Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Remate de males, de Mário de Andrade

Edição de Referência:

Poesias Completas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.

ÍNDICE

        EU SOU TREZENTOS

        DANÇAS     

I

                      II

                      III

                      IV

                      V                

                      VI

                      VII

                      VIII

                      IX

        TEMPO DA MARIA

                                     I – MODA DO CORAJOSO

                                     II – AMAR SEM SER AMADO, ORA PINHÕES!

                                     III – CANTIGA DO AI

                                     IV – LENDA DAS MULHERES DE PEITO CHATO

                                     V – ECO E O DESCORAJADO

                                     VI – LOUVAÇÃO DA TARDE

                                     VII – MARIA

        POEMAS DA NEGRA

I

                    II

                    III

                    IV

                    V                

                    VI

                    VII

                    VIII

                    IX

                    X

                    XI

                                     XII

        MARCO DA VIRAÇÃO

                                     ASPIRAÇÃO

                                     LOUVAÇÃO MATINAL

                                     IMPROVISO DO RAPAZ MORTO

                                     MOMENTO

                                     PONTEANDO SOBRE O AMIGO RUIM

                                     AS BODAS MONTEVIDEANAS

                                     A ADIVINHA

                                     IMPROVISO DO MAL DA AMÉRICA

                                     MANHÃ

                                     MOMENTO

                                     PELA NOITE DE BARULHOS ESPAÇADOS

        POEMAS DA AMIGA

I

                    II

                    III

                    IV

                    V                

                    VI

                    VII

                    VII (bis)

                    VIII

                    IX

                    X

                    XI

                                     XII

EU SOU TREZENTOS...

(7-VI-1929)

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,

As sensações renascem de si mesmas sem repouso,

Oh espelhos, ôh! Pireneus! ôh caiçaras!

Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,

E os suspiros que dou são violinos alheios;

Eu piso a terra como quem descobre a furto

Nas esquinas, nos taxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,

Mas um dia afinal eu toparei comigo...

Tenhamos paciência, andorinhas curtas,

Só o esquecimento é que condensa,

E então minha alma servirá de abrigo.

DANÇAS

a Dona Baby Guilherme de Almeida

(1924)

I

Quem dirá que não vivo satisfeito! Eu danço!

Dança a poeira no vendaval.

Raios solares balançam na poeira.

Calor saltita pela praça

pressa

apertos

automóveis

bamboleios

Pinchos ariscos de gritos

Bondes sapateando nos trilhos...

A moral não é roupa diária!

Sou bom só nos domingos e dias-santos!

Só nas meias o dia-santo é quotidiano!

Vida

arame

crimes

quidam

cama e pança!

Viva a dança!

Dança viva!

Vivedouro de alegria!

Eu danço!

Mãos e pés, músculos, cérebro...

Muito de indústria me fiz careca,

Dei um salão aos meus pensamentos! Tudo gira,

Tudo vira,

Tudo salta,

Samba,

Valsa,

Canta,

Ri!

Quem foi que disse que não vivo satisfeito?

EU DANÇO!

II

Meu cigarro está aceso.

O fumo esguicha,

O fumo sobe,

O fumo sabe ao bem e ao mal...

O bem e o mal, que coisas sérias!

Riqueza é bem.

Tristeza é mal.

Desastres

sangue

tiros

doença

Dança!...

O elevador subiu aos céus, ao nono andar,

O elevador desce ao subsolo,

Termômetro das ambições.

O açúcar sobe.

O café sobe.

Os fazendeiros vêm do lar.

Eu danço!

Tudo é subir.

Tudo é descer.

Tudo é dançar!

O Esplanada grugrulha.

Todos os homens vão no cinema.

Lindas mulheres nos camarotes.

Leves mulheres a passar...

Não frequento cafés-concertos,

Mas tenho as minhas aventuras...

Desventurados os coiós!

A vida é farta.

O mundo é grande.

Tem muito canto onde esconder!

Subúrbios

casas

pensões

táxis...

Vejo sonâmbulos ao luar

Beijando moças estioladas.

Tolos! a poeira sobe no ar...

O fumo sobe e morre no ar...

Eu vivo no ar!

Dançarinar!...

III

Filha, tu sabes... que hei-de fazer!

Nós todos somos assim.

Eu sou assim.

Tu és assim.

Dançam os pronomes pessoais.

Nunca em minuetes! Nunca em furlanas!

EU

ELE

TU

NÓS

ELES

VÓS...

Não paro.

Não paras.

Sucedem quadrilhas...

Gatunos!

Assassinos!

Ciganos!

Judeus!

Quebras formidáveis!

Riquezas fetos de cinco meses

Já velhas como Matusalém.

Baixistas calvos, rotundos, glabros,

Trusts de cana, trusts de arroz,

Açambarcadores de feijão-virado...

A Bolsa revira.

Reviram-se as bolsas.

As letras entram.

Os oiros saem...

Corrida

tombos

vitórias

delírios

banquetes

orquestras...

Os homens dançam...

Danço também.

Nunca minuetes nem bacanais!

Somos farândolas?

Somos lanceiros?

Somos quadrilhas?

Que somos nós!?

Pronomes pessoais.

IV

14 horas.

Filha, tu vai dormir.

Eu te contemplo aborrecido.

Que fazes estreita na cama tão larga?

Por que te encolhes assim?

Teus cabelos suados se esperdiçam.

Tuas mãos aziagas tamborilam.

Teu corpo estreito treme vibra...

          

                   — Poeta, me deixe dormir!

Eu te contemplo aborrecido...

Devo esconder-te o meu sorriso?...

Já sei por que o sono não chega,

Filha, começas a dançar...

Teu corpo todo se enrodilha

estremece

sacode

bate

lata

seco

... heque! heque!...

quebra

queima

reina

dança

sangue

gosma...

Teus lábios dançam:

                                     — Por piedade!

Não é domingo nem dia-santo!

Filha, tu danças para dormir!

Tosses até que não podes mais!

Devo esconder-te o meu sorriso?...

V

Aquele quarto me sufoca,

Prefiro ar livre,

Não voltarei.

Ar livre, ar leve que dança, dança!

Dançam as rosas nos rosais!

São flores vermelhas

São botões perfeitos

São rosas abertas, gritos de prazer!

São Paulo é um rosal!

São Paulo é um jardim!

Morena, tem pena,

Tem pena de mim!

A rosa-riso dança nos teus lábios

vermelhos

mordidos...

Volúpias alegres...

O mundo não vê?

Nós nos separamos.

Nós nos ajuntamos.

O bonde passou,

O amigo passou...

O mundo não vê!

A vida é tão curta!

Quem tem certeza do amanhã!

Lourenço de Medicis?...

Florença delira,

Paris queima,

Viena dança,

Berlim ri...

E New York abençoa o jazz universal.

Negros de cartola

Turcos de casaca

Montecarlo e Caldas e Copacabana

Tudo é um caxambu!

EU DANÇO!

Dança do amor sem sentimento?

Dança das rosas nos rosais!...

VI

Parceiro, tu sabes a dança do ventre

Mas eu vou te ensinar dança milhor.

Olha: a Terra é uma bola.

A bola gira.

Gira o universo.

Os homens giram também.

Tudo é girar, tudo é rodar.

Sofres acaso de amor sem volta?

Porquê paraste no teu amor!

Choras que os outros não te compreendem?

Fala francês que te entenderão!

Morres, duvidas, pensas?... — Parceiro,

Tu só conheces a dança do ventre,

A dança do ombro é muito milhor!

VII

“Oh, como passas!”

“Bravo! enfim voltas!”

São inimigos,

São morfinómanos,

Virgens e honestos,

Crápulas vis.

Saúdo a todos,

Ninguém me estima,

Dançam meus ombros,

Eu sou feliz!

Eu sou feliz porque a Terra é uma bola.

A bola gira,

Gira o universo,

Giro também.

Sou Gira.

Sou Louco.

Sou Oco.

Sou homem!...

Sou tudo o que vocês quiserem,

Mas que sou eu?

Meu alfaiate tem mais fregueses.

Não há canalha sem virtude.

Não há virtuosos sem desonra.

Entro nos teatros lendo jornais.

Converso pouco e escuto muito.

Falo francês...

Leio em vernáculo Tristram Shandy.

conheço Freud e Dostoievsky.

Compro as revistas do Brasil.

E

Principalmente

Sei enramar meu ditirambo,

Sei guspir um madrigal!

Depois dou de ombros.

Meus ombros dançam...

Sou partidário da desombra universal!

VIII

Há terras insultas além muito longe..

Há bichos terríveis nas terras indultas.

Há pássaros lindos nos jequitibás...

O dia ora é claro, ora é escuro...

