporiam a lei aos emboabas, que não eram em grande número, e conseguiriam, completa reparação das injustiças, vexames e danos sofridos, e se fariam respeitar mais eficazmente de então em diante. Para esse fim convinha dilatar por mais alguns dias a execução do plano, até que se reunisse mais gente; Itabajuna podia ainda reforçar o seu contingente, e pelas imediações havia ainda grande número de paulistas e escravos fugidos prontos a se insurgirem, mas que não eram sabedores daquele plano de sublevação.

Este alvitre, porém, era repelido pela maioria com clamores de reprovação, e até com vaias. Julgavam-no perigoso e com razão, porque os portugueses, que já andavam algum tanto ressabiados, poderiam desconfiar da sublevação, ou mesmo serem dela informados por algum traidor; entendiam que deixar para mais tarde o rebentamento da insurreição era o mesmo que preparar o pescoço para uma corda.

Maurício, todavia, acoroçoado pelas manifestações daquela pequena fração, que aconselhava prudência e moderação, animou-se enfim a pronunciar-se. Exagerando as tendências de moderação, disse que era possível fazer-se uma resistência eficaz e respeitável sem violência alguma, e sem derramar uma só gota de sangue; que o único autor das desgraças, que sobre ele pesavam, era Fernando, o homem mais tredo e perverso que pisava sobre a terra. Procurou justificar o capitão-mor, tendo um lisonjeiro retrato de seu caráter e afiançando suas boas intenções. O algoz era Fernando; era sobre este somente, que chamava os ódios e vinganças. Removido este gênio do mal, as coisas por si mesmas entrariam no seu estado normal; todos gozariam de paz e liberdade, e cessariam todos os vexames, de que até ali tinham sido vítimas. Era de parecer, pois, que reunidos em número suficiente, que pudesse impor, cercassem a casa do capitão-mor, e lhe intimassem com ai !! armas na mão a expulsão de Fernando. Terminou dizendo que um assalto inopinado e traiçoeiro aos emboabas para cometer barbaridades e depredações seria um crime revoltante, um ato de canibalismo, só próprio de selvagens ou de feras bravias, para o qual nunca deveriam contar com ele. Um sinistro sussurro de desaprovação acolheu estas palavras.

- Estamos perdidos! - murmurava um dali, este homem quer nos entregar amarrados de pés e mãos, em poder do capitão-mor.

- Fernando é o braço, - dizia outro dacolá, - o outro é a cabeça; E corte-se a cabeça, que não haverá mais braço para nos ferir.

- Abaixo a cabeça do capitão-mor, de Fernando e de tudo quanto é emboabas, - bradavam todos. - Nada de contemplações! - morra tudo, quanto é emboabas! morra o velho das lantejoulas, e da casaca vermelha!

-Morra !!

 - Morra ! morra ! - repetiam os ecos das cavernas com medonhas repercussões.


Capítulo XII

A aparição e o refém

Maurício ficou transido de horror e indignação com essas vociferações de feroz canibalismo, e de braços cruzados e olhos fitos no chão esperava, que se amainasse a tormenta, que o ameaçava. Foi em vão; a fúria recrescia, e Maurício amaldiçoava a hora, em que se lembrou de abrir a boca para falar àquela gente bárbara e desvairada  pelo ódio. Debalde Gil, Antônio e alguns paulistas mais assisados e prudentes procuraram acalmar os ânimos; a repressão cada vez mais os irritava. Os negros vociferando brandiam por cima da ;cabeça suas facas reluzentes, e os arcos dos indígenas em contínua agitação chocavam-se um nos outros como em suas danças selváticas, com estrépito medonho. A todo este tumulto mesclavam-se gritos imprudentes e doestos provocadores contra os moderados, e principalmente contra Maurício.

- Como em casa do capitão-mor, louvado seja Deus, não tenho ninguém, que me queira bem, - bradou uma voz de entre a multidão, - a primeira cabeça que peço é a do capitão-mor.

- Nem eu, - respondeu outra voz, - não tenho lá nenhuma Leonor... Este terrível doesto foi certeiro ferir o coração de Maurício como uma séta envenenada. O mancebo ficou hirto, pálido, e trêmulo de cólera, de indignação e de asco. Não quisera por cousa nenhuma que a lembrança somente de sua idolatrada Leonor pairasse pelo horror daquelas espeluncas malditas, e muito menos que seu nome fosse profanado por esses lábios satânicos sedentos de sangue. Vibrou olhares ardentes e lampejantes de cólera pela multidão, mas não lhe era possível reconhecer donde partira aquele brado insolente, soubesse, quem o soltara, que no mesmo instante se teria arrojado a ele como a. hiena e o teria cosido a punhaladas.

- Saiba o infame, que acabou de me achincalhar, e que não tem ânimo de apresentar-se, - bradou com acento de furor concentrado, - que é verdade, que existe em casa do capitão-mor uma pessoa, a quem idolatro de todo o meu coração; não tenho escrúpulo nem receio algum de o declarar alto e bom som diante de todos que aqui se acham, e ai daquele, que em minha presença ousar já não digo tocar-lhe as mãos, mas somente proferir-lhe o nome com menos respeito.

- Está tudo perdido I - murmurou Gil consternado, e depois achegando-se de Maurício e tomando-lhe o braço:

- Maurício, - disse-lhe em meia voz e com acento angustiado, - tua imprudência nos perde!...

- Oh! Gil, - respondeu-lhe Maurício no mesmo tom voltando do terrível assomo, que lhe perturbava o espírito, - que hei de eu fazer?... Estes covardes me insultam, não, não posso acompanhar-te com esta turba de feras indomáveis...

Não pôde continuar; suas palavras imprudentes tinham levado ao cúmulo a exaltação e furor, que já lavrava no meio daquela horda ingovernável. Nem a autoridade e prestígio de Gil, nem as diligências de Antônio, nem a intervenção de mais alguns paulistas conseguiram aplacar-lhes a sanha, que cada vez mais recrudescia.

Assim, quando o caçador ao partir para a caça embocando a buzina chama os cães e disparando um tiro dá o sinal da partida não há mais conte-los na impaciência de sair, nem gritos, ordem, nem pancadas, que imponham termo ao alarido infernal de seus uivos, ganidos e incessante ladrar.

Traidor! Traidor! Morra o traidor! - vociferava uma multidão de vozes, e alguns já avançavam sobre Maurício ameaçadores e de arma feita. Gil, Antônio, Bueno e Calixto rodearam Maurício, que imóvel e de braços cruzados se oferecia calmo e resignado ao furor selvático de seus agressores, como quem desejava ali acabar aos golpes daquela turba esvairada para pôr fim a sua tão cruel e angustiosa situação.

Mas eram poucos contra a multidão, que se arrojava furiosa contra Maurício, continuando a bradar morra! Morra o traidor! ...

Gil, vendo que aquele fatal incidente ia levar ao mais desastrado malogro a empresa começada com tão felizes auspícios, reassumiu uma energia suprema. Torvo e imponente, vibrando olhares imperiosos e chamejantes sobre a turba, que o rodeava, alçou-se sobre ela de toda a altura de seu soberbo porte. Dois impulsos, cada qual mais poderoso, a amizade, que lhe mandava salvar o amigo do furor brutal daquela horda enfurecida e o receio do malogro, em que vias prestes a naufragar a causa da insurreição, davam à sua fisionomia um ar terrível, a sua alma uma energia e denodo irresistível.

- Calem-se! Calem-se! Calem-se! - bradaram três vezes com voz estrugidora ferindo rijamente o chão com o pé.

A este brado o revolutear dos vultos e a vociferação frenética cessou como por encanto.

- Loucos, - continuou Gil, - o que pretendem com semelhantes motinarias ?! Se estamos aqui para empregarmos nossas armas um contra os outros, adeus! Que eu e todas as pessoas de algum siso os vamos deixar entregues a si mesmos. O capitão-mor terá pouco ou nada que fazer por que antes de se apresentarem diante dele, já todos aqui se terão estrafegados uns aos outros!

Eu desejo saber quem manda aqui? Temos ou não um chefe? ...

- Temos, sim, - bradaram todos; - és tu, Gil, és tu...

- Nesse caso obedeçam-me. Ai daquele, que levantar a mão contra Maurício! ... Fiquem tranqüilos a respeito de sua lealdade. Maurício têm motivos nobres para querer poupar o capitão-mor e sua família, mas é incapaz de ser contra nós e de atraiçoar-nos... Sim, é incapaz, eu vos afianço, e dou-vos em penhor a minha cabeça.

- Antônio também oferece a sua, - acudiu o índio, - cortem-me esta cabeça como a um vil, se algum dia meu amo nos atraiçoar. Mas por Deus! Não o ofendam, ele não irá dizer nada ao capitão-mor, não; mas saltará sobre vós como o canguçu, e Antônio será com ele.

Dominados pelo tom e atitude imponente e prestigiosa de Gil, secundado pelos esforços de Antônio e de alguns paulistas dispostos a aplacar ou rebater um conflito eminente, os revoltosos se acalmaram por instantes.

Mas a questão, que dividia os ânimos, não estava ainda decidida, e era mister tomar uma deliberação. Continuaram a altercar viva e calorosamente, se deviam ou não assaltar incontinenti a povoação, ou esperar que se reforçassem com maior número. Novas cenas tumultuosas prorromperam, já não provocadas por Maurício, que cheio de angústia e inquietação se recolhera de novo ao silêncio, mas pelos outros, que se exaltavam de mais em mais. Foi Antônio quem desta vez tentou aplacar as procelas intermináveis e sempre renascentes, com sua linguagem tosca, e sua exaltação selvática, mas enérgica e pitoresca

- Que é isto, minha gente! - bradou ele do alto de um pilar quebrado de estalagmite, que galgara de um salto; - que é isto! ... se for só para fazer este berreiro e matinada, que aqui viemos, Antônio vai-se embora; não contem mais com ele. Tenham mais respeito a este lugar; esta é a caverna de Irabussu, meu tio do mato, pajé sagrado, que conversava com Tupã. Irabussu falava pouco e não gostava que berrassem a seus ouvidos. No entanto ele era o terror dos emboabas; por artes de Irabussu cinco deles morreram por estas buracadas, e aí ficaram para sempre sepultados; suas ossadas ainda por aí andam espalhadas pelo chão; suas carnes foram comidas pelas onças e outros bichos do mato. Irabussu também quis aqui morrer. Seu espírito de certo volteia por essas sombras a pedir vingança; vingança por ele e por sua filha, que lá está gemendo na escravidão em poder do emboaba! Se Irabussu fosse vivo, ele apareceria entre nós, e nos viria ensinar o que devemos fazer para dar cabo de nossos opressores. - Ó Irabussu! Irabussu! - bradou com toda a força o jovem índio voltando-se para o fundo da caverna, como pitonisa inspirada sobre a trípode evocando as sombras dos mortos.

- Irabussu! - respondeu uma voz longínqua e surda das profundidades da caverna. Todos cuidaram ser um desses ecos, a que já estavam habituados, e que do seio das cavidades repercutia a última palavra de Antônio.

- Irabussu! - reboou de novo a mesma voz, como rugido surdo da pantera, porém já mais visinha e mais distinta. Todos volveram olhos espantados para o lado, donde partia aquela voz estranha. Daí a instantes, por entre as sombras do limbo tenebroso foram-se desenhando as formas confusas de um fantasma colossal, esguio e pavoroso, que avançava lentamente para eles.

Aqui está Irabussu!... que querem dele ... rosnou o espetro com voz fúnebre e gutural. Ninguém duvidou que era a sombra ou o espírito de Irabussu, que surgia daqueles túmulos cavados pela natureza, e todos espavoridos, com os cabelos hirtos e o coração gelado de pavor encaravam o temeroso fantasma, sem que ninguém ousasse dirigir-lhe a palavra. O próprio Antônio, que nunca pensara que o velho bugre acudisse à sua evocação, estava oprimido de assombro. Gil, Maurício e outros, que nunca haviam tremido diante de cousa alguma deste mundo, estavam transidos de pavor até à medula dos ossos. Foi entretanto o próprio Antônio, quem se abalançou a falar ao medonho fantasma.

- Já que nos apareces, Irabussu, - balbuciou o índio com voz trêmula e apavorada, - estejas vivo ou morto, dize-nos o que devemos fazer para vingar-nos de nossos tiranos, e revela-nos também o segredo dessa mina, que contigo guardavas, e que levaste contigo para a sepultura. Não temos sede de ouro, como esses malditos emboabas, tu bem sabes; mas precisamos dele para vingarmos a ti, a nós iodos, e livrarmos a tua Judaíba, que até hoje lá geme na escravidão.

- Quando os filhos da terra de Tupã tiveram derramado a última gota do sangue do emboaba, Irabussu lhes dará ouro aos montões, - disse pausada e solenemente o espetro, e de novo embrenhou-se pelas lôbregas sombras, donde surgira, e onde ninguém ousaria penetrar.

Repassados de assombro os insurgentes ficaram por largo tempo silenciosos entreolhando-se espantados. O pavoroso fantasma viera lançar-lhes nos ânimos mais tenebroso e poderoso incentivo para excitar a fúria da vingança.

Esse ouro, que lhes prometia aos montões, tornou ainda mais ardente a sede, que tinham ao sangue do emboaba. Recresceu o tumulto e a gritaria, e muitos, queriam naquele mesmo instante abalarem-se para assaltar a povoação.

O assombro porém e a consternação, que lançou sobre o espírito de Maurício a fatal aparição, é o que a custo se poderia imaginar. Tudo se lhe afigurou então com as cores as mais lúgubres e sinistras. Não era mais possível conter a lava impetuosa, que brotava daquela cratera incandescente. Pintava-se lhes na imaginação aquela horda feroz e desenfreada, sedenta de sangue e de ouro caindo de chofre sobre a povoação, massacrando tudo sem piedade, entrando furiosa em casa do capitão-mor com os pés cobertos de lama sangrenta, penetrando nos recatados aposentos de Leonor, ultrajando-a, trespassando-a de punhaladas, ou talvez pior ainda ... talvez com brutal cinismo violando-lhe a pureza imaculada! Entre tão horríveis imagens o sangue lhe aflui a à cabeça, sentia calafrios, um suor gélido lhe porejava da fronte, e os objetos se lhe apresentavam aos olhos desvairados como cingidos de uma auréola de sangue. Não pôde mais se conter, soltou um grito de alucinação:

- Tirem-me daqui !... tirem-me daqui, ou matem-me, - bradou com o acento do terror e do desespero.

- Que tem, Maurício, que tem ! - exclamou Gil acudindo inquieto e pressuroso ao seu amigo.

- Oh! arranquem-me daqui por piedade. Não; não serei eu nunca, que mancharei minhas mãos no sangue dos...

-          Cala-te, Maurício, - atalhou sofregamente Gil, - cala-te, por piedade também te peço ... mais um pouco de paciência...

-           

-          Não puderam continuar; uma grita enorme abafou lhes as falas. A exclamação de Maurício tinha de novo despertado todas as desconfianças dos insurgentes.

-           

- Morra! morra o traidor! - bradaram de novo.

- Já disse, - gritou Gil, - que respondo por ele com minha cabeça; serei também traidor?... O dia não pode tardar; é tempo de nos dispersarmos; na noite próxima veremos o que se deve fazer...

- Sim! Sim! - responderam muitas vozes, - mas esse homem ou deve morrer, ou daqui não há de sair, enquanto não acabarmos a nossa empreitada. Fiarmo-nos nele, oh ! ... nunca! nunca mais!...

- Nunca! nunca mais!... repetiram muitas vozes. - Matem-me, ou deixe-me sair, bradou Maurício em desespero.

- Sair nunca!... morra! morra! Vociferaram alguns já avançando para Maurício de punhal alçado.

- Não morrerá enquanto Antônio viver, - exclamou o índio saltando em defesa de Maurício e colocando-se diante dele.

- Pois então aqui ficará preso até levarmos a cabo a obra de nossa vingança...

- Nunca! Rugiu Maurício como tigre enfurecido; - ou hão de matar-me, ou hão de deixar-me sair livremente.

- Nesse caso morra!...

- Não há de morrer! - replicou Antônio com voz firme e imperiosa; - deixem-no sair; eu ficarei por ele aqui nesta gruta, bem guardado e vigiado, sem comer nem beber, amarrado de pés e mãos, se o quiserem ... Eu aqui ficarei e no momento em que souberem que meu patrão Maurício nos atraiçoou, cortem imediatamente a cabeça de Antônio.

- Que fazes, meu bom amigo ! - disse-lhe Maurício; - deixa-os, que me matem; eu sou um desgraçado que para nada posso mais ser útil neste mundo; a vida de hoje em diante me é um peso insuportável. Deixa que me matem.

- Vá-se embora, patrão; vá, eu ficarei por Vm.

- Vamos, vamos, Maurício, - disse Gil travando-lhe fortemente do braço, e arrastando-o quase à força para fora da caverna.

Os insurgentes atônitos e comovidos com a dedicação do generoso índio o aceitaram em. refém e fiador da lealdade de seu patrão, e não ousaram mais opor-se à saída deste.

Assim pois se debandou anarquicamente ainda a reunião daquela noite sem nada ter-se resolvido definitivamente.

Distando a gruta cerca de légua e meia do povoado, os paulistas, que nele residiam, precisavam entrar ainda com as sombras da noite, um por um e com todas as precauções afim de não despertar, em suspeitas. 0s índios e negros fugidos embrenharam-se pelas matas procurando seus coutos conhecidos.

Se bem que o refúgio daquela espelunca fosse até ali completamente ignorado dos emboabas, Gil todavia julgou prudente estacionar ali alguns vigias permanentes, afim de que, se por acaso alguém viesse a descobri-la, os insurgentes pudessem ter aviso e tomar as medidas convenientes.

Era ali pois o quartel e o depósito de armamentos e munições. A essa escolta ficou entregue Antônio, não amarrado de pés e mãos, porém guardado com a mais severa vigilância.


CAPíTULO XIII

Tiago, o mameluco

O leitor pode fazer idéia do estado deplorável, em que se acharia a alma de Maurício, depois que se retirou da gruta nefasta. Seu espírito se achava como aniquilado sob o peso esmagador das fatais circunstâncias, que lhe tolhiam toda e qualquer ação. Ficar inerte e impassível em face das calamidades, que se preparavam, também não lhe era possível. Não podia salvar Leonor e o capitão-mor sem avisá-los do levante, que se projetava, sem atraiçoar esses dedicados patrícios, que na melhor fé contavam com seu tino, esforço e dedicação para ajudá-los a sacudir o odioso jugo, que os vexava. Demais Antônio lá ficara na gruta como penhor de sua lealdade, e denunciando o movimento ele seria duas vezes traidor, sacrificando também o amigo, cuja cabeça fora a garantia de sua vida. Tais pensamentos nem por um momento poderiam se aninhar no espírito do nobre e generoso paulista. Tomar parte no levante era levar a destruição, o incêndio, a carnificina à habitação de seu benfeitor, e talvez a morte e a profanação ao seio da amante idolatrada. Calar-se mesmo era também atraiçoar ao amor, à amizade e à gratidão; era ser consentidor e cúmplice na morte dos seres, a quem mais devia, e mais amava neste mundo. Fugir não podia; desamparar covardemente Leonor sobre uma cratera prestes a fazer explosão era uma infâmia. Que cruel e inextricável situação !... Oh! se ao menos fosse ele a única vítima das horríveis catástrofes que antevia; mas não; por qualquer dos lados, que se declarasse, com ele e por ele iriam ser sacrificados inevitavelmente os entes mais caros ao seu coração.

o dia inteiro, que se seguiu à cena da gruta, Maurício o passou encerrado em seu aposento entre as dolorosas vacilações, que lhe estortegavam o coração empenhando-o violentamente para lados opostos. Em vão dava tratos ao espírito procurando um meio termo, pelo qual conseguisse sem trair a seus patrícios amparar e defender os bens e a vida do capitão-mor e sua família. Não havia uma saída para o círculo de ferro, em que se achava comprimido. Era ele agora o único, que não acompanhava o ódio geral contra os emboabas; já nem o próprio Antônio se achava a seu lado. Este, depois que soubera que o capitão-mor, namorado de Judaíba, queria para si, abjurou todos os laços de afeição, que o prendiam à família de Diogo Mendes, e abraçou com ardor a causa dos insurgentes por ser o único meio de reivindicar sua querida amante. Sabendo de Maurício, que o capitão-mor exigia a sua entrega, o atilado caboclo logo adivinhou-lhe a intenção.

- De certo o velho emboaba quer mandar-me para longe, - pensou ele, - afim de separar-me de Judaíba. Como te enganas, maldito!... Antônio nunca mais te cairá nas garras; e nem Judaíba nunca há de ser tua nunca!... eu te juro pela alma de Irabussu ! Entretanto doía-lhe no fundo d’alma ter de contrariar seu querido patrão, cuja indecisão e abatimento muito o magoavam.

- Patrão, - disse-lhe ele, - eu vou sumir-me, e não aparecerei aqui senão a escondidas, visto que o capitão-mor quer deitar-me a unha; mas tenho esperança de que Vm. irá juntar-se em breve conosco  no mato para darmos cabo desta corja de perros, que nos mordem.

- Não sei, Antônio, não sei; minha posição é inexplicável. Um raio, que me fulminasse poderia somente arrancar-me do terrível embaraço, em que me acho.

- Qual embaraço!... creia o patrão, que não há de possuir sinhá Leonor, senão quando a for pedir com um punhal tinto no sangue do malvado Fernando, assim como Antônio não terá Judaída, nem Calixto terá Helena senão depois de arrombar portas e arrancá-las à força por cima dos cadáveres dessa canalha maldita. Animo patrão!... não é com lágrimas, que havemos de conseguir nada; mas sim com sangue, e muito sangue!...

- Antonio, se me queres bem, não me fales em sangue...

- Pois bem, já que assim o quer; entretanto adeus, patrão; não há remédio senão deixá-los; mas eu lhe aparecerei todos os dias, sem que ninguém mais me veja.

Malvados! que vem me desterrar, querem me roubar minha Judaíba !... ou hão de matar-me, ou ela há de ser minha... Adeus, patrão; se vir em apertos e precisar de mim, eu não estou longe; lembre-se da gruta de Irabussu.

- Vai, Antônio; faze o que entenderes; mas fico certo, que nunca o teu ferro se levantará contra o capitão-mor, e que se alguém ousar tocar em Leonor, serás o primeiro a te lançar sobre ele como um jaguar...

- Eu o juro, patrão... em presença de Antônio ninguém os ofenderá!... adeus!...

Voltemos porém ao ponto, em que deixamos nossa narrativa. Enquanto Maurício na mais cruel perplexidade via se escoarem as horas daquele longo dia, Antonio cuidadosamente vigiado se conservava na caverna de Irabussu como fiador da lealdade de seu patrão, calmo e tranqüilo, como quem não tem remorsos no passado, nem receios no porvir.

Entretanto em casa do capitão-mor passavam-se graves acontecimentos, dos quais é preciso informar ao leitor. Desde o dia, em que Maurício fora como que despedido da casa de seu benfeitor, Leonor, que ignorava aquele acontecimento, notando a ausência e retraimento do amante, começou a entristecer-se; cruel pressentimento lhe pesava sobre o coração. O desaparecimento de Antônio contribuía para aumentar-lhe a inquietação. Sabia que Maurício se achava no povoado, por que o via às vezes à janela de sua casa, mas tão pensativo e abatido, que mais lhe dobrava as tristes apreensões. Ousou perguntar por eles a seu pai em presença de Fernando e de Afonso.

- Que te importam esses farroupilhas ? - respondeu o pai com mau humor; - andam por aí; de certo não estão tratando de nosso sossego, nem de nossa felicidade.

O capitão-mor, que não desistia do seu projeto de esposar Judaíba, já acreditava firmemente em um plano de sublevação; não duvidava que Antônio tomasse parte nele, e sentia profundamente abalada a confiança, que até ali depositara em Maurício.

Também os sentimentos de generosidade e cavalheirismo de Afonso foram passageiros; não duraram senão enquanto tinha diante dos olhos a cena lastimosa, de que fora o principal autor. Fernando teve o cuidado de estimular de novo os instintos perversos, que com tanto esmero e solicitude ia plantando e cultivando naquela alma juvenil.

Seu ressentimento contra Calixto recrudescia, à medida que se exaltava a cega paixão que concebera por Helena, a quem agora podia ver e falar a todo o momento, que quisesse, se bem que esta sempre refugiada ao pé de Leonor, lhe manifestasse a mais decidida e insuperável esquivança. Como dificilmente acreditamos naquilo que desejamos, Afonso também já pensava em uma conspiração, em que Calixto infalivelmente devia achar-se envolvido. Afonso teve pois a grosseira lembrança de chalacear com sua irmã, que inquieta e angustiada perguntava por Maurício e Antônio;

- Se a Helena não estivesse aqui, - disse ele chacoteando, - eu diria que Maurício estava em casa do mestre ferreiro com o Gil e o Calixto, a fazer-lhe a corte. Não sendo assim deve andar com o Antônio pelo mato a caçar onças.

Fernando conservou-se silencioso, mas o sorriso de diabólico sarcasmo, que lhe pairava pelos lábios, foi para o coração de Leonor uma seta envenenada mil vezes mais lacerante, que as respostas sardônicas de seu pai e seu irmão. Pressentiu, que Maurício e seus amigos estavam definitivamente perdidos no espírito do capitão-mor, e sua inquietação transformou-se em angústia cruel e mortal abatimento.

