Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Baladilhas, de Coelho Neto


Edição de base:

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

Dístico

Mater

Os cegos

O aroma das flores

Saldunes

Marcha fúnebre

Místico

Feira de corações

Tântalo

Saudade

O filtro de Fausto

Canção triste

Na thebaida

Salmo de amor

Sonho de Eva

Soror dolorida

Lacrimatório

O raio de sol

Holocausto

Origem das camélias

Ruminante

Os rebanhos ethereos

O espelho

Infante

Ritornello

O mentiroso

O paraíso

Ce sont icy- mes fantasies, par lesguelles je ne

tasche point de donner à cogaoistre les choses,

mais moy...

MONTAIGNE.

Na mocidade os olhos, límpidos e curiosos, vão a distâncias consideráveis; na velhice, turvos e cansados, fitam-se, de perto, em minúcias.

Este livro, se eu lhe corrigisse as “visões”, perderia a qualidade única que possui que é, justamente, a que me parece erro por estar muito longe, fora do alcance da minha luz crepuscular: a mocidade.

O que dele fiz foi espaná-lo um pouco da poeira do Tempo, nada mais.

1920. C.N.

DÍSTICO

O espírito, como o tempo, tem as suas estações.

Com este livro findei a primavera da minha alma.

1824. C.N.

MATER

Ei-las de volta enchendo o ar fino e o campo convalescente com os seus ríspidos trissos, com os ruflos das suas pequeninas asas pretas. Ei-las de volta, em bandos: umas pousam no beiral dos telheiros, bicando as penas, trêfegas, saracoteantes; seguem outras para o lado fresco das ilhas onde os vinhais enfolham-se.

Ei-las de volta, as andorinhas, que foram invernar em um país sem bruma, tépido e recendente.

Abrem-se todas as gelosias; querem todos vê-las e recebem-nas sorrindo.

Vergônteas nascem nos esqueletos das árvores e florinhas tenras abrem corolas tímidas.

Límpido azul substitui a nivosa tristura do céu. É a primavera que chega. Começam a aparecer viçosos ramos. De todas as ruínas, de todas as cavernas abrem voo, chilreando, passarinhos novos.

É a vida que reaparece.

Pelas horas mudas da manhanzinha tilitam campainhas de rebanhos. Já se escuta na planície a voz dos que pastoream.

Primavera!

E Lavínia, a tecedeira, chora vendo reflorir o campo, vendo amainar-se o oceano, sentindo, ao aspirar à brisa impregnada, o aroma suavíssimo das primeiras flores. Chora e seus olhos não se apartam do mar, onde os barcos se aprestam e onde começa a lufa-lufa da partida acompanhada do canto monótono dos que vão tomar rumo. É que vai fito à Islândia gelada, nessa viagem breve, o pequeno Arnulfo, seu filho, o único, o último amor do seu coração.

Lá fora, no silêncio da meia noite, o vento geme fúnebre; mais longe o mar rebelde da costa espadana e retumba. De tempo em tempo ríspida rajada de vento marinho, soprando de feição a terra, repete o tom elegíaco de uma cantiga de marujo. Lavínia, encostada ao umbral da porta da cabana, contempla silenciosa a torre pálida da igreja por onde escorre, em alva, a luz fria da lua.

Vai nascer o sol. Não tarda a claridade! Mais um momento e as velas abertas nas vergas levarão, mar em fora, o brigue e o pequeno Arnulfo. E Lavínia volta-se, com toda a alma nos olhos tristes, para contemplar o filho que dorme a sua última noite de paz no leito em que vagiu. Volta-se e a sua benção sagrada unge carinhosamente o sono do pequeno.

Um sino vibra de quando em quando.

Matinas.

Não há mais tempo. É tarde! Faz-se mister acordá-lo. O vento, bom marujo, levanta-se para tomar o seu posto junto ao pano das velas.

É tarde!

Mais uma lágrima! O coração vai alijando a agonia para não naufragar. Mas que luz apressada! Como o dia vem rápido quando traz sofrimento!

— De pé! De pé, meu filho! São horas de partir. De pé, pequeno Arnulfo! Arnulfo levanta-se sobressaltado. Ligeiro, veste o gabão, põe à cabeça o sueste, aos ombros uma capa, a mais, para os frios de lá, lança um olhar de adeus a toda a casa e... Oh! Suprema aflição da despedida. Pobre Lavínia! Que combate terrível para não chorar. De joelhos, os dois, diante da imagem da Virgem, rezam uma oração contrita. Depois um longo abraço mudo, a benção, mais uma benção e... A caminho, pequeno Arnulfo!

Vão seguindo por estreitíssimos vales de ervas perfumadas, a luz indecisa das estrelas que morrem. Balem ovelhas errantes. Mais tristeza, maior melancolia.

E o mar que, de longe, chama!

Na praia, antes de tomar o remo que lhe reservam na chalupa, Arnulfo, de pé, fala tremulamente:

— Mãe, pede por mim! Pede por mim ao patrono dos que andam nas águas para que me ilumine nessa terra sem luz para onde vou partir e de onde tantos não voltaram mais. O bom Deus ouve mais. Mãe, pede-lhe por mim.

Lavínia contempla carinhosamente o filho e, beijando-o pela derradeira vez, murmura-lhe ao ouvido:

— Parte! Luz não te faltará. Fique eu em trevas, ainda assim... Luz não te faltará. Vai! Confia em Deus e em tua mãe. Segue-te o meu olhar. Minha alma velará por ti. Parte! Adeus!

E a chalupa desaparece.

À tarde, à hora em que as pombas voltam, o mar extenso e vazio, sem um brigue mais, chora na praia lamentosamente.

Silêncio extremo! Extrema soledade!

Por toda a parte o luto níveo do gelo. Bancos alvíssimos deslizam silenciosos pelas águas grossas.

Bambeiam, oscilam, tremem obeliscos hiálicos, rolam depois estrupidantes e vão, de cá e de lá, mar abaixo, flutuando sem bulha. Estiram-se pelas lajes claras as sombras emaranhadas dos mastros dos navios presos. Graniza a carambina, a briga uiva.

Noite branca.

Mudos, os pescadores aprumam as linhas, debruçados à amurada. De quando em quando um canta.

Mas começa a obumbrar-se o céu cardado — é a borrasca polar, a gemebunda tormenta glacial que chega.

Treva instantânea!

As procelárias gritam na desolada friúra e, de espaço a espaço, estala formidanda a asa colossal de um albatroz que passa.

Luzes! Toda a maruja corre a buscar lâmpadas. E o brigue esbarra aqui e ali e vai de bloco em bloco, levado pelas avalanches.

Insubmissa a tempestade ártica assobia e ruge, rompendo os panos; rangem os mastros e o brigue, levado pelos gelos, corre, galga os vagalhões por onde embatem e rolam triturando-se os brutos penhascos de gelo.

Uma voz brada o nome do pequeno engajado:

— Arnulfo! O vento leva o brado; outro de novo:

— Arnulfo! Abre-se uma escotilha e, como subitânea aurora, toda a gente de bordo atônita, interdita, suspende a manobra e contempla, extática, o jovem marinheiro que aparece, aureolado por um disco de luz, tão claro e tão forte que, num momento, tudo se dessombra — vê-se bem à distância como se o sol do polo tivesse surgido da tormenta, rutilo.

O brigue, com esse santelmo fulgentíssimo, ganha rumo, faz-se ao mar safando-se do cárcere transido e, fugindo pela espessa e negra vaga, acende o oceano frio como um astro aquático ou aurora boreal errante.

Arnulfo, quando os companheiros o interrogam acerca da estranha claridade que o rodeia diz, de olhos baixos: É talvez minha mãe.

Nada mais diz.

E, durante toda a estação da pesca, a luz de Arnulfo substitui o sol.

Inverno! Volta dos islandeses.

Mar pátrio. As áreas brancas de longe acenam aos marinheiros. Pássaros da terra vêm pousar nos mastros. Vêm-se já canoas conhecidas. Do cesto de gávea o gajeiro grita o nome doce de uma ilha e depois, num assomo: Terra!

É a aldeia que surge.

E o canto começa a bordo. Correm todos acima. Os mais ansiosos trepam pelas enxárcias, alongam a vista, fazendo festas ao horizonte verde do país natal. Outros, para não perderem um só momento a vista da terra, mudam as roupas em pleno mar, bruscamente cantando.

Rápida range e rola a corrente; a ancora mergulha. Fundeiam. Às chalupas!

Remam, remam a vigoroso impulso e atracam.

Quase que não põem o pé na praia, porque os esperam braços saudosos.

Pobre Arnulfo! Que triste nova o espera!

O primeiro que o vê corre a dar-lhe a notícia infausta.

— Minha mãe! Brada o pequeno por não vê-la entre as outras mais. Minha mãe!

O mensageiro hesita, mas de piedade, vendo lágrimas nos olhos do pequeno, fala:

— Tua mãe, na hora em que teu brigue passou além do mar que a nossa vista alcança, perdeu a luz dos olhos.

Arnulfo, alucinado, deita a correr ao longo da praia, caminho da choupana, sem um olhar, ao menos, para a aldeia que não vê desde a primavera.

Ao dobrar a ponta de rocha, além da qual demora o lar materno, lágrimas saltam-lhe dos olhos ao vê de pé, cabeça nua, os braços abertos em cruz, os olhos parados, sua mãe, Lavínia, cega, sorrindo inefavelmente, a balbuciar... O quê? Seu nome, com certeza.

Aperta nos braços a velha pescadora e... Que beijos ardentes e que sincero pranto! Mas, em recordação trágica, que a efusão do amor fizera desaparecer por instantes, Arnulfo, tomando as mãos trêmulas da cega, beija-as balbuciando:

— Mãe... Conta-me, conta-me como cegaste, mãe! Como cegaste?

Ela sorri e, erguendo o braço, diz, mostrando uma vela distante:

— A vela do teu brigue...

Depois, apontando o ocidente do céu: Uma, duas, três estrelas. Ali, a torre da ermida... Tudo! Vejo de novo tudo! Vejo-te, meu filho! Que mais me falta vê? E, num beijo longo, conclui: Cegueira... Cegueira sim... E, como querias que meus olhos tivessem luz se ela te acompanhava a toda a parte? Se ela estava tão longe de mim como tu, filho meu! Já te não lembras da promessa que fiz quando daqui partiste? Cumpri-a. O meu olhar seguiu-te. Se tivesses morrido nunca mais meus olhos se abririam. Voltas, trazes de novo a luz, vejo de novo!

Fica! Não tornes mais à Islândia. Fica comigo para que me não aconteça de novo andar perdida em sombras, entre broncos rochedos e espinhais malfazejos, a olhar eternamente essa triste invernia do polo para poder velar por ti, Arnulfo, meu pequeno Arnulfo.

Deixa-me a luz. Não partas mais porque... Bem triste me foi a primavera passada. A cegueira é um triste inverno da alma.

Não partas! Não partas mais, que a cegueira das mães é dolorosa.

OS CEGOS

Quando o sol descia a alumiar os degraus de pedra da capela do Bom Jesus, já ali encontrava os três ceguinhos.

Caísse embora a neve em flocos, fossem as manhãs de bruma e de geada, à hora do costume, encostando os cajados à soleira, tiritando e sorrindo, tomavam eles os seus lugares à espera dos caridosos.

Esse encontro dos três datava de longos anos. Viviam na mais íntima e leal camaradagem, sem despeito, sem rivalidades. Se um recebia a esmola, mal ouviam tinir a moeda, como se todos participassem do benefício, agradeciam ao mesmo tempo os três.

Reconheciam-se, à distância, pelo bater dos paus de arrimo. Assim, se um chegava e, chamando, não obtinha resposta, sorria e sentava-se, esperando pacientemente a chegada dos outros e, mal ouvia o toc, toc, no ladrilho do adro, dizia logo o nome do que vinha, e para rir, ajuntava: “Que os missais tinham saído três vezes dos altares”.

Se um deixava de aparecer, enchiam-se os dois de cuidados e de apreensões e, nesse dia, se os não vissem os fiéis, decerto não levariam para comprar um pão, porque, entristecidos e saudosos, mal sabiam pedir, tão enlevados estavam em orações a Deus para que velasse pelo companheiro, pobre cego! Sem luz e sem misericórdia, que andava às tontas pelo mundo indiferente.

Mas se distinguiam no rumor da turba o toc, toc do retardatário, era de vê-se o que faziam: agitavam-se, riam alto e quem não os conhecesse tê-los-ia por loucos gesticulando tão desordenadamente para o espaço vazio, chamando, pronunciando frases de carinho. E, à medida que o toc, toc aproximava-se, subia o delírio e os gestos tomavam proporções fantásticas e desvairadas. Mas bastava voltar os olhos para ver-se que os cegos tinham razão de estar contentes. Esse, que vinha lento e cauto pela escadaria acima, cego também, era o que faltava ao grupo fiel da porta da capela. Mas quem não soubesse do mistério desconfiaria da lealdade dos pobrezinhos. Como podiam ter percebido o companheiro?! Não, tal não se dera, apenas tinham ouvido o toc, toc, do cajado que batia no mármore do adro. Esse rumor, que nada significava para os indiferentes, era um sinal de entendimento entre eles.

Nessa manhã de abril, suave, azul e tão serena que se ouvia o canto dos canários nas amendoeiras próximas, muito aconchegados, aquecidos pelo mesmo raio de sol, falavam os três, recapitulando a vida que passara.

— Julião, disse um deles, o de cabelos mais brancos e de feições mais novas, conta-me a história da tua cegueira. Vieste de tua mãe sem luz nos olhos ou cegaste na vida?

— A história da minha cegueira! Suspirou um dos cegos, moreno, de sólida constituição, barba farta e negra derramada pelo peito largo e forte.

— A história da minha cegueira! Theobaldo. Nem sei dizer, em verdade, como foi. Eu exercia na minha aldeia o ofício de carreiro. Uma noite, estando toda a gente do casal na eira, a ouvir cantar um moço montanhês, saí também. O luar alumiava a noite. Theobaldo, o dos cabelos brancos, suspirou baixinho e Julião, que o não ouvira, continuou, levantando os olhos mortos para o céu:

— As estrelas resplandeciam e eram tantas nessa noite que até me pareceu que os astros do Senhor tinham também percebido a voz suave do moço montanhês e vinham ali assim, no alto, debruçados sobre as nossas cabeças, ouvi-la comovidamente.

O canto era triste e triste também o moço que o entoava. Para ouvi-lo melhor e sem que ninguém viesse distrair-me, arredei-me, deitando-me de costas sobre uma meda de palha. E ouvi, ouvi com os olhos postos no céu. A pouco e pouco a voz foi esmorecendo e acabando. No céu também, a pouco e pouco, as estrelas iam sumindo. De repente, nada mais ouvi. E o céu estava negro.

Pensei, então, que as estrelas se haviam recolhido. Deixei-me estar deitado. Tarde, quando, picado pelo frio da noite, me levantei da palha em que me havia estirado, abri os olhos: céu negro... Treva... Treva e nada mais. Levaram-me para o casal.

Lembro-me apenas de ter, depois de muito tempo de aflição, perguntado a alguém que me seguia:

“Que noite longa é esta!? Não virá o dia?”

E responderam-me compassivamente:

— É dia, Julião, mas tu não podes vê-lo.

Julião bateu com o cajado na pedra e, deixando pender a cabeça, murmurou:

— E nunca mais vi!

Houve um silêncio triste; por fim Theobaldo falou ao outro companheiro:

— E tu, Claudio, como cegaste tu?

— No mar, disse o nomeado, passando a mão nervosa pelos olhos extintos. Ceguei no mar. Era menino, gajeiro em uma galera. Certa noite, estando de vigia, sob a mais terrível das procelas, vi abrir-se no céu uma grande aurora cor de sangue. O mar atroou com estampido formidável. Em baixo, a gente que andava em faina, levantou alarido terrífico e pelos gritos de misericórdia! Percebi que acontecera alguma desgraça irreparável à nossa galera. Fora ferida por Deus — um raio traspassara-a. Tentei descer do cesto de gávea, onde me alojara, mas não via nada diante dos olhos senão a aurora horrível, cor de sangue, que se acendera no céu. Desceram-me e, desse dia até hoje vejo, devo dizer assim, vejo constantemente a luz purpureia que incendiou o oceano e de onde saiu a chispa que atravessou a galera, depois de ter roubado a meus olhos a luz que os alumiava.

E Claudio, sem mais dizer, abriu muito os olhos, pestanejando, como se quisesse apanhar uma visão que lhe fugira. Por fim sorriu dizendo:

— Olhem... A aurora cor de sangue. Estou vendo-a, estou vendo-a.

Theobaldo, o dos cabelos brancos, falou por último:

— É a minha vez.

— É a tua vez, disseram os dois melancolicamente; e Theobaldo prosseguiu:

— Fui moço de herdade, e, uma ou outra vez, quando o pastor adoecia, pastor substituto. Na montanha, aonde levava as ovelhas, vivia uma pastora. Olivana era o seu nome. Não vos sei dizer, amigos meus, não vos sei dizer que viram meus olhos nos olhos dessa moça silvestre, que nunca mais puderam passar sem vê-la. O nosso amor, longe de decrescer, crescia: era como o sol que, quanto mais sobe, mais abrasa. Mas um dia, (floriam então os espinheiros) Olivana chamou-me esmorecidamente — seus lábios desmaiavam, seu rosto empalidecia e os olhos, os olhos doces que eram os fanais dos meus, iam perdendo o brilho. Falou-me, procurando aproximar-me do seu peito, para que eu lhe ouvisse as pancadas finais do coração. Beijou-me e, nesse beijo, que foi o seu adeus, expirou. E seus olhos caíram no ocaso de Sempre. Donde vem a lágrima?

— Do coração, disse Claudio.

— Foi então o coração que me apagou a luz dos olhos com a abundância de lágrimas com que os inundou. Foi tão copioso o pranto da saudade que, longos dias, longos meses, meus olhos estilaram e, tanto que, quando o coração estancou, não houve mais luz que os aclarasse.

— Para mim existe apenas a última visão — é o que ainda vejo, disse Julião: — a noite de luar e as estrelas do Senhor resplandecendo no céu.

— Eu, disse Claudio, vejo, como tu, a última visão: a aurora cor de sangue e o mar iluminado.

E Theobaldo, tendo ainda nos olhos cegos lágrimas para chorar, disse chorando:

— E eu vejo em minha alma, vejo constante mente os olhos de Olivana. E, muito sentido, suspirou: Antes nunca os tivesse visto.

E Julião afirmou com amargura.

— São mais felizes os cegos de nascimento. Não têm saudades do céu que nunca viram.

— Não têm saudades do mar, ajuntou Claudio.

E Theobaldo, comovidamente, disse:

— É bem mais triste dizer: eu vi teus olhos e não vê-los mais, do que dizer: quem dera vê-los!

E os dois outros lastimosamente:

— É bem mais triste! Disseram.

O AROMA DAS FLORES

Se eu disser que a pequenina história que vos ofereço me foi contada num jardim por uma camélia branca direis, sem hesitar, que minto que faço apenas fábulas e contos.

Entretanto... É tão fácil pôr à prova o que afirmo!

Saí uma noite, noite de luar — porque as flores só falam quando há lua — inclinai-vos sobre a primeira camélia que encontrardes e, sem que outras ouçam, dirigi à flor esta pergunta:

“Clara flor, se te não custa, conta-me por que, sendo assim tão formosa, não tens aroma como as outras flores?”

E a camélia vos dirá, incrédula leitora: “A minha primeira irmã, a primeira camélia, não era, como eu sou, inodora e pálida. Tinha leve rosado nas pétalas e o seu perfume vencia o das outras flores: ela apenas entre mil, fossem todas essas mil violetas e rosas”.

Infelizmente era a pobre levantina e o Levante é também o berço das mulheres lânguidas.

Uma noite, estava minha irmã, a primeira camélia, desabotoando para receber a visita da lua, quando ouviu o lamento sentido de uma triste moça, que se lastimava do abandono em que a deixara o noivo.

A mísera soluçava tanto que minha irmã, comovida, dirigiu-lhe a palavra:

— Que mal te aflige o coração, formosa?

E a moça, chorando, disse:

“Flor cândida, balsamina flor, sou a mais infeliz entre as mulheres. Amo! Amo perdidamente um cavaleiro nômade. Ele é formoso e valente. Seu braço é tão forte brandindo o alfanje largo quanto é carinhoso quando toma pela cinta qualquer rapariga. Eu sei da causa do seu desprezo, sei por que o infiel evita-me!”.

A outra que ele beija e abraça nesta hora tem mais haveres do que eu tenho esperanças e só em perfumes a traidora esgota todas as manhãs uma pesada bolsa de sequins.

Eu, pobre moça do campo, como hei de vencer a minha rival formosa? Como comprar perfumes? Como descobrir essências?

Nunca será meu! Oh! Nunca! Por mais que eu lhe ofereça a minha adolescência e a virgindade da minha boca, nunca tocada pelo beijo.

E desatou a chorar.

Minha irmã, pobre louca! Enternecida, chamou para junto da sua corola a moça delicada.

Ordenou-lhe que descobrisse o colo e nas duas colinas morenas pôs dois pequenos botões, coloriu-lhe com a sua cor as faces desmaiadas e, despindo-se do seu perfume, ungiu a moça com ele.

E disse-lhe:

— Vai! Conquista o cavaleiro amado. Goza com ele a noite da primícia e, pela manhã, antes que o sol desponte, volta a trazer-me o aroma, a cor e os meus botões vermelhos.

E a moça partiu.

Partiu e nunca mais voltou. Nunca mais! E como voltar se perdera o aroma que lhe emprestara minha irmã, a primeira camélia? Como voltar com os pequeninos botões fanados, a cor do rosto esmaecida e sem aroma, o delicioso aroma que levara?