Zumbidos de abelhas fabricando mel.

Ora os bichos urram,

Ora as aves cantam,

Ora é a flor que abrolha,

Ora a árvore cai...

O céu se escurece. É a tormenta...

Dançam coriscos no céu.

Relâmpagos

trovões

um samba hediondo,

um candomblé...

As caiporas galopam nas ancas das antas...

Aranhas formigas sacis e Jaci...

O rio da Dúvida passa a dançar...

A vitória-régia oscila balouçante nas aguas indecisas...

Ha terras incultas além...

Mas quem que as visitou?

Ninguém.

A confusão é enorme!...

Filha, tu sabes...que rei-de fazer!

Tudo é quadrilha!

Me ponho a dançar!

IX

EU DANÇO!

Eu danço manso, muito manso,

Não canso e danço,

Danço e venço,

Manipanço...

Só não penso...

Quando nasci eu não pensava e era feliz...

Quando nasci eu já dançava,

Dançava a dança da criança,

Surupango da vingança...

Dança do berço:

Sim e Não...

Dança do berço:

Não e Sim...

A vida é assim...

E eu sou assim.

... ela dançava porque tossia...

Outros dançam de soluçar...

Eu danço manso a dança do ombro...

Eu danço... Não sei mais chorar!...

TEMPO DA MARIA

(1926)

A Dona Eugenia Álvaro Moreyra

I

MODA DO CORAJOSO

Maria dos meus pecados,

Maria, viola de amor...

Já sei que não tem propósito

Gostar de donas casadas,

Mas quem que pode com o peito!

Amar não é desrespeito,

Meu amor terá seu fim.

Maria há-de ter um fim.

Quem sofre sou eu, que importa

Pros outros meu sofrimento?

Já estou curando a ferida.

Se dando tempo pro tempo

Toda paixão é esquecida.

Maria será esquecida.

Que bonita que ela é!... Não

Me esqueço dela um momento!

Porém não dou cinco meses,

Acabarão as fraquezas

E a paixão será arquivada.

Maria será arquivada.

Por enquanto isso é impossível.

O meu corpo encasquetou

De não gostar sinão duma...

Pois, pra não fazer feiura,

Meu espirito sublima

O fogo devorador.

Faz da paixão uma prima,

Faz do desejo um bordão,

E encabulado ponteia

A malvadeza do amor.

Maria, viola de amor!...

II

AMAR SEM SER AMADO, ORA PINHÕES!

Esperemos neste lugar.

Não sou nenhum conde do papa,

Só mesmo de Anto serei conde...

Sou poeta da viação barata,

Mario, pague os duzentos réis...

Siga, chofer. Espero o bonde.

Cachorro. Trilhos nobres. Moças.

Moças, não. Mulheres perdidas

No oiro, distinga-se, sinão

Perde o sal a comparação

Com que saudei essas amigas:

— Grandes auroras promissoras!

Tenho jeito pra gigolô...

E, por falar de aurora, enfim

Me dá São Paulo uma tardinha

De que o poeta Gonçalves Dias

Si tivesse alguma saudade,

Tinha razão. Que nem rubi

De puro oriente, no ocidente

O Solão despenca do mármore

Dum céu elegante, na estica.

Esta folha no meu chapéu...

Em mim, talqual num tronco de árvore,

Trepa um ventinho piricica.

Me perdi pelas sensações.

Não sou eu, sou eus em farrancho,

E vem lavar minha retina,

Em maretas de poeira fina

Todas as coisas tamisando,

O Tamisa das ilusões.

Me dissolvo por essas aguas!

E na vista submarina,

Renovo o milagre cristão

Com a minha multiplicação:

Sou a festança desta vida!

Peixes! Torpedos... bondes... casas...

Cavam a terra no jardim.

É no meu peito. Como um ólio,

Me esparramo pela cidade,

E as coisas, nessa intimidade,

São um dilúvio de olhos, olhos

Meus, assuntados sobre mim.

Tudo se funde em minha vista.

Estou alegre. Coisa estranha,

Não sinto o bem, sorrio ao mal...

Será a inconsciência transcendental

Que enche a boca de Graça Aranha?

Todo Infinito! ôh farra! ôh Lapa!

Não sei não. Porém, ver um Zeus,

Conhecem? Zeus de casimira,

Meio suado, vou no universo

Buscando o meu fogo disperso

Que pelas coisas girogira,

Roubado pelos Prometeus.

As sacudidelas do bonde,

Na minha frente rósea chama

Crepita, ôh pescoço! Um ardor

Principiante, consolador,

Zeus (Zeus sou eu) gemendo chama:

— Fogo, onde estás, aonde? aonde?

É isso! Rapazes, encontrei

O fogaréu maravilhoso

Que foi, que é meu, que será sempre

Meu! Relumeia à minha frente,

E devora num instantinho

As minhas paus Táboas da Lei.

Moralidade, lei seca, vá-se

Embora! Vá por Seca e Meca!

Darei Seca, Meca e Baía

Por mais este amor, sim, mais um,

Porque enfim é amante de poeta

Toda e qualquer mulher que passe!

Êxtase! Desejo! Loucura!

Quasi dolorosa surpresa!

Espanto de não ser mais só!

E a gente imagina que é o pó

Que sufoca e, vai, com aspereza

Bota a culpa na Prefeitura.

Minha paixão de sopetão!

Já nem posso mais respirar!

Que pescoço! que braços! quê!...

Bom... olhemos a natureza.

O céu se encurva sobre o chão

Num gesto forte de abraçar.

Te amo!... Que bonita que ela é!...

Trago comigo o cheiro dela,

Só penso nela!... Infelizmente

O meu caso não tem futuro,

Ai, Maria do perfil duro,

Ai, Maria sempre presente!...

Que friúme em minha tristeza...

Rapazes! a minha alegria,

A minha alegria está presa

Num perfil duro de mulher!

Ela me olha tão fria, fria...

Ora! verifiquemos como

Rictus: “Merde! voilà l’hiver.”

Poeta, sossegue, ela é casada...

Pois sim. Pensemos noutra coisa.

No que será?... Negro de suéter,

Que engraçado!... mas... que tristeza!

Esta vida não vale nada!...

Vou cantar a Louvação do Éter!

Vaga hipótese sem perigo!

Hangar da nossa segurança!

Luz de Einstein et caterva! Prova

Dos nove da sabença humana!

Deus, que a cosmogonia nova

Nunca viu, mas conta contigo!

Obra-prima do nosso Amigo!

De alguma entocaiada parte

Aonde a ciência não entrou,

Me dás a honra de ser, e eu sou,

Por tuas artes, Malazarte,

Vaga hipótese sem perigo...

Tudo isto há-de passar, Maria,

Durma em sossego. O meu respeito

Sempre há-de respeitar você.

Eu não aguento mais meu peito!

Mas jamais não aceitaria

Arranjos como o de Musset!

Durma sem medo, sossegada.

Você não vai prá sala grande,

Tem sala à parte em meu harém.

Vista o pijama dos meus olhos,

E descanse sobre o meu sonho

Que nunca fez pra ninguém!

Eu velarei a corajosa

Dormindo sobre a dinamite...

Fumos... Assombrações... Não te

Largo mais, Iara do Tietê!...

Ao menos até que fareje

Alguma paixonite nova...

É o fim. Lá fora dormirá

Pauliceia. Paz. Quasi informe,

Ela dorme, dorme sorrindo,

Enquanto gemo o verso lindo

Com que as índias parecis dormem...

Uirô mococê cê-macá...

III

CANTIGA DO AI

Ai, eu padeço de penas de amor,

Meu peito está cheio de luz e de dor!

Ai, uma ingrata tão fria me olhou,

Que vou-me daqui sem saber pra onde vou!

Eu cheirei um dia um aroma de flor

E vai, fiquei doendo de penas de amor!

Foi minha ingrata que por mim passou!

Ai, gentes! eu parto! não sei pra onde vou!

Ai, malvada ingrata que escolhi bem!

Eu sofro e não posso queixar de ninguém!

Sofro mas me orgulho de meu sofrer,

É linda a malvada que fui escolher!

Tem a mansidão dos portos de mar

Mas porém é arisca que nem pomba-do-ar!

Ela é quieta e clara, ela é rosicler,

É a boca-da-noite virada mulher!

Ai, unhas de vidro para me encantar!

Ai, olhos riscados pra não me enxergar!

Ai, peito liso, boca de carmim!

Ingrata malvada que não pensa em mim!

Ai, pena tamanha que me quebrou!

Adeus! vou-me embora! não sei pra onde vou!

Lastimem o poeta que vai partir,

Moçada se amando no imenso Brasil!...