Para acabar de um só golpe os restos de confiança e estima, que ainda por ventura Maurício merecia do capitão-mor, bastava a Fernando revelar ao capitão-mor o amor extremo, que o paulista consagrava à sua filha. Fernando porém até ali mui de propósito tinha deixado de dar este passo. Sabedor disso o capitão-mor' não faria mais talvez do que desterrá-lo, enxotá-lo da sua presença e para bem longe. Isto só porém não satisfazia ao ódio de Fernando, que queria tomar de seu rival a mais completa e cruel vingança. Cumpria-lhe irritá-lo a ponto de compeli-lo a algum ato de violência, que lhe custasse a cabeça, e com este resultado Fernando contava com toda a segurança. Portanto já bastante desconfiado da docilidade dos paulistas e contando quase como certa mais tarde ou mais cedo uma sublevação não cessava de perseguí-los, prendê-los e castigá-los sob o mais insignificante pretexto; trazia tudo debaixo da mais severa vigilância; fazia rondas todas as noites, varejava casas, fazia inquéritos e devassas continuadas; mas ou por um feliz acaso ou por precauções prudentemente tomadas pelos conspiradores não tinha podido até ali colher indício algum de planos de insurreição. Posto que contasse com ela, todavia não tinha medo algum, pois presumido e soberbo como era, entendia que só com um grito faria tudo tremer e rojar-se humilde a seus pés.

Maior ainda, era a seguridade do capitão-mor, o qual confiado na sua fidalguia e alta posição e no terror, que infundia sua valente espada, preocupava-se tanto com uma sedição daquela gente, como com o arreganho de .alguns cães a ladrarem. Dormia tranqüilo sobre um vulcão descansado na vigilância e. rigorosas medidas preventivas de Fernando, e não via que esses paulistas oprimidos, esses escravos índios e africanos, que de dia trabalhavam para ele de rosto alegre, iam de noite para o mato amolar em segredo o punhal da vingança.

Havia entretanto em casa do capitão-mor um ente singular, de que até aqui não temos dado conhecimento ao leitor, e que já farejava pelos ares e como que adivinhava a eminente sublevação dos paulistas. Era um pequeno escravo ou criado de raça indígena mesclada ao sangue africano, a que então se dava o nome de mameluco. Esse diabrete, pequeno, delgado e raquítico, ágil como um macaco, leve, como um silfo, sutil como uma sombra, achava-se por toda a parte quase sem ser visto. Pelo físico parecia um menino de doze a quatorze anos, e chorava como criança, se seus amos o castigavam. Por isso muitos o julgavam apenas um menino travesso, tendo suas diabruras em conta de puras criançadas.

Era o brinco e regalo do capitão-mor, a quem divertia com suas truanices. Era mui jovial e galhofeiro, - tocava machete, dançava e cantava lunduns, e tinha por isso entrada em todas as casas, e era admitido e muito apreciado nos folguedos. No mato um sagüi não lhe levaria a palma em garimpar pelas árvores e saltar de ramo em ramo pela coroa das florestas; era capaz de viajar léguas sem por o pé em terra. Também montava admiravelmente a cavalo, e seria um jóquei de fazer furor a qualquer lord inglês. Enfim, tinha faro de cão, leveza e agilidade de irara, esperteza e astúcia de raposa. Dotado além disso de muitas habilidades e prendas úteis seria o melhor dos criados, se uma perversidade inata, uma índole profundamente maléfica não o tornasse o pior dos homens. Era de S. Paulo, chamava-se Tiago e era o pajem favorito de Fernando, que melhor que ninguém lhe conhecia as manhas.

Tiago, pois, com a perspicácia e tino malévolo, de que era dotado, desconfiou por alguns indícios que ia observando, que alguma cousa se transava fora da povoação. Vagando a deshoras teve ocasião de ver alguns paulistas desgarrados embrenharem pela mata do Rio

das Mortes; outra vez foi à casa de mestre Bueno à noite já mui tarde, bateu e não encontrou ninguém; o mesmo praticou e o mesmo aconteceu-lhe em casa de outros paulistas. Isto reunido a outros sintomas, que escapavam a todos, mas que o ardiloso mameluco espreitava com sutil sagacidade, fé-lo conceber bem fundadas suspeitas de conluio para uma insurreição.

Foi isto para o perverso rapazinho o mais precioso achado, e dando pulos de contente apressou-se em dar conta a Fernando de tudo, que tinha observado naqueles dois últimos dias.

- Meu amo, - disse-lhe ele, - estes paulistas andam com o diabo no corpo, e sem dúvida estão aprontando alguma estralada.

- Que estralada ? Ora que, estralada !... nada menos do que algum levante ...

- Estás doido !... como sabes disso?...

- Ora!... tenho cá um dedinho, que me conta tudo, que vai por esse mundo. Aí pelo mato há coisa.

O Maurício anda trombudo que nem o diabo, e o Gil anda assim como espaventado e sem sossego, e há dias, que o acho com outra cara. Meu parente Antônio sumiu-se. O Bueno e o Calixto quase que não trabalham mais na forja; fui ontem lá com o sol alto, e eles que sempre foram os maiores madrugadores do mundo, ainda estavam dormindo. Às vezes me parece ouvir um certo zumbido aí por esses matos.

- Explica-te melhor, Tiago, e dize-nos tudo o que sabes.

- Não posso; por ora é só isto, que sei, mas eu sou mestre de acompanhar as abelhas até descobrir o cortiço.

- Ah! Tiago! Tiago! se m'o descobres, exclamou Fernando esfregando as mãos de contente, dou-te a liberdade, dou-te muito ouro, dou-te tudo, que quiseres, e para estréia toma lá já, - disse atirando-lhe algumas moedas, que o caboclinho aparou no ar. Anda, corre, voa, esquadrinha e fareja tudo com a tua costumada esperteza.

Nenhum interesse por Fernando, pelo capitão-mor, nem por nenhum dos emboabas induzia o maldito mameluco a fazer-lhes este serviço denunciando a insurreição, não lhes tinha afeto nem dedicação alguma, e era levado simplesmente pelo espírito de fazer mal aos paulistas, aos quais odiava de todo o coração como odiava a todo mundo. Folgaria de vê-los todos pendurados a uma forca; mas também muito se alegraria com o espetáculo de uma degolação de emboabas a principiar pelo próprio Fernando. Deliberou ser. de ambos os partidos para não ser de nenhum; o que queria era que ambos se fizessem um ao outro o maior mal possível, e nesse intuito propôs-se a desenvolver todo o seu diabólico tino e sagacidade para se por ao fato do que se passava de um ~ outro lado.

O sol já ia mui baixo, e entretanto Maurício não saía de sua angustiosa inação. Ao tempo que Tiago em casa do capitão-mor denunciava a insurreição, Gil ia ter com o seu amigo a fim de tentar um derradeiro esforço para induzi-lo não já a tomar partido pelos insurgentes, mas a retirar-se afim de que não fosse vítima de uns ou de outros.

- É forçoso, - dizia-lhe, - que tomes quanto antes uma resolução, qualquer que ela seja. Sabes quanto sou teu amigo; respeito o teu amor, e sei quanto é melindrosa a tua posição; mas agora bem vês que me é forçoso por a amizade de lado e ajudar nossos patrícios no desforro que pretendem tomar desta corja, que nos oprime.

- Bem sei, Gil; nem vai aí nenhuma quebra de nossa amizade; é o destino que nos separa nesta fatal contingência.

- Sim; mas eu quero salvar-te a ti também, Maurício; corres mais perigo do que ninguém. Preocupado com os riscos, a que está exposta a tua amante, não reparas que a tua pessoa e a tua vida mesma não tem a menor segurança. Estás exposto a ser vítima de um e de outros. Tu bem viste como, já não digo tanto os paulistas, mas essa gente feroz e turbulenta, que se .uniu a nós, porque temos necessidade de seu auxílio, tu bem viste como já se acham indispostos e desconfiados contigo. Basta que levantes a voz para moderar seus impulsos sanguinários, para que logo ao grito de traição alcem-se sobre tua cabeça uma multidão de punhais.

Por outro lado bem conheces o ódio implacável, que te vota Fernando, e as pérfidas ciladas, que continuamente te arma; embora te ponhas de parte, nem por isso deixarás de passar por um dos cabeças do motim. Já estiveste conosco na gruta de Irabussu; e se formos denunciados, ou mal sucedidos, não faltará quem ateste, que lá te viu. Demais as palavras altivas e independentes, que disseste ao capitão-mor, tornaram-te suspeito aos emboabas. Portanto, meu caro Maurício, o único recurso, que te resta, a meu ver, é fugir para bem longe.

- Fugir, eu ?... - replicou Maurício com vivacidade; - fugir eu, e deixar Leonor exposta aos furores de uma horda selvática e sanguinária, e às mais horríveis calamidades !... Oh! nunca! nunca!... não me fales em fugir, meu caro Gil. Ficarei ali de sentinela, como um cão à porta de seu senhor, imóvel e de braços cruzados. Deixá-los-ei fazer o que quiserem, derramar a jorros o sangue do emboaba, e saciar à farta sua sede de vingança. Mas quando penetrarem na habitação de Leonor, me encontrarão à sua frente amparando-a com o meu corpo.

- Nada receies por tua amada, Maurício; tomarei a meu cargo protegê-la e ampará-la da ferocidade de nossa gente. Confia em mim; ela é inocente e eu farei por ela tudo, que tu mesmo farias. Demais ela é paulista, e todos nós paulistas não consentiremos, que se lhe toque em um só fio de seus cabelos.

- E o capitão-mor, Gil ?...

- Ah !... por esse não posso responder; ele é homem e valente, e a sanha dos nossos contra ele é imensa e violenta... Se eu quiser poupá-lo, talvez se voltem contra mim, e então tudo estará perdido.

- Oh !... então o meu benfeitor está irremissívelmente condenado!... meu Deus! que golpe sobre o coração de Leonor! e eu terei podido salvá-la dessa terrível orfandade, e não o terei feito!... e ela o saberá, porque o meu desaparecimento chamará sobre mim as mais bem fundadas suspeitas, e ela me atribuirá o assassínio de seu pai, e me odiará, me desprezará, me amaldiçoará... Oh! não, Gil; não devo fugir!... já que não podes defender também a vida do capitão-mor, ali ficarei eu de braços cruzados para defendê-lo...

- E lutarás contra teus amigos?...

- Oh !... isso é horrível!... não... mas...

- Pondera bem o que fazes, Maurício !

Maurício sentou-se, pôs a cabeça entre as mãos, e ficou por largo tempo silencioso e mergulhado em profunda meditação.

- Está decidido! - exclamou por fim levantando-se e com voz firme e resoluta. - Para poder salvá-los o único recurso que me fica"é declarar-me o seu mais encarniçado inimigo. Gil, serei dos vossos; hoje mesmo irei reunir-me convosco na gruta de Irabussu, e de lá não voltarei senão com o punhal em uma das mãos, e o machado na outra. Serei o mais exaltado e feroz de entre todos; mas Só exijo uma condição...

- Qual é? dize.

- Quero ser o chefe...

- Tu o serás.

- Afianças?...

- Afianço, por nossa amizade; serás o chefe.

- Pois bem!... eu não poderei lá me apresentar senão mui tarde; vai tu mais cedo, dize a Antônio que esteja tranqüilo, e vê que aqueles bárbaros em sua impaciência não queiram sacrificá-lo. Depois da meia noite as duas da madrugada ao mais tardar, lá me acharei.

Capítulo XIV

Trágica interrupção de uma entrevista amorosa

Maurício tinha razão; o único meio eficaz, que lhe restava, de proteger o capitão-mor e sua família contra o furor dos revoltosos era pôr-se ele próprio à testa da revolta. Tomada esta resolução extrema imposta por sua situação desesperada, não pôde entretanto resolver-se a ir tomar a direção da empresa fatal sem ir ver a sua Leonor, sem dizer-lhe um adeus, que talvez será o derradeiro, sem explicar-lhe. Mas o que poderá ele explicar-lhe?... nada lhe poderá revelar; mas é forçoso dizer-lhe alguma cousa, que a tranqüilize, e que justificando-o aos olhos dela faça com que para o futuro não venha a duvidar de seu amor e lealdade. Irá mentir, embora!... dirá, que compelido pelas circunstâncias e para fugir ao ódio de Fernando, que o persegue, vai desaparecer por algum tempo, ou talvez para sempre, se a sorte lhe não for propícia.

Para isso lhe é precisa uma entrevista particular com Leonor, idéia a que jamais se abalançara a ousadia do mancebo. Esse passo é de extrema dificuldade e quase impossível; Maurício, porém, o considera absolutamente necessário, imprescindível. Em vista do tratamento, que ultimamente recebera de Diogo Mendes, vedava-lhe o pundonor apresentar-se em casa dele; portanto nem lhe era possível avisar Leonor deste seu intento e pedir-lhe a permissão, bem como lugar e hora para a entrevista.

Tinha porém Maurício um grande e excelente recurso à sua disposição para achar-se em presença de Leonor a sós e sem ser visto por ninguém, no jardim que ficava por baixo do terraço, que, como sabe o leitor, era o lugar de recreio ou de recolhimento, em que Leonor costumava desabafar na solidão as magoas e saudades, que lhe oprimiam o coração. Era este jardim cercado por altos muros; não seria por cima deles que Maurício procuraria ingresso. Enormes e ferozes cães o vigiavam por fora, e pelo menos dariam alarma por toda a casa, se alguém tentasse galgar esses muros.

O jovem paulista ao construir a casa de Diogo Mendes tinha por ordem expressa dês te feito praticar nos aposentos do capitão-mó r uma porta oculta, e uma escada, que descia a um caminho subterrâneo, que ia respirar muito longe por fora dos muros da quinta...

Os esconderijos, portas e escadas secretas eram nos tempos coloniais muito comuns nas casas e fazendas dos homens ricos e importantes para terem um. refúgio ou meio de evasão em caso de perseguição política, ou de alguma sublevação do povo, ou dos escravos, ou de alguma irrupção de índios. A um desses esconderijos um dos inconfidentes de 17...  deveu escapar às garras dos ferozes agentes do governo da metrópole.

O caminho subterrâneo passava por baixo do jardim de Leonor, e não seria preciso a Maurício mais do que levantar uma das lages não mui pesadas, que serviam de pavimento às, ruelas do pequeno jardim, para nele se apresentar como um fantasma surgindo da campa. Ora como sobre este jardim só davam as janelas dos aposentos de Leonor, nenhum perigo havia de ser visto senão por ela. Esta comunicação secreta só era sabida pelo capitão-mor e Maurício; a própria Leonor não tinha ainda conhecimento dela.

Por largo tempo hesitou Maurício em sua escrupulosa consciência, se deveria aproveitar-se desta facilidade por ele mesmo criada não para fins indignos, pois respeitava Leonor, como se respeita o que há de mais santo. e sagrado, mas somente na previsão de futuras eventualidades. E de feito as circunstâncias especiais, em que a vinda de Fernando veio colocar a infeliz Leonor, iam em ordem a justificar as apreensões de Maurício.

Nessa noite Leonor, como era de costume antes de recolher-se, foi debruçar-se ao alpendre do terraço, e ali demorou-se largo tempo acabrunhada de cuidados, e entregue às mais sombrias e dolorosas imaginações. Era em agosto, fazia calor, e um escasso luar penetrando a custo através da espessa caligem, que toldava a atmosfera, mal alumiava as formas vagas das montanhas e os vales silenciosos, onde nem a mais leve brisa agitava os topes dos arvoredos naquelas desoladas regiões. A povoação sepulta na mais profunda mudez parecia completamente erma, posto que fossem quando muito nove horas. A opressão, que Fernando fazia pesar sobre os habitantes do lugar recalcava mudos e desalentados no fundo de seus lares sem alegria aqueles, que não andavam pelos matos aguçando o punhal da revolta. Nem uma cantiga, nem o som de uma guitarra, nem o rumor de uma conversação acordavam aqueles ecos como que recolhidos ao silêncio de uma pavorosa expectação.

Leonor também sentia sua alma apavorada e entregue às mais lúgubres apreensões. Ignorava o rompimento de seu pai com Maurício, e a falta de freqüência deste em sua casa, bem como o desaparecimento de Antônio ,causavam-lhe a mais dolorosa e pungente inquietação.

- Ai de mim! - gemia ela consigo na solidão de sua alma; - nunca me vi tão sozinha e desamparada! que terá havido entre meu pai e Maurício, que este não aparece mais aqui ?... e Antônio, que aqui vinha sempre tão alegre e esperançoso festejar a sua índia, o que será feito dele ?... Só vejo em volta de mim rostos sombrios e ferozes. Essas duas companheiras, que aqui vivem prisioneiras junto comigo, a pobre Helena, e a coitada da Judaíba, são duas crianças, mas assim mesmo são elas somente, que às vezes me sorriem e me consolam! são mais felizes que eu; conversam, brincam, riem, e eu não tenho boca senão para lastimar-me, não tenho olhos senão para orar neste desterro, a que vivo condenada!... Oh! minha boa terra de S. Paulo!... ah ! meu pai! ah! Maurício! Maurício!... por que desgraça viemos parar aqui !...

Súbito viu erguer-se como por encanto uma pedra, que lajeava uma das ruazinhas do jardim, e logo após surgir a cabeça e o vulto de um homem.

- Jesus!... exclamou Leonor pálida e trêmula recuando espavorida.

- Não se assuste, D. Leonor, - apressou-se em responder o vulto com voz abafada; - sou eu, Maurício.

-          Maurício!... ah !... mas como!... e para que fim vem aqui ?...

-           

- Perdoe-me, senhora, perdoe-me este atrevimento... Declare-me primeiramente, que me perdoa; depois eu lhe explicarei tudo.

- Perdôo, sim, perdôo, - disse Leonor balbuciante de emoção, - perdôo, mas...

- Ah! senhora, muito tenho a dizer-lhe, mas permita-me, que suba, ou ,desça a senhora ao jardim: se alguém nos ouvisse a voz...

- Mas, senhor Maurício, eu não devo... - balbuciou a moça hesitando.

- Tranqüilize-se, D. Leonor; eu a respeitarei como se respeitam os anjos, como se respeita a própria divindade, - replicou Maurício subindo os degraUB da peque.... na escada de cantaria, que subia ao terraço.

- D. Leonor, - continuou ele, - é preciso que falemos baixo e que nos envolva o maior mistério, que for possível. D. Leonor, perdoa-me !...

E dizendo isto o mancebo postava-se de joelhos aos pé de Leonor perturbado, arquejante e trêmulo de emoção. EI:a a primeira vez que se via assim a sós e misteriosamente em face dela.

- Levante-se, senhor!... oh ! presença aqui !... meu Deus!... nando sabem...

- Nada saberão, senhora; ninguém pode adivinhar esta entrevista, porque só eu sei do caminho, que aqui me conduziu. Não foi de certo para lhe fazer uma declaração de amor, que me animei a dar este passo; oh ! não era preciso; a senhora sabe, que eu adoro-a, mas... de circunstâncias fatais...

O mancebo interrompia-se e hesitava sem saber o que diria a Leonor.

- Ah! diga, - atalhou esta na mais viva inquietação, - diga, o que há demais?...

- Bem me custa dizer-lhe, mas é forçado a deixá-la, e venho dizer-lhe derradeiro!

- Que diz, senhor!... quem o obriga a deixar-nos !...

- Fernando, que me persegue, e acabará por me perder, e seu pai, que desconfia de mim, que me ameaça e me expele de sua casa. Sim, senhora, é preciso sumir-me, fugir para bem longe, e que ninguém saiba de mim para que não seja vítima das negras perfídias maquinações infernais de seu indigno primo.

- Oh ! - meu Deus! meu Deus! ainda mais este golpe!...

Exclamando assim Leonor cravava os olhos no céu com a mais angustiada expressão e apertava consultivamente as mãos sobre os seios ofegantes. Seu porte altivo e esbelto dobrava-se ao peso da dor, que a oprimia, e desenhava-se junto ao alpendre como a estátua da angústia nos mais ideais e harmônicos contornos.

- Oh! não; não é possível, que me deixe assim desamparada, - continuou ela; - tem ânimo para isso, senhor Maurício?!... pois não nos será possível desconcertar as intrigas e' perfídias de Fernando, desfazer-lhe as maquinações e resistir a suas perseguições?...

Maurício a contemplava sem responder; sua esplêndida beleza naquela penumbra misteriosa inspirava-lhe já não só amor, mas certo assombro, certa emoção solene, como até ali nunca sentira. Já ia de novo lançar-se a seus pés, tomar-lhe a mão e cobrindo-a de ardentes beijos dizer-lhe: - Não, não, Leonor! nunca te abandonarei; aqui ficarei a teus pés velando noite e dia...

Um rumor longínquo, que pouco a pouco vinha se aproximando, os veio sobressaltar e interromper-lhes as confidências. Era uma vozeria confusa de altercações, gritos e lamentos, e dentre em poucos momentos os dois amantes puderam ouvir mais distintamente algumas palavras e frases soltas.

- Foram os malditos paulistas, que o mataram, não há dúvida, - bradavam as vozes. - Pobre Minhoto !... ainda hoje de manhã tão contente, tão cheio de vida, e agora... - Ai, meu Deus!. nesta terra anda-se com um pé na sepultura,!... Terra de ladrões e assassinos!... enquanto não dermos cabo destes paulistas !...

Ouvindo estas vozes soltas Leonor e Maurício compreenderam tudo que havia. Percebendo que o grupo se dirigia para a casa do capitão-mor, e viria pôr em alvoroço todos os seus habitantes:

- Adeus, D. Leonor ! - disse Maurício com rapidez; - é preciso separarmo-nos já e já. Voltarei amanhã; permite?...

Leonor não respondeu, mas estendeu a mão a Maurício, que nela imprimiu um beijo repassado de respeito e de amor.

A filha de Diogo Mendes correu consternada a encerrar-se em sua câmara, e Maurício de novo desapareceu como um duende debaixo da lajem do jardim, e correndo com toda a presteza foi mais de perto espreitar sem ser conhecido, o que significava aquele rumor e ajuntamento. Alguns emboabas conduziam um cadáver em uma rede; a estes vieram se ajuntando pelo caminho muitos outros, que formavam em torno da fúnebre rede aquele préstito sinistro, e aquele coro de imprecações, gritos, blasfêmias e lamentos. O cadáver era do Minhoto, que já conhecemos como um dos mais opulentos mineiros do lugar, e como um dos mais avaros e abjetos de entre os mortais. Tinha ele nessa manhã saído a caçar veados em companhia de mais três ou quatro de seus patrícios dirigindo-se pelas margens do Rio das Mortes águas acima. Tendo ficado sozinho em uma espera, seus companheiros, que se tinham ido postar em outras em pontos muito remotos, aí se conservaram por largo tempo em seus postos atendendo ao toque dos cães. Por fim perceberam que o veado, ou qualquer que fosse a caça, se dirigia para o lado do Minhoto, e ouviram-no atirar. Correram para o ponto, onde ficara de espera, e ali não encontraram nem Minhoto, nem veado, e nem a cavalgadura, e só ouviram a batida dos cães, que lá iam perseguindo um veado pela floresta além, Sobremaneira aflitos entraram a gritar, a dar tiros, a ver se o homem acudia; foi debalde, A tarde inteira assim andaram gritando e campeando por todos os cantos sem resultado algum. Enfim, à boca da noite, guiados pelos cães, que voltavam do mato, foram dar com o pobre homem já cadáver, estendido à beira de um córrego, banhado em sangue, e com o peito atravessado de muitas zagaiadas. Consternados, cheios de dó e terror os caçadores atravessaram o cadáver sobre um dos animais, e o vieram conduzindo, enquanto um deles a toda pressa corria ao povoado dar parte do ocorrido, e trazer uma rede para poderem levar o cadáver com mais decência e comodidade para a povoação, onde chegaram à hora avançada, em que os vimos entrar.

Maurício, postado em lugar onde não podia ser percebido pela multidão, os viu chegarem entre alaridos e lamentações à casa do capitão-mor, e entrarem no pátio. Diogo Mendes, Fernando, e todos de casa imediatamente acudiram de tropel à varanda, e começaram a indagação do fato, que foi exposto de um modo tumultuoso querendo todos falar ao mesmo tempo. Como falavam em altas vozes, Maurício de fora do pátio pôde ouvir tudo e ficar inteirado de todo o ocorrido.

- Isto não é senão obra desses malvados paulistas, - bradavam quase todos; e não pode ser outro senão o Calixto, que a muito tinha sede do sangue deste infeliz, e o tinha jurado por autor da filha do ferreiro.

- Tal e qual, senhor capitão-mor, o Minhoto não tinha aqui indisposição com ninguém mais; era um bom homem, que a ninguém fazia mal; é o Calixto; não pode ser outro.

- Pois bem, - gritou o capitão-mor, - vão depressa à casa do Calixto, e tragam-no já aqui amarrado à minha presença, e bem assim todos os paulistas, bugres ou pessoas suspeitas, que encontrarem por aí vagando.

Imediatamente uma numerosa troça de portugueses entre ameaçadoras vociferações se pôs em marcha para a casa de mestre Bueno. Maurício calculou, que àquelas horas Bueno e Calixto deveriam estar ao menos em caminho para a gruta; mas não tinha disso certeza. Em qualquer das contingências o caso era grave. A ausência deles a tais deshoras seria um indício altamente (comprometedor para eles e para todos os paulistas. A presença porém ainda mais funesta seria, porque iria entregar ao furor e perseguição dos emboabas aqueles bons, prestimosos e valentes companheiros, e em todo caso aquele fatal incidente poderia gorar a revolta com grande dano para seus patrícios. Compreendendo tudo isto Maurício entendeu que lhe cumpria antes de tudo procurar salvar seus dois amigos das garras dos portugueses para depois pensar no que conviria fazer.

A pé como se achava bota-se a caminho, e chega muito antes do que os emboabas à casa de mestre Bueno, onde felizmente já ninguém encontrou. Lembrando-se que também poderia ser procurado para averiguações, e que se não fosse encontrado em casa despertaria também graves suspeitas contra si, voltou com mais celeridade ainda do que tinha ido, desviou-se e escondeu-se cautelosamente dos emboabas, que iam em diligência subindo a encosta, e em menos de um quarto de hora achou-se em casa. Felizmente nem o capitão-mor, nem Fernando se lembraram de chamar a ele, nem o Gil, que também não encontrariam em casa, ficando para o dia seguinte a continuação das averiguações por ir a noite muito adiantada.