Nunca mais voltou! Mas o aroma, o aroma de minha irmã, a primeira camélia, encontra-se, ainda hoje, não em nós, pobres flores! Mas nos colos virgens e espalhado pela garganta, pela nuca, pelos seios das moças donzelas.

É esse aroma que estonteia, que enerva, que alucina, perfume da carne pura, essência da castidade, roubado às camélias, roubado à minha irmã pela moça do campo.

Eis por que nós outras não temos cor e as nossas pétalas são pálidas. Eis por que não temos aroma e as nossas corolas são áridas. Furtaram o nosso dote, o nosso dote levou-o a moça levantina.”

Isto, justamente como está exposto, ouvi eu e vós, incrédula leitora, ouvireis igualmente, se consultardes uma camélia, em noite de luar, porque as flores só falam quando a luz esplende.

SALDUNES

Sobre o Arrés, o híspido e nemoroso monte, abrigam-se os gauleses de Vercingetórix, rechaçados pelas legiões de César.

Inverno. Noite álgida e muda. Águas tolhidas e petrificadas fulgem e a selva branca, vestida de flocos, cintila à claridade cirial da lua e freme ao sopro dos ventos.

Vindorix e Alanik, os dois saldunes, guardam o sono de Albrege, a fugitiva. Gauleses de Vannes, gauleses de Karnak, erram pelos roçados. Druidas, ovates, virgens e pastores espalham pelas coladas a lamúria da Gália conquistada. Bardos foragidos fazem ressoar as lôbregas cavernas com os acordes das grandes harpas;

De quando em quando, na quietude tétrica da sombra, bufos de ursos esfomeados agitam as folhas hiálicas e fuzilam nas trevas, como lampiros, as pupilas fosforescentes dos lobos carniceiros.

É triste o murmurinho da carambina que instila; parece que a noite chora na folhagem e o sussurro das árvores é como um soluço doloroso.

Gênios da pátria, espíritos alpestres, lamentam a calamidade da guerra. Campos de trigo louro, vinhas verdes e pampinosas, figueirais sumarentos, eidos em flor, tudo as lâminas dos carros de combate ceifaram e destruíram.

Lívida, sorrateiramente, a lua espia através da nevasca, espia e some-se embrulhando-se nas nuvens, a tremer de frio.

Albrege dorme... E sonha. Descerram-se-lhe os lábios em sorriso.

Alanik, diz um dos saldunes, as pálpebras de Albrege são como as nuvens quando escondem astros. Faz tanto frio! Se ela descerrasse as pálpebras meu coração teria onde aquecer-se. Faz tanto frio na montanha.

— Amas Albrege, Vindorix?

—Tanto que meu coração trasborda e o amor sobe a meus olhos em ternura e a meus lábios em beijos.

Alanik suspira e baixa os olhos molhados.

— Sofres? Que tens? Indaga o companheiro.

— Saldunes, liga-nos o elo perpétuo da amizade jurada. Ei de morrer quando morreres.

 — Um só túmulo guardará os nossos corpos.

— O gume das espadas não nos separa.

— Nem os ferros das lanças.

— Entretanto... Os olhos de Albrege, os olhos doces de Albrege, já nos separaram, irmão. O que não fariam armas, fizeram as pupilas meigas.

— Amas Albrege, Alanik?

— Se pudesses interrogar minha alma, ouvirias, irmão, o que meus lábios calam.

— Pelo valente Ritha-Gaur, és um desleal irmão!

Travam do par e entreolham-se os saldunes.

— Sossega o teu ardor, irmão Vindorix. Não nos devemos bater. Somos portadores de uma mensagem que deve salvar a pátria. O sangue que circula em nossas veias não é nosso: pertence a toda a Gália. Guarda o teu ânimo para o dia da vingança.

E Vindorix vai despertar a formosa Albrege:

— Toma o teu manto, Albrege. Não tarda a manhã. É tempo de partires.

— Pois que...! Exclama a pobrezinha trêmula, queres que me aparte de ti, Vindorix?

— Somos escravos de um juramento feito sobre o sagrado visco. Por Teutates, o deus dos viajantes, que te há de levar à gruta de Talyessin, o druida, nunca te esquecerei, Albrege! Teus olhos incendiaram nossas almas, é preciso que a treva desça sobre nós para que meditemos. Vai. Albrege vai a descer pela vereda do monte e Vindorix diz ao companheiro:

— Vou deixá-la no caminho certo. Não tardo, irmão.

Albrege vai descendo; nada vê ante os olhos marejados de lágrimas. Aqui e ali brancuras de ossarias. Luzem blocos de neve, os galhos cheios de pingentes brancos movem-se sinistramente; de longe em longe o troar retumbante de avalanches que se despenham. Súbito um urso aparece hirsuto e negro. A fugitiva treme, ergue os piedosos olhos para o céu e cai, sem um gemido, sob as pesadas patas da alimária. Mas por um lado surge Vindorix e por outro lado Alanik irrompe, ambos armados do malag e do par.

— Her! Her! Pelo amor!

— Her! Her! Pelo amor!

A fera tomba e rola pelo precipício.

— Vindorix!

— Alanik!

Vindorix franze o sobre olho, brande o sabre de cobre e Alanik apara a primeira cutilada no forte escudo embraçado a tempo.

— Her! Her! Pelo amor, Vindorix!

— Her! Her! Pelo amor, Alanik!

Mas o sabre de Alanik tem mais guine, é mais rápido e mais lesto. Vindorix cahe golfando sangue.

— Vindorix, meu irmão! Clama Alanik, ajoelhando-se ao lado do cadáver.

Vindorix já não ouve.

— Quando o astro sagrado da Gália aparecer no céu eu irei encontrar o meu irmão que viaja. Cubramos seu corpo para que as feras o não profanem.

E Albrege e Alanik cavam a sepultura que deve resguardar o morto amado.

Surge a lua. A montanha esplende, alegra-se o folhedo. Alanik, junto da sepultura, abre a túnica no peito e fala:

— Albrege, vai dizer a Talyessin, o druida, que nos deixaste no cume da montanha mortos, mas que no vale do Arrés há quinhentos gauleses intrépidos e fortes que juram, por Jesus, morte aos romanos.

— Eu repetirei as tuas palavras a Talyessin.

Brande a arma de guerra e, com os olhos voltados para o céu, a mão firme, Alanik crava no peito o malag terrível.

—Teutates, chama por Alanik. Se queres encarregá-lo de algum recado para os que te foram caros, apressa-te, formosa.

— Dirás a Vindorix que em breve estarei com ele para continuarmos no Além o nosso amor jurado. E mais lhe dirás ainda: Que debalde procuraste meus olhos, que debalde procuraste meus lábios.

— O ferro é menos doloroso do que as tuas palavras, Albrege. Eu direi a Vindorix que me deixaste morrer.

MARCHA FÚNEBRE

Jamais o encontrareis no campo, sol de ouro dos formosos dias!

Jamais refletireis seu rosto, águas frescas dos córregos tranquilos!

Vão-no levando por entre as virides culturas no mesmo carro rural em que costumava trazer as colheitas do outono. Vão-no levando docemente, gravemente, os mesmos bois que ele tangia, e com que bucólicos cantares! Quando partia pela madrugada e regressava ao cair da noite. Vão-no levando à cova.

Morreu cantando — nem tempo teve de exclamar: Jesus! Disse quem o viu cair de bruços sobre um monte de palhas, no campo. Disse-o um velho, encanecido em andares e trabalhos: em moço pastor rixoso e agora na velhice meigo tocador de sanfonina e poeta rústico.

Deixa um lar fechado e um coração vazio. O lar, além! Uma cabana no fundo triste do vale, à sombra de castanheiros e o coração vem-no acompanhando com essa rapariga que segue o carro dizendo de quando em quando, desolada e chorosa:

“Jamais o encontrareis no campo, sol de ouro dos formosos dias! Jamais refletireis seu rosto, águas frescas dos córregos tranquilos”.

O préstito caminha. Lá vai pelo meio do campo cheiroso, ao passo tardigrado dos bois que um rapazola guia receoso, porque os velhos animais, acostumados ao canto do finado e, desconhecendo o carreiro novo, olham de esguelha e mugem, sempre que o pequeno lhes crava no toutiço a ponta da aguilhada.

Adiante do carro vão os rafeiros, saltando e ganindo, contentes do passeio vesperal pelos silenciosos trilhos, à hora calma, sossegada e doce da névoa que prenuncia a noite.

E o morto, dentro de um caixão feito de tábuas novas, cortadas nesse mesmo dia, vai coberto de flores e sem véu no rosto, como se os seus quisessem que toda a cercania o visse e lhe dissesse o derradeiro adeus.

Vai seguindo a marcha o scaldo do cantão.

 É o poeta divino, reclamado nas horas de agonia, porque a sua thiorba suaviza as dores e abranda e amortece os sofrimentos da alma.

Quando aparece na aldeia, correm todos a ouvi-lo, porque só ele conhece os romances sentimentais das rosas e as elegias dos silfos namorados e, quando fala da pátria, a veneração de todo o finlandês, é com tal sentimento que todos lhe fazem cerco, e aplaudindo o seu canto, choram de enternecimento.

Vai seguindo a marcha e, para minorar a mágoa da sentida noiva, improvisa à thiorba a bailada dos mortos:

“Noite de inverno, noite de frio. O vento gélido retalha. Mães desoladas, mães sentidas que tendes filhos enterrados, pedi a Deus que os acalente. Faz tanto frio, cai tanta neve!”.

Se ao abrigo do lar faz tanto frio, se junto ao fogo os dentes batem, como não devem estar sofrendo os pobrezinhos!

Mães extremosas, mães desveladas, pedi a Deus que os acalente.

Para aquecer os pequeninos, para alegrá-los nos seus túmulos basta que os abençoes. A benção redime as almas. A benção é a misericórdia das mães”.

A thiorba calou-se um momento e no silêncio tranquilo, a não ser o rechino monótono do carro, nada mais se ouvia — a marcha ia lenta e do céu, quase todo estrelado, baixavam suavemente os primeiros raios do luar sereno.

Triste, de novo, o scaldo entoou:

“Noivas, para que na terra tenham descanso os corpos estremecidos, noivas sentimentais, fidelíssimas amantes, visitai-os de vez em quando para que eles, no jazigo sereno, sintam o rumor dos vossos passos e ouçam, com alvoroto, a música das vossas palavras. Guardai os juramentos e para os seus pobres túmulos, em vez das flores que desabotoam na terra, levai as vossas lágrimas saudosas, desfolhai os vossos corações para que eles sintam que ainda lhes pertenceis como no tempo em que trocáveis com eles as palavras de amor entre os rosais mal abertos”.

Novo silêncio do scaldo, por fim, em exaltação inspirada, alçando os olhos tristes ao céu, disse dolentemente o poeta rústico:

“Bem felizes os que podem chorar, bem felizes os que têm mortos, bem felizes os que têm túmulos para cobrir de flores. Ah! Os tristes, os tristes como eu que viram desaparecer a pouco e pouco todos os sonhos da alma e que foram traídos por todos os amores, os que não têm mais sonhos, os que não têm mais ilusões, aos quais nem é dado visitar sepulcros, esses são mais dignos de pena do que vós, noiva sentida, que ides cobrir de flores o túmulo de vosso amor. Dizei como poderei enflorar o túmulo que comigo trago cheio de amores mortos, cheio de ilusões extintas, meu coração, meu pobre coração...? Dizei, dizei, como poderei cobrir de flores esse túmulo misterioso?

Sim, sois mais feliz do que eu, noiva sentida, sois muito mais feliz.”

MÍSTICO

Outono. Tempo de safra.

Manhã de amenas e saudosas líricas, cheia de vago encanto, de suave, doce claridade. Irisamento fantástico de luzes, crispações metálicas de córregos — grande orgia no azul, alegre bacanal de entontecer na terra. Tudo sorria na frescura matinal da natureza.

Na florescência ubérrima das terras, entre os trigos, afogadas na copiosa sagração do sol, passavam cabecinhas de ceifeiras. Foices curvas reluziam como pequenas luas.

Campinos corriam pela planície: pampilho ao ombro, rindo e cantando entre a manada luzidia dos reforçados touros. E, ao longe, engrossando a égloga dos rebanhos, os rafeiros ladravam.

Cantavam: cantilenas do campo, antigas, cheias ainda da pureza mística dos primeiros coros; e, mais longe, no fundo do horizonte claro, o perfil dos moinhos, velejando.

Nas barrancas, ovelhas em grupo, como nas telas, à guarda do zagalejo, enterravam na erva tenra e molhada os focinhos brancos.

Em todos os olhares bons dos camponeses lia-se a ventura, a paz serena dos velhos das tradições seus mosaicos.

Alguns, às portas das casas, de cangirão em punho, falavam do vinho novo — como na Bíblia, os lavradores de Chanaan, à tarde, de volta dos vinhais.

O cura, pelo meio do campo, com o breviário entre os dedos, todo entregue ao bom Deus, ia, caminho em fora, dizendo baixo, com toda a unção, versículos piedosos.

Sorria para o campônio, para a ceifeira, para o rapazito da herdade, que voltava da turma, vergando ao peso de um braçal de trigo. E os melros, empoleirados nas ramas, irrompiam em assuada irônica de gritos.

O bom velho ia, talvez, para assistir à colheita do trigo para os pães de inverno — pães para as ceias opíparas da casa, pães para as hóstias eucarísticas da missa.

Longe, no recosto da colina, descansavam carros com os varais em terra, os fueiros espetados, hirtos, cobertas de palha. Perto, as mulheres, rebolindo as saias, com os seus corpetes de alamares justos ao corpo, chapéus acabanados, atiravam para os moços dos carros os primeiros feixes de trigo. Ou nos vinhedos, por entre pâmpanos e parras, como bacantes desabridas, guardas vigilantes dos racimos novos, sentinelas virgens das sagradas vinhas, cachopas suarentas, ofegantes, ligavam as vides, enquanto à sombra outras, meio derreadas, olhavam extáticas, contemplativas, os grandes bois ruminantes.

Ao lado, crianças quase nuas, como nos tempos mortos da inocência paradisíaca, trincavam frutos voluptuosamente, escorrendo pelos cantos da boca e por entre os dedos o caldo perfumoso das polpas espremidas.

No entanto pelos prados corria, como estribilho alegre, por entre o silêncio pacífico da hora, o moroso chiar das noras.

Como caísse rispidamente o sol, algumas mulheres recolheram-se a cabana de colmo, por entre os salgueiros das margens do rio.

Foi diante de um refúgio desses que o cura deteve os passos. Vinha lendo o “Natal”. Cerrou as páginas e olhou em volta.

Uma voz meiga cantava uma melodia acalentadora.

O cura aproximou-se e lançou o olhar curioso para o interior da cabana. Sentada sobre um monte de palha uma rapariga — dezoito anos, quando muito — amamentava o filho. Ovelhas andavam em volta mansamente. Meninos de oito e dez anos jogavam pedrinhas, ao fundo.

Um rafeiro peludo, olhar inquisidor de sentinela, vigiava a entrada.

O “Natal”, a festa da Encarnação do Deus Homem, a divinização da mulher de Judá pela pomba mística na noite misteriosa da fecundação santíssima... O “Natal”... Essa leitura e o quadro que lhe atraíra os olhos: a mulher num casebre simples, entre ovelhas e crianças, com um pequeno nos braços e um reverbero de sol em torno da cabeça, tudo rindo explosivamente: o azul, a terra, a natureza inteira... O velho cura foi caindo em êxtase.

Lia-se-lhe no rosto todo um poema novo de místicos assombros.

Seu olhar fulgurava, refletindo paisagens, meandros de sítios, cintilações de estrelas e, de repente, um sorriso. A alma chegara longe, à borda de uma cisterna, sob um sicômoro — em Genezareth.

As ceifeiras lembravam-lhe mulheres de Jerusalém ou raparigas dos cortejos nobres que bailavam nos festins de Herodes com saias de púrpura, arrecadas de pérolas, os pés em alpercatas de couro de gazela. Eram companheiras de Salomé, a dançarina, moças que tangiam sistros ou dedilhavam liras, quase nuas, estiradas em tapetes, quando o tetrarca celebrava festas.

E os lavradores — eram rabinos ou escribas que vinham das sinagogas, senão judeus da Galileia, ricos e poderosos, que voltavam do mercado de Samaria. Eram mais: os pretorianos, eram damas romanas, moças de Bethânia, mulheres de Ancira e, aos bandos, crianças de Sichen cantando salmos ou velhos cabreiros que vinham da montanha. E, como se voltasse, viu sobre os montes os rebanhos que desciam, os moinhos que rodavam as grandes asas. Eram os magos, a falange de escravos ladeando os dromedários e os elefantes, trazidos à ponta de lança dos confins do Oriente. E, do alto das torres, negros abocando charamelas, outros mantendo pálios em torno dos sólios reais, ensombrando os verdes baldaquinos de seda e ouro.

E os presentes em cibórios de esmeralda: a mirra, o incenso, o ouro; e mais as mulheres que batiam tímpanos, outras que vinham com faixas de gaze dançando à frente das caravanas.

Já mais perto soavam os tambores e o cura extasiado, sorrindo, balbuciando, tremia de unção contemplando o mistério.

Depois o ruído compassado dos cantos ingênuos: eram pastores que vinham ao som de flautas, trazendo pombos e cordeiros e abadas de flores das montanhas.

E o velho caiu de joelhos, com o breviário entre os dedos, abafado pelo trigo alto e louro, olhando, olhando sempre o pequeno presépio onde Jesus dormia.

E ali ficou muito tempo absorto.

— Eh! Eh! Lá e, de repente: O senhor cura! Uma voz fresca de criança chamou-o e o bafo quente dos bois do carro foi-lhe direito ao rosto.

— Licença, senhor cura. Eh! Eh! Senhor cura!

É o gado!

Ele voltou-se com o olhar desvairado, trêmulo, o peito ofegante, como se despertasse de um sonho. A criança, com o pampilho ao ombro, passou saudando-o.

Vinham depois pastores e ceifeiros, em bando, ao som de cantarolas e de flautas do campo, e raparigas fazendo voltas, trovando, desferindo cantares aprendidos nos serões, pelas noites de esfolhada ao luar, nas eiras. Depois os nédios bois pacíficos, tirando o carro, com os cornos enastrados de ramos, como nas festas pagãs. Em cima, sobre o trigo, crianças e raparigas, coroadas de flores, com estrigas na mão, saudando a Terra! Atrás, aos saltos, latindo, os cães de pastorejo.

 Fora esse simples carro de colheita que, com o seu rumor bucólico e festivo, sugerira ao espírito exaltado do velho sacerdote melodias de Israel, jamais ouvidas, cantos da idade santa, hinos triunfais e hosanas.

Ainda assim voltou-se para olhar a cabana. Lá estava a rapariga de joelhos, com a criança adormecida nos braços, ajeitando-a amorosamente na palha, com um canto modulado à meia voz.

Resignou-se, então e, voltando-se para os segadores:

— Fui apanhado pelo sol no meio do campo, longe do presbitério e aqui ficarei se vocês não me quiserem dar um lugar no carro. Mas, sem esperar, arregaçando a batina, agarrou-se a um fueiro. Ofereceram-lhe amparo, todos queriam acudir ao “Sr. Cura” e, a rir, por entre o riso dos rústicos, tomou lugar na seara loura.

E lá se foi, caminho em fora, ao passo lento dos bois, cheio de unção e de alegria, como o Espírito da Paz, o santo, o alegre, o abençoado Deus do Outono, o patriarca antigo das colheitas.

E como cantassem trovas, esse bom velho, com um molho de espigas nas mãos trêmulas, entre mulheres e crianças, tinha o ar de uma divindade antiga, protetora das messes, achada à sombra das carvalheiras, que vinha com a sua voz de cálamo contando aos novos as romanizas das pálidas camélias e mais as nênias dos lírios brancos.

E assim entrou na aldeia o primeiro carro dos primeiros trigos.

FEIRA DE CORAÇÕES

Ouriçavam o caminho, a um e outro lado, os híspidos espinheiros bravos; a terra era dura e seca e, para maior tristeza, as ramarias compactas e negras tapavam todo o céu, tanto que o sol filtrava a custo algumas gotas de ouro, salpicando o chão por onde, às vezes, lenta e escura, uma víbora atravessava aos coleios.

À margem de lúrido pântano coalhado de ervas aves pernaltas olhavam contemplativamente, pousadas numa só pata, firmes, imotas como esculturas fúnebres. E não se ouvia outro rumor senão os turturinos dos pombos selvagens, escondidos nos altos galhos folhudos.

Melhor ficara àquele sítio o nome de caminho da tristeza que o de retiro do amor, tão mal andava a alegria por ele que, a cada passo, estava a gente a ver um símbolo tristonho e tudo era tão carregado e grave que a alma, não sabendo como aliviar-se das penas, enchia a soledade com o rumor dos suspiros.

Foi por um fim de inverno, tempo restaurador e fecundo da volta das folhas, que me deixei levar à feira passional das virgens, no monte misterioso onde a murta, virente e viçosa, começava a cobrir-se de flores.

De muito longe ouvia-se o pregão do mercado e, de instante a instante, um caminheiro surgia risonho, animado, e passava cantarolando alegremente. Outros, porém, merencórios, calados, desciam com a lentidão dos sem esperança e o ar sombrio dos réprobos.

À hora justa de começar a feira, ao primeiro pregão, dirigi-me para o planalto do monte onde, à luz viva do sol, alvejavam as tendas das mercadorias. Eram todas formosas, de formosura ideal e imarcescível como a dos imortais.