IV

LENDA DAS MULHERES DE PEITO CHATO

Macunaíma, Maria,

Viajando por essas terras

Com os dois manos, encontrou

Uma cunhã tão formosa

Que era um pedaço de dia

Na noite do mato virgem.

Macunaíma, Maria,

Gostou da moça bonita.

Porém ela era casada,

E jamais não procedia

Que nem as donas de agora,

Que vivem mais pelas ruas

Do que na casa em que moram;

Vivia só pro marido

E os filhos do seu amor,

Fiava, tecia o fio,

Pescava, e março chegado,

Mexendo o corpo gostoso,

Ela fazia a colheita

Do milho de beira-rio.

Que bonita que ela é!... Bom.

Macunaíma, Maria,

Não poude seguir, ficou.

Quê que havia de fazer!

Amar não é desrespeito,

Falou pra ela e ela se riu.

Então lhe subiu do peito

A escureza da paixão,

E o apaixonado cegou.

Pegou nela mas a moça

Possuía essa grande força

Que é a força de querer bem:

Forceja que mais forceja,

Até deu nele! Não doeu.

Macunaíma, Maria,

Largou da moça.

Ôh, meu Deus!

Como estava contrariado!

Pois um moço que ama então

Não tem direito de amar!

Tem, Maria, tem direito!

Te juro que tem direito!

Macunaíma fez bem!

O amor dele era tão nobre

Ver o do outro que casou.

Casar é uma circunstância

Que se dá, que não se dá,

Porém amar é a constância,

Porta num, se abanca, e o pobre

Tem que lhe matar a fome,

Dar cama pra ele dormir.

Macunaíma, Maria,

Era como eu brasileiro,

E em todas as moradias

Que se erguem no chão quentinho

Do nosso imenso Brasil,

Não tem uma que não tenha

Um quarto-de-hóspedes pronto!

Pobre do Macunaíma,

Não tem culpa de penar!

Foi brasileiro, amor veio,

Ele teve que hospedar!

        — Eu te amo, (que ele falava)

        Moça linda! Você tem

        Esse risco de urucum

        Na beira do olhar somente

        Pra não ver quem te quer bem!

        Olhos de jabuticaba!

Colinho de cujubim!...

Te adoro como se adora

Com doçura e com paixão!

Maria... Vamos embora!

(Que ele falava prá moça)

Eu quero você pra mim!

Bom. O coitado, Maria,

De tanta contrariedade,

Pôs reparo que é impossível

Se ser feliz neste mundo,

Em plena infelicidade...

Se vingou... Tinha ali perto

Dois cachos de bananeira.

Cortou deles...você sabe,

Os mangarás pendurados,

Que de tão arroxeados

Têm mesmo a cor da paixão.

Lá no Norte chamam isso         

De “filhotes da banana”,

E a bananeira dá fruta

Uma vez, não dá mais não...

Macunaíma, Maria,

Pegou na moça, arrancou

Os peitinhos emproados

Do colo de cujubim,

Pendurou no lugar deles

Os filhotes da paixão.

Por isso essa moça dura,

De quem nós todos nascemos,

Tem o colo que nem de homem,

De achatado que ficou.

E hoje as donas são assim...

Adianta a lenda que a moça

Ficou feia... Não sei não...

V

ECO E O DESCORAJADO

Neste lugar solitário

Onde nem canta o sem-fim,

Choro. E um eco me responde

Ao choro que choro em vão.

Eco, responda bem certo,

Meus amigos me amarão?...

E o eco me responde: — Sim.

Pois então, eco bondoso,

Você que sabe a razão

Porque deixando o tumulto

De Pauliceia, aqui vim:

Eco, responda bem certo,

Maria gosta de mim?...

E o eco me responde: — Não!

Antes morrer!... Eu me sinto

Tão vazio com este amor...

Não aguento mais meu peito!

Morrer! seja como for!

Eco, responda bem certo,

Morrerei hoje, amanhã?...

E o eco me responde: — Nhãam...

VI

LOUVAÇÃO DA TARDE

Tarde incomensurável, tarde vasta,

Filha de Sol já velho, filha doente

De quem despreza as normas da Eugenia,

Tarde vazia, dum rosado pálido,

Tarde tardonha e sobretudo tarde

Imóvel... quasi imóvel: é gostoso

Com o papagaio louro do ventinho

Poisado em minha mão, pelas ilhotas

Dos teus prefumes me perder, rolando

Sobre a desabitada rodovia.

Só tu me desagregas, tarde vasta,

Da minha trabalheira. Sigo livre,

Deslembrado da vida, lentamente,

Com o pé esquecido do acelerador.

E a maquininha me conduz, perdido

De mim, por entre cafezais coroados,

Enquanto meu olhar maquinalmente

Traduz a língua norteamericana

Dos rastos dos pneumáticos na poeira.

O doce respirar do forde se une

Aos gritos ponteagudos das graúnas,

Aplacando meu sangue e meu ofego.

São murmúrios severos, repetidos,

Que me organizam todo o ser vibrante

Num método sadio. Só no exilio

De teu silêncio, os ritmos maquinares

Sinto, metodizando, regulando

O meu corpo. E talvez meu pensamento...

Tarde, recreio de meu dia, é certo

Que só no teu parar se normaliza

A onda de todos os transbordamentos

Da minha vida inquieta e desregrada.

Só mesmo distanciado em ti, eu posso

Notar que tem razão-de-ser plausível

Nos trabalhos de ideal que vou semeando

Atabalhoadamente sobre a Terra.

Só nessa vastidão dos teus espaços,

Tudo o que gero e mando, e que parece

Tão sem destino e sem razão, se ajunta

Numa ordem verdadeira... Que nem gado,

Pelo estendal do jaraguá disperso,

Ressurge de tardinha e, enriquecido

Ao aboio sonoro dos campeiros,

Enriquece o criador com mil cabeças

No circo da mangueira rescendente...

Tarde macia, pra falar verdade:

Não te amo mais do que a manhã, mas amo

Tuas formas incertas e estas cores

Que te maquilham o carão sereno.

Não te prefiro ao dia em que me agito,

Porém contigo é que imagino e escrevo

O rodapé do meu sonhar, romance

Em que o Joaquim Bentinho dos desejos

Mente, mente, remente impávido essa

Mentirada gentil do que me falta.

Um desproposito de perfeições

Me cerca e, em grata sucessão de casos,

Vou com elas vivendo uma outra vida:

...Toda dor física azulou... Meu corpo,

Sem artritismos, faringites e outras

Específicas doenças paulistanas,

Tem saúde de ferro. Ás intempéries

Exponho as ondas rijas dos meus músculos,

Sem medo. Praquê medo!... Regulares,

Mais regulares do que os meus, os traços

Do meu rosto me fazem desejado

Mais facilmente que na realidade...

Já não falo por ela não, por essa

Em cujo perfil duro jaz perdida

A independência do meu reino de homem...

Que bonita que ela é!... Qual!... Nem por isso.

Não sonho sonhos vãos. A realidade,

Mais esportiva de vencer, me ensina

Esse jeito viril de ir afastando

Dos sonhos vesperais os impossíveis

Que fazem a quimera, e de que a vida

É nua, friorentamente nua.

Não a desejo não... Viva em sossego

Essa que sendo minha, nos traria

Uma vida de blefe, arrebatada

Por mais estragos que deslumbramentos.

Isto, em bom português, é amor platônico...

Quá! quá! Qual... Desejemos só conquistas!

Um poder de mulheres diferentes,

Meninas-de-pensão, costureirinhas,

Manicuras, artistas, datilógrafas,

Brancaranas e loiras sem escândalo,

Desperigadas... livro de aventuras

Dentro do qual secasse a imagem da outra,

Que nem folha de malva, que nem folha

De malva... da mais pura malva perfumada!...

Livre dos piuns das doenças amolantes,

Com dinheiro sobrando, organizava

As poucas viagens que desejo... Iria

Viajar todo esse Mato Grosso grosso,

Danado guardador da indiada feia,

E o Paraná verdinho... Ara, si acaso

Tivesse imaginado no que dava

A Isidora, não vê que ficaria

Na expectativa pança em que fiquei!

Revoltoso banzando em viagens tontas,

Ao menos o meu sul conheceria,

Pampas forraginosos do Rio Grande

E praias ondejantes do Iguaçu...

Tarde, com os cobres feitos com teu ouro,

Paguei subir pelo Amazonas... Mundos

Desbarrancando, chãos desbarrancados,

Aonde no quiriri do mato brabo

A terra em formação devora os homens...

Este refrão dos meus sentidos... Nada

Matutarei mais sem medida, ôh tarde,

Do que essa pátria tão despatriada!