Já passava muito de meia noite; Maurício, vivamente preocupado com a idéia daquele incidente e extenuado de fadigas e emoções, ia lançar-se no leito, quando lembrou-se de Antônio, que lá deixara na gruta exposto por amor dele aos punhais, zagaias e flechas de uma turma feroz e desconfiada, e estremeceu ao pensar, que talvez já fosse tarde, amaldiçoando a fatal ocorrência do assassínio do emboaba, que ainda mais arriscada vinha tornar a já tão crítica e melindrosa situação dos insurgentes.

Já se tinham esvaecido todos os rumores, as portas se haviam fechado, e tudo parecia adormecido em profundo silêncio. Maurício correu à cavalariça, arreou a pressa o seu melhor animal, e depois de ter saído lenta e cautelosamente da povoação, meteu esporas ao cavalo e partiu a bom galopar em direção à gruta de Irabussu.


Capítulo XV

O tição fatídico

Enquanto estes fatos, de 'que viemos de dar conta, se passavam na povoação, sucessos não menos importantes se davam na gruta de Irabussu.

À hora, em que Maurício era distrai do violentamente da sua entrevista com Leonor pelos rumores do assassinato do Minhoto, os insurgentes, já reunidos em grande número, uns sentados em roda do fogo, outros movendo-se e conversando misteriosamente pelos recantos da caverna escassamente alumiados, esperavam com impaciência a vinda de Maurício, e de Gil, seu chefe, que ainda não tinham aparecido.

Estendido sobre um grande pedaço de estalagmite a alguns passos da fogueira, fazendo travesseiro de um dos braços e com o rosto voltado para o fogo, Antônio dormia tranqüila e profundamente. O clarão da fogueira aluminava-lhe as faces bronzeadas e os musculosos membros, que se desenhavam em linhas vivas e harmoniosas sobre a rocha branquicenta; dir-se-ia estátua de lavor admirável, moldada em bronze e servindo de ornato a um catafalco de mármore. Junto dele um negro e um bugre, sentados no chão um do, lado dos pés, outro da cabeceira, o cotovelo firmado sobre a pedra, que servia de leito ao prisioneiro, e a cabeça encostada a uma palma da mão, formavam com Antônio o mais pitoresco e curioso grupo escultural. Estavam encarregados de guardar Antônio com a maior vigilância afim de estorvar-lhe qualquer tentativa de fuga. Se conhecessem bem o caboclo, se soubessem a que ponto chegava sua dedicação e lealdade, e a confiança fanática, que depositava em seu patrão, ter-se-iam forrado a tantas vigílias e precauções.

- Com mil diabos!... que demora! - diziam os insurgentes impacientados. - Isto ainda nos põe a perder; e se nos acontecer algum transtorno, a culpa, já se sabe, é de Gil ou desse tal senhor Maurício, que só Serve para nos atrapalhar. Não sei que mais esperam.

- Com Maurício ninguém deve contar; a filha do capitão-mor o traz pelo beiço, e muito será, que ele nos não entregue...

- Tão digas isso!... pois ele será capaz de deixar morrer esse pobre bugre, que por ele dá a cabeça ?...

- Eu sei, lá, homem!... o amor é mais forte que a amizade, e portanto não é de admirar que ele cá não venha.

- Vem, - afirmou um paulista no tom da mais firme convicção; - Maurício é incapaz de uma traição; e não vindo ele seria duas vezes traidor, traidor à amizade, traidor a seus patrícios.

- E vindo, - replicou outro, - também será duas vezes traidor; atraiçoa a amizade do capitão-mor, que foi quem o fez gente, e ao amor, que tem à sua filha.Traição por traição é bem possível que antes queira atraiçoar a nós.

-Com efeito!... vejam em que talas está metido o pobre homem!... não tem por onde se mexer...

- Talvez ache meio de safar-se sem trair a um nem a outros; não o julgo capaz de uma infâmia.

- Venha ou não venha, o certo é que não podemos contar com ele; mas o Gil... não sei por que tanto se demora... mas ei-lo que chega!... ainda bem!... já não nos falta tudo.

- Já não nos falta nada, deverias dizer.

De feito Gil vinha entrando na gruta. Sua presença foi saudada com demonstrações de prazer e entusiasmo por aqueles infelizes, que suspiravam pelo momento de libertarem-se da bárbara opressão, que os esmagava. Gil, vítima não menos perseguida e maltratada do que eles, jovem cheio de franqueza e lealdade, de altivez e resolução, inspirava-lhes a mais decidida confiança.

O primeiro cuidado de Gil foi perguntar por Maurício. Sabendo que ainda não era chegado anuviou-se lhe a fronte e tornou-se pensativo. Antes de sair do povoado para dirigir-se à gruta tinha ido à casa de Maurício justamente ao tempo em que este galgava a serra do Lenheiro para dar aviso a Bueno e Calixto do que se passava. Gil, que ignorava ainda a terrível ocorrência dessa noite, não achando em casa o seu amigo, supôs muito naturalmente que já teria partido para a gruta, e para lá botou-se também com toda a presteza. Pode-se imaginar qual não seria a sua inquietação e ansiedade não o encontrando ali. Tinha plena e íntima convicção de que Maurício era incapaz de uma traição; mas a sua ausência incutia-lhe as mais graves apreensões pensando em mil funestas eventualidades, que poderiam motivar aquela falta. Não estando em casa, não se achando com Calixto ou Bueno, que ali estavam presentes, onde poderia ele achar-se? não era possível ter-se transviado ele que melhor que ninguém conhecia não o caminho, que nenhum havia, mas a direção da gruta. Inquieto e altamente contrariado, Gil estava a ponto de sair de novo em procura do amigo; mas não o .consentiram os companheiros, a quem o ar sombrio de Gil começava a inspirar graves desconfianças por conta de Maurício.

- Passamos bem sem ele, - diziam, - um homem assim também, quando não seja um perigo, é sempre um estorvo em empresas desta ordem...

- E se nos atraiçoar? - dizia outro.

- Nunca o fará; eu o juro por minha alma, - replicou Gil com vivacidade.

- E se o fizer, tanto pior para ele; a vida lhe há de custar. Tenho pena é desse caboclo, que ali está a dormir tão sossegado, coitado! e nem sabe quanto à cabeça lhe está mal segura sobre os ombros.

- É mais um penhor seguro, - insistiu Gil, - de que Maurício mais tarde ou mais cedo aqui se achará conosco, salvo se alguma fatalidade...

O diálogo é neste momento interrompido pelo súbito e quase maravilhoso aparecimento de um vultozinho ligeiro, franzino e leve como um sagüi, que saltou no meio deles como por encanto sem se ver donde viera, nem por onde havia entrado.

Vinha extravagantemente trajado com roupa listrada de cores vivas e carapuça vermelha.

- Virgem santa!... que é isto! - exclamavam recuando espavoridos. - É o capeta! - cruz!... credo!... ave Maria!

E todos aterrados pensaram ver um duende, ou o filho de Satanás em pessoa surgindo no meio deles.

- Não se assustem; sou eu, - gritou o vulto fazendo uma pirueta e dando uma gargalhada - pois não conhecem o Tiago ?...

- Fora! fora este maroto! - bradaram alguns, - quem te chamou aqui, malandro?...

- Fora não, - replicaram outros. – Acabemos com ele; se sair daqui, este patife é bem capaz de nos ir entregar.

Antes de prosseguirmos, digamos por que maneira o mameluco tinha vindo à gruta, e quais suas intenções. Esse diabrete, que em tudo se metia imperceptivelmente como piolho por costuras, com o seu tino e perspicácia diabólica tinha cismado, como já dissemos, que se tramava uma sublevação, e comunicara a Fernando suas desconfianças. Instigado pela natural malvadeza e também pelas promessas do amo, assentou de seguir os vestígios da conspiração a fim de descobri-la a toda luz, e entendeu que o verdadeiro meio para isso era procurar tomar parte nela.

Uma vez conseguido isto fácil lhe seria atraiçoar uma ou outra parte, ou a ambas. Como tinha cabimento em todas as casas o velhaquete, assim como lisonjeava todas as paixões de seus amos, simulando por eles a mais submissa e afetuosa dedicação, entre os paulistas aplaudia-os e instigava-os em seus ressentimentos, mostrando-se um dos mais encarniçados inimigos dos emboabas, no que não mentia, pois o diabrete parecia odiar todo o gênero humano.

Para dar começo a seus planos foi ter com mestre Bueno, com quem tinha relações antigas, e deu-se por sabedor de tudo. Com desmarcado atilamento, e com instinto quase divinatório e, como se costuma dizer, plantando verde para colher maduro, mostrou que estava ao fato de quase tudo, que se tramava.

Bueno, que conhecia o mameluco desde S. Paulo, e nunca se iludira a respeito de sua índole treda e perversa, ficou surpreendido e inquieto ao último ponto com as declarações do rapaz.

- E como soubeste disso tudo ?... perguntou-lhe com desconfiança.

O velhaquete deu-lhe a mesma resposta, que já havia dado a Fernando:

- Tenho aqui um dedinho, que me conta tudo. Mas não se assuste, meu velho; sou eu só quem sei, eu só e mais ninguém, e juro-lhe, que me arrancarão antes a língua do que uma só palavra a tal respeito.

- Olha que te matamos, se fizeres alguma tratantada !...

- Como hei de fazê-la, se eu quero também ser da partida, e é para isso que o vim procurar...

- Ah !... tu queres ser dos nossos!... umh !  resmungou o velho; - não sei!... que mal te fizeram teus amos para seres, contra eles ? ... olha, que os queremos matar a todos um por um.

- Tal é também meu desejo; tenho sede do sangue dessa canalha... Vm. não faz idéia do quanto me fazem sofrer; se eu fosse lhe contar agora seria um nunca acabar... mais tarde lhe contarei tudo... mas diga-me, aceitam-me ou não ? olhem, que posso ajudá-las mais do que ninguém.

- Disso estou eu certo; és o macaco mais ardiloso, que conheço.

- Pois então?

- Pois então... não sei o que te diga.

- Como não sabe? !... não está tudo pronto?... mais um companheiro que mal faz?...

- Eu sei lá, rapaz; bem vejo que só a ferro o que se pode levar essa canalha, que nos quer por o pescoço; mas por ora não sei de nada; vai-te com Deus!

- Não sabe!... mas se eu lhe digo, que sei de tudo.

- De que sabes, maldito?... bradou Bueno perdendo a calma.

-Ora de que sei!...já não lhe disse ... Vossemecês, seja lá onde for, se ajuntam todas as noites, e de certo não é para nenhum folguedo. Se vossemecê não quer ser da partida, eu cá hei de ser por força.

- Infame ! - ia bradar o ferreiro com o punho fechado sobre a cabeça do mameluco; mas reportou-se a tempo, calou-se e ficou pensativo. Depois de refletir alguns instantes convenceu-se que não havia remédio senão admitir aquele novo adepto na sublevação, que projetavam. Era um sócio na verdade, mas como recusá-lo, se de tudo estava informado e tinha-se iniciado a si mesmo?...

Tiago ficou pois inteirado da existência de um plano de revolta contra os emboabas, ou antes suas suspeitas tornaram-se certeza; só lhe faltava saber o lugar, onde se reuniam os insurgentes. Bueno não lho quis revelar, mas o matreiro caboclo jurou consigo que havia de descobri-lo. A poder de espionar fora de horas, e de acompanhar invisível, como um silfo noturno, os vultos, que via, na noite do mesmo dia, em que estivera com Bueno, soube da existência e do caminho da caverna de Irabussu. No dia seguinte lá foi de novo examinar.Já

melhor à luz do sol por fora e em derredor, não ousando entrar por ter ouvido uns sons como de voz humana no interior. Depois flanqueando o morro, em cuja base se abre a gruta, galgou-lhe o tope, e penetrando no mato, que lhe cobre o cimo, aí examinou tudo com minucioso cuidado. Viu as frestas, que se abriam na cúpola, notou as grossas raízes, que árvores gigantescas embebiam pelas fendas dos rochedos, e que estendendo-se de alto a baixo pelo vão da abóbada como as cordagens de um navio vinham cravar-se no rochão úmido da gruta a beber o suco, com que alimentavam por cima de áridas rochas calcáreas

a mais viçosa e robusta vegetação. Empoleirando-se em um friso dessas broncas claraboias, quê se abriam no cimo, da cúpola e derramavam no interior uma frouxa luz crepuscular, agarrando-se às raízes e aos cipós e suspenso a vinte metros rucima do chão não sem grande perigo pôde examinar a gruta e formar uma tal ou qual idéia de seu interior, e o que mais é, pôde bruxulear e reconhecer naquela pavorosa penumbra alguns dos vultos, que lá se achavam, e ouvir-lhes as falas, pois falavam alto e bom som na crença, em que estavam, de que era impossível que algum ser humano os pudesse ver ou ouvir.

Ali conservou-se largo tempo a espreitar e escutar; pelas conversas, que ouviu posto .que mal e confusamente, e pelo que já sabia e desconfiava ficou plenamente informado de todos os segredos da sublevação. Tinha conhecido perfeitamente não tanto a figura, como a voz de Calixto, de Bueno e outros paulistas, que depois do assassinato do Minhoto ali se conservavam noite e dia sem ousar voltar à povoação. Conheceu também a Antônio e depreendeu de várias falas os motivos especiais, por que Antônio ali se achava detido, a desconfiança, que havia contra Maurício, e várias outras particularidades. E assim ali ficou o perverso diabrete durante toda a tarde e um bom pedaço da noite espiando e escutando para melhor inteirar-se de tudo até o momento, em que o vimos, escorregando por uma das raízes, que se prendiam a cúpula da 'Caverna, pular entre os insurgentes com toda a audácia e seguridade, de quem tinha entre as mãos a sorte deles.

- Se soubessem o motivo, que aqui me traz, - respondeu ele às ameaças dos insurgentes, - em vez de me tocarem e quererem me matar, haviam de cair a meus pés de joelhos para me agradecer. Mas se quiserem, matem-me, e verão o resto.

- Isto é um velhaco, um embusteiro de primeira força, que virá enredar-nos a nós todos. Nada de ouvílo; a melhor coisa, que podermos fazer, é enforca-lo neste instante.

- Não, não, - gritou Bueno; - melhor é deixarem-no falar; quem sabe o que será.

- Se me dão licença antes de me matarem quero dar-lhes um aviso da maior importância.

- Qual é ?... qual é ?... perguntaram todos no auge da ansiedade.

- Pois saibam todos que aqui se acham presentes, que estão sendo atraiçoados, - disse pausadamente o mameluco.

- Atraiçoados!...  tu mentes, mameluco !...

- É tão verdade como o estar eu agora aqui, insistiu com firmeza o caboclo. - O capitão-mor e Fernando, se ainda não sabem de tudo com certeza, pelo menos têm notícia deste levante, e sabem muito bem quais, são os cabeças.

- E qual será o denunciante ?... não sabes ?... qual o vil, que nos atraiçoa ?...

- Ora quem é ?... pois ainda perguntam! ?...

- Quem é 1?... fala depressa, maldito!...

- Um, que é carne e unha com aquele, que ali está a dormir, - respondeu. o mameluco apontando para Antônio, que apesar de toda a algazarra continuava a ressonar tranqüilamente em cima de sua pedra.

- Mentes, bradou Gil, - Maurício nunca nos trairá!...

- Verão os que tiverem olhos para ver, - respondeu com firmeza o mameluco.

- Morra o traidor!... morra!... vociferou uma multidão de Vozes.

- Mas onde achá-lo agora?... quem tem de pagar por ele é esse bugre, que ali está a dormir. Bem feito!... quem se sacrifica por um traidor, é tão bom como ele.

- Pois morra o bugre !... tão boa é a corda como a caçamba. Pague-nos o criado, em quanto não ajustamos conta com o patrão.

- Companheiro, acorda! - bradou um dos sinistros vultos, que se achavam de sentinela à Antônio, sacudindo-lhe o braço.

- Que é isso lá, minha gente ! - murmurou Antônio erguendo-se sobre o cotovelo depois de esfregar os olhos, e passeando em derredor de si as vistas turvadas pelos vapores do sono. - Que é do patrão?... não veio ainda ?...

- Ainda não, e é por isso mesmo, que te acordamos; mas é por pouco tempo, meu bugre, por que vais breve pegar em um sono, de que nunca mais acordarás.

- O que há de novo então, gente ! - tornou Antônio a perguntar já um pouco abalado com a vista de uma porção de facas e punhais, que em torno dele brandiam-se ameaçadores entre imprecações e gritos de morra !...

- O que há de novo, - replicou um, com uma das mãos agarrando-lhe o braço, e tendo na outra alçado um punhal; - o que há de novo é que teu amigo atraiçoou-nos, e é hora de morreres. Mas não te dê isso pena, porque te juramos, que ele em breve se achará em tua companhia nas caldeiras de Satanás.

- Meu amo traidor!... quem lhes contou isso?..- Ei-lo aqui está!... não conheces Tiago ?...

- Tiago !...oh? se conheço; isso é o maior embusteiro e mentiroso, que o sol cobre; já se sabe que mentira.

- Olhem, quem se atreve a desmentir-me!... exclamou o mameluco cada vez mais audacioso; - cala-te, bugre de uma figa; não sabes o que dizes... É mentira? !... e como é que eu, que não tenho mancomunado com nenhum de vossemecês, já sei de quase tudo ?!... não é verdade, mestre Bueno ?...

- É0 verdade!... infelizmente é verdade, - respondeu o velho ferreiro com voz lúgubre e pesada.

- E alguém dos que aqui estão, - continuou o mameluco, - contou-me coisa alguma ?.... respondam...

- Ninguém! ninguém!... eu não! nem eu ! nem eu! - responderam uma multidão de vozes.

- Então foi Maurício quem te contou !...

- Não de certo ! mas pior ainda; mas alguém que ouviu da boca dele, e encarregou-me de espiar-vos; mas eu...

- Quem foi? quem foi?... - fala de uma vez. - Quem mais senão o senhor Fernando !...

- Morra! morra o traidor! - foi este o brado, que retumbou horrísono pelas broncas abóbadas da caverna.

- É Antônio quem deve morrer, - exclamou o índio levantando-se calma e solenemente do seu leito de pedra; - e ele morre de coração alegre, porque morre por seu patrão. Mas mesmo assim com a morte diante dos olhos Antônio jura por essa cruz de Cristo, que Maurício não é traidor.

Dizendo isto o índio beijava um pequeno crucifixo de prata, que sempre trazia pendente ao pescoço.

Gil não podia ficar aquém da generosa dedicação do selvagem, e penetrado da mais íntima convicção também jurou por sua cabeça, que Maurício era incapaz de atraiçoa-las. Os outros, porém, à exceção de um pequeno número de paulistas, que conhecendo mais de perto Maurício, sabiam a que ponto chegava a nobreza e lealdade de seu coração, não puderam deixar de dar crédito aos veementes indícios e às fatais revelações, que o condenavam.

- Morram os traidores tanto o escravo como o senhor! - era o grito, que irrompia de quase lodos os lábios.

- Matem-me - bradava Antônio dominando com a voz toda aquela infernal celeuma. - Matem-me, já disse; morro satisfeito por meu patrão; mas antes de morrer sempre lhes quero dar um derradeiro aviso. Não se fiem nesse perverso mameluco. Se não lhe querem matar, prendam-no, amarrem-no bem, e não o deixem sair mais daqui. Quem desconfia de Maurício e de Antônio, pode ter confiança nesse infame embusteiro, fluem aí está?...

- Antônio fala com acerto, - disse Bueno olhando por achar um meio de livrarem-se daquela perigosa criaturinha, que tanto o incomodava. – Agarremos este velhaquete; eu bem o conheço. Seja embora verdade o que ele nos diz, não devemos nos fiar nele.

- De certo, e o melhor meio de nos vermos livres dele, é matá-lo e já, antes que nos escape.

Quando porém todos o procuravam com os olhos, o veloz e esguio columim já se tinha esgueirado e sumido como uma sombra. Em vão o procuraram pelos recantos da caverna; não foi possível encontrar aquele silfo aéreo e veloz como o vento.

- Ah !... mais um traidor que nos escapa, exclamou o negro que estava de sentinela a Antônio.

- Acabemos com este, que aqui está antes que também nos escorregue das mãos!...

- Morra! morra! - responderam muitas vozes, e ao mesmo tempo alguns punhais fuzilaram sobre a cabeça de Antônio.

- É cedo ainda, - gritou Gil arrojando-se por entre a turba e amparando Antônio com seu corpo a fazia recuar com daqui ao romper mos ainda.

- Pois esperemos, meu branco, - replicou o negro acomodando-se; - esperemos; mas olhe bem, - acrescentou atirando ao fogo um grosso toro de lenha; - é só enquanto esse pau acaba de arder...  esse pau é ao nossa paciência, que deve ter um fim. Se quando ele ficar em borralho, Maurício não chega, Antônio morre.

- Pois seja assim, - murmurou Gil.

- Seja assim, - concordaram todos...

- Deixemos o tição arder, - disse Antônio, e regurgitando-se tranqüilamente sobre seu leito de pedra de novo adormeceu, enquanto todos com ansiosa curiosidade tinham os olhos fitos no tição, que se consumia crepitando com fatal celeridade.

CAPITULO XVI

Entusiasmo e confiança

Ao sair da gruta Tiago deixara Antônio sob a ameaça de mais de vinte punhais, que se brandiam furiosos por cima da cabeça do infeliz caboclo, e contava como certo que cairia vítima daqueles selvagens. Ora cumpre saber que o mameluco, além do ódio, que votava ao gênero humano em geral, guardava para Antônio um quinhão um pouco mais avultado. Provinha isto principalmente de um fato muito recente, cujo resultado ainda lhe doía nos costados. Tiago também se agradara da gentil e interessante Judaíba, e um dia, em que se metera a engraçado junto dela tendo até o atrevimento de dar-lhe um beijo por surpresa, Antônio, a quem a índia já tinha avisado de suas más intenções, teve a fortuna de pilhá-lo em flagrante, e ali mesmo aos olhos de Judaíba, antes que ninguém pudesse acudi-lo, passou-lhe uma boa sova de chicotadas, socos e bofetadas. Pode-se ajuizar quanto seria violento o ódio do mameluco assanhado pelo incentivo da vingança. Dissimulou seu ressentimento aguardando o primeiro ensejo favorável para vingar-se dando-lhe cabo da vida. Sabedor das circunstâncias particulares por que o índio era retido na gruta, usou do pérfido ardil, que o vimos empregar para sacrificá-lo . Com esse ardil também imolava Maurício, a quem igualmente votava profundo rancor em razão da altivez e desprezo com que sempre o tratara por conhecer-lhe a índole perversa e abjeta.

Por outro lado Tiago, que nenhuma afeição nem benevolência sentia pelo capitão-mor nem por pessoa alguma de sua família, votava a Fernando ódio entranhável não só pela aversão natural, que todo o escravo, mesmo o de boa índole, tem a seu senhor, como porque Fernando, senhor tão imprudente como desumano, ao passo que lhe dava excessivas confianças e toda liberdade, não deixava também de azorragá-lo cruelmente pela mais leve falta. Portanto o mameluco folgaria infinitamente, se o visse cair trespassado aos golpes dos revoltosos, embora com ele tivesse de ver sucumbir também o capitão-mor, sua família e todos os emboabas. Assim para saciar seus instintos perversos convinha-lhe atraiçoar a uns e a outros, mas de um modo incompleto, de sorte que pudessem vir às mãos e degolarem-se uns aos outros com todo furor. Só assim seu espírito satânico poderia exulta-lo e tripudiar entre o sangue e as lágrimas alheias.

Dadas estas explicações, voltemos à gruta, onde deixamos ardendo o tição fatídico, que devia decidir da morte de Antônio e de Maurício. Gil, Bueno, Calixto e mais alguns paulistas, que se interessavam pelos dois, e não podiam ainda acreditar na deslealdade de Maurício, tinham os olhos pregados naquele lenho sinistro notando com angustiosa ansiedade os estragos da chama inexorável, que o devorava com terrível presteza. Só desviavam dele os olhos de quando em quando para dirigi-los à entrada da gruta a ver-se e nela assomava o vulto do amigo. Todos os mais insurgentes em inquieta expectação vinham também de quando em quando. examinar o tição. Mudos, ou murmurando apenas em voz baixa estavam diante daquela acha de lenha, como diante de formidável pitonisa, que acabavam de consultar, e que sentada sobre a trípode rodeada de chamas ia em breve proferir a sentença, que decidiria da sorte de dois homens.

Já cerca de uma hora tinha-se escoado; do tição só restava uma pequena extremidade, e Maurício não aparecia. Nunca para Gil o tempo volveu--se com tamanha rapidez. Inquieto e agitado saía às vezes de junto do fogo, e se dirigia à porta da gruta, olhava, espiava, escu

tava através da escuridão e silêncio da noite, e daí a instantes voltava de novo torvo e abatido para junto do fogo a contemplar os progressos da chama no maldito tição. Já se arrependia e maldizia-se pela facilidade, com que havia consentido no prazo fatal proposto pelo negro. Do tição já não restava senão um toco abrasado a desfazer-se em cinzas. Mais alguns minutos, e Antônio ia cair aos golpes daqueles sicários, e Maurício estava para sempre perdido. Enfim uma brasa incinerada e mortiça era o único resto daquele lenho a luzir como o débil fulgor de uma esperança prestes a esvaecer, ou como o olhar embaciado e frouxo do agonizante. Os punhais e as zagaias já lampejavam ameaçadores em redor do pobre caboclo adormecido.

Acorda, camarada! - bradou o negro. - Não quero que morras dormindo; era o mesmo que continuar a dormir.

- Ainda não, - gritou Gil colocando-se de um salto junto de Antônio. - Um momento ainda; um momento só !... olhem ainda resta uma faísca: deixemo-la apagar-se.

O ouvido de Gil sempre atilado e alerta tinha percebido ao longe um rumor surdo como o tropear de um cavalo a galope. Esse rumor, do qual até ali só ele se apercebera, ia-se avizinhando e tornando mais distinto, ao mesmo tempo que a fisionomia de Gil até ali torva e sombria ia se reanimando e expandindo, como o céu gradualmente se ilumina às aproximações do dia.