Traziam roupas de seda fechadas por atilhos de ouro, nos pés escarpins bordados e à cabeça, prendendo em nimbo a cabeleira farta, revérberos rutilantes incrustados de gemas. E todas apregoavam: “Corações! Corações para todo o amor!”.

E na relva, acamados, semelhando frutos de coral, um cúmulo de corações pequenos palpitava.

Moços e raparigas, namorados e namoradas erravam de moita em moita, de tenda em tenda, ajustando corações ou trocando os seus por outros novos.

Marina, a minha adorada Marina, dispunha-se a trocar o seu coração. Chegamos ao mesmo tempo perto da vendedora. Embucei-me de modo que a minha amada me não visse o rosto.

E trocamos os nossos corações.

Por fatalidade a vendedora deu-me o de Marina e o meu passou às mãos da minha amada.

As virgens apregoavam sempre: “Corações! Corações para todo o amor!”.

Que inconstante! Que mentiroso o coração de Marina!

Nem uma vez, nem uma só sobressaltou-se com saudades minhas! Palpitava por tanta futilidade, que meu nome, se passava por ele, era com a rapidez da água dos córregos nas rodas dos moinhos.

O meu, porém, o meu que morava com ela, era todo amor, todo suavidade, e, pela ternura dos olhos de Marina, pelas expressões dos seus lábios, compreendi que o meu coração fiel domara a sua alma pérfida.

Aproximamo-nos. Ela reconheceu-me e, lânguida, vencida pelo coração trocado, o meu fiel coração, declarou-se perdida por mim, minha escrava, minha devotada amante sempre! Sempre! Sempre!

E o coração de Marina, o volúvel coração dentro de mim, palpitava por outras tantas mulheres, tantas quantos haviam sido os namorados pelos quais outrora palpitara.

Fútil! Fútil! Fútil!

Hoje tu, pobre e mimosa flor, pensas em mim e eu penso em tantas outras que o teu nome, se passa pelo meu coração, é com a rapidez da água dos córregos nas rodas dos moinhos.

TÂNTALO

Plenilúnio. Estruge o ruído da bacanal. Citaredas siracusanas e aulétrides milesias tangem harpas e diaulos. Ephebos cantam, fâmulos vozeiam e as éteres nuas, titubeantes, levantam ritos de bronze banhando os seios nus em vinho antigo.

Negros enormes da Numidia batem em tamboris, outros em trigonos; mulheres vibram tímpanos estrídulos, tintinabulam campanas vibrantes e uma rapariga frígia, brandamente, fere uma lira de tartaruga indiana.

Servem a ceia fora: — lauta mesa de várias iguarias: ostras de Cartago, pássaros de Phaso, pavões da Media, murêas de Siracusa, figos da Chelidonia, uvas de Atenas, petunclos de Méthymna, ameixas Sírias e tâmaras da Thebaida.

As ânfora esvaziam-se nos cyathos. Vasos etruscos voltam das adegas. Transborda o falerno olente e rubicundo, jorram vinhos exóticos nos cimbios: de Cós, de Samos, de Chiraz, da Etruria.

E o perfume dos vasos rescendendo põe no ambiente estonteante aroma.

Os rouxinóis e os melros acordados cantam nos aviários.

E nos tanques de mármore cipolino os cisnes nadam, ao luar, beijando-se.

Começa a orgia.

Herculano manda vir os prisioneiros: lusitanos e gauleses, tomados em Cartago.

Abrem-se as flores da sensualidade!

Plena nudez!

Cada mulher é um rio de volúpia onde brincam dois sátiros: os seios. Os bárbaros, ofegantes de lascívia, pedem com ternos olhos, rangem os dentes e rugem como leões no tempo cálido.

“O meu colar de ouro ao mais possante!” — brada Herculano bêbado.

Trava-se a luta da brutalidade! Recresce a música! Ronca de amor e de sede a multidão libidinosa.

Cada qual mais sedento e mais cioso arrebata nos braços uma etérea.

As amoreiras farfalham balançadas; estala o rosmaninho rebuscado.

A grita levanta-se. Jungem-se dois a uma; sacam dos punhais, defendem a presa; morrem pelo prazer soltando gritos.

Herculano gargalha, anseia e chora. Falta-lhe a força antiga!

Vêm as essências fortes do Oriente: pastas afrodisíacas, perfumes sensuais que revigoram.

As moças e os meninos, com cantares, buscam reavivar-lhe a chama extinta. Untam-lhe o corpo, beijam-lhe os cabelos, contam-lhe amores eróticos dos deuses.

O velho agita-se de raiva, morde os pulsos, foge ao triclínio nu, descalço, iroso, a cabeleira branca emaranhada numa coroa de rosas esmarridas.

Trôpego, babando-se, caminha apoiado aos ombros dos etruscos. Tenta a vida nos lábios de uma grega, busca amores no seio de uma egípcia. Foge-lhe a paciência. Vocifera e, louco, esbofeteia o fâmulo que o segue.

Clama debalde contra a matéria morta:

“Antes morresse a alma!”

Aqui, tropeça num casal robusto. Para, escuta os gemidos e as palavras, ri loucamente, aplaude, espia, agacha-se e, para saciar o seu despeito, crava o estilete nas carnes dos que gozam.

As siracusanas fogem do velho gasto espavoridas. Atiram para longe os instrumentos, entram nas grutas arrastando os efebos. Pedem, imploram, rojam-se entregando-se e, de repente, estorcem-se gemendo, braços nus, seios nus, brancas e sôfregas, balbuciantes, lúbricas, exânimes.

Herculano grita pelos bárbaros, chama pelas mulheres, brada, ordena que se suspenda a bacanal infrene.

Ouve-se apenas o concerto lânguido dos beijos altos do conúbio enorme.

Herculano desvia-se dos pares, foge da vila como de um inferno. Olha em frente:

O mar! Também o mar!

Por sua vez a lua entrega-se: etérea do azul, ao mar, o bárbaro.

Olha, pragueja, blasfêmia e, arrancando da cabeça a fanada coroa, precipita-se da penedia e mergulha no mar.

“Antes morresse a alma!” exclama vindo à tona agonizante.

SAUDADE

Sorrindo, foi aos poucos desmaiando e, como se apenas a tocara o sono, uniu os grandes cílios, exaurindo em suspiro flébil a primavera dos seus dezesseis anos. Julgaram-na, a princípio, adormecida e só aperceberam-se da morte quando a rijeza a inteiriçou no leito.

As estrelas, no céu, esmaeciam, a luz sanguínea e quente renascia e a voz das águas límpidas baixava quando por ela correram, tristes e copiosas, as lágrimas primeiras.

A brisa da manhã veio encontrá-la morta, estendida num caixão de pinho, entre lírios e rosas: o formoso semblante esmorecido, calmo e parado o colo, velados para o todo sempre os olhos meigos e as mãos unidas como se a morte a surpreendera em devota e piedosa reza.

Morta! Todavia no seu rosto, como duas flores salvas das nevadas, purpurejavam ainda as rosas do pudor.

Círios ardiam em redor do esquife e toda a casa trescalava o aroma das capelas, que flanqueavam a morta sorridente.

Entre os amigos da hora derradeira, extático como em sonho, achava-se o velho scaldo do cantão, setuagenário trêmulo, em cujos lábios descorados cantava, como em harpa, a musa serena e casta da Finlândia.

Longos cabelos brancos escorriam-lhe pelos ombros curvos e as suas barbas, magníficas e fartas como as de um patriarca, tinham o fulgor radioso das neves. A seu lado, quase roçando o pano do seu manto claro, um moço, trajando singelamente como os pegureiros: no punho, cajado forte, a cornamusa à banda, olhava através de lágrimas a formosa defunta.

A voz cansada e rítmica do scaldo, em elegia sentimental e terna, recapitulou a vida da finada:

“A andorinha emigrante volta ao seu destino — o inverno abateu o ramo, a ave desferiu o voo. Para ela começou a primavera de sempre. Essa não manchará mais nunca o sol com a sua sombra nem mais a terra soará com o rumor dos seus passos. Seu coração emudeceu antes de balbucia; a flor mirrou no caule sem que a beijasse a abelha. Porque chorais? Se é pela inocente fazeis mal — ela era pura: voltou à sua pátria como a onda reflui ao oceano. O sargaço guarda-o a areia das praias. Não choreis a terra que torna ao seu jazigo. Deixai partir! Deixai partir!”

E o scaldo emudeceu.

No silêncio de todas as saudades apenas persistiu o soluço magoado do solitário moço. De pé, braços cruzados, mudo, tristonho e só, ele, entre todos, era o único cujas lágrimas, serenas e silenciosas, cavavam sulcos no rosto angustiado.

O scaldo emudecera, todo o rumor de lástima cessara e ele, constante e firme na tristeza, continuava a fúnebre elegia com as suas lágrimas, com os seus soluços.

À hora em que o féretro saia desapareceu no vale cavo é fundo o solitário moço melancólico.

Ardia o sol de Junho mirífico e resplandecente, curvando largos íris diáfanos nos altos cimos das montanhas toucadas de neve.

Um murmúrio de pena corria por toda a várzea. A voz cansada e rítmica do scaldo falou no campo compassadamente, pronunciando o nome da finada e dos ramos, em abalada ruflante, aves fugiram espavoridas esparzindo, com o bater das asas, flores sobre o esquife aberto.

Quem andava a lavrar corria à margem do caminho, trazendo à mão os ferros do serviço e, humilde, ficava a olhar até que as ondas dos trigais doirados o abafavam de todo.

Do vale, como um soluço, subia, de vez em vez, o som dolente da cornamusa triste.

Sob as árvores verdes e frondosas da aba da colina, no sítio mais temoroso e mais calado, parou o fúnebre cortejo e, quando o pequeno esquife pousou na terra fofa, a voz do scaldo ergueu-se e disse por todos o derradeiro adeus à falecida. Por estranha coincidência, no vale cavo e fundo, a cornamusa ressoou gemente. E todos olharam na direção do vale.

Rolara sobre o corpo frio a primeira camada de terra e ia rolar segunda quando uma criança, a sorrir, apontou para uma chama azul, leve, oscilante, que pairava, como um lampiro, acima da sepultura.

Espantaram-se todos, mas o velho scaldo acalmou os camponeses:

— Não receies! O que vedes é o fogo santo, o lume misterioso da ara do sacrifício: é a flama dos cemitérios, círio dos túmulos que a terra misericordiosa acende para alumiar os mortos.

E a cornamusa, à última palavra do setuagenário bardo, soou mais próxima e muito mais dolorida.

O cantor nacional voltou-se e viu o solitário moço de pé, sob a copa das árvores. Viu-o aproximar-se, ajoelhar-se de mãos juntas, o olhar em êxtase, enlevado. E o lume tumular que errava foi, aos poucos, procurando-o como a pirausta procura a claridade e penetrando-o, penetrando-o sumiu subitamente como extinto. O scaldo, porém, que acompanhava os movimentos do solitário moço, viu-o sorver o lume funerário.

Depois da singular eucaristia ergueu-se e foi por entre as árvores chorando.

Tempos depois, seguindo a acidentada trilha das ovelhas, por entre os hirtos pinheiros sombrios, o scaldo errante encontrou o solitário moço inconsolável.

Falou-lhe pedindo explicação do caso estranho e o moço disse:

scaldo, a minha crença, talvez falsa, é esta:

— Os mortos amados, os queridos mortos vão-se para sempre, mas deixam, como lembrança, no coração dos adorados, o lume da saudade.

A saudade é um fogo fátuo — é o santelmo d’alma — erra por ela como a chama feral pelos cemitérios: é a luz cirial que fica para aquecer-nos na hora da desesperança.

Nasce em uma recordação e extingue-se com a morte. Em uns, passa como lume vago; em outros fica e abrasa e queima e pulveriza, reduzindo todo o sentimento à cinza fria da tristeza, esterilizando a alma para que nela nunca mais viceje o lírio do amor, casto e sensível, como em mim sinto arder ainda, em meu peito, morto e mudo como um sepulcro, a saudade incoercível, errante no meu coração, iludindo-o, consolando-o, com a miragem passional do amor finado.

A saudade é a alma de todos os amores, alma imortal e triste — perdura, fica eternamente, ainda que o afeto desfaleça e morra.

Esta é a minha crença, scaldo, faze dela a tua última balada e canta-a pelos casais aos namorados.

Dizendo estas palavras foi-se, tocando tristemente a cornamusa triste.

O FILTRO DE FAUSTO

Dos manuscritos de Karma, poeta do amor

 — Água de Juventa, elixir passional do Dr. Fausto. Vende-se aqui.

Tais palavras de anúncio, em grandes letras brancas, destacavam-se vivamente do fundo roxo negro de uma tabuleta em forma de coração, que encimava a padieira de velha porta baixa, grosseira e sólida, que ressoava como se fosse de bronze, quando alguém levantava a aldraba, que era uma formidável garra de abutre apertando uma bola. Durante o dia raramente aparecia aberta; à noite, porém, escancarava-se e vinha sentar-se à soleira, guardado por enorme cão cerdoso, o químico: velhito mirrado, raquítico, vestido com uma espécie de sotaina, com um gorro de seda escondendo o crânio calvo.

Às vezes, durante o dia, a aldraba martelava estrondosamente. Saia gente a ver quem era — homens, quase sempre. Raro em raro, uma mulher velada, evitando discretamente os olhos curiosos.

Corriam versões sombrias sobre o misterioso velho. O farmacêutico Rogerio, que fazia de médico no lugar, contava que, certa noite, recolhendo de uma visita, encontrara Fausto com um bruxo de cornos e olhos de fogo zangarreando modas numa guitarra fanha e bailando em volta de uma cruz do caminho.

Outros boatos apareceram, e tal se tornou a lenda da casa misteriosa, que, à noite, ninguém ousava aproximar-se dela. Os que moravam na vizinhança, a pretexto de ouvirem gritos e gemidos a horas mortas, foram abalando, de sorte que a rua ficou deserta, todas as casas fechadas e apenas, de longe em longe, quebrava o triste silêncio o uivo triste do cão que guardava o velhito, no limiar do misterioso pardieiro.

Um dia, porém, desapareceu do lugar uma rapariga noiva — Dionísia de nome. Diziam-na virtuosa e casta, de sorte que a notícia de tal sumiço despertou suspeitas de crime, porque ninguém a julgaria capaz de dar passo fora da linha da virtude e da honra. Os pais, campônios pobres, lastimavam-se e fazia piedade ouvir-lhes as palavras de agonia e as tristes exclamações de misericórdia.

Gente peregrinava para ir ver a cabana de onde desaparecera a donzela. As portas não mostravam o menor vestígio de violência, e uma janela, que abria sobre o pomar, tinha sobre o peitoril os vasos de cravos e de rosmaninhos que a moça cultivava. Não fora por ali, de certo, que saíra.

Novas lendas surgiram e o terror apoderou-se de todas as almas. O próprio Rogerio, atrevido corno era, nunca mais ousou sair de casa à noite. Debalde batiam à sua porta os que tinham doente em perigo. Rogerio não corria o ferrolho e nem sequer aparecia ao postigo.

Uma tarde, porém, mulheres que voltavam do rio estarreceram espavoridas diante de uma aparição pálida, quase diáfana, que vinha grave, lenta e tristemente, de olhos extáticos, as mãos no peito, balbuciando coisas indecifráveis, como uma sonambula. Reconheceram Dionísia. Vendo-a, porém, transfigurada, sem cor no rosto e sem luz nos olhos, ela, a mais corada e de olhos mais lindos do lugar, assustaram-se de tal modo que não houve contê-las: abalaram a correr gritando, como um bando de pombas bravas surpreendidas à beira d’agua.

E Dionísia, sempre serena, indiferente, impassível, seguiu pelos caminhos ermos, o só parou à porta da cabana fechada e deserta, porque os pais haviam partido uma manhã, levados pela esperança de encontrar a filha.

Dias e noites viveu ao desamparo a pobrezinha, até que uma manhã pastores foram achá-la entre urzes, morta, regelada e pálida, os olhos tristes abertos para o céu tranquilo, as mãos ambas no peito — e piedosamente cavaram uma sepultura. Mas a lenda ficou em cantos melancólicos.

Anos correram.

Uma manhã, a gente do lugar, atraída por crescente rumor que vinha da rua solitária em que habitava Fausto, acudiu curiosa. À porta, multidão de homens e mulheres bradava em altos gritos indignados, atroando os ares com as pancadas sonoras da aldraba formidável. E chegavam constantemente novos grupos, e a fúria crescia ameaçadora e terrível. Por fim a porta escancarou-se e assomou na soleira, pálido, escaveirado, com os olhos em chama, os dedos crispados, Fausto, o químico quase nu, com um pano à cinta e todo manchado de sangue.

Homens e mulheres arremeteram contra o velho que não fazia um gesto, parecendo petrificado de espanto:

— Embusteiro! Bradavam e ele olhava a fito a multidão, impassível e calmo, como se a desafiasse. Por fim, acalmando-se a ira do povo, Fausto falou gravemente:

— Embusteiro! Dizeis, porque o meu elixir não produziu o efeito desejado. Mas que hei-de fazer, dizei? Que hei-de fazer se não há mais amor no mundo...? Entrai, vinde ver vós mesmos. Vinde ver, para que não me acuseis injustamente. Entrai.

E o povo precipitou-se pela passagem estreita, seguindo o velhito que caminhava à frente, alumiando com uma lanterna um estreito corredor úmido e labrego. Por fim chegaram a uma grande sala vasta e abobadada, que era a oficina misteriosa do químico. Ao fundo, grande fornalha em chamas espalhava clarões purpureis pelas muralhas sombrias, garabulhadas de inscrições cabalísticas. Grandes livros de magia amontoavam-se pelos cantos; e balões, retortas e alambiques; e sobre uma mesa purpúrea apinhavam-se corações.

— Vede, disse dirigindo-se à multidão — são corações de virgens. E, afastando rapidamente um reposteiro negro: Ei-las ali, as donas desses corações; parecem sombras, são espectros que deambulam, insensíveis.

Mulheres de formas esplêndidas, alvas, morenas, inteiramente nuas, passavam de um para outro lado, absortas, caladas, como visões. Não se lhes ouvia o rumor dos passos, tão lentamente caminhavam e do que diziam percebia-se apenas leve e brando sussurro como o de fio d’água correndo per entre folhas.

— Vede, são virgens, foi dos seus corações que extrai o elixir que adquiristes.

— Mas anunciaste amor e deste-nos vaidade, hipocrisia, perfídias e traições. Dai-nos o que nos prometeste.

— Amor? Onde encontrá-lo? Onde encontrá-lo, se o amor desapareceu dos corações? Vede, tenho explorado mais de mil e só em um encontrei o que pedis, em um só! Esse, porém, mal o toquei, cerrou- se como a sensitiva. Dos outros extrai pacientemente a misteriosa essência, que vendi como filtro, julgando que os corações só produzissem amor. Dizeis que vos dei vaidade, hipocrisia, perfídias e traições... São frutos dos corações das virgens.

Que culpa tenho eu? Revoltai-vos contra os corações que não produzem amor. Eu não fiz mais do que extrair a essência que continham. Julguei que fosse amor, era vaidade. Que culpa tenho eu se o amor não floresce mais no pequenino vaso em que a alma o cultivava?

E, deixando pender a cabeça sobre o peito, murmurou tristemente:

— E eu, dentre todos, fui o mais iludido. Envelheci procurando a flor do sentimento, e só encontrei a urze estéril e a hera maninha. O amor não floresce mais. O coração vive carregado de parasitas: vaidades, hipocrisias. O amor não floresce mais! O amor não floresce mais!

CANÇÃO TRISTE

Dos manuscritos de Karma, poeta do amor

 É tua a vez, ífadir, disse Soliman, o nômade. Conta-nos alguma coisa.

As lendas do teu país são belas como as fantasias do sol nos areais.

Depois da história de Mejrum, o cego, vê se nos dás uma canção de amor. Terás um bracelete de Golconda e um toucado de lan de Cachemira.

Nadir, a bengalina, noiva do forte e generoso Achan, travou do repábil e começou o cântico dolente de Avyanath, a peregrina:

Tempo do mirto, tempo das anêmonas. Eu-tila o sol na cúpula do templo. Zumbem pelos vergéis bandos de abelhas.

Quando Salem aparecia, todas as flores desabotoavam.

A boca de Salem era a colmeia; os dentes brancos, fulgidas abelhas; o beijo, mel; a voz, zumbido; e todo ele um tronco esbelto de palmeira nova.

Avyanath, princesa e profetisa, amava-o ocultamente.

O colo de Salem, pastor de cabras, tinha o perfume agreste dos balsedos, e, quando ele falava, era como se a brisa sacudisse magnólias e jasmins.

Quando o avesso do azul, a treva escura, dilatou-se no espaço, Mahalaat, o rei negro, Malahaat, o chefe bárbaro, vendo Salem nos braços brancos da princesa, arrancou-o para o todo sempre ao amor cravando-lhe no coração a cimitarra adunca.

Eis por que sempre Avyanath chorava quando volvia a noite. Chorava, a triste, porque no coração da selva havia enterrado o coração do amante.

Alta noite, através dos bosques, caminhava. Ia pelos socalcos das montanhas, galgava penedias e valados, levando-lhe a tristíssima saudade num cálice de flor.

Num cálice de flor ela chorava — e as suas doces lágrimas sentidas mal caíam na terra desapareciam pela sepultura.

De muito choro doloroso e triste já lhe escorriam lágrimas de sangue.

Olhos cerrados, roxos, denegridos! Olhos como um casal de conchas raras de onde instilava a púrpura doída — pranto do coração, lágrimas puras.

Moças de mil aldeias, namoradas, traziam oblações de pranto à selva, em cálices de flores. Vinham, pelo luar das noites misteriosas, cantando idílios tristes, molhar a sepultura.