Vibro! Vibro. Mas constatar sossega

A gente. Pronto, sosseguei. O forde

Recomeça tosando a rodovia.

“Nosso ranchinho assim tava bom”... Sonho...

Já sabe: desejando sempre... Um sítio,

Colonizado, sem necessidade

De japoneses nem de estefanóderis...

Que desse umas quatorze mil arrobas...

Já me bastava. Gordas invernadas

Pra novecentos caracus bem...

Tarde,

Careço de ir voltando, estou com fome.

Ir pra um quarto-de-banho hidroterápico

Que fosse a peça de honra deste rancho,

Aonde também, faço questão, tivesse

Dois ou três quarto-de-hospedes... Isto é,

De hóspedes não, de amigos... Esta casa

É sua... Entre... Se abanque... Mande tudo...

Não faça cerimonia... Olha, de-noite

Teremos Hindemith e Vila Lobos!

Que bom! possuir um aparelho de

Rádio-telefonia tão perfeito

Que pegasse New York e Buenos Aires!...

Tarde de meu sonhar, te quero bem!

Deixa que nesta louvação, se lembre

Essa condescendência puxapuxa

De teu sossego, essa condescendência

Tão afeiçoável ao desejo humano.

De-dia eu faço, mas de-tarde eu sonho.

Não és tu que me dás felicidade,

Que esta eu crio por mim, por mim somente,

Dirigindo sarado a concordância

Da vida que me dou com o meu destino.

Não marco passo não! Mas si não é

Com desejos sonhados que me faço

Feliz, o excesso de vitalidade

Do espirito é com eles que abre a válvula

Por onde escoa o inútil excessivo;

Pois afastando o céu de junto à Terra,

Tarde incomensurável, me permites,

Qual jaburus-moleques de passagem,

Lançar bem alto nos espaços essa

Mentirada gentil do que me falta.

Ciao, tarde. Estou chegando. É quasi noite.

Todo o céu já cinzou. Dependurada

Na rampa do terreiro a gaiolinha

Branca da máquina “São Paulo” inda arfa,

As tulhas de café desentulhando.

Pelo ar um lusco-fusco brusco trila,

Serelepeando na baixada fria.

Bem no alto do espigão, sobre o pau seco,

Ver um carancho, se empoleira a Lua,

— Condescendente amiga das metáforas...

VII

MARIA

Passa pura neste mundo,

Sendo chique e sendo rica,

Tem marido, quatro filhos,

Sabe rir, sabe gostar,

O nome dela é Maria.

Faz pouco telefonou

Falando que não iria

No chá da casa da amiga.

De vez em quando ela falta

As festas de sociedade,

Arranja dor-de-cabeça

E outras desculpas assim.

Agora está no jardim

Toda de branco vestida.

O Sol é um pintor das dúzias!

Diz-que pretende doirar

Aqueles cabelos curtos...

Não vê! só faz relumear

O preto daquele preto,

Que não tem nada mais preto

Que os cabelos de Maria!

Como é bonita! Seus olhos

São que nem jabuticabas,

E mesmo que o perfil dela

Seja um pouco duro, a gente

Assuntando aquele rosto

Que o rouge aviva mansinho,

A gente sente um sossego

De peito de passarinho.

A gente sente...meu Deus!

De deveras, um amor...

Que não é amor, é amorzinho

Feito de admiração.

Encanto de dia-santo!

Gosto que não dá desgosto!

Amor não! Veneração!

Si eu falasse que Maria

Traz um halo na cabeça,

Halo de santa moderna

Que maxixa e fala o inglês,

Muita gente se riria...

Pois se riam à vontade!

Maria traz na cabeça

O halo de Santa Maria!

É Shelley que está na moda,                 

E as mãos dela sobre a capa

Da edição de Oxford, orvalham

O couro negro macio

Com as gotas secas do brilho

Das unhas manicuradas.                      

Não quis mais ler porque livro

Não lhe dá a gostosura

Que tem vendo as travessuras

Dos filhinhos em redor.

Um fala que tem de ser

Chofer duma lincoln verde;

O outro inda não sabe, hesita               

Entre médico e aviador;

O caçula... lá se amola

Em saber o que será!

É pecurrucho, não pensa.

Tem a instintiva sabença

De andorinha taperá:

Aonde faz quente, ele vai.

Gatinhando emigra bambo

Do colo da mãi pro pai,

Do colo do pai prá cama.

Agora dorme na grama

Sobre o pleide branco e preto.

Troca a noite pelo dia...                         

Junto dele a ama cochila,

No branco e preto de estilo.

...Que a champanha dos jantares,

Tal-e-qual a cobra preta,

Vem de-noite e chupa o leite                 

Da sem seios da Maria...

E Maria, a outra filhinha,

Maria filha de Maria,

Parecida com Maria,

Essa emburrou porque o mano

Mais velho diz que não quer

Que ela beije a cara dele.

Há-de ser chofer da lincoln

E há-de viver toda a vida

Sem boquinha de mulher!

Maria se ri tranquila.

São anjos, não são? São anjos

Que não têm asas por baixo

Dos suéteres de listrão.

Já falam seu alemão

Com a governanta comprida,

Mas que são anjos? são anjos

Da boniteza da vida!

... Que anjos são estes

Que estão me arrodeando,

De-noite e de-dia...

Padre Nosso...

Ave, Maria!

POEMAS DA NEGRA

a Cicero Dias

(1929)

I

Não sei por que espirito antigo

Ficamos assim impossíveis...

A Lua chapeia os mangues

Donde sai um favor de silêncio

E de maré.

És uma sombra que apalpo

Que nem um cortejo de castas rainhas.

Meus olhos vadiam nas lágrimas.

Te vejo coberta de estrelas,

Coberta de estrelas,

Meu amor!

Tua calma agrava o silêncio dos mangues.

II

Não sei si estou vivo...

Estou morto.

Um vento morno que sou eu

Faz auras pernambucanas.

Rola rola sob as nuvens

O aroma das mangas.

Se escutam grilos,

Cricrido contínuo

Saindo dos vidros.

Eu me inundo de vossas riquezas!

Não sou mais eu!

Que indiferença enorme...

III

Você é tão suave,

Vossos lábios suaves

Vagam no meu rosto,

Fecham meu olhar.

Sol-posto.

E a escureza suave

Que vem de você,

Que se dissolve em mim.

Que sono...

Eu imaginava

Duros vossos lábios,

Mas você me ensina

A volta ao bem.

IV

Estou com medo...

Teu beijo é tão beijo,

Tua inocência é dura,

Feita de camélias.

Oh, meu amor,

Nós não somos iguais!

Tu me proíbes

Beber água após...

Eu volto à calma

E não te vejo mais.

V

Lá longe no sul,

Lá nos pés da Argentina,

Marulham temíveis os mares gelados,

Não posso fazer mesmo um gesto!

Tu me adivinhas, meu amor,

Porém não queres ser escrava!

Flores!

Apaixonadamente meus braços desgalham-se,

Flores!

Flores amarelas do pau-darco secular!

Eu me desgalho sobre teu corpo manso,

As flores estão caindo sobre teu corpo manso,

Te cobrirei de flores amarelas!

Apaixonadamente

Eu me defenderei!

VI

Quando

Minha mão se alastra

Em vosso grande corpo,

Você estremece um pouco.

É como o negrume da noite

Quando a estrela Vênus

Vence o véu da tarde

E brilha enfim.

Nossos corpos são finos,

São muito compridos...

Minha mão relumeia

Cada vez mais sobre você.

E nós partimos adorados

Nos turbilhões da estrela Vênus!...

VII

Não sei porque os tetéus gritam tanto esta noite...

Não serão talvez nem mesmo os tetéus.

Porém minha alma está tão cheia de delírios

Que faz um susto enorme dentro do meu ser.

Estás imóvel.

Es feito uma praia...

Talvez estejas dormindo, não sei.

Mas eu vibro cheinho de delírios,

Os tetéus gritam tanto em meus ouvidos,

Acorda! ergue ao menos o braço dos seios!

Apaga o grito dos tetéus!

VIII

Nega em teu ser primário a insistência das coisas,

Me livra do caminho.

Colho mancheias de meus olhares,

Meu pensamento assombra mundos novos,

E eu desejava estar contigo...

Ha vida por demais neste silêncio nosso!

Eu próprio exalo fluídos leves

Que condensam-se em torno...

Me sinto fatigantemente eterno!

Ah, meu amor,

Não é minha amplidão que me desencaminha,

Mas a virtuosidade!

IX

Na zona da mata o canavial novo

É um descanso verde que faz bem;

E uma suavidade poisar a vista

Na manteiga e no pelo dos ratos;

No mais matinal perfume francês

A gente domina uma dedicação;

Apertando os dedos no barro mole

Ele escorre e foge,

E o corpo estremece que é um prazer...