- É ele !... não ouvem? ei-lo que chega! exclamou Gil com a mais entusiástica e jubilosa emoção.

Todos os olhos voltaram-se imediatamente para a entrada da gruta, onde um momento depois assomou afigura de Maurício, que entrava a passos precipitados.

- Eis-me aqui, camaradas! - exclamou ele desembuçando o capote e lançando-o sobre uma pedra. - Antônio, Gil, Bueno, eis-me aqui, meus bravos amigos!...

- Qual o motivo por que tanto te demoraste! perguntou Gil. - Ah! Maurício! Maurício! tua demora nos ia sendo fatal!...

- Oh! perdão Gil; não foi por culpa minha... um triste acontecimento me forçou a demorar... Saibam que o Minhoto foi assassinado, e...

- Disso bem sabemos nós, - replicou o negro.

- Como assim? - perguntou Maurício.

- Fomos nós, que o matamos.

-Deveras!... pois fizeram mal!... foi uma imprudência, que nos vai criar novas dificuldades; devemos acabar com eles todos de um só golpe

- Mas que remédio tínhamos nós senão alinhava-1o, meu branco. Ele veio descobrir nossa toca, e ia nos entregar ao capitão-mor.

Realmente o Minhoto tendo saído a caçar, como já sabemos, com mais alguns companheiros dirigiram-se para o lado da gruta até às margens de Rio d’elvas, pequeno afluente do Rio das Mortes, que passa a pouca distância dela. Tendo lançado os cães ao mato aconteceu saltar um veado na espera, onde o Minhoto se achava sozinho. Este atirou e errou; com o estrondo do tiro seu cavalo, que estava atado a um arbusto, espantou-se, quebrou as rédeas, e deitou a fugir. O Minhoto pôs-se a correr por muito tempo debalde atrás deles, passou córregos, varou capões, transpôs morros, sem nunca poder apanhar o maldito cavalo, que sem correr muito contudo não permitia por-lhe a mão. Enfim completamente desorientado e morto de fadiga o perdeu de vista, e andou vagando à-toa, até que por uma fatal casualidade foi parar à entrada da grande gruta; contemplou-a por algum tempo cheio de assombro e terror.

Aplicou o ouvido, e como ouvisse lá por dentro um como rumor de vozes humanas, amedrontado como se achava, voltou-lhe as costas e desatou a correr fugindo daquele antro pavoroso.

Desgraçadamente para o Minhoto nesse momento vinha saindo da caverna um dos insurgentes, que ali estavam de guarda e quis a má estrela do Minhoto, que fosse o seu próprio escravo, o negro mina Joaquim. Apenas divisou aquele vulto que fugia, o negro levou os dedos a boca, e saltou um assovio estridente: Imediatamente acudiram mais alguns companheiros. Correram atrás dele, agarraram-no, cozeram-no a facadas, sem ao menos darem tempo ao mísero de implorar compaixão, foi obra de poucos momentos. Nem podia ser por menos, que era essa a ordem expressa e terminante, que haviam recebido de seus chefes. Qualquer pessoa suspeita ou mesmo estranha à insurreição, que caísse na desgraça de aparecer pelas vizinhanças aa gruta, devia sofrer imediata execução...

O negro Joaquim, na feroz sofreguidão, com que se atirou àquele ato de vandalismo, só reconheceu seu senhor, quando este trespassado de uma infinidade de golpes exalava o último suspiro.

- Ah! era Vm. meu senhor!... - exclamou ele com mostras de grande pesar. - Se eu soubesse, não o teria matado tão depressa... queria perguntar-lhe certas coisas... mas... o feito está feito !...

Depois de conferenciarem um momento entre si os assassinos tomaram o cadáver aos ombros, e o foram lançar em lugar o mais afastado possível e bem patente, para que o achassem logo, e não fossem à força procurá-lo descobrir o seu misterioso refúgio. Feito o que deram pressa em recolher-se.

De feito meia hora depois aí o foram encontrar os companheiros, e conduziram à povoação pela maneira que sabemos.

Inteirado Maurício deste sucesso explicou também em poucas palavras, como o assassinato do Minhoto o tinha impedido de comparecer na hora aprazada; esta explicação acabou de desvanecer completamente todas as desconfianças dos insurgentes.

- Agora, meus camaradas, - terminou ele, estou inteiramente à sua disposição. Só vos peço um dia, o dia de amanhã até a meia noite. É' preciso tomar ainda certas medidas para sermos bem sucedidos nesta nossa arrojada empresa. Daí em diante não sairei mais daqui; minha morada será esta 'caverna, e dela não sairemos senão para lavarmos todas as nossas injúrias e afrontas no sangue de nossos opressores. Não sei por que razão meus amigos desconfiaram de mim. Tenho talvez cem vezes mais razão do que todos, que aqui se acham, para odiar do fundo d’alma essa gente maldita, que nos quer esmagar. Eles me têm feito gemer com o coração torturado entre mil angústias, e com as faces ardentes dos mais infamantes ultrajes. Ninguém, eu vos juro, ninguém tem mais sede do que eu, do sangue de nossos perseguidores.

Esta linguagem fogosa acabou de extinguir naqueles ânimos grosseiros e fanáticos, tão fáceis do inflamaste em ódio e desconfiança, como em entusiasmo e dedicação, o último resquício de indisposição, que por ventura ainda sentiam contra Maurício. Antônio cheio de

júbilo e exaltação saltou ao colo de seu amo.

- Bravo !... muito bem, meu amo! exclamava, e voltando-se com ar triunfante para os insurgentes, que o rodeavam:

- Então? ! - lhes dizia na embriagues de um nobre e íntimo prazer ; - queriam me matar, corja de loucos!... não lhes dizia eu, que meu amo, que aqui está em meus braços, - estão vendo agora bem?... que meu amo... era mais fácil o dia tornar-se noite, do que ele atraiçoar-nos...

Todos os que eram hostis a Maurício e a Antônio, não excluindo o negro sentinela, que tão desapiedado se mostrara contra eles, foram se lançar aos pés deles pedindo-lhes perdão.

Gil, lembrando-se do que havia conchavado com seu amigo, aproveitando-se daquelas boas disposições, levantou sua voz sempre respeitada.

- Camaradas !... Maurício já aqui está conosco.

É o melhor desmentido, que se pode dar àqueles, que ainda ousaram julgá-lo desleal e traidor. Entretanto ele corre mais perigo do que qualquer de nós, e é o alvo principal das iras dos emboabas, e nenhum de nós deseja mais do que ele sacudir o jugo desta canalha de além mar, que nos quer tratar como escravos. Até aqui tenho sido vosso cabeça na falta de Maurício, que não podia estar sempre conosco; agora ele deve ser nosso comandante, porque ele ,conhece melhor do que nós a povoação e o inimigo, que temos de atacar, e tem muito mais juízo, prudência e habilidade do que eu, e portanto proponho Maurício para nosso chefe; aceitam ?...

- Aceitamos! aceitamos ! - bradaram todos.

Viva Maurício!... Viva! viva!...

Passado aquele momento de exaltação e entusiasmo, Maurício disse aos insurgentes:

- Meus amigos, a noite já vai muito adiantada; por hoje nada mais podemos fazer... é preciso que nos dispersemos... Amanhã sem falta à meia noite aqui me acharei.


Capítulo XVII

Invencível obstinação

No dia seguinte o arraial amanheceu em extraordinária agitação. O assassinato do Minhoto tinha enchido de pavor, consternação e sobressalto todos os emboabas. Receavam que fosse o prelúdio de mais matança, e os mais considerados e ricos de entre eles, apenas despontou o sol, se dirigiam à casa do capitão-mor', reclamando providências enérgicas e medidas de segurança, que pusessem suas vidas e propriedades ao abrigo de tão audaciosos e ferozes inimigos.

Por seu lado o capitão-mor também andava em contínuo movimento dando ordens e ativando diligências a fim de descobrir o autor ou autores da morte do Minhoto. Ia-se instaurar uma imensa devassa e fazerem-se as mais minuciosas pesquisas. Nenhum trabalhador livre ou escravo, nenhum paulista ou emboaba, de quem se pudesse esperar qualquer informação, pôde nesse dia ir ao serviço; todos foram intimados para a devassa.

Na varanda e no pátio do edifício formigava gente de toda a qualidade. Via-se a figura do capitão-mor' respeitável e simpática vociferando e dando ordens, entrando e saindo.

Só Fernando parecia calmo e satisfeito no meio do geral reboliço e inquietação. Sentia de feito dentro d’alma íntimo regozijo, que procurava dissimular com certo ar sombrio e preocupado. As coisas tocavam ao ponto, em que desejava vê-las. Que um levante se tramava era para ele cousa fora de toda a dúvida; os sintomas eram evidentes; o mameluco já o havia denunciado em parte e a morte do Minhoto era por certo o prelúdio de atentados em maior escala. Mas arrogante e fanfarrão como era contava abafar com um grito a insurreição, e esmagar os revoltosos, cuja sorte julgava ter já fechada nas, mãos. Todavia, para salvar aparências, não deixava de aprovar as medidas de cautela e segurança, que o capitão-mor ia tomando; mas por meio indiretos; - sempre fora esta sua linha de conduta,

longe de procurar prevenir qualquer insurreição, se esforçava por provocá-la; folgaria que ela se manifestasse por atos bem .claros e positivos. Só assim poderia lançar a garra sobre a principal vítima, que queria imolar, e feri-la sem piedade.

O assassinato do Minhoto abriu-lhe a porta para atos da mais violenta e brutal perseguição. Os paulistas aterrados trataram em grande parte de esconder-se. Os que o não puderam fazer, homens e mulheres, foram agarrados, sujeitos a bolos, açoites e torturas para confessarem quem matara o Minhoto, se havia plano de revolta, e declararem quais os seus cabeças.

Maurício, Gil e Antônio não podiam deixar de ser inquiridos. O capitão-mor deu ordem a Fernando, que mandasse trazê-los à sua presença.

- Para que fim ? - perguntou Fernando.

- Que pergunta! - replicou crespamente o capitão-mor; - para dizerem o que sabem, está visto; e se também forem traidores; ai deles !...

- Pois também, Maurício, - disse Fernando com acento da mais transparente ironia, - o vosso fiel e dedicado Maurício pode incorrer em suspeitas...

- Se nos é fiel, muito serviço nos poderá prestar na presente conjuntura; se não é, talvez também já se tenha posto ao fresco, ou facilmente se trairá...

- É escusado mandar chamá-los, - atalhou Fernando incivilmente; - ou não serão encontrados, por que andam tratando de seus negócios, - Fernando sublinhou esta palavra com certa inflexão irônica, - ou se aqui comparecerem, será para vos embair de novo, como vos tem embaído até hoje. Demais, senhor capitão-mor', se os paulistas andam forjando uma revolta, quais podem ser os cabeças...

- Que provas tem disso, Fernando ?... queres que eu creIa tão de leve em tão abominável aleive !...

- As provas não tardarão a aparecer do modo o mais patente e à luz do sol. Em vez de os inquirir, melhor seria agarrá-los desde já e trancá-los na masmorra; mas...

- Mas o que, Fernando ?...

- Mas é melhor esperar, que arrojem de todo a máscara, com que até aqui se têm disfarçado em amigos.

- Não; melhor é prevenir o mal. Presos e castigados os chefes, os outros se submeterão...

- Mas prender e castigar a quem, e por que? Se ainda nenhuma prova positiva temos nem mesmo da existência de um plano de levante, como havemos de saber quais os chefes?... É preciso colhê-los a todos em flagrante, e é isso que espero conseguir em menos tempo do que vossa mercê pensa.

- Não te entendo; pois não me dizias a pouco, que tem certeza?

- Sim, senhor; certeza tenho-a eu, mas faltam as provas, sem as quais nada poderemos fazer regularmente. Tranqüilize-se porém vossa mercê, que elas de hoje para amanhã aparecerão.

- Eu tranqüilizar-me, quando, segundo ainda com toda a segurança, sou alvo da mais revoltante aleivosia, quando sinto o seio mordido pela serpente, que nele abriguei?! Oh! Fernando! Fernando! Estás realmente certo ?... não te iludem as aparências... ou embustes de algum inimigo de Maurício ?...

- Esperemos, senhor; é por pouco tempo; eu o em prazo só até amanhã; suspenda até então seu juízo.

- Pois bem; suspenderei, e espero que a inocência ao menos de Maurício ficará patente.

- Ou sua traição desmascarada.

Muito de propósito e refletidamente, Fernando se empenhara em impedir que os dois jovens paulistas com parecessem à devassa. Semelhante medida os poria de sobreaviso; logo que desconfiassem, que eram também alvo de suspeitas, procurariam por qualquer meio evitar

o golpe certeiro, com que pretendia aniquilá-las. Cumpria-lhe pois deixá-las na descuidosa seguridade, em que os supunha, até que tivesse, como esperava, provas patentes e exuberantes, de que eles maquinavam às ocultas contra o capitão-mor e os portugueses, e para isso descansava na astúcia e habilidade satânica do seu mameluco.

O dia quase todo passou-se em investigações, pesquisas e inquéritos. As mais fortes suspeitas do atentado da véspera recaíram sobre Calixto, o amante preferido de Helena, rival do Minhoto, e que com ele tinha querelas e ajustes de contas antigas. Calixto foi procurado pelos algozes do capitão-mor por toda a povoação e suas imediações; não foi encontrado em parte alguma; novo e forte motivo de suspeição contra ele.

Entretanto Maurício e Gil não se achavam em tão completa seguridade, como supunha Fernando. O próprio Tiago, de cujas manhas e habilidade ele esperava com tanta confiança o pleno sucesso de seus planos, já na noite antecedente, como sabemos, tinha posto de sobreaviso a todos os conspiradores. Em razão desse aviso, e também das perseguições resultantes do assassinato do Minhoto, nenhum deles nesse dia apareceu na povoação achando-se todos refugiados na caverna, à exceção de Maurício, Gil e Antônio. Este vagueava às escondidas em roda da Casa do capitão-mor, como gato do mato, que negaceia uma pomba, por motivos, que daqui a pouco saberemos. Gil, pela mais extremosa dedicação a seu amigo arrostando uma situação perigosíssima instava em vão com ele para que deixasse quanto antes a povoação; Maurício, porém, queda e inabalável em sua casa obstinava-se em ali permanecer até à noite.

O sol já ia bem baixo no horizonte, e ainda Gil não pudera demover o amigo de seu pertinaz propósito.

- Só um cego, - dizia-lhe Gil, não vê, que aquele endiabrado mameluco, que ontem não conseguiu vingar-se de ti, e de Antônio na gruta, e que de lá fugiu escorraçado, nos irá denunciar, se é que já não denunciou.

- Mas julgas, que se ele quisesse revelar alguma; cousa já não o teria feito e se o tivesse feito, estaríamos aqui ainda livres e tranqüilos? - objetava Maurício procurando ainda razões especiosas para justificar sua fatal resolução evitando tocar no verdadeiro motivo, que ali o prendia.

- Não sei, - respondeu Gil, - mas daqui à noite ainda vai tempo, e Deus sabe o que acontecerá. Acredita-me, Maurício, não estamos aqui seguros, e considera, que conosco vamos sacrificar também nossos patrícios que nos esperarão debalde.

- Vai tu só agora, Gil; se não me matarem ou prenderem, o que acho difícil, lá estarei antes de meia noite. Vai; eu te peço, em nome deles e da nossa amizade. Quero ser o único sacrificado.

- E eu quero salvar-te a ti, e a honra de tua palavra, que é a de todos os paulistas.

- Deixem corro só por minha conta a minha vida e a minha honra.

- Que cegueira, meu Deus! - murmurou Gil na mais angustiosa impaciência; - Maurício, estarás louco ?...

- Não sei...pode ser. Mas sinto, que me é forçoso aqui ficar até a noite... ordena-me o coração, que fique aqui ainda, que não fuja...

- Senão, quando o raio cair-te em casa.

- Os raios do céu não podem ferir quem procura amparar um anjo. Os raios da terra... esses não me fazem medo.

- Eis volta de novo à tua fatal loucura!... O que pretendes pois Maurício?... o que esperas?...

- Espero a noite, e à sombra dela pretendo conspirar contra o capitão-mor e sua filha para salvá-los a eles e punir nossos opressores.

- Salvem-se!... fujam! - bradou a voz de uma pessoa que entrava precipitadamente. Era Antônio, que vinha arquejante de cansaço.

- Que te dizia eu, Maurício !... - disse Gil com acento indefinível.

- Vossemecês estão perdidos, se não fogem neste instante. Venho da casa do patrão velho neste momento; o maldito mameluco acaba de contar neste instante ao senhor Fernando tudo quanto estamos fazendo.

- Mas como pudeste lá ir ? - perguntou Gil. - Não se importe com isso, patrão. O certo é que Antônio lá esteve; ninguém o viu e ele viu e ouviu tudo.

- Que mais esperas, Maurício? - disse Gil a seu amigo. – Traindo-nos.

- Daqui não saio, enquanto for dia, - respondeu Maurício com acento de inquebrantável firmeza. – Vai tu Gil; escapa ao ódio de nossos perseguidores; vai à caverna dirigir as coisas. Se a mão dos algozes não me apanhar, antes da meia noite lá me acharei. Mas tu, Antônio, fica ainda um momento; preciso de ti.


Capítulo XVIII

Mil dobras pela cabeça de Maurício

É preciso explicar por que modo Antônio surpreendera Tiago denunciando a Fernando e a conspiração. Lembra-se o leitor, que desde que Diogo Mendes se afeiçoara a Judaíba, sabendo que Antônio era seu rival, e rival preferido e muito amado da jovem carijó, exigiu de Maurício a entrega do índio, que era escravo seu. Avisado por Maurício, Antônio, esperto e inteligente como era, sabendo que seria agarrado, removido para bem longe, e talvez mesmo vendido, julgou prudente acautelar-se, e só aparecia na gruta no meio dos insurgentes, na povoação somente a Maurício e Gil, isso mesmo com precauções, que ele bem sabia empregar com a maior astúcia e agilidade. Entretanto com 'cuidados e saudades de sua ,Judaíba rondava continuamente pelo povoado exposto ao maior perigo em dia claro, porque a noite devia achar-se na gruta.

Na tarde, em que nos alijamos, ele ansioso por falar a Judaíba, alentá-la, tranqüiliza-la, comunicando-lhe seus planos e esperanças, penetrou ousadamente na casa do capitão-mor. A ocasião era propícia; a casa, que até ali se achava atulhada de gente em razão da devassa, agora achava-se quase deserta. A maior parte de seus habitantes, inclusive o capitão-mor e seu filho, tinham ido acompanhar ao último jazigo o cadáver do Minhoto, que ia ser sepultado com todas as honras devidas à sua posição pecuniária na capela, a qual ficava bastantemente distante. Antônio, como dissemos, penetrou ousadamente pela casa a dentro, foi até um pátio interior sem encontrar pessoa alguma, escondeu-se em uma cavalariça, e aí escondido ficou espreitando as janelas, que davam para o pátio esperando ver Judaíba. Mas em vez desta viu assomar a uma das janelas o vulto de Fernando acompanhado de Tiago. Estavam em distância, que Antônio os podia ouvir perfeitamente.

- Que estás aí a dizer, maroto ?... ah! se pretendes enganar-me !... - dizia o fidalgo ao seu pajem.

- Não, senhor; desta feita descobri tudo, tudo... E quer vossa mercê saber ainda mais uma cousa ?...

- O que ?... fala depressa.

- O lugar, onde se ajuntam, pelos sinais não pode ser outra cousa mais do que a mina do tal Irabussu, e onde esse maldito feiticeiro enterrou-se para sempre com cinco dos nossos.

- Não me venhas pregar carapetões, que te passo o chicote, ouviste?... como podes saber isso ?!...

- Pois eu já não disse que estive em uma grande lapa e no meio deles...

- É verdade!... tens razão! - murmurou Fernando como falando consigo. - Oh! a gruta de Irabussu, e dentro dela Maurício e ouro!... A riqueza e a vingança! será possível!... Que achado, meu Tiago ! - continuou voltando-se para o pajem com alegre vivacidade; - quantos proveitos!... se falar a verdade, sou capaz de te fazer príncipe... mas... onde é essa gruta?

- Dizer não é possível; ninguém é capaz de atinar com ela, por mais que se ensine; só eu mesmo indo mostrá-la.

- Pois hás de nô-la mostrar hoje mesmo.

- Hoje, senhor!... não tarda a anoitecer; de dia mesmo é custoso, e de noite, a não serem eles, que já estão mestres no ruim, não há quem possa dar  com a tal maldita buraqueira; só amanhã.

- Pois bem; amanhã pela madrugada sairemos com gente a dar no tal quilombo... mas ainda nada me disseste do levante; quais são os principais da troça!

- Além do Maurício, lá está o altanado do Gil e um certo bugre, chamado Antônio... vossa mercê bem o conhece por fora, mas não sabe que alma danada está ali, fica sabendo agora; mil forcas que houvessem para aquele diabo...

- Está bem! está bem!... quais eram os outros...

- Os outros ?...  um velho ferreiro enfarruscado, o maroto do Calixto, que teve a petulância de...

- Depressa! dize os nomes e deixa-te de qualificações e observações; eu os conheço a todos. Mais quem?...

- E mais um bando de bugres e negros que não conheço.

- E eram muitos...

- Muitos! Nem nunca!... umas duas a três dúzias de farroupilhas que vossa mercê com dois tiros esparrama num instante.

- Bem! vai-te embora.

O mameluco retirou-se.

- Oh! que excelente achado! - continuou Fernando a falar consigo. - Vou dar parte a meu tio, apenas chegar do enterro. Como há de folgar com semelhante notícia!...

Terminando este breve monólogo Fernando também retirou-se da janela. Antônio não queria, nem precisava ouvir mais. Esquecido de Judaíba saiu de teu esconderijo, atravessou de novo a casa como de  um silfo invisível, ganhou a rua e deitou a correr para a casa de

Maurício com a velocidade do gamo, a dar aviso, que já vimos.

O capitão-mor não tardou, e apenas entrou em casa e Fernando correu açodado a informá-lo do que acabava de saber da boca de Tiago. O capitão-mor escutou indignado as revelações de seu secretário, e como que lhe custava dar crédito ao que ouvia, apesar dos caracteres

de máxima probabilidade e quase evidência, que acompanhavam aquela delação.

- Já e já, - bradou em assomo de dolorosa indignação, - quero vê-los aqui presos os três,. Maurício, Gil e Antônio com os pés metidos em um tronco e o pescoço em uma guilhotina !... E ai deles, se for verdade! terão de pagar com a vida.

Fernando triunfante intercedeu ironicamente:

- Não podemos ainda acreditar tão de leve, disse com imperceptível sorriso de malignidade; - o dito desse maroto não é lá grande prova. Além disso, se realmente estão tramando contra nós, havemos de apanhá-los todos de um só lance de rede. Para que assustá-los já !... deixá-los prosseguir.

- Então devemos esperar que a traição se revele em traços de sangue ?!...

- Não se inquiete meu tio; está já preparada a rede, em que todos serão colhidos de um só golpe sem poderem tugir nem mugir. Amanhã ficaremos livres desses perros e vossa mercê desabusado de suas ilusões.

- Praza ao céu, Fernando!... mas Maurício! Maurício traidor!... meu coração revolta-se contra semelhante idéia! - murmurou o velho com voz dolente e abatida. - Não! não!... quero que ele venha à minha presença; quero ainda uma vez ler em seu semblante; quero sondar-lhe o coração. Fernando, manda-lhe à casa dois ou três esbirros, e por bem ou por mal seja conduzido já à minha presença.

Fernando não quis mais insistir; considerava já Maurício e seus amigos completamente perdidos e condenados sem remissão. Tudo quanto o jovem paulista pudesse alegarem sua defesa não podia destruir as provas exuberantes, que já tinha contra ele, e outras, que impreterivelmente esperava colher depois do assalto, que projetava dar à caverna dos insurgentes na manhã do dia seguinte, A prisão de Maurício, portanto, em seu entender não podia mais deter a espada vingadora suspensa por um fio sobre a cabeça de seu rival. Demais calculava e com muito fundamento que em vista das ocorrências daquele dia nem Maurício nem nenhum de seus amigos seriam encontrados na povoação, o que convinha admiravelmente a seus planos.

Portanto, depois de ter cumprido imediatamente a ordem de seu tio, de novo voltou para junto dele. Via que já era tempo de desfechar o último golpe, que tinha a longo tempo de reserva para fulminar seu adversário, isto é, de revelar a Diogo Mendes a violenta paixão que o jovem paulista sentia por sua filha Leonor.

- É tempo, - dizia Fernando com hipócrita gravidade, - é tempo de que vossa mercê. seja informado de uma atroz particularidade, que parece até aqui ter ignorado, e que revela até que ponto chega a perversidade desse moço, que até hoje tem afagado como a um filho.

O capitão-mor sem dizer palavra olhava atônito para seu sobrinho como pedindo explicação.

- Saiba meu tio, - continuou Fernando, - que esse aventureiro ousou levantar suas vistas até sua filha, que teve a infelicidade de inspirar-lhe a mais violenta e louca paixão. É por amor dela, dela tão somente, que não por zelo e gratidão a vossa mercê, que ele o acompanha e o tem servido sempre, não como o amigo desinteressado, mas como o cão esfaimado, que segue por toda parte a quem leva na mão um pedaço de carne. Até aqui nutria talvez esperança de que vossa mercê não lhe recusaria a mão de minha prima, ou projetava, - quem sabe ? Arrastá-la ao opróbrio. Mas depois que me vê a seu lado, seus planos são outros, e mais audazes e atrozes ainda. A fúria do ciúme corroe-lhe as entranhas, e procura levar a efeito seus planos tenebrosos a ferro, fogo e sangue. Não creia que é por dedicação a

seus patrícios, que ele, abusando de sua simplicidade e fanfarronice, os incita a se sublevarem contra o governo de vossa mercê; não: aproveita-se de algumas indisposições, e a pretexto de libertá-los de vexames imaginários intenta vir pisando sobre cadáveres com o punhal ensangüentado na mão arrancar-vos a filha para ir profaná-la em seu covil de salteador. Se não me acredita, espere os fatos; eles não tardarão.