Quantos amores! Quantos desesperos o coração sepulto absorvia: traições de amor, juras mentidas, agonias, esperanças e saudades.

Salem, dizia Avyanath, Salem: Eu guardo-te as feições dentro em minha alma como a mãe guarda o filho no seu ventre.

A vida é como o fluxo do mar: Vai-se um prazer, vem outro, ainda mais outro, mas vida sem amor é mar de gelo.

— Avyanath, formosa, atende: O amor é como o fluxo do mar — vai-se uma onda, vem outra, ainda mais outra. Salem dorme na selva o tu nas tendas.

Já esqueceste o morto inteiramente. O inverno da tristeza entrou-te na alma, buscaste a primavera em outro seio.

Andorinha do amor, o amor floresce!

Volta à selva, formosa! E na tenda do chefe Mahalaat entrou uma das pombas do deserto:

Vem comigo ao deserto — o amor floresce.

Na erma sepultura abandonada crescera um delicado arbusto — crivado o caule de milhões de espinhos e terminando em flor.

Avyanath colheu uma das flores — floresceste nelas, pétalas de sangue e todas, no feitio caprichoso, iguais a um coração.

Um coração partido em mil pedaços, vindos do coração sepulto. E no centro da flor doirado pólen lembrava as tristes lágrimas levadas, em cálices de flores, pelas moças enamoradas das aldeias.

Quando as rosas rescendiam, pelo vigor primaveril dos campos, Avyanath saia da cidade. Ia pelos caminhos e veredas cantar o seu romance nos rosais. Rosas, de antes brancas, purpureavam-se.

Pastores encontravam-na. E, se a viam as moças das aldeias, bailavam de contentes: Era o tempo das flores e dos beijos. Avyanath anunciava a Primavera.

Louca, vagava pelos arredores. Passava em torno da cabeça rosas, rosas pelos quadris, rosas nos braços, dava rosas de esmola aos insensíveis, e, para alimentar-se, muitas vezes, comia as rosas com que se enfeitava.

Hoje ainda é uso, nas aldeias, a permuta de rosas entre os namorados — duas rosas, porém, numa só haste: ele e ela: Salem e Avyanath, como símbolo do eterno amor das almas.

Rosa! Coração aromalíssimo, Rosa de lágrimas e de sangue, flor alegre, flor triste, incompreensível flor do espinho e do perfume. Por mais que te desfolhem, perseverante símbolo, em cada uma das tuas pétalas há sempre a imagem meiga do coração partido.

Num beijo — como na pétala de uma rosa existe o coração perfeito — a alma inteira palpita...

— Bravo! Aplaudiram os nômades. Bravo! Aplaudiu Soliman!

Mas a história que nos contaste nada tem do alegre, Nadir, não obstante aqui tens os teus presentes. E, brandindo o alfanje à luz que irradiava: A cavalo! Bradou. A lua branca esmaece.

NA THEBAIDA

Caverna lobrega.

Lenta e lenta, gota a gota, a água instila, deriva em perene fluir: dimana como em lágrimas e pinga das açúleas estalactites brancas, que dão à profunda cava, erma e sombria, a semelhança de uma fauce hiante, denteada de híspidos colmilhos.

O dia passa, a noite passa, e sempre a saxea goela escancelada vorazmente, ao sol, à treva, aos ventos.

Feras não a procuram nem peregrinos a querem: é o refúgio merencório das estriges e dos gypaetos.

Dizem que nas eras místicas, quando os desertos acolhiam no seu misterioso silêncio os penitentes, que trocavam o rumor do mundo pelo recolhimento das fumas, vivendo, como os trogloditas, no remoto exílio das grutas, onde nem a luz penetrava, um caminhante, vestindo humilde estamenta, os pés feridos do saibro e dos espinhos, báculo no punho, em volta da cintura o cordão do cilício, desfiando piedosamente as contas de um rosário, atravessou os umbrais de pedra da caverna.

Solitários que, salmodiando, desciam às fontes para encher os púcaros grosseiros; monges, causticados pelos remorsos, que se flagelavam ao sol, clamando; anacoretas extáticos que, à noite, pela isolada e tenebrosa areia, perambulavam cantando mementos elegíacos; setuagenários acrisolados na penitência, quase espíritos, tão pouco se lhes via, através do capuz do hábito, traços das lívidas feições que, trêmulos, trêmulos, apenas moviam os lábios sem proferir palavra, orando intimamente, com os braços erguidos para o céu, nem um só viu jamais o eremita da cava.

Desmaiavam as últimas estrelas; as corças desciam às ribeiras claras; alumiava-se o alvo e extenso deserto de orlas amplíssimas, monotamente vagas e indefinidas, quando surgiu à porta da prisão granítica o caminhante melancólico. Alongou pela amplidão os olhos anhelantes e descobriu longo, além das dunas, colmos de habitações, disseminadamente — uma aqui, outra além.

Alçou os braços aos céus em suplica desesperada e partiu a correr na direção da aldeia expiatória.

Por vezes, sob seus passos, uma voz surda resmoneava plangentemente; do solo emergiam buréis e desapareciam a súbitas. Toda a terra adusta do deserto parecia gemer pelos grandes pecados do homem.

Ao murmúrio lacrimal das fontes juntava-se o clamor dolorido dos que se purificavam. E o sol calmo, de esplendor tranquilo, bebia o sangue dos ombros claros dos eremitas lacerados pelas cordas incisivas dos lategos disciplinares.

E o caminhante ouvia o pungitivo rumor das agonias santas, sofrendo mais, talvez, expiando mais cruamente o seu pecado sem chorar, sem gemer, do que todos quantos se contorciam, escabujando, a boca aberta em hiato de ânsia, louvando o Senhor no guaiar estridente, ao silvo das cordas que lhes zebravam as carnes.

Passou e deteve-se arquejante junto de uma meda de palha, que era uma cabana, em cuja entrada um vulto encolhido, de mãos postas, o queixo nos joelhos, dizia baixinho, sem acento humano; “Deus meu! Deus meu! Deus meu!”.

“Espírito eleito, santo, santo bem-aventurado, se ainda te alcançam as palavras de um profano, atende-me! Salva-me, piedoso!”

O velho estremeceu como se uma lutada gélida lhe tivesse mordido as carnes ressequidas e, muito a custo, tremulamente, levantou a cabeça pensadora. Longas barbas ficaram de rojo pela terra cavada pelos seus joelhos.

As luzes dos olhos resplandeceram em transfiguração. Todo ele transpirava pureza. O seu hálito era suave como o fumo odorífero dos turíbulos.

Acenou: — Que falasse.

E o caminhante, caindo na terra de joelhos, disse:

— Culpas, se culpas são desvios d’alma, culpas tremendas, bendito monge, fazem-me penitente.

Onde se pode achar o bem? Onde demora a paz? Em que refolho da natureza existe o silêncio?

Para calar o corpo, vede — e abriu a estamenha no peito mostrando as carnes sulcadas de laivos ainda em sangue. Para dar à minha alma a paz religiosa para que jamais volvesse a cuidar em crimes, vê-lo as noites ajoelhado e este rosário de mil contas passa pelos meus dedos mais de uma vez, entre dois soes. Entretanto vejo a sua sombra em toda a parte, a minha própria sombra é ela.

Será o Espírito da Treva que me persegue ainda, zombando de tudo quanto faço?

Ouço rumores, creio ouvir passos; volto-me e vejo-a, vejo-a que se encaminha para mim, nua, resplandecente, porque os seus cabelos de ouro seguem-na de rastro. Fala-me, beija-me, sinto-a junto de mim, sinto-lhe o cheiro da carne e o aroma da boca e, no fundo trevoso da caverna em que moro, são seus olhos que me alumiam, e são mais claros que o sol dos dias, mais meigos que o luar das noites.

Se balbucio as rezas das penitências, em vez do nome da Virgem, em vez do nome divino da Santa das Santas, é o seu nome que me sai dos lábios. Exorciza-me! Purifica-me, santo. Salva-me! Salva-me! Salva-me! Livra-me da infinita pena, porque bem sei que é o Mau Anjo que me persegue o espírito.

O solitário acenou com a cabeça.

— Dizes que sim. E tu que és puro como a luz, porque não salvas quem te invoca?

A cabeça branca agitou-se negativamente e a voz flébil do eremita disse:

— É impossível. A causa é forte demais. A tentação só poderá deixar-te quando tua alma partir — e levantou os braços para o céu; quando o teu corpo ficar, e bateu na terra balofa.

O Mau Anjo vive dentro de ti, E impôs a mão sobre o peito do caminhante: Aqui.

— O coração!?

O solitário acenou tristemente:

— Vai! Não podes ser de Deus, outra crença possui-te: amas. Vai-te!

— Mas, tartamudeou o caminhante com os olhos rasos d’água... Se ela é morta...!

O solitário fitou-o muito tempo, e porque o visse chorar, duas lágrimas rolaram-lhe dos olhos.

Por fim, escondendo o rosto dentro das mãos, disse tremente, como se soluçasse:

— Fica, fica entre os penitentes, mártir, e não flageles o corpo: basta a tortura do coração.

E, com agonia, agitando as mãos em tremor convulso:

— Que cilício mais duro que a saudade? Fica e concentra o teu espírito. Se o sofrimento purifica, tua alma será por Deus preferida. Fica.

Nada mais disse e, ajoelhando-se, caiu de bruços o rosto na terra, os braços estendidos, estremecendo de vez em vez, a balbuciar salmos, talvez, ou as palavras invocativas dos exórdios; “Deus meu! Deus meu! Deus meu”!

SALMO DE AMOR

Mostrais tamanho empenho em que vos conte a história triste da minha palidez que vos privar não quero de a saberdes.

Disse-me palavras tais a campônia Lenira, do lugar da Jurema, aldeia escura e pobre, perdida entre montanhas. E, para contar-me a triste história, pousou junto à fonte a bilha d’água e sentou-se à sombra de uma amendoeira.

Pálida, pálida, para todo o sempre pálida de amor, de amor somente. Ao sol apareço pálida, pálida apareço à noite e os vermes da morte fria pálida me acharão no túmulo.

Um moço meigo e forte, guia de rebanhos, foi meu noivo jurado. Arduino! Ainda hoje é assim que o chamam os ais da minha saudade.

Ao tempo do nosso enlace, marcado para a Conceição, tinha eu treze anos e ele; vinte e dois.

Não havia, então, em Jurema, rosas como as do meu rosto.

Eu ia vê-lo ao monte, à tarde e, à luz pura dos astros confidentes, dizíamos, como em reza, as mesmas palavras ternas de aliança e de amor — amor eterno. E, confiados, esperávamos o dia da ventura. Mas pelo frio intenso desta serra brava, uma noite, Arduino deu-me na boca o derradeiro beijo e expirou nos meus braços.

O enterro fez-se pela hora do Angelus. Morria a tarde purpureia, vinham descendo nuvens sobre os montes. O dia todo a chorar, a chorar, bati sebes, touceiras, moitas e ramarias à cata de uma flor, nenhuma havia! O inverno, que o matara, fizera o mesmo às galas das campinas.

Voltei ao colmo funeral onde os círios ardiam tristemente.

Vendo-me desolada e em choro, os camaradas pastores fecharam o caixão de pinho, não sabendo, talvez, que era minha alma que levavam a enterro e o féretro saiu para a estrada deserta ao som do Angelus vesperal, que gemia dolentemente o sino do presbitério. E foi-se, acompanhado de amigos e até de ovelhas, das suas ovelhinhas, órfãs que seguiram balando, balando, a passo, em contínuo choro até junto da cerca do espinhais do campo santo.

Iam descer o caixão. Triste caixão sem flores...! Mas como encontrar flores por esse mês aspérrimo de gelo, na serra ou mesmo na campina rasa? Ah! Meu senhor! O que meus olhos não puderam ver mostrou-me o coração — flores no inverno!

Ajoelhei junto à cova fria, ergui a Deus minha alma e, numa prece de noiva, pedi-lhe que colhesse as rosas do meu rosto para ornar o pobre esquife do meu noivo. E Deus ouviu-me misericordiosamente.

Como de um galho que o vento agita e verga, caem purpúreas rosas entreabertas, assim do rosto meu, hoje tão pálido, caíram sobre o esquife as rosas que o coloriam.

Foi um mimo, o presente final, a derradeira prova de aliança eterna.

Ide! correi ao cemitério e vede. Há sobre um túmulo duas rosas frescas, não as há mais formosas em Jurema. Ide e vede! São as rosas do meu rosto, hoje flores tumbai.

Ficaram-lhe os tristes olhos rasos d’água e, depois de um silêncio, disse Lenira entrecortadamente:

“Eis a razão da minha palidez. As minhas rosas são do cemitério, a cor do rosto meu pertence ao túmulo.”

E erguendo a bilha, foi-se balbuciando lenta e pausadamente:

“Pálida, pálida, para todo o sempre pálida — de amor, de amor somente!”

SONHO DE EVA

Radiando tibiamente, acesa no céu, como a derradeira lâmpada noturna, tímida e pálida sumia a estrela da manhã. Laivos de púrpura e de pérola estriavam o oriente e o Gihon, rolando as suas águas abundantes, cobria-se de asas brancas e pintadas, refletindo o voo baralhado e confuso das garças e das narcejas, que rodopiavam no ar como se flutuassem na tenuíssima neblina vaporosa do rio.

Madrugada loura e tépida, alva paradisíaca do tempo da primavera eterna, amoralizada pelo hálito de todas as balsamineas, sonorizando com o gorjeio de milhares de ninhos.

Eva, grandiosa, giganteia, extensamente alongada na relva betada de flores, os grandes braços abertos, rijos, de pé, como duas colunas em cima das por dois pequeninos soes vermelhos, os seios virgens, toda nua, muito branca, os cabelos soltos, longos, estendidos pela terra além, como uma corrente fluvial abrindo-se em diversos ramos de ouro, dormia entre as araucárias, rodeada de anjos fortes e de leoas doiradas.

Da harmonia silvestre do ruído das folhas destacava-se, de quando em quando, um trino e na espessa e emaranhada touceira dos cardos, tigres listrados, formidáveis, enormes, nervosamente encolhidos, miavam enamoradamente à lua que desaparecia.

Por uma fresta fendida na fimbria ocidental do azul elísio, Elohim, abrangendo o mundo com a sua pupila, mais radiante que os soes, presidia à festa solene da aurora que abria defronte um leque de fogo largo e fulgurante.

Por todo o mundo virgem, em aragem quase imperceptível, o sopro fabril do Criador passava e a natureza, ressentida, recebia-o como um beijo de amor e, pronta como saíra das mãos divinas, ficava logo fecunda.

Eva sonhava — sonho simples, sonho de inocência. Via-se inclinada em regaço de nuvens, entre estrelas e luas que balbuciavam.

A pouco e pouco, em ascensão, calma como a da névoa que sobe da terra, sairam dentre as estrelas duas de maior brilho e, caminhando por uma estria de luz, pararam junto do seu rosto, juntas como duas ovelhinhas gêmeas, e falaram:

“Nós somos teus olhos; velamos pela claridade. Todos os raios de luz que andarem pela natureza faremos descer ao templo do teu corpo. Tudo da terra e tudo quanto brilha no céu te faremos gozar — tudo te mostraremos. Evita sermos vencidas pelas estrelas mais fortes porque ficaremos, para todo o sempre, escravas”.

E partiram pelo mesmo trilho, desaparecendo tranquilamente como haviam aparecido.

Nasceu depois uma grande rosa rubra, fresca, cerrada e balouçante, como tremulando à aragem, e veio com duas pétalas em forma de asas voejando, lenta e suave, até junto do seu rosto e falou:

“Eu sou a tua boca; todos os sabores deliciosos serão por mim comunicados ao teu gosto. Evita, porém, o encontro de uma rosa mais forte”.

E partiu.

Dentre as estrelas saltaram trêfegos dois pequenos anjinhos, leves, de agilidade de fluído, risonhos e, pairando acima do seu rosto, falaram: “Nós somos os espíritos do som, moramos na concha cor de rosa dos teus ouvidos, somos os condutores de todas as harmonias. Tudo quanto no mundo soar nós te faremos ouvir. Fogo, porém, do arrulho que alucina”.

Depois duas luas alvíssimas, redondas, saíram do grupo, o junto da adormecida, pararam dizendo:

“Somos o teu colo, somos as últimas sentinelas do teu corpo; no dia em que nos tocarem de leve, um mau espírito acordará dentro de ti e todo o teu sangue se escoará por nós. Evita o choque insidioso”.

Duas borboletas cor de rosa vieram, aos beijos, mansas e meigas e posaram-lhe nas faces, falando:

“Somos a tua inocência. Pudor é o nosso nome. Sempre que tua alma cândida sentir-se de algum modo ferida, subiremos para as tuas faces como protesto auroral da pureza. Vela por nós! — que não nos evoquem com a harmonia traidora!”.

Iam abrindo voo as duas borboletas quando, no ajuntamento de astros, levantou-se grande ruído como se houvesse caído entre eles um espírito danado e, em pouco, nada mais havia no céu senão um gênio rubro que caminhava para junto de Eva, ansiando, como se chegasse de longa e penosa viagem. Corria surdo frêmito; vozes trêmulas balbuciavam:

“É o mau Anjo que vence!”.

Eva estorceu-se, levou as mãos ambas ao peito, sofrendo — sentia que lh’o rasgavam e viu o gênio rubro entrar por ele a dentro e, precipites pancadas íntimas agitaram-na como se o invasor estivesse a pregar a chaga escancarada.

Com a dor forte acordou. Raiava o dia. Levou a mão ao colo e estacou pasmada. Adão, de joelhos a seu lado, com um lótus azul no punho, refrescava-lhe o rosto. Olharam-se e houve nesse olhar tanto enternecimento que os dois sorriram e, institivamente, abriram os braços para o primeiro aconchego do amor.

E cantou triunfamente, à luz da madrugada, o beijo inicial que produziu Caim.

Errantes, caminhando sem rumo através da primitiva floresta, caindo a luz na sua última hora, fizeram alto junto de uma caverna, em cuja entranha sombria jeremiava um córrego.

Eva escolheu grandes folhas macias e estendeu sobre o solo de pedra gelada o seu leito selvagem, deixando ao companheiro o cuidado da vigília, porque, com o calor abafadiço, os tigres rugiam galopando aos casais.

Adormecida, Eva volveu ao sonho das noites antecedentes. Viu-se, de novo, no regaço das nuvens, entre estrelas e luas que balbuciavam.

A pouco e pouco, em ascensão calma, como a da névoa que sobe da terra, saíram dentre as estrelas duas de maior brilho e, caminhando por uma estria de luz, pararam diante do seu rosto, juntas como duas ovelhinhas gêmeas e falaram:

“Nós somos os teus olhos; velamos pela claridade. Todos os raios de luz que andavam pela natureza fizemos chegar ao templo do teu corpo. Tudo da terra e tudo quanto brilhava no céu nós te fizemos gozar — tudo te mostramos. Entanto deixaste-nos vencer pelas estrelas mais fortes. Hoje somos escravas dos olhos do teu companheiro, vivemos da luz que as suas pupilas nos emprestam. Debalde as estrelas cintilam, debalde resplandece o sol, debalde esplende a lua, nós só refletimos uma claridade — é a que vem dos seus olhos. Somos escravas do seu olhar mais forte”.

E partiram pelo mesmo trilho, desaparecendo tranquilamente como haviam aparecido.

Veio depois a grande rosa, de rubor palecente, fanada, sem o primitivo olor e sem o primitivo viço, trêmula como agitada por um vento bravio, com as pétalas dobradas e a corola umedecida. Chegou-se bem junto do seu rosto e falou:

“Eu sou a tua boca. Todos os sabores deliciosos foram por mim comunicados ao teu gosto. Não evitaste, porém, o encontro da rosa mais forte e tiraste-me o segredo da minha força, deixaste que me fosse roubada a misteriosa seiva, recebeste o beijo e agora, para que cante e sorria, para que me perfume, é mister que me envenenes com a delícia letal do contato que canta. Sou uma dependência agora. O beijo é uma estrofe que duas bocas rimam. Agora é tarde para evitar o pecado sonoro: não posso viver sem ele”.

E partiu.

Dentre as estrelas saltaram trêfegos dois pequenos anjinhos leves, de agilidade de fluído, e, pairando acima do seu rosto, falaram:

“Nós somos os espíritos do som, moramos na concha cor do rosa dos teus ouvidos — somos os condutores de todas as harmonias”.

Tudo quanto no mundo soou nós te fizemos ouvir. Não fugiste, entretanto, do arrulho que alucina, ouviste a palavra do amor, deixaste-te vencer pelo segredo extasiante, filho do espasmo voluptuoso; não tiveste força para fugir à românia sensual da came de sorte que, hoje, tudo quanto ouvimos, tudo quanto percebemos nos parece vago, insone, desarmônico e áspero comparado à música pecaminosa das evocações lascivas.

Somos para o amor, somos do amor somente.

Depois duas luas alvíssimas, redondas, saíram do grupo e, junto da adormecida, pararam dizendo:

“Somos o teu colo. Éramos as últimas sentinelas do teu corpo. Deixaste que nos tocassem e foi como se tivessem ateado uma fogueira em nós; sentimos a palpitação ardente da volúpia e, dentro em breve, teu sangue, transformado em leite, escorrerá por nós como as correntes descem pelo pendor das pedras. Não evitaste o choque insidioso das mãos do teu companheiro, e agora, enquanto elas não nos acariciam, ficamos como dois rochedos onde não flui o espírito da vida”.