Mas você é grave sem comparação.

X

Ha o mutismo exaltado dos astros,

Um som redondo enorme que não para mais.

Os duros vulcões ensanguentam a noite,

A gente se esquece no jogo das brias,

A jurema perde as folhas derradeiras

Sobre Mestre Carlos que morreu.

Dir-se-ia que os ursos

Mexem na sombra do mato...

A escureza cai sobre abelhas perdidas.

Um potro galopa.

Ponteia uma viola

De sertão.

Nós estamos de pé,

Nós nos enlaçamos,

Somos tão puros,

Tão verdadeiros...

Oh, meu amor!

O mangue vai refletir os corpos enlaçados!

Nossas mãos já partem no jogo das bisas,

Nossos lábios se cristalizam em sal!

Nós não somos mais nós!

Nós estamos de-pé!

Nós nos amamos!

XI

Ai momentos de físico amor,

Ai reintrâncias de corpo...

Meus lábios são que nem destroços

Que o mar acalanta em sossego.

A luz do candieiro te aprova,

E... não sou eu, é a luz aninhada em teu corpo

Que ao som dos coqueiros do vento

Farfalha no ar os adjetivos.

XII

Lembrança boa,

Carrego comigo tua mão.

O calor exausto

Oprime estas ruas

Que nem a tua boca pesada.

As igrejas oscilam

Por cima dos homens de branco,

E as sombras despencam inúteis

Das botinas, passo a passo.

O que me esconde

E o momento suave

Com que as casas velhas

São róseas, morenas,

Na beira do rio.

Dir-se-ia que há madressilvas

No cais antigo...

Me sinto suavíssimo de madressilvas

Na beira do rio.

MARCO DA VIRAÇÃO

a José Bento Faria Ferras

ASPIRAÇÃO

 (9-IX-1924)

Doçura da pobreza assim...

Perder tudo o que é seu, até o egoísmo de ser seu,

Tão pobre que possa apenas concorrer prá multidão...

Dei tudo o que era meu, me gastei no meu ser,

Fiquei apenas com o que tem de toda a gente em mim...

Doçura da pobreza assim...

Nem me sinto mais só, dissolvido nos homens iguais!

Eu caminhei. Ao longo do caminho,

Ficava no chão orvalhado da aurora,

A marca emproada dos meus passos.

Depois o Sol subiu, o calor vibrou no ar

Em partículas de luz doirando e sopro quente.

O chão queimou-se e endureceu.

O sinal dos meus pés é invisível agora...

Mas sobra a Terra, a Terra carinhosamente muda,

E crescendo, penando, finando na Terra,

Os homens sempre iguais...

E me sinto maior, igualando-me aos homens iguais!...

LOUVAÇÃO MATINAL

                                  (Dezembro de 1925)

É de-manhã. Se sente a fadiga boa do sono.

Porém o corpo estica, chupando com os poros abertos,

Toda a luz, todo o frescor, todo o ímpeto da manhã.

Eu fiz da minha vida sempre um rasgo matinal...

Enquanto a água rija do banho me bate no corpo

Sinto a manhã se levantando viva no país...

Sinto movendo as coxas das coxilhas lá no sul;

Adiante os colonos monótonos erguem o mate,

E na sombra fraca do carijó a brisa trabalha,

Deitando sobre a congonha o bafo sedento dela;

Nos sítios de serra-acima o Solzão dependurado,

Polido e carnudo que nem fruta de jerimum,

Despenca dos itaquás sangrentos e se esbandalha

Nas roças de milho, nas roças de arroz e nos corgos,

Afugentando a sombra funda das canhadas;

Nas terras de milagre as águas prenhes dos garimpos

Choram em cada bateia a lagrima dum diamante;

Mais pra arriba o grito pontudo do Cabugi

Achata o murmurejo religioso das juremas;

E quando lá no Amazonas as águas vadias se listram

Com os círculos dos jacarés que afundam pra descansar,

Vida de trabalho brabo, vida de todo dia.

Os gaiolas sobem lentamente o rio,

E os passarões, de pernas esticadas,

Mergulham em reta nas nuvens morenas do céu...

Tudo o que acorda na manhã do dia natural

Segue uma linha bem traçada, linha já sabida,

Aonde assusta de sopetão o prisco do imprevisto,

Ver codorna que sem querer o camarada levantou.

Possuir consciência de si mesmo isso é a felicidade,

Isso é a glória de ser, fazendo o que será.

Que a vida de cada qual seja um projeto de casa!

Seco, o projeto agride o olho da gente no papel,

Porém quando a casa se agarra no lombo da terra,

Ela se amiga num átimo com tudo o que enxerga em volta,

Se adoça, perde a solidão que tinha no projeto,

Se relaciona com a existência, um homem vive nela,

E ela brilha da força do indivíduo e o glorifica.

Deflorar a virgindade boba do que tem de vir!....

Eu nunca andei metido em sortes nem feitiçarias,

Não posso contar como é a sala das cartomantes,

E minhas mãos só foram lidas pelos beijos das amadas,

Porém sou daqueles que sabem o próprio futuro,

E quando a arraiada começa, não solto a rédea do dia,

Não deixo que siga pro acaso, livre das minhas vontades.

O meu passado... Não sei. Nem nunca matuto nele.

Quem vê na noite? o que enxerga na escureza assombrada?

O que passou, passou; nossa vaidade é tão constante,

Os preconceitos e as condescendências são tão fáceis

Que o passado da gente não é mais

Que um sono bem comprido aonde um poder de sombras lentas

Mostram que a gente sonhou. Porém não sabe o que sonhou.

Não recapitular! Nunca rememorar!

Porém num rasgo matinal, em coragem perpétua

Ir continuando o que um dia a gente determinou!

Eu trago na vontade todo o futuro traçado!

Não turtuveio mais nem gesto meu para indeciso!

Passam por mim pampeiros de ambições e de conquistas,

Chove tortura, estrala o mal, serenateia a alegria,

Futuro está gravado em pedra e não se apaga mais!

Por isso é que o imprevisto é para mim mais imprevisto

Guardo na sensação o medo ágil da infância,

Eu sei me rir! eu sei me lastimar com ingenuidade!

Nombrada da terra em força nova na manhã!

Ao pé de mim São Paulo em rosa vibra cheirando vida

O Sol abrindo o paraquedas de ouro na amplidão

E peneirando o polem do calor sobre esse mundo..,

Rangem os caminhões. Padeiro entrega o pão. O leite

Ferve no fogo. A feira grita de cor. As notícias

Correm povo no galopão folgado dos jornais.

Autoônibus bufando. Tudo bufando, abrindo asa...

A cidade mexe de vida fresca, temporã.

É a manhã! é a manhã! a glória formidável da manhã!...

Eu fiz da minha vida sempre um rasgo, uma nombrada matinal...

Isso é a felicidade.

E a minha glória.

IMPROVISO DO RAPAZ MORTO

(1925)

Morto, suavemente ele repousa sobre as flores do caixão.

Tem momentos assim em que a gente vivendo

Esta vida de interesses e de lutas tão bravas,

Se cansa de colher desejos e preocupações.

Então para um instante, larga o murmúrio do corpo,

A cabeça perdida cessa de imaginar,

E o esquecimento suavemente vem.

Quem que então goze as rosas que o circundam?

A vista bonita que o automóvel corta?

O pensamento que o heroíza?...

O corpo é que nem véu largado sobre um móvel,

Um gesto que parou no meio do caminho,

Gesto que a gente esqueceu.

Morto, suavemente ele se esquece sobre as flores do caixão.

Não parece que dorme, nem digo que sonhe feliz, está morto.

Num momento da vida o espirito se esqueceu e parou.

De repente ele assustou com a bulha do choro em redor,

Sentiu talvez um desaponto muito grande

De ter largado a vida sendo forte e sendo moço,

Teve despeito e não se moveu mais.

E agora ele não se moverá mais.

Vai-te embora! vai-te embora, rapaz morto!

Oh, vai-te embora que não te conheço mais!

Não volta de-noite circular no meu destino

A luz da tua presença e o teu desejo de pensar!

Não volta oferecer-me a tua esperança corajosa,

Nem me pedir para os teus sonhos a conformação da Terra!

O universo muge de dor aos clarões dos incêndios,

As inquietudes cruzam-se no ar alarmadas,

E é enorme, insuportável minha paz!

Minhas lagrimas caem sobre ti e és como um Sol quebrado!

Que liberdade em teu esquecimento!

Que independência firme na tua morte!

Ôh, vai-te embora que não te conheço mais!

MOMENTO

(Novembro de 1925)

Ninguém ignora a inquietação do clima paulistano...

Pois tivemos boje uma arraiada fresca de neblina.

Depois do calorão duma noite maldita, sem sono,

Uma neblina leviana desprendeu das nuvens lisas

E pousou um momentinho sobre o corpo da cidade.

Ôh como era boa, e o carinho que teve pousando!

Não espantou, não bateu asa, não fez nenhuma bulha,

Veio, que nem beijo de minha mãi si estou enfezado

Vem mansinho, sem medo de mim, e poisa em minha testa.

Assim neblina fez, e o sopro dela acalmou as penas

Desta cidade histórica, desta cidade completa,

Cheia de passado e presente, berço nobre onde nasci.

Os beijos de minha mãi são tal-e-qual a nebrina madruga...

Meu pensamento é tal-e-qual São Paulo, é histórico e completo,

É presente e passado e dele nasce meu ser verdadeiro...

Vem, neblina, vem! Beija-me, sossega-me o meu pensamento!

PONTEANDO SOBRE O AMIGO RUIM

(Março de 1927)

Enfim a gente não é mais amigo um do outro não.

Você anda fácil, levianinho,

No labirinto das complicações.

Que subtileza! quanta graça dançarina!...

É certo que fica sempre

Bastante pó das asas de você

Nos galhos, nos espinhos,

Até nas flores desse mato...

Mesmo já pus reparo várias vezes

Nas asas de você estragadas pelas beiras...

Porém o essencial, o importante

E que apesar desse estrago inda você pode voar.

Eu não sou assim não.

Sou pesado, bastante estabanado,

Não tenho asa nem muita educação.

Careço de caminho largo, bem direito.

Si falta espaço, quebro tudo,

Me firo, me fatigo... Afinal caio.

No meio do mato eu paro, não posso mais caminhar.

Não posso mais.

Você... É possível que ainda me chame de amigo...

Mesmo perdendo um bocadinho de asa

Pousa no meu espinheiro e inda pode voar depois.

Mas eu, eu sofro é certo,

Porém já não sou mais amigo de você.

Você é amigo do mar, você é amigo do rio...

AS BODAS MONTEVIDEANAS

(15-1-1928)

Todas as coisas estarão boazinhas porque são indiferentes...

Vocês chegaram até o ponto da alegria...

Praquê matutar mais?

— “Pois que a gente se quer bem, tanto! que o corpo

Consegue ficar na espera tempo longo de conversa,

Não venham nos avisar que é Buenos Aires lá fora,

Que é Buenos Aires com toda a magnitude firme dela!

Não venham nos avisar que até o garçom olha pra nós...

Não venham não! E que ninguém não venha mais!

Diz, pássaro, diz outra vez como foi que você veio parar aqui!

Diz tudo, e diz principalmente outra vez, pássaro!

Repete, não faz mal, repete o caso, colhereira chiquita do Brasil!...

Será mesmo que a gente se escuta falando?

Diz, pássaro! Que a voz de você ameigue as coisas que muito já sei,

Enquanto os nossos olhos entram fundo no invisível de nós dois,

Praquê matutar mais!...”

— “Ah, flores duma outra idade e marchas nupciais, véus de noiva...

Amanhã cedo iremos a Montevidéu casar...

Tem mais comodidade lá na Lei, até divórcio nos reserva,

E nós iremos a Montevidéu só pra casar...

Praquê matutar mais, viva o Uruguai!

Nem bem chegando lá vou no cabeleireiro concertar as sobrancelhas, stou medonha,

E você bota a gravata listrada que dei pra você.

Nos casaremos alinhados.

Flores de laranjeira não, bobagem! mas... que tal umas laranjas?

Umas laranjas bem geladas, bem acidas pro jantar... Vai ser bom!”

Ah, flores duma outra idade e marchas nupciais, véus de noiva,

Até vocês podem cair sobre eles, os noivos aceitarão tudo!

A terra enorme em todos os seus gritos que ranja na marcha nupcial!

A burundanga dos ventos de poeira, pampeiros, noroestes, sulões,

Cheirosos, se tecendo em véu de noiva sobre o pássaro,

E a florada meridional das estrelas despencando em flor sobre eles!...

Aceitam tudo porque já não é mais hora de enxergar.

E que o quarto de hotel, Montevidéu, a Terra, o mundo,

Sejam pequenos ou grandes, qual! de nada saberão mais!

Canta, som complacente de minha voz, a louvação nupcial com entusiasmo!

Canta por ti, canta apostando!

Canta, que o canto nupcial é torcida também, torce pra eles!

A equipe nova seguiu andarilha,

Torce pra que eles cheguem juntos no destino!

Torce, ri contente, grita que embora não ouçam-te o grito,

O som irá dinamizar o ardor dos jogadores!

Dinamiza! Dá força, dá ritmo, porque o jogo bem torcido

É comovente, mais movimentado e bem de esporte leal!

Abaixo os profissionais!

Canta num som mui alto, casta e desnecessária!

Desabaladamente, feito boba, canta e recanta muito,

Eles estão no jogo e já não podem cantar mais!

Torce, torce e grita boba-alegre comovida sem sentido!

Para eles vai ser a vitória ou a derrota no jogo, despeito ou completamento,

Porém pra ti, voz minha, resta o canto de esporte vital, acima dos resultados!

Canta alegre na torcida, voz de poeta!

Canta sem ter razão pra estar alegre!

Dois seres sem temor, sem matutar se uniram, dois a mais!

Não tens razão especial não pra estar alegre, voz de poeta?

Pois canta assim mesmo ignorando a razão que te leva,

Mas canta sempre! Canta empolgada à violência da Terra,

A violência dos seres que através das civilizações aflitivas,

Inda enxergam o Sol na abertura dos dias

E bailam sobre os vulcões!

A ADIVINHA

(Janeiro de 1928)

Que é que é?

Ele possui uma alma e um corpo feito o nosso

E vai percorrendo o caminho de todos.

Foi piá, quis bem a mãi, quis bem a casa dele,

E afinal uma feita quis bem a cidade e foi homem.

Então gostou da intrepidez das ruas normativas

E cantou o orgulho do homem no indivíduo.

Pôs a boca no mundo, imaginou que era um,

E era apenas mais um o cantor gastador.

Pôs a boca no mundo e cantou todo o dia,

Porém a voz se fatigou talqualmente os vulcões

E não ficou mais que o instrumento.

Ser o bojo vazio do violão...

A noite igualada separa a vida do universo,

É o momento em que as coisas todas são resumos

E pelas esquinas dos bairros se engrandecem os violões.

Que é que é?...

É um instrumento de música oscilando num soco de pedra.

De pedra sangrenta do Itacolumi.

Careceu que pela entrada da cidade lerdamente,

Ao aboio alto dos homens e dos animais,

Viessem os séculos montando bois castrados,

Pra que o violão fosse afinal violão.

O vento afina e desafina as cordas,

A chuva tantana na táboa do pinho,

Remexe a dança com lambança,

Cada sujeito que passa tira um ponteio só dele...

Tudo ponteios, tudo sons sem resultado,

Reboam ressoam na caixa de todos,

Sem cantos, sem palavras... A voz do homem se acabou.

Sobre o mar cinzento relumeia céu de estrela,

Sobre a Terra girada ao impulso dos passos populares,

Que nem chagas as cidades, que nem chagas...

São berevas. Não! são pensamentos! maravilhas orgulhosas!

São berevas... Taperas e palácios...

E a febre... As águas mornas do Paraíba...

As águas novas do Missuri-Mississipi...

O Reno com vilegiaturas e castelos medievais...

Vamos pra Caxambu! pra Karlsbad!

Vamos ver Mussolini! Vamos ver os escravos!

Vamos ver si Leningrado não mudou de nome, gente!

Que é que é! É o violão. Um ponteio sem voz

Trepadeirando até agarrar lá em riba

Nos espeques firmes das estreias do céu.

Nos ares as luzes torcendo cruzando,

Sempre dança, tudo maxixe impossível,

As luzes fazem traçados em emboladas de luz.

São anúncios. Todas as luzes são anúncios.

Todas as ideias e paixões é tudo anúncio!

Tudo só anúncio, só anúncio no mundo!

E o pinho reboa ressoa se estrala em só anúncio!

Uma bruta duma dança rag remexe a Terra?

Um pensamento fundo rasga um lapo na caixa do pinho?

Porém que é que é! Será choro? Será seresta de festa?

Será que é pensamento mesmo? será piá? Serapião? Será violão!

Que é que é balanceado no soco de pedra

O instrumento saracoteando anúncios de harmonias?...