O capitão-mor escutava aterrado a tais revelações, que nunca lhe tinham passado pela mente. Mas agora, perpassando rapidamente pela memória todas às circunstâncias do passado, e as relações de sua filha com o paulista, ia-lhe como que caindo uma névoa dos olhos, e entrevia toda a plausibilidade das coisas, que Fernando asseverava com a maior segurança. A dedicação de Maurício tinha de feito assomos de heróica exaltação e entusiasmo, que pareciam efeitos de um sentimento mais enérgico e violento do que a simples gratidão e amizade. E também lhe parecia que esse sentimento era correspondido, pois lembrava-se que Leonor testemunhava em todas as ocasiões pelo jovem paulista a mais viva simpatia, e sempre o acolhia com o mais fagueiro de seus sorrisos. Estremecia com a idéia da possibilidade de uma afeição recíproca entre os dois jovens, afeição, que agora julgava muito natural, mas que entretanto reputava uma calamidade. Aventurou-se todavia a perguntar a Fernando:

- E Leonor? saberia ela desse afeto do paulista?... não lho levaria a mal ?!... 

A esta pergunta Fernando empalideceu; banhou-se lhe em fel o coração, e por alguns instantes sentiu-se desconcertado.

- A esse respeito... - respondeu hesitando, nada lhe sei dizer... mas é impossível... julgo que a prima com sua natural candura e ingenuidade nunca suspeitou a ousadia do paulista. Tenho para mim, que ela vota-lhe a mesma estima, que tem ao seu caboclo Antônio; estima-o como a um cão fiel.

- Quem sabe, Fernando ?!... olha, que Maurício possui dotes de corpo, de espírito e mesmo de coração... ou ao menos certas exterioridades brilhantes, que bem podem fazer forte impressão na alma de uma donzela.

Estas palavras foram punhaladas, que atravessaram o coração de Fernando, mordido cruelmente pela áspide do ciúme. Enfiado e mudo por alguns instantes mudou de cor duas ou três vezes, e por fim respondeu com mau modo:

- Nesse caso, senhor capitão-mor, visto que esse cavalheiro possui tão brilhantes prendas, não sei o que faz que não lhe concede já a mão de sua filha.

O capitão-mor ergueu a fronte com altivez e dignidade, e encarando seu sobrinho com sobrolho carregado:

- Pretende acaso o senhor Fernando galhofar comigo em assunto tão melindroso, e que tanto me magoa o coração.

- Perdão, senhor! - respondeu Fernando curvando-se com fingi da submissão, - perdão! nem de leve eu pretendi molestá-lo. A credulidade de vossa mercê...

- Basta, senhor; não toquemos mais neste assunto. Já deu providência, para que Maurício seja conduzido à minha presença.

- Suas ordens estão dadas, e talvez já cumpridas.

Quando este diálogo assim se terminava, já era quase noite fechada. Daí a poucos minutos os esbirros expedidos por Fernando voltavam trazendo a noticia de que a casa de Maurício se achava fechada, e que por toda a povoação não tinham podido encontrar nem a ele, nem a Gil, nem a nenhum de seus companheiros. Então penetrou no espírito do capitão-mor a plena e dolorosa com vicção de que Maurício era traidor e conspirava contra ele. Tudo quanto Fernando a pouco lhe havia revelado, se lhe apresentou à mente com todos os caracteres da evidência. Foi terrível a crise produzida em sua alma por este doloroso golpe; toda a afeição, que votava ao mancebo, converteu-se de repente em rancor profundo; ,Sua cólera não conhecia mais limites.

- Mil dobras de ouro! - bradou ele erguendo-se bruscamente e batendo de rijo com o punho sobre a mesa, junto à qual se achava sentado. - Mil dobras a quem me trouxer a cabeça de Maurício!... Anda, Fernando, faze apregoar e publicar já por toda a povoação, que quem aqui me trouxer vivo ou morto esse infame salteador receberá incontinenti mil dobras.

- Não será preciso despender um real por sua cabeça, - Respondeu Fernando com toda a calma.

Ele mesmo nó-la entregará.

- Embora!... é preciso empregar todos os meios, para que não nos escape o traidor.

-          Suas ordens serão cumpridas.

-           

CAPITULO XIX

Horroroso despertar de um sonho de delícias

O Capitão-mor e Fernando tinham tido o maior cuidado em ocultar a Leonor as graves e sinistras ocorrências daquele dia, não só para não inquietá-la, como também para evitar a intervenção, que não deixaria de querer exercer em negócios e resoluções que reclamavam a maior firmeza e energia. Já por mais de uma vez, - pensavam eles... A intercessão de Leonor os tinha embaraçado no emprego de medidas rigorosas, que talvez tivessem obstado a que as coisas chegassem ao estado crítico e melindroso, em que agora se achavam. Apesar dessa precaução, bem longe estava ela de ter o espírito tranqüilo, não podia deixar de notar certa agitação e surdo murmurinho, que fazia como que arquejar aquela habitação à semelhança do enfermo, a quem falta à respiração. À morte do Minhoto e as diligências, a quase procederam para descobrir os assassinos, não eram a seus olhos motivo bastante para explicar o contínuo a mal disfarçado alvoroto e revoltear de gente, que impossível era se lhe ocultar, e a grave e sombria preocupação, que via estampada no semblante de seu pai.

Lá muitos dias via Maurício arredado da casa do capitão-mor; a última vez, que o avistara, lia-se-lhe na fronte a expressão da mais angustiosa inquietação. Na noite anterior lhe aparecera misteriosamente como um espetro quebrando a lápide do sepulcro, e quando ia talvez fazer-lhe importantes revelações, um lúgubre e fatal incidente viera interromper suas confidências. Esse mesmo arrojo, a que até ali nunca se abalançara, de procurar falar-lhe a sós, bem indicava, que as circunstâncias eram críticas. Tudo isto a enchia de sustos e das mais cruéis e sombrias apreensões.

Debalde procurava distrair-se com a companhia de Helena e Judaíba; suas duas prisioneiras não se achavam em muito melhores condições de espírito. Helena tremia por seu pai e por Calixto, foragido e perseguido por causa do assassinato do Minhoto, e retraída em obstinado silêncio não fazia mais que soluçar. Judaíba não vendo mais o seu Antônio, andava também taciturna e amuada como rola prisioneira, ferida na asa pelo chumbo do caçador.

Assim sozinha, sem ter a quem comunicar suas cruéis inquietações, lembrou-se de dirigir-se a Afonso... A quem também em razão de sua indiscrição e pouca idade coisa nenhuma tinham ainda revelado a respeito da denúncia dada por Tiago, nada soube responder-lhe.

- Eu sei lá, minha irmã, - respondeu-lhe com a mais fria indiferença; - creio que se trata de enforcar o Calixto, e há de ser bem feito.

Dirigiu-se depois timidamente a seu Pai.

- Que há de novo, meu pai, que vejo hoje Vm. agitado, e mais ativo e preocupado que de costume?

- Oh! minha filha!... pois podemos deixar de estar inquietos depois do lamentoso sucesso desta noite?... É nosso dever vingar a morte do infeliz Minhoto, e fazer tudo por descobrir o assassino para puni-lo com todo o rigor da lei.

- Será só isso, meu pai?

- Tranqüiliza-te, minha filha; nada mais há do que isto.

Tais respostas não podiam acalmar o espírito de Leonor, profundamente abalado e apavorado como pelo pressentimento íntimo de alguma catástrofe iminente.

Acompanhemos agora a Maurício, o qual, depois que Gil, desesperado de o arrancar dali, o deixou abandonado ao seu destino, disse a Antônio:

- Arreia o meu cavalo e fica-te por aí por ora; mas toma cuidado de ocultar-te. Daqui a pouco também irás para a gruta.

Maurício conservou-se em casa até o cair da noite. Interrompido na entrevista da véspera, não tivera tempo de explicar-se com Leonor, e não havia consideração alguma que o pudesse resolver a retirar-se talvez para sempre da presença de sua amada sem dizer-lhe um extremo adeus, sem protestar-lhe seu amor, revelar-lhe as fatais circunstâncias, que o forçavam a desaparecer, e procurar banir do espírito dela toda e qualquer suspeita, que porventura nutrisse a respeito de sua lealdade para com ela e para com seu pai. Era difícil sua posição em face de Leonor, a quem nada podia revelar do que havia de real e positivo na resolução fatal, que havia tomado. Não sabia e nem mesmo pensava no que devia lhe dizer; esperava que em presença dela o amor o inspiraria. Meia hora, um quarto de hora mesmo de entrevista lhe seria suficiente; depois voaria a reunir-se a seus companheiros e a entregar-se a todas as contingências da melindrosa situação, em que o destino o havia colocado.

Antes que as trevas de todo se cerrassem, depois de ter feito um pacote de alguns artigos de valor e de objetos de primeira necessidade, fechou as portas de sua modesta habitação, e com o coração opresso e repleto de amargura:

- Toma, Antônio, estes objetos, - disse ao índio; - talvez nos sejam necessários, pois não sabemos se voltaremos ainda a esta casa. Daqui em diante as selvas serão talvez nosso único abrigo. Corre à gruta, onde nossa gente deve já achar-se reunida. A meia noite, ao mais tardar, lá me acharei.

- Oh! meu amo, por que não iremos juntos?... - Não é possível, é de absoluta necessidade demorar-me ainda algumas horas.

- Nesse caso o esperarei aqui.

- Não, Antônio; é preciso que partas já, para tranqüilizar nossos companheiros a respeito de minha demora. Só tu e Gil poderão conter esses homens impacientes e sedentos de vingança. Dize-lhes, que o sol de amanhã nos encontrará vingados ou mortos.

Antonio não replicou mais; saiu, e daí a instantes Maurício também montou a cavalo, saiu cautelosamente e entranhou-se por uma vereda estreita e tortuosa, que através de um matagal espesso ia ter às margens do Rio das Mortes. Depois de ter-se afastado cerca de um quarto de légua do povoado, deixou o trilho por onde avançava, embrenhou-se no mato e aí conservou-se amoitado à espera que a noite se adiantasse algum tanto para poder levar a efeito seu projeto. Teria decorrido meia hora depois que ali se achava, quando ouviu passos e vozes de pessoas, que avançavam pela mesma estreita vereda por onde ele viera.

- Mil dobras! - exclamava um deles; - já fiz a conta, anda por cousa de trinta mil cruzados!...

- Trinta mil cruzados!... já não é para desprezar-se ! - ponderava outro; - e isto pela cabeça de um perro de paulista!...dois proveitos em um saco; temos a pitança e ficamos livres do chefe desses malditos...

- Mas dize-me; estás bem certo que ele veio por aqui mesmo?

- Sem dúvida; foi por aqui que ele meteu-se; vi enfiar-se por êste caminho um cavaleiro, e juro que não é outro senão o Maurício.

- Maurício!... se vai a cavalo, não nos será tão fácil apanhá-lo.

- Não há dificuldade; ele vai muito de vagar e descuidado; de certo ainda nada sabe da sorte que o espera. O ponto é apertarmos o passo, que agora mesmo o pilharemos.

- Foi bom, quando a escolta deu-lhe em casa, já não encontrá-lo; senão já lá estaria trancado, e nós sem esta soberba empreitada.

- Calados, meus amigos!... arre com tanto palrar !... o que convém agora é olho vivo, pé ligeiro e boca calada!... Apenas dermos com os olhos nele, é escusado querer prendê-lo; nada de contemplações; é descarregar-lhe na cabeça todas as nossas escopetas, se é que querem que as mil dobras sejam nossas.

Os sujeitos passaram adiante, deixando Maurício ciente de que se 8ichava condenado e sua cabeça posta a prêmio.

- Miseráveis! – pensou ele; - por um pouco de ouro não hesitam em tirar a vida a quem nunca os ofendeu, e antes muitas vezes lhes tem servido de amparo contra a sanha de meus patrícios justamente indignados. Talvez no meio daquela perrada vá mais de um, a quem eu tenha valido. Corja vil!... e como julgam fácil cortar-me a cabeça... mal sabem que

mais cedo talvez a deles terá de rolar a meus pés!...

- Oh! é preciso, é indispensável, que nesta noite mesmo vibre-se o golpe, que vai decidir do meu destino. Mas antes cumpre-me a todo o risco ir ter com ela, dizer-lhe um adeus... o derradeiro?... ah! meu Deus! Quem sabe !...I

Maurício, depois de ter esperado ainda algum tempo engolfado em suas tristes reflexões, deixou seu cavalo atado a um tronco no mato, em que se escondera, e cortando cautelosamente por matagões e desvios não batidos transportou-se para as imediações da quinta do capitão-mor.

Leonor por seu lado tinha também o espírito agitado da mais cruel. inquietação. Eram mais de nove horas, e em vão procurava no leito um pouco de repouso para seu coração atribulado. Com a cabeça a arder veio ao terraço pedir às auras da noite algum refrigério à sua fronte fatigada de tão longo e penoso cismar, ou quem sabe talvez, seu coração adivinhava, que seu amante não deixaria de surgir de novo de por baixo da pedra do jardim para continuar a confidência, que um funesto incidente viera na noite antecedente bruscamente interromper. Mas o céu estava tão triste, pesado e lúgubre como o seu coração; nem estrelas, nem luar, nem brisas, nem rumores. A terra como o céu era um limbo silencioso. O torvo dorso das serras e colinas não se distinguia da abóbada tenebrosa. Debruçada ao peitoril Leonor mal divisava embaixo de seus olhos os canteiros e ruelas alinhadas de seu pequeno jardim. Enfim, depois de ali ter estado a cismar por algum tempo, viu elevar-se do chão o vulto de Maurício como fantasma evocado do sepulcro pelo condão de um nigromante. À emoção de Leonor foi extrema; se bem que já esperada ou pressentida a aparição misteriosa de Maurício naquela ocasião produziu nela mais violento e profundo

abalo do que na noite anterior. Parecia-lhe que aquela sombra surgida do seio da terra vinha revelar os terríveis segredos de um futuro de lágrimas e infortúnio. Apesar de todo o seu amor, de toda confiança, que .depositava no mancebo, quando o viu envolto em seu largo manto, o chapéu calcado sobre os olhos, subir um por um a passos lentos e cautelosos os degraus da escadinha, que do jardim galgava ao terraço, e parar silencioso ao lado dela, o coração gelou se lhe de terror, fez um gesto de medo e recuou espavorida. Maurício percebeu o terror da donzela.

- De que se arreceia, D. Leonor ? - disse-lhe com voz meiga pousando-lhe brandamente a mão sobre o braço; - já não conhece Maurício...

- Ah! senhor Maurício, bem o estou conhecendo... Mas que estranho motivo o faz assim procurar-me às escondidas por duas noites, arriscando-se a si, expondo-nos a ambos a conseqüências funestas ?...

- Pode estar tranqüila, senhora; não é por certo nem um pensamento criminoso, nem uma esperança de felicidade, que me traz a seus pés por este modo estranho...

- O que pretende então ?...

- Dizer-lhe adeus, senhora, e vê-la talvez pela última vez.

- Pela última vez? !... meu Deus!... e por que ?...

Porque ?...  porque não quer o meu destino, que eu viva junto da senhora... porque hoje tudo aqui conspira contra mim até mesmo vosso pai. Ah! D. Leonor! hoje nesta casa só me resta o seu afeto, e esse mesmo quem sabe se amanhã me faltará... oh! talvez!... talvez amanhã D. Leonor também me amaldiçoará !...

- Eu amaldiçoá-lo ?!  nunca! nunca! que razão haverá para isso !...

- É que eu vejo minha vida em iminente perigo... Esse infame Fernando, que vosso pai para aqui trouxe, põe tudo em conflagração, e eu vejo um vulcão prestes a estourar debaixo de vossos pés e dos meus.

- Oh! meu Deus! meu Deus!... não era em vão, que meu coração se enchia de inquietação e de amargura... e é nesta ocasião, que pretende deixar-me tão sozinha e desamparada !

- De que posso eu valer-te, Leonor ? !...

- Oh! de muito, de muito, Amo já tantas vezes me tem valido.

- Como ? se nem me é dado aparecer ?...

- Por que motivo ?

- Ah! não sabe ainda!? não sabe os riscos, que aqui mesmo às ocultas estou correndo !... pois sabe, D. Leonor, que agora mesmo procuram-me por todos os cantos para cortar-me a cabeça a troco de algumas moedas.

- Que horror!... que infâmia!... será possível, meu Deus!... por que razões assim te perseguem?...

- Não sabes, Leonor, que Fernando e eu não podemos existir ao lado um do outro ? que um de nós deve morrer impreterivelmente para sossego e felicidade do outro ?...

- Desgraçadamente assim é; mas que crime cometeste? que fizeste para merecer a morte?...

- Meu ,crime, ah !... Meu crime é amar-te, Leonor; meu crime é ter merecido o teu amor. É essa felicidade suprema, que me invejam, e que não me podem perdoar. Devo morrer, por que tu me fizeste o mais feliz dos homens.

- Nesse caso eu participo do teu crime, a culpa é minha também, também eu devo morrer... mas não; não pode ser só isso; para te votarem à morte, é preciso, que te imputem algum crime, verdadeiro ou falso... falso por certo; jamais eu amaria um homem capaz de ação criminosa... a morte do Minhoto... quem sabe se é te atribuída ?...

- A mim, Leonor ? !... que necessidade tinha eu do sangue desse miserável !?... não; é de outro que tenho sede, e esse ...

Maurício, num transporte de indignação, ia quase trair-se; ia terminar: - bem cedo será vertido até a última gota. - Estas palavras, porém, morreram-lhe na garganta como um murmúrio surdo, que Leonor não pode compreender. Ela contemplava com terror o amante, que por seu lado ao mesmo tempo lhe desejava tranqüiliza-la não sabia como explicar-lhe sua cruel situação, e a custo sopeava a explosão das tormentas, que lhe estuavam na alma.

- Falas em sede de sangue!... oh! oh! meu Deus! que palavras horríveis!... ah! Maurício, tu tens algum pensamento sinistro, que procuras esconder-me !...

- Nenhum, Leonor. Já o disse, não querem que eu viva; pois bem, irei morrer, mas não às mãos desses miseráveis algozes; não quero dar-lhes esse prazer; irei morrer bem longe, de saudade, de dor e desespero. Eu bem vejo que este meu amor é um amor sem esperança, um sonho de loucura; mas não posso extinguí-lo em meu coração; só a morte poderá arrancá-lo daqui.

- Não fales assim, Maurício; se nenhum ato cometes-te indigno e criminoso, que te faça perder a estima de meu pai, por que desesperar ?... Eu, eu mesma irei falar-lhe, irei pedir justiça, e desmascarar esse homem funesto, que nos acompanha para nosso flagelo; tudo declararei sem medo e sem rebuço; direi a meu pai que te amo tanto, quanto detesto esse miserável Fernando...

- Não, por quem és, Leonor, não faças nada disso, - atalhou Maurício.  Assim, em vez de ser eu só a vítima, seremos duas, e eu jamais consentirei que sofras por amor de mim.

- Tudo sofrerei com firmeza e coragem. Se não me é dado gozar contigo da felicidade, seja-me ao menos permitido partilhar o infortúnio da pessoa a quem amo.

- Não, Leonor; com isso não farás mais do que tornar-nos mais infelizes, e perder-me para sempre irremediavelmente. Deixa-me entregue ao meu cruel destino... esperemos, talvez o céu nos conceda melhores tempos; talvez um dia, quem sabe si bem cedo, desapareça o odioso obstáculo, que se opõe à nossa felicidade.

- Mas que pretendes fazer?.. ainda não me disseste...

- Já te disse, Leonor; vou sumir-me não sei onde.

Dentro em pouco saberás notícias minhas; e ou seremos felizes, ou estarei perdido para sempre. Antes, porém, de arrojar-me a uma resolução desesperada quis vir arrojar-me a teus pés, protestar-te meu amor, minha lealdade e dedicação, pedir-te perdão... oh! eu te suplico, Leonor, pelo nosso amor, pelo nosso passado tão saudoso, pelas suaves recordações de nossa infância, não dês crédito às calúnias, com que queiram infamar o meu nome e tornar-me odioso a ti e a teu pai!... e se eu morrer, oh! por piedade, Leonor, não amaldiçoes minha memória...

- Não te compreendo, Maurício. De que pedes perdão ? quem quer amaldiçoar-te? quem pôs em dúvida a tua lealdade?...

- Quem ?... ainda perguntas!... quem pôs a prêmio a minha cabeça ?...

-Ah!...

- A noite se adianta, Leonor; procuram-me por toda parte para matar-me; preciso fugir. Ai de mim, e ai de ti, se somos aqui surpreendidos !... Leonor, adeus! tem compaixão do infeliz Maurício, que tanto te adora!... Adeus, Leonor!... adeus  talvez para sempre.

Falando assim o mancebo beijava a mão de Leonor, onde deixou cair uma lágrima de fogo.

- Para sempre! ?... ah! não! não! soluçou... a donzela;

- não pronuncies mais semelhante palavra, senão queres matar-me.

Leonor sentia-se desfalecer ao embate de tão pungentes emoções; seus olhos se turvavam, a voz a custo lhe rompia do peito, e seu corpo esmorecia e dobrava-se vacilante como a haste do lírio acoitada pelo tufão.

Pousou as mãos sobre os ombros de Maurício, e debruçou a fronte sobre seu peito.

O mancebo cingiu-lhe o corpo com o braço; a fronte da moça tombou-lhe para traz, e os cabelos soltos e em desordem desceram ondeando a beijar o pavimento.

Estava ali como a frágil palmeira, a quem o temporal depois de ter-lhe rompido e derriçado os donosos leques, debruçou sobre os galhos robustos do cedro secular. Por largo tempo conservou-se Maurício naquela posição, e como embebido em um êxtase celeste esqueceu-se de si, da gruta, dos amigos, que o esperavam, do tempo, que rápido se escoava, dos perigos, que o rodeavam, e só vivia para sentir a inefável voluptuosidade de ter pela primeira vez cingida em seus braços a amante idolatrada, que neles se lançara. Mas Leonor conservava-se imóvel, pálida, a boca entreaberta, os olhos cerrados, e presa a respiração. Maurício assustou-se.

- Leonor! Leonor! - murmurou agitando-a brandamente .

Leonor não se moveu, nem respondeu.

- Oh! desmaiada!... desmaiada, meu Deus!... que transe! - pensou o angustiado mancebo; - deixa-la aqui neste estado, não... não é possível... esperar aqui a pé que rodeado de perigos para mim e para ela ?! meu Deus! que devo eu fazer! Esperam por mim... já talvez me tenho demorado mais do que devia... Leonor!... Leonor!... repetiu o moço agitando-a de novo; mas Leonor permanecia muda e imóvel, pendente de seus braços como a cecêm, que se debruça esmorecida à borda do vaso, que a contém.

Maurício refletiu um instante contemplando aquele busto angélico então frouxamente iluminado por uma fraca luz, que se escoava do céu através de nuvens entreabertas, inclinou seu rosto sobre o dela como para reanimá-la com seu hálito, e seus lábios roçaram pelos de Leonor em um primeiro e tímido beijo de amor. Aquele contato a virgem estremeceu ligeiramente; Maurício estreitou-a contra o coração na ânsia de uma emoção pungente e voluptuosa a um tempo.

- Ah! Maurício!  Maurício! - murmurou a moça reanimando-se, lançando um braço ao colo de Maurício e unindo estreitamente a linda cabeça ao peito do mancebo como quem lhe queria falar ao coração, - tem ânimo de me deixar assim sozinha e desamparada em transe tão apertado... não sei... mas parece-me, que tudo anuncia uma grande desgraça... sem ti para me valer não sei o que será de mim!... mas... que estou a dizer... já me esquecia do risco, em que te achas... perdoa-me, Maurício...

Leonor, esquecendo nesse momento todo o seu recato e timidez virginal, abandonava-se sem reserva aos transportes de seu terno e ardente amor. Por seu lado também Maurício deslembrado de todas as suas inquietações e amarguras com o peito arquejante de emoção entregava-se ao enlevo daqueles momentos de inefável ventura vendo reclinada em seu seio a fronte da virgem idolatrada, que tão meiga e confiante se entregava em seus braços procurando não só amor, como abrigo e proteção, qual a tenra trepadeira se enlaça ao tronco que a sustem contra a fúria dos vendavais, e cuidava ver abrir-se diante de seus olhos um céu de delícias sem fim.

- Ah! não, meu anjo, não creias que eu jamais possa resolver-me a deixar-te, - replicou Maurício como acento do mais apaixonado transporte; - embora mil mortes me rodeiam, nunca me afastarei de ao pé de ti.

Ainda, que me não vejas, fica tranqüila e certa, que não estou longe, que velo solicito e sempre alerta em volta de tua habitação, pronto a todo instante a correr em teu auxílio, e a desfazer as ciladas de nosso perseguidor, e que o mais leve ai, que exalares, chegará a meus ouvidos. Ainda que me não vejas estarei sempre junto de ti afrontando todos os perigos para te amparar e defender, porque adoro-te com todas as forças de minha alma, por que em ti consiste toda a minha vida, todo o meu futuro, toda a minha esperança de felicidade neste mundo.

- Os céus te paguem, meu bom, meu generoso Maurício, os céus te paguem tanto amor e dedicação. Eu fraca e infeliz donzela que mais posso oferecer-te senão este coração, que a muito tempo já é teu, senão este meu puro, meu constante, meu eterno amor...

- Oh! Leonor!... só essas tuas doces palavras bastariam para recompensar um século de trabalhos, de perigos, de sofrimentos. Mas como voam rápidos estes momentos!... Leonor, repete-me ainda uma vez, que me amas, e... adeus!...

- Sim, eu te amo, repeti-lo-ei mil vezes; eu te amo... nosso amor é puro, Deus o protegerá... Um dia seremos felizes.

- Seremos felizes !... sim, meu Deus!... és tu quem falas pela boca de um de teus anjos. Sim, Leonor, seremos felizes... adeus!...