Duas borboletas cor de rosa vieram aos beijos, mansas e meigas, e, pousando-lhe nas faces, falaram:

“Éramos a tua inocência. Pudor era o nosso nome. Sempre que a tua alma cândida sentia-se de algum modo ferida subíamos para as tuas faces como protesto auroral da pureza, Hoje somos palores — quase não temos força, a cor da aurora vai desmaiando aos poucos. Chamamo-nos vexame, somos agora a tua vergonha. O beijo roubou-nos o encanto”.

Iam abrindo voo as duas borboletas quando no ajuntamento de astros levantou-se uma estranha sinfonia, como se todas as liras celestiais tivessem vibrado uníssonas.

Correu um murmúrio. Vozes comovidas balbuciaram:

— “É o coração... É a arca santa... É o hostiário da alma!” E Eva sentiu que lhe rasgavam o peito e viu no céu, brilhante como um grande sol, cercado pelas visões do seu sonho, o coração, o gênio rubro, palpitando, envolto em véu misterioso, aureolado de beijos e despedindo beijos que, ao caírem no campo do céu, tomavam formas humanas — uns como Adão, outros como ela própria, aos centos, aos milhões, enchendo a terra, conquistando os mares.

E uma voz estrugiu:

— Longe! Longe do paraíso, Mãe do pecado! Cria, produtora de beijos! Cria, volúpia! Prolifera, insânia!

E, sentindo que lhe tocavam na boca, estremeceu e abriu os olhos, com um suspiro.

Adão, de joelhos, acariciava-lhe os cabelos, inclinado sobre o seu rosto beijando-o e fora, na floresta crespa, erravam milhares de anjos expulsos, cantando ironicamente, bem alto, para que chegasse ao céu, o primeiro epitalâmico: — Gloria in excelsis cordi.

De que provém essa tristeza negra que, às vezes, por longo espaço, à noite como nas horas claras, subjuga minha alma ao desespero?

De que repassado amargor é feita, essa nostalgia? Em que penso? Que sonhos corro e porque, de ímpetos em ímpetos, deixo longe dos olhos todo o mundo real e entro a seguir caminhos nunca percorridos, mas que vou trilhando visível, sensivelmente como se os pisasse firme?...

Para onde fogem caminhos tais? E as vozes que neles ouço em que além vão soar? E as gentes, femininas e novas, nuas ou mal cobertas de flores, que cantam baixo, tão baixo que é mais pela expressão harmônica do rosto, pelo comissura dos lábios do que por melodia que ouço, que afirmo perceber o misterioso cântico que afinam. E não tocam o solo porque são aéreas, fluídas, fusão de sonho o de sensualismo, que eu sinto, vejo e ouço, mas não prendo? De onde saem e que destino seguem?

De onde provém essa paisagem estranha e fugidia que de longas e remotas datas minha alma visita obstinadamente?

Que será? Sonho? Delírio? Amor? Saudade ou êxtase?

Há de ser êxtase por certo — êxtase de delirante.

Sóbria de ornatos, ampla e funda como as celas monásticas medievas é a câmara, a um tempo sala de armas e biblioteca. Em meio do teto, presa por três grilhões, arde a lâmpada de ferro, clássica, vinda de espólios ancestrais, do aquém das eras, alumiando sempre como um astro.

“A oficina sombria de onde vieste ao mundo, em algum desvão de cidade artística, católica como Sevilha ou bárbara como Damasco, não deixou traços dos muros nem sequer, no terreno, resquício da limalha do aço que os alfazemes bruniram”.

Vens, companheira muda de vigílias, do torvo ciclo efêmero de cabala; vens do laboratório hermético, vens da cela alvadia do monge terapeuta; vens, talvez, da tenda de algum chefe cristão, guerreiro numantino. Velaste a noite ansiosa, antes da batalha; iluminaste o escudo e a lâmina da espada e viste entrar mudo, manietado, à frente da mesada, o chefe moreno que combatera, confiado à proteção astral do crescente esguio. E quantas vezes morreste soprada pelo hálito aromalíssimo de uma boca fidalga, para que houvesse discrição no amor, lâmpada antiga!

Hoje, vetusta amiga, és minha companheira. Fui descobrir-te num inventário de amador, entre despojos inúteis de uma vida... Bem haja o dia em que nos encontramos!”.

Penso estas palavras espairecendo de uma leitura sentimental de versos doloridos, quando ouço murmúrio vago: — falas, em doce acento de expressão dolente, falas elegíacas, trenos balbuciados, quase imperceptíveis.

Volto os olhos. Sobre uma cadeira de alto respaldo negro, tacheado de pregaria de prata, velho móvel de Córdoba, de ébano e de couro, dorme voluptuosamente enroscada minha gata Titânia.

Ninguém mais.

Lá fora — a não ser o luar que é mudo — silêncio.

Disse-me outrora um sábio professor de nobres ciências, poeta disfarçado em filósofo:

“Toda a palavra é um produto complexo em que entram, como elementos constitutivos primários, o som, que é o aperfeiçoamento rítmico do grito ou do rumor, e a expressão, que é a representação externa da ideia ou do sentimento. Os primeiros vocábulos, no dizer erudito dos mestres, foram interjectivos, nasceram da necessidade que teve o homem de exprimir a dor, o espanto, a alegria, todos os ímpetos do sentimento, todas as susceptibilidades da sensação”.

O grito é, pois, o gérmen inicial da palavra. A ideia, imiscuída na emissão, entra na estrutura do termo como a alma na constituição do ser: é a essência. Toda a palavra, concluía o sábio professor, tem alma expressiva, emotiva e imortal — o som passa, mas a ideia fica na recordação ou no livro, que é a memória das raças, a eternidade do Pensamento.

“Toda a palavra tem alma” volvo a pensar e entro inopidamente pelo devaneio, perco-me em pleno sonho absorto, o olhar fixo, imobilizado todo como vidente em êxtase e ouço então, clara e distintamente, tudo que diz a voz misteriosa e elegíaca.

Reconheço-a, reconheço-a e o que ela diz, em palavras de ritmo passional, é a minha dolente história.

Relembra-me um caso antigo, tirado das nevoas densas do passado.

Lágrimas derivam de meus olhos parados. Choro. Por quê? Não sei — é o degelo da saudade. A harmonia suavíssima desta voz que murmura... Mas onde, Deus meu! Corro de novo os olhos pela câmara: deserta. Ninguém!

Onde falam? Que lábios errantes e invisíveis pronunciam? Que aéreo espírito peregrino, que a vista não percebe, paira balbuciando nênias? Escuto e ouço em silêncio pávido.

Deus meu! É em mim mesmo, dentro em mim, no meu ser. É em mim mesmo que a voz murmura, no coração, talvez.

Concentro-me, faço total abstração de tudo para voltar-me inteiro para mim e ouço.

Fala. E com que dolorosa mágoa pressinto que vive ainda dentro da minha alma essa que hoje tem os olhos apagados e dorme, junto ao mar, num túmulo de saibro.

O alto relógio de carvalho, móvel, talvez, de algum mosteiro antigo, ereto, solene, freme ríspido, range moroso e bate vagarosamente três pancadas sonoras.

Lenta e lenta vai desaparecendo a múrmura saudade.

Ergo-me, e de pé, com os braços em cruz, respiro aflito:

“Vieste, alma ciumenta, recordar as juras que trocamos. És bem cruel! És bem cruel, espírito! Que dirão de mim, d’ora em diante, os que souberem que ando entretendo amor contigo, triste, formosa e pálida defunta?”

Freme ríspido, range moroso o alto relógio antigo e, de novo, bate vagarosamente três pancadas sonoras.

Tácito e hirto ouço o murmúrio final: “Adeus!” diz a voz quase extinta e nada mais.

SOROR DOLORIDA

Dos manuscritos de Karma, poeta do amor.

Alta, envolta em tênue túnica pelúcida, feita de delicada teia, a mimosa Serise, precursora dos elfos e das willis, cerrando as asas, pequenas como pétalas de violetas e pousando no coração de uma camélia, puxou ao peito a sonorosa gula e, à triste lua de junho, enquanto os cisnes dormiam entre as ninfeias do lago, soltou a voa cariciosa e cantou a serenata de todas as noites chamando para o bailado as almas das noivas mortas.

Despertaram as rosas, os lírios moveram-se nos caules e as grandes magnólias, flores feitas de luar e de rocio, abriram-se para ouvir cantar Serise, a mimosa Serise, precursora dos elfos e das willis.

Os cisnes vieram de manso, em bando, abrindo as águas tranquilas do lago quase sem agitar as palmouras, e estacaram enquanto de longe, nos claríssimos raios do plenilúnio, vinham chegando os pálidos espíritos das amorosas finadas, das tristes noivas mortas antes do primeiro beijo.

No ar perfumado, como se a brisa cantasse, soava melodiosíssima surdina. Rouxinóis errantes voavam de ramal em ramal e calhandras acordadas espiavam dos ninhos a nuvem rutilante das almas, que vinha pela claridade, precedida das willis de rosto resplandecente e dos elfos pequenos, montados em pirilampos.

Ia começar o bailado das noivas.

No mosteiro da Agonia, velho solar religioso do tempo das cruzadas, as monjas rezavam salmos merencórios e pelas ogivas passava, de quando em quando, uma frecha de luz cirial.

Lá, todo o misticismo austero da religião; à borda do lago diáfano a dulcíssima serenata das sombras. Lá, as monjas tristes, sofrendo no eterno exílio do amor, com Deus por noivo, Deus o insensível, Deus o adversário inclemente do beijo; à margem transparente da água, a saudade póstuma das que haviam sonhado no braço do prometido, entre acácias e jasmineiros, à hora calada e romântica da lua.

Serise, vendo aproximarem-se as companheiras, desferiu o voo para recebê-las em pleno ar brumoso, cantando e tangendo o sonoro instrumento.

Foi-se e a camélia, pouso da pequenina precursora dos elfos e das willis, cerrou-se para que as falenas noturnas não poluíssem o lugar em que estivera a meiga, a blandiciosa e cândida Serise.

Quando a caravana das viajantes impalpáveis baixou sobre a superfície quieta do lago brilhante, os cisnes soltaram a voz e a noite encheu-se com a dolente serenata.

Longe, no triste mosteiro, os salmos continuavam.

Formadas em círculo as mãos, de neblina fria, apertadas umas às outras, as tristes almas começaram a voltear, pairando à flor do lago, enquanto Serise e os rouxinóis cantavam: ela, em um raio de lua; eles, nos ramos do salgueiral.

Subitamente uma das willis, a mais pálida, saltou no círculo das mortas e, sacudindo um ramo de cipreste, fez cessar o bailado noturno:

“Mortas de amor, willis e elfos das noites serenas, um momento!

Houve uma pausa longa, os pássaros calaram-se, calou-se a voz da pequenina Serise, e a grande willis falou:

“Ali em baixo, naquele triste mosteiro, soror Dolorida, a apaixonada, agoniza. Noiva, como vós outras, sofredora, como vós outras, a cativa do claustro em breve estará conosco para contar-nos a história do seu coração. Esperemos em silêncio a alma que se vai desprender”.

Todas as da comitiva aérea pousaram silenciosamente, umas sobre as flores aquáticas, outras sobre os ramos ou estenderam-se como visões de névoa sobre as moitas enfloradas, onde palpitavam ninhos.

Subitamente uma espécie de soluço passou plangentemente pelas ogivas do velho mosteiro.

“Ei-la conosco, a alma apaixonada da monja! Ei-la! Ei-la!” E a grande willis estendeu os braços na direção do mosteiro.

Vinha, com efeito, pelo ar quieto uma espécie de nebulosa estrelada.

Fez-se triste silêncio na misteriosa paisagem. Nem um ruflo de asa, nem um turturino de pombo.

Quando o espírito da monja desceu entre as almas das noivas, a grande willis, a mais pálida, adiantando-se, dirigiu a palavra à recém vinda:

“Soror Dolorida!”

A névoa diluiu-se e as estrelas que ela trazia consigo redobraram de fulgor.

“Soror Dolorida, tornou a rainha das willis. Chegastes à tribo das eternas saudosas, chegastes ao bando da melancolia eterna. Para que vos possamos admitir é mister que nos conteis a história do vosso sofrimento.”

A névoa estrelada, revolvendo-se como se sofresse, disse, com doloroso acento:

“Foi-me a vida inteira uma dor sem alívio. Meu coração, durante muito tempo, teve a esperança de um hóspede amoroso. Um dia passou-me pelos olhos um raio claro que vinha de outros olhos. Não sei que luz estranha iluminou minha alma entristecida. Abriu-se-me alguma coisa dentro do peito, ouvi músicas o cântico dentro do coração e minh’alma cavatinou de gozo em meus lábios, quando uma boca sorveu, pela primeira vez, o beijo da minha boca. O amante que meu coração elegeu...

“Traiu-te!” disseram as wilis a um só tempo.

A nebulosa revoluteou e, usando novamente da palavra, disso:

“Eu sou a alma mais ferida que ora tendes convosco. Vede as chagas que tenho, vede as minhas feridas...”.

“Estrelas...”

“Sim, estrelas porque as feridas do amor são astros”. E foram elas que alumiaram minh’alma na grande noite do mosteiro. Para viver revolvia as feridas do coração procurando arrancar-lhe a recordação e a saudade, que são as dores das chagas da alma.

Na cela onde me encerrei desfiei toda a minha agonia — enquanto as outras rezavam ao Deus morto eu rezava sobre o coração finado debulhando o rosário do meu pranto sentido. Era a mais pura do claustro porque era a que mais sofria.

Ouvi! rezam salmos a Soror Dolorida, a santa. Santa, mártir! Mártir da religião mais pura e mais consoladora — a do coração: o amor.”

E as estrelas da nebulosa começaram a estilar gotas de luz.

Guardai as vossas lágrimas, guardai as vossas lágrimas. Irmãs, noivas mortas de amor, disse a grande wilis agitando o ramo de cipreste — é quase aurora, temos mais uma fonte de orvalho: Soror Dolorida, a monja. Partamos!”.

“É quase aurora...”.

E, reunindo-se, acenderam todas as névoas rutilas desfiando o pranto da saudade — o orvalho das manhãs que alimenta e dá vida às rosas.

LACRIMATÓRIO

Em todo o dia não aparecera o venerando, o centenário Clodio.

À meia noite, a ronda do convento, balbuciando salmos de agonia, parou junto ao portal da sua cela. Um monge ergueu vagarosamente a cruz da aldraba e o eco da pancada reboou longo e soturno pelo profundo corredor do claustro. Nada.

Corriam lendas sobre o venerando frade. Uns acusavam-no de professar a hermética, outros de relações com maus arcanjos.

Quem se ajoelhasse junto dele ouvi-lo-ia pronunciar um nome de mulher de mistura com os sagrados termos das antífonas.

A ronda quieta, em grupo, junto ao portal, fez o maior silêncio. Nada. Um monge adiantou-se e, novamente, na brônzea placa, a aldraba tatalou.

Nada. Ainda nada.

A ronda, então, voltou ao ritmo dos salmos arrastando as sandálias pelas lajes.

Vênus pálida era a única estrela viva quando os frades começaram a arrombar o portal forte da cela de Frei Clodio.

As pancadas caíam rudes na madeira rija e, de longe, do coro, vinham doces, em melodia santíssima e consoladora, os primeiros cânticos de Matinas.

A vivos e repetidos golpes o carvalho entalhado do portal fendeu-se e a alvura das muralhas caiadas, escurecidas apenas por um cruzeiro, de cujos braços caía um pano branco, feriu a vista dos monges.

Foi o velho abade o primeiro que pôs o pé no cubículo misterioso.

De bruços sobre um grabato, inteiriçado como por um grande inverno, Clodio jazia morto. Extáticos e lacrimejando, os monges balbuciaram, como se oferecessem, em hóstia, ao Deus das falanges fortes, ao Deus consolador, a alma velha e sem mácula que se desprendera.

Mas, subitamente, um professor, desviando um pano de cânhamo grosseiro, recuou assustado, murmurando: “Os filtros! A hermética!... Era feiticeiro Clodio!”.

Todos os frades olharam na direção do braço que apontava. O espanto deteve-os. Foi mister que o abade, tomando a frente ao grupo, fosse à prateleira examinar os estranhos objetos do segredo do monge.

Eram bocais finíssimos, cheios de líquidos de diversas cores — acima de todos, dentro de uma moldura de cipreste e de rosas, como em retábulo, a imagem de um coração crucificado — e um velho pergaminho onde Clodio traçara tremulamente estas palavras amargas:

“Em oitenta anos de clausura austera não fiz mais do que estudar as agonias no breviário do meu coração”. A minha cela foi sempre o laboratório do sentimento humano. Em oitenta anos de clausura austera não fiz mais do que estudar a lágrima — desde a do pequeno que lavei para a vida até a do velho que ungi para a morte.

Irmãos, pensa! Nós outros transportamos dentro em nós um dilúvio perene — a alma, lágrima espiritualizada, inunda-nos; apenas flutua salvo, como pequenina arca de aliança, o coração, onde temos todas as espécies de alegrias, todas as espécies de amargores.

O nosso coração é uma arca fechada. Nunca poderemos soltar livremente o Amor, a pomba promissora, para explorar a ventura suprema, trazendo-nos, de volta, o beijo, o beijo que é o signo da vida. Sabe-nos apenas do coração o corvo — o desespero negro que se nutre e vive da nossa melancolia.

Sofremos como Laoconte — apertados nos anéis da volúpia fervente.”

 Lidas palavras tais no velho pergaminho, o abade adiantou-se para examinar os bocais o ler os dísticos que os explicavam:

“Branca: lágrima dos pequeninos, agonia do sorriso. É igual ao orvalho porque vem do céu”.

Safirina: estilicido da primeira saudade, nostalgia do azul, lágrima dos balbuciantes. Verde: rocio dos primeiros sonhos, aurora da dúvida. Âmbar: as primeiras esperanças, cor fugitiva das madrugadas — lágrima do tempo dos ideais, os primeiros desejos. Rósea: lágrima de alegria, recolhida na pálpebra de uma noiva.

Roxa — sangue da saudade, lágrima que absolve, água lustral do coração dolorido. Negra: a lama da alma — lágrima do remorso. Violácea: lágrima da ingratidão. Flâmine: lágrima da carne, suor da volúpia, lágrima que sempre chorei, lágrima dos insaciados, meu pranto, o pranto de vós todos, irmãos meus, pobres exilados do amor. Em todas as lágrimas encontrei resquícios d’alma.

A alma dilui-se e foge — em cada globulosinho d’agua espiritual há uma partícula d’alma; só não a encontrei na lágrima flumínea: é lava, é chama, é o incêndio da carne rebentando pelas crateras dos olhos. Foi a primeira lágrima de Eva. Jesus, pensando em Magdalena, verteu, mordendo os pulsos, a lágrima de fogo.

Ecce homo! — disse Jeová quando a viu nos olhos de seu filho.

Olharam-se todos. Vivo rubor subiu aos rostos macerados dos monges castos. Indignados iam amaldiçoar o morto, quando o velho abade, dobrando os joelhos, inclinando a cabeça, estendeu as mãos pálidas sobre o cadáver frio e abençoou-o. Depois ergueu-se e, voltando-se para os que o cercavam, disse, em longo suspiro, limpando os olhos murchos com a manga do burel:

— É um mártir. Orai por ele!

E sobre o corpo de Clodio caíram os versos fúnebres do Réquiem.

O RAIO DE SOL

Puro de corpo e de alma, feito homem no religioso arvoredo de sicomoros, Cvamithra, o brâmane, desde os seus dias mais novos, dedicou-se a um raio de sol que, na hora meridiana, no mais forte luzir da claridade, ficava algum tempo sobre o toro de cedro que havia à porta da cabana onde, à tarde, o moço cenobita dizia a sua oração à divina trindade, de joelhos, os braços abertos em cruz, durante longas horas, em êxtase.

Çvamithra tinha o seu pequeno raio de sol em grande amor.

Ao bruxuleio d’alva corria os silvados em busca de flores — trazia braçadas e braçadas e punha-as sobre o tronco para que o raio as sugasse quando viesse visitá-lo. Aroma, ere o manjar da luz. E mal a fita luminosa caia sobro o toro, Çvamithra punha-se a tripudiar, aos pulos selvagens, com regougos, pedindo novas do céu e de Brahma e mais das virgens que passam as noites abrindo os lótus azuis de viço secular.

Se Çvamithra sentava-se, o raio de sol saltava- lhe para o colo manso e meigo, como as serpentes que os saques magnetizam com o poder da vista.

Certa manhã, de volta das silvas, carregado de flores, Çvamithra, o bramine, vinha a cantar a rítmica sagrada dos amores de Ganga. A lenda saia-lhe tão doce e tão comovida dos lábios fervorosos, que as grandes águias bravias baixavam lentas do cimo das pedras e seguiam-no, com as asas de rasto, aos pulos, magnetizadas.

Çvamithra, cheio de reverência, erguia, de quando em quando, os olhos claros para o céu, calculando a marcha do sol, ansioso pela chegada do seu raio amigo.

E, cantando abemoladamente, chegou ao seu retiro silvestre.

Ergueu o olhar santo e, vibrando em estremecimento, boquiaberto, atônito, deixou cair os ramos colhidos aos pés de uma rapariga formosa que soluçava, sentada no tronco de cedro, inteiramente nua.

Çvamithra, a tremer, aproximou-se dela e, como falasse mal, porque as vozes únicas que ouvia eram as das aves e as das feras, raramente a de homem, tomou-lhe a mão, beijou-a; achegou-lhe a cabeça ao peito e beijou-lhe a massa negra dos cabelos, em sinal de paz.