Os críticos analisarão todas as harmonias,

Os pensamentos conceberão sistemas e tonalidades,

Será possível tirar uma regra e a regra viverá setenta-e-um anos...

Mas que é que é o violão que existe e existirá

Além da regra e a regra não diz nada e o violão vê na regra só anúncio!...

Eh, cordas, cordas, cordas metálicas feitas de século,

Se quebrem logo! Cordas, o violão não pode mais saber o que são cordas,

Não sabe porque soa tanto e a caixa de ressonância

Vibra com tudo, mesmo com o frescor sentimental da Luna sertaneja...

Eh, cordas do violão, porque não viram homem outra vez?

Deixem que ele cante a geometria praceana,

E o Carnaval, e a Flor de Amor, e Mamãi com Papai!

Deixem que ele possa achar de novo as palavras arcaicas!

Mas o violão é mais imenso que as palavras

E não as compreende mais.

Que significa até a palavra “Deus”?

...alguma coisa mais desejada...

Mais bem puxada, mais bem dançada,

Além do mundo e do pensamento...

Catira leve e jongo lento,

Pra que não basta noite de dança...

Êxtase de interminável festança,

Que a insuficiência do amor não abre

Na flor humana duma palavra...

Ele ressoa no bojo do violão! no bordão! gentes, bem no bordão!

Mas o violão não sabe não! ninguém não sabe!

E tudo um sem sins!... Platariviux! gentes, platariviux!...

Que é que é! Que é que é!...

E a tristeza iluminada, vasta, instrumental,

Acida inquietação, maravilhando, turtuveando,

Recai sobre a adivinha.

IMPROVISO DO MAL DA AMÉRICA

(Fevereiro de 1928)

Grito imperioso de brancura em mim...

Eh coisas de minha terra, passados e formas de agora,

Eh ritmos de sincopa e cheiros lentos de sertão,

Varando contracorrente o mato impenetrável do meu ser...

Não me completam mais que um balango de tango,

Que uma reza de indiano no templo de pedra,

Que a façanha do chim comunista guerreando,

Que prantina de piá, encastoado de neve, filho de lapão.

São ecos. Mesmos ecos com a mesma insistência filtrada

Que ritmos de sincopa e cheiro do mato meu.

Me sinto branco, fatalizadamente um ser de mundos que nunca vi.

Campeio na vida a jacumã que mude a direção destas igaras fatigadas

E faça tudo ir indo de rodada mansamente

Ao mesmo rolar de rio das aspirações e das pesquisas...

Não acho nada, quasi nada, e meus ouvidos vão escutar amorosos

Outras vozes de outras falas de outras raças, mais formação, mais forçura.

Me sinto branco na curiosidade imperiosa de ser.

Lá fora o corpo de São Paulo escorre vida ao guampaço dos arranhacéus,

E dança na ambição compacta de dilúvios de penetras.

Vão chegando italianos didáticos e nobres;

Vai chegando a falação barbuda de Unamuno

Emigrada pro quarto-de-hóspedes acolhedor da Sulamérica;

Bateladas de húngaros, búlgaros, russos se despejam na cidade...

Trazem vodka no sapiquá de veludo,

Detestam caninha, detestam mandioca e pimenta,

Não dançam maxixe, nem dançam catira, nem sabem amar suspirado.

E de-noite monótonos reunidos na mansarda, bancando conspiração,

As mulheres fumam feito chaminés sozinhas,

Os homens destilam vícios aldeões na catinga;

E como sempre entre eles tem sempre um que manda sempre em todos,

Tudo calou de sopetão, e no ar amulegado da noite que sua...

— Coro? Onde se viu agora coro a quatro vozes, minha gente! —

São coros, coros ucranianos batidos ou místicos, Sehnsucht d’além-mar!

Home... Sweet home... Que sejam felizes aqui!

Mas eu não posso não me sentir negro nem vermelho!

De certo que essas cores também tecem minha roupa arlequinal,

Mas eu não me sinto negro, mas eu não me sinto vermelho,

Me sinto só branco, relumeando caridade e acolhimento,

Purificado na revolta contra os brancos, as pátrias, as guerras, as posses, as preguiças e ignorâncias!

Me sinto só branco agora, sem ar neste ar-livre da América!

Me sinto só branco, só branco em minha alma crivada de raças!

MANHÃ

(18-111-1928)

O jardim estava em rosa ao pé do Sol

E o ventinho de mato que viera do Jaraguá,

Deixando por tudo uma presença de água,

Banzava gozado na manhã praceana.

Tudo limpo que nem toada de flauta.

A gente si quisesse beijava o chão sem formiga,

A boca roçava mesmo na paisagem de cristal.

Um silêncio nortista, muito claro!

As sombras se agarravam no folhedo das árvores

Talqualmente preguiças pesadas.

O Sol sentava nos bancos tomando banho-de-luz.

Tinha um sossego tão antigo no jardim,

Uma fresca tão de mão lavada com limão,

Era tão marupiara e descansante

Que desejei... Mulher não desejei não, desejei...

Si eu tivesse a meu lado ali passeando

Suponhamos Lenine, Carlos Prestes, Gandhi, um desses!...

Na doçura da manhã quasi acabada

Eu lhes falava cordealmente: — Se abanquem um bocadinho.

E havia de contar pra eles os nomes dos nossos peixes.

Ou descrevia Ouro Preto, a entrada de Vitoria, Marajó,

Coisa assim, que pusesse um disfarce de festa

No pensamento dessas tempestades de homens.

MOMENTO

(16-IX-1928)

Deve haver aqui perto uma roseira florindo,

Não sei... sinto por mim uma harmonia,

Um pouco da imparcialidade que a fadiga traz consigo.

Olho pra minhas mãos. E uma ternura perigosa

Me faz passar a boca sobre elas, roçando,

(De certo é alguma rosa...)

Numa ternura que não é mais perigosa não, é piedade paciente.

As rosas... Os milhões de rosas paulistanas...

Já tanto que enxerguei minhas mãos trabalhando,

E tapearem por brinquedo umas costas de amigo,

Se entregarem pra inimigo, erguerem dinheiro do chão...

Uma feita meus dedos poisaram nuns lábios,

Nesse momento eu quis ser cego!

Ela não quis beijar a ponta dos meus dedos,

Beijou as mãos apaixonadamente, em submissão...

Ela beijou o pó das minhas mãos...

O mesmo pó que já desce na rosa nem bem ela se abre.

Deve haver aqui perto uma roseira florindo...

Que harmonia por mim... Que parecença com jardim...

O meu corpo está são... Minha alma foi-se embora...

E me deixou.

PELA NOITE DE BABULHOS ESPAÇADOS...

(Junho de 1929)

Pela noite de barulhos espaçados,

Neste silêncio que me livra do momento

E acentua a fraqueza do meu ser fatigadíssimo,

Eu me aproximo de mim mesmo

No espanto ignaro com que a gente se chega prá morte.

Meu espirito ringe cruzado por dores sem nexo,

Numa dor unida, tão violentamente física,

Que me sinto feito um joelho que dobrasse.

A luz excessiva do estúdio desmancha a carícia do objeto,

Um frio de vento vem que me pisa talqual um contacto,

Tudo me choca, me fere, uma angustia me leva,

Estou vivendo ideias que por si já são destinos

E não escolho mais minhas visões.

A aparência é de calma, eu sei. Dir-se-ia que as nações vivem em paz...

Ha um sono exausto de repouso em tudo,

E uma cega esperança, cantando benditos, esmola

Em favor dos homens algum bem que não virá...

Me sinto joelho. Ha um arrependimento vasto em mim.

Eu digo que os séculos todos

Se atrasaram propositalmente no caminho,

Me esperaram, e puxo-os agora como boi fatal.

Me sinto culpado de milhões de séculos desumanos...

Milhões de séculos desumanos me fizeram, fizeram-te, irmão;

E pela noite de barulhos espaçados

Não quero escutar o conselho que desce dos arranhacéus do norte!

Eu sei que teremos um tempo de horror mais fecundo

Que as rapsódias da força e do dinheiro!

Será que nem uma arrebentação...

Os postos isolados das cidades

Se responderão em alarmas raivacentos,

Saídos das casas iguais e da incúria dos donos da vida.

Havemos de ver muitos manos passando a fronteira,

Haverá pão grátis muito duvidoso,

As salas de improviso se encherão de discussões apaixonadas,

Mortas no dia seguinte em desastres que não sei quais.

Será tempo de esforço caudaloso,

Será humano e será também terribilíssimo...

Só há-de haver mulheres que não serão mais nossas mulheres.

Os piás hão-de estar sem confiança catalogados na fila,

E os homens morrerão violentamente

Antes que chegue o tempo da velhice.

POEMAS DA AMIGA

a Jorge de Lima

(1929-1930)

I

A tarde se deitava nos meus olhos

E a fuga da hora me entregava abril,

Um sabor familiar de até-logo criava

Um ar, e, não sei porque, te percebi.

Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.

Estavas longes, doce amiga; e só vi no perfil da cidade

O arcanjo forte do aranhacéu cor-de-rosa

Mexendo asas azuis dentro da tarde.

II

Si acaso a gente se beijasse uma vez só...

Ontem você estava tão linda

Que o meu corpo chegou.

Sei que era um riacho e duas horas de sede,

Me debrucei, não bebi.

Mas estou até agora desse jeito,

Olhando quatro ou cinco borboletas amarelas,

Dessas comuns, brinca brincando no ar.

Sinto um rumor...

III

Agora é abril, ôh minha doce amiga,

Te reclinaste sobre mim, como a verdade,

Fui virar, fundeei o rosto no teu corpo.

Nos dominamos pondo tudo no lugar.

O céu voltou a ser por sobre a terra,

As laranjeiras ergueram-se todas de-pé

E nelas fizemos cantar um primeiro sabiá.

Mas a paisagem logo foi-se embora

Batendo a porta, escandalizadíssima.

IV

Ôh trágico fulgor das incompatibilidades humanas!

Que tara divina pesa em nosso corpo vitorioso

Não permitindo que jamais a plenitude satisfeita

Descanse em nosso lar como alguém que chegou!...

Não tenho esperança mais nas vossas revelações!

Vós me destes o amor, me destes a amizade,

E na experiência de minha doce amiga me destes

Mais do que imaginei... Mas a volta foi cruel.

Eu sofro. Êh, liberdade, essência perigosa...

Espelhos, Pireneus, caiçaras e todos os desesperos,

Vinde a mim que outros agora aboiam pra eu marchar!

Tudo é suavíssimo na flora dos milagres...

Um pensamento se dissolve em mel e à porta

Do meu coração há sempre um mendigo moço esmolando...

Eu saí da aventura! Eu fugi da ventura!

Nós não estamos na cidade nem no mato.

Nós rolamos na ânsia dos fabulosos aeroplanos,

E vos garanto que agora não acabaremos mais!

V

Contam que lá nos fundos do Grão-Chaco

Mora o morubixaba chiriguano Caiuari,

Nas terras dele nenhum branco não entrou.

São planos férteis que passam a noite dormindo

Na beira dum lagoão, calmo de garças.

Enorme gado pasta ali, o milho plumeja nos cerros,

E os homens são todos bons lá onde o branco não entrou.

Nós iremos parar nesses desertos...

Viajando através de fadiga e miséria,

Os dias ferozes nós descansaremos abraçados,

Mas pelas noites suaves nossos passos nos levarão até lá.

E ao vivermos nas terras do morubixaba Caiuari,

Tudo será em comum, trabucaremos como os outros e por todos,

Não haverá hora marcada pra comer nem pra dormir,

Passaremos as noites em dança, e na véspera das grandes bebedeiras

Nos pintaremos ricamente a riscos de urucum e picumã.

Pouco a pouco olvidaremos as palavras de roubo, de insulto e mentira,

A terminologia das nações e da política,

E dos nossos pensamentos afinal desertarão as profecias.

Oh, doce amiga, é certo que seriamos felizes

Na ausência deste calamitoso Brasil!...

Fecho os olhos... É pra não ver os gestos contagiosos...

Ando em verdades que deviam já não ser do tempo mais...

A nossa gente vai muito sofrer e tenho o coração inquieto.

VI

Nós íamos calados pela rua

E o calor dos rosais nos salientava tanto

Que um desejo de exemplo me inspirava,

E você me aceitou por entre os santos.

Erguer do chão um toco de cigarro,

Fuma-lo sem saber por que boca passou,

A terra me erriçava a língua e uma saliva seca

Poisando nos meus lábios molhados renasceu.

Todos os boitatás queimavam minha boca

Mas quando recomecei a olhar, ôh minha doce amiga,

Os operários passavam-se todos para o meu lado,

Todos com flores roubadas na abertura da camisa...

O Sol no poente, de novo aurorai e nativo,

Fazia em caminho contrário um dia novo;

E as noites ficaram luminosamente diurnas,

E os dias massacrados se esconderam no covão duma noite sem fim.

VII

Ê hora. Mas é tal em mim o vértice do dia

Nesta sombra... Porque serás mais que os rapazes,

E bem mais, muito mais do que as amantes?...

Sombra!... Sombra de cajazeira perfumada,

Saudando a minha inquietação com a tua delícia!

Eu poderia dormir no teu regaço, ôh mana...

Abri-vos, rincões do sossego,

Não cuideis que é minha amante, é minha irmã!

Porém é muito cedo ainda, e no portão do Paraiso

O anjo das cidades vigia com a espada de fogo na mão.

                           VII (bis)

É uma pena, doce amiga,

Tudo o que pensas em mim.

Eu sei, porque acho uma pena

Também o que penso em ti.

Mesmo quando conversamos,

E uma pena, outras conversas

De olhos e de pensamentos.

Andam na sala, dispersas.

VIII

Gosto de estar a teu lado,

Sem brilho.

Tua presença é uma carne de peixe,

De resistência mansa e um branco

Ecoando azuis profundos.

Eu tenho liberdade em ti.

Anoiteço feito um bairro,

Sem brilho algum

Estamos no interior duma asa

Que fechou.

IX

Vossos olhos são um mate costumeiro.

Vossas mãos são conselhos que é indiferente seguir.

Gosto da vossa boca donde saem as palavras isoladas

Que jamais não ouvi.

Porém o que eu adoro sobretudo é vosso corpo

Que desnorteia a vida e poupa as restrições.

Oh, doce amiga! vossos castos espelhos de aurora

Despejam sobre mim paisagens e paisagens

Em que passeio feito um rei sem povo,

Cortejado por noruegas, caponetes e caminhos,

— Os caminhos incompetentes que jamais não me conduzirão a alguém!...

X

Os rios, ôh doce amiga, estes rios

Cheios de vistas, povoados de ingazeiras e morretes,

Pelo Capibaribe irás ter ao Recife,

Pelo Tietê a São Paulo, no Potengi a Natal.

Pelo Tejo a Lisboa e pelo Sena a Paris...

Os rios, ôh minha doce amiga, na beira dos rios

E a terra de povoação em que as cidades se agacham

E de-noite, que nem feras de pelo brilhante, vão beber...

Pensa um bocado comigo na vasta briga da Terra,

E nas cidades que nem feras bebendo na praia dos rios!

Insiste ao pé de mim neste meu pensamento!

E os nossos corações, livres do orgulho,

Mais humilhados em cidadania,

Irão beber também junto das feras.

XI

A febre tem um vigor suave de tristeza,

E os símbolos da tarde comparecem entre nós;

Não é preciso nem perdoar nem esquecer os crimes

Pra que venha este bem de sossegar na pouca luz.

É a nossa intimidade. Um fogo arte, esquentando

Um rumor de exterior bem brando, muito brando,

E dá clarões duma consciência intermitente.

A poesia nasce.

Tu sentes que o meu fluido se aninha em teu colo e te beija na face,

E, por camaradagem, me olhas ironicamente.

Mas estamos sem mesmo a insistência dos nossos brinquedos.

E o vigor suave da febre

Não intimida os nossos corações tranquilos.

XII

Minha cabeça poisa nos seus joelhos,

Vem o entre-sono, e é milagroso!

A vida se conserva em mim doada pelos seus joelhos,

E sou duma inimaginável liberdade!

Ôh espíritos do ar que os homens adivinham,

Dizei-me o que se evola do meu corpo!

Essa outra coisa vaporosa e brancacenta

Que não é fumo, nem echarpe,

Não tem forma porém não se desmancha

E baila no ar...

Todos os adeuses, todos os espelhos e girandolas

Voltijam no espaço que se enche e esvazia

Num tremor avido a esfolhar-se em pregas sem dureza...

Abre a rosa oculta em sinais,

Manhãs em vésperas de ser,

Pireneus sem desejo, enquanto à espreita,

Os objetos em torno me invejam

Buscando me prender na miséria da imagem...

Oh espíritos do ar, dizei-me a rosa incomparável

Que se evola reagindo em baile no ar!

Baile! Baile de mim no entre-sono!

Não é uma alma, não é um espirito do ar, não é nada!

E a outra coisa que baila, que baila, que baila,

Livre de mim! gratuita enfim! fútil de eternidade!

Ôh, brinca, brinca, minha melodia!

Sabiá da mata que canta a mei-dia!

Olha o coco, Sinhá!