Os braços dos dois amantes enlaçaram-se em apertado amplexo. Neste momento um pavoroso estrondo, que partia do lado oposto do edifício por entre uma gritaria infernal veio de chofre ferir-lhes os ouvidos. Os insurgentes assaltavam a casa do capitão-mor, e entre

gritos furiosos tratavam de arrombar o grande portão do pátio a golpes de machado. Os brados de morram os emboabas!... Morra Fernando! morra o capitão-mor ! - chegavam distintamente a seus ouvidos. Maurício ouvia também às vezes o seu nome entre pragas e epítetos afrontosos. Compreendeu no mesmo instante todo o horror de sua situação. Acordava do mais puro e suave sonho de amor para achar-se a braços com a mais tremenda realidade. Leonor não pudera resistir a este novo e terrível abalo, e tornara a desfalecer. Maurício a toma nos braços, entra afoitamente até a sua câmara de dormir, a depõe cuidadosamente sobre o leito, imprime-lhe um beijo na fronte, e com a velocidade do relâmpago desaparece de novo por onde havia entrado. Que irá ele fazer ?...


CAPITULO XX

Feitiço contra o feiticeiro

Para explicarmos a origem do horroroso tumulto, que viera tão brusco e violento interromper os angélicos e suaves sonhos de Maurício e Leonor no momento da despedida, enchendo de pavor e consternação a casa do capitão-mor, nos é mister levar ainda uma vez o leitor à gruta de Irabussu. Deram-se aí nessa tarde importantes acontecimentos, que, como vamos ver, anteciparam o rompimento da revolta e a fizeram precipitar-se furiosa sobre a residência de Diogo Mendes.

O assassinato do Minhoto e os vexames e perseguições, a que deu ocasião, levaram ao cúmulo a exaltação e impaciência dos conspiradores, e contribuíram em grande parte para acelerar a explosão daquela desasada insurreição, mal dirigida e pior organizada por homens de todas as raças e de todas as condições, e eram eles que jogavam interesses e paixões tão desencontradas.

No mesmo momento em que o mameluco Tiago denunciava a revolta com a maior individuação, e apontava a Fernando um por um os seus principais chefes, os insurgentes em grande número já se achavam reunidos na gruta de Irabussu em uma sessão tumultuária e tempestuosa. Na ausência de Maurício e de Gil, únicas pessoas que por sua firmeza e resolução e pelo prestígio de que gozavam podiam exercer algum ascendente e conter os excessos daquele bando selvático e insubordinado, não havia mais dique ao transbordamento do mais anárquico e odiento fanatismo.

Calixto, o jovem e fogoso paulista, também lá se achava. Sabendo, por um feliz acaso, que fora indigitado como assassino do Minhoto, pôde escapar a tempo das perseguições dos esbirros. Dotado de indomável altivez, assomado, vingativo e rancoroso sobravam-lhe além disso motivos para fazer-lhe arder o peito em sede de vingança. Bueno, seu velho querido mestre e protetor, que desde a véspera não comparecia, constava que tinha sido preso e que estava sendo posto a tratos para dar conta dele Calixto, e revelar o que soubesse a respeito da insurreição. Sua adorada Helena lá se achava detida em casa de seus perseguidores, roubada violentamente ao seu amor, sujeita aos desacatos e talvez às violências de um rival poderoso e dissoluto, que estava como que de posse dela.

É fácil compreender como não devia ferver o sangue ao pobre moço, como não estaria ansioso por correr à casa do capitão-mor com o punhal em uma das mãos, e o facho aceso na outra não só para desafrontar-se das injúrias passadas, como para arrancar à ignomínia e à morte sua amante e seu benfeitor; situação bem semelhante, porém não tão complicada como aquela, em que se achava Maurício.

- Não há tempo a perder, meus amigos! - gritava ele com a exaltação de um possesso, - se não formos já e já fazermo-nos justiça por nossas próprias mãos à custa do sangue desses perros infames, tudo está perdido. É escusado esperar por Maurício, nem por Gil, nem por quem quer que seja. Que precisão temos nós de chefes ? Porventura não sabemos o caminho da povoação e da casa do capitão-mor ? Para matar emboabas precisamos de quem dirija nossos golpes !... Os nossos perseguidores já andam de prevenção; a morte desse miserável Minhoto acabou de pô-los de sobreaviso, e agora ainda de mais a mais não sei por que artes veio meter-se entre nós esse mamelucozinho, um Judas, que mais hora menos hora irá nos entregar nas mãos de nossos tiranos. As coisas têm chegado a um ponto, que de um momento para outro em vez de sermos assaltantes, podemos ser assaltados aqui, e aqueles de nós, que escaparem à matança, irão para o tronco e do tronco para a forca a servirmos de regozijo e chocata a nossos opressores. Camaradas, não devemos perder um só instante; se não formos hoje mesmo e sem mais perda de tempo dar cabo deles, amanhã darão cabo de nós.

Assim falava o moço interrompido a cada passo por aplausos estrondosos e por gritos de morram! morram os emboabas !... Entretanto, grande parte dos paulistas amigos de Maurício e de Gil entendiam que nada podiam empreender sem ordem deles, e empregando em vão os últimos esforços para acalmar os ânimos, instavam, para que se esperasse ao menos até meia noite, hora em que Maurício dera palavra de se achar entre eles. Eram interrompidos por gritos frenéticos e pocemas sanguinárias.

- Aos emboabas! aos emboabas já e já! – Morram esses malditos! - era a única resposta que obtinham.

- Que necessidade temos nós aqui de Gil, nem de Maurício ! - exclamou Calixto num acesso de humor atrabilário. - Podemos nós contar com eles ?... um é rico, e não quer arriscar os seus tesouros; o outro é criatura do capitão-mor, vive de rojo aos pés da filha dele, e bem se vê que, se nos acompanha, não é de muito boa vontade...

- Cala-te, Calixto, - atalhou um grave e sisudo paulista já algum tanto avançado em anos. - És muito criança, a paixão te exalta e cega; por isso perdoamos-te... as palavras loucas, que acabas de pronunciar. Onde ouviste dizer, que um paulista faltasse à sua palavra! Quando te constou, que um paulista atraiçoasse aos seus a quem quer que fosse !... Esperemos, camaradas; Maurício prometeu, Maurício hoje à meia noite estará conosco.

- Não ponho em dúvida a lealdade de Maurício, nem de Gil, - respondeu o mancebo um pouco reportado com a severa reprimenda do velho paulista; mas é certo que Maurício, perdido de amores pela filha de nosso , tirano, não percebe que nos vai pondo a perder com suas prudências e demoras. E depois quem nos diz que a esta hora não estarão eles metidos em um tronco? Quem mesmo nos pode assegurar, que estão vivos ou mortos!...

Esta conjetura era com efeito mais que plausível, e abalou profundamente e consternou o ânimo dos próprios paulistas, que ainda nisso não haviam pensado.

- A eles! a eles, enquanto é tempo! morram! morram os emboabas !... foi o grito geral.

Assim em tumultuosas altercações e horríveis algazarras passaram-se algumas horas, até que baixou a noite, e com ela surgiu entre eles a figura satânica de Tiago, sem que ninguém visse quando, nem por onde tinha entrado.

- Meus amigos, - disse ele com ar consternado, - porque estão aqui ainda a perder tempo em falatórios!... saibam que estão entregues e atraiçoados, e se não correm já e já a dar cabo daquela corja, estão perdidos !... Fernando e o emboaba velho já estão inteirados de tudo e muito por miúdo. Amanhã pela manhã eles têm de dar nesta caverna com sua gente. Meu aviso ainda vem a tempo; tratem de fugir, se têm medo, ou de dar sobre eles nesta noite mesmo, e isto já sem demora.

- Que estás a dizer, anãozinho dos mil diabos!... quem te contou essas patranhas?...

- Estou dizendo a pura verdade...

- E quem será o traiçoeiro, também não saberás dizer-nos?...

- Eu sei? !... imaginem lá bem, e vejam, quem poderá ser.

- Além de mestre Bueno, - ponderou um paulista, - e mais alguns poucos, que tiveram a desgraça de ficarem presos por causa da morte do Minhoto, só nos faltam aqui Maurício, Gil e o índio Antônio; mas estes, eu dou por eles minha cabeça, são incapazes de uma traição.

- Quem sabe - ousou refletir outro paulista- se mestre Bueno ou algum outro forçado pelas torturas...

- Nunca ! nunca ! - atalhou o primeiro com energia - nenhum dos paulistas, que lá estão, seriam capazes de nos entregar, nem que os botassem a ferver nas caldeiras de Satanás.

- quem poderá ser então ?... fala, mameluco do inferno, que nos atraiçoa ?...

- Não digo, que seja o senhor Maurício - respondeu o marralheiro caboclo - nem o senhor Gil e nem tão pouco o Antonio. No entanto eu moro em casa do homem da casaca vermelha, e meus olhos e meus ouvidos andam ali por todos os cantos, e sei que estamos entregues. Esses três, de que falei, são os únicos que lá andam livres e soltos; os outros, que lá se achavam, foram todos presos. Por que razão esses senhores não se acham aqui ?... isto sempre dá que pensar.

- Deixa-te de meias palavras, maldito! fala o que sabes franca e lisamente, se não queres que aqui mesmo te estrafeguemos. Fala, quem é que nos atraiçoa?...

- Quem mais senão esse birbante mesmo, - bradou uma voz atroadora. - É ele, é esse mameluco infame que hoje mesmo não há muitas horas nos traiu e denunciou.

Todos se voltaram atônitos para a pessoa, que acabava de pronunciar estas palavras. Era Antônio, que naquele momento entrava precipitadamente na gruta.

- Agarremos este patife - continuou o índio,  e sofra aqui já sem demora o castigo de sua traição.

Tiago, fulminado por tão inesperada revelação, ficou por alguns instantes perturbado sem saber o que replicar a quem tão bruscamente o vinha desmascarar.

- Este meu parente está louco de certo, camaradas, - redargüiu enfim reassumindo sua natural protêrvia e ar petulante. - Eu atraiçoá-los !... seria galante eu atraiçoar-me a mim mesmo!... se eu quisesse entrega-los, com que interesse eu viria agora às carreiras avisa-los do perigo, que estamos correndo ?...

- Com que interesse ? ! - replicou Antônio colocando-se diante do mameluco de braços cruzados e com um riso de feroz sarcasmo. - Olha bem para mim, maldito!... sabes com quem estás falando?... tu não pareces gente; tu és um filho de Satanás, que só queres nos ver a todos nos despedaçando uns aos outros para poderes vir e folgar em cima de nossos corpos e atolado em nosso sangue. Mas tu não nos enganas mais, miserável; antes que possas ver a cor do nosso sangue, o teu estará derramado até a última pinga.

- Isso não é tão fácil de fazer, como de dizer.

 - Eu te mostro, - retrucou Antônio em tom seco é breve, e desembainhando a faca deu um pulo de onça sobre o mameluco, e agarrou-o pela gorja. Alguns paulistas, porém, detiveram-lhe os braços.

- Estás louco, Antônio! - disseram-lhe; que pretendes fazer ?... se principiarmos assim derramando o sangue dos nossos antes de vertermos uma só gota do de nossos inimigos, mal agourada vai a nossa empresa...

- Dos nossos? !... nunca !... é o sangue de um miserável traidor, que quero derramar...

- Mas que certeza tens, de que ele nos traiu?...

- A certeza, que me deram estes olhos e estes ouvidos. Sim, senhores, por felicidade nossa ouvi e vi tudo.

Antônio então relatou minuciosamente em vivas e rápidas palavras o motivo e o modo por que se introduzira furtivamente em casa do capitão-mor, e como presenciara sem ser visto à delação do mameluco. Tiago, esmagado por aquela revelação, não podia opor-lhe senão uma simples negativa; entre a sua negação, porém, e a afirmação do bom e leal Antônio nenhum dos que ali se achavam presentes, hesitaria um momento.

- Morra o infame traidor!... acabe-se já com ele, antes que nos arme outra! morra! morra o mameluco ! - assim bradava uma multidão de vozes, e já as facas e punhais relampeavam fora das bainhas. Tiago, vendo-se perdido, lembrou-se então de implorar um pequeno prazo apelando para os acontecimentos. Ele tinha presenciado as ordens rigorosas e terminantes, que dera o capitão-mor para trazerem à sua presença Maurício e Gil, vivos ou mortos; contava portanto quase como certo, que os dois mancebos àquelas horas, se não estivessem

mortos, estavam pelo menos presos e metidos no tronco. Ignorava, porém, que Antônio os fora avisar, e que Fernando de propósito havia obstado a que fossem presos naquele dia.

- Deixem falar esse bugre, - gritou o mameluco; ele há muito tempo me tem ódio não sei por que. Sou eu o traidor? ! pois bem; eu aqui me acho no meio de vossemecês pronto a receber o castigo, que merecer; e eles o que estarão fazendo?.. porque não se acham aqui?... esperem por eles...

- Eu juro, -exclamou Antônio, - que à meia noite meu amo aqui se há de achar conosco.

- E eu juro, que não. Se acontecer o contrário, então sim, podem matar-me, estrangular-me como e quando quiserem.

- Até à meia noite!... isso nunca! nunca! bradou Calixto altamente impacientado. Uma hora só de demora pode nos arrastar à perdição. Que estamos atraiçoados não resta dúvida, seja lá quem for o traidor.

Que mais esperamos? que eles ajuntem gente e nos venham aqui amarrar como negros fugidos?.. Não, meus camaradas, nem um minuto devemos mais perder; partamos já e já. É loucura esperar por Maurício e Gil, que ninguém sabe se estão presos, nem se estão vivos ou mortos...

- Posso afiançar que não foram presos, - replicou Antônio; - apenas acabei de ouvir a denúncia deste maroto, corri a avisá-los, e eles puseram-se a salvo.

- Mas tu lá os deixaste ainda, Antônio, e Deus sabe o que terá acontecido.

- Não sei, mas meu amo é nosso comandante; ele deu palavra de estar aqui até à meia noite; devemos esperar por ele. E que mal faz isso? Da meia noite até o romper do dia temos tempo de sobra para marchar até a povoação, e em poucos instantes varremos de lá tudo quanto é emboaba.

E se antes disso eles vierem nos atacar? - ponderou Calixto.

- Isso não pode ser. Escuta branco; eu estive lá, vi e ouvi tudo, e a boca de Antônio não sabe mentir. Nenhum deles sabe o rumo, nem o caminho desta fuma.

É este maldito, que aqui está, que não sei por que artes nos veio descobrir aqui, é este capetinha do inferno, que amanhã ao romper do dia devia guiá-los a esta gruta. Não é verdade?... fala, cão tinhoso, mameluco de Satanás.

Tiago nada ousou responder; em vista das declarações do índio, já não duvidando que de um momento para outro Maurício e Gil pudessem comparecer, via desvanecerem-se suas esperanças. Já não lhe restava outro recurso senão esgueirar-se sorrateiramente, como o fizera da primeira vez, e para esse fim, olhando para todos os lados com seus olhos de víbora, espreitava sutilmente a ocasião oportuna. Mas Antônio, que já lhe adivinhava a intenção, sempre de olho vivo, não se arredava de ao pé dele.

- Mas felizmente ele aqui está em nossas mãos, - continuou Antônio, - não o deixemos escapar, e por esta noite ao menos nada temos que recear.

Os paulistas, que se interessavam por Maurício e Gil, e que receavam que aquele movimento, composto em grande parte de uma horda de bárbaros insubordinados e furiosos e dirigido pela cabeça esquentada e inexperiente de Calixto não passasse de um ato de feroz canibalismo, que viria ainda mais agravar sua sorte, exultaram com as revelações de Antônio e o aplaudiram vivamente .

-Tem Antônio toda razão, - diziam eles, - e ninguém aqui pode por em dúvida sua lealdade e boa fé; à vista do que ele nos diz, podemos esperar até meia noite a vinda de nossos chefes sem inconveniente algum. Só eles nos poderão dirigir de modo conveniente e eficaz nesta arriscada empresa, e antes esperar mais algumas horas do que dar um golpe desalertado, que poderá recair sobre nossas cabeças. Eles lá se acham livres e soltos, e por certo terão conhecimento do que por lá tem ocorrido, e melhor do que ninguém saberão o que se pode fazer. Se vierem até meia noite, devemos obedecer-lhes como a chefes por nós escolhidos; se porém até então não aparecerem, não poderemos mais esperar a nossa situação não o permite; devemos marchar a todo transe.

Estas considerações produziram algum efeito, e acalmaram até certo ponto a agitação e impaciência dos ânimos com grande desgosto de Calixto, a quem tantas delongas e hesitações desesperavam. Um sussurro de aprovação se propagava por aqueles grupos movediços e fantásticos, que se amainavam gradualmente, como a selva que murmura e balanceia-se brandamente depois da passagem do furacão.

- Seja lá como quiserem, - bradou Calixto estorcendo-se de raiva e de impaciência; - do que estou certo é que toda esta demora nos será fatal, se é que já não o tem sido. Mas já que assim o querem, esperemos; esperemos que o cutelo do carrasco caia sobre nossas cabeças.

- Esperem outros, - exclamou Tabajuna, o chefe dos indígenas, erguendo-se em toda sua colossal estatura e levantando os braços musculosos acima de toda a turba; - esperem outros, mas Tabajuna e seus guerreiros não esperam mais nem um momento. Esta furna é a ocara de um pajé; ainda esta noite Tabajuna ouviu a voz dele, que falava do fundo dessas cavernas. A voz do pajé falava assim: "Os filhos da floresta não devem esperar o conselho do filho do emboaba. E' tempo de vibrar o tacape sobre a cabeça do inimigo, e mandar-lhe ao coração a flecha voadora". Levantei a cabeça e olhei; quem me falava assim era Irabussu, Irabussu, que conversa com os manitós, e é querido de Tupã. Não é verdade Irabussu ? Terminou o cacique voltando-se para o interior da caverna e reforçando a voz com medonha entoação. Todos os olhos se volveram para aquele lado, onde passado um instante surdiu uma pavorosa figura humana, que mais parecia um espetro. Era um índio quase nu, alto, seco e delgado como um coqueiro calcinado pelo raio e despojado de seus leques de verdura. Apareceu um instante a boca de uma fuma interior entre duas estalagmites, como um esqueleto entre as duas colunas de um nicho de mármore. Dir-se-ia a múmia de um cacique, que ali se achava em pé, se não lhe cintilassem no fundo das órbitas solapadas dois olhos vivos como carbúnculos.

- É verdade! - bradou Irabussu; com voz rouca e lúgubre, e de novo desapareceu na escuridão dos profundos recessos da caverna.

Ainda desta vez a aparição do velho índio a todos pareceu sobrenatural. A exceção dessas duas noites, em que aparecera instantaneamente como um morto evocado do sepulcro, ninguém mais o vira depois daquela noite tremenda, em que deixando desvairados nas trevas da medonha lapa os míseros portugueses, que o conduziam, se sumira também como um duende nas profundas células daquela colossal colméia de estalactites.

O próprio Antônio ficou assombrado com tão extraordinária visão, mas superando o seu pavor:

- Pai de Judaíba, - bradou, - escuta; tu te enganas...

- É verdade! - remurmurou mais longe e mais sumida a voz de Irabussu.

A aparição de Irabussu pôs termo às discussões, e acabou com todas as hesitações. Os próprios paulistas, ou porque vissem que não era mais possível conter a exaltação dos companheiros, ou porque também se sentissem abalados pela voz lúgubre daquele espetro, que parecia falar como um oráculo do seio dos túmulos, acompanharam o arrastamento geral.

- Aos emboabas !... morte aos emboabas !... eram os únicos sons que ecoavam pela gruta, e cada um dispondo-se a despejar a caverna corria com açodamento a empunhar suas armas.

- Esperem, camaradas; um momento ainda! exclamou Antônio, que se conservava sempre ao pé de Tiago sem dele desviar os olhos com receio que se escapasse de entre eles com a sutileza do costume para de novo ir atraiçoá-los. - Antes de sairmos é preciso ver o que se ha de fazer deste maldito mameluco. Levar conosco um velhaco, um traidor deste quilate... não é possível; deixá-lo aqui livre e solto vem a dar na mesma. O melhor é deixá-lo aqui pendurado pelo pescoço; é o 'Único meio de nos vermos livres de semelhante víbora.

Enquanto assim falava Antônio ,tinha o mameluco agarrado pelo braço.

- Matá-lo já não é, justo, - intercedeu um paulista; - o melhor é deixá-lo aí fora amarrado a uma árvore.

- Ele roerá a corda com os dentes, - retrucou Antônio.

- Amarremos-lhe os pulsos, e o suspendamos por tal forma, que mau toque o chão com as pontas dos pés, e quero ver como há  de roer a corda.

- Qual! nada disse serve, - disse Antônio depois de um instante de reflexão. - Lembra-me uma coisa; estão vendo aquele buraco, que ali está? - continuou apontando para uma abertura, que se via ao rés do chão em um canto da gruta à maneira da boca de uma fornalha, e onde um homem para entrar teria necessidade de curvar-se não pouco.

- Estamos vendo e depois?...

- Aquele buraco não tem mais entrada, nem saída senão por ali; já entrei por ele adentro, e a não ser no inferno não sei aonde irá acabar. Prenda-se ali este biltre, tape-se a entrada com três ou quatro pedras bem pesadas, e deixemos aí o menino na enchova, já que o não querem matar. Se morrermos por lá e não pudermos soltá-lo, ele também que morra aí entaipado, pois não é mais bonito que nenhum de nós. Se formos relizes, cá viremos soltá-lo, e então ajustaremos contas.

O alvitre foi aplaudido e aprovado com grandes vozerias. O pobre mameluco, que até ali escutava imóvel, silencioso e com os olhos estatelados de pavor discutir-se em ar de chacota sua vida ou morte, ao ouvir proclamar-se e confirmar tão horrível sentença rompeu em brados e alaridos lastimosos, ora soltando horríveis imprecações, ora implorando misericórdia, e rojando-se por terra em miserandas contorções.

Mas seus juízes foram inexoráveis; as circunstâncias eram imperiosas. Agarraram o mameluco à viva força, e o empurraram para dentro do buraco. Imediatamente quatro grandes pedaços de estalagmites, carregados cada um por quatro homens dos mais vigorosos, foram ajustados à boca da furna; por traz destes acumularam-se ainda outros, e só quando já mal se ouviam os uivos lastimosos e desesperados do infeliz emparedado, deram por terminada a obra, e evacuando a caverna trataram de por-se em mancha.


CAPÌTULO XXI

O ASSALTO

Apenas os insurgentes se viram fora do antro pavoroso, toda a vozeria cessou como por encanto, e o mais discreto silêncio sucedeu às altercações e pocemas sanguinárias. Antes de se porem em movimento estiveram alguns instantes parados junto à entrada da gruta tomando em voz baixa algumas deliberações e combinando o plano do ataque. Quem visse de alguma distância aquele grupo de cerca de cem homens remoinhando e murmurando em uma noite tenebrosa ao pé de uma rocha escarpada, cuidaria não ver mais que uma moita de arbustos, que se agita e sussurra ao sopro das virações da noite.

Os índios a princípio quiseram prorromper em seus gritos selváticos e entoar seus horríveis cantos de guerra. Mas Antônio dirigindo-se a eles em sua própria língua lhes fez ver, que naquelas conjunturas o silêncio era a primeira condição do sucesso. Também lhas tinha feito largar seus arcos e flechas, que na ocasião de bem pouco lhes poderiam servir; deixou-lhes somente os tacapes, e deu-lhes partazanas e zagais, de que na caverna, graças aos cuidados de mestre Bueno, havia sobeja provisão. Ainda que quase nus alguns se armaram também de espadas e escopetas; eram em número de vinte e tantos a trinta.

Os negros em número pouco mais ou menos igual, além de escopetas e zagais levavam também à cinta suas largas e compridas facas, arma terrível de que com tanta destreza sabem servir-se.

Os paulistas armados de espadas, escopetas e duas pistolas ao cinto formavam o grupo mais formidável e numeroso.

Esta falange vista a luz do sol faria rir a quem não soubesse os nefários e sinistros desígnios, que levavam em vista.

Dos Índios poucos tinham injúrias pessoais a vingar, mas fervia-lhes n’alma o ódio instintivo, que os açulava contra os europeus, que lhes queriam roubar a liberdade e a terra, que Tupã lhes tinha dado. Os negros, todos escravos fugidos, queriam vingar-se dos golpes do azorrague desumano, que ainda lhes ardia nas carnes, e ao mesmo tempo quebrar os ferros da escravidão. Dos paulistas não havia um só, que não trouxesse altamente gravada no coração uma cruel afronta, um esbulho o mais iníquo, a mais clamorosa injustiça. Compreende-se pois com que sofreguidão e sede de vingança marchava aquela troça de bandidos sobre a povoação já submersa em sono profundo. Avançavam todos animados e resolutos, e cheios de ardor e confiança aceleravam o passo quanto podiam, ansiosos por tomarem sanguinolento desfôrço das violências e afrontas até ali tragadas com tanta paciência e resignação.

Antônio, porém, a quem a ausência de Maurício causava a mais viva inquietação, não participava do cego e vertiginoso entusiasmo, que arrastava seus companheiros. Não seriam ainda dez horas, quando os insurgentes se puseram em marcha. Restava ainda ao índio a esperança de encontrar Maurício em caminho. Durante a marcha aplicava continuamente a um lado e outro seu ouvido fino e exercido à escuta de algum tropel de cavaleiro, e de quando em quando com incrível rapidez e agilidade, infatigável como um cão perdigueiro, batia mato e campo à direita e à esquerda em longas distâncias a fim de impedir que Maurício, se acaso tivesse tomado trilho diferente, não se desencontrasse deles.