A moça indiana contou-lhe a sua história: “Fugira a um tártaro que a raptara em Iran enquanto colhia anêmonas, longe das companheiras. Acampando à beira de uma colina, molhada frescamente por um rio fino, a caravana bárbara entregou-se à festa selvagem de um combate simulado. À hora alta da noite, como o cansaço tivesse prostrado todos os guerreiros e não houvesse em todo o acampamento homem em estado de persegui-la, soprou a lâmpada da tenda e, envolvendo-se em um alburnos, saltou para a anca de ardego ginete e partiu. Partiu sem destino, através do deserto, à luz das estrelas. Ao nascer da aurora o animal, exausto, abateu na floresta. Foi então que, ao ver-se só, internou-se e descobriu, com alegria, entre os ramais dos sicômoros, a cabana hospitaleira do brâmane.

Çvamithra, depois de examiná-la atentamente, porque jamais seus olhos se haviam deliciado na contemplação de um corpo feminino, pediu-lhe que deixasse o tronco, porque era a hora da vinda do seu raio de sol.

Meio-dia. Aves recolhendo-se. Calma abafadiça. O banquete floral servido profusamente. E o raio de sol sem aparecer.

Çvamithra desconfiava. Que teria acontecido ao seu manso e meigo amigo? Teria sido devorado por alguma estrela! Ou quem sabe se alguma das virgens, querendo-se fazer garrida, enfeitara com ele os seus cabelos negros?

Noite! E o raio de sol não aparecera...!

No dia seguinte a mesma falta. Meio-dia. Aves recolhendo-se, calma abafadiça; o banquete floral servido profusamente. E o raio de sol sem aparecer. Çvamithra entristecia pela sorte do seu meigo amigo.

Noite. Nem uma estrela no céu. Junto à cabana ardia uma fogueira. Os grandes tigres reais rugiam prolongadamente. A moça, de terror, estremecia e suspirava. Çvamithra ergueu-se e soltou um grito de triunfo, descobrindo o seu pequenino raio de sol meigo nas pupilas escuras da indiana.

Tomou-a nos braços, beijou-lhe os olhos, beijou-os repetidas vezes e a beijar, a beijar ficou até o luzir d’alva, até a hora sonora e alegre do despertar do passaredo.

Debalde o raio de sol vinha pousar sobre o toro do cedro, à porta da cabana não havia mais flores para ele, porque ninguém mais as colhia. Debalde o raio de sol clamava por Çvamithra, Çvamithra tinha dois mais brilhantes, muito mais belos, nos olhos de Andaira, que este era o nome doce da indiana.

Mas um dia, estando os dois à porta da cabana, desfolhando um corimbo de flores, foram surpreendidos pela chegada do sannyesin Haçavaira, o sabedor de todos os mistérios.

Çvamithra, o inocente, pôs-se logo de pé e foi assim que falou, apresentando Andaira ao santo solitário:

“Vinha outrora um raio de sol pousar junto da minha cabana. Dediquei-lhe todo o meu fervor, pai. Era o único amigo que me visitava. Brahma, comiserado, quis recompensar a perseverança do meu amor, e, um dia, voltando eu das moitas com flores para o meu amigo, encontrei-o transformado nesta companheira. Dei-lhe a mesma amizade e aceitei-a no meu coração”.

O velho sannyesin, casto e puro, franziu o sobre olho e, impondo a mão à fronte de Çvamithra, disse:

“A solidão mantém o espírito e garante a vida superior. A solidão é a pureza, a solidão é a inocência”. E, estendendo um gesto para o lado do Andaira núa, accrescentou com desprezo:

“Isto é o pecado. E a morte do espírito. Escolhe — a castidade da solidão ou...?”.

Çvamithra recolheu-se em meditação, cheio de terror sagrado e ia ajoelhar-se para implorar o perdão do solitário, quando viu dentro dos olhos negros da companheira luzirem dois raios através das lágrimas. Ergueu soberbamente a fronte, e, abraçando Andaira, disse resoluto e firme:

— Escolho o pecado, pai!

O sannyesin mordeu os lábios e, num movimento brusco, cheio de poder, expulsou-os do bosque.

E os dois, abraçados, tomaram o caminho verde da selva e desapareceram no bosque de cedros, onde cantavam cigarras e bengalis.

HOLOCAUSTO

No cimo da colina, sobre a alfombra aromal da relva, deitado, como a dormir, o lavrador repousa na serenidade da morte.

O corpo do ativo evocador de flores e searas ali jaz, imóvel, em oblação ao sol. Vela, em torno, sem lágrimas, a família: mulher e filho. E o cão, companheiro do finado na semeadura, na ceifa e nas caçadas, brenha adentro, estendido, com a cabeça enorme entre as patas, uiva de quando em quando surdamente, fitando os olhos tristes no céu claro.

E Ormuzd envolve o corpo em raios, prende-o na sua teia de ouro, como a aranha à mosca, consome-o, absorve-o em si transformando-o em luz, como a chama converte em claridade o óleo puro dos alampadários.

Crepúsculo. Chiam cigarras no tope das palmeiras; as árvores esmaltam-se de plumas. Regorjeia por entre as folhas a passarada a recolher-se.

Uma águia real remonta d’asas estendidas, oscila: ora ascende, ora baixa; às vezes queda imóvel e, de novo, investe ao espaço e perde-se na altura luminosa Onagros, em galopes tumultuosos, rebusnam o passam atropelando-se, precipitam-se em fuga desapoderada pressentindo os tigres que saem traiçoeiramente das cavernas e dos juncais para a caçada noturna.

E os domésticos: os bois e os cavalos, à porta da cabana, mugem e relincham chamando pelo homem, no abandono da noite que desce trazendo do deserto os carnívoros famintos.

O céu, como enorme aduar longínquo, levanta as suas tendas luminosas. O pavilhão da lua, em hemiciclo, domina o arraial aceso.

Começa a festa floral.

Anêmonas e lírios, mandrágoras e acácias, tulipas e rainúnculos revezam beijos na treva, banqueteiam-se de aromas — poesia lubrica das flores, idílio estonteante e misterioso das corolas.

Ela, a mulher viúva, adormece para acompanhar o espírito do morto.

Leva-o ao país dos gênios: sobe com ele ao píncaro de Albordj e atravessa, cantando, a estreita ponte Tchinevad.

O grande cão, pastor de estrelas, rosna, firme nas patas. Fareja-os, afasta-se e eles passam juntos, os dois espíritos amados.

Mas, na extrema do caminho, na fronteira da aurora, aparece-lhes a Virgem luminosa de asas de ouro. É bela, é forte “como um corpo de quinze anos”, alada e pura “como o que há de mais puro sobre a terra”.

A mulher abandona o esposo, deixa-o com a sua própria alma, a feitura do seu braço e do seu amor, e desce, de longe, do paraíso, ela só, somente o seu espírito, chegando à terra com o orvalho da manhã.

Acorda, deslumbrada, na colina, junto ao corpo do esposo, madreperolado de rocio, hirto e gelado. Curva-se então sobre o morto e beija-o na boca. Não exala mal: cheiro à murta e à flor de limoeiro; cobre-o um sudário alvíssimo de pétalas.

É dia. A vida recomeça em toda a parte.

Ela, pelo torpor dos membros, lembra-se da noite passada ali, ao ar livre, sem os beijos do seu amado, sem o calor da fogueira que ele acendia ao canto da casa para afugentar os espíritos errantes. O gado passou a noite nos outeiros, tresmalhado, sob a proteção dos ramos.

 O filho traz o mel e o leite em uma folha de lótus; pêssegos e figos e um pequeno cântaro d’água límpida.

Pleno dia. O sol rutila no azul.

As borboletas e as abelhas zumbidoras giram no ar em turbilhões faiscantes. Enxames espiralam e aparecem outros enxames. Não há pássaro pousado — cruzam-se em ricochete, roçam pela verdura, sobem, coleiam e desaparecem e, das fendas das pedras, bebendo a luz, camaleões papudos sacodem-se de gozo veiando com os seus dorsos a lutulenta hispidez das rochas negras.

Mais um dia de guarda—o derradeiro. À tarde, a mulher desce; desce com ela o filho, o cão por último e entram na cabana abandonada.

A desolada exclama, alçando os braços para o sol que morre:

— Ormuzd! Ormuzd! Quem há de preparar o fogo da meia noite?

— Eu, diz o filho.

— Quem há de levar ao campo os bois e os cavalos? Quem há de cavar a terra e semeá-la?

— Eu, diz o filho.

— Quem há de beber comigo o espírito de Roma, a árvore dos pomos de ouro? Quem há de semear o meu leito árido e seco como a terra onde passou a cabra do pastor ou o camelo do nômade?

O filho não murmura.

Desalentada o exausta, a mulher estira-se no seu leito de palmas semeado de flores e adormece. Sonha que um lavrador, forte como o seu esposo finado, ateia no fundo da cabana a fogueira da noite e deita-se a seu lado perfumando a sua boca com o cheiro das frutas que comera no campo. E abre os braços em sonho, procura beijos, tartamudeia, aspirando forte, contorcendo-se, toda entregue ao fantasma ideal do seu amor. E de manhã, na colina, diante do sol luminoso, murmura:

“O meu amor foi tão grande que levantou em minh’alma uma colina verde, semeada de rosas e tulipas”.

Meu luto foi maior que o meu amor: a colina ruiu, as rosas e as tulipas desfolharam-se.

Hoje toda eu vivo enterrada nas ruínas do meu amor e a minha voz é fraca como um gemido de pomba.

Ormuzd! Ormuzd! Porque me não deixaste morrer com ele, como a flor morre com o perfume?

Por que secaste o mar deixando a vida ao rio? Eu corria para ele e ele abria-me os seus braços.

Por que não me secaste a corrente para que eu não me precipitasse no vácuo?”.

ORIGEM DAS CAMÉLIAS

Um faquir centenário, que vivia a rezar, contemplativo e só, nas matas do Lahor, na véspera da ascensão do seu espírito mártir, contou a outro faquir o romance sentimental de Açaîykira:

Na hora extrema de um dia — o sol dava as costas ao mundo projetando no céu a sombra imensa do seu vulto — a noite, estando minha alma mergulhada na meditação despertou, de repente, com o barulho humano de um soluço.

As coisas não têm voz para o sofrimento e esse estridor plangente só podia sair de um coração. Desci os olhos do céu, corri-os pelo meu cenóbio e vi, como uma árvore vestida pelas parasitas, Açaîykira, enrolada nos longos cabelos, triste, desfeita, apertando ao seio, com fervor de agonia, o cadáver do filho, roxo-negro como se a noite da morte o tivesse escurecido. A mísera, para não esquecer, talvez, o roteiro do sepulcro amado, marcará toda a travessia silvestre com as suas lágrimas.

De vê-la, tão dolorida e tão solitária no seu desesperado choro, meus olhos estéreis, secos como o fruto que um sol forte aliviou do suco, ressuscitaram e a piedade quebrou as represas do pranto. E esse colírio foi bálsamo benéfico! E essa água lustral lavou muitas penas da minha alma sozinha.

Junto de antigo cedro, em baixo, rente à raiz, onde havia uma cova feita pelas bestas feras que erram por estas silvas maninhas, Açaîykira deixou ficar o fardo do seu coração e derramou copiosamente dos olhos, como de dois vasos, toda a sua agonia fundida em lágrimas. E demorou-se ajoelhada tanto tempo! Tanto! Que, se esteve a rezar, Brama, nessa tarde rubra, não pode ouvir o resto das orações do mundo. Depois cobriu o pequenino morto com duas folhas largas e partiu inconsolável, através dos cerrados matos híspidos.

No dia seguinte — as primeiras luzes da madrugada começavam a pôr em alvoroto o céu — Açaîykira apareceu. Passou por mim sem ver-me ou talvez me tomasse por um vegetal, porque a hera subia pelo meu corpo como por um tronco e os ninhos procriavam nos meus ombros — e foi direita à cova do pequeno. Contemplou-a calada e extática.

Os rios finos da mágoa, passada a tormenta, corriam serenos como a saudade; o seu peito ondulava como o oceano cansado depois de tempestade rija — toda ela era uma dor que gemia, parecendo até que a sua carne cruciada porejava lágrimas, tão abatida e tão infeliz estava na atitude dolorosa e tácita da contemplação.

Lentamente afastou as madeixas do peito, pôs em nudez os seios fartos, desperdiçados pela morte, agachou-se como para ajoelhar-se, mas todo o seu corpo procurou a terra e, de braços, à beira da cova, apolejando os peitos apojados, disse, com sentida melancolia, estas palavras tristes:

“Como deve ter fome o pequeno que deixou sua mãe! A terra não alimenta os pequeninos e, para os que ainda não falam, só o entendimento do amor materno. Sono da noite da morte, deixa, ao menos, que ele desperte para alimentar-se! Sou eu! sou eu, sua mãe!”.

E, sem mais dizer, pôs-se a espremer os peitos apojados, amamentando a cova que, para a desventurada, era o berço onde dormia o pequenino. E durante muito tempo, todas as noites e todas as manhãs, Açaîykira chegava à selva com os peitos túmidos, espremia-os na cova e partia cantando. E o seu canto apaixonado era tão comunicativo e impressionava tanto que, algumas aves, por muito tempo, depois, o repetiram, guardando na floresta um eco saudoso d’essa grande saudade.

No tempo em que costumam vir ao galho as flores, quando as velhas árvores põem nos seus mastros verdes as galas aromáticas e o lótus sagrado desabotoa, como mistério que se realiza, nasceu, junto do cedro funerário, de um arbusto que crescera, um botão de flor branco, maravilhosamente branco como o perdão de Brama ou como a paz dos santos.

Inopinado amor cresceu dentro de mim pelo arbusto espontâneo de sorte que segui, com perseverante cuidado, toda a gênese da flor, acompanhando-lhe o desabrochamento, da primeira à última pétala.

Quando, de todo, abriu-se, analisei-a. Era uma flor de leite, que outra coisa não acho com que a compare — era uma flor de leite, tão pura que nem a volúpia do aroma a penetrara, tão sensível que um raio de sol mais quente roeu-lhe a fimbria de uma pétala. Nascia da sepultura.

No começo admiti a ideia da transformação, acreditando que o cadáver fora larva d’aquela borboleta, mas apesar da irresistível muralha dos princípios, meu espírito abateu vencido.

Como sair da podridão uma candura, mesmo da podridão de uma inocência!? Jogando com estas ideias contrarias no meu cérebro ocorreu-me à lembrança a estranha alimentação póstuma de Açaîykira e então descobri com fundamento a origem da misteriosa flor sem mácula — era o leite da alucinada, leite do amor; era o sangue materno clarificado para a manutenção do pequenino afeto.

Era o leite que florescia na terra dando, em evidência sublime, o grande mistério do delírio meigo, eternizando a loucura de uma alma mártir guardando, para mostrar durante o correr de todas as primaveras, o poema sublime da alucinação do amor, forte e imperecível no coração das mães.

As camélias!... As imaculadas camélias...! Pobre Açaîykira!

RUMINANTE

Dos manuscritos de Karma, poeta do amor.

No fundo da selva ascética fluem docemente as águas brancas do Kama, o rio do amor. Vão de manso levando as folhas que caem das árvores ribeirinhas, como o tempo, que é um grande rio de águas que desaparecem no abismo final, carrega para o jamais as nossas desilusões: folhas secas que caem da árvore da Esperança.

Junto ao rio, sobre uma rocha abruta, ergue-se uma cabana: é a ermida do cenobita. Aves tristonhas povoam-na e sobre o teto agudo, de palha, derrear-se a frondosa e florida ramagem de uma grande árvore de mil anos, que em tempos acolheu propiciamente o Mestre pensaroso: Buda, quando ele desceu a aba da montanha santa para pregar a doutrina aprendida no êxtase, cheia de mistério, cheia de cordura.

Disseminados cômoros de areia marcam túmulos de solitários e por todos eles a água límpida deriva em lágrima perene, e por todos eles os bengalis desferem: ao sol, areias vivas de alacridade intensa e dulcíssimos trenos ao luar.

As areias, que os ventos revolvem, estendem-se intactas. De longe em longe o sinal de uma pata de gazela, mas pegadas humanas ninguém descobriria em todo o vastíssimo e tórrido areal.

À noite, sob o esplendor diáfano do luar, as apsaras descem dos espaços com ânforas de orvalho, com ânforas de essências, e, abrindo as finas pétalas dos lírios e descerrando as corolas tênues das rosas ou molham de rocio fresco ou aromam. Outras esparzem sonhos e enquanto os djins e os trasgos, ladrando como chacais pelos desertos, apavoram as caravanas, elas desfazem o terror estendendo nos paramos os raios de luar, porque a lua é uma estriga de linho alvíssimo que as apsaras têm na roca cerúlea do céu e d’onde tiram o tecido transparente — mais fino que os véus das noivas — que é o sendal translúcido da noite.

Apsaras e djins são os únicos seres que erram por essas paragens taciturnas e merencórias, apsaras e djins o os animais sagrados do cemitério.

Ânsias de amor levaram-me perdido por esses caminhos ermos e meus passos morriam, o rastro fundo das abarcas desaparecia, por que o vento rolava areias sobre areias apagando o roteiro para que jamais saíssem do fundo tácito e triste da selva ascética os que uma vez penetrassem o seu segredo.

Mas como meus olhos não se voltavam, cravados, como estavam, na fronde da árvore milenar, a cuja sombra meditava o cenobita da selva, não me causou pavor a traição do vento. Morressem, embora, os meus passos, para voltar a vê-la eu tinha a bússola do coração. Morressem os passos, o vento que apagasse o rastro do meu caminho, eu só me perderia se o vendaval passasse por minha alma roubando-lhe a imagem santa.

Fui por diante ouvindo os guinchos dos cinocéfalos, que gatinhavam espavoridos, sentindo-me caminhar, e por fim — baixava o sol nesse instante — dei com os olhos no solitário. Corria um sussurro pelas árvores. Pássaros aninhavam-se, outros cantavam doces reclamos e de todos os pontos chegavam bandos alvos de pombas, arrumando. E ele, debruçado sobre a água, como um corvo marinho, olhava, a fito, extasiado.

Os cabelos da cabeça desciam-lhe em filandras pelo corpo vestindo-o todo, a barba, espessa e longa, de rastro, estava toda emaranhada de silvas. Uma garça airosa espanejava-se aos pés do asceta e sobre a cabeça hirsuta e encanecida bengalis piavam tranquilamente.

Aproximei-me; ele, porém, mantendo a atitude serena, não desviou os olhos d’agua que fugia. Debalde o chamei três vezes procurando arrancá-lo ao êxtase — não se voltou, nem se moveu, sequer.

Toquei-lhe de leve a espádua. Levantou a cabeça e seus olhos fitaram-me assombrados.

Cai de joelhos e pedi-lhe que relevasse a minha audaciosa temeridade e ele, paternal e meigo, acenou para que me levantasse, indagando, com um fio de voz quase imperceptível, que duvida me levara ao seu cemitério.

— O amor, venerável Padre. Receio que a minha amada, que vive longe, esqueça-me e queria que me ensinásseis o meio de tornar eterno o amor naquele coração volúvel.

— Eterno, o amor! Suspirou o centenário e meneou tristemente a cabeça alvadia. Já vistes, por acaso, um coração, meu filho?

— Ainda não, Padre.

— Vede, pois. E tirou debaixo das longas barbas um coração que palpitava. É uma urna, vede e partiu em duas partes. Tem cem anos, talvez. Vede, está cheio completamente, mas é como um cemitério. Aqui existiu o amor. É hoje um ponto morto. Aqui existiu a ilusão, aqui existiu o ideal e ia mostrando com o indicador os pontos. São três túmulos. Mas resta ainda alguma coisa. Ah! Se assim não fosse, que seria do mísero animal...! Resta alguma coisa ainda.

Vede, vede bem. É a colheita de longos anos pelos olhos amorosos, quantos beijos e quantas palavras meigas — e pelas ilusões, quantos sonhos felizes! Enquanto moço, colhi para o inverno triste da velhice e vede: Meu coração, tem vida, pulsa como, talvez, não pulse o vosso. Amou, mas o amor desapareceu, o madrigal extinguiu-se. Teve sonhos, mas a realidade foi triste. Entretanto, vede como se alimenta, como se farta e como vive ainda.

Permiti que vos diga na frase dura de um solitário: o coração é um ruminante. Enquanto é dia recolhe e à noite, que é o tempo da velhice, rumina como os grandes bois do campo, à luz dos astros. Não acrediteis no amor! O amor passa como as águas de um rio; eterna é a saudade que o alimenta ainda e há de alimentá-lo sempre, porque os dias que passam deixam sempre uma recordação, e é isso que constitui o alimento do inverno. A saudade é perene. Amai, colhei, enchei bem o vosso coração para que, à hora das tristes neves, não pereça inanido.

“A saudade, sim: essa é que é eterna no coração, meu filho”.

Disse e escondeu, de novo, o coração saudoso.

OS REBANHOS ETHEREOS

Foi visitando uma serra, altíssima serra emaranhada e sombria, a mais alta, a mais viçosa de quantas existem no meu país, que encontrei, pela primeira vez, a decantada e meiga religião da velhice.

É um culto feito de veneração e de amizade, não só pelos alquebrados anciãos, mas por toda a velhice. Respeita-se o mendigo de cabelos brancos e respeita-se a árvore centenária, por ambos passaram os séculos; em uma as neves não se demoraram, refloresceu à nova primavera, outros, porém, ficaram como geleiras e andam no mundo, vindos de outro século, como estrangeiros, tímidos, procurando na terra o lugar de repouso.

As árvores resistem mais à ação dos anos; é que nelas trabalha o tempo apenas. Ventos roubam-lhes folhas, enxurros d’agua desnudam-lhes as raízes, as árvores, porém, vivem sem coração, vivem sem alma. Tivessem alma e coração as árvores e tanto não resistiriam.

Ter amor...! Ter saudade...! Os vendavais que vos despem, árvores antigas, não valem os que nos vergam; quem vos substitui as folhas chama-se Primavera, e a nós quem nos substitui as folhas chama-se Desengano. Morreis com a vossa verdura, porque a vossa velhice é uma bátega de outono, as folhas renascem logo e em nós também renascem folhas verdes: morre uma ilusão, aponta uma esperança, mas as esperanças são como as estrelas: brilham, mas não trazem luz; lindas, mas ninguém as alcança.

“Velhas árvores... bem felizes sois!”

Tais palavras ouvi a um dos veneráveis pastores da serra. Esse, o mais velho, talvez, dos que ali vivem, é o que mais sabe e o que diz toda a gente cumpre e observa. Ouvi-lo é o mesmo que ler um livro antigo. Fala vagarosamente como se lhe custe trazer do fundo da memória antigas recordações de antigos casos. Mas, ainda assim, pela ciência que possui do mundo, é grato ouvi-lo e quanto se aprende nas suas palavras lentas e cheias de sabedoria!

A mim contou-me, entre mil coisas várias, coisas próprias de gente montanhesa a lenda dos rebanhos etéreos.

Fútil parecerá, talvez, aos espíritos de hoje, educados austeramente pelos métodos. Quem demorará o roteiro para ouvir, no calado campo, soar gemente e suave a doce avena de um pastor? Ninguém, de certo, até farão mais rápidos os passos para que nem os ecos lhe cheguem amortecidos. Namorados, que tendes a alma predisposta à meiguice, se vos surgisse em meio do caminho um velho como Filetas que vos quisesse falar de amor...? fugiríeis a rir, como os pastores fugiam quando lhes aparecia, coroado de pâmpanos virentes, Sileno, cambaleando, encostado ao jumento.

Sim, a frase do idílio passou — foi-se com os deuses. Felizmente, porém, há sempre no mundo um bando de retardatários. Eu pertenço a esse bando e vós, que dele fazeis parte, ouvi-me que, em poucas palavras, vos direi o que ouvi do ancião.

Para ser mais breve, evitando, quanto possível, frases vãs, sabei que o céu é um campo e os pastores nesse campo: o Inverno e o Estio.

“Ao tempo em que saíam pelo aprisco do oriente as ovelhas douradas nossos maiores chamavam — Estio. O céu, preparado por uma zagala, a Primavera, resplandece, irradia. Ela, amorosa e meiga, mas sempre fugitiva, sai a recolher as derradeiras neves para que o seu amado pastor caminhe sem regelo e sem muralhas frias do avalanches. O céu está cheio de ovelhinhas de ouro. Vede, carda-as um pastor, o mesmo Estio e a landoirada vem caindo. Toda a campina está cheia; montes, vales, rios e cavernas, folhas e flores, em tudo, em toda parte há flocos.

Vede, mesmo na pupila azul de vossa amada, dentro do vosso próprio coração, em toda a parte. Nas mesmas noites de verão parece que ficam no céu flocos esquecidos. Mas lentamente, paulatinamente o rebanho do Estio vai sumindo e alguém surge no céu.

Quem é que põe um véu de neblina à madrugada? Quem é que torna as noites tenebrosas? Andam ventos gemendo e as folhas gemem, gemem e começam a desfalecer nos galhos. Por que é que as ovelhinhas louras andam tão arredias?

Nos campos começa a faina — recolhem-se os frutos, colhem-se as derradeiras flores. Porque andais tão depressa pelas ceifas, porque tamanha aza- fama, ceifeiros? Não aparecem mais as ovelhinhas louras e já não cantam calhandras nem cigarras. O céu torna-se branco e os dias tristes. Que é feito de ti, pastor Estio? Gemem ventos nivosos. E a porta do ocidente, merencório redil de ovelhas brancas, abre-se de par em par.

Enche-se o céu de ovelhas brancas, vede: car-da-as um pastor, o Inverno, carda-as e a lan diáfana vem caindo. Toda a campina está cheia; montes, vales, rios e cavernas, em toda a parte há flocos. Vede, mesmo na pupila azul de vossa amada, dentro do vosso próprio coração há um floco: a melancolia. Durante a noite, ficam no céu flocos esquecidos e tudo parece morto, abafado.

Não há flor nem pássaro. O vento canta a elegia — e a sua voz é a única que se ouve. Mas lentamente, paulatinamente, a zagala florida vem surgindo. Ouve-se cantar o rouxinol e vão sumindo as ovelhas merencórias. Surge uma loura, e uma flor desabrocha; outra, e uma estrela cintila e, pouco a pouco, vêm aparecendo todas as ovelhas louras do rebanho estival. E reacendem-se os dias luminosos.

Mas — e direis com justa curiosidade — como aparecem dias como o de hoje, de sol, em pleno inverno? Sois muito novo ainda e nunca fostes pastor. Se alguma vez tivésseis visto o tresmalhar de um rebanho não vos causaria espanto ver dias de sol em pleno inverno.

Que diríeis se estas ovelhas que pastam fossem juntar-se àquelas que além bebem? Diríeis que tresmalharam. É justamente o que acontece, às vezes, com as ovelhas do Inverno e com as do Estio: encontram-se no céu e os dois pastores lutam, fica o dono do campo — se é dono o Inverno, ficam os dias tristes; voltam os dias de luz se é dono o Estio.

Vede como escurece. As ovelhas douradas vão fugindo. Fechai vosso gabão e recolhei-vos que vão cair os flocos da invernia. Vinde, vinde que é tempo. Aí vêm os rebanhos e os pastores. Começa a neve a cair. O Inverno volta a cardar as suas ovelhas tristes...”

Como veem, nada mais simples. Não vos agrada, espíritos do século, mas não escrevi para vós e sim para os que acham encanto na poesia.

O ESPELHO

Ruge no alto da torre o elifante da sentinela e, como se outras houvesse, ocultas no espesso arvoredo dos vales e dos pendores, o som repete-se esmorecendo na distância.

O sol brilha a pino, refulgindo no ouro dos trigais maduros, cintilando em pepitas trêmulas nas vivas águas alegres, que saltam e espumejam sobre as alpondras do rio.

Trabalha o vilão nos campos, uns à ceifa, outros carregando. Vão pelas trilhas lentamente, como se por si mesmas se levassem, médas enormes e só quando chegam às eiras é que se lhes vêm os condutores, robustos campónios que, arriando a colheita, passam de raspão na fronte a manga do casaco, enxugando o suor. E riem felizes, porque o outono é próspero.

Do colmo dos casais esfia, em espiras leves, o fumo azul dos fogões e os enormes molossos, que acompanham os senhores nas surtidas de guerra, ladram furiosamente correndo ao longo das cercas, investindo às sombras dos corvos que rastejam na erva.

Além, beirado de álamos e cintilando ao sol, o rio desliza meandroso. E a planície alastra em lavoura e pastura até a raiz do monte, um teso encristado de pinheirais, culminando no castelo forte, de altas muralhas ameiadas e tão à beira do abismo que a sombra se lhe projeta pelas rochas nuas amontoadas em desordem pelos flancos do monte, ora em penhascais sobrepostos, ora em cavernas esfuracadas como enormes úlceras.

É o solar chamado O ninho da Águia, celebrado e temido em toda a Touraine pela rijeza impenetrável dos seus muros e pela feria brava e inclemente dos seus guerreiros. Quantos assédios começados com alardo arrogante de tropas atrevidas e poderosas machinas, prolongando-se por aturados meses de tentativas vãs, haviam findado em desbarato ao ímpeto de improvisa arrancada dos sitiados!

E, vencida a batalha, com os foragidos acuados nos lameiros atoladiços, só cessava a matança quando não restava um só vivo da hoste que ousara acampar nas terras daquele que não conhecia a misericórdia. Então soavam os olifantes e, com as lanças altas e os pendões desfraldados, Tancredo, cognominado o Águia, recolhia ao castelo.

O lidador formidável, cuja fama corria os longos da terra em cantares heroicos de jograis, era homem de grandes forças e gênio áspero.

Taciturno, era raro sair em cavalgada senhorial correndo as terras do seu domínio e no castelo, os próprios oficiais da sua nobreza e privança, só o viam em conselho e sempre severo e armado.

A barba começava a tingir-se-lhe de fios alvos, os olhos duros, de ave de rapina, como que se lhe iam escondendo no espesso bosque das sobrancelhas e a sua voz grave, cava, soava lenta e cavernosa no mando, e sempre irrevogável.

Ninguém jamais o vira sorrir e, à noite, quando todas as luzes apagavam-se e a massa brutal da torre desaparecia na treva, um talho de claridade cortava a escuridão — era a seteira aberta no aposento em que velava, debruçado sobre fólios, o invencível e inexorável castelão.

Só lhe conheciam uma fraqueza: o amor da filha, lembrança mimosa que lhe ficara de uma ventura que a Morte não consentira durasse mais do um ano, porque a levara em troca da pequenina vida que ele trazia desvelada, tanto ou mais que a Honra, entre as paredes de pedra daquele solar de guerra.

Cabisbaixo, de mãos às costas, Tancredo mede a lentos e largos passos o terrapleno encandecido ao sol do meio dia.

A luz intensa afogueia os campos louros, rebrilha nas folhas lustrosas, faísca em escamas de ouro n’água e vibra tremulamente no ar em névoa fulgida como a transpiração das coisas. Corvos voam alto, em círculos. Ouve-se, no silêncio cálido, o áspero, longínquo rangido de um carro boieiro.

Tancredo cisma — crispa-se-lhe a face e, nervosamente, a sua larga mão direita torce, retorce a barba que se lhe espalha no peito. Para um momento, pensativo.

Súbito, apruma-se, levanta orgulhosamente a cabeça. Os olhos acendem-se-lhe, brilham numa visão de guerra. Recorda-se do último cerco que sofreu e da investida em que saiu desmantelando o acampamento inimigo e a batalha tão bem ferida, o destroço da gente afrontosa; depois combates nos campos, perseguições nos bosques: aqui um duelo, além um bando que se entregava de joelhos, mãos postas, pedindo a vida e logo as lanças entrando a fundo nos peitos descobertos, as espadas tinindo nas couraças, as achas de armas abopando elmos e capacetes e a grita. E uns que se atiravam nos tremedais, outros que se despenhavam em abismos, e o glorioso tumulto da sua gente em vozeirada bravia.

Mas uma doce voz reclama-o, tira-o das recordações ferozes. Volta-se de golpe o dá de rosto com a filha que viera com o mesmo silêncio com que a luz avançava.

Toda de alvo, com duas trancas louras irradiando da coifa a pino, a donzela sorri encarada no guerreiro, cuja fisionomia se abrandara instantaneamente como refletindo a meiguice do olhar azul que o envolve. Adianta-se e, estendendo os braços, toma entre as mãos calejadas pelo guante a cabeça graciosa da pucela, beija-a na fronte e, acolhendo-a carinhosamente ao peito, interroga-a:

— A que vens, Ariela? Se tinhas algo a pedir-me porque me não mandaste o teu desejo por um pajem ou servo evitando, assim, expor-te ao sol que murcha as folhas das árvores e cala os passarinhos?

— Quis eu mesmo falar-vos e assim o meu desejo irá na minha própria voz ao vosso coração, enquanto meus olhos contemplarem o vosso rosto. Sei que o dia de hoje, apesar de todo o esplendor do sol que o ilumina, enche-vos de treva a alma. Mas se a morte o fez doloroso houve nele também a alegria de um nascimento. Lembrais-vos do enterro e esqueceis o berço que aqui ficou.

— Sim, sim. Nascestes da sua morte, disse o castelão. Fala. Que desejas como brinde no teu aniversário? Queres que dê liberdade aos que gemem nos ergastulos? Queres que distribua trigo aos pobres, que mande ao presbítero uma bolsa de esmolas, que me enfraqueça em perdões a vis e em caridade com inúteis? Dize, e, como disseres, assim farei para teu agrado e para que Deus te conserve, com a vida, a graça e a formosura.

— Senhor, peço mais do que obras de misericórdia: exijo o cumprimento da vossa própria palavra, que é Honra que trazeis sempre levantada.

— Fala! Disse o guerreiro.

— Era eu pequenina quando, certa vez, pedi que me consentisses mirar-me em um espelho para ver o meu rosto, o sorriso que nele se abre, a cor dos meus olhos com a luz que os ilumina. Recusastes à criança o que vos parecia impróprio da sua idade prometendo, porém, consenti-lo logo que ela chegasse aos dezessete anos. Aqui me tendes exigindo o cumprimento da promessa e, se ainda insistirdes na recusa, ficarei certa de que sou de rosto horrendo como as bruxas que voejam à noite em volta dos torrões do solar.

 — O espelho... Murmurou o guerreiro. E a donzela respondeu-lhe com um sorriso.

Tancredo caminhou pensarosamente até as ameias e, repuxando a barba longa, ficou-se a olhar o horizonte luminoso, como a pedir conselho aos céus claros. Súbito, voltando-se, disse resolutamente:

— Cumpra-se o que prometi. E é natural e justo o que pedes, para que não sejas tu a única a desconhecer o que para todos é um encanto. E fizeste bem em procurar-me aqui fora, porque temos diante de nós o único espelho fiel, que é o sol. Nele convém que primeiro te vejas, porque só assim conhecerás o direito da tua imagem antes de a veres pelo avesso na lâmina polida. Olha a claridade. Que vês nela, diante de ti, em negror?

— A minha sombra.

— A tua verdadeira imagem. Sombra, eis o que todos somos. Não te iludas com a lisonja. A lâmina polidamente como a palavra do adulador. O espelho fiel é a luz. Quero que te contemples demoradamente ao sol para que te conheças bem. Tudo que vês em volta de ti reduz-se a sombra. Só a luz existe e empresta vida e beleza ao que ilumina, fazendo, porém, sair a verdade dos corpos, como quem espreme uma esponja escoando o líquido que a encharca. Aí tens a tua imagem ao sol. Que é ela? Um pouco de escuridão tisnando a claridade. Juventude e velhice, frialdade e beleza, alegrias e pesares, miséria e fortuna, glória e ignominia, força e impotência, covardia e temeridade tudo se resolve em sombra. Aí tens, diante dos olhos, duas: uma, partida do teu corpo juvenil e formoso, outra projetada pelo meu corpo envelhecido. Descobre nelas a diferença — são iguais, invariáveis porque são eternas. Deus, para que não nos esquecêssemos da nossa origem, deu-nos, por companhia, a sombra de que saímos. Eis o que és em verdade. Agora vai à ilusão, à mentira efêmera; vai à lâmina de prata na qual se reflete a vaidade. Não te fies, porém, na imagem que sorri, mas na sombra, impassível como a Eternidade.

Ariela, que ouvira sem intervir com um gesto, sequer, nas palavras do lidador, levantou, por fim, a cabeça e, sorrindo, insistiu no que reclamara:

— O que me mostrais ao sol será a verdade, como afirmais — e essa conheço-a eu desde que vivo, mas o que desejo vê é justamente o que, até hoje, me tendes ocultado. Há sempre alguma coisa além do que os nossos olhos alcançam. A verdade está perto de nós, a ilusão sempre longe. Feliz do que pode atingi-la e gozá-la, ainda que seja por um instante. E é essa instante que vos peço para dar aos olhos, sempre fitos na tristeza da sombra, que é a morte, um pouco da ilusão efêmera da vida.

INFANTE

Curioso daquele sonho lírico entrei na vereda que rompia a mata guiando ao palhal onde vivia Lídio, o moço, enlevado no amor da mocidade.

A trilha agreste, tão raras vezes percorrida, forrada de musgo fino, por vezes desaparecia em mato. Nos altos ramos do arvoredo, colgados de cipós dourados e de parasitas floridas, era incessante o voejar de pássaros e de insetos. Vozes cochichavam na espessura, vozes alegres, como de crianças que brincassem, combinando traquinices, logo, porém, pelo brilho que atraiu meus olhos, compreendi que o ruído risonho era de um córrego que defluía por entre pedras vestidas de limo.

Que frescura balsâmica! Aqui, ali um nimbo, um disco avaro, um raio de sol cortando em diagonal a sombra.

Eu seguia vagaroso, guiado pelo caminho quando, de repente, achei-me, como por encanto, diante das ruínas de uma cabana. Cabana? Era um cubo enorme de verdura porque as ervas, entrelaçando-se nas ripas, tão densamente se haviam tramado, que as paredes desapareciam e assim também a coberta, que era toda um verde, folhudo estendal florido, e, afogado nesse quadro vivo, jazia um grande velho, alto, magro, um esqueleto coberto de farrapagem, barba imensa e amarela espalhada pelo peito com o mesmo viço profuso com que os matos lhe envolviam a residência.

Olhava extasiadamente, como enamorado de alguma coisa que só existia para os seus olhos.

Aproximei-me. Não deu por mim. Falei-lhe. Vi-o tremer, como assustado. Olhou-me, pôs-se de pé, chegou-se a mim encarando-me rosto a rosto e disse-me, em voz misteriosa:

— Rezo. É a hora em que a alma desperta no coração. A missa da saudade começa ao cair da tarde, com o coro tristíssimo das lembranças. Rezo ao amor que não morre. É a hora do idílio. A lua não tarda seguida das estrelas brancas. Quando ela aparece no céu a terra toda se cobre de açucenas, é ela que as espalha. São as flores do seu noivado, lá em cima. É a hora dos noivos. Não tarda a minha hora e Beatriz não tarda.

Perguntei, tomando-lhe nas minhas as mãos magras, que gelavam:

— E onde está Beatriz, a tua noiva?

— Onde? Pois não a vedes? Onde! Mas em toda a parte: aqui, ali, além, na terra, no ar, no céu. Canta. Prestai atenção ao canto apaixonado.

— É um pássaro que canta.

— Pássaro...! É o espírito, a alma de Beatriz que canta e o que diz só o meu coração entende. Quereis que eu vos repita as palavras do canto alado? “Amo-te muito, Lídio. Amo-te hoje como te amei na hora primeira em que nos vimos, na hora eterna do nosso primeiro encontro, quando os nossos olhos trocaram o primeiro olhar”.

Um instante! As silvas tremem, as ramas agitam-se e trescalam. É ela que chega. Silêncio! E, baixinho:

— O amor é a alma do coração e a alma é imortal! Silêncio! Ei-la que chega! Ei-la aí.

— Mas o que me mostras são os derradeiros raios do sol.

— Os derradeiros raios do sol! Como vos enganam os olhos! São os cabelos louros de Beatriz.

Fez-se uma longa pausa. O velho, de olhos extasiados, avançava de braços estendidos, lábios trêmulos, beijando o aroma sutil da noite, abraçando o seu próprio peito com extremoso carinho, a murmurar, de quando em quando, palavras de ternura lírica. Depois veio para o meu lado saciado de gozo imaginário e, num suspiro profundo, cheio de amarga tristeza, disse como a si mesmo à sua grande saudade:

— Amor!

Sentou-se e encarou-me confiado.

— Que idade tens? Perguntei.

— Eu? — e tranquilamente: — Quinze anos.

— Quinze anos com todos esses cabelos brancos!

— Vivo ainda como no tempo dos meus quinze anos. Ela andava por toda a parte — ora nos campos, entre os segadores; ora nos outeiros onde floresce a rosa silvestre; ora à beira dos claros ribeiros mansos, sempre longe de mim. E agora? Agora está sempre comigo e eu vejo-a como outrora quando ela tinha doze anos e sinto-me ainda o mesmo menino Lídio. Não sei que valem anos quando a gente os passa junto do amor.

A idade!... Pouco me importa a idade. O tempo não devasta o coração. Todos me julgam velho e eu sinto bem que tenho os mesmos quinze anos de outrora. Vede, são meus cabelos brancos... Acreditais que um terreno estéril e fraco produza cabelos com este viço? São brancos, dizem todos. Tenho os cabelos brancos. Mas a lua? Quando eu tinha quinze anos a lua era pálida como Beatriz.

Teria a lua envelhecido? Estarão caducas as estrelas? Entretanto a lua tem os raios brancos como os meus cabelos. Ah! O amor! O amor é justamente como a lua. Quem sabe se ela não é o coração da noite?

A lua é sempre nova, mas olhai para os seus raios — são brancos como a neve. A lua e o céu! Beatriz e eu! Velho! Por quê? Que tem que se engelhe a casca do fruto se a polpa se conserva pura e sempre fresca? A carne é a roupagem da alma. Eu vivo arrastando andrajos até que os deixe no vestiário do túmulo. A mim parece que, abatendo para a terra, trocarei a minha velha investidura, por uma túnica levíssima de plumas e sairei de novo para o mundo cantando o hino glorioso do meu perpétuo amor.

O corpo do rouxinol é, de certo, o veículo da alma dos que morrem apaixonados, porque o gorjeio é um beijo sonoro. Hei de morrer moço. Hei de morrer Lídio, o infante, porque meu coração é o mesmo ainda.

Envelhecer é passar da mocidade, é perder de vista a esperança, é descrer do sorriso, é esquecer o ideal. Eu não passei por nenhum de tais tormentos — sou o mesmo ainda. Vamos contar as pulsações dos nossos corações — são as mesmas, batem pancadas iguais.

Mas silêncio! Silêncio!... Ai chega Beatriz.

 Como há luar no céu haverá hoje luar dentro do meu coração. Silêncio! É a hora do amor! É a hora do amor!

E caiu de braços sobre a relva, hirto, os braços apartados, os lábios franzidos num derradeiro beijo desvairado.

RITORNELLO

Velha ermida, tem cem anos. Há mais de um século que é a mesma assim: branca, alvejando ao sol, com a sua torrezinha esguia, onde oscila um sino, não sei se o mesmo que anunciou aos mortos de hoje em dia, crianças nesse tempo, a primeira missa no pequeno altar.

Cercam-na mangueiras frondosas, de cem anos talvez, talvez de mais.

Outras capelas surgem nas aldeias próximas, muito maiores, muito mais formosas, entretanto as pombas e as andorinhas dão preferência à velha ermida branca e vem gente de muitas léguas d’além batendo as terras áridas dos vales com os bordões das jornadas, ouvir as rezas que o vigário tartamudeia, quase cego, trêmulo de velhice. Quantos anos? Ninguém sabe ao certo.

O rio corre ao fundo, por entre matos floridos; em cima é bebedouro.

É tão puro, tão límpido, tão alvo, que o sacristão, de vez em quando, vai nele buscar a água com que enche as pias.

Água mansa que dessedenta e purifica, água que banha e escachoa nos moinhos, água que leva as barcas e as ninfas, essa mesma batiza, há cem anos, na aldeia, desde que alveja entre os alourados campos a torre onde bimbalha o sino o onde as pombas rolas arrulham.

Nessa manhã do junho, fria, velada pela musselina brumal, sem sol ainda, dois velhinhos descansavam nos degraus da ermida. Ela trazia o rosto embiocado; ele, com a cabecinha branca ao vento, vestia um casaco de pano grosso e escuro. Chegaram juntos.

Caminhavam desde meia-noite — tinham os pés brancos da poeira dos atalhos e as roupas lantejouladas de rocio.

Imóveis e calados como estavam pareciam mais dois santos que tivessem descido dos altares para ficar de guarda ao templo campesino. Não faziam o mais leve movimento.

As cabeças paradas, os olhos fitos nas montanhas longínquas, esfumadas pela garoa leve e tênue, braços cruzados, o cajado aos pés, não balbuciavam. Estavam ali como dois êxtases.

Ao fundo murmurava o rio. Asas tatalavam no alto e o azul emergia da neblina alumiado, resplandecente. Vinha sol à terra; já nas roças havia gente a mourejar e das cabanas subia leve, em espiras tênues, o fumo azul.

Claro dia. Um raio de sol baixava em frecha sobre a torre. A frontaria da ermida e as naves fulguravam douradas. Soava docemente no ar sereno o estribilho de uma cantiga, muito vago, mas quem conhecia o tom compunha a estrofe. Era a moda dos “Olhos negros”. Começava:

“Deus do céu, Senhor meu Deus!”

Que olhos negros tão fatais...

E rematava:

“A própria Virgem Maria Não linha uns olhos iguais...”.

O velhinho, voltando a cabeça, já encontrou o olhar meigo da velhinha. Sorriram. E a cantiga sempre ao longe, no frescor matinal dos campos.

— Quem será? Indagou a velhinha agitando a cabeça dentro do bioco. Quem cantará?

O velhinho encolheu os ombros sorrindo, acenou balançando a mão trêmula na direção do campo; e suspirou:

— Vai para oitenta anos!

— Oitenta anos! Disse a velhinha sem tristeza. —Lembras-te? Ainda não éramos noivos.

— Ainda não éramos.

— Faláramos somente, uma ou duas palavras no correr do serão. Vestias uma saia de ramagens e trazias uma rosa vermelha no corpete.

Encolheram-se, baixaram as cabeças. Por fim o velho disse:

— Fizeram-me cantar. Improvisei.

Olharam-se e as pupilas quase extintas tiveram um relâmpago de malícia.

— Fingiste não perceber, disse o velhinho, raspando a terra com o cajado.

— Bem que percebi.

Calaram-se e a cantiga, mais próxima:

“A própria Virgem Maria. Não tinha uns olhos iguais”.

— E não tinha, disse o velhinho.

A velhinha, sacudida pelo riso, foi-se levantando tremulamente.

— Onde vais?

— Quero ver quem canta. Anda ali pelas terras de traz. A voz é de moço.

— Quero ver também.

O velhinho ergueu-se levando a mão em pala à altura dos olhos.

— É um rapazola. Eu não disse?

— Vai carreando. É carreiro. Quem será?

O velhinho, por sua vez, encolheu os ombros, sempre a olhar, mudo de enternecimento.

“A própria Virgem Maria... Disse no estribilho o cantador. E o velhinho, muito baixo, passando a mão pelos ombros da velhinha, atraiu-a docemente e terminou a quadra”.

“Não tinha uns olhos iguais.”

Sentaram-se calados. O tom da cantiga foi morrendo ao longe e o silêncio caiu, apenas interrompido pelos chilros da passarada.

Subitamente a porta da igreja abriu-se do par em par e o vigário, assomando na soleira, não conteve um grito de indignação:

— Eh! Corja!

Os velinhos estremeceram, e apartaram-se.

— Então, que é isto!? Aos abraços aqui diante de Deus...! Vendo, porém, a figura do velhinho e o rosto encarquilhado da velhinha, desatou a rir, andando com o olhar de um para outro.

— Pois ainda!... Ora, sim senhores! Olhem que já lá vão velhíssimos anos! Até me parece que vocês casaram por aí, ao ar livre, à sombra das árvores. As pedras da ermida dormiam ainda na rocha de onde vieram. Não se me dava jurar que foi o próprio Deus quem vos casou, porque não havia padres nesse tempo. E desatou a rir.

— Eh, eh, eh! Fez o velhinho. Olhe que somos da mesma idade, reverendo. Bem bons anos, bem bons anos...! O Sr. vigário era um rapaz e foi o primeiro casamento que fez.

E o vigário, dando a mão a beijar, sempre a rir:

— Pode ser, disse; já me não lembra. E, batendo de leve no ombro do velho:

— Mas então que foi isso hoje...? Amanhã, o bom sol ou as travessuras dos pássaros, porque andam delirantes, os patifes...? Que foi isso...? E, para a velhinha: Hein, velhota, que foi?

— Foi uma cantiga do bom tempo, senhor vigário, disse o velhinho estalando os dedos. Uma cantiga do bom tempo.

— Uma cantiga que ele fez aos meus olhos, quando noivo; disse a velhinha baixando a cabeça e torcendo as franjas do chale; e cantou baixinho:

“Deus do céu, Senhor meu Deus...”.

E o velhinho risonho:

“Que olhos negros tão fatais...”.

— Ora! Não conheço eu outra coisa! Exclamou o vigário. Por sinal que acaba com um formidável sacrilégio.

E os três, juntando as cabecinhas brancas, cantaram, como só balbuciassem um segredo para que os santos, lá dentro, não ouvissem:

“A própria Virgem Maria Não tinha uns olhos iguais...”.

O MENTIROSO

Abril, em pleno viço, enflorescia as devesas e os labirintos de verdura, silvas a dentro, montes acima, em luxuriante vigor paradisíaco.

Pontilhavam os caminhos silentes as campanulas trêmulas das alamandas, e as boninas, rentes com a erva do pasto, abriam-se alacremente ao sol.

Dlin, dlin, dlin por entre as ramas. Dlin, dlin, dlin, pelos emaranhados carreiros úmidos de orvalho. E balidos à beira d’agua, por cima das pedras, aquém e além, o ar cheio do sonoro dlin dlin, que repercutia em trêfego ressoar de cincerros de latão.

Dlin, dlin, eram carneiros que cabriolavam por entre sebes intensas, na alegria comunicativa da manhã luminosa.

Lanzudos, de cornos retorcidos, mansamente abriam a marcha os mais velhos. As ovelhas, com os úberes cheios, pojados de leite, atrás, a trote campanulando: dlin, dlin, acompanhadas dos borreguitos brancos e malhados, muito novos no campo: cinco e seis dias de nascidos, com a tripinha do umbigo dependurada ainda, seca, como um cipó de silvas que se lhes tivesse agarrado ao ventre.

Iam seguindo em tropel, com um guizalhar bucólico: dlin, dlin, dlin, e o zagal, que era uma criança, cajado ao ombro, flauta à cinta, acompanhava-as vagarosamente trauteando a canção lírica da montanha que, em toda a redondeza de serras, é o hino pastoral de quantos tangem gados.

Albano era o seu nome; profissão, zagal. Desde que pode vencer os ásperos pendores e galgar, de pino em pino, as rochas das alturas, deram-lhe um rebanho.

Nas eiras e nos montados, em noites brancas de luar, a sua fraguita de cana brava repetia a música dos trovares montesinos. E como vinham ouvi-lo moças e labregos...! Mas que não falasse, que não falasse aos que o cercavam nas eiras e nos montados em noites brancas de luar.

Que não se lembrasse de narrar por que, de tantos sonhos que fazia, falando era um discorrer de fantasias: — bruxedos nas covas fundas das montanhas; moças que vinham cantar à tona d’agua, embrulhadas em algas e em cabelos; estrelas que baixavam luminosamente e vinham correr, como peregrinas, os ínvios vales tristes; arvores que gemiam; ninhos que balbuciavam e outros fabulários, dentre os quais avultava a lenda dos ritmos — pedras colossais, roladas pelo dilúvio, que, durante as noites negras, troavam estrupidantemente no recôncavo de uma grota, em compasso tetânico, marcando o tempo macabro da ronda cabalística das bruxas.

Oh! A lenda das pedras, que um velho pastor, encanecido a errar pelos cimos, derrocara, explicando com um sorriso malicioso:

— Sim, a roncaria é medonha na montanha. Quem não conhece a coisa treme e foge. Colhido pela noite, sem tempo de ganhar a vertente, uma feita adormeci no planalto da serra. Em meio do sono despertei sobressaltado com estranho rumor. O cão, de orelhas hirtas, pelo eriçado, ouvia; as ovelhas, de pé, muito apertadas, tremiam.

Para abafar os terrores do meu espírito e pacificar os bichos, fui de canto em canto, saltando de rocha em rocha, alumiando com a minha lanterna o caminho pedregoso e vi e comigo os animais, vimos todos a causa do rumor estranho — águas de um rio que tomba nos fragueados, uma catadupa, Albano, águas de Deus, zagal. Nem danças de bruxas, nem pedras troando.

Essas e outras refutações valeram ao pobrezinho a fama de mentiroso.

Que fizesse soar a sua flauta, todos ouviam-no calados, mas que não falasse, porque, às primeiras palavras que dissesse, entravam a rir, a gargalhar, dizendo por entre as voltas do riso:

— É mentira! É mentira! Meu Deus! Que grande mentiroso!

Sucedeu que, certa manhã, extraviando-se uma ovelha do rebanho de Glafira, procurando-a a zagala pelo monte, seguindo os trilhos dos pastores, foi encontrar Albano deitado à sombra de um carvalho antigo.

Tão entretido estava consigo mesmo que, para senti-la, foi preciso que a pastora lhe falasse:

— Albano...! Albano, não viste passar minha ovelhinha branca?

A resposta do zagal foi um sorriso.

Ergueu-se, tomou as mãos da formosa pastora e partiu com ela a cantar, embrenhando-se pelos touceirais.

 Em uma charneca a ovelhinha perdida balava sentidamente. Tomou-a a pastora ao colo, beijou-a agradecendo a Albano, e ia para deixá-lo quando sentiu-se presa.

— Que queres de mim! Que me queres, zagal?

— Amo-te, Glafira. Não é por outra que vivo nem é por outra causa que rego as minhas noites de lágrimas. Olha, toda a montanha sabe o teu nome. E pôs-se a mostrar o nome da pastora gravado em todos os troncos. Criamo-nos juntos, e minh’alma de tal modo afeiçoou-se à tua que, quando estás longe, é como se eu estivesse longe de mim mesmo. Sê minha! Sê minha! Amo-te tanto, Glafira!

E caiu de joelhos beijando apaixonadamente as tranças da zagala.

Glafira desatou a rir.

— Ris... Ris de mim? Eis porque me vês de joelhos...?

— Não...! E o riso redobrou ferinamente irônico.

— Por que ris então...?

— Rio da tua graça. Ah! Como vão rir lá em baixo os moços das herdades. Não apareces mais para os serões nas eiras. E a história das pedras troantes!? Amas-me? Muito? Muito!?

Com os olhos úmidos postos nos olhos da pastora, Albano balbuciou apaixonadamente:

— Sim, muito! Muito!

— Ama-me! E deixando cair a cabeça, rindo, rindo, partiu a correr com a ovelhinha nos ombros, enchendo os bosques sossegados com a sua voz cristalina:

— Que mentiroso, meu Deus! Que incorrigível mentiroso!

O PARAÍSO

Manhã de inverno.

Gélido, o monte emergia da névoa de todo nu e tácito.

A choça abriu-se e apareceu no limiar, amontoado de neve, o casal montesino. O homem trazia uma enxada ao ombro, a mulher apertava ao peito o tenro corpo do filho, mais frio do que a própria neve, de mãos postas, pálpebras entreabertas e um sorriso na pequenina boca, eterno como se também a morte o houvesse imobilizado. A luz d’alva hibernal, indecisa e tristonha, coava-se através das nuvens grossas e o casal lentamente, calado, descia pelas trilhas munidas — ele, de olhos baixos; ela, fitando o céu.

Entre as grotas fizeram uma parada.

— Aqui! Disse ele descansando a enxada. Ainda há flores. Esta terra é a mais agasalhada; pode ser o seu berço. Deixemo-lo ficar aqui, disse. E olhando o cadaverzinho: “Pobre filho!” suspirou.

E a mulher, apertando o corpo inteiriçado, suspirou como o homem: Pobre filho!

E a enxada caiu na terra molhada.

A pouco e pouco ia-se abrindo o túmulo e a mãe olhava. Era ali que o pequenino morto ia ficar. “Noites de inverno, noites de frio passarão por cima do seu corpo”.

— Mas nascerão rosas e violetas, tornou o homem, cavando.

Pronta a cova, não teve a mãe ânimo de entregar-lhe o filho, dizendo entre beijos alucinados:

— Filho meu! Filho meu! E o cavador, com os olhos inundados, soluçava passando a mão pelos cabelos finos do pequenino e gélido cadáver. Mas era preciso deixá-lo.

— Não! Não! Bradou a mãe, atirando-se de joelhos: Não! Não! E, beijando a terra revolvida, disse, por entre lágrimas:

— Cova, deixa-me o amor, não me arrebates a alma.

Terra, tu que tens tantas flores, não me queiras levar o lírio que nasceu dentro do meu coração. Ser boa, terra mãe, ser compassiva. Deixa-me o lírio do amor, deixa-me o filho!

E no fundo da cova uma voz ressoou:

— Mãe, o que me pedes é impossível. Não sou eu quem mata. Vai aos longínquos termos merencórios, busca a Morte e roga-lhe o que me pedes. Vai! E a voz misteriosa calou-se.

— Vai! Disse o homem, e a pobre mãe, apertando nos braços o cadáver do filho, partiu pela neve a caminho dos termos merencórios.

Negros, arestosos alcantis, emaranhados de erva, lacrimando fios d’agua perene; sombra lúgubre em volta. Nas anfractuosidades das rochas ibis e estriges d’olhos mortos, imóveis como figuras talhadas no granito, guardavam a entrada tenebrosa do labirinto pávido. Haustos de peste passavam por entre as estalactites, ouvia-se o ranger dos dentes das caveiras e estrepito de ossadas. Sombras apareciam, desapareciam iterativamente, em fluído negro, voando. Estertores roucos de agonizantes ressoavam pelas abobadas da furna e ao fundo, sobre um acervo dos crânios amarelos, negra e tiritante, o punho tabido apoiado à foice fulcite, os pés nus, escarnados, e dois lumes de podridão nas órbitas profundas, a Morte jazia.

Rolavam os fogos fátuos dentro dos abismos da fronte e os dentes taramelavam trépidos. Olhava e o seu olhar estrábico fulminava. Respirava e o seu hálito esparzia peste.

Soaram passos nas pedras da cafurna e os olhos lívidos da Morte voltaram-se para a entrada escura. Olhava quando lhe apareceu, exausta e rota, arrastando farrapos, os pés em sangue, os olhos quase extintos, a desvairada mãe com o filho ao colo. Olhou-a a Morte e sorriu e a pobre mulher, fitando-a, caiu ajoelhada sobre os crânios que assoalhavam a caverna, implorando:

— Morte, misericórdia dos desesperados, dize por que o tomaste de mim?! e apresentava-lhe o filho roxo e regelado. E o trasgo impassível contemplava o cadáver.

— Entrega-lhe o espírito que lhe roubaste, Morto! Dá-lhe o sorriso, a luz dos olhos, dá-lhe a graça do balbucio meigo. Sê piedosa, tu que és a misericórdia dos desesperados. E a Morte tremulamente disse do alto do sou trono de ossos:

— Mãe, o que me pedes não me é possível dar-te. Eu sou quem executa, mas quem ordena demora Além! E a foice teve um fulgor súbito erguendo-se para o céu. Sobe à planície azul, busca o Senhor e pede-lhe. Busca o Senhor!

E o céu da caverna trágica repetiu soturnamente: — Busca o Senhor!

E a pobre mãe, apertando nos braços o cadáver do filho, partiu através das rochas lutulentas, a caminho da planície azul que a Morte lhe apontara.

 Sóis de ouro, luares brancos, nuvens densas, alvas como as nitentes espumas do oceano, nuvens purpúreas, nuvens de tons flavos de ouro, manhãs e noites viram esses magoados olhos que o sono abandonara, viram esses doridos olhos que as lágrimas inundavam. E não os cegou a luz do sol, nem os extasiou a luz da lua: empanados de magoa e de melancolia passavam indiferentes pelas auroras e pelos crepúsculos a caminho do céu sempre longínquo.

Pobre mãe errante, ia levando ao colo o filho morto.

Velhos astros, vendo-a passar, afastavam-se comovidos e alumiavam o caminho azul que ela trilhava:

— É uma mãe, diziam de uns a outros os velhos astros comovidos.

Além, teorias diáfanas de anjos brancos voavam sem rumor, dum extremo a outro, e sons de harpas perpassavam em suavíssimos hinos. Estava perto o Paraíso. E a mãe seguia.

De vir tão junto do coração aquecia-se, a pouco e pouco, o pequenino corpo. Cores, talvez de sol, abriam-se-lhe nas faces e a mãe seguia corajosa pela planície azul em fora, através dos turbilhões de nuvens que rolavam.

Viu-a um anjo e saudou-a.

— Divino, disse-lhe a peregrina triste, onde habita o Senhor?

E o anjo mostrou-lhe a porta do Paraíso, dizendo-lhe:

— E, se vos embargarem o passo, dizei: Sou mãe! E logo vos darão caminho. E a peregrina passou. Querubins saudavam-na e seguiam-na.

Fulgores, radiações, rebrilhos rutilos passaram como se muitas auroras sucessivas desabrochas sem no mesmo oriente de ouro e argiro. Revérberos de raios policrômicos, grandes auréolas abertas em caudas d’aves resplandeceram e, do ofuscante clarão destacando-se, mais claro, o vulto do Senhor surgiu brilhante, no fundo do infinito Paraíso sonoro, coroado de estrelas, os pés pousados sobre sóis e luas. Kinores, de som misterioso, soavam em de redor, dolentes; e, de espaço a espaço, fanfarras arcângelicas profundamente estrugiam.

— Deus Senhor! Exclamou a peregrina, mal os seus olhos fitaram a face magnífica do Almo, por onde as eras passavam como a luz, sem deixar rastro. — Deus Senhor! Deus Senhor! E, levantando nos braços o morto: Fostes Vós que o criastes, deu-me a Vossa Divina Graça, deu-me a Vossa Bondade e a Morte negra roubou-me enquanto o sono me traia. Vede, é meu filho — morto e frio, Senhor! Vede-o morto! Sem sorriso nos lábios, ele que tanto sorria, gélido, hirto, inteiriçado. Dai-me, Senhor! Vós que dais a estrela à noite e o orvalho à madrugada; Vós que protegeis o ninho, Deus Senhor! Vede com os vossos olhos meu coração vazio. Dai-me de novo, Deus Senhor! Dai-me, por piedade!

E Deus Augusto falou:

— Mãe, para que a alma de teu filho volte ao de que saiu, será preciso que outra por ela fique no Paraíso. Quando alguém agoniza, um berço vage. Uma alma que sobe encontra entre as estrelas outra alma que desce. Dá-me uma alma, se tens, e a de teu filho voltará ao seu corpo.

A mãe, ansiosa e aflita, lançou com desespero o olhar pelo céu vasto como se quisesse procurar uma alma. O filho, junto ao seu coração, gelava-o.

— Deus Senhor! Deus Senhor, exclamou de repente caindo ajoelhada — que eu o veja ainda uma vez sorrindo entre os meus braços, que eu o veja ainda uma vez e aqui tendes minh’alma. Que ele viva! Dai que eu lhe ouça ainda o balbucio e morrerei bem dizendo a Vossa Misericórdia.

O Eterno alçou a mão fecunda e santa e logo o pequenino corpo estremeceu nos braços maternais — cores voltaram-lhe ao rosto esmaecido, e, pouco a pouco, os olhos entreabriram-se, entreabriram-se os lábios e, docemente, estendendo os bracinhos e sorrindo... Anjos ouviram o que ele disse como se acordasse de prolongado sono; e Deus ouviu:

— Mamãe!

Beijos, pela primeira vez, soaram no Paraíso. Os anjos atônitos, pasmados, contemplavam. E mais doces que os sons das harpas soavam docemente os beijos da pobre mãe, nos cabelos, nos olhos, nas faces da criancinha que a beijava e sorria.

Mas, de repente, lembrando-se do que dissera, de novo, alucinada, pôs-se a beijar o filho e despedindo-se, sempre com os olhos nele, disse para o Senhor:

— Graças, Deus meu! Graças vos rendo! E curvou a cabeça, esperando a sentença.

— Vai! Disse o Senhor, comovido, vai. Teu Paraíso não é este. Toma teu filho e parte. E mostrando-lhe o caminho do céu estrelado e silente: Vai, disse de novo: o Paraíso das mães é junto ao berço dos filhos.