Mas tudo era baldado; nem notícia, nem tropel, nem sombra de Maurício aparecia. Nem só se inquietável o fiel e generoso índio com a sorte de seu amo, aliás altamente comprometida; ainda mesmo que o soubesse salvo e livre de perigo, a sua ausência era um terrível contratempo, que poderia dar em resultado as mais desastrosas catástrofes. Além de excitar contra si as suspeitas e o ódio dos insurgentes, a que perigos não iam ficar expostos Leonor e seu pai sem a presença daquele, que somente podia protegê-los contendo a fúria de uma horda desenfreada, que só respirava vingança e carnificina !... Ai de Leonor, ai de Diogo Mendes, para os quais não haveria entre aqueles entes obcecados pelo ódio nem a mínima parcela de compaixão. E ai de Maurício, cuja existência seria esmagada pelo mais violento golpe, e que com razão se queixaria dele Antônio, e de todos os seus amigos e patrícios, que por sua imprudência e precipitação os iam sacrificar podendo salvá-los. Em sua extrema dedicação o generoso índio esquecia-se do rancor, que votava ao capitão-mor, esquecia-se de si mesmo, e até de sua querida Judaíba, para so pensar em Maurício e Leonor. Estes pensamentos o torturavam, e cada passo, que os insurgentes avançavam em sua marcha precipitada, dobrava-lhe os sustos e a inquietação.

Sempre na esperança de que Maurício viria a topar com eles em caminho, Antônio, que tanto por sua audácia e atilamento, como pelo traquejo, que tinha daqueles lugares, tinha-se tornado senão o chefe, ao menos o guia da expedição, aproveitava-se de todos os pretextos possíveis para retardar-lhe a marcha. Ora parecia hesitar sobre o trilho, que se devia tomar, ora propunha u.ma. questão sobre o modo por que deveriam atacar os emboabas; mas tudo era baldado; a horda marchava incessantemente e avançava sempre com o mais denodado arrojo e velocidade. A voz de Irabussu troava ainda aos ouvidos de todos, e os impelia às cegas com vertiginosa impetuosidade como folhas secas arrebatadas pelo sopro do furacão.

Estavam já nas imediações do povoado; entretanto a meia noite vinha longe; Maurício, montado em seu valente e rápido corcel, partindo naquele instante, podia ainda apresentar-se na gruta à hora aprazada. Refletindo nisto Antônio desesperava e quase endoidecia; apresentavam-se-lhe de tropel e confusamente ao espírito todas as funestas conseqüências daquela precipitação de seus companheiros, e já não sabia que meios empregar para detê-los. Tentou ainda um derradeiro esforço. Antes de entrar no povoado fez parar um momento a coluna dos insurgentes.

- Eu peço só meia hora, - disse dirigindo-se a Calixto; - um quarto mesmo talvez me baste. - Vou procurar meu amo, saber se é vivo ou morto, se está livre ou preso. Se está vivo e livre, neste momento estará aqui conosco; e ele só vale por cem. Se porém está em poder de nossos inimigos, neste momento também estará livre e vingado; é Antônio quem o jura.

- Aí temos mais delongas! - retrucou Calixto com mau humor, - e tudo por causa desse inconcebível Maurício, que tanto já nos tem atrapalhado!... Deixa-te disso, Antonio; tu vais te arriscar debalde; talvez te agarrem também, e ficaremos sem Maurício e sem Antônio. Nada de demoras! avante, camaradas!...

- Avante ! avante ! - esta voz partindo dos lábios de Calixto remurmurou como um eco surdo por toda a fila dos revoltosos. Por fim, vendo que eram inúteis todos os seus esforços, e que a todas as suas rogativas e observações se respondiam com a voz de avante, Antônio perdeu a paciência.

- Podem ir, - murmurou com voz abafada de despeito e indignação, - mas hão de arrepender-se de semelhante loucura!... avancem, mas veremos o que poderão fazer sem Maurício e sem Antônio. Onde não vai Maurício, Antônio não se mete.

E escapando-se sem ser sentido, apadrinhando pelas trevas, separou-se do bando, e com a rapidez do gamo dirigiu-se para a povoação.

O capitão-mor e Fernando, posto que não julgassem tão iminente o rompimento da sublevação, depois da, formal e minuciosa denúncia do mameluco, trataram de tomar medidas sérias de precaução, como o caso reclamava. Além dos esbirros, que tinham a seu serviço, apenaram também cerca de quarenta homens dos mais valentes e bem dispostos. Destes uma parte ficou de guarnição à casa do capitão-mor', e outra se distribuiu em patrulhas encarregadas de rondar durante a noite. O povoado e suas imediações, a fim de darem sinal ou aviso de qualquer novidade, que ocorresse. Com eles todos contava Fernando ir na manhã do dia seguinte guiado por Tiago atacar os revoltosos na gruta em que se refugiavam. Além disso os escravos também receberam armamento, e tiveram ordem de conservarem-se sempre alerta nas suas alas e com a maior cautela e vigilância possível.

A horda dos revoltosos, sem dar pela falta de Antônio, continuou a alcançar para a povoação debaixo do maior silêncio e com todas as precauções. Os vedetas emboabas, que tiveram a infelicidade de encontrar-se com eles, caíram debaixo de seus golpes silenciosos sem terem tempo de soltar nem um ai. Assim às vezes um vulcão negro e carregado impelido pelo furacão atravessa silencioso grandes espaços para ir despejar mais longe saraiva de raios e torrentes diluvianas.

Em poucos minutos chegaram à casa do capitão-mor sem serem pressentidos, nem encontrarem embaraço algum. Aí prorrompendo em furiosa gritaria em breves instantes arrombaram a golpes de machado o grande portão, e precipitaram-se de tropel pelo pátio a dentro. A gente, que estava de guarnição, saiu valorosamente a rechaçar o assalto, e travou-se no meio das trevas um medonho combate tornando-se o pátio o teatro da mais horrorosa carnificina. Os escravos armados também saíram de suas senzalas; mas que interesse poderia estimulá-los e acender-lhes no peito coragem para se arrojarem ao meio de tão medonho e mortífero conflito?...

Eles, que de muito mal grado e tangidos pelo azorrague do feitor maneavam sem descanso a enxada e a alavanca para enriquecerem seu senhor, podiam estar dispostos a combater expondo-se a uma morte quase certa para defender a vida e a fazenda daquele que os calcava sob o jugo da mais pesada escravidão?... não de certo e a maior parte deles, tomados de invencível pavor à vista, de tanta carnagem, largaram as armas e fugiram espavoridos para longe daquele teatro de horror e matança.

Naquele recinto, estreito para tanta gente, combatia-se com todas as armas. Ouvia-se troar o arcabuz, silvar a espada, a choupa da zagaia embeber-se nas entranhas do inimigo, o tacape do índio roncar nos crânios, que se despedaçavam. Em poucos minutos a guarnição da casa tinha morrido quase toda, mas também tinha deixado por terra mais de um terço dos insurgentes. O capitão-mor, Fernando e Afonso, acompanhados de uma dúzia de esbirros e criados valentes e dedicados, tinham acudido à varanda desde o primeiro alarma, e depois de terem despejado suas armas de fogo sobre os inimigos, enquanto lhes foi dado distingui-las dos amigos, ali se conservaram animando os seus e dispondo-se para uma resistência desesperada. Vendo enfim que sua gente ia sucumbir toda esmagada pelo número e furor dos assaltantes, deram-lhes ordem que se retirassem à varanda, o  que de pronto trataram de escoltar, mas foram seguidos de perto pelos insurgentes, que também subiram as escadas escorregando no sangue e tropeçando em cadáveres. Travou-se então na varanda uma luta tremenda, indescritível. Uma lâmpada quase a extinguir-se suspensa bem alto ao teto derramava frouxa claridade naquele recinto, e balouçada pelo estrupido dos combatentes, que agitava o ar, abalava o pavimento, e fazia tremer todo o edifício, ondulava luz vacilante sobre aqueles vultos sinistros, que avançavam uns sobre os outros aos pulos e de arma feita. No meio do infernal alarido e confusão entre pragas, ranger de dentes e tinir de ferros ouviam-se gritos de dor e gemidos de agonia.

Ao entrarem na varanda uma parte dos insurgentes dirigiu-se para o lado das prisões, arrombaram as portas, fizeram em pedaços troncos, cadeias, algemas e todos os instrumentos de suplício que encontraram, e soltaram os presos, que vieram reforçar ainda o número dos assaltantes.

O capitão-mor, gravemente ferido logo no começo do conflito, fora recolhido quase à viva força para o interior da casa. Fernando e Afonso, com os poucos companheiros que lhes restavam, de espada em punho, a muito custo podiam conter a onda crescente dos agressores, cuja frente rota continuamente por seus bem manejados golpes era logo preenchida por novos combatentes. Os dois jovens fidalgos, cedendo e recuando continuamente diante do número e da fúria dos inimigos, viram-se forçados a abandonar a varanda, onde não lhes ficava mais espaço para combater, e refugiaram-se no salão das recepções. Aí havia mais largueza e claridade; o salão era vasto, e um candelabro de bronze, com quatro bugias acesas suspenso ao teto de estuque dourado, derramava bastante luz por todo ele. Para aí também os seguiu e arrojou-se de tropel a uma invasora disposta a penetrar até os mais íntimos recessos do lar doméstico tudo arrasando e trucidando. Tudo estava perdido; só restava a Fernando e seus companheiros a esperança, de que os poucos habitantes do povoado capazes de pegar em armas despertados pelo estrondo daquele terrível assalto corressem espontaneamente a prestar-lhes auxílio. Mas eles não apareciam; os escravos desde o começo da travada tinham-se posto em fuga, e a guarnição da casa quase toda tinha sucumbido aos golpes dos insurgentes. Não havia mais esperança; oprimidos e encantoados por um número três vezes superior, Fernando, Afonso e mais uns dez ou doze companheiros, que restavam, desesperados de sua sorte e resolvidos a vender cara a vida, combatiam como leões em fúria.

De repente a cena mudou-se; os que atacavam Fernando e os seus, viram-se também inesperadamente atacados pela retaguarda. Ao mesmo tempo ouviram-se ressoar estes gritos: - traidor! traidor! morra o traidor! morra Maurício!... Os assaltantes viram-se obrigados a formar duas frentes de combate, uma para fazer face aos golpes desesperados de Fernando e sua gente, outra para resistir ao brusco e violento ataque de um grupo de cerca de quinze emboabas, que os acometiam pela retaguarda. Deu-se então a mais horrorosa confusão; no meio do remoinhar desses homens furiosos, que se atropelavam, abalroavam e entrevelavam-se naquele apertado recinto, por muito tempo ficaram os combatentes sem saber quem era amigo, ou inimigo, e muitos caíram aos golpes de seus próprios companheiros.


Capítulo XXII

Combate pró e contra

Maurício, depois de ter depositado em seu leito Leonor desfalecida, enfiou-se de novo pelo caminho subterrâneo, por onde viera, e logo que surgiu fora dele saltou para fora os muros da quinta, e em vez de ir para o sítio retirado, onde escondera o seu animal, dirigiu-se para o centro da povoação.

A única resolução, que lhe restava na difícil e terrível conjuntura, em que o vinha colocar o precipitado assalto dos insurgentes, tinha sido instantânea e definitivamente tomada em seu espírito. Não podia deixar Leonor e seu pai entregues à sanha daquela horda infrene e sedenta de sangue, que tudo levaria a ferro e fogo sem distinção de sexo nem de idade. Leonor seria vítima do mais feroz canibalismo, e era seu dever imprescindível voar em seu socorro.

Mas apresentar-se só era imprudência e temeridade que nenhum resultado produziria. Já tinha ouvido no meio das poceinas seu nome pronunciado com rancor entre epítetos afrontosos; não o reconheceriam mais como chefe, nem mesmo como camarada, e em vez de obedecer-lhe voltariam suas armas contra ele. Prevendo todas estas coisas, na cruel ansiedade, em que se achava, lançou mão do único expediente, que lhe restava. Percorreu com a rapidez do relâmpago as ruas mais habitadas, bateu à porta de diversos portugueses, os quais com os gritos e arruído do assalto se achavam quase todos despertados, informou-os do que havia, animou-os e fê-los pegar em armas, e correu em auxílio do capitão-mor e sua família...

Logo que se viu rodeado de doze ou quatorze companheiros, correu com eles direito ao lugar do conflito. Ao chegar viu logo que os insurgentes levavam tudo de vencida; tremeu-lhe o coração ao pensar, que um só momento, mais que se demorasse, tudo estaria perdido, e do íntimo d’alma rendeu graças ao céu, que lhe guiara e acelerara os passos para chegar a tempo de salvar um anjo puro e inocente das garras de inimigos brutais e furiosos. Já achou o pátio abandonado e alastrado de cadáveres e de gente ferida. Sem mais demora subiu afoitamente as escadas da varanda à testa de seus companheiros. Tentou ainda com sua voz e autoridade conter a fúria dos assaltantes.

- Basta, camaradas! - bradou-lhes, - basta de tanta carnagem! - estão vencidos e entregues ; basta!... basta de matança!...

A estes brados os paulistas, índios e negros, que se atropelavam na varanda pisando sobra de cadáveres, volveram o rosto e reconhecendo Maurício pela figura e pela voz no meio daquela troça de emboabas:

- Morra!... morra o traidor! - gritaram arremessando-se furiosos contra o paulista e seus companheiros. É impossível descrever a luta medonha, furiosa e desatinada, que então se travou naquele estreito recinto. O atracamento de dois navios de guerra não oferece cena mais horrorosa. Os agressores, vendo-se abandonados pelos companheiros da retaguarda, que foram forçados a voltar-se contra Maurício, apertados por Fernando viram-se obrigados a abandonar o salão e saírem de novo para a varanda, a qual ainda que larga e espaçosa era arena muito estreita para tantos combatentes. Brigava-se a estocadas, cutiladas, punhaladas, a golpes de coronha e de tacapes, e na perturbação e entrevelamento, que reinava entre os combatentes, vibravam-se golpes às cegas contra amigos e inimigos. Maurício bradava ainda em vão a seus patrícios e camaradas querendo pôr termo a tão desastrada carnificina; nada os podia conter, arrastava-os a furiosa embriaguez do sangue e da carnagem. Viu-se pois na dura necessidade de precipitar-se sobre eles como um leão indignado sobre alcatéia de lobos famulentos. Os assaltantes já estavam extenuados de fadiga, e pela maior parte feridos e cutilados. Maurício em poucos instantes brandindo a espada abriu através deles um claro imenso; seus companheiros o seguiram, e a estocadas, empurrões e coronhadas expeliram os que não morreram para fora da varanda, e os arrojaram no páteo. Restavam porém os da frente, que se digladiavam furiosamente contra Fernando, e Afonso e seus poucos companheiros.

Entre aqueles achava-se Calixto, o jovem e impetuoso paulista, que por sua imprudência e sofreguidão era uma das principais causas daquela horrível e inútil carnificina. Coberto de golpes e esvaindo-se em sangue já mal podia amparar-se dos botes vigorosos de seus adversários. Mas mesmo assim avançando sempre esforçava-se a todo transe por abrir caminho até o interior da casa; queria ainda uma vez ver a sua Helena, e" aos pés dela exalar o alento derradeiro. Ao ver esse belo e altivo mancebo em tão deplorável situação, Maurício sentiu a mais pungente e amarga comoção.

- Foge, Calixto; salva-te enquanto é tempo - disse-lhe a meia voz avisinhando-se dele o mais que lhe foi possível.

Ao som daquela voz, que logo reconheceu, o mancebo voltou-se rapidamente, e vendo Maurício arrojou-o a ele furioso e de espada alçada.

- Não tens pejo de falar-me, vil traidor?!... Foram as únicas palavras que proferiu desfechando uma cutilada com todas as forças, que lhe restavam. Maurício, porém, apercebido, desviou-lhe o golpe, e dando imediatamente no braço direito uma forte pranchada lhe fez saltar a espada da mão. Os olhos do mancebo se turvaram, os braços desfaleceram, as pernas cambalearam, e ele caiu exangue sobre o pavimento. O coração de:Maurício confrangiu-se de dor e comiseração à vista de tão lastimoso espetáculo; não era porém a ocasião de verter lágrimas sobre os mortos, mas sim de tratar de salvar os vivos.

Maurício investiu imediatamente sobre os outros assaltantes, que batiam-se com Fernando, e auxiliado pelos emboabas, que o acompanhavam, em breves instantes afugentou uns e pôs outros fora de combate. Neste momento um súbito e imenso clarão veio iluminar toda a varanda e a cena sanguinolenta, que nela se passava. Os insurgentes tinham posto fogo às senzalas, que rodeavam o pátio, e o incêndio, que até então lavrara oculto começava a erguer ao céu suas rubras e crepitantes espadanas de fogo. À luz daquele clarão sinistro todos se podiam reconhecer pela fisionomia. Maurício achou-se face a face com Fernando e Afonso, que ao reconhecê-lo lançaram-se a ele bramindo de raiva, atirando-lhe golpes incessantes, e bradando-lhe; - morre!... morre, infame! morre, vil traidor!

Ainda desta vez Maurício, obedecendo mais aos generosos impulsos do seu coração do que aos sentimentos de justo rancor, que votava a Fernando, tentou poupar sangue e pôr termo à matança.

- Senhores, bradou ele sempre aparando os botes, que choviam encarniçados sobre sua cabeça, - bem estão vendo, que venho defendê-los; embainhem essas espadas, ,estão salvos e a mim o devem.

- Não precisamos de tua defesa, perro vil!... defende-te a ti mesmo, se podes, - retrucou Fernando a espumar e atirando-se, cada vez mais furioso contra o paulista, que sem querer ofender continuava a defender-se galharda e vigorosamente. Afonso porém em seu cego e desvairado ímpeto arrojou-se por tal sorte sobre Maurício, que este sem o querer cravou-lhe a espada na garganta, e o estendeu morto no pavimento.

O jovem fidalgo caiu junto ao corpo de Calixto, e ao cair seu braço estendido enlaçou-se ao colo daquele, que fora seu rival. Dir-se-ia, que ao morrer implorava perdão e procurava congraçar-se com aquele, a quem na vida tinha tão dolosamente ofendido na fibra a mais sensível do coração. Estavam ali postados esses dois jovens, iguais na idade na beleza e na pujança, ambos cheios de vida e de risonhas esperanças, que de certo se teriam realizado, se suas próprias paixões e desatinos não os tivessem arrastado a tão prematuro e desastroso fim. Estavam ali como duas palmeiras, que ainda a pouco se balançavam ufanas e garbosas defronte uma da outra emulando qual em ostentar mais viço e louçania e querendo cada um roubar para si só toda a seiva da terra, todos os beijos da brisa e todo o orvalho do céu.

Veio um mesmo tufão e as derribou uma sobre a outra sobre o pó da terra, e as enlaçou em piedoso e fúnebre amplexo. Na morte esqueceram seus ódios e seus amores, e congraçaram-se para sempre no seio do universal e infinito amor.

Os emboabas que tinham vindo com Maurício, surpreendidos com a nova luta, que se travava entre ele e os donos da casa, não sabiam o que pensar; não podiam compreender, por que motivo o combate se renovava ainda mais renhido entre Fernando e aquele, que tão valente e generosamente tinha corrido a salvá-lo de um desastre inevitável. Vendo enfim o filho do capitão-mor cair trespassado pela espada do paulista, começaram a convencer-se de que ele não podia ser a favor dos portugueses, cessando de coadjuvá-lo ficaram por alguns instantes atônitos, perplexos sem saberem o que fizessem.

- Que fazeis, patrícios ?! - bradou-lhes Fernando - por que acompanhais esse este traidor, que jurou trazer a morte e a deshonra a esta casa,  a ruína de todos os portugueses !... já uma vítima ilustre ali jaz à espera de vingança. A ele, camaradas!... ele é o pior de nossos inimigos; a ele !...

Os portugueses não hesitaram mais; o cadáver de Afonso ali estava o denunciando como inimigo dos emboabas; arrojaram-se sobre ele, e o atacaram por todos os lados. Maurício estava perdido; achava-se só tendo pela frente Fernando com mais dois companheiros, que ainda lhe restavam, e por detrás ainda uns seis ou sete emboabas daqueles, que ainda a pouco combatiam a seu lado. Encostou-se à parede, e ali defendeu-se por alguns instantes com incrível vigor e agilidade aparando e desviando um chuveiro de cutiladas e estocadas. O número, a cegueira e o açodamento dos agressores, que se abalroavam e atrapalhavam uns aos outros na fúria do combate, favoreciam a defesa de Maurício, o qual com alguns golpes vibrados com a rapidez do relâmpago ainda conseguiu pôr fora de combate uns dois adversários.

Mesmo assim porém por mais um instante que se prolongasse tão desigual combate, sua morte seria inevitável. Já não restava ao valente paulista a mínima esperança de salvação; disposto a morrer, depois de ter dirigido mentalmente uma súplica extrema ao Deus de misericórdia, enviava a Leonor seu último e angustiado pensamento, quando subitamente viu surgir sobre o peitoril da varanda e saltar para dentro um vulto, e logo após este um outro ainda. Maurício logo os reconheceu, eram Gil e Antônio.


Capítulo XXIII

Ela salva e ele condenado

Depois de se ter separado de seu amigo, Gil não se dirigiu logo à gruta dos insurgentes. Graças às diligencias e à dedicação de seu velho bugre, era possuidor de uma considerável fortuna consistente pela maior parte em ouro bruto em pó e em folhetas, e pouca coisa em moedas e jóias de valor. Tendo de se entregar aos azares de uma insurreição, cujo resultado não era fácil de prever, e não sabendo qual seria no dia seguinte a sua sorte queria pôr a bom recato esses valores, para que não caíssem nas mãos dos emboabas. Sabia, que estes lhe desejavam todo o mal e muito se regozijariam com sua morte não tanto pelo ódio, que tinham à sua pessoa, como pela inveja e gana que tinham de suas riquezas as quais segundo as crenças exageradas do vulgo suponham ser dez vezes mais avultadas do que realmente o eram. Gil preferiria ver esses tesouros restituídos ao seio da terra, donde saíram, a entregá-los nas mãos ávidas de seus perseguidores.

Entretanto não via em torno de si um amigo, uma pessoa de confiança, em cujas mãos pudesse deposita-los. Maurício, Antônio e mesmo mestre Bueno, únicas pessoas a quem com segurança poderia confiá-los, andavam como ele foragidos e expostos aos mesmos azares e perseguições. Todos os outros seus patrícios, aos quais em último caso as entregaria, estavam nas mesmas condições. Depois de pensar algum tempo sobre o destino,

que lhes daria tomou enfim uma deliberação, que lhe pareceu excelente.

- Foi Irabussu que me deu estas riquezas, - pensou ele; - e segundo a crença geral saíram da gruta, onde ele morava, e mora ainda segundo todas as aparências, se não é alma dele que por lá anda aparecendo aos viventes. Vivo ou morto ele deve zelar este ouro, que com tantos trabalhos e perigos soube alcançar para mim. Assim pois levemo-lo de novo para lá; em nenhum lugar podem ficar tão bem escondidos e guardados como na própria mina, donde saíram e debaixo das vistas daquele, que as descobriu. Essa lapa, que nos tem até aqui abrigado da sanha de nossos perseguidores, também saberá resguardar nossas riquezas das garras de sua cobiça insaciável. Vamos!

Gil formou um pacote de todo o ouro e jóias, que possuía, montou com ele a cavalo e partiu a trote largo para a gruta de Irabussu; seriam nove horas. Como costumava, tomou um caminho muito diferente daquele, por onde marchava a coorte dos insurgentes. Sendo na sua casa situada na extremidade oposta pelo lado do sul, e em grande distância da quinta do capitão-mor, porém muito mais próxima da gruta, Gil tomou pelas colinas, que dominam pela margem esquerda o vale do Rio das Mortes e por um caminho mais curto e descampado chegou à gruta. Enquanto para lá se dirigia, os insurgentes escondendo sua marcha pelos grotões e vales cobertos de mato, que acompanham o curso do rio, encaminhavam-se também com mais segurança e brevidade à casa do capitão-mor, que devia ser o primeiro e principal alvo de suas hostilidades.

Ao chegar à gruta Gil ficou surpreendido de encontrá-la completamente abandonada. Não era possível, que os insurgentes tivessem sido atacados e destroçados pelos emboabas; na gruta não havia nem o mínimo vestígio de combate; nem cadáveres, nem sangue; os fogos ainda estavam acesos, e nos objetos não se notava desordem alguma, que fizessem suspeitar uma luta decente.

Mas não lhe foi mister refletir muito para atinar com o verdadeiro motivo daquele fenômeno. Logo compreendeu que a impaciência e sofreguidão dos insurgentes, não achando quem as reprimisse, os levaram ali, antecipar o rompimento, sem esperarem por ele nem, por Maurício, contra o qual talvez teriam surgido novas desconfianças. Este pensamento o encheu de inquietação, pois bem previa que aquele movimento sem direção operado por uma horda ingovernável, que só obedecia aos seus instintos ferozes e à sede de vingança, nenhuma probabilidade de feliz resultado podia oferecer.

Mas como o mal estava feito e sem remédio, Gil tomando um tição para alumiar seus passos dirigiu-se aos mais escuros recôncavos da caverna procurando um esconderijo, onde depositasse o seu tesouro. Em uma espécie de corredor estreito e tortuoso' divisou um como nicho, cuja abertura não era grande, mas que parecia ter uma cavidade bastante profunda; por cima dele formava-se em relevo sobre o muro uma perfeita cruz de cintilantes estalactites, era um lugar bastantemente assinalado, e com um sinal auspicioso. Estendendo bem os braços, que a custo puderam alcançar a altura do nicho, Gil aí atirou o pacote, que continha suas riquezas. Depois voltando-se para o interior da caverna.

- Irabussu, - chamou em voz bem alta, - teu amigo Gil aqui vem entregar-te e confiar à tua guarda o tesouro, que lhe deste. Se ainda és vivo, vigia-o bem, para que não caia em poder de nossos inimigos.

- Branco, vai-te em paz, - mugiu uma voz, pesada e lúgubre do fundo dos socavões. - Ninguém tocará no teu ouro. Irabussu aqui fica para vigiá-lo. Vai-te, mas não me voltes aqui mais sem trazer a Irabussu sua filha Judaíba pela mão, e o punhal tinto no sangue do emboaba.

O sangue gelou-se nas veias e os cabelos eriçaram-se de pavor ao mancebo ouvindo na medonha solidão daquela espelunca, os ecos sepulcrais dessa voz, que parecia falar das margens de um outro mundo. Sem mais ousar erguer a voz apressou-se em sair da gruta, e voltou a toda brida para a povoação pelo mesmo caminho, por onde viera. Chegando em casa ouviu os primeiros tiros e a vozeria e estrondo do assalto dado à casa do capitão-mor. Largou o cavalo, e para lá dirigiu-se com a maior presteza, que lhe foi possível. Já estando a entrar no pátio viu Antônio, que do lado oposto vinha também correndo para o teatro do horroroso conflito.

- Que é de meu amo? - Que é de Maurício! Estas duas perguntas, que partiram ao mesmo tempo dos lábios de ambos, já continham em si a resposta; nenhum deles sabia de Maurício. Antônio, tendo-se separado da malta dos insurgentes, tinha ido a primeiro lugar rondar em torno da casa do capitão-mor a ver se por qualquer meio obtinha notícias de Maurício; mas não avistou pessoa alguma, nem ouviu som de voz humana; todas as portas e janelas estavam trancadas e tudo jazia em profundo silêncio. Dali dirigiu-se à casa de seu amo, que achou igualmente trancada e silenciosa.

Pôs-se envio a percorrer toda a povoação com a velocidade de um galgo procurando por Maurício ou notícias dele. Cansava-se em vão nesta afamosa lida, quando ouviu os primeiros rui dos do assalto, que começava; imaginou quê Maurício também já talvez lá se achasse, e mesmo que não se achasse, a ele Antônio corria o dever de a todo transe defender Leonor ;contra a fúria dos insurgentes... Além do afeto e profunda veneração que o índio votava à jovem senhora, que sempre fora para ele um gênio protetor, um anjo de bondade, ele sabia que defendendo Leonor prestava a seu amo um serviço mais relevante, do que se lhe tivesse salvado a própria vida, e portanto sem hesitar um instante correu para o lugar do perigo.

Encontrando-se com Gil, entraram ambos no pátio e viram na varanda ao clarão do incêndio a figura de Maurício que batendo-se em luta a mais desigual estava prestes a sucumbir sob o número de seus agressores.

- É ele ! - é ele ! - foram às únicas palavras que proferiram. De um lance de olhos compreenderam que, se não lhe acudissem instantaneamente, Maurício impreterivelmente ia ser sacrificado. Batia-se este encantoado na extremidade da varanda pelo lado da frente do edifício. Atravessar o pátio, subir a escada e perlongar a extensa varanda, entulhada de cadáveres, de gente fora de combate e de alguns combatentes feridos e destroçados, que se agitavam numa indizível confusão, mas que talvez quisessem opor-se à sua marcha, seria

perder momentos preciosos. Achegaram-se rapidamente da varanda, cujo pavimento ficava elevado cerca de três metros acima do pátio, e foram colocar-se mesmo em baixo do lugar em que se combatia. Antônio encostou-se ao muro, e Gil, servindo-se dos ombros dele, escalou o peitoril, e saltou dentro da varanda. Antônio de um pulo de onça atracou-se aos gradis, e seguiu-o de perto.

Maurício, vendo surgirem como por encanto a seu lado aqueles dois valentes e dedicados amigos, únicos com quem poderia contar na cruel e difícil conjuntura em que se achava, criou alma nova, e sentiu renascer em seu espírito a coragem e a esperança, e em seu braço todo o seu vigor e agilidade.

- Coragem, patrão! - exclamou Antônio saltando dentro da varanda; - ocupe-se com esses, - acrescentou apontando para o lado de Fernando, - enquanto nós :ficamos brincando ,cá com estes amigos.

Dizendo isto ele e Gil com a espada em uma das mãos e o punhal na outra foram descarregando golpes desapiedados sobre os emboabas, que a seu pesar tiveram de recuar e abrir-lhes quadra para combater. Entretanto Maurício, vendo-se livre destes, apertou com Fernando e um único companheiro, que lhe restava ao lado; a este inutilizou desde logo com uma profunda cutilada no braço direito. Fernando bateu-se ainda por alguns instantes com o furor do desespero; mas por fim o paulista fez-lhe saltar a espada da mão, agarrou-o pelo punho e o obrigou a vergar-se de joelhos a seus pés.

- Não te mato, infame embusteiro, - disse-lhe com voz rouca e abafada, - porque não quero manchar minhas mãos nesse sangue vil. Mereces morte mais afrontosa; um dia a terás...

- Larga-me, demônio, - bradava o fidalgo estorcendo-se e esforçando-se debalde por livrar-se da mão de ferro, que lhe atracava o braço. - Larga-me, ou mata-me.

Entretanto uma turba de emboabas, vindos de pontos, mais remotos, bem como as patrulhas, que rondavam pelos arredores, acudiam de tropel por todos os lados em auxílio do capitão-mor, e alguns já entravam pelo pátio gritando em brados furiosos: - Morram!... morram os paulistas! morra Maurício! - Os paulistas, que tinham escapado da carnagem, feridos, desanimados e extenuados de fadiga, se debandavam por todos os lados procurando a salvação na fuga.

Maurício viu com certo prazer travado de amargura que o capitão-mor e sua filha estavam salvos; ele, porém estava perdido. Refletiu um instante, e no embate dos angustiados pensamentos, que o torturavam, esteve a ponto de entregar o peito ao ferro do inimigo, e terminar uma existência, que dali em diante ia se lhe tornar mais que nunca insuportável. Repudiado pelos seus, que iludidos pelas aparências, com razão o reputavam traidor, detestado pelos emboabas, execrado e amaldiçoado como ia ser por Diogo Mendes e por sua filha Leonor, cujo irmão acabava de sucumbir na ponta de sua espada, que mais lhe restava a esperar neste mundo? Viver dali em diante era querer lutar contra a onipotência do destino, que o perseguia; era tempo de morrer... Estes lúgubres pensamentos lhe atravessaram o espírito com a rapidez do relâmpago, mas também como o relâmpago, para logo se apagaram, cedendo lugar a sentimentos mais cordatos e generosos.

Pensou que Deus não o havia salvado debalde por intermédio de seus dois amigos do iminente perigo, que ainda a pouco ameaçava sua existência. Lembrou-se de Leonor, que talvez teria ainda necessidade de sua vida. Devia viver para ela, e também não queria morrer sem o seu perdão. Cedendo a esta inspiração, e vendo que se avizinhava o tropel dos emboabas:

- Gil! Antônio!...salvem-se, - gritou a seus amigos.

- E tu, onde ficas? perguntou Gil, o qual, bem como Antônio, jamais se resolveriam a abandonar o amigo em meio de perigos.

- Por este lado, respondeu Maurício, - não tenho mais inimigo a combater. Por aqui mais facilmente me porei a salvo.

Tranqüilizados com esta resposta Gil e Antônio, rompendo por entre os emboabas, dos quais pelo menos metade já tinha caído a seus golpes, desceram aos pulos a escadaria, atravessaram o pátio com tal rapidez e sutileza, que não puderam ser reconhecidos pelos que cruzavam aquele recinto em todos os sentidos no meio de uma confusão indizível e geral consternação, e saindo incólumes pelo portão foram se postar em distância de fronte do edifício; aí protegidos pelas trevas ficaram espreitando a saída de Maurício.

Este, voltando-se para Fernando, cujo braço tinha sempre apertado entre seus músculos de aço, alçando a espada, ia descarregá-la sobre a cabeça de seu perverso e pedido rival, mas vendo o inimigo inerme e abatido a seus pés, os magnânimos e cavalheiros os sentimentos de seu coração detiveram-lhe o braço.

- Fica-te, maldito! disse largando o braço de Fernando, que ferido e quase exânime lhe jazia aos pés. - Tua vida me pertence, mas eu te emprazo para outra ocasião. Disse e entranhado-se pelo interior compartimentos conhecia perfeitamente, aposentos de Leonor.


Capítulo XXIV

A prece de trás anjos

O delíquio, a que de novo sucumbira Leonor cruelmente sobressaltada com o estrondo da temerosa catástrofe, que se despenhava sobre a casa paterna, não fora de longa duração. A vozeria e o estrugido infernal, que aturdia e abalava todo o edifício, em breve a fez voltar a si, como quem acordava de um horrível pesadelo. Ao abrir os olhos viu ajoelhadas junto ao leito suaS duas companheiras Helena e Judaíba, que trêmulas e transidas de pavor lhe tomavam as mãos banhando-as de lágrimas, e procuravam com carinho despertá-la do seu delíquio, que ela ignorando o que sucedera julgavam não ser mais que um profundo sono.

O interior da casa estava completamente deserto; os homens, que nela habitavam, aclamavam-se todos na varanda empenhados no combate; as escravas tomadas de pavor invencível tinham-se escapado para o quintal, ou refugiado no fundo das senzalas. As duas pobrezinhas, vendo-se desamparadas, vaguearam longo tempo desvairadas pelos ermos compartimentos da vasta habitação, como duas rolas prisioneiras sem acharem por onde fugir, nem onde abrigar-se das garras do gavião, que esvoaça ameaçador em volta de sua prisão. Não vendo uma só pessoa, a cujo lado se asilassem, e que pudesse alentá-las e protegê-las em transes tão horríveis, correram para junto de Leonor; bem viam que esta era também como elas uma fraca donzela que também precisava do apoio e proteção de um ser mais forte, mas viam nela como que uma natureza superior, um anjo de pureza e de bondade, que como em outras ocasiões já tinha feito, não deixaria de abrigá-las eficazmente à sombra de suas asas.

- Que é isto, meu Deus!?... que estrondo é este ?... perguntou a moça ao despertar erguendo-se sobressaltada.

- Ah ! senhora, não sabe? ! - respondeu Helena, - estamos perdidas!... briga-se aí fora a fogo e sangue. É uma guerra de morte!... ah! valei-nos, valei-nos por piedade...

- Ah! já sei, já sei!... e meu pai ?... e Maurício ? onde estão?... oh !... meu Deus! tende piedade de nós! - disse Leonor passando pela testa a mão convulsa como querendo reatar suas idéias perturbadas, e lançando para trás do colo as longas e negras madeixas, que lhe obumbravam o rosto.

Leonor compreendeu logo todo o horror de sua situação, mas em vez de esmorecer em presença da temerosa catástrofe, que desabava sobre a casa paterna ameaçando esmagá-la com todos os seus habitantes, sentiu-se revestida dessa resolução heróica, dessa sublime coragem, que é o apanágio das almas puras e elevadas nas ocasiões supremas.

- Minhas amigas, - disse com voz firme e calma à suas duas companheiras, - tranqüilizem-se; nenhum perigo corres, Helena, nem tu tão pouco, minha Judaíba. São teus próprios parentes e amigos, que as vem arrancar desta casa, onde vivem prisioneiras e contra a vontade. Mas eu, meu pai, meu irmão... ai de nós!... seremos sacrificados sem remério ao seu furor, se Deus não amercear-se de nós, e se não defendermos a nós mesmos... Fiquem neste quarto; não se arredem daí, que eu volto neste momento.

Ditas estas palavras Leonor saiu rapidamente, e dirigiu-se ao aposento do capitão-mor; estava ele deserto; seu pai ainda não fora ferido, e combatia na varanda.

Aí entre diversas armas, que examinou rapidamente, escolheu um pequeno e buido punhal, e um florete; guardou aquele no seio, e empunhando este dirigiu-se de novo à sua câmara.

- Para que essas armas ? - perguntou Helena atônita e consternada; quer também arriscar-se...

- Não tenhas susto, minha amiga; atalhou Leonor; - em primeiro lugar vamos rezar e pedir a Deus que afaste de nós esta tormenta horrorosa. Se porém ele não compadecer-se de nós com esta espada irei combater e morrer junto de meu pai, e este punhal servirá para traspassar-me a mim mesma o coração, se tiver a desgraça de cair viva em poder deles.

- E por que razão, - replicou Helena, - não trouxe armas para nós também ?... ficaremos nós aqui a chorar e a rezar, enquanto a senhora tão mimosa e delicada vai combater ?...

- Como! ? pois querem combater contra seus pais e seus amantes, que as vem libertar ?... Helena poderá combater contra Calixto, e tu, Judaíba, terás ânimo de cravar um punhal no peito do teu Antônio ?...

- Que diz, senhora! pois esses também serão contra o senhor capitão-mor, e contra a senhora ?

- Pois quem mais, senão eles ... quem mais senão esses muitos desgraçados tão vexados e perseguidos por Fernando poderiam revoltar-se ! Contra meu pai ?...

- Então também o senhor Maurício... ia ponderar Helena.

- Maurício!... - atalhou Leonor como assustada;

- Maurício!... que disseste, Helena!...

A filha do capitão-mor ficou por momentos imóvel e silenciosa como fulminada por uma súbita e pungente idéia. Uma cruel suspeita lhe havia despontado no espírito. A linguagem obscura e misteriosa de seu amante nas entrevistas, que com ela tivera, seu ar sombrio e preocupado, seu afastamento da casa do capitão-mor, suas resoluções reveladas a meio e em termos vagos e inquietadores vinham ter súbita e manifesta explicação naquela simples frase não terminada e ingenuamente proferida pela filha de Bueno. Em vão Leonor se esforçava por expelir da mente esse odioso pensamento; ele se apresentava teimoso com todos os indícios da evidência, e o desventurado Maurício começava a ficar infamado até mesmo no espírito daquela por quem nesse momento arriscara a todos os azares não só a vida, como o nome e a reputação expondo-os ao mais infamante e abjeto conceito. Poucos momentos durou o embate desses dolorosos e encontrados pensamentos; o tempo e a ocasião urgiam, e a resolução de Leonor tornara-se, se é possível, ainda mais inabalável. Queria ir morrer combatendo ao lado de seu pai em defesa do lar doméstico e a morte lhe seria ainda mais grata, se a recebesse das mãos de Maurício; seria melhor, que ele, que com sua infame perfídia vinha trazer-lhe o gérmem da morte aos seios do coração, lhe terminasse de um só golpe uma existência que a lembrança de tão mal empregado amor iria encher de remorsos, de o próprio e de vergonha.

Passados estes curtos instantes de amarga reflexão, Leonor abriu um lindo oratório, que aí tinha sobre um bufete de pau cetim, acendeu dois círios junto a ele, depôs a espada e o punhal sobre o tapete, e ajoelhou-se.

- Vamos, minhas amigas, de joelhos! - disse às duas companheiras com acento de voz meigo e calmo, - vamos rezar e rogar a Deus, que nos proteja e ampare a nós a todos os nossos.

Helena e Judaíba prontamente se ajoelharam aos lados de Leonor, e enquanto ali bem perto estrugia a fúria do. combate vertiginoso entre pragas, gemidos e ranger de dentes, e corria sangue a jorros, aquelas três almas cândidas e puras, prostradas aos pés do crucificado, erguiam ao trono de Deus a prece, única arma que pode desarmar a cólera Celeste, e imploravam ao Deus de paz, de amor e de misericórdia para que pusesse termo a tantos horrores e desgraças. Quem as visse ali mudas e consternadas, com as vestes em desalinho e -os cabelos em desordem, julgaria estar vendo as três santas e piedosas mulheres, que a lenda cristã nos apresenta ajoelhadas aos pés da cruz erguendo olhares repassados de angústia e de dó para o corpo sangrento e macerado do Redentor do mundo.

Nessa piedosa e tocante postura veio Maurício ali encontra-las. Com as mãos ensopadas em sangue ainda fumegante não ousou penetrar naquele aposento, que parecia um santuário defendido pelos anjos; parou à. porta e, contemplando por um instante aquele grupo angélico, adormeceu-se em sua alma a angústia e desespero, que a ralavam, para dar lugar a um momentâneo enlevo de ternura e amor, de respeito e adoração. Congratulou-se interiormente, porque se não fora ele, aquele santuário teria sido invadido, profanado e inundado em sangue, e julgou-se feliz por ter conseguido com o sacrifício de toda a sua felicidade, de todo o seu futuro expondo-se ao extermínio e ao ódio geral, salvar sua adorada Leonor. Enfim rompendo o silêncio.

- Não rogueis mais por vós, senhora, nem por vosso pai; - disse com voz branda, mas repassada de amargura. - Estais salvos; rogai por mim, que estou perdido !... para sempre!...

A esta voz Leonor e suas companheiras voltaram o rosto e ergueram-se sobressaltadas.

- E,  a quem devemos a salvação? - perguntou Leonor.

- Em primeiro lugar, - respondeu Maurício apontando para o oratório, - a esse Deus de misericórdia, que não podia deixar de ouvir a prece de três anjos; depois a este desgraçado, que vem pedir-vos perdão e dizer-vos um... derradeiro adeus !...

Um eterno adeus - ia Maurício dizer; mas esta cruel palavra amargava-lhe aos lábios, e repugnava-lhe ao coração, em cujos seios pululava-lhe talvez ainda um gérmem de esperança.

O paulista não quis, nem pode dizer mais uma palavra. Os portugueses, que de todos os lados acudiam em socorro do capitão-mor, já começavam a invadir a casa. Maurício, deixando Leonor e suas companheiras atônitas e enleadas, sumiu-se da porta, entrou por uma porta da frente, abriu rapidamente uma janela, e saltou à rua.

Capítulo XXV

Epílogo

Maurício parou um instante em baixo da janela e ali não sabendo para onde caminhava seus passos. Felizmente para ele ninguém o vira saltar senão Gil e Antônio, que como sabemos escondidos em um canto tinham ficado de espreita o esperando. Apenas o viram, em um instante se acharam ao pé dele.

- Que faremos, meus amigos? perguntou Maurício.

Achava-se na verdade em uma situação estranha e inextricável. O futuro mesmo o mais próximo era para ele um enigma, cuja decifração só podia esperar do acaso. Exceto aos dois amigos, que ali se achavam ao pé dele, a ninguém podia inspirar daí em diante senão ódio e desprezo; todos os corações se lhe fechariam, e todos os braços se levantariam contra ele.

Entretanto, no meio de tão horrível desolação dois pensamentos lhe davam algum conforto e consolação: tinha salvado Leonor, e tinha visto subjugado e abatido a seus pés seu pérfido e insolente rival..

- Fugir, meu amo, - disse Antônio respondendo à. pergunta de Maurício; - fugir, e já.

- Sim, foge, Maurício, - disse-lhe Gil também, - foge, enquanto é tempo. Bem estás vendo, à exceção de mim e de Antônio, todos são contra ti; a morte cerca-te por todos os lados.

Efetivamente, à esquerda grande número de emboabas se aglomeraram junto ao portão vociferando imprecauções, e pedindo em altos brados a morte de todos os paulistas e a cabeça de Maurício. À direita os paulistas, negros e bugres, que haviam escapado à matança, retirando-se para o lado do Rio das Mortes, iam-se reunindo em distância erguendo brados furiosos não tanto contra os emboabas, como contra Maurício.

- Morra! - gritavam eles, - morra hoje mesmo esse traidor infame, causa de todas as nossas desgraças !... morra o carrasco, que nos chamou ao matadouro para nos degolar com suas mãos.

Por esse mesmo lado um vivo e medonho clarão começou a iluminar de repente toda a estrada: Era a casa de Maurício, que começava a arder; os insurgentes fugitivos tinham-lhe lançado fogo e sumiam-se em fuga acelerada pelas trevas de além.

- Bem estás vendo e ouvindo tudo, Maurício, disse Gil, - foge enquanto é tempo.

-Deixem-me, deixem-me morrer, - murmurou Maurício, tomado do mais amargo e profundo desalento.

- Não te deixaremos enquanto não te virmos livre de perigo; quando não morreremos contigo.

Maurício não insistiu mais; entregou seu destino a mercê de seus amigos.

Como os insurgente em sua fuga já iam longe, os três, cosendo-se às sombras do morro da quinta, que se estendia até quase a casa de Maurício, encaminharam-se para esse lado, que por ser deserto lhas proporcionava mais facilidade para a fuga.

- Não me resta mais abrigo sobre a terra; só debaixo dela poderei achar descanso !... murmurou tristemente Maurício ao passar pela frente dessa casa, que havia construído com tanto amor e embalado por tão lisonjeiras esperanças, e que agora via com elas - esvaecer-se para sempre em chamas, fumo e cinzas!...

Seguiram sem encontrar embaraço algum pela estrada avante até a um estreito trilho, que desviando-se dela cortava à direita um espesso matagal. Aí Maurício parou.

- Adeus, Gil! - disse com acento da mais pungente emoção; - estou fora de perigo; não quero que participes mais de minhas desgraças. Aqui perto tenho meu cavalo arreado; eu e Antônio saberemos pôr-nos a salvo. Cuida em salvar-te também adeus ...

E sem esperar resposta enfiou-se rapidamente pelo trilho, e acompanhado por Antonio sumiu-se no matagal.

Na manhã do dia seguinte os habitantes de S. João d’el Rei cavavam a terra não para extrair dela o ouro que tanto cobiçavam, mas para depositar em seu seio uma multidão de cadáveres, que eram conduzidos por dezenas em carros de bois.

E Logo depois do horrível e sanguinolento conflito. Fernando, apesar de ferido e extenuado de fadiga sempre ativo em sua odienta perseguição, expediu patrulhas a pé e a cavalo por todos os arredores em perseguição de Maurício e de todos os insurgentes que encontrassem.

Uma dessas patrulhas, já o sol ia alto, - seguindo um rastilho de sangue, encontrou à margem do Rio das Mortes pouco acima da ponte, que conhecemos, uma cova aberta de fresco ;sobre essa cova estavam um chapéu e armas, que reconheceram ser de Maurício.

Mão piedosa, decerto a de Antônio, tinha plantado sobre essa cova uma cruz de madeira toscamente lavrada, e nos braços, dela em falta de outra tinta tinha escrito com sangue estas palavras:

- Orai por ele !

Quase todos entenderam, que Maurício havia morrido em conseqüência de golpes, que recebera em combate. Mas os poucos, que o conheceram de perto, e sabiam a história Íntima de seu coração, julgavam mais provável que ele tivesse posto fim a seus dias por suas próprias mãos.

Entretanto a infeliz Leonor, treda e insidiosamente informada por Fernando sobre o procedimento de Maurício e sobre a morte por ele dada a seu irmão Afonso, não tinha senão maldições para a memória de seu desditoso amante. Nesse mesmo dia, que seguiu-se à temerosa noite, sentada à cabeceira de seu pai ferido e prostrado no leito, confessava-lhe cheia de vergonha e remorso o louco amor que concebera pelo jovem paulista, e pela alma de seu irmão, cujo cadáver ia dar-se à sepultura, implorava-lhe perdão abjurando para sempre tão funesta paixão.

Por fim rogava-lhe com as lágrimas nos olhos, que para expiação de sua fatal fraqueza a fizesse professar freira no convento de Nossa Senhora da Luz em S. Paulo.

Veremos depois, minha filha, - respondia-lhe o bom e honrado pai; - estou muito fraco e tu muito magoada para podermos, pensar nisso agora.

O leitor, que até aqui tem acompanhado benigna e pacientemente esta tosca narração, se deseja saber qual foi realmente o fim de Maurício, e qual a sorte de seus companheiros de infortúnio e outros personagens que nela figuram, deve ler outra história, que servirá, que de seguimento a esta com o título de Bandido dos Rios da Mortes.

FIM

 


ÍNDICE

I      S. João d'EI-Rei

II     Os mineiros

III    Saída ao encontro

IV    Na floresta

V     Ligeiro retrospecto

VI    Aprestos de caçada

VII   A marcha para a caçada

VIII  A caçada

IX    Fim da caçada

X     Apreensões

XI    ódios e amores

XII   A mina misteriosa

XIII  O índio bruxo e sua filha

XIV  Diligência malograda

XV  O gato do mato

XVI  Ir buscar lã e sair tosquiado

XVII          Rapto e violência

XVIII         Antônio e seus amores

XIX  O interrogatório

XX  O anjo do lar e o anjo das selvas

XXI  Em busca do Eldorado

XXII          A gruta de Irabussu

XXIII         Sepultados em vida

XXIV  A catecúmena

XXV           El dorado sem ouro

A insurreição

I      Estréias de um jovem fidalgo

II     Um Páris mal sucedido com a sua Helena,

III    Processo sumaríssimo a meia-noite

IV    Noite de vigília e angústia

V     Perdão pior que a pena

VI     Começo de conspiração

VII  Turpe senilis amorvm

VIII Indícios e suspeitas

IX    Rompimento

X     Conciliábulo na gruta

XI    Fatal irresolução

XII  A aparição e o refém

XIII Tiago, o mameluco

XIV  Trágica interrupção de uma entrevista amorosa

XV   O tição fatídico

XVI  Entusiasmo e confiança

XVII          Invencível obstinação

XVIII  Mil dobras pela cabeça de Maurício

XIX  Horroroso despertar de um sonho de delicias

XX  Feitiço contra o feiticeiro

XXI  O assalto

XXII          Combate pró e contra

XXIII         Ela salva e ele condenado

XXIV  A prece de três anjos

XXV Epílogo


ASSOCIAÇÃO ACERVOS LITERÁRIOS

EM COLABORAÇÃO COM O CELLB/UFOP

Esta publicação contou com o apoio do CNPq.

Edição e informática: Ednaldo Cândido Moreira Gomes



[1] Boleadas:

[2] Lizerias

[3] Almocafre:

[4] Cangerana

[5] Doestos:

[6] Repetição consta na edição;

[7] Desforço:

[8] Coeva:

[9] Venatória:

[10] Absalão:

[11] Molossos:

[12] Opimos:

[13] Sopitado

[14] Canibalismo: no contexto da obra de Bernardo Guimarães, canibalismo não possui o sentido usual, ou seja, de antropofagia, devoração de carne humana; a expressão toca sempre o campo semântico relativo à violência corporal e derramamento de sangue.

[15] Saquitel

[16] Abrenúncio

[17] Rifão

[18] Protervo

[19] Colínea: