LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
A Capital Federal, de Coelho Neto
Edição de Base
Biblioteca Virtual Brasileira
INDICE
Meu tio,
Há neste livro páginas que vos pertencem, porque eu nunca as teria escrito se a minha Boa Sorte me não tivesse guiado para o retiro de ascetismo voluptuoso onde viveis, em beato sossego, praticando a moral divina de Epicuro e cuidando flores; outras há, e profusas, derivadas da sabedoria fecunda do dr. Gomes, de quem guardo saudades e conceitos; outras, finalmente, que seriam dedicadas à Jesuína se o escrúpulo não existisse na moral privada.
Ofereço, porém, as minhas primeiras letras ao padre Coriolano, porque, sem ele, meu tio amado, eu seria ainda hoje tão bronco como o Venâncio Dias, do rancho de Santa Engraecia, ou como o José Taborda, da cordoaria.
Outros livros virão, nítidos e pensados; e, dentre eles, escolherei o mais digno dos vossos merecimentos
Não alastro as páginas com dedicatórias: a meu pai, à minha mãe, aos meus parentes e amigos, vivos e finados, para que se não diga de mim o que por aqui se propalou a respeito do Brites, que encheu quatorze folhas da sua tese sobre o “crytococus xantogênico”, com oferecimentos, envios e uma reclame a certa modista da rua d'Ajuda.
Outros livros virão, meu tio amado.
Afetuoso,
Anselmo.
Para estar de acordo com o horário dos trens devíamos chegar às oito horas e alguns minutos à estação, e estou certo de que assim teria, acontecido se não fosse o folgado e paciente atraso de duas horas e meia, que tivemos de aturar dentro dos compridos vagões de primeira classe, nada inferiores ao cárcere duro.
Desde as quatro da manhã, quando deixei o teto paterno, saindo para a névoa dos campos frios, até àquela hora, andava meu pobre corpo aos solavancos, primeiro no dorso nédio da ruana, mais tarde nos bancos do expresso, tendo por fronteiros dois homens terríveis, de ideias contrárias — um rotundo, conservador e católico, saudoso do monarca, bramando contra a indiferença do povo, que deixara partir para o exílio o velho soberano, sem um protesto, sem um tiro ao menos; o outro, de pera, esgalgado e nervoso, livre pensador, formidável em teorias republicanas, contando que, nos muros da sua casa, na Januária, havia despojos de escaramuças contra sebastianistas: chuços, arcabuzes, facas, fazendo panóplias e cercaduras em volta dos retratos dos mártires mineiros: e discorria sobre as revoluções, reclamando um batismo de sangue, como o de 89, em França, sem o que a república nunca chegaria à consolidação perfeita.
O conservador pacato, abrandando o diapasão, atacava o procedimento dos revolucionários de Novembro, que haviam banido os altares, rechaçando os santos — a Virgem, a consoladora, a misericordiosíssima Conceição, Mãe de Deus e Amparo dos Aflitos. Podiam ter feito tudo, mas deixassem a crença de cada um.
— A crença é a república. A Conceição é a Pátria. Qual Deus! Qual Igreja, meu caro... o tempo dessas coisas passou. Havendo Constituição e Justiça, para que diabo queremos nós santos? Deixemo-nos de sentimentalismos piegas!
Veio à questão o militarismo. O conservador impugnava a farda, queria o civil. O esgalgado investiu.
— Mas onde encontrá-lo? Mostre-me um homem capaz de tomar a responsabilidade do governo... Mostre-me, entre os casacas, um cidadão à altura de exercer esse cargo. E, escancarando os braços, escancelando a boca, os olhos esbugalhados: Não há! Vamos muito bem assim, não acha o senhor? Era comigo. Encolhi os ombros para fugir à discussão. Ele tomou de uma botelha e ofereceu.
O conservador, com um gesto nobre, rejeitou; eu rejeitei; e uma mocinha triste, que vinha derreada, a olhar melancolicamente a paisagem, como se por ali lhe ficassem pedaços do coração, teve um sorriso adorável, rejeitando, por sua vez. Seus olhos castanhos, entre grandes cílios, alumiaram-me, e travamos palestra, em tom sutil e discreto, vindo eu a saber, pelo cicio dos seus lábios, que era professora em Sabará, na fazenda de um tal Souza Gordo. E disse-me a sua pátria — a Itália, e o seu nome, já celebre no idílio — Graziela. E eu, a ouvir-lhe as suaves palavras, via as árvores passarem vertiginosamente, como se os campos e os montes assustados fugissem diante do comboio rápido, Enquanto andamos, não lhe percebi um movimento, um olhar que não fossem do mais cândido recato. Lia — um livrinho minúsculo, capa de percaline roxa e letras de ouro. Em Juiz de Fora, oferecendo-lhe uma corbelha de figos, aproveitei a sua distração para surpreender o nome do poeta favorito — Leopardi. Era pessimista com tão angélico sorriso! Amargo século em que as deusas trazem filtros no bolso e seguem a seita sombria dos desesperados. Era, de certo, a ideia da morte que lhe punha nos serenos olhos tanta melancolia. Na Barra, porém, tive uma surpresa — voltando ao vagão (wagon), encontrei-a sem luvas, o veusinho levantado, trincando, com voracidade, uma coxa de frango. Corou ao ver-me, mas a fome venceu-a; e, até Mendes, fartou-se regaladamente, escorropichando, por uma calha de papel, a farofa de manteiga e ovo.
Trevas de túneis, verduras de campos, rampas, viadutos, desfiladeiros, tudo vencemos em corrida vertiginosa, aos trancos, às vezes beirando abismos, ou rolando sobre pontilhões, por cima d’águas encachoeiradas. Passávamos pelas estações num ápice; mal se podiam ver as luzes dos lampiões e os vultos na plataforma. Quando, através da tela lúcida dum aguaceiro copioso, avistamos os primeiros fogos da cidade, bondes, carros, todos se puseram de pé, arranjando malas, espanando chapéus. O esgalgado respirou, safando o guarda-pó. O conservador dormia beatamente e foi preciso que o sacudissem para que despertasse.
— Chegamos, senhor barão.
Empoados, como nos tempos galantes dos Luízes, pusemos pé na plataforma da estação, claramente alumiada pelas grandes lâmpadas foscas que dão ao sítio uma luz de luar, pálida e triste. Dizem que os cães que ali vão errar, à noite, estacam, levantam o focinho e uivam lamentosamente. Pierrot seria capaz de enganar-se se não tivesse, como eu, prevenido o espírito com uma leitura sobre a cidade e as suas maravilhas. Entretanto, deixando o meu vagão, assoalhado de cascas de frutas e de queijo, copiosamente cuspinhado, uma variedade infinita de pontas de cigarros, algumas estripadas pelos pés bárbaros e entorpecidos dos viajantes que sapateavam, despindo o guarda-pó, senti deslumbramento tal, que tive de fechar os olhos. Se eu saia de uma sombra propícia e sonolenta para esse plenilúnio de Jabloskoff! Quando abri os olhos, assombrado, estava entre homens de blusa parda e boné branco, marcados no peito com algarismos negros, que me empolgavam, que me berravam números e nomes, procurando arrebatar-me das mãos a bengala e a maleta. Tive um assomo de energia e repeli com um murro um “12” que se aferrara a mim, teimosamente, propondo-se. O repelão e o soco valeram-me algumas palavras más, que resolvi deixar sem resposta para tranquilidade de todos. Os homens abalaram em tumulto, correram a outro ponto. Quando vi perdidas na multidão as blusas pardas, resfolguei e, corajosamente, deitei a caminho, à luz lactescente das lâmpadas, bem melhores do que as da minha vila, pobre terra de bárbaros, alumiada ainda pelas estrelas de Deus e pelas candeias de coisa que a intendência manda pendurar em postes, para que as estradas tranquilas não fiquem de todo abandonadas à treva, propicia aos duendes e aos ladrões de galinhas.
Quase à porta alguém, debruçando-se amorosamente sobre o meu ombro, segredou-me palavras doces, mas tão íntimas, tão leves, que me passaram, ficando-me apenas, no lóbulo da orelha, o calor acariciante do sopro que as trouxera. O que pensei em um segundo!... Quantos sonhos idílicos passaram pelo meu espírito!... Que vasta e interessante aventura imaginou minha alma nesse tempo rápido!... “a mocinha de Itália a dar-me o seu endereço, ou outra linda mulher...” Mas uma ideia feriu-me violentamente — o conto do vigário. Levei a mão ao relógio e voltei-me rapidamente. Era um latagão de barba ruiva e óculos: tinha a cabeça nua, uma grande fronte tostada, com um calombo ao meio, purpúreo e estriado. Curvou-se com a cartola nos joelhos, um sorriso afável no grande rosto picado de bexigas, e balbuciou, com enternecimento, como se efetivamente dissesse coisas ternas:
— Quer o patrão um carro fechado?
Tive ímpetos de o repelir, mas lembrei-me de que, para chegar ao meu destino, era mais prudente confiar-me às bestas de um cocheiro do que à providência do acaso em horas tão adiantadas.
E, aqui na intimidade inviolável deste canhenho, confesso que admirei o homem vigilante que saíra ao meu encontro com tanta afabilidade, oferecendo-se para conduzir-me à casa. Calculei que toda a gente devia estar enfronhada no morno leito, gozando a delícia incomparável do sono, nessa noite fresca e de chuva. Além, nesse eremitério onde repousa o meu umbigo, às dez horas, a não ser em casa de Marianno Gomes, onde se cartêa impudentemente o lansquenet, com pequenos intervalos de maledicência e gole, toda a povoação, beatamente ceada e rezada, dorme. De longe em longe, uma luzinha treme, traçando no pó soalheiro dos caminhos uma risca luminosa — é algum jogador, que se recolhe despojado e trôpego, ou o santíssimo padre Coriolano, que anda a correr o aprisco, a ver se alguma ovelha bale, roída pelo arrependimento do pecado, que é uma chaga terrível que a gente cura com as drogas da filosofia ou com a boa e sadia campônia, que, mais do que os santos, sabe levar os seus eleitos ao Paraíso, por um caminho bem diferente desse que a igreja conspícua e austera manda que se trilhe — ninguém mais.
Às dez horas o sono parece cair do céu sobre todas as cabeças justas.
E não é só o homem que dorme no leito antigo, largo e raso, de colunas torcidas, com flores e folhagens clássicas, forrado d’alvos lençóis, que trescalam como moitas de ervas de cheiro ou na palha seca e crepitante, entre os milhos, com o cão aos pés e os grilos cantando perto; é o gado forte e é a ovelha mansa, é a ave meiga, é a mesma árvore, é a mesma água, é a mesma estrela, é o mesmo luar porque, se a água murmura e se as folhas sussurram, bem se pode dizer que são vozes do sonho das coisas. Velam apenas o caburé piando no tronco seco ou cruzando os ermos e as feras bravas que descem para velar, ou a farandulagem que assalta galinheiros ou outros sítios de maior recato e perigo.
Imaginem o meu espanto, a minha surpresa quando o cocheiro, fazendo uma zumbaia e rastejando um gesto para que eu passasse, deixou-me ver uma fila de carros molhados, reluzentes, e, em todas as boléas, sob guarda-chuvas lustrosos, braços que acenavam para mim, num delírio, e gente, gente a valer, como eu jamais vira na vila onde passei o grosso da minha vida, nem mesmo nos dias de feira. Imaginem o pasmo que me tomou!
Deixei-me levar pelo cocheiro, que correu a abrir a portinhola, vindo buscar-me debaixo do seu guarda-chuva, amplo como uma tenda. Quando afundei nas almofadas atirando ao homem o número da casa de meu tio, na praia do Russell, saiu-me dos lábios trêmulos esta exclamação profana, mas que exprime admirável e eloquentemente o assombro dos meus olhos, diante de tanto guarda-chuva, de tanta luz, sem falar no rumor que me ensurdecia:
— Com seiscentos diabos! isto é que é terra! E com força puxei a portinhola. O ruivo cacarejou às bestas e rodamos.
No toldo a chuva torrencial rufava.
A casa de Serapião Ribas, meu tio, melancólica e discreta, sem vizinhos laterais, porque a isola um florido jardim de rosas e, em frente, o mar espumeja rolando e chofrando por entre pedras negras, é um confortável chalé suíço, de boa construção — pedra e cal, com lambrequins e agulhas, pintado de verde. Penetra-se esse retiro, sossegado e púdico, seguindo as sinuosidades de um caminho de saibro, onde os passos crepitam, por entre o perfume sensual das roseiras, que fazem ao meio um bosque ameno em torno de uma casinhota rústica, feita de troncos entrelaçados, com um teto afunilado, de colmo, onde meu tio, à tarde, bebe o seu aperitivo, lendo os jornais, com as pernas esticadas sobre o banco de pedra.
Dá acesso à varanda uma pequena escada de mármore — três degraus, polidos e claros como pedras de um móvel fino, porque a gente, antes de pisa-los, raspa as solas dos sapatos na lâmina de um aparelho, que arranca tudo quanto se levar colado à palma do calçado. Além disso estira-se em cima, no limiar, um capacho de coco, cerdoso e duro, para completar o asseio. Raspado e brunido, o hospede atravessa os umbrais da sala nobre onde os passos afofam-se sobre um tapete amplo, ainda carregado de lãs e de peles de feras que, d’olho aceso e goela escancarada, esparrimam-se ao peso dos móveis em inércia voluptuosa.
O interior, obscuro e abafado, cheira a verniz e a fardos novos. Entretanto o asseio acusa-se imediatamente pela disposição e pelo luzimento das molduras dos quadros, porque a mobília, que deve ser faustosa, está fresca e claramente vestida de housses brancas. Despido só um tamborete de cetim azul, com um bordado de ouro, representando um corvo marinho, pensativo, num pé só, com um peixe no bico.
Enriquecido de um dia para outro em transações felizes, meu tio que, em moço, curtiu a mais faminta miséria, regala-se gozando pacatamente as delícias da fortuna. Aferrolhou mil e tantos contos em apólices, comprou vários prédios, e, estirado agora, resfolga na sua Voltaire ampla, esperando, com um sorriso, o amanhã e o depois, sem a dura preocupação do fim do mês e do caderno das compras. Tem o pão e o teto garantido podendo, de vez em quando, extraviar-se por um extraordinário de bombance, sem risco para os dias da sua velhice amparada e serena.
É solteiro, não porque deteste o casamento — aconselha-o a toda a gente como um meio honesto e digno de aperfeiçoar a espécie e consolar o espírito. É solteiro porque, no seu entender, no “seu modo de ver” o casamento é uma loteria, e, infeliz como sempre foi nos quiosques, receia que a sorte o persiga até junto do pretor e do sacerdote. Vive com dois criados de serviço, mais um cozinheiro.
Recebeu-me na sua grande sala de jantar de carvalho, forrada de encerado inglês — um lugar de gosto pelos ornatos dos móveis carregados de corimbos e de cachos de frutas, entalhados nos espaldares das cadeiras, nos florões do enorme guarda-prata, dos bofetes e dos trinchadores de mármore escuro. Pratos raros pelas paredes, naturezas mortas, iguarias a óleo e faianças de Delft e de Caldas — lagostas, uma enfiada de perdizes, uma penca de frutas, e, venerando e respeitável, entre o luzir da louça, um relógio escuro, monótono, moroso que, de vez em vez, range e profundamente bate uma pancada soturna.
Serapião, meu tio, nessa noite da minha inesperada aparição, vestia um radiante robe de chambre de seda. A calva, nua e polida, resplandecia ao fulgor do gás. Tinha diante do papo guloso um copo cheio de morangos e um cálice de Madeira seco.
Ao ver-me, com a mala e o guarda-pó, parado no solar da sala, recuou a cadeira e, com as bochechas tremulas, como um bolo de creme, roxo de vinho e de gozo, avançou para receber-me nos braços protetores, com tal efusão, que desfez todo o meu vexame, pondo-me logo à vontade junto a um peito largo e generoso solidamente reconstituído pelos debentures.
Houve uma corrente de frases simpáticas. Por fim, arrastando-me para a mesa, carregada de porcelanas e soante de cristais, que ecoavam ao mínimo balanço do soalho, disse: que não contava comigo; e estranhou que eu não lhe houvesse telegrafado da Barra ou de Belém, para que ele mandasse à estação, receber-me, o seu landau. Dei um salto por dentro. Pois o tio Serapião... tinha um landau!
Diante de mim, um rígido criado colocou vagarosamente uma garrafa de conhaque e um cálice. Bebi.
O tio arregalava os olhos imensos; de vez em quando chupava o lábio inferior, soprava espalmando as mãos ambas na alva toalha da mesa. Os cristais tremiam. E eu falava da roça, da viagem, dos companheiros, da paisagem acidentada de serra abaixo.
O mesmo criado que me Servira o conhaque trouxe uma chávena de café, que o tio tremulamente recebeu. O servidor prudente aparou com a salva, por baixo do queixo tríplice do meu obeso parente, as gotas que escorriam. Sorvido o último gole, meu tio roncou de fartura e escorregou na cadeira, para baixo da mesa, deixando apenas, para contemplação dos meus olhos, o seu busto de Vitelio, apoplético e gordo.
Tentou dizer algumas palavras, mas os seus lábios purpúreos tremiam, deixando apenas fugir um sopro flébil. Cravei os olhos nele, quis sacudi-lo, a pouco e pouco, porém, o sopro foi crescendo e já era um rosnar — a boca descerrou-se, a cabeça enorme tombou para o peito e um ronco sonoro, que encheu toda a sala, apaziguou o meu espírito. Não era a apoplexia fulminante, não, não era... Meu tio dormia o sono cibárico.
O criado do cognac, com um guardanapo ao ombro, andando na ponta dos pés, veio anunciar-me em segredo que o banho estava pronto. Procurei a mala: havia desaparecido. Quis interrogar, mas já o homem, arrepanhando um reposteiro, mostrava-me um corredor claramente alumiado, de paredes luzidas, pintadas a óleo, com medalhões representando idílios.
— Por aqui, senhor.
Baixei a cabeça, e, voltando-me para falar ao criado, notei que todo luxo da sala de jantar desaparecera sob uma treva brusca, onde apenas restavam dois pingos de luz, e vi um vulto que se esgueirava como uma visão. O criado soprou-me:
— É ao fundo, senhor.
Agradeci com um gesto, para evitar o rumor das palavras.
Da sala escura vinha, num diapasão formidável, o ronco do meu generoso tio que o vinho adormecera.
Oh, meu tio!
Esta exclamação quase infantil escapou-me dos lábios quando penetrei o santuário da limpeza. Que asseio e que fausto! As termas da cidade por excelência deviam resplandecer assim.
Quem te dera, Lucano, um tanque como este para nele abrires as veias! Quem te dera, altivo poeta, um interior assim, de tanta claridade e tão sonora acústica, para reboar com os versos da Farsália com que recebeste a Morte! Infelizmente a Arte não alcançara o requinte que hoje possui. À vista do tanque de meu tio — onde podia nadar, folgada e livremente, uma família de nereidas, se ainda as houvesse — que figura faria a banheira do teu suicídio, ó vítima da tirania, ó voluptuoso e lânguido patrício...!
A sala vasta é toda de mosaico miúdo, talhado em triângulos brancos e vermelhos; o tanque, de bordas altas, tem três metros de comprido e dois de largo, e a gente afunda em um metro e 25 d’água. O chuveiro é uma grande cúpula de zinco, pintada de branco, com duas correntes de metal que imitam prata. A água jorra copiosamente das goelas de dois leões de níquel — uma entorna água fria, outra vomita água a ferver. As paredes, forradas de mármore italiano, completamente nuas. A um canto, um cabide de bronze para as toalhas felpudas e o jupão, e, em frente, numa prateleira, também de mármore, negro e fosco, a bateria d’óleos e de perfumes; os sabonetes, as esponjas, escovas e essências tônicas para higiene da pele e lavagem das gorduras do couro cabeludo. Ao centro um espelho de nítido cristal, alto e grosso, onde se pode admirar a nudez das formas.
Para um canto, recatado por um biombo japonês, uma espécie de adito, com um divã de couro, repousando em um encerado onde a gente estira longamente os membros enquanto os leões inundam o tanque. Para aquecer há uma mesinha com um serviço de cristal: uísque, conhaque, old-brandy e curaçau. Um mono de bronze carregando às costas um cesto atochado de charutos e brochuras de um frescor irritante (a mais pudica que meus olhos viram abria com uma esplendida mulher nua, de costas para quem olhava, os braços roliços passados por cima da cabeça farta e negra de cabelos) na capa um dístico: Le nu mi salon.
Ao fundo, num retiro velado por um pano de linho escuro, que corria num varão de ferro, uma caixa envernizada. Abri e pasmei silenciosamente — era também um objeto indispensável ao asseio. Ao lado, numa caixa menor, um maço de papéis finos. Aclarava esse interior de gozo um lustre de seis globos cor de rosa.
Feita a visita fechei-me por dentro e, ouvindo o rumor d’água que caia, levantando um vapor tino como o orvalho, fui despindo a fatiota, lenta e preguiçosamente, antegozando a delícia da imersão tépida depois da fadiga de todo um dia em wagon.
Safando a camisa lembrei-me do ribeiro poético da minha vila onde todos nós da família, do mais velho ao mais novo, um depois do outro, por decência, vamos, todas as manhãs, limpar o corpo e endurecer os músculos sob a folhagem viçosa dos cajueiros em flor.
Nu, como um grego do tempo juvenil da graça olímpica, mirei-me ao grande espelho que, indecorosamente, me refletiu da cabeça aos pés — e achei-me perfeito e forte e másculo, um modelo rijo e gracioso de Marte desnudado, um inteiriço e reforçado exemplar de homem, digno herdeiro dos Ribas. Sorri com vaidade para o cristal que começava a empanar-se com o vapor das fauces do leão fervente.
A sala estava como uma estufa — era um banho russo. Corri a refugiar-me atrás do biombo e estirei-me no divã fresco e macio servindo-me, em um cálice, da garrafa vermelha que trazia, pendente do gargalo, uma chapa denunciando: cognac. Bebi e regalei-me esticando as pernas nuas no couro frio.
De papo para o ar comecei a pensar na delícia da vida e achei mesquinha a casa paterna, taciturna e calada, entre árvores murmurantes, invadida pelas moscas e pelos gafanhotos, com os corredores sombrios, atravancados de selins, às vezes visitada pelos bacorinhos que vêm familiarmente grunhir em baixo da mesa de jantar, catando os restos do almoço. Pareceu-me triste e acanhada a existência que eu levara nesse vale melancólico sem agitação e sem conforto, ignorante de tudo, longe de imaginar que o mundo podia proporcionar delicias de tal ordem — delícias como aquela sala de jantar, delícias como aquele banheiro, onde meu tio tonificava as suas banhas e onde eu ia, enfim, lavar-me para entrar limpo e lépido na vida nova, buliçosa e surpreendente, que eu sentia rumorejar ao longe, nessa grande cidade atravessada, amolecida e sonolentamente, nas almofadas fofas do carro do ruivo. Ia enfim ver o mundo.
Aquele banheiro que ali estava, era a pia onde o mais novo, o mais esperançoso rebento dos Ribas ia, contrito e nu, receber o batismo da civilização, deixando na água morna a poeira dos caminhos e a barbárie da sua alma ignorante e insaciada.
Confesso que tive inveja da sorte de meu tio e lastimei profundamente os meus que lá haviam ficado chocando pintos e debulhando o grão. Que vale uma ninhada diante de uma mesa como esta que meus olhos contemplam, carregada de cristais rutilantes? Que valem as colheitas comparadas ao gozo de um mergulho nesta piscina de mármore que me espera? Decididamente a grande ciência do viver não consiste em saber acumular fortuna, mas em saber dissipá-la. O ideal do homem moderno é o filho pródigo. Estou certo de que a moral não condena Harpagon senão porque o miserável não tinha noção da ciência elegante e fina de dissipar.
Para que ser rico sem um banheiro assim?...
Serapião, meu próspero tio, ronca, desliza para baixo da mesa farta do teu salão de abundância, porque estás dando ao mundo, e especialmente ao teu sobrinho e herdeiro, uma lição de savoir vivre!
Enchi de novo o cálice e bebi, mas engolindo o sorvo, percebi que me enganara na garrafa: não era a vermelha, eu havia tomado a azul: old-brandy.
Desde, porém, que havia quatro, porque insistir na vermelha? O acaso dirigira o meu braço e o acaso algumas vezes opera sabiamente e governa como uma bússola. Repentinamente lembrei-me do banho e não foi sem pena que deixei a minha posição em decúbito, a mais própria do homem, segundo ouvi dizer a um sibarita das minhas relações campestres.
Pus-me de pé e, estirando os braços, todo retorcido como o Laocoonte, afastei-me do adito das libações. Na sala era tão espesso o vapor, que meus olhos nada distinguiram a princípio — movia-me, como um deus, dentro de nuvens tênues. Por fim, sentindo nos pés uma umidade tépida, notei que a água transbordava alagando o mosaico do santuário. Desci precipitadamente as alças fechando as copiosas goelas leoninas, mergulhei o braço, puxei pela corrente do escoadouro e a água, que me escaldara, começou a baixar silenciosamente até que ficou em nível para que eu pudesse molhar-me todo regaladamente, mergulhando e nadando. A fauce fria jorrou ainda alguns litros para abrandar a temperatura e o nevoeiro diluiu-se. Apanhei sobre o mármore negro um sabonete de Corydalis, uma grande esponja macia e saltei no tanque. A água abriu-se para receber-me e fechou-se ficando apenas a flux a minha cabeça, flutuando como uma boia.
Que delícia! Como senti, nesse momento suave da minha vida, não possuir os dotes de Simão Carreira, que tudo canta, que tudo rima: os olhos castanhos da Bem-vinda e os repolhos planturosos da horta do Segurado. Ele, de certo, em meu lugar, acharia uma estrofe sonorosa e nova para louvar e divinizar a água benigna desse tanque; ele, o sempre inspirado, saberia pagar com um punhado de heroicos a lixivia e o conforto.
Eu, porém, sem estro, incapaz da mais insignificante imagem poética, limitei-me a esfregar a cabeça, não para acordar a inspiração adormecida, mas simplesmente para tirar a poeira... e mergulhei. Quando vim à tona trepei à borda do tanque e, à falta de quem me esfregasse, resolvi fazer eu mesmo a operação e vesti-me todo de espuma. Tive ímpetos extravagantes de correr ao espelho para admirar-me sob esse aspecto mousseux, mas recuei porque, Ribas anadyomay, compreendi que não me seria fácil abrir os olhos — a espuma escorria em flocos pelo meu rosto.
Atirei-me, de novo, ao banheiro e refocilei voluptuosamente. A temperatura baixara sensivelmente quando saí gotejante para o pequeno estrado. Enfiei o jupon, calcei as chinelas de feltro e arrastei-me até junto da mesinha, onde experimentei a garrafa verde — uísque. Ia deitar-me quando bateram à porta. Acudi com pressa lembrando-me de meu tio que ficara na iminência de uma apoplexia. Indaguei, e uma voz disse-me de fora — que a ceia estava servida, ajuntando:
— Aqui tem vosmecê o robe de chambre para sair.
Abri devagarinho a porta e estiquei o braço, que derreou ao peso da investidura com que eu me devia apresentar à mesa. Era uma espécie de cabaia de seda, debruada a cairel de prata, com bordados extravagantes e alamares; mangas imensas e uma gola almofadada, com forro de cetim cor de pérola. Admirei-a e com ela recolhi-me ao biombo para vestir os primeiros linhos indispensáveis e calçar os sapatos.
Sobre a camisa e as ceroulas abotoei a cabaia que, sentindo a falta das protuberâncias do meu tio, caiu em dobras moles ao longo do meu corpo, menos fornido e mais baixo. Por compostura apertei a cinta com o cordão de seda. Dividi o cabelo, alisei os bigodes e, derramando na palma da mão algumas gotas de Cherry Blossom, plantei-me diante do espelho, revendo-me sob esse trajo que me dava a figura clássica de um veneziano, como os que eu vira em gravuras, dentre os quais me ficara eterno na memória o tipo venerável de Brabantio, pai da incomparável e abnegada Desdêmona, tão cruelmente imolada pelo mouro negro.
Cheiroso e fresco saí para o corredor, onde me esperava o criado. Seguimos.
A sala de jantar estava de novo iluminada... mas sem meu tio. Recolhera-se de certo. Sentei-me só e em silêncio.
Havia no ar um cheiro apetitoso de frituras e de flores. Dos pratos cobertos saia um fumego tênue rescendendo a temperos. Toda a porcelana florejada tinha o monograma do proprietário — S. R. em ouro fosco.
O criado serviu-me a sopa e verteu em um cálice de cristal verde um vinho claro, que bebi com avidez antes da primeira colherada; e comecei a jantar desordenadamente, servindo-me de um lombo, com petits, pois, no momento justo em que o criado me apresentava um badejete, que repudiei com desprezo.
Mas o meu ataque mais sério foi à garrafeira.
Não sei dar a razão desse delírio bacico, tão singular, tão novo em meus hábitos de sobriedade. Os vinhos atraiam-me. Depois de uma aza de frango, que apenas trinquei, fui sedentamente ao Bourgogne e enxuguei dois copos. Mas quando apareceu o Champagne, uma meia garrafa deitada sobre cristais de neve em uma geladeira de prata, tive ímpetos de fazer ali assim, para o criado impassível, um improviso sobre esse precioso vinho, que é a alma do festim, o remate requintado do gozo, o companheiro do amor. Vinho alambreado que parece cantar nas taças um ditirambo de ouro, vinho impaciente que ferve e espuma, vinho que tem as cóleras do oceano — ambrosia da nova era, vinho vivo e inteligente, vinho que tem alma... e que eu jamais provara. Bebi sôfrego.
Subitamente notei que me sentara na cadeira abacial do meu tio. Estava explicada a minha sede insaciável. Os móveis adquirem os vícios de quem os possui. Aquela cadeira estava inveterada. Era repousado em seus braços que meu tio dormia o seu primeiro sono digestivo.
E foi esse confortável móvel que fez com que eu somente readquirisse as minhas faculdades de ser às 10 horas da manhã seguinte, quando me vieram trazer ao quarto o café e os jornais.
Lembra-me ter visto em um livro erudito este conceito: — “A embriaguez é a poesia da vida digestiva” e, se ainda me é fiel a memória, o sábio que assim se exprime é Letourneau. Penso que tem razão o filósofo, porque Simão Carreira, que cultiva, com tanto esmero, a Arte divina de Apolo, não despreza as garrafas e os seus melhores heroicos, os versos intrépidos do seu poema Os Píncaros da Mantiqueira foram escritos enquanto durou um quinto de Cartaxo com que o brindou o padre Coriano.
Eu, porém, de imaginação escassa e tão perro para a cadencia, sofri profundamente os efeitos da poesia estonteante, que me pôs no espírito uma nuvem densa e na língua uma saburra espessa.
Confesso que senti o pudor subir-me às faces quando dei com o ar sisudo e grave do criado, que me apresentava cerimoniosamente um tabuleiro de xarão. Puxei o lençol até o queixo e, de olhos baixos, tomei a xícara e, a pequeninos goles, fui chuchurreando até à última gota. Por fim, no intuito de quebrar aquela serenidade flegmática do homem, aventurei sorridente:
— Bem bom café! Decididamente não há bebida como esta.
Mas o bruto, impassível e frio, recebendo a xícara que eu lhe entregava, sempre sisudo e grave como um preceptor, perguntou secamente se eu queria o banho morno ou de chuva?
— De chuva, respondi humilhado e corrido. Que vergonha tive! Parecia-me que aquele imperturbável servidor viera ao quarto apenas para exprobrar, com o seu silêncio inquebrantável, o meu procedimento da véspera. E tinha justas razões esse criado, porque afinal... que indecência para um homem da minha casta, herdeiro de uma tradição sem mancha, principalmente de vinhos, porque na família o único que bebe é meu tio, os mais, desde o meu intemerato bisavô, implicado nas conspirações patrióticas do Xavier, até meu pai, nunca foram além do coco do pote ou da calha da nascente. A adega dos Ribas, inesgotável e pura, foi sempre a límpida fonte dos “Suspiros” numa chanfradura de rocha, velada por um bosquezinho de taiobas, fonte cujas águas históricas mataram, em tempos, a sede do grande Dirceu quando a paixão e a política o arrebatavam para os ermos. E há ainda hoje fanáticos do poeta que afirmam distinguir no murmúrio da água o nome suave de Marilia.
Cheio de vergonha saltei da cama, enfiei a cabaia e, sem olhar para a alcova faustosa, desci acompanhando o criado que me deixou à porta do banheiro.
Lavado e vestido, apresentei-me na sala de jantar, clara de sol e cheia de um festivo canto de passarinhos. Acendi um charuto e, de mãos enfiadas nos bolsos, comecei a passear de um lado para outro, assobiando uma área rústica.
Ia admirar tranquilamente um quadro de frutas, quando o criado veio dizer-me, muito teso, estendendo um gesto nobre para o exterior: — que meu tio estava à minha espera no jardim.
Respirei aliviado! Ia enfim fugir aos olhos daquele Argos da moralidade. Atirei fora o charuto e desci.
Meu tio, todo de branco, com um gorro de seda à cabeça, agachado, examinava os canteiros. Sentindo o rumor dos meus passos no saibro, que cintilava ao sol, voltou o rosto purpúreo e nas suas bochechas nédias perpassou um sorriso fugitivo. Ergueu-se resfolgando, com as mãos papudas cheias de terra, de sorte que não me atrevi a beija-las para não macular os meus bigodes lustrosos e rescendentes.
— Meu tio passou bem a noite?
— Como um abade. E tu?
— Maravilhosamente...
Ele mirou-me dos pés à cabeça e pareceu satisfeito com o meu terno de brim pardo, não desdenhando os sapatos amarelos, que eu trouxera para “surrar em casa”, como dizia pitorescamente minha santa mãe quando pregava sobre economia doméstica.
— Que tal o alojamento, Anselmo?
Gabei sem reservas a beleza e o conforto do teto hospitaleiro, creio até que o teria comparado aos palácios maravilhosos de Aladino e à soberba vivenda de Sindbad se um homem, com dois enormes regadores vermelhos, não viesse interromper o nosso colóquio. Era o Jerônimo, jardineiro. Parou um momento para dar a meu tio a boa nova do desabrochamento das camélias e, radiante, limpando com o braço o suor da testa, disse que já havia dois botões das rajadas. Meu tio felicitou-o e, como o Jerônimo retomasse os regadores, acrescentou — que as violetas estavam encharcadas.
— Não há dúvida... não há dúvida, senhor; aí vem o sol, disse o homem. Quem dirá que ontem choveu como choveu...? A terra está seca e a planta carece d’água. Olhe, se eu fosse outro, deixava as purpuras sem água... mas vá Vossoria ver... a terra está mirrada, parece que a secaram ao fogo. É verdade que ali não chove por causa do telheiro.
— E de cravos, como vamos?
— Ainda, não os há, disse o Jerônimo, consternado, e derreando-se ao peso dos regadores, foi-se, bradando a um gato que raspava a terra fofa de um tabuleiro.
— Gostas de flores, Anselmo?
— Loucamente, meu tio.
E fomos caminhando para a casinhola rústica. Sobre o colmo cantava uma cigarra.
— Bom tempo, pressagiou meu tio.
Havíamos chegado ao retiro do aperitivo, onde nos esperava o álcool matutino, a gota confortável que aquecia o estômago preparando-o para receber o almoço. Meu tio subiu pesadamente a elevação que dava acesso ao retiro, e achatou-se no comprido banco de pedra, que imitava um tronco d’árvore... e d'aí, como Satã na montanha mostrando a Jesus as riquezas da terra, disse-me — que ali assim estavam enterrados para mais de trezentos contos.
Eu sacudi a cabeça admirado e murmurei:
— Bem empregado dinheiro!
— Não bebes? Acenei — que bebia e ele serviu-me. Viramos.
O vasto mar azul, em frente, resplandecia ao sol. Velas de barcos fugiam, muito brancas, aflorando a vaga que, às vezes, se desfazia numa fita de espuma que vinha rolando, rolando e desmanchava-se. Aves pairavam e, subitamente, como se tivessem sido fulminadas, caiam n’água serena. O céu límpido, de uma cor fina e translúcida, estava radiosamente claro. A aragem fresca vinha cheirando à salsugem e balouçava as roseiras, perfumando-se de um novo aroma de jardins, mais delicado do que a maresia da costa. Dois pequenotes nus, muito luzidios, iam garrulamente rompendo o mar, atirando os braços; subiam na vaga inchada e alterosa, desciam no cavamento d’água e riam como dois jovens tritões que se andassem adestrando no seio Glauco do mar pérfido. E, mais longe, vários cavalos, quase afundados n’água, de cabeça alta e inquieta, eram esfregados por moços que riam às gargalhadas; um mesmo, montado, como um centauro aquático, obrigava a alimária a fazer voltas, nadando, a lembrar o hipocampo das antigas lendas. Ao fundo o recorte acidentado e escuro das montanhas.
A cigarra, na grande luz tépida que dourava o colmo da casinhola, entrou a cantar e meu tio, encolhendo as pernas e servindo novos conhaques, enternecido e lírico, disse poeticamente para atrair a minha atenção, toda entregue ao mar infinito:
— Ouve, Anselmo, a cigarra... está chamando o sol. E eu, para dar mais força ao lirismo, ajuntei, voltando os olhos para o alto:
— Sim, meu tio: é a cigarra que chama a primavera.
Ali ficamos muito tempo, num farniente aprazível, beberricando, até que o criado nos veio anunciar o almoço. Descemos lentamente. Eu vinha alquebrado de preguiça e sem apetite, sedento. A água de um repuxo, que esguichava, iriada e cantante, excitou ainda mais a sede do meu estômago abrasado. Parei um momento para admirar a elegância de um cisne que circulava com garbo, abrindo, de vez em quando, ao borrifo fresco, as grandes azas alvadias, iguais às que, outrora, Júpiter lascivamente tomou, em uma das suas metamorfoses, para cingir o corpo esplendido de Leda. Através da água límpida viam-se as palmouras rosadas remando com lentidão.
Meu tio, que havia chegado à varanda, chamou-me. Não quis partir sem acariciar a ave airosa e adiantei-me estendendo a mão para amaciar lhe o pescoço formoso; o cisne, porém, selvagem e arisco, entrou a espadanar com as azas e, escancarando o bico, a grasnar, pôs-se em atitude ostensiva, atirando-me bicadas. Deixei-o. Vendo-me partir veio precipitadamente até a borda da bacia e, a grasnar, parecia desafiar-me. Longe, no fundo do jardim, levantou-se um alarido terrível.
— São os gansos! disse-me o tio Serapião... e deixando a balaustrada da varanda:
— Anda daí que o almoço esfria.
A sala rescendia. A mesa pantagruélica, alva, nítida e farta encantou-me pela profusão de flores em jarrões, por entre os finíssimos copos de musselina, espalhadas pela toalha e de um aroma tão intenso que mal deixava sentir o cheiro dos acepipes. Sentei-me à direita do meu tio e começamos por um prato que me pareceu feito de ouro líquido. O criado que m’o serviu nomeou baixinho: — Maionese. Fartei-me.
Meu tio, com a boca cheia, olhou-me de certo modo e percebi que o seu olhar de epicurista, umedecido e languido, queria dizer alguma coisa; fitei-o até que engolisse o bolo que rolava na sua boca de gastrônomo, inchando-lhe as bochechas:
— Um petisco, hein, Anselmo? e passou o guardanapo pelos beiços reluzentes. Eu, sem dizer palavra, arregalei os olhos, sacudi a cabeça e enchi de novo a boca. Quando bebi o vinho, que rutilava num cálice diante de mim, pronunciei-me francamente:
— Com efeito, meu tio... é um prato! e ele, atraindo uma lata de sardinhas, também arregalando os olhos, concordou: É um prato! A um gesto seu o criado içou os transparentes; o sol inundou a sala de uma grande claridade — cristais e faianças cintilaram. Os canários, deslumbrados, entraram a voar tontos, agarrando-se às grades das gaiolas, mas a pouco e pouco, habituando-se, voltaram à tranquilidade e foi bastante que um cantasse para que o chilreio irrompesse estrídulo. Pedi água e o criado, inclinando-se, indagou baixinho se eu preferia Vichy ou Apollinaris.
— Do pote, tornei ao solicito.
— Experimenta Apolinaris. Apolinaris com um pouco de Bordéus, aconselhou meu tio e, voltando-se para o criado, com o garfo erguido e cheio de sardinhas: Abre Apolinaris...
Resignei-me. Momentos depois um estampido atroou e logo um jorro fervido inundou meu copo.
— Bebe! Bebe enquanto está quente. Levei o copo à boca e bebi... mas com que ânsias...! Um eflúvio de termas subia-me ao nariz. Subitamente acudi com um guardanapo à boca, mas não tão rápido que pudesse evitar um escândalo.
— Perdão, meu tio! murmurei corado.
— Não sou inglês. Eu cá não faço cerimonias. Havias de engoli-lo? disse a rir.
As carnes não me tentaram, mas fui forçado a mastigar uma febra de roastbeef e uma fatia de presunto. O tio devorava tranquilamente, sem levantar os olhos do prato.
Ao fim do almoço, saciado d’agua, afastei-me para a varanda. Fazia calor — as folhas murchavam à luz cáustica e ouvia-se a voz fina do Jerônimo, que cantava aparando a grama.
Debruçado para o jardim, olhando vagamente, numa abstração de todo o meu ser, comecei a sentir-me invadido por uma tristeza que me caia na alma, suave e melancólica como um crepúsculo.
Uma sombra interior velava a radiosa alegria do meu espírito e sem causa visível, porque diante de mim havia a vívida e resplandecente claridade do sol, o imaculado azul e todo o verdor viçoso dos arbustos que as borboletas corriam, sentia como a aproximação de uma tormenta, as primeiras ânsias da lágrima.
Indecifrável fenômeno o da visão da ausência!...
Um véu espesso passou-me pelos olhos. Tudo que a minha vista alcançava desapareceu num momento e vi, como em cenário, num longínquo horizonte nebuloso, aéreo, a paisagem silenciosa da minha terra, no vale fresco e verde, no fundo do qual escorre, quase sem bulha, o córrego das Almas, que vai de sítio em sítio, abeberando as hortas e os rebanhos, sempre manso e sempre claro, que não o toldam senão as flores dos espinheiros que o margeiam, e essas, pobrezinhas! Com um leve frêmito d’agua, desfazem-se, desaparecem e passam quase invisíveis como um pólen subtil.
E a minha casa, além! bem visível, branca no verdejante pomar, e gente na eira e gente pelos caminhos, os meus com as suas feições tão nítidas, tão perfeitamente acentuadas, que eu os fui reconhecendo a um e um, como se os visse, não através da miragem meiga de minh’alma, mas na verdade fiel da vida que além vivem. Repentinamente a visão diluiu-se. Alguém chamava-me baixinho — voltei-me. Era o criado:
— O senhor seu tio pergunta se não quer ir à cidade?
— Dize-lhe que vou... e, dissimulando, passei rapidamente o lenço pelos olhos.
Quando desci, aprumado e airoso no meu terno de cheviot claro, meu tio roncava na casinhota do jardim, com a cabeça descaída sobre o recosto do banco, o papo em evidência, todo molhado de suor e rubro, a boca aberta, os braços pendentes num abandono flácido. A cartola repousava sobre a mesa e o precioso unicórnio, encastoado de ouro, jazia aos seus pés como um cajado vulgar.
A impaciência e a temperatura da hora tépida, macia e sonolenta haviam, por assim dizer, narcotizado o pobre homem. Da janela do meu quarto para onde, de instante a instante, ele levantava os olhos ansiosos, eu o via caminhar ao sol, com enormes bocejos, riscando a areia com a ponta da bengala. Subiu e desceu lentamente as áleas do jardim, por fim perdeu-se e só o vi depois nessa posição pacata, refestelado, a dormir à sesta como as roseiras dormiam no silêncio canicular desse meio-dia abrasado, murchas, enlanguescidas, enquanto a terra incansável infundia-lhes a seiva vivificante para que, mais tarde, ao frescor vesperal do crepúsculo, os botões despertassem e distendessem as pétalas, abrindo-se.
À porta estacionava uma vitória. O alto cavalo, negro e luzidio, escarvava fogosamente, picado pelo sol. Meu tio grugrulejou como se sorvesse uma golfada quente e esfregou os olhos.
— Boa sesta, meu tio. Ele ergueu-se mole, com os braços abertos em cruz, o ventre empinado e falou espremendo-se:
— Boa estafa é que foi. Que diabo estiveste fazendo até agora? Sacou o relógio e mostrou-me: Uma hora da tarde.
— Um trabalho para descobrir a roupa, meu tio. Arranjaram-me de tal modo a mala que, para encontrar um par de meias, tive de despeja-la.
Meu tio mirou-me detidamente e, com satisfação e vaidade, li no seu olhar — que me achara digno. Tomou a cartola e eu apanhei o unicórnio para poupar-lhe o sacrifício de abaixar-se.
— Está quente! disse limpando a fronte.
— Um dia de fogo, mas lindo!
— Lindíssimo! Deu um puxão às calças olhando o céu.
— Vamos, Anselmo.
Durante o caminho parou diante de todos os canteiros examinando carinhosamente as flores, decepando galhos secos, com uma solicitude bondosa. O criado correra a abrir o portão. Saímos.
Ah!
As interjeições são pequeninas sínteses. Como em um átomo o olho de sábio descobre todo um mundo de complexidade, nas interjeições o arguto espírito de um gramático descobriria todo um romance, se quisesse, e facilmente o reconstituiria. As grandes emoções manifestam-se pelo laconismo monossilábico dos oh! e dos ah! Concisas, como são, dizem mais do que os períodos e suprem, com vantagem, o complicado artifício de que lançam mão os escritores, artifício que nem sempre é bastante para exprimir o que sentem e raras vezes auxilia a externar o que pensam. Ah! e Oh! hiatos insignificantes, mas analisai-os, profundos mestres.
Diante de um quadro de Rubens — ah! e nada mais, alguns manifestam deste modo o seu pasmo; diante de uma mulher formosa oh! — oh! soturno e comovido, que o agudo só tem aplicação nos momentos de terror. A tragédia do pânico tem a sua clave: uh! Otelo: oh! Macbeth: uh! Ofélia... ah! suspiroso; os Sete Infantes: ôooh! Mesmo no amor encontrareis um ah! trêmulo e doce. O suspiro é um ah! isolado e, como dizem os pessimistas que o riso é ainda uma forma da tristeza, a gargalhada é um rosário de suspiros.
Ah! e nada mais foi o que me fugiu da garganta quando me sentei nas almofadas de damasco cor de vinho da vitória de meu tio. Que regalo! E, em verdade, que podia eu dizer que desse exatamente a impressão de aconchego que senti quando me aprofundei molemente no macio assento? Que podia eu dizer que traduzisse o gozo, quase sensual, que experimentei senão o que veio espontaneamente aos meus lábios: ah! um doce e demorado ah! que me ficou muito tempo a brincar na boca e que eu acompanhei com uma mímica fantástica — olhos arregalados, braços abertos como se me balouçasse em ondas... Ah!
E meu tio compreendeu porque voltou-se imediatamente dizendo:
— Molas excelentes, hein?
— Excelentes, concordei hilariante e baboso; excelentes, meu tio, e, sem que ele percebesse, levantei-me um pouquinho e deixei-me cair para ter o gosto de afundar como afundei.
O cocheiro, um inglês, magro, raspado, retesou-se na boleia tenteando as rédeas para sofrear o cavalo negro que pinoteava.
— S. Francisco, disse secamente meu tio e logo rodamos.
Estiquei as pernas mergulhando os pés no pelego felpudo.
— Não fumas, Anselmo? E as mãos papudas ofereciam-me charutos. Esgazeado e hirto de espanto entalei-me no fundo do carro. Pois meu tio... a oferecer-me charutos...! É uma cilada, disse comigo. Meu pai, com a sua moral primitiva, entende que fumar é um vício execrando para os moços, principalmente em presença dos mais velhos. Em casa, quando me tenta o desejo de tragar uma fumaça, corro ao meu quarto e fecho-me ou desço ao pomar para não ir de encontro ao preceito paterno, que é uma herança dos maiores. Educado em princípios de tanta austeridade, agradeci os charutos. Meu tio, porém, insistiu:
— Fuma, homem; já não és criança, disse num tom cheio de sinceridade que varreu do meu espírito o resto de escrúpulos, Fuma — e entregou-me um charuto. Ainda assim, senti certo vexame, ele, porém, insistiu novamente, animando-me.
— Não tens fósforos?
— Sim, meu tio; tenho aqui. Acendi o charuto e baforei para o mar a primeira fumaça dando as primícias do meu havana ao respeito, como os antigos pastores ofereciam a Deus as primícias dos seus rebanhos, depois recostei-me, fumando ante as barbas grisalhas do irmão de meu pai.
O Rio começava a aparecer-me. A vitória corria cruzando-se com outros carros elegantes, onde iam senhoras faustosamente vestidas. Dos bondes espiavam-nos com interesse curioso. Eu encolhia-me para que me não vissem, ia ali assim como um deus num nicho, apenas visível para os que, como eu, passavam luxuosamente em carruagens e que nos procuravam reconhecer. Meu tio, habituado ao luxo, ia indiferente, todo preocupado com o seu charuto; eu não, mostrava-me, queria que as mulheres olhassem para o meu rosto rosado e fresco, para os meus olhos femininos, para os meus lábios purpúreos e carnudos, para os meus bigodes sedosos, para o meu largo peito forte, e que reconhecessem em mim um modelo de homem, um remanescente da idade morta, quando a força era divinizada e o músculo merecia poemas; um sólido e másculo exemplar de sertanejo capaz de amá-las com mais ardência e com mais impetuosidade do que esses rapazes pálidos, de olhos tristes, que passavam acabrunhados e exaustos, sem viço, sem entusiasmo, frouxos e melancólicos, sugados pelo vampiro da anemia, derreados pelas vigílias devassas.
A vitória parou. Saltamos e eu, curioso de ver e de admirar maravilhas, olhei em volta. Era uma grande praça quadrada e clara, murada pelos edifícios que reverberavam à luz radiante do sol. Ao meio, sobre um pedestal negro, a estátua tosca de um homem, numa atitude cheia de solenidade, a mão estendida num gesto clássico de tribuna, como a alegoria icônica do meeting que é, em nossos dias cultos e morigerados, o escoadouro da inofensiva indignação das massas. Meu tio, indicando-me a efígie escura, disse:
— José Bonifácio, o patriarca da nossa independência e da tribuna dos comidos.
Admirei reverente o patriarca, rijo, inflexível, imóvel no seu molde perpetuo de bronze, como a imagem do patriotismo isolada na vasta agora, para exemplo das gerações. Meu tio, descrevendo com o seu unicórnio um hemiciclo no ar, falou para despertar o meu civismo:
— Olha, Anselmo, de um lado a religião, Deus e o mistério. É a ala santa do perímetro do nosso patriota — e levantou a bengala. Meus olhos seguiram a sua indicação e viram no alto da torre um galo rutilante. Tive ímpetos de pedir a significação da emblemática... Seria, por acaso, a figuração do bicho que cantou três vezes despertando a consciência de Pedro na grande noite triste de Gethsemani? Mas meu tio já havia baixado a bengala.
— Aquilo que ali vês ao fundo, Anselmo, é a ciência.
Um casarão alvadio com um terraço à frente. Mal tive tempo de admirar porque a voz grave do cicerone já pronunciava:
— À esquerda, o comércio, a indústria, o movimento... Com efeito a vida parecia decorrer do ponto indicado — bondes chegavam despejando gente, partiam cheios; carros cruzavam-se: era um vozear confuso, indistinto — pregões, apelos, silvos, tilintar de campainhas, brados. Olhei atordoado. Meu tio voltara-se para a estátua e contemplava-a extático.
— Grande homem! disse eu.
— Grande patriota! acrescentou meu tio e voltou-se com a bengala em riste, risonho, mostrando-me uma rua em frente:
— Conheces?
— Não, meu tio, mas noto que está cheia de gente — parece que vem por aí abaixo um oceano popular para revinditas.
— É sempre assim, disse e, com lentidão, abriu a sobrecasaca e tirou do bolso profundo um maço de papéis. O sol abrasava pondo-me pruridos na carne e meu tio, calmo e tranquilamente, suando e resfolgando, consultava os papéis. Por fim atafulhou com o maço no bolso e, vagarosamente, desdobrou diante de meus olhos uma folha de papel azul e, indicando-me uma frase com o dedo grosso, sorriu mirando-me. Era uma carta minha e o que ali estava debaixo do pesado e húmido indicador, era apenas isto — “ver a rua do Ouvidor”. Sem ler mais, estremecendo, cravei os olhos na rua... e, sem uma palavra, mudo, abatido, como se me tivessem dado uma notícia de morte, suspirei.
— Uma surpresa, hein?
— Uma desilusão, meu tio, disse eu, murcho. Mas o sol ardia. Quase torrados fomos caminhando para a desilusão, porque ali, ao menos, havia sombra e fresco. Eu ia consternado.
— Mas então... que te parece?
— A mim?
— Sim... ?!
— Ah! meu tio... Pode ser que esta rua seja uma maravilha, mas infelizmente, antes de vê-la, antes de pisá-la, eu a sonhara... e o sonho, que é uma visão do mistério, vai sempre além da realidade.
— Então... que esperavas tu?
— Eu? uma avenida como as que tenho admirado em gravuras, como as que tenho visto descritas: com grandes casas apalaçadas, ruas cuidadosamente calçadas de mármore... arquitetura e gosto, arte e elegância, e largueza sobretudo, meu tio; largueza, muita largueza... Um velhinho magro, esgrouviado, com um amplo casaco cor de castanha, surrado, tomou a frente a meu tio estendendo-lhe ambas as mãos, pálidas como as de um cadáver. Encostaram-se a uma vitrina. O velho sacou do bolso uma enorme carteira e foi desdobrando papéis, cochichando, com risinhos. Meu tio aprovava com ar digno, coçando o papo. Parado em meio da rua, olhando, eu sentia caírem dentro em mim, um a um, todos os meus sonhos ingênuos de roceiro. A multidão cruzava-se num formigamento ativo; grupos chocavam-se. Havia constantemente um chapinhar de solas, frufru de sedas e, de longe, como um hausto perene e sôfrego, vinha um aaah surdo... De vez em vez parecia-me ouvir o rumor cadenciado e longínquo do destilar de um exército.
Sentia-me atraído pelo luxo dos mostradores. Meus olhos esmerilhavam, rebuscavam, examinando as casas, da soleira à cimalha, penetrando-as, varejando-as indiscretamente com uma ganancia de imprevistos, com uma avidez de novidades... mas desciam desenganados porque a rua que eu antevira, a rua que eu sonhara... Ó divinos jardins suspensos! ó avenidas de loureiros e de anémonas! como estais longe da esplendida passagem que meus olhos viam em arroubos, quando me punha a pensar nesta viagem ao Rio e realizava, embevecido, de olhos fechados, deitado na relva, tamborinando no ventre, o meu passeio elegante pela calçada de mármore branco, refrescada, duas vezes ao dia, com esguichos d’agua de rosas. Não, decididamente eu não tinha razão — o que eu estranhava não era a rua do Ouvidor... todo esse pungitivo sentimento que me oprimia vinha da morte de uma ilusão. Para os que não viram, para os que não sonharam coisa melhor, a rua é admirável; mas para os que podem estabelecer confrontos, perdoa-me, artéria da civilização patrícia, perdoa-me, avenida da elegância e do espírito fluminense, não passas de uma viela atarracada e sórdida. O velhinho inclinou-se de novo com as mãos estendidas e meu tio voltou a ocupar junto a mim o seu posto de elucidário.
— Então, Anselmo?
— Estou procurando o encanto, meu tio.
— Descansa, descansa, disse tomando- me o braço, ele é que há de procurar-te. E estacando mostrou-me a rua com o mesmo gesto com que, em casa, do alto da casinhola, me havia mostrado o seu jardim: Então isto não te impressiona?
— Não, meu tio... e digo com sentimento.
— Esperavas alguma coisa como o boulevard des Italiens, como a cale Florida? acudiu Serapião, versado em guias.
— Coisa melhor! muito melhor!
O elucidário lançou-me um olhar carregado de pasmo.
— Contaram-me tantas maravilhas desta rua que não é muito que eu me confesse desiludido, porque o sentimento que, em verdade, subjugo é de indignação, a mais justa indignação contra todos quantos me atordoaram o espírito com exageradas fantasias e soberbas descrições de um fastígio incomparável. Em casa de Marianno Gomes, o Dr. Gusmão, promotor, que parava, de vez em quando, alguns niqueis, no seu feminino palpite — a sota, durante uma longa noite de azar e de chuva, encurralando-me no vão de uma janela, falou-me, com a sua eloquência de júri, longamente, calorosamente, acerca da rua do Ouvidor, contando-me aventuras que havia gozado em companhia de um desembargador, homem culto e de gosto. Foi quem mais alarmou o meu espírito ingênuo, foi esse órgão da justiça pública o mais perverso e cruel dos mistificadores. O padre Coriolano que, de longe em longe, vem gozar no Rio um mês de inverno, disse-me, uma vez, em casa da Maria Balbina, que isto era como a Saburra de que fala Horácio: um lugar de vícios. Marianno Gomes, mais franco, explicou-me numa frase sóbria e devassa: “Que para a pandega não havia igual...!”.
Mentiram todos: a lei, a religião e a batota. Isto é uma miséria! Nem aventuras, nem Saburra, nem pandega!
— Espera, atende, acalma a fúria, Anselmo. Se ainda não a conheces! disse meu tio com um sorriso malicioso. A rua do Ouvidor tem o seu segredo de atração e de enlevo como certas mulheres que, apesar de feias e avelhantadas, vivem perseguidas pelos adoradores. Hás de concordar: há mulheres tais; a razão? o motivo? dize... Dei de ombros e meu tio explicou com arreganho — um encanto particular, Anselmo, coisas... Depois, recompondo-se, voltou a falar com gravidade, fitando a rua: Não é bela, concordo. Vê-se que não foi traçada por um Haussmann, mas lá encantos isso tem ela... É preciso viver, conhecê-la, penetrar-lhe o segredo. Não estou longe de pensar contigo. Isto é um beco.
— Um beco! corroborei com desprezo.
— Mas queres saber a razão principal da sua nomeada? inclinou-se olhando-me vesgo. É que ela é o centro da vida nacional. Descolamo-nos para respirar, ele, porém, puxou-me de novo: Todos os grandes fatos da nossa política e da nossa literatura derivam da rua do Ouvidor — ela é o estuário que recebe todas as correntes, o centro para onde convergem todas as forças ativas da nação e donde se escoa a seiva intelectual...
— A seiva intelectual! ... exclamei recuando, e meu tio, impassível, acastelado na sua convicção, repetiu abanando com a cabeça:
— Pois não... pois não, seiva intelectual. E continuou: Tens ali a imprensa, e levantou a bengala para uma sacada onde havia uma comprida tabuleta negra com grandes letras brancas — e, passeando a bengala como um ponteiro, prosseguiu: o comércio, a indústria. Firmou-se passando o lenço pela fronte gotejante: O câmbio, as leis, tudo quanto orienta e desorienta o Brasil sai daqui...
— É o laboratório, comentei com ironia, e meu tio aceitou:
— O laboratório, pois não. Mais ainda, vou mais longe. A meu ver a nossa forma de governo é a rua do Ouvidor, a nossa religião é a rua do Ouvidor — as constituições, os figurinos e os atos de fé saem deste beco. Isto é a pia lustral que consagra os fatos e os homens. Esta rua ecoa todos os sucessos do mundo como na vida fisiológica o cérebro, por um fenômeno de repercussão nervosa, reflete todas as sensações do corpo. Meu tio, cansado do rasgo cientifico, aspirou largamente e tossiu, mas a facúndia voltou: As mulheres, para imporem a sua formosura, descem e sobem a rua várias vezes. Há um talento prodigioso por aí além... quem o conhece? Ninguém! Quantos poetas vivem ignorados por esses recantos, sem jamais alcançarem a glória da publicidade?
— O Simão Carreira...
— Sim, o Simão... Há por acaso alguém que conheça o Simão?
— Eu, meu tio. Conheço-o e admiro a sua inspiração, sempre nova e fértil.
— Mas... tu és uma parcela insignificante. Para imortalizar um homem só o sufrágio coletivo, e a urna aqui está. Tenho certeza de que o Simão, com um dia de rua do Ouvidor, faria mais pela glória do seu estro do que tem feito com 28 anos de trabalho modesto no canto obscuro de Tamanduá, entre os milhos. Bastava que recitasse dois ou três sonetos. E meu tio alongou o braço: O caminho da glória ó este, Anselmo.
— Não é feito de rosas, meu tio.
Davam três horas e o calor escaldava.
Meu tio propôs um grogue gelado, no Paschoal. Íamos caminhando lentamente quando dei com os olhos em uma esplendida mulher loura, alva e rosada, de preto. Nos cabelos dourados uma espécie de diadema régio, com duas cristas de penas vermelhas, como no gorro do Mefistófeles, que eu vira, em tempos, numa ilustração de Natal.
— Linda mulher, meu tio!
— Divina! concordou ele estacando para admirar. A loura aproximava-se coleando por entre a multidão, atraindo os olhos lúbricos, altiva, indiferente, com um andar soberbo de rainha, o colo farto escondido por um grande leque de plumas escuras, que ela agitava com languidez, como uma grande aza. Passou por nós e tive apenas o tempo de ver a cor inocente e doce das suas pupilas azuis, mais claras do que a selagem da altura e ainda mais suaves, a boca, pequenina e vermelha, uma curva sanguínea e húmida. E o aroma que ficou à sua passagem, que delicioso!... Linda mulher! tornei voltando- me para admirar o airoso passo cheio de majestade e graça.
— É uma escultura...
— Uma escultura, meu tio. E, trincando o beiço, nervoso, tornei à frase: Linda mulher! com efeito... Mas meu tio, que adiantara alguns passos, vendo-me parado a olhar, absorvido no vulto que desaparecia, chamou-me:
— Vem daí. Vamos ao grog, que está quente a valer.
Fomos descendo com vagar por entre a turba, ora colando-nos às paredes, ora desviando-nos para o meio da rua para dar passagem ao feminino. Meu tio, apesar da sua corpulência anafada, esgueirava-se sorrateiro e ágil, sem perder a linha correta que lhe dava o ar distinto de um diplomata em férias. Eu, porém, atordoado e zonzo, parava de instante a instante, evitando os esbarros e as colisões.
Uma rotunda senhora, de roxo, o rosto plácido e sumarento, cor de goiaba madura, olhos fundos, de um brilho fulvo e mau, estacou diante de mim, ameaçadora e terrível, inchando as bochechas moles, sufocada de ira. Precipitei-me para lhe dar caminho, mas com tal desazo, que nos encontramos, frente a frente, numa umbigada tremenda. Foi horrível! O vexame tirou-me de todo a calma. Dei um salto para a esquerda e encontrei a senhora, fugi para a direita, e ela... Assim estivemos um bom par de segundos num balancé ridículo, até que fui repelido para o meio da rua, exausto e com o chapéu na mão. E a senhora passou como uma avalanche, resmungando coisas atrozes contra mim. Ó divino De Maistre, queria que visses esse exemplar nédio e colérico do teu “belo animal”, queria que o tivesses um minuto diante dos olhos para que me dissesses depois em que casta dos beluínos o classificarias.
Livre, respirei um momento, enxugando o suor que rolava copiosamente pelo meu rosto e, ansioso, perdido, alonguei os olhos procurando meu tio.
A multidão... a multidão... a promiscuidade terrível... todas as variadas escamas desse camaleão — o povo (como disse uma vez em discurso o verboso promotor Gusmão, referindo-se às mutabilidades da opinião popular, à versatilidade da alma coletiva)... tonteava-me e meu tio, a preciosa escama celibatária e farta, sumida, longe da minha, vista... Dei alguns passos atônito, desvairado, julgando-me perdido no oceano tumultuoso da populaça que me aturdia: os homens, com os seus cotovelos, as mulheres, com os seus olhos, com os seus cabelos, com o aroma que deixavam ficar no ambiente, como um pólen invisível para fecundar o amor. Por fim, reconheci a voz de meu tio:
— Ó Anselmo!
Voltei-me ansioso e descobri-o à porta de uma casa, acenando-me.
Corri pressuroso e, mal nos encontramos, desabafei: Que rua, meu tio! Que garganta! Que inferno!
Ele sorriu, sacudindo com um piparote alguma coisa que trouxera da multidão na gola do casaco, e, naturalmente, puxando-me pelo braço, colocou-me junto de umas caixas de biscoitos, ao lado de prateleiras carregadas de puddings e de frascos bojudos de geleias inglesas.
— Vamos ficar por aqui. Não há mesa por enquanto. Lancei um olhar de exame à casa. Era uma sala vasta, dividida ao meio por uma linha resplandecente de colunas, de quatro faces, forradas de espelhos. O fundo era um grande espelho corrido do solo à linha branca do estuque, refletindo, aprofundando o interior, rumoroso e cheio. As paredes, de alto a baixo, carregadas de garrafas; por dentro de um balcão de mármore e níquel, dois homens, em mangas de camisa, sacolejavam cocktails; ao centro, uma comprida mesa de serviço. A outra parte da sala era reservada à pastelaria e aos confeitos. Pelas vitrinas, frascos de compotas, latas de conservas; sobre o balcão pratos de fios d’ovos, bolos, tortas; nos mostradores semiabertos alfenins e doces miúdos, loiros: de creme; escuros: de chocolate, polvilhados de amêndoas; pastilhas em bocais enormes.
As portas estavam entulhadas de queijos, de salames e de linguiças e nos armários de exposição os finos bombons em caixas artísticas, ornadas de cromos e polichinelos empanturrados de amêndoas, sacolas e outras coisas de formas extravagantes— tartarugas, caixas de fósforos e um Bismarck pançudo com o nome Boiasier no retrospectivo lugar das palmadas na infância, dos pontapés na virilidade.
Um grande aquecedor de empadas, rodeado de homens que mastigavam gulosamente. Do teto, presas por fios negros, pendiam lâmpadas elétricas.
Não havia uma mesa — todas cheias. Grupos de rapazes, os cotovelos fincados no mármore negro, gesticulando, falando alto, riam espremendo sifões. Senhoras cerimoniosas, com o véu levemente arregaçado, chuchurreavam sorvetes. Em uma mesa um rapaz loiro, imberbe, inclinado para o companheiro, pálido, de pince-nez, lia baixinho umas tiras de papel, levantando o braço direito em gestos supremos, todo arregaçado — o companheiro tinha os olhos perdidos no fundo do copo. Caixeiros azafamados passavam com bandejas carregadas, abriam garrafas, serviam pratos. Havia um rumor confuso e, de quando em quando, um berro: conhaque! um nome: Barroso! e estouros de garrafas desarrolhadas, estrépito de louça, tinir de talheres...
Meu tio, que se voltara, disse-me confidencialmente:
— Tens aqui o Paschoal!
— É soberbo...!
— É chique.
De repente abandonou-me e foi-se precipitadamente, de esguelha.
— Com licença! Com licença! para a direita, para esquerda, porque era preciso incomodar os que faziam pacatamente a sua hora de lunch ou de vermouth, para dar passagem ao seu prodigioso ventre; e foi seguindo até o fundo da casa, junto ao grande espelho.
— Temos aqui uma! Temos aqui uma! disse, chamando-me. Já havia tomado duas cadeiras quando um sujeito magro, de cavaignae, avançou com um petiz ao colo, babujado de creme. Falou com a boca cheia: “Se lhe podia ceder uma cadeira?” Mas meu tio, com um sorriso, voltou-se, designando-me ao do cavaignae, como se lhe quisesse significar: “Bem vê que não é possível, tenho aqui meu sobrinho”.
O homem agradeceu e foi-se com o petiz que chalreava, pedindo coisas, com os braços estendidos. Sentamo-nos. Uf!
— Uma estafa, hein, Anselmo?
— Uma estafa, meu tio!
— É sempre assim. E a um caixeiro que passava com uma bandeja de sorvetes:
— Ó Barros...
Volto já, senhor comendador. Volto já. Foi-se, equilibrando os copos e meu tio, descansando o chapéu numa vara de metal que corria ao longo do espelho, bufou esbaforido:
— Está quente! ...
— Um forno!
— Amigo comendador, disseram, e eu, pelo espelho, avistei um rapagão de fartos bigodes loiros, pince-nez, sobrecasaca e calça clara, que arriava a cartola cumprimentando meu tio. Falava a umas senhoras dando palmadinhas de carinho nas bochechas de um pimpolho, que amuava ao colo de uma negra retinta, com uma touca de seda, donde pendiam até os pés duas largas fitas cinzentas. Meu tio correspondeu com afabilidade oferecendo-lhe a mesa, onde, até então, somente havia as nossas bengalas cruzadas. Ele espalmou a mão — que esperasse.
— Quem é, meu tio?
— O Dr. Gomes de Almeida, advogado. Moço de talento e rico.
— Belo rapaz.
— Boa prosa. Hás de ouvi-lo. Voltei-me, porque meu tio afastara a cadeira e já estava de pé. O Dr. Gomes, radiante e de braços abertos, apertou-o com intimidade.
— Meu sobrinho Anselmo... O Dr. Gomes de Almeida, meu amigo, apresentou meu tio. Trocamos um aperto de mão e sentamo-nos. O caixeiro, que voltava, inclinou-se passando pelo mármore uma toalha felpuda:
— Que há de ser, Sr. comendador?
— Três grogs.
— Não, não, acudiu o doutor — para mim, um cocktail. É a minha hora e em questão de hábitos não transijo.
— Dois grogs e um cocktail, repetiu o caixeiro, deixando sobre a mesa um cartão minúsculo. Meu tio, dirigindo-se ao doutor, disse indicando-me:
— É a primeira vez que vem ao Rio.
— A primeira vez! exclamou ele, cravando em mim os olhos claros.
— Estive aqui em janeiro de 72, cinco dias apenas, em um hotel. Grassava a febre amarela e meu pai, que viera para matricular-me em um colégio, ao fim de três dias, resolveu abalar, aterrado, preferindo conservar-me ignorante, mas vivo, a seu lado para governo das suas terras. Fugimos, e justamente no dia da nossa partida, no quarto próximo ao que habitáramos, faleceu um jovem americano eletricista, que viera ao Rio por conta de um sindicato, tratar de uma empresa de campainhas. O correspondente, que nos escreveu, felicitando-nos pela retirada prudente, falou do pobre forasteiro dizendo que na agonia entrara a declamar em inglês umas coisas gementes, que mais tarde soube, pelo Dr. Azambuja, serem versos de Longfellow. Esse americano agonizando solitário entre os tabiques de um quarto de hotel, revendo na agonia as paisagens da Evangelina, nostálgico na suprema angustia, nunca mais me deixou o espírito. Apesar de o ter visto apenas uma vez, à mesa, não esqueci os traços femininos do seu rosto, de uma tez dourada e rósea, macia e branca como a de uma mulher. E tomei em tal horror o Rio que, apesar das reiteradas instâncias de meu tio, fui-me deixando ficar entre as minhas árvores, onde não chega a peste.
— E ainda receia? inquiriu o doutor, sorrindo.
— Não tanto, mas na multidão parece-me ver passar, de vez em vez, o americano pálido, desvairado e hirto. Para mim essa visão de alucinado é como um presságio de peste e, sempre que me falam de alguma vítima do terrível mal, vejo imediatamente levantar-se diante dos meus olhos o desgraçado moço recitando:
In the Acadian land...
— É extravagante, disse o doutor. E um belo caso de impressionabilidade.
O caixeiro fez deslizar pela mesa uma bandeja carregada de copos.
— Dois grogues e um cocktail...
O doutor sorveu um trago e, depois de chupar os bigodes, perguntou com interesse:
— E como tem achado a cidade?
— Pouco tenho visto: cheguei ontem... Mas meu tio interrompeu com uma expressão concludente:
— Não gosta. Sonhara coisa melhor.
— É geralmente o que sucede. Deu-se comigo o mesmo fato, disse o doutor. E voltando-se para mim: Imaginava o Rio uma cidade artística, monumental e nobre, com abundância de mármores, avenidas, longos passeios abrigados sob toldos, palácios de estilo e o fausto clássico. A cruzarem-se pelas ruas carros, cavaleiros; o luxo incomparável do sonho, a sumptuosidade da fantasia, o espírito, a elegância, a beleza, e encontrou uma cidade vulgar, som nada absolutamente do que lhe emprestara a sua imaginação, não é exato? Sorri, mexendo lentamente o meu grogue.
— Comigo sucedeu exatamente a mesma coisa. Quando daqui parti, em 80, para ter o prazer de pisar o solo trilhado pela humanidade nas suas marchas através do tempo, desde a era ariana até o período em que se moveram da terra de França, para as campanhas ambiciosas, as legiões que seguiam a águia altiva de Napoleão, fui perdendo ilusões a pouco e pouco. Era já com tristeza que descia a escada do navio quando chegávamos a algum porto, porque levava de antemão a intima certeza de que ia ver aluir-se um dos meus sonhos— e era fatal.
Paris, por exemplo — é um assombro, incontestavelmente... um assombro! Infelizmente, porém, o Paris que eu imaginara era o antigo, que eu vira descrito nos primeiros romances que me entretiveram as horas de mocidade — Paris dos duelos, Paris dos lansquenets, Paris das tascas românticas, Paris das vielas escusas, onde, à noite, à luz fumarenta das lanternas, tiniam as tinas e flexíveis espadas dos pajens rebatendo a rapière dos burgueses, Paris de Ponson, Paris de Dumas... É ridículo, não é? mas infelizmente é um fato geral.
Essas impressões das primeiras leituras que nos ensinaram a devanear, que nos tomaram pela mão para nos mostrar a estrada azul da fantasia, não esmorecem facilmente. É debalde que procuramos sufocar esse resíduo de infância ou de imbecilidade que fica em nossa alma, lendo solidas e doutas filosofias, espanando os preconceitos com o vasculho da crítica e da análise, destruindo, com as verdades da história, as fábulas que adquirimos na novela e no conto. Esse sedimento subsiste como gérmen abafado de onde, longe em longe, espontâneo e violento, rebenta um broto de sentimentalismo.
A verdade é que nós temos duas divisões — a do mundo real e a do mundo imaginário, e esta é a primeira que buscamos. É através dela que a Poesia entrevê o céu, ela é que torna o mundo possível, variando constantemente a sua face. Porque é que os astros são eternamente belos? É porque nós os olhamos com um pouco de imaginação. O Oriente, por exemplo... que decepção, meu amigo! Quando desembarquei em Beirute, que é, por assim dizer, a porta da Síria, senti tal aperto d’alma que a minha vontade foi voltar para a cabine, a bordo do paquete, que ainda se balouçava no porto. Tudo quanto eu julgara encontrar nessa terra, ancestral estava entulhado pela civilização, aluído pelo progresso: A indústria fincara os obeliscos das chaminés, que fumegavam como em Londres, como em Bruxelas, como em Amsterdã, a pátria da Genebra e dos organistas. O beduíno, em vez de traçar, como nos tempos históricos, o albornoz listrado, encolhia-se sentado a um canto, fumando um cachimbo Cambier, raspando com as unhas as pernas magras, vestido com um paletó cor de cinza, de gola de veludo. O degenerado que me deu cério pedindo solicitamente o guarda-sol e o binóculo vinha assim vestido. É verdade que encontrei um filho do deserto, autêntico, mas apesar do seu trajo pitoresco de sheik, apesar do yatagan e do cinto vermelho, ruminava um francês duro, oferecendo umas pedrinhas claras de uma fonte milagrosa citada pelo Profeta.
A Palestina... uma miséria! Mas o que jamais esquecerei é o que lhe vou dizer secamente, em quatro palavras. Quer saber o que encontrei no alto do Calvário, justamente no sítio santo em que foi crucificado o Cristo? Inclinou-se todo para mim olhando-me, fixando-me como se quisesse magnetizar-me, por fim disse com um gesto, sacudindo o punho e deixando cair palavra por palavra com força e fúria: — um grande mastro com um cartaz anunciando um leilão de jumentos... Um leilão de jumentos, é exato! E virou de um trago o coquetel.
Que quer? os homens entendem que podem encerrar todas as tradições das raças nas vitrinas dos museus, já dispensam os sítios santos da religião, porque a Luz é a ciência. Deus começa a ser analisado como o bacilo-vírgula.
Meu tio, que se sentia ferido nos seus melindres religiosos, inquiriu com uma ponta de incredulidade:
— Mas, doutor, era mesmo um leilão de jumentos? Talvez fossem relíquias...
— De jumentos, vi-os eu nu Calvário. Jumentos! E arreganhando os dedos: Quatro patas, comendador. Quatro patas e orelhas! afirmou.
— Cães! rusgou meu tio mostrando o copo ao caixeiro para que lhe servisse outro grogue.
— Não se incomode, comendador, não se incomode, acudiu tranquilamente o doutor apaziguando a fúria de zelo do meu beato parente. A religião há de vencer, apesar de todas as guerras que contra ela movem obstinadamente os pseudo-reformadores. Isso, longe de destruir a crença, aumenta-lhe o prestígio. Que era a cruz antes do martírio do Homem? um vilíssimo instrumento de suplício e é hoje um símbolo de misericórdia, é a ancora com que nos prendemos à Esperança. O azorrague, a coroa de espinhos, o septo de cana, a túnica de bissos, tudo quanto foi para Jesus opróbrio, é hoje objeto de respeito e de veneração. Esse mesmo poste, alçado como um ludíbrio, no santíssimo lugar, acabou comovendo-me e não dobrei os joelhos devotamente, creia o senhor, não ajoelhei, repito, de vergonha, porque andavam por ali umas mulheres que não tiravam os olhos de mim.
— Ajoelhar-se diante do poste dos jumentos, doutor!
— Pois não, comendador, diante do poste porque ele estava fincado no Calvário, que é a montanha por excelência, santificada pelas gotas do sangue do Cordeiro. O que eu ali via não era um poste de anúncio, era um mastro espetado no lugar em que estivera a cruz. Ali devia tremular a bandeira branca da Paz Universal. Tinha um anúncio, isso, porém, não era bastante para desmerecer o sítio aos olhos de um verdadeiro crente. O maldito reclamo, inventado pela ambição ianque, é que tem poluído os legados preciosos dos séculos.
Em Éfeso, por exemplo, nas soberbas minas do templo de Diana onde, à noite, ao luar triste, a gente julga ouvir os latidos da matilha feroz e os gritos das ninfas perseguindo o mísero e formoso Endymião, num fuste de esplendido mármore, entre folhas de acanto, avistei uma inscrição em letras negras — corri a decifrar e era um anúncio de cápsulas de sândalo.
O comércio afixa em toda parte, escolhendo, de preferência, os lugares celebres... O Passado vai desaparecendo sob cartazes de cores. Não há mais antiguidades, não há mais tradições, o que hoje há é uma avidez sórdida de dinheiro.
É preciso andar para conhecer-se o caráter do homem. Vende-se tudo nos mercados do inundo: inocências impúberes e águas misteriosas que fazem voltar a mocidade, consciências e homens. Em caminho encontrei de tudo, comprei de tudo para humilhar o semelhante. Em uma aldeia de Constantinopla, perto de um cemitério todo em flor, ajustei, por uma bagatela, uma formosa rapariga que me agradeceu, cantando uma balada turca, enquanto eu contava as moedas; em Esmirna abalou com um caixeiro que negociava em panos, deixando-me, como lembrança, uma lata de contas e uma rosa de Jericó! Tenho em casa, no meu gabinete de trabalho, relíquias preciosas compradas por aí além, desde o monte Atos, onde subi para avistar o célebre convento d’Aghios-Dionysios, até Paris: o dedo com que S. Thomé tocou a ferida aberta no peito de Jesus pela lança de Longuinhos, um pouco da palha mastigada pelo burrico que carregou a Virgem para o Egito, uma madeixa de João Batista, o cibório de cofiem com que polia as unhas Maria de Magdala, um prego da cruz, uma prova da legenda que foi pregada no tope do aviltante madeiro e um dos suspiros do Bom Ladrão; e relíquias profanas — a clava com que Atila aterrou o Ocidente, o tinteiro onde Carlos Magno molhava a pena para escrever os Capitulares, os óculos de Milton e os famosos sapatos com que o Alighieri andou pelas calçadas do inferno. Guardo tudo como recordação dos lugares que visitei para provar a vileza da alma do homem venal e torpe.
— Outro cocktail, doutor, ofereceu meu tio.
— Não, obrigado, comendador; basta. E voltou-se de novo para mim oferecendo-me cigarros turcos:
Depois que vi o mundo estou convencido de que o Rio de Janeiro é uma bela cidade. E o meu amigo, dentro em pouco, há de concordar comigo. Não é tão mau como parece. Demais, para um moço como o senhor, inteligente e forte, há sempre uma aventura à espreita. Descaiu um pouco para o meu lado e disse-me, em tom misterioso, apinhando os dedos nos lábios para colher um beijo: O Rio tem mulheres esplendidas! e atirou o beijo com um estalinho. Ainda não as viu, garanto...?
— Pois não. Passou por nós uma loura lindíssima!
— Uma...! Mas o Rio tem milhares, meu amigo. É preciso vê-las, conviver com elas no meio em que vivem. Não é na rua do Ouvidor, creia: é nos salões, nos boudoirs... nos boudoirs...! Ah! as mulheres, as mulheres...! foram a minha perdição em viagem. Antes de ver os edifícios, as belezas naturais e artísticas de um país, tratava de ver as mulheres e estou convencido de que é a mais bela coisa da Criação.
— Primeiro as Espanholas! aventurou meu tio com os olhos brilhantes de volúpia, recostando-se no varão de metal que corria ao longo do espelho.
— Não sei, comendador, não sei. Olhe que as inglesas são lindíssimas...!
Meu tio fez um momo.
— Espere, comendador, eu também pensava assim; mas em Londres convenci-me do contrário. Lembro-me sempre de uma noite em que se cantou o Ruy-Blas, no Covent-Garden... Comendador, não se descreve, creia, não se descreve. Imagine o senhor uma assembleia de estátuas, qual mais formosa, alvas de fascinarem, imóveis, numa atitude hierática, com grandes aureolas feitas dos próprios cabelos louros. E os olhos azuis, comendador, os olhos azuis das miss! quem os cantará como eles merecem! A impressão que tive em presença dessas donzelas da antiga nobreza foi a que teria um pobre civilizado de hoje vendo subitamente abrir-se o céu pagão e aparecerem todas as deusas, todas as graças num zodíaco como aquele hemiciclo de camarotes do teatro inglês. Que sei eu, comendador... Não havia uma mulher feia! Nem uma!
E espetou o dedo com convicção.
— Mas não têm vida, tornou meu tio, cruzando as pernas. São umas estátuas, como disse o doutor... E depois — que andar!
— Engana-se ainda, comendador. Decididamente o senhor precisa sair do Rio. Londres é a pátria das mulheres, convença-se, comendador. Não há louras como em Londres.
— Não gosto de louras.
— Ah! então italianas: as morenas de olhos abrasados. Há belíssimas mulheres em Roma, em Florença, em Veneza... A Zanelli... Meu tio piscou um olho discretamente; eu, porém, surpreendi-lhe a mímica no espelho fronteiro. O doutor calou-se um momento e logo continuou: Em Poma...
— Cá para mim não há como a Espanhola. É a mulher que me agrada. Quem é que traz com mais graça a mantilha do que uma andaluza? Quem agita com mais arte um leque? E depois... é outra coisa! Cá para mim não há como a Espanhola, insistiu.
— Quer saber onde encontrei belíssimos tipos femininos? Na Rússia. É exato, lindas mulheres.
— E as turcas, doutor?
Fez um momo e balançou a cabeça negativamente:
— Não gosto...
Um caixeiro aproximou-se e disse-lhe alguma coisa em segredo. Voltou-se de golpe e, apanhando a bengala: Com licença: vou ali à porta ouvir um amigo. Volto já.
— Pois não, doutor.
Levantou-se e partiu com os dedos na aba da cartola, a sorrir.
— Que tal, Anselmo?
— Inteligente. Lembra-me o padre Coriolano que, por haver decorado o livro de Ruth, repete, sem omissão de uma vírgula, todos os períodos do idílio. O doutor, falando, não deixa no espírito a impressão de uma palestra, mas de uma leitura: tem páginas magníficas. Mas, francamente, parece-me exagerado.
— Mentiroso, mentiroso é que é... E carrancudo: Há lá quem acredite na tal história dos jumentos? Leilão de jumentos no Calvário... Ora bolas! Mas recaindo em tom brando e resignado: Daí, quem sabe! do modo por que vão as coisas tudo é possível. E com ar triste e tédio: Que miséria! Até a religião! e engoliu um sorvo.
Pelo espelho eu seguia todos os movimentos do doutor, que falava a um rapazola pálido, de olhos mudos talhados à chinesa, bigode fino, uma singular fisionomia de máscara de seda com uns toques de imbecilidade. O assunto devia ser grave porque, de vez em vez, a fronte do doutor franzia-se e a sua cabeça douta pendia para o peito, cismadora e apreensiva. O rapazola, com gestinhos femininos, enfeixando os dedos, fazendo beiços, dedilhando no ar, pronunciava baixinho, precipitadamente, puxando, de vez em quando, o doutor para soprar-lhe um segredo ou recuando de braços cruzados, a cabeça à banda, mudo e fito.
Por fim o doutor irrompeu com uma bolachinha entre os dedos, exaltado, frenético, agitando o braço com violência e fúria; os lábios tremiam-lhe, os olhos chispavam e o seu bigode fulvo estava arrepiado de cólera.
Encolheu-se e, de improviso, atirando a bolachinha à rua, impôs gravemente a mão direita sobre o ombro do interlocutor e, meneando com a cabeça, disse alguma coisa de responsabilidade porque o outro tomou uma atitude cheia de mistério para ouvir, mas subitamente, descaindo, prorrompeu em rinchavelhada estridente sacudindo-se.
O doutor recuou um passo sorrindo e cofiando o bigode que amaciara. Como o pálido estendesse a mão, o doutor disse-lhe alguma coisa em tom íntimo, ele esticou-se um pouco e espiou-nos com ar curioso, mas fez uma careta de desgosto calcando o ventre, alongando o beiço. O doutor sacudiu-lhe a mão num shakehand, disse-lhe uma frase que ele acolheu com outra rinchavelhada e partiu. O doutor voltou imediatamente com um resto de sorriso e, sentando-se, disse para meu tio, em confidência:
— Revolução em Matogrosso, comendador.
— Como! Ainda? exclamou meu tio saltando.
— É exato, disse-me agora o Lírio.
— Aquele rapaz?...
— Sim, trabalha num jornal, é o debulhador dos crimes. Viu um telegrama.
—Isto é o diabo! exclamou meu tio espalmando as mãos nas coxas e derreando o busto.
— Qual, comendador: revoluções inofensivas. Nós somos um povo bem fadado... todas as nossas revoluções são incruentas. Somos suficientemente anêmicos e é talvez por isso que nos vamos arranjando a seco. O sangue só escorre no noticiário, a carnificina só existe no local. Temos dado ao mundo o exemplo mais perfeito da harmonia dos poderes — as nossas lutas intestinas são uma blague de bom humor para alimento do artigo de fundo. Toda a nossa evolução social tem sido feita, não à custa de sangue, mas à custa de foguetes. Para dar-se ganho de causa a uma ideia basta colocá-la sob a proteção de uma banda de música. Só há dois fatores de revolução no Brasil — a chirinola e o foguete de lágrimas. A semente da árvore genealógica da brava gente, comendador, é D. Quixote... A ciência há de confirmar mais tarde o que lhe digo boje em palestra: nós descendemos em linha direta do herói manchego. Até na mania das concessões temos o traço indelével da alma do cavaleiro errante que prometia a Barataria quando Sandio, desalentado e moído, pedia para voltar à sua tranquila aldeia. Não creia em revoluções, comendador, são moinhos de vento... moinhos de vento e nada mais.
— Creio bem, creio bem, mas não é pela revolução de Matogrosso. Que tenho eu com Matogrosso, não me dirá!
— Nada.
— Nada, certamente, não tenho nada; o que me preocupa é outra coisa. Não imagina como essas histórias fazem mal à praça. Basta o telegrama de uma aldeia qualquer, história de um caudilho que se pôs à frente de um lote de homens, para que o comércio sofra. E escancarando os braços: Senhor, correu um dia destes que iam depor a intendência de Maxambomba, pois não lhe digo nada: os títulos caíram. Eu sei bem que o sangue de Abel, de que falam os jornalistas, é uma figura de retórica.
— Simples figura de retórica e já estafada e inócua, acrescentou o doutor.
— Mas os papéis sofrem, sofre o comércio, sofre o povo. E indignado, fechando o punho: Que diabo, deem cabo de tudo, rebentem, estourem, mas não comprometam o crédito do país! Isto é que patriotismo. Agora estar a gente todo o dia a ouvir: revolução aqui, e caiu para a direita; revolução ali, e caiu para a esquerda; governador deposto, e apontou o teto, revolta nos quartéis, fez um giro-giro com ambas as mãos fechadas. É horroroso... é uma vergonha!
Uma voz estrugiu em plena sala ostentosa e indignada.
“Vá ao País... Vá ao País, lá está o boletim...” Era um homenzarrão barbado, intensamente barbado, uma cara terrível de profeta, embrulhado numa sobrecasaca enorme, rapada e lustrosa, com um grande chapéu mole no alto da cabeça calva, cor de marfim antigo.
O doutor encolheu-se e murmurou:
— Fujamos, comendador, antes que o Braz nos venha falar da podridão moral. Baixamos a cabeça e meu tio fez um aceno ao caixeiro que nos servira e fomos saindo sorrateiramente para que não nos visse o homem. Já haviam os chega do à porta, quando ele berrou indignado, caminhando para a. mesa que deixáramos:
— Menino, dá cá um conhaque!
A porta, em um grupo, um rapaz moreno, de pince-nez, discutia assomado, aos pinchos para a direita e para a esquerda, avançando e encolhendo os braços num recuo atlético, a cabeça enterrada nos ombros ou espichado nas pontas dos pés, olhando por cima das lentes, com rugidos surdos. Segurando a bengala pelo meio sacudiu-a e, num salto de acrobata, rugiu numa voz espremida, descrevendo rapidamente um círculo no soalho:
— É o zodíaco do amor, é a escala cromática do afeto, mas não se aproximem! ululou, encolhido, com os olhos chamejantes, — não se aproximem, porque a pomba, muitas vezes, fere como as águias bravas. E calmo, calcando sobre a mola do pince-nez: É um mulherão!
Não sei ao certo quanto tempo nos demoramos abancados junto do grande espelho, ao fundo do Paschoal, bebendo grogues e ouvindo a palavra pitoresca do Dr. Gomes, mas quando saímos, a rua tinha outro aspecto — via-se-lhe toda a sordidez do lajedo e, quase deserta, sem a densa multidão que a cobria quando a deixamos, mostrava-se impudicamente a meus olhos esboroada e suja.
Eram outros os grupos que subiam — homens em mangas de camisa, tisnados, arrastando, com estardalhaço, sólidos tamancos; alguns traziam, além da marmita de lata, pequenos feixes de lenha miúda. Poucas senhoras e, correndo de um para outro lado sobraçando maços de jornais, meninos que apregoavam a revolução em Mato Grosso e um assassinato bárbaro. Em uma esquina era tal a profusão de flores que o ar rescendia. Meu tio escolheu três ramalhetes de violetas e ofereceu-nos. O doutor imediatamente cravou a unha na botoeira da sobrecasaca florindo-se e eu, enquanto arranjava a malva sobre a lapela, comuniquei-lhe a minha impressão:
— Parece-me outra a rua do Ouvidor...
— Exatamente, fez ele; é que ela tem vários aspectos — este é um deles, o mais interessante, talvez. Caminhamos e o doutor, para falar com mais intimidade, tomou-me o braço. É a hora dos operários. As modificações desta rua acusam-se pelos seus tipos; são eles, por assim dizer, que lhe formam a fisionomia e, o que é mais notável — a cada um dos aspectos corresponde um cheiro especial. Olhei-o... e ele afirmou: Sim, meu amigo, um cheiro. Talvez não tenha observado que todos os homens, como todas as coisas, têm o seu aroma característico... Pode-se perfeitamente distinguir as raças pelo cheiro, como um conhecedor distingue facilmente, apenas pelo olfato, um genuíno Xerez de uma falsificação. Chego a levar a minha mania a ponto de emprestar aroma às coisas abstratas — à cor, ao som, ao sentimento. O branco e inodoro como a camélia; o vermelho cheira a cravo, o azul é o heliotrópio. Há trechos na Aida de uma tal intensidade sugestiva que, ouvindo-os, não só nos remontamos à vida sensual do Egito faraônico, como sentimos (note que me refiro aos temperamentos puros, faço exceção do imbecil, que não tem o olfato estético) sentimos um fugitivo aroma de crisântemos. Não conheço a crisântemo mas o que senti, uma vez, ouvindo a Borghi cantar O fresche valli... devia ser forçosamente o aroma da flor do Oriente. A saudade tem o aroma da violeta, que tanto dura. A inocência trescala a bogari, que é o lírio do monte, o crime tresanda à mandrágora, que amedronta, atordoa e mata. Mas o povo, insisto, tem o seu cheiro especial— odor populi — e a rua do Ouvidor varia de aspecto e de aroma conforme a hora, conforme a gente. Às quatro da manhã, com as últimas estrelas, descem por este esôfago, que vai dar ao estômago do Rio, que é a Praia do Peixe, grandes carroças atulhadas de verduras e de frutas, a lenha, os ovos, o pão e, algumas vezes, não raras, rebanhos. Uma manhã tive de refugiar-me em um vão de porta para evitar a fúria de um garrote que tresmalhara. Passam carrocinhas levando pilhas de jornais — é o pão da curiosidade que se vai espalhar pelo interior sossegado levando à simpleza e à ingenuidade das cidades pacatas a bílis dos articulistas salvadores da Pátria. Cheira a currais e a hortas, a pão quente e a artigos de fundo.
Às seis começa a vida do mercado — bandos de cozinheiros passam chalreando, com samburás empanturrados; cestos carregados de viveres, carros de mão cheios de legumes — tudo quanto sacia a fome fluminense, desde o ramo tenro de salsa até o quarto de vaca sangrento, que vai bambo, flácido e gotejante, à cabeça dos carregadores. Cheira acremente a matadouro e a salsugem.
Mais tarde fede a lixo quando os grandes carroções da limpeza começam a assear as casas e a sujar as ruas. Às seis e meia atroam os pregões dos jornais e aparecem as primeiras caras femininas — menagères econômicas que vêm ao mercado, costureiras a caminho das oficinas e as desgrenhadas e pálidas anêmicas que vêm das águas do mar exaustas da caminhada, queixando-se das ondas que lhes maceraram o corpo delicado; passam tristes, sonolentas e moles, com uma cestinha, os cabelos soltos espalhados por cima de uma toalha, que trazem forrando as costas para resguardá-las da friagem pérfida d’água salgada. Há um cheiro estranho de maresia, de sabonete Windsor e de bocejos.
Começa a descer o comércio: caixeiros apressados, em grupos, comentando as bambochatas da véspera, com grandes ares. O primitivo cheiro vai desaparecendo e espalha-se um apetitoso aroma de acepipes, um almíscar suave de molhos.
Às dez os patrões, pesados do almoço, arrotando, empanzinados e fartos, descem; em seguida os capitalistas e as dispepsias melancólicas. Vem subindo o cheiro característico, o cheiro “meridies”, como já alguém lhe chamou — misto de fumo, de essências e de guarda-roupa: sedas novas e cânfora.
Ao meio-dia a primeira vaga policrômica, desde a elegante impaciente, que vem estrear um chapéu, até o mendigo que surge lentamente, com um realejo ao peito, gemendo palavras de piedade por ele e pelos filhos, em nome do Senhor. Começa o rumor e o cheiro misto vai subindo. As portas ficam entulhadas, vão-se formando grupos e o comentário principia até gerar o primeiro boato que corre rápido aumentando sempre, de porta em porta, de círculo em círculo, como outrora passavam, nos campos gauleses, as notícias de guerra, de trigal em trigal, de leira em leira.
Das três às cinco é a desfilada — a elegância, o espírito, o trabalho, o vício, a miséria: o Rio manda a sua embaixada diurna que passa numa promiscuidade fantástica de roda concêntrica de lanterna mágica baralhando-se, confundindo-se.
É nessa onda que passa lento e cabisbaixo, admirando a lealdade dos sapatos, que vão resistindo à marcha sem destino, o boêmio dessa família eterna de Gringoire, com a alma cheia de sonhos, os lábios borbulhantes de rimas, relembrando enternecidamente uns olhos azuis que o fitaram na véspera, casta e santamente, mas estacando súbito para refletir na miserável condição da matéria que não vive, como o espírito, da contemplação do ideal, mas sordidamente, gulosamente do bife. Às cinco essa onda vai desaparecendo.
— E o cheiro característico, doutor? interrompi curioso.
— O cheiro? ... sim — alguma coisa que se pode imaginar entre estes dois polos: Guerlain e a Sapucaia. Só às cinco, dizia eu, essa onda vai desaparecendo para dar passagem ao operário que vem dos arsenais e das fabricas: tresanda a suor e a resina.
— A resina... por quê?
— Francamente, não sei. E começou a farejar. Experimente, lia ainda um cheiro leve. Não sente? Não quis entristecê-lo, disse que sentia.
Ele, então, continuando: Demais, a hora é das flores. Ao crepúsculo a rua do Ouvidor perfuma-se: toda a gente cheira bem. À noite é insipida: cheira à comida como uma casa de pasto. À meia-noite cheira à poeira e às cinco recomeça.
— Hesíodo não subiu tanto no seu livro ambrosíaco, disse eu, lisonjeando-o e mostrando que também possuía os meus conhecimentos e ele sorriu vaidoso, encolhendo os ombros.
Chegáramos ao fim da rua. Escurecia. O céu, de um doce azul fino e nítido como o das porcelanas, tinha algumas estrelas; rodavam carros e um pelotão de soldados marchava pesadamente ao toque de uma corneta fanha. Voltamo-nos; no outro extremo da rua, aparecia uma nesga de céu abrasado como em chamas — uma boca de forja.
— Lindo crepúsculo! E ficamos um momento contemplando. De repente o doutor sacudiu-me:
— E o comendador!...
— É verdade! meu tio...
Rindo ambos e de braço, como antigos camaradas, subimos a rua a grandes passos. Uma harpa gemia ao fundo de um café sombrio.
— O café e a música, as duas forças vitais deste país, disse o doutor com ironia. E curvamo-nos para marchar à cata de meu tio. Em menos de cinco minutos de marcha esbaforida chegamos ao Largo. A estátua do patriota, à luz mortiça do crepúsculo, resplandecia com uns tons vivos de ouro polido. Havia um ajuntamento em volta de uma bandeirola vermelha; aproximamo-nos. Um homem barbado, de blusa, com uma casquete de lontra, apregoava penáceas exaltando as excelências de um sabonete maravilhoso contra nodoas e tomando em dois dedos um pacotinho berrava: que até as manchas da reputação desapareciam com algumas fricções do invento mais notável do século.
Grave e religiosamente soou na alta torre o primeiro dobre vesperal da Ave Maria. Algumas cabeças descobriram-se e o homem abaixou a voz. Houve um doce silêncio místico, rápido como um voto d’alma em desespero e casto como uma oração. Pequenos, de mãos às costas, pernas abertas, levantavam os olhos para a torre onde o grande sino emborcava lentamente, de espaço a espaço, soturno. De longe, na aragem da tarde, vinham toques militares, finos, estridentes, com uma vaga saudade, fazendo pensar em acampamentos guerreiros, à hora santa do baixar da noite, congregando para a reza todos os regimentos exaustos das batalhas. O doutor, que saíra do grupo limpando o rosto, falou-me:
— Não sei se deva atribuir ao meu temperamento ou se a um resto de crença que guardo na alma, esse estranho sentimento de religião que em mim despertam os sinos. Não ouço sem comoção o toque da tarde: Parece-me sempre que é uma voz antiga que vem do fim dos séculos através dos espaços evangelizar na terra. A igreja quis conservar o diapasão da palavra tremenda dos profetas e criou o sino, que é, ao mesmo tempo, meigo e terrível, consolador e implacável. Agora, por exemplo, nesta meiga tranquilidade, este sino a soar não é bem uma oração do templo pela humanidade, em doces trenos sonoros que vão ondulando, ondulando, de lar em lar, de nuvem em nuvem a todas as almas e a Deus...? Não é uma doce elegia sobre a morte da luz? A mim, e desconto todo o meu romantismo, parece sempre que as estrelas esperam a voz da atalaia santa para sair. Há muezim em minarete que valha um sino em campanário? Deixe lá falar, a nossa religião é divinamente poética, divinamente humana, porque é a que mais se dirige ao coração. O Dies irae... ah! O Dies irae... o dobre a finados... o tocsin de alvoroto, o rebate em tempo de calamidade... É divino sinceramente, é divino! ... Para as bocas de pedra das catedrais só mesmo essas poderosas línguas de bronze.
Outro dobre caiu e o eco foi rolando demoradamente.
— Conhece o La bàs de Huysmans?
— Não, doutor.
— Deve ler. É um livro interessantíssimo. Livro de nevrotico, obra de enfermo, mas de excelente fatura, arte magnífica. Há lá umas doutrinas admiráveis sobre o sino, pregadas em um cubículo, no alto da torre de Saint-Sulpice, peio sineiro Carhaix, um católico inteligente, profundamente versado em doutrinário antigo, de uma erudição de velharias que pasma. Esse homem obscuro reserva em um canto da sua lura volumes preciosos sobre a arte dificílima de tanger os sinos: “De Tintinabulis” “Essai sur le symbolisme de la cloche” e prova irrefutavelmente que é necessário, não somente um perfeito conhecimento da arte, como muita alma para que se consiga tirar do metal sons simbólicos, se assim ouso exprimir-me: — para as cerimonias gloriosas do rito, para as duas horas extremas da luz, para o glória meridiano, para os que nascem, para os que morrem, porque, infelizmente, o sentimento artístico vai desaparecendo — a democracia reduziu tudo a comecinho, a vulgar. Não há muito, ouvimos no fundo de um café uma triste harpa gemendo sambas. Creia que me faz pena, são como pedaços de puro classicismo espezinhados pela multidão ignara. A harpa que David tangia! a harpa que foi o kinnor levítico; a harpa que vem embalando por essas idades remotas os sentimentos e as paixões, desde a ira de Saul até às tristezas de Ossian, é isto hoje: um chamariz de bodega, que os dedos grossos de um maltrapilho ferem, não docemente, não enamoradamente, com os olhos no céu como Wolfram, mas abjeta e indignamente com um pires ao lado, pensando na colheita e indiferente à corda que estala, ao compasso que se precipita!
Dá-se o mesmo com os sinos. Não há mais sineiros... isso foi para o tempo das catedrais, quando o Dies irae era cantado por populações de crentes. Isso foi para o tempo em que se ia à Roma pedir misericórdia cantando por todo o caminho louvores ao Deus Vivo, acordando aldeias ao som dos gloriosos chorais santíssimos. Isso foi para o tempo em que se acreditava em Deus; hoje não... não há mais nada — a civilização vai estabelecendo mecanismo para tudo e a filosofia abafa com uma análise o que era mistério, pondo um princípio onde havia um dogma, pondo a razão a patrulhar o sentimento para que não aconteça perder-se de novo a humanidade em êxtases.
Para que sineiros, se temos o carrilhão, que é o piano das torres? Hoje os poucos sineiros que restam são bimbalhadores, moleques apanhados no meio da rua e içados ao campanário por cinco tostões para soar a aria pastoral de reunir ovelhas. Aí tem o amigo o que nos resta. Eu ainda hei de ver o órgão em saraus, e é justo, porque as bandas militares já invadiram os coros eclesiásticos. Não temos mais nada, mais nada. A civilização vai extinguindo tudo. Espero ler ainda nos jornais que um sujeito qualquer pediu privilégio para iluminar as igrejas a luz elétrica ou para fazer santos mecânicos: um Cristo que diga do alto da cruz, deixando pender a cabeça meiga: Consummatum est! e em verdade estará tudo consumado. Estacou e olhando em frente disse sorrindo:
— Olhe, aí vem o comendador.
Era meu tio, com efeito, que vinha dando com os braços e a sacudir a cabeça.
— Onde se meteram vocês?
— Na rua do Ouvidor, comendador, à sua procura.
— À minha procura! ... É boa!
— À sua procura, meu tio, afirmei.
— Então foi de tanto procurar que não nos achamos. E, sem mais dizer, foi impedindo o doutor para a vitória:
— Vamos, vamos...
— Mas, comendador...
— Perdão... Hoje temos que conversar. Entramos. Sentei-me num banquinho baixo em frente aos dois. Edgar fez estalar o chicote e partimos.
Começavam a acender os lampiões das ruas.
O mundo é dos epicuristas, disse o doutor, ao fim do jantar, trincando uma amêndoa para melhor saborear o kirsch. A vida psicológica tem a sua preocupação: o ideal; a vida fisiológica tem a sua avidez: a fome. O ideal é a ânsia pelo absoluto — fome insaciável, por isso os gastrônomos sãs mais felizes do que os poetas.
Meu tio, afetando conhecimentos, deu com a cabeça meio toldada, em sinal de afirmação.
— Eu compreendo a sumptuosa antiguidade com os seus banquetes colossais em que eram servidas rezes inteiras e grandes javalis com os colmilhos vinham ornar o centro da mesa iluminada a candelabros de ouro. Esses homens que nós outros, em assomos pueris de vaidade, chamamos bárbaros, conheciam e praticavam com mais requinte a ciência delicada do gozo fino. Nós hoje comemos para manter em equilíbrio as funções da vida, raramente sentimos prazer, tratamos de encher o vácuo materialmente, azafamadamente. As nossas refeições não têm solenidade, não têm aparato, são feitas, como todos os outros atos da vida material, com tédio, com tristeza, funebremente.
Ah! os antepassados magníficos! ... Para eles a mesa era um altar onde se celebrava, com dignidade e volúpia, o rito do estômago. Compreendo o orgulho de Luculo e as extravagâncias excêntricas de Apicius mandando aparelhar um navio para buscar ostras nas costas africanas. O triclínio era o aediculo do supremo gosto, o ádito do regalo. A civilização rudimentar desses tempos era ditada pela estética. A própria política, sempre avessa aos retoques esmerilhados da Arte, tinha a sua feição simpática, tinha o seu cerimonial, exigindo para a primeira ala de representação a velhice sensorial e grave dos senadores, tão augustos na majestade impassível da ancianidade, tão veneráveis na hierática e silenciosa atitude de pais da pátria que os bárbaros da Gália recuaram atemorizados, vendo-os imóveis e alvadios, sentados nas curúes do Capitólio. A cozinha tinha a sua estética especial. O cozinheiro romano era um artista. Para merecer os aplausos de um patrício não era bastante saber temperar o molho ou corar o peixe, era necessário conhecer o segredo de manter, para que não se evolasse, o perfume da vianda ou do pescado e mais ainda, comendador, era indispensável saber vestir os pratos. Todas as peças tinham a sua toilette característica, variando de tempos a tempos, conforme os caprichos da moda ou a imaginação do chefe das cozinhas. Uma ave exótica trazida, entre os despojos de uma conquista, de remotas paragens da Ásia, era servida com a própria plumagem para que, antes da satisfação do paladar, a vista se regalasse; um cabrito montês vinha do forno entre folhagens frescas e verdoengas; havia pratos perfumados, outros que primavam pelo luxo maravilhoso e vario da verdura ornamental. Entre nós esse luxo, conservado por alguns retrógrados, não vai além das espetadas de rosas e de limões no costado dos bácoros de forno, as azeitonas que vão morar nas orbitas vazias e o clássico ovo cozido cravado na dentuça. É verdade que os franceses pretendem ressuscitar esse fausto elegante, mas como, comendador? montando galeaux de gelatina diáfana, refoliando massas, facetando tortas de foie gras... Mas isso é ínfimo. Sabe, meu amigo, tenho uma nostalgia estranha — a nostalgia do passado. Quanto eu daria para ser comensal de um chefe bárbaro, mesmo um bruto, como o huno que andou a murchar a erva dos campos com as patas do seu cavalo dá estepe...! Quanto eu daria para estar no acampamento, depois da batalha, à hora do rancho, para ver caírem ao peso das clavas, ainda molhadas de sangue inimigo, as rezes pacientes que vinham acompanhando o exército; e com que delírio eu cercaria as fogueiras colossais em que elas fossem lançadas! Quanto eu daria, comendador! Trinchar um boi! Cravar-lhe no ventre uma faca, grande como uma espada de guerra e comer no côncavo de um escudo! Estou enfarado da mesquinharia subtil do volau-vent. Um bom pedaço de carne sangrenta a rechinar na ponta de uma lança, hein, comendador?
— Não temos estômago para tais coisas, doutor.
— Isto sei eu. A humanidade vai degenerando miseravelmente. Não é somente à mesa que ela confessa o seu abastardamento — é em tudo. Veja a Arte de hoje... Quem há por aí que ouse tentar um poema épico? Ninguém! A poesia moderna é efeminada e languida — vai pelas minuciosidades porque lhe falta a suprema força vitoriosa dos antigos vates que punham num canto de epopeia exércitos de homens e legiões de deuses, todo o furor ardido das pelejas e toda a sensualidade: os troantes armistrondos das catapultas e as doces palavras meigas dos namorados.
Vede na Ilíada os contrastes — Achiles e Agamenão invectivando-se, Diomedes rompendo as hostes troianas com a sua lança formidável, Thersyto giboso, a injuriar e a rir como uma sátira errante; Ulisses, a enredar traças, os deuses esvoaçando, uns pelos gregos, outros pelos priamides e, mais que tudo, esse episódio de um tão original e inaudito sensualismo: Paris salvo da lança aguda e bruta de Menelau por Afrodite que o retira do campo de duelo, levando-o aconchegado ao seio ardente para dar-lhe repouso nos braços claros de Helena. Isto sim! isto é poesia! Hoje a preocupação do poeta é o ritmo, a sonoridade. São os discípulos de Apeles, comendador, são os discípulos de Apeles: fazem-na rica por absoluta impossibilidade de a fazerem bela. Os grandes deslocaram a montanha e a geração de hoje, anêmica e enfezada, anda a respigar destroços para brunir bibelôs que, ao mais leve contato, quebram-se e desaparecem. Comendador, nós, os saíram dos vales aceitosos da Índia cantando, ao sol, pelas margens das águas claras, os doces versos místicos dos árias. Virou o resto do licor contemporâneos, polidos por dezenove séculos de civilização, não valemos os errantes que havia no cálice e continuou no silêncio atencioso:
— À nossa literatura falta o carácter de originalidade. Não é propriamente uma literatura nacional porque, por infelicidade, ninguém se preocupa com a terra. Os olhos dos nossos poetas veem as constelações de outros céus, as águas de outros rios, a verdura de outras selvas. Quando trazem para o descante uma mulher, de preferência rústica, porque a Poesia, por um resto de bucolismo, só compreende o amor fiel na devesa campestre, vestem-na à moda da aldeia europeia, como uma pastora de Alsacia, como uma montesina dos Alpes, porque a Musa indígena não se atreve a apresentar na estrofe a sertaneja patrícia, mais linda do que a Amarílide das eglogas de Virgílio, mais casta, se é possível, do que Miranda ou do que Agnes. Se é um homem, desce das montanhas frias da Suíça tocando a ranz das vacas dos companheiros de Winkelried. A paisagem é inverossímil, as aves que nela desferem são todas exóticas e muitas vezes até encontram-se no fundo de um parque, à luz da lua de maio, o rouxinol que canta e o cormoran que sonha. O cormoran... ora, francamente! A causa de tal aberração não é a ausência do ideal plástico, porque aí temos a natureza sempre nova e cheia de imprevistos; não é também a ausência do ideal poético porque, a meu ver, não há paisagem mais sugestiva do que a nossa, cheia ainda do rumor da vida primeva, selvas, vales e montes, onde a lenda põe um mistério em cada talisca, uma iara em cada regato, uma balada em todas as corolas, uma pastoral em todos os vales, um idílio de amor em toda gruta, ardência nos corações e inspiração nas almas. A causa é outra — é a dificuldade, porque é incomparavelmente mais difícil descrever a verdade do que colorir fantasias e sobretudo porque o nosso gênio artístico é um produto imigrante: trabalha em nosso espírito como um colono labora nos campos e podemos dizer que as messes do solo e da inteligência nesta terra paupérrima são devidas ao elemento adventício. Basta uma simples análise da vida literária. Veja o comendador — somos ainda um povo em formação, começamos a encarar a vida e, na idade em que a Grécia foi lírica, na idade juvenil em que todos os homens trataram de compor poemas de religião e de esperança para abrigo da alma, nós desesperamos, somos pessimistas... Por convicção? por sofrimento? absolutamente não, por imitação apenas. Praguejamos no berço e pedimos a morte, o Nirvana. Começamos a ler pelo poema de Job. Mostre-me o período romântico, que é, por assim dizer, a adolescência da Arte, na sua segunda fase, depois do renascimento? não tivemos. Saltamos para o naturalismo, que é a análise, a rabugice caduca da literatura e já vamos caminhando para a cacheia do decadismo, arrastados, inconscientemente, pelo hábito inveterado da irresponsabilidade. Vamos no tropel dos alucinados escabujar na charogne, profanar túmulos para evocar procissões macabras, depravando o coração, depravando a benção. Peladan institui o erotismo, os eróticos emergem, Huysmans entra pela Idade-Média folheando as crônicas poentes dos arquivos, aparecem aqui os satânicos; o mahatma apregoa as excelências do budismo, toda gente é budista, como foi hipnotista na fase mais irritante das experiências de Charcot, como foi cumberlandista quando aqui esteve Pedro Vals.
Somos um povo incaracterístico; defeito de origem — não tivemos lutas, não conseguimos formar um período histórico, habituamo-nos a receber o que nos davam, daí a passividade desidiosa do nosso temperamento. Nossa alma varia de instante a instante, é por isso que somos tão fáceis de adaptação. Forçaram o nosso altar, deixaram-nos sem crença e sem Deus, aluíram todo o passado meigo das tradições cristãs, que foram o conforto dos nossos pais e o incentivo que nos trouxe pelo caminho da Moral, abateram a cruz e mostraram à Virgem a Via Dolorosa para que ela partisse, e que fizemos nós, os cristãos? assistimos impassíveis à hégira, vimos sair dos altares os santos venerados pelas nossas mães e sorrimos. Chamam a isso evolução... é possível — eu chamo-lhe indiferença. E é assim em tudo. Em política dizem que fazemos revoluções sem sangue. Ora, comendador... francamente, chega a ser ridículo!
— Mas é a verdade, doutor.
— Uma triste verdade. Para mim a política do brasileiro não vai além da urna. Deem-lhe todas as formas de governo com a urna e ele estará contente. E essa dedicação ao vaso do sufrágio, só comparável à dos hebreus pela arca, não significa a confiança que o povo deposita no voto, porque toda a gente sabe que o voto, entre nós, é uma palavra. Mas a eleição é uma tradição de motim, por isso é que ela perdura; tanto é verdade que tenho certeza de que o Brasil político cessará de existir no dia em que morrer o último cabalista. Outro fato ainda, que atesta eloquentemente a nossa tendência imitativa — é a mania que temos da aplicação de meios administrativos, econômicos e ainda políticos usados em casos normais em outros países de condições bem diferentes das nossas, de sistema de organização diverso, à anomalia da situação que atravessamos. É querer curar uma febre eruptiva com um sedativo que fez cessar a cefaleia do vizinho. Ridículo, comendador, ridículo e triste. E vertendo mais algumas gotas de kirsch:
— Que me diz o senhor da moda? a moda por exemplo, esse suplício imposto à mulher brasileira pela elegância parisiense?
— Eu acho-a divina... Gosto imenso da variedade, afirmou meu tio.
— Também eu. Mas refiro-me aos disparates da mania vestiosa. Quando o inverno inteiriça Paris, nós aqui, nesta fornalha dos trópicos, desfazemo-nos em suor, estalamos, e as nossas mulheres, que se vestem pelos moldes da Saison e do Goquet, embrulham-se em peles, revestem-se de arminhos, trazem pesadas cachemiras e capas com que um groenlandês zombaria do mais duro inverno, na sua toca de neve. E nós outros apertamo-nos em cheviots felpudos, torrados, suando, simplesmente porque seria ridículo para a senhora apresentar-se na calçada da rua do Ouvidor com uma toilette clara, de um pano fresco e leve e um simples chapéu de palha cercado de flores, e nós seriamos corridos a apupo se ousássemos afrontar o povo com um terno de linho e um chapéu panamá. Há de convir, comendador, é ridículo, é soberanamente ridículo!
Gravemente, com a repercussão profunda de um sino longínquo, o venerável relógio interrompeu a facúndia do doutor soando às dez horas.
— Dez horas! exclamou ele sacando do bolso o seu cronômetro. Perdoe-me, comendador, mas não acredito nas palavras da pêndula doméstica — e baixou os olhos para consultar: É estranho! dois relógios de acordo: dez horas justas! E, pondo-se de pé, a passar as mãos pelas pernas para alisar as calças: Vou deixá-los, disse.
— Ainda é cedo, doutor. Vamos tomar um punch de champagne.
— Oh! Acha então que tenho bebido pouco? Mas meu tio já havia acenado ao criado indicando um vaso bojudo, de cristal cerúleo, a cratera, como lhe chamara o doutor, descobrindo-o entre os pesados jarrões da China, carregados de rosas.
— Dê tréguas ao teatro por uma noite, doutor.
— Tréguas! Mas eu não faço outra coisa. Há mais de quatro meses que não ponho os pós em teatro. Desde que d’aqui partiu a companhia lírica, a não ser um ou outro concerto, uma ou outra soirée, passo as noites a ler ou a jogar o pocker. Oh! o teatro! exclamou com um risinho, passeando ao longo da sala.
— Não gosta? indaguei.
— Adoro! mas o teatro, meu amigo, o teatro... não isto que por aqui há com esse nome. Porque, afinal, penso eu, Arte não é a chufa banal que faz estourar a braguilha, nem a nudez de maillots que aguça o apetite erótico. O fim da Arte é mais nobre do que o da chalaça. Não foi com auxílio de rondós obscenos que Sófocles foi coroado vinte e tantas vezes. Shakespeare não teve necessidade de sumptuosas cenografias para vencer em Blackfriars — a lua era feita por um homem que atravessava a cena com uma lanterna. Molière não mantinha a seu serviço coros femininos convenientemente cevados para embasbacarem a volúpia. Ah! meu amigo, as mulheres que iam ouvir Esquilo abortariam de novo visitando os nossos teatros... mas abortariam de tanto rir, as pobres mulheres, de tanto rir! E sentando-se: Sinceramente, vale a pena emparedar-se um homem entre dois desconhecidos em uma plateia asfixiante para ouvir cantarolas e admirar meneios sensuais de alméas sarapintadas? Vale a pena deixar-se o canto do gabinete e a companhia de um bom livro para ir ouvir as imprecações de um fidalgo furibundo, que vem à cena, com uma grande capa, alongando as pernas, evocar os manes dos avós e reconhecer um filho? Em geral esse homem, que durante cinco longos atos estropeia inimigos, é de tão perverso instinto que nem a sintaxe consegue, na maioria das vezes, escapar à sua fúria. Que é que nos oferecem os teatros? O vaudeville que nos vem trazer, desnaturado pela tradução, o espírito de Paris e o dramalhão pretencioso e bufo, onde há invariavelmente a luta das paixões — o filho reconhecido ou... outro disparate qualquer. De Arte nacional, que temos? absolutamente nada.
— De quem a culpa? dos poetas, doutor, dos poetas que não trabalham.
— Perdão; nem dos poetas nem dos empresários, comendador — a culpa é da Fatalidade, falo agora como Sêneca, disse a rir, a culpa é da Fatalidade. Nisard, se bem me lembro, diz que Roma não teve drama porque não teve povo, o verdadeiro povo, porque o drama é a obra literária mais indígena e mais original de um país — não pode ser feita sem o concurso direto da massa popular, porque é ela que a consagra no teatro. E para que exista o drama é necessário que existam fatos, que haja uma história, subsídio que, infelizmente, não possuímos. Demais, o nosso povo, na sua coletiva densidade, é uma massa heterogênea, na qual o elemento adventício faz desaparecer o elemento autóctone, absorvendo-o como uma célula mais forte absorve a mais fraca. Somos vítimas de uma conquista orgânica — talvez não me exprima bem, mas a frase parece-me exata e perfeita. Os fatos que nos parecem revigorar debilitam-nos, tirando-nos toda a autonomia e repulsando-nos lentamente... Somos nós os estrangeiros na pátria. Essa massa forasteira é que impõe o teatro, é que concorre às casas de espetáculo para rever os seus costumes, para recordar trechos das suas primitivas glórias.
Vede os dramas — ou são portugueses, para o elemento que é, por assim dizer, a grande força ativa do país, ou traduzidos do francês e agradam pela universalidade do assunto, porque são as paixões modernas que existem em toda a parte; ou as operetas que são a nota viva e saltitante, que acarretam a nudez o saracoteio, a bambochata e acendem a sensualidade... do Brasil nada. As poucas tentativas falecem porque quem as podia levantar esquece-as e a razão é simples, comendador: é que nestes dramas não há um fundo que impressione a coletividade: o povo, que é a pátria na sua mais completa manifestação. É que o drama no Brasil não é fundado em uma tese nacional, em um caso histórico desses que exprimem uma glória comum e que são a recordação de um momento ou de um fato. Não temos um herói que encha com o seu prestígio todo o corpo de uma tragédia. E d’onde viemos nós? Que epopeias demarcam a nossa Vitória inicial? que altares relembram a religião primitiva? em que meandro ficam os túmulos dos que lutaram pela nossa liberdade e pela nossa crença? há algum campo semeado de ossos de bravos que tivessem saído em defesa da pátria? não há nada... não conhecemos a nossa origem, somos um povo do acaso com três períodos de servidão — a servidão de colônia, a servidão do eito e a servidão do espírito.
Só pode ter teatro um povo livre. Como havemos de rir se somos por temperamento tristes e melancólicos? E nem chorar podemos. Os antigos choravam pelos seus heróis, eram lágrimas que recordavam glórias épicas, e nós havemos de chorar! Por quê? ... de quê? ... de vergonha? mas para isso ainda é preciso que apareça um audaz que escreva o drama dos pusilânimes.
Não há assunto, comendador, não pode haver poetas. Há um povo promiscuo, é para esse povo que os empresários trabalham, porque o brasileiro, como o romano da decadência, contenta-se com os ursos sábios e com os saltimbancos.
O criado, que chegava com a cratera, pôs remate à imprecação patriótica, e meu tio, servindo uma taça, passou-a delicadamente ao doutor exclamando:
— Parece estar divino!
Tocamos as taças e sorvemos demoradamente o punch que, em verdade, estava delicioso, porque o criado, perito em segredos de buvette, perfumara o champagne com alguma coisa que rescendia como a baunilha. Por fim, pousando a taça, interrompi o silêncio com uma objeção subtil, não tanto para refutar os conselhos do doutor, como principalmente para arrancá-lo à mudez em que se reservara, bambaleando a perna, a tamborilar com os dedos no bojo da cratera.
— Doutor se, como afirma, a causa da miséria literária em que jazemos vem da ausência absoluta de fatos, da esterilidade histórica, somos um povo fadado ao silêncio e à imobilidade: nem Arte escrita, nem Arte cinzelada. Jamais teremos a consolação suprema de rasgar um horizonte para que nele possa refulgir um vulto de mármore ou para que nele fique, eterna como a Odisseia, a constelação de um poema pátrio.
— É um engano. Isso que o meu amigo prega é o desalento, doutrina do desespero, própria das raças nulas. Somos um povo que começa, não temos um só período, um só estádio ainda, mas isso não quer dizer que sejamos um povo morto. Ainda não começamos a viver, esta é a verdade; ainda não começamos a viver. Temos elementos para vir a ser um povo artístico como foram os gregos: o meio, o caráter, o sentimento e até a providência dos mares que nos distanciam do resto do mundo, isolando-nos no equador como para obrigar-nos a agir exclusivamente por influxo direto da zona que creia, ao mesmo tempo, a temperatura física e a temperatura moral. O brasileiro não é um povo rudimentar sob o ponto de vista psicológico, não é. E, a propósito, permita-me que faça aqui, muito à puridade, a minha profissão de fé. Tenho uma extravagante doutrina sobre a psicologia, que, em verdade, já me tem valido apupos. Retrai-me e hoje apenas deixo pressentir alguma coisa, assim em intimidade como estamos, por que não quero que vejam mais em minhas palavras pretensões a dogmas: são ligeiras ideias que desaparecem com a palestra.
— Fale, doutor! Pedi com interesse.
— Ah! meu caro, sou um “solitário”. Vai achar ridículas as minhas palavras... Em todo caso...
Tomou uma atitude severa e falou.
— Creio profunda e convencidamente nas fases de dinamização psíquica — a alma é um fluído perene e imortal, ativo e autônomo, que circula misteriosamente pousando de corpo em corpo, como a abelha circula, pousando de flor em flor. Como uma suga o mel das flores, a outra absorve o mel da inteligência, que é um produto complexo de funções do cérebro isolado: a imaginação; cerebrocardíacas: o sentimento; do instinto: a avidez; e da vontade: a ambição que é a tenacidade do desejo. Essas funções só se manifestam na matéria com o contato da Alma, como as forças magnéticas apenas se desenvolvem com a incidência dos dois polos extremos. De longe em longe, colhendo em diferentes vidas qualidades de um e qualidades do outro, a Alma encerra-se em um ser, imensamente farta, imensamente cheia, produzindo os gênios, que são como grandes colmeias que reúnem toda a essência de múltiplas variedades, todo o mel colhido através de múltiplas e variadas metempsicoses. É uma doutrina de louco, decididamente, e eu sou o primeiro a convir nisso, mas atualmente todas as doutrinas têm um fundo de insânia, não é muito que surja uma inteira e completamente louca. Mas creia o amigo que é só assim que consigo compreender e explicar o aparecimento dos homens cíclicos — Homero, que é a síntese de todo o drama épico desde o período pelágico; Hesíodo, que é o mito, a teogonia; Esquilo e Sófocles, que são a tragédia; Dante, que é o astro neutro posto no céu sombrio da Idade-Média, terrível e trágico como Saturno, alumiando entretanto a manhã triunfal do renascimento; Shakespeare, que é o ponto de encontro das paixões humanas. Homens-coletivos que aparecem em uma era determinada quando há um espírito perfeito. Comendador, o futuro não contará a idade do homem pela data do seu nascimento, mas pelo número de eras que tiver atravessado o espírito que o escolher e a lenda de Matusalém será ridícula, porque haverá homens dez, vinte vezes milenares. Não é hoje uma verdade científica o atavismo? A humanidade é uma redundância: evolução é um sinônimo de substituição — progresso quer dizer: aperfeiçoamento. O povo tem uma expressão que define admiravelmente o princípio cerebrino da minha psicologia: “As crianças de hoje nascem velhas”. É uma verdade: a vida repete-se. Demais, sendo a Alma uma essência perfeita, virgem, original e fecunda e sendo ela a força concorrente para a vida do ser, era justo que nós outros fossemos produzindo constantemente ideias novas, novos princípios, entretanto aí está, de longo tempo, o aforismo do Eclesiastes como uma verdade: “Nil novum sub sole”. Razão formidável em favor da minha escola exclusiva — não pode produzir atos novos o que é de natureza antiga: repete, varia ampliando ou aperfeiçoando. Sendo uma a causa, os efeitos serão invariavelmente os mesmos, mais ou menos aperfeiçoados pela combinação dualista: matéria, espírito, impulso e meditação, ação e reação.
— O doutor é espirita? indagou meu tio com um leve tremor na voz.
— Não, comendador... Espirita, eu! Sorriu com desdém, tomou um charuto da caixa, acendeu-o e continuou reclinado, com as pernas estendidas:
— Mas, dizia eu, o brasileiro não é um povo rudimentar. Sem recorrer às ideias expostas tenho uma observação que, posto não seja muito original, presta-se magnificamente. A nostalgia, que é o avesso da esperança, é a saudade na sua expressão mais nobre, porque é a saudade do absoluto, quase que posso dizer assim, saudade da terra, do céu, dos rios, da selva, do homem, do ar, do rumor, de tudo que se amou, de tudo que se viu e sentiu além. Ora, comendador, para que exista a nostalgia, que é um efeito, é necessário que tenha existido uma causa.
— Forçosamente, corroborou meu tio.
— E qual é ela? Entretanto o brasileiro é nostálgico. Nostálgico de que? Por quê? pergunto. Que vida no Aquém viveu ele para que tenha saudade tão intensa? que outros astros o alumiaram? que outras selvas trilhou senão as do seu país? Meu tio deu de ombros. E o doutor, num ímpeto, pondo-se de pé como inspirado, disse:
— Tenho, para mim, que Colombo conhecia a América antes de a ter visto — conhecia-a inconscientemente, porque nela vivera a Alma que o animava. A fé que ele tinha nos mares imensos era certeza, e essa doce melancolia que o acabrunhava quando avistava o oceano, pode ser que fosse um resultado de desânimo, porque era forçado a sopitar a sua paixão aventureira, mas no fundo, penso eu, era nostalgia da terra que era Ideal para a sua imaginação, que era verdade para a sua Alma.
Meu tio escutava boquiaberto, com ligeiros frêmitos, como se o doutor lhe estivesse revelando coisas de um mistério absconso: arfava cansado como se as frases, que jorravam copiosas num catadupejar sonoro, dos lábios facundos desse erudito moço, não lhe dessem tempo para respirar. A cabeça aprovava maquinalmente e os olhos, que traduziam profundo abalo de crenças e de convicções, abriam-se, cerravam-se, parecendo, as vezes, querer saltar das órbitas onde rolavam arregaladamente, desatinados e aturdidos.
— Realmente, doutor, disse cabeceando com entusiasmo, realmente... e tomou a taça de punch engolindo gulosamente um sorvo. A sua filosofia, deixe lá, tem alguma coisa de verdade. Comigo tem-se dado o fato que citou. Há ocasiões em que parece que me recordo de uma outra existência.
— E há de ter reconstituído pequenos episódios, comendador.
— Pois não... Pois não...
— E os casos de simpatia e de antipatia? bem querer a alguém que se vê pela primeira vez, detestar uma criatura que se encontra, ao acaso da travessia e que nos vem receber afável e meigamente, toda bondade e blandícias? Que é isso senão uma prova evidente e cabal de que houve relações entre os espíritos encerrados em nosso corpo e no corpo da pessoa que se nos depara — relações de amor e de amizade, de despeito ou de ódio, no impenetrável e nebuloso Aquém? Causas estranhas, fenômenos do incognoscível.
Luciano, o irônico, fartou-se de rir da doutrina de Pitágoras, mas deixem lá... deixem lá. Sacudiu um gesto como para afugentar ideias e disse: Mas deixemos divagações que não tem fundamento senão em conjecturas. O Mistério seduz, mas o Mistério é a Esfinge. Deixemos o caminho de Tebas, deixemos o enigma, vamos pelo terreno firme. E tocando-me delicadamente no ombro: Voltemos ao nosso tema. Dizia eu que possuímos elementos para vir a ser um povo artista como os gregos. É uma verdade, posto que desmentida diariamente pela improdutividade e pela inércia estéril Por quê? porque não temos educação de ordem alguma. Fisicamente, somos um povo híbrido, sem raça discriminada, sem antecedentes firmes: nascemos da amalgama, somos os epígonos de Babel. Essa miséria de origem reflete-se no organismo. Dizem que o brasileiro é preguiçoso, lânguido e contemplativo. Há quem lance esses vícios congênitos à conta do clima, é verdade, em parte, mas esquecem inteiramente a etiologia — que é a origem.
O sangue que circula em nossas veias é uma mistura heterogênea de glóbulos que se destroem reciprocamente para que um sobrepuje e vença: o glóbulo africano dá-nos o banzo; o que herdamos dos navegadores dá-nos a atividade, a tenacidade arguta e trêfega de investigação e o egoísmo, que é um eufemismo de avareza; e, finalmente, o glóbulo virginal do sangue indígena. Em uns vence a saudade — é a vida do coração, são os sentimentais; em outros supera o gérmen europeu e são os ativos: homens de ciência e de comércio, bem raros, infelizmente; nos últimos, a força indígena prevalece e são os bravos e os sonhadores. Há, entretanto, casos excepcionais de fusão — a luta constante dos três glóbulos: são os desorientados, homens indecisos, dúbios, de existência incerta, de vontade vária, sem ideia firme, sem iniciativa. Sobram-nos, por desgraça, esses casos de exceção — a maioria do nosso povo é constituída de anomalias. Não nos nacionalizaremos enquanto o tempo não fizer a diferenciação necessária. Além disso o clima tórrido amolece, entibia, tornando o povo lânguido e nostálgico. Há todavia, um meio de combater essa teratologia orgânica — é a educação. Educação física, o sábio artifício de que lança mão a Humanidade para aperfeiçoar a obra natural, enrijando os músculos, reforçando os ossos e concorrendo para vitalizar a inteligência, garantindo a saúde e o bom humor. Educação moral, que é a confortável armadura do espírito que o premune e defende contra as ciladas constantes da vida de sociedade, porquanto fornece ao homem os conhecimentos práticos do bem e do útil, creia o amor altruísta estabelecendo a unidade entre os seres — um por todos, todos por um — fórmula noções gerais sobre o destino na vida, mostrando as relações que devem existir entre os indivíduos e os fins de todos para o bem da comunidade; estabelece as bases irredutíveis da família e da sociedade dando a mais o vasto apêndice da crença, que é a caixa de Pandora de onde a ciência pode arrancar todos os dogmas, porque há de sempre ficar no fundo, inacessível e consoladora, a Esperança.
A educação moral, para mim, deve compreender a educação cívica — o culto dos maiores e o respeito pelos fatos da tradição que levam o homem ao absoluto amor, o amor da Pátria. Não temos. Nas escolas desconhecem de todo essa higiene de espírito. Educação intelectual... O nosso povo, na sua maioria, é ignorante. Há uma pequena parte de seleção que lê, outra parte que ouve e outra que não lê, nem ouve: o patrício, o plebeu e o servos, eis as três castas. A primeira impõe, a segunda transmite, a terceira executa — d’aí a inconsciência de todas as nossas manifestações coletivas. O povo, propriamente dito, é uma massa rude que serve de instrumento aos privilegiados. Essa casta superior, que podia impor as letras e as Artes, é indiferente, porque mão se educa na pátria, educa-se no estrangeiro ou nas suas doutrinas, é lida em livros de fora, visita museus na Europa, fala sobre exotismo e sente e pensa através do sentimento e do pensamento dos seus educadores — são autômatos do Ocidente: d’aí a impossibilidade de dilatação literária e artística.
Se se cuidasse da educação da Pátria com elementos próprios, tratando-se de formar espíritos nacionais, genuinamente nacionais, dentro em breve teríamos Arte, porque o povo, ligando-se à terra pelo espírito, sentiria necessidade de conhecer-lhe os segredos e viria disso, talvez, a noção de patriotismo que ainda não existe entre nós. Antes de fazer Arte tratemos de fazer povo, eis o princípio. Somos um grande coração... já alguém disse. Oh! a caridade proverbial do brasileiro, a sua hospitalidade só comparável à dos árabes... Somos um grande coração, mas sem sístole: recebemos a vida no que nos transmitem, mas não transmitimos absolutamente nada. Somos um coração sem sístole, empanturrado de sangue como um odre, mas na análise de um coagulo das nossas artérias um sábio paciente descobriria átomos de todo o sangue universal. Gérmens de todas as raças do mundo circulam dentro em nós e é justamente por isso que não somos nada, porque não temos identidade. Só há um meio de tirar dessa miscelânea um povo — é educá-lo mas educá-lo na escola austera do amor da Pátria de modo que ele se converta a nacional, vivendo para sua terra, que bem merece que por ela vivam. Alma antiga em corpo antigo, eis o brasileiro — um povo macróbio no berço. Pôs-se de pé d ’um ímpeto e voltou-se para o relógio:
— Como! onze horas! É estranho! Sacudiu-se todo, deu um puxão à sobrecasaca e, acendendo novo charuto: Até amanhã, comendador...
— Já?! disse meu tio, com a voz cansada, sufocando um bocejo.
— É muito tarde. E rindo: e o senhor está a cair de sono. Até amanhã! Até amanhã! disse interrompendo meu tio, que ia provar que não estava absolutamente a cair de sono.
O criado entregou-lhe a cartola e a bengala. Levantamo-nos para acompanha-lo. À porta, despedindo-se, vedou-nos a passagem para que não apanhássemos o sereno da noite e, apertando-me valentemente a mão:
— Perdoe-me e não guarde ressentimentos das minhas doutrinas — são inofensivas. Rimos ambos e quando ele partiu ficamos a olhar e a vê-lo seguir pelo jardim calado, alvíssimo do luar, girando a bengala e cantarolando:
La gondola nera fuggiva...
De longe atirou-nos o último adeus:
— Até amanhã...
— Boa noite, doutor! dissemos ambos. E meu tio ajuntou através de um bocejo sonoro:
— Conversa bem, mas é meio doido... é meio doido...
E, arrastando os passos, foi cair molemente na cadeira abacial das refeições o do primeiro sono.
O dia amanheceu baço e húmido. Chovera pela madrugada.
Meu tio, em cândidos linhos, estirado num pliant de lona, com um jornal sobre os joelhos, olhava da varanda os rosais ainda gotejantes. Saudando-me, interessou-se pela minha noite, indagando se não me assustara com os tremendos trovões da madrugada e, dizendo-lhe eu que nem os ouvira, lançou-me os olhos, admirado da valentia do meu sono de chumbo, afirmando — que o céu viera abaixo em raios e em água. Saímos ao jardim para ver os descalabros da tempestade nas roseiras e nas moitas de cravos e compungimo-nos, mais de uma vez, diante das esfolhadas de pétalas ou à vista de um canteiro que a torrente da chuva escavacara. Mas já o jardineiro andava a recompor, pondo esteios, fincando espeques, ligando galhos, ajustando ramos, e meu tio, como se visitasse uma enfermaria de desastre, ia de arbusto em arbusto, sempre com uma frase terna e cheia de condolência, lastimando o botão que os ventos haviam arrancado ou a begônia pendida para a terra encharcada, quase a morrer dos embates fatais da noite tempestuosa.
Almoçamos tristemente — repasto fúnebre de exéquias, sem palestra, com poucos vinhos. Os canários, como se participassem da agonia das rosas, estavam encolhidos nos poleiros, mudos. Saímos logo depois do almoço, porque meu tio não queria demorar-se mais a olhar a devastação do seu jardim, mas como o Jerônimo lhe prometesse “arranjar tudo”, recompôs a fisionomia e, quando entramos para a vitória, já ele levava o rosto transfigurado e dizia a rir “que as almôndegas estavam coriáceas”, cravando nos dentes um resto de palito.
Em caminho falamos do Dr. Gomes.
— A propósito, meu tio, de que vive ele?
— Tem uns prédios, ganhou alguma coisa na praça à minha custa, acrescentou com superioridade. Deve possuir uns trezentos contos. Mas gasta muito, é um dissipador: o dinheiro foge-lhe das mãos como entrou.
— É solteiro?
— Solteiro. Vive com uma italiana bailarina, uma Denzi, Emília Denzi. Bela mulher, boa voz, mas... E meu tio, num gesto eloquente, derreando a cabeça, entornou o polegar na goela e, com lástima, os olhos em branco: É uma pena!
— E ele?
— Tem teorias. Diz que é nevrose, que a culpa não é dela, que aquilo é um mal hereditário e dá-lhe coisas a cheirar, e deita-a. É preciso vê-lo. Já uma vez, lá em casa, foi um trabalho para conter a italiana. Entrou a beber e deu, a princípio, para cantar ao piano, ele acompanhava-a trêmulo, já desconfiado prevendo o desfecho. Cantou a Traviata e uma barcarola; mas, de repente, pôs-se a achincalhar a música e, sem mais, apanhou as saias e saltou para o meio da sala atirando as pernas ao ar num can-can furioso. Por fim tomou de uma peanha a mais linda estatueta que eu possuía, partiu-a e atirou-me os cacos à cara; ele, porém, com um heroísmo generoso, pôs-se à minha frente, recebendo no peito o que a fúria me arrojara. É um perigo! Um perigo, mas mulher bela e de carnes.
Chegáramos ao largo, ao mesmo ponto em que, na véspera, havíamos estacionado, e meu tio impeliu-me para a rua, dizendo ao imperturbável Edgar: Ás cinco!
Íamos caminhando em direção à rua do Ouvidor quando meu tio, parando repentinamente, perguntou-me:
— Ó Anselmo, dize-me cá: tens dinheiro? Maquinalmente levei a mão ao bolso, mas recolhi o gesto a tempo, respondendo, entre vexado e cobiçoso:
— Pouco, meu tio, creio que duzentos ao todo... tenho ainda umas compras a fazer: lan e talagarça tiara Marocas, uma Senhora de Lourdes para a velha e as obras do Casimiro para o Simão Carreira. Sem dizer palavra, meu tio sacou do bolso a enorme carteira empanturrada e tirou um macinho nítido, de notas largas, dobrou-o e deu-mo sorrateiramente. Nem me preocupei com a carteira, foi mesmo nu bolso da calça que as guardei profundamente, acariciando-as.
— Precisas conhecer o Rio... tens aí a chave de todos os mistérios. Acolhi com respeito a peroração sentenciosa do meu generoso parente, e do mais íntimo de minha alma elevou-se, como num suspiro subtil e estremecido, toda a minha gratidão: Obrigado, meu tio. Ele, porém, ou porque não ouvisse, ou para afetar indiferença à dádiva, estendeu-me a mão liberal com estas palavras: Deixo-te aqui. Tenho às 3 horas assembleia geral da Companhia Fomento Agrícola. Não te vás perder, vê lá! Anda como quiseres, mas não saias da rua do Ouvidor e, às cinco, no Pascoal. Sabes onde é ?
— Pois não; sei.
— Vê lá!
— Vá descansado: Às cinco horas no Pascoal.
Separamo-nos.
Fiquei algum tempo indeciso, sentindo- me mal na liberdade, receoso, tímido, sem ânimo de atravessar sozinho a rua do Ouvidor. Parecia-me que toda aquela gente, que subia e descia, mirava-me achando-me desajeitado e ridículo, o ar tolo, os modos desalinhados. Meu terno tão perfeito, três vezes provado e retocado por mestre Thomé Caminha, parecia-me largo e fofo, sem gosto, fazendo dobras nas costas, curto de mangas, curto de pernas, todo ele curto e largo, sem jeito. Sentia-me mal e estive para correr ao alcance de meu tio, pedindo-lhe que me levasse à assembleia do Fomento, tal era o desânimo que de mim se apoderava ao ter de atravessar, sem companheiro, a rua que eu via diante dos olhos, atulhada de gente, apesar da ameaça sombria das nuvens que rolavam no céu, túrgidas e túmidas de aguaceiros. Diante de uma vitrina lancei um rápido olhar de análise e achei-me escorreito e liso, apenas o chapéu havia tombado para a esquerda; puxei-o e, estacando, a enrolar um cigarro, o olhar errante como se procurasse alguém, deixei-me estar algum tempo a invocar coragem para vencer a covardia do meu espírito acanhado. Por fim atrevi os primeiros passos e fui caminhando vagarosamente, cauteloso, para não ir de encontro aos que vinham azafamados, indiferentes, abrindo caminho à força de ombros e cotovelos.
A minha ideia era o Pascoal. Ali, ao menos, sentado a uma das mesas, ninguém daria por mim e poderia ficar até às cinco à espera de meu tio, livre daqueles olhos que me pareciam despir, livre daqueles sorrisos que pareciam criticar os meus gestos selvagens e o meu lento e medroso caminhar de rústico. Mas, subitamente, como se despertasse dentro em mim uma nova energia, senti-me desembaraçado e altivo. Parti, pisando forte, a olhar d’alto a gente; mas ao cabo de alguns passos, um grupo de senhoras garrulas colheu-me num encontro amigo, no enleio expansivo de uma intimidade afetuosa, e fiquei colado à parede a ouvir beijos chochos trocados com precipitação e risinhos, enquanto um pequeno, vestido à maruja, metia-se pelas minhas pernas empurrado pelas amistosas damas.
Atroz menino! atrozes senhoras! Uf!
Esbaforido e suado consegui desentalar-me do aperto íntimo, maldizendo as minhas patrícias que andam pelas ruas, como as formigas pelos trilhos da roça, esbarrando os lábios em beijinhos. Afastei-me da calçada para evitar nova colisão e segui lançando os olhos adiante na esperança de descobrir o doutor que, segundo a afirmação peremptória do meu tio, devia andar pela rua do Ouvidor digerindo o almoço e comentando os nossos erros políticos e os últimos livros de França. Infelizmente, porém, cheguei ao Pascoal sem ter sequer divisado a sua sombra e conjecturei que se deixara ficar em casa amarrotando as housses dos divãs em longos espreguiçamentos de tédio, com os seus poetas, em solidão ou tendo a seu lado a italiana, em toalete tênue de cambraia e rendas, mexendo grogs de conhaques, com um romance de Tosti nos joelhos.
Um homem como o doutor não abandonaria o lar num dia como esse de spleen e de névoa. Que viria fazer à rua senão chapinhar na lama e ouvir as queixas indignadas dos políticos, que pressagiavam, com grande cópia de argumentos, um futuro trágico de assassinos e de roubos, de violências e crimes bárbaros? Que viria fazer à rua quando podia estar no tépido aconchego do seu “home” arrulhando nesse doce toscano, que foi o idioma dos amores, no tempo em que a humanidade, menos civilizada, amava? Não, meu tio errara na sua afirmação: o doutor não andava pela rua do Ouvidor, devia estar nas Laranjeiras, a reler poemas para distrair a paixão bacchica da italiana iconoclasta, ou a traduzir os sábios conselhos de Martial sobre a felicidade, onde o poeta escreveu este hemistíquio sóbrio que, de per si, constitui um elemento de paz e de ventura: nox non ébria... talvez nunca experimentado pela bailarina.
Apesar de pensamentos tais, não me abandonava a esperança de o ver surgir de repente, muito correto na sua toilette justa, espalhando em sorrisos o seu bom humor e a sua graça.
Da porta do Pascoal estive longo tempo a contemplar o meio corpo de um homem que ficara à esquina, parado. Via-lhe apenas um lado: meia aba do frack, uma perna, metade do chapéu. Tive ímpetos de partir para reconhecê-lo; mas, evitando-me os passos em vão, o homem voltou-se — era um sujeito moreno, abaçanado, com grandes bochechas moles picadas de bexigas — um bigodinho ralo descia-lhe pelos cantos da boca em duas goteiras. Cansado, resolvi entrar. Havia uma mesa junto à porta, encostada a uma das colunas. Tomei-a.
Pouca gente. Rapazes, o ar entediado, bebiam. O que eu vira no primeiro dia, lá estava abancado a ler a mesma tira, creio, a um pequenote de olhos espertos que bebia, sedentamente, a grandes goles, uma água efervescente dando com a cabeça loura em sinal de aprovação. O da tira levantava gestos que deviam exprimir coisas de subido alcance ou guindava, com os dedos em feixe, tremulamente, numa ascensão olímpica, a imagem ou a estrofe, e o outro, radiante, como um auditor romano dos que ouviam Estácio, sorria, acompanhando com um olhar inefável os dedos, que já iam pelo ar subindo, subindo sempre, à proporção que a voz se ia tornando cava e profunda com um rumor longínquo de trovões de estio.
Quando o caixeiro veio ter comigo, ouvi distintamente o último ronco e logo em seguida a voz infantil e clara do auditório.
— Bonito! Bonito! Delicioso, Mendes! Delicioso! e docemente, numa lisonja amável, repetiu o verso final:
Neste cymbio de prata...
O resto do verso, que devia ser divino, perdeu-se no estouro de uma nova garrafa d’água aberta para o pequeno entusiástico e sedento. O da tira dobrou-a com indiferença e guardou-a no bolso interno do casaco atirando para cima da mesa uma nota.
Na mesa contígua uma virago de luto mastigava gulosamente com um triturar famélico de mandíbulas, diante de um velhote casmurro, que meditava levando, de vez em vez, à boca, escondida por trás da barba curta e amarelada, o copo de cerveja. A mulher devorava atabalhoadamente e ele, taciturno, parecia muito longe dali, com os olhinhos fitos no vago, em algum sonho de saudade, talvez na imagem sempre viva de quem se fora e por quem ele trazia a cartola enrolada em crepe e a mulher insaciável o merino de luto. O caixeiro acudiu ao meu apelo. Encomendei um grogue. E voltei o olhar para os dois rapazes. O da tira tomara uma atitude de abandono, as pernas cruzadas, caído sobre a bengala, cujo castão perdia-se-lhe na axila; o pequeno acendera um cigarro e baforava, farto.
Trouxeram-me o grog.
Um tlim-tlim ao lado atraiu-me a atenção. O caixeiro acudiu num salto. O velhote, sempre triste, passou a mão por sobre os destroços, responsabilizando-se por tudo, e empinou-se para sacar o dinheiro do bolso. A virago chupava os dentes com estrépito endireitando a capota ao espelho. Levantaram-se os dois. O velho dava pelos ombros da mulher e, magrinho, engelhadinho, fazia dó vê-lo humilhado pela abundância daquela Eva formidável, de seios enormes, que o arrastava soberanamente como a cauda do seu vestido arrastava os palitos do chão. Fazia dó ver aquele homem diminuto e franzino ao lado daquela fartura — e foram-se, ela adiante chupando os dentes, ele seguindo-a, com o guarda-chuva debaixo do braço, contando as notas do troco.
Acompanhando com o olhar o pobre velho, que desaparecia no rasto da poderosa Cibele, passou-me pelo espírito este pensamento estranho: Esse homem apanha da mulher.
E ri, ri francamente, imaginando o homúnculo, em camisa de dormir, descalço, a saltar, a correr perseguido pela mulher possante que lhe atirava varadas às pernas secas e guedelhudas.
Enfastiado de estar ali sozinho, resolvi tomar rumo, e como o caixeiro passasse, atirei-lhe dinheiro. Ele inclinou-se esfregando a mesa com um guardanapo e indagou:
— Foi um grogue?
— Sim, um grogue, disse-lhe e, lembrando-me de que era assíduo na casa, tive a feliz inspiração de interrogá-lo:
— Não esteve por aqui o Dr. Gomes de Almeida?
— Sim, senhor; esteve aqui, mais um outro, um de barbas louras, e puxou das bochechas duas suíças imaginárias.
— Há muito tempo?
— Às onze e meia, mais ou menos.
Retirou-se depois de perguntar-me se queria mais alguma coisa.
Levantei-me para sair: não havia, porém, chegado à porta quando alguém pôs-se a bradar:
— Ó senhor! Ó senhor! Voltei-me; era o caixeiro que me perseguia sorridente e apressado:
— Olhe ali em baixo o Sr. doutor Gomes...
— Onde? indaguei ansioso.
— Acolá, ao fundo.
Ainda não conseguira descobrir o paradeiro do ilustre moço e já a sua voz clamava por mim de longe, festivamente:
— Bem-vindo seja o meu amigo!
Avancei pressuroso e radiante, esgueirando-me por entre as cadeiras para cair nos braços do meu recente amigo. Apertamo-nos e, em poucas palavras rápidas, contei a minha peregrinação pela rua nesse dia obscuro e inerte. O doutor, com um gesto vago, lançou apodos ao clima e, arrebatando-me para a mesa, apresentou-me a uma formosa mulher loura, em cujo rosto reconheci prontamente as pupilas azuis mais claras do que a selagem, que tanto me haviam seduzido quando, pela primeira vez, palmilhei o lajedo da rua do Ouvidor.
— Mlle. Marie, ou simplesmente Marion, a divina Marion... E à loura, com distinção: Dr. Anselmo Ribas, meu amigo. Curvei-me ao peso do título e diante da beleza. A divina Marion desabrochou um sorriso adorável, todo doçura e graça, à flor dos lábios finos e ofereceu-me a pequenina mão apertada em uma luva cor de pérola que lhe subia ao cotovelo, enrugada e cheia de pulseiras. Comovido e trêmulo tomei a mão leve de mademoiselle e que de esforços empreguei para não a levar aos lábios!
— Mettez-vous ici... disse-me ela afastando-se com um rumor de sedas, comparável ao que fazem os bandos de pombos bravos quando levantam o voo das margens dos rios, na minha terra.
Sorri e balbuciei com uma pronúncia tosca: Je vous remercie bien.
O doutor afixou com habilidade e graça:
— Meu amigo, exprima-se em vernáculo, sem cerimônia. Marion é de Paris, mas fluminense pelo coração. Mademoiselle asseverou galantemente com a cabeça loura. Sorri.
— Íamos por um champagne e pela moral de Filetes. Falávamos do amor na acepção terna do termo, tão vilmente abastardado pelos atos civis e religiosos do casamento e bebíamos Clicquot frappé. Veja o amigo se está pelo tema e se aceita a bebida, que nesta casa é detestável, valha a verdade.
— Perfeitamente, disse voltando-me logo para os olhos doces de Marion.
O doutor ergueu a garrafa esgotada e impôs ao caixeiro:
— Outra e uma taça. E logo tornou: Para um celibatário de gosto, meu amigo, não há atualmente no Rio melhor emprego de capital e, com a mão aberta, estendida, indicou-me Marion. Fala três línguas e com uma voz... Não é esta que o amigo ouve, não, é bem diferente — modulada em bemóis lânguidos. Ó Marion, dize alguma coisa no tom íntimo, fala como se estivéssemos no teu ninho. E mademoiselle, rolando os olhos, pipilou:
— Mon p’tit! O doutor, em veia alegre, derreou-se perdido.
— Ouviu? e ainda não é tudo! Quando ela diz: Mon amour! e apertou o próprio peito estremecendo e demorando a exclamação. Ah! meu caro! Mon amour! Hein, Marion? Mademoiselle baixou as pálpebras maliciosamente. E o doutor continuou: Executa Chopin e tem uma estante de clássicos. E mais do que tudo isto — dezoito anos.
— Dix-neuf, emendou Marion, dando com o leque uma pancadinha no ombro do doutor. Dix-neuf, Gomes. Quand j’avais dix-huit ans j’connaissais pas encor’ l’amour... arrulhou endeixosa.
— Pois sim, dezenove; mais um, que não aparece ainda à flor do rosto. Ah! Porque os anos realizam o eterno princípio da gota d’água, já citado por Montaigne — acumulam-se, acumulam-se sem que a gente se aperceba e, às vezes, basta um dia para que a velhice transborde em rugas e em cabelos brancos. Não achas, Marion?
O caixeiro serviu o champagne.
Mademoiselle tomou a sua taça e, erguendo-a, cumprimentou-me: M’sieur!
— Mademoiselle! correspondi; e os cristais tiniram. Mas (e aqui faço a confissão da perfídia covarde de que me tornei culpado) não foi só isso, por baixo da mesa senti que um pezinho roçava pelo meu carinhosamente e, num movimento alucinado, calquei também, com toda a violência do meu amor e com todo o peso dos sapatos ingleses. Mademoiselle, sem um protesto, impassível, bebia; e eu, num delírio indomável, baixava os olhos atraídos pela alvura do seu colo esgargalado, de uma tez fina onde passavam frêmitos dourados.
— Demora-se no Rio? indagou a divina Marion, rilhando as palavras.
— Pouco, mademoiselle.
— De onde é?
— De Minas.
— Ah! de Minas... Recolheu-se um instante e, pouco depois, perguntou-me com a sua voz misteriosa, a encantadora voz de que falara o doutor:
— Conhece em Juiz de Fora, Amâncio...?
— Amâncio! Amâncio de que, mademoiselle? E os nossos pés trucidaram-se cruelmente.
— Amâncio de... Tocou os lábios com o leque, elevou as pupilas num olhar extático e nervosa: não sei de que... É um gordo, tem uma fazenda com muitos bois, faz queijo...
— Não, mademoiselle, não conheço.
Calamo-nos. O doutor, pensativo, desfazia os cristais de gelo no champagne, balançando a taça. Mademoiselle tornou-se de novo estática.
De improviso o doutor chamou-me.
— Tem algum compromisso para amanhã, Sr. Anselmo?
— Nenhum, doutor.
— Quer vir almoçar comigo?
— Com todo gosto.
— Podemos fazer uma ascensão ao Corcovado? Ainda não conhece o Corcovado ?
— Ainda não.
— É belo! E dá-se comigo um caso estranho — sinto, de vez em quando, a necessidade da altura, tenho a mania satânica de contemplar da montanha as coisas inferiores. Já experimentou a delícia vaidosa de ver toda uma cidade a seus pés em nível humilde? É delicioso, meu amigo. Demais, recebe-se o ar em primeira mão, fresco e puro, sem os tóxicos da vida rasteira e certos de que a golfada que respiramos não andou pelas cavernas de pulmões enfermos.
— Aceito com prazer, doutor...
— Queres ser do bando, Marion?
— Não é possível, disse com lentidão mademoiselle trincando os lábios.
O doutor encarou-a e por fim sacudiu a cabeça resignado:
— Pois iremos nós...
Calquei o pezinho para ver se por meio dele conseguia vencer a caprichosa, mas com surpresa senti que me fugia esquivo. Insisti amorável:
— Então porque não vem conosco, mademoiselle?
— Pas possible... disse com um momo abrindo e fechando com estardalhaço o leque. E pondo-se de pé, num ímpeto:
— Eh! bien... j’m’en vais...
O doutor mirou-a. Mademoiselle estendeu-me a mãozinha: — M’siear... e friamente, dando as pontas dos dedos ao doutor: — Au revoir!...
— Au revoir, Marie; disse com lentidão cruzando as pernas e, quando a viu sair, passando nervosamente a mão pelos cabelos, exclamou entediado. Idiota!
— Zangou-se? indaguei com interesse.
— Ciúmes... Que quer o meu amigo? não há um ser perfeito. Veja essa mulher divina... é ciumenta. Ciumenta a ponto de fazer tolices. Bolas...! E casmurro: Eu sei como tudo isto acaba: vão ambas para a rua! não há que ver. Vão ambas para a rua... E recuperando o natural: Então está combinado?
— Perfeitamente.
Trincou um charuto e irrompeu assomado:
— Um dia magnífico, não há dúvida... magnífico! engoliu um pouco de champagne e continuou: Não sei se o meu amigo cultiva a volúpia do sono matinal, o sono das seis às dez? É uma delícia! O sono da noite dorme-o todo o ser — o operário e o poeta, a água gemente e a flor, mas o extra lânguido, o sono tépido da indolência, esse é exclusivo dos privilegiados que conhecem a vigília — esse é incomparável, porque, não sendo um ato normal, é um vício e, como todo vício, encanta. Eu penso assim. Dificilmente deixo os lençóis antes das dez. Acho que um homem de gosto deve encontrar o dia pleno, em viva luz, pássaros cantando e tudo em ordem para recebê-lo porque, sair pela manhã, à hora em que a natureza se arranja, quando o sol nasce e os pássaros acordam, produz em mim a mesma sensação de desgosto que experimento quando entro em uma sala de jantar no momento em que o copeiro estende a toalha. É odioso! Sou um comodista extremado — gosto de achar tudo pronto, limpo e nítido — o céu todo em sol, a mesa já florida. Haverá coisa mais ridícula para os olhos de um homem do que surpreender a mulher amada diante do espelho, em penteador, sem meias, amaciando a cútis ou trançando os cabelos, ainda com os olhos empapuçados de sono? É desolador! Levanto-me tarde, desço para a ducha, visto-me — uma grande hora de trabalho lento, mirado e caprichoso — e ganho a frescura do jardim, uns metros de terra onde brotam cravos e bogaris, sob a copa frondosa de uma amendoeira amiga. Ali leio pausadamente os jornais e bebo o café e o cognac, ouvindo os meus canários. Sem essas minudências sou um homem inútil. Recolhi-me tarde, muito tarde, e sem sono. Reli uns capítulos de psicologia experimental e confesso que fiquei impressionado. Eram talvez quatro horas da manhã, cantavam galos pela vizinhança, quando consegui conciliar o sono. Pois às seis fui violentamente acordado, porque um íntimo carecia do meu auxílio para resolver uma questão magna. Note o meu amigo que sempre tive uma decidida vocação para a ginecologia, recuei diante do fórceps e dos outros aparelhos de viabilidade fetal simplesmente porque as senhoras preferem dar à luz à noite... Se não fosse a hora incomoda preferida pela gênese, eu seria hoje um parteiro notável. Sou advogado, homem de leis e de retórica. Desci desesperado. Borrifei-me com um pouco d’água, sorvi, às pressas, um gole de café e, ainda em jupon, bocejando, recebi o íntimo na minha sala de estudo. Quer saber o motivo da visita do meu ilustre despertador? a crise de transportes. Baniu-me do leito para pedir-me um artigo violento contra a Central. Escrevi, deve sair amanhã. É um horror! ressente-se terrivelmente do meu estado de espírito. O íntimo colaborou dando-me a assinatura, que é um mistério de que ele faz segredo: A alma de Frei Góes. Não sei que quer dizer, mas presumo que há dentro disso coisas de subido alcance. Mas agora, entre nós, que diabo tenho eu com a crise de transportes? Cruzou os braços e encarou-me. Que tenho eu com tudo isso? As cargas que apodreçam ao sol, pouco se me dá que haja ou não sal em Mato Grosso e sapatos em Goiás. Que se arranjem, deixem-me em paz, deixem-me dormir. Que tenho eu com a crise? Houve uma pausa curta e o doutor tornou: Depois do artigo uma cena de ciúmes. Uma mulher idiota que se revoltou porque um intrigante qualquer lhe foi dizer que andei seguindo os passos de uma espanhola, no Polytheama. Virou o resto do champagne. Eu sentia-me meio atordoado — ardiam-me os olhos amortecidos de sono.
— Mas, meu amigo, voltando à minha leitura da noite: confesso que estou deveras impressionado. Tem lido os modernos estudos psíquicos?
— Alguns.
— E... que pensa da alma? indagou.
— É uma hipótese, aventurei.
— Como! uma hipótese? Não crê?
Sorri, e entrei a falar como se ditasse:
As minhas ideias sobre psicologia estacam diante dos túmulos: depois da lápide mais nada. Não posso compreender essa verdade suprema dos filósofos românticos — a vida póstuma. Alma é o átomo, alma é a monera, alma é a célula, alma é o sangue. Das causas puras, doutor, só podem derivar iguais efeitos, entretanto o ódio germina dentro em nós, o ciúme, a aversão, a antipatia, abjeções próprias da matéria, naturalmente afeta à podridão pela sua própria essência — o verme. O nosso corpo é um termômetro, de que o sangue é o mercúrio. Nos períodos pacíficos e normais marcamos os graus baixos da tranquilidade; um pouco que o sangue ascenda ao cérebro, como o mercúrio sobe, ao calor dos fortes estios ou das febres, temos a exaltação, o delírio, todos os horrores do desequilíbrio mental, todas as concepções extravagantes e alucinadas. Creio no Nirvana porque adoro o silêncio. Ao céu, ao prometido paraíso, falta a primeira condição: variedade. A vida eterna deve ser monótona. O meu ideal é o fim absoluto. Isto de vida, doutor, é um fenômeno de atração de moléculas. O homern vem ao mundo pela mesma razão porque vem à árvore o fruto, o fio d’água à rocha: fatalidade, simpatia, coesão, tudo quanto quiserem, da vida física, da vida material; mas de alma, espírito invariável e eterno, sopro de Deus, etc., etc.... não percebo. Alma como conjunto dos sentidos, admito. O beijo é uma premissa do amor, o amor é uma manifestação da alma.
Doutor, estude a psicologia em uma criança: é um brutinho, incapaz de pensar, incapaz de outra coisa que não seja vagir e chupar tetas. A primeira manifestação é toda material: o choro, manifestação positiva do sofrimento ou do tédio, que é inato, e a fome manifestação do instinto — a alma misteriosa não dá sinal de si. Com o correr dos anos chegam os sentimentos, isto é, o aperfeiçoamento das sensações. É por meio deles que as fibras delicadas do cérebro e do coração vibram; essas vibrações formam a vida complexa do amor, do ciúme, do desespero, do pensamento, etc. Para a velhice, com o declínio do corpo, todo o organismo definha e a alma, imortal e forte, em vez de sustar a queda da carne, auxilia-a porque os sentimentos afluem todos para a saudade, que é a velhice das paixões; ela é que vive até á caducidade, até à bestialização, até à regressão ao primitivo estado de inconsciência. Alma é a vibração da mocidade, alma é a ardência do sangue. Infelizmente nós outros oscilamos entre dois crepúsculos — a ignorância da primeira idade e o pavor do fim dos anos. Não creio, doutor; em alma, não creio.
— Mas, pelo amor de Deus, meu amigo... acudiu ele, vejo, pela preleção que acaba de fazer, que é um materialista intransigente; isso, porém, não impede uma observação singela. Abriu um parêntese para propor mais champagne; recusei e ele continuou firmando-se nas minhas palavras: Vivemos entre dois crepúsculos, disse o meu amigo, mas os crepúsculos sucedem-se numa eterna continuidade — as almas têm o ocaso em um corpo, mas ressurgem em outro. A alma existe como existe a luz e há de existir até à última dinamização. O corpo é um casulo. Como já lhe disse, creio firmemente na vida eterna das almas. A civilização é o resultado da longa prática do espírito humano: a carne é uma espécie de alambique, mediador plástico entre a concepção e o movimento. Os homens que fizeram as primeiras obras, os donos das ideias iniciais, são esses mesmos que as continuam. A morte é apenas uma solução de continuidade.
Nós não fazemos outra coisa senão aperfeiçoar o que dantes fizemos. As ideias têm o seu alfa na antiga era. Há uma estranha conexão entre o pensamento moderno e o modo de ver dos antigos — a síntese de hoje vem da análise de ontem. Nós, a civilização, estamos continuando a nossa obra bárbara. Somos os mesmos. A alma de Lucrécio ressurgiu em Virgílio e a de Pitágoras, antes de meter-se no corpo do sofista, animou Eufórico, filho de Panthous. Quem sabe se dentro do meu amigo não vive a alma cética de Zenon?
— Não, doutor, a alma que se aloja em meu corpo nunca perscrutou mistérios transcendentes — é a mais ingênua das almas, contenta-se com um pouco de sonho e com um pouco de amor. Como disse, as minhas ideias estacam diante dos túmulos. Depois da morte mais nada.
— Mas, meu caro amigo, note que já os egípcios pensavam que “a morte é um meio e não um fim” — um meio de perpetuar a vida. A ciência moderna vai desbravando o mistério da imortalidade: o zaimph de Isis caiu deixando a grande deusa descoberta, e são tão fortes e peremptórios os argumentos em favor da existência perene, que é boje quase um absurdo a negação da Eternidade da Alma.
— É possível, doutor.
— É de uma árvore que murcha que se colhe a semente para as florescências futuras. As suas ideias estacam à beira do túmulo, porque encontram o silêncio completo? Não; porque encontram a realização perfeita do absoluto? Não; um cadáver, posto que vazio, existe. Nada se perde, nada é inútil. O espaço é o nada e o espaço existe. Que tem o espaço? Constelações; a morte tem também os seus astros, o fogo fátuo, por exemplo, é uma estrela funeral.
Demais se, como diz, as suas ideias estacam diante dos túmulos, devem igualmente estacar diante dos leitos.
— O doutor maneja adoravelmente o paradoxo.
— Perdão, não é o paradoxo, é a analogia, Diante de um dormitório tem-se o exemplo perfeito, o símbolo, devo dizer, de uma pequena necrópole: o leito é um esquife. Reza-se para dormir e reza-se para morrer; a lâmpada serve tanto para os mortos como para os que dormem. Uns e outros têm a mortalha...
— Doutor, mas isto é francamente o que nós outros, pobres rústicos, chamamos Poesia.
— Perdão, todo mistério tem um fundo poético. Mostre-me uma religião sem profetas e os profetas são os poetas esotéricos. Mas continuando: o sonho não será a iniciação de uma outra existência? O sonho não será uma previdência?
O corpo adormecido roja-se; parece que tem a nostalgia da terra; e a alma? Paira, fica de vigília como ficava, segundo o pensamento dos padres de Osíris, de guarda à múmia em que havia habitado. O sono é o túnel por onde a alma atravessa. Meu caro amigo, não há morte: Sísifo é o símbolo da vida.
— Confesso, meu caro doutor, que apesar da beleza da sua doutrina, o meu espírito repele-a. Escreva um poema com essas ideias, um poema de mistério no gosto dos Versos Dourados.
— Pudesse eu, meu caro! Sacou o relógio e pôs-se de pé: Vamos sair? Isto está fúnebre.
— Tenho um encontro para as cinco.
— Feminino?
— Não, meu tio.
— Ah! Então demoro-me mais alguns minutos. É cruel deixar um amigo abandonado nesta triste sala em um dia como o de hoje. E de repente: E se jantássemos juntos... ?!
— Onde? indaguei.
— Por aí, em uma baiuca qualquer. Pretexto para conversarmos. Temos a ameaça de uma noite terrível, podemos atravessá-la queimando punchs em algum gabinete, em companhia de alguém que nos ajude a arrastar o tédio até a madrugada.
— Aceito, mas com a condição de impor alguma coisa: iremos a um teatro, não para o espetáculo, pouco me preocupo com o que se canta em palcos, mas confesso, em intimidade, que tenho um desejo louco de ver a caixa de um teatro... Dizem-se tantas coisas...
— É horrível, meu amigo, mas não pense que me recuso, pode dispor de mim. E mais ainda, sei que não conhece o Rio à noite, proponho-me a mostrar-lhe, em uma noite, todos os mistérios desta cidade que começa a ter vícios. Joga?
— Pouco.
— Conhece a roleta?
— Conheço. E o doutor percebeu pela expressão dos meus olhos que eu não era de todo indiferente à távola.
— Pois há um meio de conciliarmos tudo; vamos jantar ao clube. Voltando-se, o doutor deu com os olhos em meu tio, que assomara à porta, sempre jucundo, já acenando para o nosso lado. Levantamo-nos para recebê-lo.
— Meu caro doutor... e logo, dirigindo-se a mim: Então? como te arranjaste?
— Perfeitamente.
— Bem... e de improviso: Vem jantar conosco, doutor?
— Hoje não é possível, e indicando-me: Vou mostrar ao amigo Anselmo o Rio de Janeiro, à noite.
— Então, até amanhã.
— Até amanhã, meu tio.
— E não te canses muito, ajuntou com um sorriso: amanhã à noite temos a festa do Bessa, em Botafogo. E ao doutor: Lá nos encontraremos.
— Não garanto.
— E cuidado, Sr. Anselmo, cuidado! O Rio, à noite, é um perigo para os que veem pouco.
— Descanse, comendador: eu vejo admiravelmente.
Em caminho o doutor, compenetrado da minha ignorância das coisas do mundo, disse-me algumas palavras de conselho, expondo-me, em claros períodos, cheios de sinceridade, os riscos da afoiteza quando não se está de sorte, e a profunda ciência da roleta, que se resume em saber acompanhar a banca. Propôs-me um setor sempre feliz que, uma noite, em casa de certa Elisabeth Blayn, uma escocesa, lhe dera cinco contos e tanto. Falou-me da roda que frequentava o clube — gente da melhor escolha: alto comércio, a magistratura, as letras, médicos. Podia-se estar à vontade e o banqueiro, um homem de moral intransigente, correto e austero — tão digno a dar a bola como um juiz presidindo um conselho.
Tomamos o bonde. A tarde triste escurecia e o céu, pluvioso e grosso, pulverizava uma neblina tênue, finíssima, como a garoa de junho nos campos. Durante a viagem falamos rapidamente da Débâcle e de uma loura franzina, de waterproof, que se acolhera a um canto e cruzara modestamente as mãos no colo sobre uma brochura inglesa. Íamos em corrida suave, por um leve declive, em frente ao mar, quando o doutor fez sinal para que parassem. Descemos e eu, numa atração amorosa, volvi os olhos mandando adeuses tristes à loura, que parecia embebida num sonho, tão distraído tinha o doce e azulado olhar.
— É ali! Segredou-me o doutor, mostrando-me, num gesto subtil, uma larga porta, alta e nobre, onde rondava melancolicamente, com as mãos para as costas, um severo criado de casaca. Quando nos viu curvou-se gravemente. Subimos por uma escada de volta e, em cima, num vasto salão, forrado por um tapete fofo, semeado de móveis, numa desordem encantadora, um moço magro, de óculos verdes, tirava tristonhamente de um Gaveau acordes melancólicos.
— Guedes! O do piano voltou-se inopinado; mas, como o doutor desaparecera numa saleta cercada de cabides, mirou-me fazendo um leve cumprimento e baixou a cabeça terna, correndo os dedos pelo teclado numa escala sentimental.
— Venha guardar o chapéu, amigo Anselmo. E na saleta o doutor preveniu-me: Esse tipo que aí está tirando gemidos ao piano é um famoso cábula. Teve uma charutaria e hoje vive a executar trechos de sentimento e valsas nas batotas e nos saraus dos bairros. Inculca um eterno palpite: o 9. Muito cuidado! Saímos para a sala. O doutor, esfregando as mãos, aproximou-se do piano.
— Chopin...? O dos óculos ergueu a cabeça exclamando:
— Oh! Doutor, bons olhos o vejam. Sacudiu-se todo como para espanar a tristeza d’alma e estendeu a mão afetuosamente.
— Dr. Anselmo Ribas, meu amigo, apresentou o doutor e intimamente: O nosso Guedes.
— Muito prazer, doutor, e estendeu-me a mão dos acordes, húmida e mole e, logo, apressado, traquinando: Vamos para a sala, vamos... Já devem estar à mesa. Tomou-nos a frente, abriu uma porta e meus olhos caíram sobre uma calva polida que reluzia, balançando, de leve, muito regular, como certas pendulas de relógios icônicos.
Entramos. Jantavam.
O doutor, muito conhecido na casa, foi recebido com um extenso oh! De todos que cercavam a mesa ampla, de carvalho, arranjada como para um banquete, com grandes ramos de flores e pudins trêmulos em pratos de porcelana.
A mobília, toda de carvalho, dava uma feição distinta e séria à sala, forrada de encerado inglês, com grandes reposteiros que pareciam descer do teto. Criados céleres passavam sem rumor, de um lado para outro. O homem da calva agitava-se, com um guardanapo ao pescoço, esticando os braços para apanhar pedaços de pão numa corbelha de christofle, sempre a mastigar. Mirou-nos e sorriu para o doutor com a boca cheia. Sentamo-nos e logo foi-nos servida a sopa.
— Que tem feito, doutor? Por onde tem andado? Indagou um homenzinho engelhado.
— Negócios, meu caro.
— Não imagina como tem sido lamentada a sua ausência. Um gordo soprou ao doutor: “O 7 deu ontem três vezes seguidas. O Monteiro lembrou-se logo do amigo”. E voltando-se para a esquerda: Hein, Monteiro?
Uma voz balofa indagou: Que é?
— O 7, ontem...
— Homem, é exato: três vezes! E derreando-se sobre a mesa: Três vezes, Gomes.
— Sim, justamente porque eu não estava. E o 29?
— Não foi mal, disse com circunspecção o gordo; creio que repetiu. Espere lá... Sacou do bolso uma tira crivada de números e, acavalando o pince-nez, consultou — 13, 22... ahn... ahn... 29! Disse com voz forte... ahn... 29! e... 29! Três vezes! Dobrou discretamente as notas e guardou-as.
— Vamos ver hoje.
Da ponta da mesa uma voz esganiçada pediu vinho. E travou-se uma palestra viva, cruzada, em que os números entravam às porções, atropelando-se. Discutia-se e, mais uma vez, ficou provado que à roleta não se podia aplicar princípio algum, porque não havia uma lei que se pudesse dizer exata. — tudo dependia do acaso. Um rapazola citou Pascal, afiançando que o método do ilustre autor das Cartas provinciais era de incontestável merecimento. Entreolharam-se pasmados e o gordo, cuspindo o palito, indagou:
— E você porque não segue os conselhos do tal Pascal?
— Mas sigo, como não?
— Ah! Então percebo: Pascal tem um método excelente para ensinar a ficar limpo. Houve uma gargalhada estrepitosa e o rapazola, corrido, procurou desculpar-se com o temperamento: — Que era um precipitado, sem paciência, sem calma.
— Qual, menino: só há uma ciência — é a sorte. Manda-me para cá a Escola Politécnica em peso e quero ver se ela arranja alguma coisa com os cálculos.
— Esta é a verdade, disseram.
— Qual Pascal, qual carapuça! Olha o Monteiro: tem horror às matemáticas, é incapaz de somar duas frações...
— Incapaz! afirmou o Monteiro sacudindo a mão diante dos olhos como para afugentar a visão da ciência exata.
— Entretanto, perorou o gordo, é o que se vê — os números procuram-no. O jogo é como a mulher: quanto mais perseguido mais esquivo. Qual Pascal nem meio Pascal — a bola é que regula.
— Está quente aqui, soprou uma voz.
— Horrível! ajuntou outra, esbaforida.
— Vamos subir, convidou o calvo, e todos, concordando, já ansiosos pelo primeiro golpe, acederam.
— Sim, vamos subir. Há pelo menos ar lá em cima.
O doutor acendeu um charuto e, enquanto os grupos desapareciam por uma porta baixa, que abria sobre um largo patamar de cimento, entre duas escadas, uma que descia para o jardim, outra que subia para um novo corpo do edifício, estabelecemos as condições restritas do jogo.
— Nunca mais de duzentos mil réis...
— Nunca mais! Afirmei.
E caminhamos por onde haviam desaparecido os grupos, ganhamos uma larga escada que levava a um terraço, ao fundo do qual havia a sala ocupada exclusivamente pela comprida banca da roleta, já cercada de pontos ansiosos. Justamente na ocasião em que assomamos a uma das portas, o calvo; sentado numa alta cadeira, ao centro da mesa, anunciava com solenidade:
— Cinquenta golpes, meus senhores.
O Guedes já havia tomado posto junto ao rapazola que citara Pascal. O seu olhar cúpido atravessava a espessa bruma das lentes verdes e cravava-se no monte de fichas que o neófito acariciava cheio de esperança, recapitulando baixinho os sábios princípios do mestre. O gordo passeava semeando fichas com cálculo; às vezes demorava sobre um número, trincando o grosso beiço rubro, com as sobrancelhas repuxadas por uma meditação profunda e retirava-as, num acesso de palpite, recuando ou avançando para outro número.
Aproximamo-nos. O doutor, sempre supersticioso, não quis entrar na primeira parada para jogar com segurança na sorte do banqueiro. O calo atirou a bola que começou a girar, num silêncio de ansiedade — ouvia-se apenas o leve rumor que ela fazia circulando à borda da roleta, como um satélite mínimo em torno de um grande astro, por fim foi amortecendo, amortecendo. O gordo, que acompanhava com ânsia o giro da bola, exclamou:
— Está dormindo! E inspirado: é o 19! Disse e precipitadamente atirou sobre o número três fichas.
— É o 13, disse o Monteiro, carregando, com a cara à banda, um olho pisco, para evitar o fumo do cigarro,
— Feito o jogo! Anunciou o banqueiro. Recolheram-se todos e o calvo, gravemente, espalhando pelo tapete um olhar de exame, cantou. Duplo zero.
Houve uma exclamação desabrida: o número estava livre. O rateou recolheu todas as fichas e já outras caíam atabalhoadamente, algumas rolavam. Cruzavam-se braços aflitos. Os de uma ponta pediam obsequiosamente que lhes pusessem duas fichas no 3 ou no 8 e entregavam espichando-se; outros consultavam o mostrador compenetrados, sisudos. O Guedes escrevia numa tira de papel.
—100 Fichas! Exclamou o doutor e eu, sacando do bolso o dinheiro que me dera meu tio, dei a troco de outras tantas fichas uma nota de duzentos mil réis.
— Quer o troco em cartões ou em dinheiro?
— Em dinheiro, soprou-me o doutor. E eu, imediatamente:
— Em dinheiro...
Deram-me fichas brancas e ao doutor sangue de boi e começamos a cobrir os números: ele seguindo o setor sempre feliz, eu indiferentemente, à discrição do acaso, atirando como quem semeia num campo, confiado na terra fértil. Já a bola girava quando o Guedes segredou-me em confidência:
— Olhe o 9, doutor; está vazio.
— Sim, o 9, e atirei para o número três fichas. A minha largueza fez pasmar o Guedes. Olhou-me com enternecimento e gratidão como se me quisesse dizer na sua linguagem humilde: “que me agradecia a confiança depositada no seu palpite tão desconceituado, já ridículo entre os pontos”. E saiu da melancolia com palavras confortativas:
— O doutor fez um jogo admirável, vai ver. Mas já o banqueiro anunciava, com a sua gravidade de magistrado, opondo embargos ao rapazola, que despejava fichas às tontas: em pleno, nos esguichos, a cavalo, no grande, na terceira dúzia, como se quisesse, de uma só vez, chamar ao seu bolso os cinco maços de notas que ali estavam acendendo a cobiça:
— Jogo feito.
— Pronto! Pronto... disse o retardatário, sem arredar os olhos do tapete.
—18, cantou o calvo e o homem do rateou começou a contagem: 35 amarelas.
— Minhas, disse o rapazola coçando a nuca frenético.
— 35 azuis...
O gordo, com a voz cheia, acusou: Do dégas.
—105 brancas... eram minhas. O resto foi raspado. O Guedes, corrido, não disse palavra, limitou-se a molhar o lápis nos beiços para anotar e o rapazola, enxugando o suor da fronte, já sulcada de rugas, lastimava: “que saíra justamente o número em que menos jogara”.
O doutor, vendo-me carregado de fichas, felicitou-me, ajuntando em tom discreto — que não me precipitasse.
— Descanse...
— Deve ser agora o 36, disse o Guedes tímido.
— Como o 36? Por quê?
— É a soma de 18.
— Vá lá o 36... Jogo por sua conta, e atirei sorrindo.
O gordo, engasgado, a tossir, seguiu o meu palpite dizendo — que os estreantes são sempre felizes e atirou duas fichas sobre o 36. Tive ímpetos de declarar que jamais pensara em tal número, que o palpite era do Guedes, mas o pobrezinho voltara para o meu rosto os óculos verdes e, através das lentes, pareceu-me que os seus olhinhos tristes imploravam. Calei-me. Deu o 15.
— Apre! Bradou o de Pascal. Que sorte!
— 15...! É do setor! Disse o Monteiro sentenciosamente recolhendo 140 fichas — e com ironia, puxando o rapazola pela manga do veston: Aplique-lhe os princípios, homem. Aplique-lhe os princípios.
— Qual! E agitando uma nota: Mais vinte fichas! Entrara um novo ponto — um velho moreno, magro, de cavanhaque. Deu uma volta distribuindo apertos de mão e acercou-se do Guedes.
— Que números têm dado? O Guedes entregou-lhe o papel.
— Jogo feito! anunciou o banqueiro. Pronto! Pronto! disseram vozes e, grave, como sempre, o calvo anunciou: 33. Foi a minha sorte — 280 fichas. O Monteiro felicitou-me:
— Lindo golpe!
O rapazola sorria batendo as mãos e, sem que eu lhe perguntasse, disse-me esticando o beiço:
— Estou limpo!...
— Nove horas, meu amigo; avisou-me o doutor.
— Sim, sim; vamos já. É a minha última parada. E espalhei a esmo um punhado de fichas afastando-me, em seguida, para dar lugar ao novo ponto, que acompanhava todas as peripécias do jogo com vivíssimo interesse. A roleta girou mais uma vez e o calvo, com a gravidade habitual, cantou: 18.
— Em branco, disse o doutor puxando-me pelo braço. Os outros, arrebatados, iam arrumando novas camadas, atulhando as casas, com uma gana que seria para recear se ali não estivesse, na presidência fatal, o calvo com a sua serena impassibilidade. O rapazola, sacando do colete uma nota amarfanhada, berrou:
— Jogam duas fichas no 17, e acamou a cédula sobre o número com um murro.
Quando me apresentei ao calvo para receber o valor das fichas, ele sorriu com ar augusto e dignou-se dirigir-me a palavra:
— Então já?
— Tenho compromissos...
— Apareça, disse entregando-me o bolo. E o Guedes, solícito, saindo ao meu encontro: Apareça, doutor. Venha jantar conosco.
— Pois sim, pois sim. Mas o doutor do terraço acenou-me, bradando sonoramente: “Boa noite, meus senhores!”. Descemos.
Quando passamos a volta do patamar, entrando na passagem que comunicava com a sala, alguém, que se balançava numa cadeira, na penumbra húmida de um socavão, indagou com um timbre feminino: se não queríamos tomar alguma coisa — cerveja, conhaque?
— Obrigado, agradeceu o doutor, e como eu lhe perguntasse quem era:
— Hebe, disse ele sorrindo maliciosamente.
Atravessamos a sala deserta, tomamos os chapéus e saímos. A noite estava radiosamente estrelada. A chuva cessara de todo, deixando no ar uma frescura húmida. No mar tranquilo estendia-se tremulamente o rastro diáfano do luar e sobre o muro do cais um grupo de homens cantava em vozeirada um rondó de opereta.
— Apre! Respira-se finalmente.
— É verdade! Que forno esta casa!
— Para mim principalmente: queima-me todo o dinheiro. E num tom convincente: Mas a gente é de escolha.
— Pois não: roda magnífica. O próprio Guedes é excelente rapaz.
— Excelente. Um admirável companheiro, meio desconfiado... Vai às nuvens quando alguém o chama de cábula. Sinto que não tivesse visto o Balduino, o Pai 13, como é conhecido nas batotas. Jogador incorrigível. Afirma que desde os 14 anos faz ronda ao tapis vert. Com 15 anos perdeu a legítima materna e anda agora a transviar o fruto amargo da labuta caseira — magros mil réis que a mulher e as filhas retiram da loja para onde cosem calças e coletes de brim. Mas é um excelente pai de família, o Balduino! adora a sua gente, é tão amigo dos filhos como da roleta, é tão fiel à mulher como ao seu número. Se consegue fazer uma feirinhazinha razoável, que lhe dê para um mês, entra pela casa carregado de embrulhos, enche à farta a dispensa, paga as contas, resgata as joias, veste o rancho e acende uma vela de libra aos pés da Conceição para que lhe dê um pleno volumoso. Ao jantar levanta um brinde comovido ao magnífico número, e toda a família acompanha-o com religiosidade, tocam-se as taças e Balduino desenrola mais uma vez o seu grande plano de felicidade que ele mesmo, uma noite, contou-me ceando comigo num gabinete do Bragança: “Entra com 20$, atira-os em pleno sobre o número e ganha; deixa todo o lucro... e repete. Afronta a sorte, num acesso de coragem louca, e ganha ainda... é uma fortuna — não ousa arriscar mais, retira o bolo e, no dia seguinte, entra em ajuste de compra com um fazendeiro — fica-lhe com as terras e estabelece uma criação de galinhas em grande escala. Novos cálculos: tantas galinhas, tantas posturas e faz-se exportador de frangos e de ovos, conseguindo acumular em 10 anos quantia superior a 5 mil contos. Aparecem então as ambições políticas — é outro jogo, porque Balduino, apesar de retirado, não pode esquecer, por gratidão, o seu início. Apresenta-se candidato, ganha a eleição, entra na câmara com o diploma, faz o diabo, até que um dia, inopinadamente, cai-lhe em casa uma pasta. Mas Balduino, sempre fiel, não entra em exercício senão num dia 13 — vai protelando, há tantos meios de protelar: enfermidade, arranjos, coisas, até que chegue o dia... Ah! Então o Brasil viverá em regalada paz com a sua administração cabulosa”. Eis o seu romance. O certo é que Balduino tem feito Áfricas: teve camarote no Lírico e apresentou-se com dignidade. Dizem que, em certos dias, passa como Luculo.
— Dava alguma coisa para ver esse tipo.
— Ora espere... hoje é...?
— 8.
— Então podemos partir descansados — não vem cá.
— Como sabe?
— É que ele só joga nos dias ímpares: tem a superstição às avessas.
Caminhamos lentamente, em silêncio; por fim observei ao meu amigo:
— O senhor joga friamente.
— É um engano, meu amigo; aparento.
— Mas não se distrai. Parece que não acha prazer...
— No jogo? Muito! Penso com os modernos que dizem que o jogo é um prazer estético. O gozo do jogador, pela tenacidade da emoção prolongada e forte, pela ausência do sentimento, porque é um fenômeno todo material de sensação, excede o do artista que contempla embevecido, por longo tempo, uma obra de gênio. Os sentidos, no jogador enfebrecido, atrofiam-se e tornam-se uma espécie de abstração, algumas vezes excessiva, a ponto de o deixar em imobilidade de hipnótico, enquanto corre o azar da bola ou das cartas. O jogo opera como a morfina — excitando e abatendo: é um estupefaciente. A emoção é cruel sem deixar, por isso, de ser agradável. Se não educa o gosto, educa as paixões: a luta com o acaso torna o homem indiferente, quase estoico. Habituado às contrariedades não sofre com os revezes, acha-os naturais, aceita-os sem protesto, passivamente, como aceita as sortes da banca. Alguém descobriu que o jogo era uma manifestação da histeria, foi talvez por isso que a sábia Europa instituiu para os histéricos dessa mania, o grande hospital de Monte-Carlo. Mas olhe o bonde... vamos!
E deitamos a correr em direção ao bonde.
Vamos refocilar na devassidão, disse o doutor quando nos apeamos. Infelizmente a besta que trazemos em nós exige esse mergulho de quando em quando. Os higienistas não se aperceberam desta grande verdade: o homem espoja-se. O corpo exige, com a mesma tenacidade, o exercício e a insânia, a tensão dos músculos e o enervamento, como o espírito requer o real e o ideal. O vício mantém em silêncio a carne: é um repasto material. É preciso satisfazer o animal. Estudei profundamente o organismo do homem e cheguei à convicção de que a vida serena é um absurdo impraticável. A vida deve sujeitar-se às leis do movimento — a variedade é um fato. Confesso ao meu amigo que sou avesso ao deboche, detesto a vida de noceur; mas sinto, de longe em longe, necessidade de atravessar uma noite desfolhando rosas em champagne, no fundo de um gabinete discreto, com uma grisette que me recite a léria do amor, trincando lascas de fiambre e queimando cigarrilhas. Acho prazer, prazer perverso, porque sou um detestável instinto. Estacou e disse-me de novo: um detestável instinto.
Se pudesse viver como me inspira o temperamento, garanto-lhe, meu amigo, que as crônicas terríveis de Grilles de Rais desapareceriam como banais e pueris. Depravar a humanidade! ... deve ser um prazer magnífico. Ver todo um mundo no vício, numa orgia sardanapalesca, ao sol, cantando. O vinho a correr pelo leito dos rios. Em vez de barcas, grandes cântaros flutuando; e gente a beber, a cambalear, a cair, besuntada e trôpega, crianças e velhos, virgens, monjas, tudo, a babel terrível do satirismo, num dilúvio roxo escoado de todas as torneiras e de todas as vinhas... que delícia! E calmo: O vício é uma necessidade, afirmo-lhe.
Jogo e depravo-me como empanturro o estômago, como ingiro a medicina. Para mim a pílula e a esfera da roleta pertencem à mesma terapêutica, operam diversamente, mas operam. Para os males do fígado calomelanos, para o tédio uma parada comovedora. As mulheres interessam-me pela estranheza do tipo: adoro a mulher de amor, não pelo seu beijo, mas pelo seu estudo, porque é curioso ver como esses animaizinhos sabem atrair. Algumas, pobres campônias, ainda com as mãos grossas do cajado com que andaram a pastorear nos campos, conhecem melhor a arte de agradar, as delicadas minudências do amor que interessam, que prendem, que sensualizam, do que as eruditas educadas em finos boudoirs, lendo brochuras ardentes. Acho adorável a cocote — é um sexo neutro — alguma coisa de homem, a tática comercial, alguma coisa de mulher, a hipocrisia. De resto, é uma válvula de segurança social. Um contemporâneo da academia, rapaz de finíssimo espírito e talento não vulgar, dizia-me sempre: que sentia, de tempos a tempos, necessidade de embriagar-se. Encerrava-se e bebia. Era uma medicina.
Aventurei citando Simão Carreira, que, nos momentos em que a musa lhe foge, vai ao pucarinho e derreia bêbedo acordando, no dia seguinte, dispéptico e amarrotado, mas com a imaginação fulgurante e provida para um novo canto do seu poema ou para meia dúzia de sonetos, que imediatamente registra para o Correio da Serra, órgão superiormente literário para as alturas em que vê a luz.
— Mas é assim, meu amigo. A castidade atrofia, deprime, sufoca o espírito. O amor é um derivativo. Não o amor sentimento: o amor sensação. Afinal, que vamos nós buscar no fundo de um teatro, prazer? Distração? Arte? Não absolutamente: vamos cevar o animal. No meu programa de educação, inaplicável, porque não tenciono perpetuar a minha crise de spleen, dando ao mundo um representante de meu tédio e das minhas desilusões, entraria, como curso fundamental — o vício. O vicio, pois não. O epígono constitui o seu caráter com mais vigor nos camarins e nas tascas do que nas escolas. Que diabo ensina o mestre? Ensina a evitar o vício, o que vale dizer — mostra outro vício. É uma verdade o que Conte deixou escrito: “Não se destrói senão o que se substitui”. Afinal a vida é uma constante marcha e a natureza tem as suas leis. Para seguir é preciso tomar rumo. O mestre diz que não se vá pela direita; então o caminho da moral é o da esquerda e aí vai o pimpolho arrebatado pelo temperamento e induzido pela lógica do pedagogo para pior devesa. E por fim a educação inutiliza um homem que podia ser perfeitamente aproveitado. Meu amigo, os primeiros ciúmes fazem os futuros bravos, os primeiros amores fazem os futuros poetas. A moral é uma palavra van; toda a gente a pronuncia e poucos a praticam. Qual moral, qual nada! ... o corpo exige. Emudeceu de repente.
Havíamos chegado a um largo, e na parte fronteira à rua por onde seguíramos, uma grande cauda de luz elétrica alastrava o passeio argentando as árvores e, às vezes, ganhando o céu como uma esteira de luar.
— Variedades, disse-me o doutor. Mas se fôssemos ao Sant’Anna?
— Como quiser...
E seguimos. O doutor, depois de um silêncio, avisou-me: Mas não se iluda — olhe que a caixa de um teatro é um pouco pior que a caixa de Pandora...
— E a esperança, doutor?
— Fica à entrada, como no dístico do Dante. Vai ver de perto a ilusão, que é uma triste realidade. E voltando a rua: Eis-nos chegados, disse.
À porta do teatro formigava uma multidão impaciente. Logo que nos aproximamos, dois sujeitos avançaram pressurosos, oferecendo bilhetes: — que eram os melhores, que na casa só havia da última fila e perseguiam-nos tomando-nos o caminho, embaraçando-nos o passo, sôfregos, aflitos. Safamo-nos briosamente e ganhamos e bilheteria. Tomei a frente ao doutor e, enfiando a mão pelo guichet, bradei:
— Duas cadeiras!
— Uma! Uma só, disse ele.
— E o senhor?
— Não preciso; tenho entrada.
— Uma, emendei; uma cadeira. E, recebendo o papelucho das mãos do bilheteiro, examinei-o: Letra L... que tal?
— No inferno...! Mas como não tencionamos assistir, qualquer coisa serve. Vamos.
O doutor encaminhou-se vaidosamente e confesso que, pela primeira vez em minha vida, senti picar-me a inveja vendo-o passar entre os porteiros grave, sem uma palavra, como se entrasse por sua casa. A mim tomaram o papelucho e rasgaram uma nesga entregando-me o resto; ao doutor disseram com respeito: Boa noite!
Achei-me num estreito pátio de terra húmida. Para um lado, um correr de portas verdes com um óculo ao alto; para outro lado, mais adiante, um balcão de bebidas — na mesma direção um tablado coberto, cheio de mesas de zinco entre as quais passavam atarefados caixeiros carregados de copos. Mulheres subiam e desciam opulentamente vestidas, saracoteando, com grandes leques de plumas, deitando olhares, franzindo sorrisos; outras tagarelavam em grandes rodas de rapazes, com gargalhadas estridentes; e uma velhusca, de preto, com uma barbicha no queixo, como as feiticeiras de Macbeth, estremecia, mostrando as gengivas desertas, rindo estridulamente aos galanteios de um meninote de chapéu de palha e terno de flanela branca.
— Vê este século, meu amigo?
— É a própria velhice...
— É Vênus ancestral. Essa mulher é o centro do mundo equívoco — é ela quem dirige as neófitas e dizem que tem um curso admirável de ciência. Dá lições diárias às que pretendem fazer carreira pelo caminho que Laís trilhou arrastando poetas e o tonel de Diógenes. É uma mulher digna de consideração: sem ela não haveria novos encantos, nem os langores imprevistos. A sabedoria está com os velhos, meu amigo. E, baixinho, soprou-me: Olhe a Marion, evitemo-la. Era, em verdade, a loura, a formosa loura ciumenta e áspera, que acariciara os meus sapatos com o pezinho minúsculo.
— Se a convidássemos para a ceia, doutor?
— Não... não... Excede-se e dá para chorar a sua infelicidade, porque essa divina mulher tem saudades da pátria e da honestidade e, quando bebe vinhos de França, lamenta não ter um filho e fica de tal modo nostálgica que, ao cabo da lamentação saudosa, é sempre necessário que venham três homens para leva-la ao carro. Não... não...! Evitemo-la.
Marion bebia e tão entretida estava com a sua garrafa de Apollinaris que não deu por nós.
— É sóbria, entretanto: bebe agua, á grega.
— Sóbria? quem...? Marion...?! Porque está bebendo Apollinaris? Conhece muito essas medidas preventivas: é que ela conta cear, meu amigo, e está recompondo o estômago para um dilúvio de Bourgogne. Mas vamos. Tomamos por uma das alas do teatro e, justamente quando voltei os olhos para a cena, entrava um grande diabo, brandindo um facho, a bradar coisas terríveis, ao clarão purpúreo de fogos de bengala. A orquestra ia num crescendo infernal — quase se não ouvia a declamarão do maldito quando surgiu uma legião de diabos vermelhos, truculentos, dançando em torno do rei a berrar, a bramar, à proporção que os músicos, num delírio satânico, sopravam com fúria, batiam com gana, dando ao espectador pasmado a ideia aproximada do que deve ser a música nesse reino negregado de chamas, onde as almas penam torrando-se em labaredas inextinguíveis, sob abobadas de granito em brasa. Felizmente, porém, houve uma pancada vibrante e os demônios sumiram.
Caiu um novo pano: Uma aldeia risonha sob um céu de azul, com uma igrejinha branca a um alto e na eira da herdade, no primeiro plano, entre medas de palha e instrumentos agrários, camponês a espadelarem linho, cantando um vilâncico meigo.
— Vê aquela velhota que aí vem por entre árvores...? É a Jesuína.
— Por Deus! mas é uma antigualha!
— Engana-se. É uma bela mulher. Vai convencer-se...
Os homens, que se apertavam à minha frente, pouco me deixavam ver. Pus-me nas pontas dos pés, já interessado pela velhota quando, subitamente, vi surgir o demônio, sem archote, os braços cruzados, numa atitude hostil, e berrar:
— Fada... não sei que... e uma infinidade de palavras que deviam ser de insulto, porque a velha pôs-se também de entono e avançou histérica, vociferando:
— Ainda não! ... Caíram-lhe os andrajos, o cajado transformou-se em ceptro enramado de folhas de ouro e eu vi uma esplendida mulher, de formas admiráveis, resplandecente na sua toilette feérica.
— Linda, com efeito, doutor! disse maravilhado.
— Ah! é esplendida! E lânguido, com os olhos em alvo, trincando o beiço: E que mulher! A cena atroou aos berros dos campônios, que deitaram a correr espavoridos. Ficaram sós, desafiando-se — o diabo negro e a fada. Houve uma troca de palavras e novo tchaan! Panos cruzaram-se acima e abaixo. Nova cena. Jardim florido, entre grutas. Mulheres: ninfas, disse-me o doutor, tangendo liras e cantando. Caiam do céu, como na lenda de Danae, palhetas de ouro. O diabo, estortegando, vencido, urrava com os joelhos em terra, e a fada, com um gesto cheio de majestade, mantinha-o subjugado e imóvel. Romperam palmas e o pano veio descendo lentamente.
— Vamos falar à Jesuína.
— Pois não, doutor. Pois não... E partimos através da multidão que recuava.
O doutor bateu à porta da caixa, e apareceu ao postigo uma cara óssea, macilenta, híspida de pelos, indagando soturnamente: Quem é?
— Abre, Amaro.
O cérbero sumiu-se batendo o postigo e logo abriu meia porta, por onde nos esgueiramos rapidamente. Ambiente de estufa — mal se podia respirar. Não havíamos ainda caminhado dois passos quando vi surgir a uma porta o truculento diabo, abanando-se, com um charuto nos beiços, muito ancho. O doutor acenou com os dedos um cumprimento íntimo. Entre os bastidores torvelinhava a gente do movimento arrastando peças acessórias, içando nuvens, pregando sarrafos. Dois homens, agachados junto de uma rocha sarapintada, ajustavam cordéis, e um moreno, de sobrecasaca, a cara rapada, berrava para as bambolinas:
— Ó Cândido! ó Cândido! desce mais essa vista! mais! mais, homem! Que diabo... mais! e bateu uma patada formidável.
— Mais à frente...! ordenava um outro, alto, de cavanhaque, aos homens que colocavam a rocha... aí...
Um soldado, com o capacete atirado para o sinciput, passeava de um para outro lado, cantarolando. Um pequenote passou por mim esbaforido, arrastando uma carapaça de sáurio com grandes escamas.
Era difícil atravessar-se, porque de toda a parte surgiam gênios, demônios, soldados, mulheres, atropelando-se, azafamados, lançando apelos, a correr, empurrando-se.
O doutor avançou e, mostrando-me uma escada larga por onde desciam coristas trauteando, disse:
— Vamos subir... Isto aqui em baixo é impossível. E galgamos os degraus, ganhando um passadiço por onde andavam atores, refrescando-se com ventarolas. Um, em trajo de príncipe, vociferava no camarim, sacudindo uma gaforinha loura:
— Que aquilo era uma vergonha, um nojo! E saiu bradando: Ó Ferreira! ó Ferreira! Vocês não viram por aí o Ferreira! Ah! grandíssima besta! ...
— Mas que é? indagou um escudeiro acaçapado e ventrudo, arrastando a durindana ferrugenta.
— Olha pra isto... e tomou a cabeleira nas pontas dos dedos. Isto é decente? Pois eu hei de entrar em cena com esta peruca?! Não entro, nem que me rachem! E berrou de novo: ó Ferreira! ó Ferreira! Outro assomou à porta de um camarim, em ceroulas, todo sarapintado:
— Ó Ferreira! Onde é que se mete esse pedaço d’asno, não me dirão? Ó Ferreira!
Passamos através do alarido e, como olhasse por uma porta entreaberta, surpreendi um lindo braço nu, de esbelto contorno e avisei o doutor.
— Aí? é uma certa Clotilde... detesta-me; de resto não vale um olhar: é mulher de banhas fofas. Vamos á nossa Jesuína. Ê aqui. Parou diante de uma porta e bateu:
— Quem é.
— Eu, Jesuína.
— Eu, quem? Estou ocupada.
— O Gomes...
— Ah! Espera... E a voz, mais próxima, indagou: Estás só?
— Não, mas é como se estivesse: trago comigo o Amor que tem os olhos vendados.
— Oh! filhinho... não estou em estado de receber. Mas a chave rangeu na fechadura, a porta descerrou-se e eu vi o rosto adorável da fada.
— Como vais? indagou lançando para o meu lado um olhar oblíquo, e baixinho: Espera um momento, abro já, sim?
Recolheu-se e voltamos a passear. Ainda gritavam pelo Ferreira. Debruçamo-nos à balaustrada: em baixo andavam soldados antigos, com grandes escudos rutilantes, jacarés arrastando caudas enormes, monos, demônios e camponeses, uma promiscuidade mirabolante, gente e animais, em intimidade só comparável à que existiu entre esse troço de salvados que andou pelas águas do dilúvio dentro da arca, para perpetuar as espécies. Fios de luzes tremeluziam ao alto, por trás dos panos. Subiam vistas, arrastavam-se bastidores — havia um grande rumor de faina. De repente uma voz fanha entoou
Nu... unca percas a esprança
e outra violenta e desesperada esbravejou: — Quem diabo tirou daqui as minhas botas? Isto é uma pocilga! Ah! seu Álvaro! ... Quem diabo tirou daqui as minhas botas?
Foi, foi, foi...
outro cantarolou em tom de troça. Travou-se um diálogo azedo através do tabique divisório de dois camarins e riamos dos palavrões, quando uma velhota nos veio dizer que — “madama estava pronta”.
Fomos imediatamente e, à porta, o doutor, lisonjeiro, indagou com ternura:
— Dás licença, Titânia?
Entramos. O doutor apresentou-me como “favorecido das musas”. Jesuína sorriu e mostrou-me um divã forrado de damasco vermelho. A velhota, que nos acompanhara, tomou de uma prateleira um par de sapatinhos brancos debruados à sarja, agachou-se e, com os pezinhos de Jesuína ao colo, calçou-os sem esforço, suavemente. E ela, delicada e meiga, voltando para o meu rosto os olhos admiráveis:
— Desculpe-me, doutor. Vou concluindo a minha “toilette”, porque, infelizmente, esse maldito contrarregra é de uma impaciência feroz. A velhota levantou-se e foi ao canto.
— Agora é que são elas! disse Jesuína a rir. Vamos ao pior. E, franzindo a fronte serena: Que calor, hein?
— Muito, disse eu, bufando.
A velha voltou com uma cota de seda imbrincada de ouro e deu-lhe a vestir, primeiro um braço, outro depois, e as duas, a velhota de joelhos, Jesuína, muito direita, firme, obrigada pela pressão das barbatanas, começaram a abotoar, uma da fímbria para cima, outra da gola até à cinta, apressadas, magoando os dedos.
Depois uma tira de filó em diagonal ao peito, caindo em duas pontas soltas sobre um dos flancos; duas pulseiras em cada braço e, à cabeça, comprimindo os cabelos, um diadema altíssimo com um brilhante à frente.
— Pronta! exclamou a velhota levantando-se.
— Graças à Deus! suspirou Jesuína sorrindo. E a vara?
— Está aqui...
— Estás divina! disse o doutor abraçando-a e beijando-lhe a nuca.
— Oh! oh! É terrível este seu amigo, disse-me. E o doutor, tomando a frente, impôs:
— Hoje vens cear conosco.
— Hoje...?!
— Hoje, e não admito desculpas.
— Se assim é, disse ela com um momo... que hei de fazer...? Verteu algumas gotas de perfume na palma da mão e esfregou-as dando-me depois a aspirar:
— Delicioso! Sussurrei, fungando.
— Agradável, não é? Mas a sineta vibrou e um mulatinho apareceu à porta:
— D. Jesuína...
— Vou já.
— A que horas acaba esta rigolade? Perguntou o doutor.
— Meia-noite.
— Pois até lá. E vai ter com Satanás, que te espera.
Despedi-me também e descemos.
A orquestra executava os primeiros compassos de uma marcha infernal, quando, de novo, ganhamos a frescura do jardim.
— Então, meu amigo?
— Divina, disse eu. O diabo é que isto demora. Que havemos de fazer...?
— Vamos à cerveja; não há outro meio de fugir à insipidez.
E abancamos.
— E dizer que toda essa gente goza, ponderou o doutor, num tom melancólico de lastima. Isto que me enfada, que me provoca bocejos, faz as delícias de uma multidão. Olhe ali aquele homem debruçado à balaustrada.... Quanto eu daria para poder rir como ele! Decididamente esse casal do paraíso levou-nos o melhor da vida — a inocência, deixando-nos em troca o tédio. Felizes os simples!
Não imagina como invejo um desses homens que são espécimes raros do animal primário, que se destacam, entre os civilizados, como um grande cedro num campo raso. Às vezes, quando passo por uma dessas casas de pasto, onde o grosso povo de trabalho se ajunta para comer, tenho ímpetos de entrar, sentar-me no mesmo banco, acotovelando estivadores e canteiros, fascinado pela voracidade pantagruélica desses brutos que devoram pratos enormes, com mais apetite do que um de nós, em dias de fome, trincaria uma fatia de caça. Nós somos os degenerados. Que mais pode ambicionar um homem que já experimentou todas as sensações e que leu os materialistas? Que ideais pode ter um ser esgotado? Nem riso nem pranto. Sinto-me vazio e inútil. Já não existem imprevistos para mim. Tudo dimana de causas naturais, diz a filosofia, e acham os evolucionistas que feliz é o homem que conhece todos os fenômenos da natureza, que sabe dizer, sendo preciso, por que razão a pedra deriva a gota d’água, para onde caminham as correntes dos rios, quantos milênios tem Sirius, porque é pálida a lua, quais são as causas que presidem aos fluxos dos mares, a origem do homem e tudo mais que a ciência investigou para esterilizar os produtos mais delicados do espírito que, a meu ver, são — a imaginação e a esperança. Felizes são esses pobres homens que creem nas boas fadas dos caminhos e nos gênios dos campos. Felizes são esses que veem na Via Láctea o caminho sagrado dos reis magos, atribuindo a pulverização das nebulosas às patas dos dromedários que vieram do Oriente parar à entrada da lapa em que Jesus dormia. Felizes são os que podem ainda imaginar mistérios... Oh! os crentes, os religiosos! esses é que são os bem aventurados, não no céu, aqui mesmo, na terra, porque esperam, porque não duvidam. Aquele homem que ali está desfeito em gargalhadas nunca leu um aforismo, desconhece a sintaxe e as causas finais, nunca atravessou uma noite acotovelado à banca do jogo, nem de certo poliu os seus beijos procriadores — é um simples. Trabalha e crê, conhece o Ave e respeita a Lei, ama e quando chega à casa, estafado e moído, o seu primeiro cuidado é para o filho mais novo — toma-o nos joelhos e brinca com ele a rir. E dorme em paz, porque não tem problemas a resolver nem gazes de dispepsia. É um animal amoroso e puro... E sinceramente, não é preferível levar a vida assim materialmente, em ignorância beata, abençoando as estrelas cadentes e comungando, de vez em vez, a andar pelo mundo empanturrado de pessimismo, repetindo com o “Eclesiastes” que tudo é vaidade?
O homem não nasceu para maldizer somente, creio eu. “A resignação é o heroísmo da desgraça”. Um moralista exprimiu-se mais ou menos nestes termos, mas eu devo confessar que não tenho absolutamente o sangue heroico — sou um pusilânime. Deem-me novidades, imprevistos, qualquer coisa que me comova: um grande amor, um grande ódio. Infelizmente, porém, o amor adquiro-o como adquiro as luvas e os plastrons, por um preço, por outro, mas sempre a dinheiro... É sórdido! É vil! Não foi para mealheiro que Deus, ou não sei quem, fez o coração. O amor é uma permuta de afetos e não um mercado. Mas que quer? Comprar um beijo, pagar um sorriso, subornar uma meiguice... eis em que consiste a civilização: isso é requinte, é espírito.
Duas mulheres passaram por nós discutindo em dialeto áspero, esgrimindo com os leques, frementes, terríveis. As vozes subiam, já da plateia reclamavam silêncio com prolongados “psios”.
Os homens, que cercavam a balaustrada, interessados no escândalo, vieram aproximando-se. Descia gente em tropel e as duas, uma em frente da outra, ameaçadoras, mirando-se roxas de fúria, vociferavam com grandes gestos. Repentinamente brandiram os leques e engalfinharam-se — os chapéus rolaram para o chão, as fitas voaram e, apesar da imediata intervenção de alguns rapazes, as duas lutavam, já com os leques partidos, numa algazarra bravia. Na plateia havia gente de pé. Os atores, em cena emudeceram e o grande diabo, curioso, coçando o queixo agudo, alongava os olhos procurando ver á distância as heroínas. Os coristas, amontoados sem ordem, cochichavam. O regente voltara-se e vários músicos, de pé, olhavam curiosamente; um deixou-se estar sentado, aproveitando a balbúrdia para afinar o seu violino. Trilaram apitos, mas já haviam apartado as beligerantes. Apareceram praças e o povo foi descendo, em onda compacta, em direção à porta. Ouvia-se ainda, de vez em vez, um guincho colérico. Por fim irrompeu uma assuada tremenda e gargalhadas estrepitosas abafaram as frases violentas de uma das mulheres.
Já no palco haviam recomposto a cena, o diabo carregara de novo o sobrolho e, quando avançou para o ponto, sustentando uma nota grave, de novo o povo reclamou silêncio e, pouco a pouco, foi recaindo a tranquilidade.
— Foram presas, doutor?
— Não, fazem-nas sair simplesmente. Estalaram palmas estrepitosas, olhamos: o pano vinha descendo lentamente sobre uma cena flamejante.
— Falta-nos ainda um ato, suspirou o doutor. E não há infelizmente duas outras mulheres ciumentas.
Ao fim do espetáculo, depois de uma fulgurante apoteose no reino das pérolas, de grandes pilonos cor de opala, regado d‘águas lactescentes, floridas de nelumbos por onde andavam cisnes alvadios, reino administrado pela magia dos olhos de Jesuína e pelos cordéis do maquinista, veio abaixo o pano ao som abemolado do coro triunfal das ninfas, que exaltavam o poder da soberana. O diabo, corrido e humilhado, estarrecido ao fundo, entre colunas giratórias rugia, rolando os grandes olhos chamejantes e orlados de malacachetas. O povo, em delírio, prorrompeu em gritos, vitoriando a boa fada pelo seu nome humano, mais doce, talvez, que o da mágica:
— À cena, Jesuína! Bravos a Jesuína! E uma voz isolada acrescentou num berro agudo:
— Jesuína na ponta!
E tudo desapareceu.
A retirada foi rumorosa e lenta. O povo escoava aos empurrões como uma grossa e pesada torrente contida muito tempo pela comporta do uma represa. As luzes minguavam o, pouco a pouco, veia caindo à sombra; o silêncio substituiu o rumor. O pano levantou-se de novo sobre um fundo de andaimes e de sarrafos. Fora andava um meninote assobiando baixinho, com a bengala ao ombro, passeando ao longo da varanda.
— Vamos esporá-la à porta da caixa. E, em segredo, indicando-me o rapazito solitário, disse-me o doutor:
— Ali está um que não nos perdoará a aventura de hoje. É um terrível amoroso. Governa o partido da Jesuína. Só em flores gasta todas as noites para mais de cinco mil réis. Já fez tirar uma polyanthéa glorificando a atriz que, incontestavelmente, tem um lindo colo, mas que desafina sofrivelmente e no terreno da concordância é como um louco diante de um tabuleiro de xadrez: baralha tudo. Enfim, como o fim utilitário da mulher é o amor, Jesuína cumpre admiravelmente o seu destino na vida, porque, sem encômios, é um belo exemplar do sexo.
Começavam a sair os atores; alguns com embrulhos debaixo do braço. Uma mulher, de mantilha, passou por nós ninando um pequerrucho. Um sujeito magricela, de longas pernas e farto bigode, com agudas saliências de ossos, deu-nos boa noite em tom amigo.
— Quem é? indaguei.
— É o diabo; pois não conheceu...? é o diabo. Chama-se Silveira.
Voltei-me para ver ainda uma vez o vencido, ele lá ia, murcho e sorumbático, mascando uma ponta de charuto, triste, desmanchado, já sem os arreganhos terríveis, sem a atitude audaciosa e ostensiva com que surgira entre os seus sequazes, bradando pelas fúrias do Averno e arrancando gritos às crianças. Ia abatido e não era, de certo, o poder da vara de Jesuína que o derreava, não, deviam ser preocupações comuns. Talvez tivesse um filho doente, sogra de perfeita saúde ou, quem sabe se o pobre diabo não estava ameaçado de ser lançado à rua pelo senhorio feroz...? Fosse o que fosse, achei-o mais sentido dentro do frack e nas calças de brim do que na farpela purpurina de rei dos demônios, aniquilado pela magia das pupilas de uma mulher, três vezes mais forte com as suas ninfas do que ele com a legião de bruxos negros e diabretes.
Em seguida um casal, muito aconchegado, cochichando — a mulher, com uma indignação mal contida, ele calmo, grave, respondendo com pequenas frases. Depois uma onda tumultuosa, com alarde, achincalhando coplas — os coristas.
— Está demorando, disse o doutor impaciente. Mas no mesmo instante a porta abriu-se e Jesuína apareceu no patamar, seguida da velhota.
— Salve a formosa apsara! Saudou o doutor.
— Estão cansados ele esperar? Indagou sorridente.
— Nem por isso.
Jesuína pareceu-me menos formosa no seu vestido marrom e com a cabeça coberta por uma capota de veludo. Confesso — e vai nisto uma ingênua franqueza — confesso que a Jesuína que meus olhos aguardavam ansiosos e desinsofridos era a outra, a que eu vira no palco, entre ninfas, na nudez artística do maillot, afoufada em rendas, com os cabelos soltos e á fronte o diadema régio. Era assim que eu esperava vê-la, de sorte que tive uma pequena desilusão quando ela assomou à porta, em toilette vulgar, como todas as mulheres, ela, que para mim não era outra senão a própria, a verdadeira fada das pérolas, que aparecera em cena, afrontando o Demônio. O doutor sussurrou-lhe:
— Aceita o braço que te oferece o meu amigo, tenho de dar um pulo à Maison para desfazer um compromisso. É um instante. Compreendi a delicadeza do pretexto e adiantei-me pressuroso e ela, voltando para o meu rosto os olhos incomparáveis, ainda assim menores do que os que me haviam seduzido, indagou:
— Onde vamos?
— Onde quiser, disse-lhe.
— Ao Bragança, mão é?
— Ao Bragança, sim, afirmou o doutor. E venham vindo porque já os encontros no Rocio. E até já. Partiu como uma frecha.
— Thereza, podes ir, disse Jesuína à velhota.
— Boa noite, meu senhor. Então até logo.
— Adeus! E a velhota partiu compondo o chalé. Saímos. À porta havia um homem de gorro, que nos ofereceu um carro.
— Sim, vamos, disse eu.
— Oh! não vale a pena. Tomar um carro para ir ao Bragança! Não, vamos andando. E já íntima, maliciosa, apertando-me o braço: É preguiçoso assim?...
— Não, gosto de andar, faço léguas a pé, mas... E não me atrevi a dizer-lhe a verdade: eu não sabia onde era o Bragança. Felizmente, porém, o doutor surgiu a uma porta.
— Oh! pois ainda vem aí... ? E adiantando-se: Os corações já se fizeram amigos? E ela, repousando no meu braço, com um lânguido olhar e um doce sorriso: Creio que sim.
— Creio que sim, corroborei sorrindo.
Mas o doutor deteve-se para dizer em tom sentencioso:
— Devo observar aos meus amigos que o amor é um sentimento digno, que deve ser cultivado como uma flor preciosa, mas acima do amor há alguma coisa que é preciso não esquecer...
— Deus! disse ela com beatitude.
— Não, filha: o estomago. Temos um gabinete no Bragança à nossa espera. Depois do champagne gelado os beijos tem mais calor. É a reação. Cá por mim, como pretendo passar a noite como Santo Antão, comerei alguma coisa sólida...
— Você só!?
— Sem dúvida. Quando se vai à Cytera é perigoso levar farnel.
— Pois sim... E, com um muxoxo, Jesuína achegou-se a mim. Senti-lhe as carnes... Que carnes!
Triste manhã.
Bocejei espreguiçando-me e estirei-me na cama, mas com que alquebramento! Sentia uma fadiga de longas jornadas, como se tivesse viajado sem repouso estiradas léguas ao sol, curtindo fome e sede. Doíam-me as pernas, e que saburroso gosto. Deus meu! e que dormência de ideias! Tentei, por vezes, saltar da cama, mas a energia abandonara-me. O corpo, apesar do esforço, abatia amolecidamente. Deixei-me estar deitado com os olhos no dossel e, nessa atitude inerte, recapitulei as cenas da noite da véspera.
A ceia! Regalado repasto! Lembro-me que começou por uma salada de lagosta, que o doutor acolheu com uma preleção sobre os moluscos e Jesuína com palmas e gritinhos. O que veio em seguida não sei bem e não me seria fácil recordar porque, enquanto o criado substituía pratos e talheres, enquanto o doutor recitava ditirambos exaltando a excelência dos vinhos de França e do Rheno, eu extasiava-me nos olhos de Jesuína que, de vez em vez, abrindo sobre as nossas cabeças o leque de penas, como a aza do amor, protetora e discreta, dava-me um beijo, mais doce do que o vinho, oh Sunamita! Mais doce do que os favos deliciosos das abelhas. Aristeu!
A palestra erudita, finamente colorida: e nobremente elegante do doutor, perdeu-se. Era em vão que ele recapitulava as orgias primevas e os festins colossais dos antigos. Que me importavam, a mim, as dionisíacas! Que me importavam os bródios de Roma e de Cartago se eu tinha ali, ao alcance da boca, a vinha por excelência, que eram os lábios da Jesuína. Que falasse o doutor, que não estancasse nunca a fluência doutíssima das suas palavras, Jesuína, com o seu arrulho de pomba mansa, prendia-me, absorvia-me todo e eu não tinha ouvidos senão para o que ela dizia e só aos seus beijos respondiam meus lábios.
Vinhos diversos subiram da adega preciosa do Bragança e da adega à minha cabeça. Provei de todos, porque Jesuína queria que eu bebesse à nossa felicidade, ao nosso amor eterno, à estrela que nos iluminara o encontro, aos seus olhos, à sua boca... e eu, vencido, bebia sem murmurar até que, por fim, o doutor, sempre fecundo em ideias, encomendou um punch em chamas, ardente como o nosso amor.
Veio numa grande terrina fulgurante e alumiou a mesa com um clarão tabico. O doutor, num assomo, ergueu a sua taça e pronunciou um brinde em que passaram, lembro-me vagamente, as gerações que adoravam Agni, o imortal, o lume eterno, e veio pelos caminhos difíceis da história, parando em todos os templos para mostrar, no mais reservado do adito, a chama sempre vigilante, que é o símbolo da fé. E bebemos.
Findam aí as minhas memórias dessa noite. Do que mais houve não sei — tenho o estômago abrasado como se houvesse emborcado a terrina, engolindo vorazmente o punch em chamas.
Meu tio, surgindo à porta do quarto, com uma fisionomia grave e carregada, fulminou-me com o olhar.
— Bom dia, meu tio.
— Bom dia, disse-me ele, puxando uma cadeira para junto da cama.
Compus as cobertas, enfiei os dedos pelos cabelos para alisá-los e esperei grandes coisas porque, certamente, iam cair grandes coisas da boca de meu tio.
— Então, que foi isso ontem?
— Isso que, meu tio...?
— Ah! Meu sobrinho, razão tem teu pai — ele é que está no caminho da verdade. Na carta que me escreveu disse-me que não te desse liberdade, que te trouxesse sempre debaixo das minhas vistas, porque és ainda uma criança, apesar dos bigodes que tens. Decididamente és ainda muito criança, concluiu meu tio, baixando a cabeça como fulminado por um pesar profundo.
— Mas que houve, meu tio?
— Que houve? Ainda perguntas...! Disse e levantou-se. Foi a um canto e, tomando de cima de uma cadeira um casaco, que eu reconheci imediatamente, abriu-o diante de meus olhos. Estava enlameado e roto.
— Que é isto, Anselmo...?
Baixei os olhos e não tive uma palavra, mas confesso que eu mesmo não poderia dar o motivo daquelas nódoas nem daqueles rasgões.
— Não sabes...? Foi a ceia de ontem.
— A ceia de ontem!
— Sim, ficaste enlevado nos olhos de uma atriz e foste demais ao cântaro; finalmente, esquecendo as boas regras da educação e do cavalheirismo, desmentindo o teu caráter e manchando o nome dos Ribas, quiseste... Mas tu estavas doido? Indagou meu tio, assomado, agarrando a cabeça com ambas as mãos. Tu estavas doido, rapaz!
— Não sei, meu tio.
— Que diabo, eu também bebo...
— Mas eu não bebo, meu tio, foi uma vez... um incidente...
— Sim, um incidente, que teria funestas consequências se, em vez do doutor, que é um cavalheiro, fosse outro homem.
— Mas que houve?! Fale, pelo amor de Deus!
— Que houve! Pois não te lembras que esmurraste o doutor num gabinete do Bragança!?
— Eu! Bradei saltando da cama. Eu...!
— Tu?!
Emurcheci de vergonha e só levantei a voz para declarar peremptoriamente que partia à tarde, pelo noturno.
— Hoje?
— Sim, meu tio: hoje mesmo e para o sempre!
— Pois então avia-te, porque são quatro e meia.
— Quatro e meia! Eu então estou dormindo...?
— Há doze horas, senhor meu sobrinho; há doze horas! E, sem mais dizer, retirou-se do quarto.
Foi morrendo o rumor dos passos de meu tio e achei-me só com o meu remorso. Baixei os olhos para o pelego amarelo e vi as minhas botinas manchadas como o nome imaculado e probo dos Ribas, que eu arrastara, sem escrúpulo, pelos canais do vício, como um podengo estrafega e arrasta pelas sarjetas um trapo. Tentei aturados esforços para reconstituir a cena nefanda que tanto me rebaixara aos olhos do meu digno tio, mas a embriaguez correra um denso véu sobre o passado. Sentei-me na cama como um bonzo e meditei sobre os acontecimentos dessa noite de depravação e delírio, mas só consegui lembrar-me dos olhos de Jesuína — divinas pupilas de mulher, supercílios divinos! Por fim o raciocínio foi desbastando, pouco a pouco, a densidão alcoólica e deduzi, com profunda lógica que, se eu esmurrara o doutor, não fora sem motivos, a menos que o punch iluminado me não tivesse enlouquecido por momentos. Mas do fundo do meu amor levantou-se o espectro terrível do ciúme — ah! Fora de certo o ciúme o móvel desse crime.
O doutor, apesar das doutrinas que expende, é azevieiro como D. Juan e Jesuína não é mulher que se despreze, principalmente depois de uma terrina de punch em chamas, e assentei que quem armara o meu braço, quem fechara o meu punho para os murros fora esse mesmo sentimento que fez do mouro apaixonado um estrangulador e que, em nossos dias, na cidade tranquila do meu sertão, armou uma cena de escândalo na sacristia da igreja paroquial em que me lavei dos pecados e ganhei o nome de Anselmo, entre o padre Coriolano e o sapateiro Gaudêncio, afinador de pianos e trombone da filarmônica.
O ciúme...! Jesuína! Devo-te a triste desgraça de ter molestado o meu ilustre e douto cicerone. Se algum dia o domares com os teus olhos doces e cruéis, arranca-lhe do fundo do ódio o perdão para os murros que por teu amor lhe dei, lembrando-lhe que Jesus também perdoou, invocando piedosamente, com a santíssima resignação de mártir, a clemência do Pai para os legionários: “Perdoai-lhes, meu Pai! Eles não sabem o que fazem!”
Eu também não sei que fiz, palavra de honra, posso mesmo ajuntar que não foi por querer.
Que fazer? Correr à casa do doutor para pedir-lhe que relevasse a brutalidade do meu vinho brigão, confessar a minha fraqueza...? não. Decididamente só me restava um alvitre — voltar à minha terra e esconder entre as árvores, que me viram criança, boas árvores amigas que me carregaram tantas vezes nos seus braços verdes, a minha vergonha, o meu opróbrio. Era, de certo, a resolução mais acertada e mais digna. Saltei da cama e enfiei as calças, adiantando-me para o espelho, curioso de ver a devastação da minha fisionomia e não foi sem pasmo que reconheci todos os meus traços intactos — apenas a barba, que apontava, punha-me uma orla azul pelo queixo e, em volta dos olhos radiados um halo roxo — no mais era eu mesmo, fresco e forte, com as minhas cores de serrano, com os meus cabelos negros, em bôeres, como os do Apolo.
Vendo-me, esqueci por momentos a estroinice e admirei-me e pensei com vaidade que Jesuína, no silêncio do seu boudoir, quando se lembrasse de mim, havia de lastimar a minha ausência e quem sabe se aqueles olhos formosos não humedeceriam lenços por minha causa, quando eu, já em caminho, de volta ao lar, fosse revendo esses campos monótonos e essas várzeas de uma eterna verdura por onde caminham rebanhos, mugindo, à luz de ouro das manhãs.
Pobre Jesuína...! Suspirei comovido. Mas, de novo, apareceu-me a ideia da partida. Lancei os olhos a um canto e vi a minha maleta aberta, como se também quisesse demonstrar-me a necessidade imperiosa e inadiável de seguir. Resignei-me e, molemente, descalço, fui ao cabide buscar o jupon para retemperar-me no banheiro, lavando abundantemente o corpo, já que não podia fazer o mesmo à reputação. Desci.
Meu tio, debruçado à varanda do jardim, extasiava-se no crepúsculo, já pronto para jantar. O criado taciturno arranjava a mesa. Nas gaiolas os canários cantavam estridulamente. Passei de leve como uma sombra; o criado lançou-me um olhar malicioso e baixou a cabeça.
Refrescado e vestido vim tomar o meu lugar à mesa. O tio recebeu-me sem azedume, mais cordial e mais meigo e, quando provou o polme de ervilhas, com os beiços a escorrerem, arregalou-me os olhos como se me quisesse dizer que atacasse, porque estava delicioso! E até a hora dos badejetes não falamos. Foi justamente quando o criado pôs diante de mim os peixes que descerrei os lábios.
— Não, meu tio, disse repudiando o vinho que ele me servia.
— Como! Peixe sem vinho...? Estás doido! E, teimoso, verteu no meu cálice verde as gotas de Chablis. O vinho é um reativo, disse-me. Lá porque ontem houve aquela história queres deixar de beber...? Historia! ... O vinho é um tônico poderoso. Atiça-lhe! E piscou-me o olho. Corei e bebi umas gotas.
— Então embarcas amanhã?
— Impreterivelmente!
— Mas que diabo vais fazer a Minas? ...
— Preciso. Meu pai chamou-me e meu tio bem sabe...
— Ora, teu pai! Teu pai pensa que no Rio de Janeiro não há outra coisa senão febre amarela. Deixa-te estar, homem... Goza a mocidade enquanto é tempo.
— Não, meu tio, sigo amanhã.
— Já sei, é por causa da cena do hotel. Pensas que o doutor tomou a sério as tuas bravatas? Deixa-te disso. Ele tem critério bastante para julgar essas coisas. Queres saber, sentiu-se tanto que até te trouxe à casa ao colo.
— Como! Ao colo, meu tio!
— Ao colo, sim, porque quando aqui chegaste foi um trabalho para que te tirassem do carro. Vinhas lacrimoso, soluçando, abraçado com o doutor, lamentando a perda da mulher amada e recitando empaticamente versos do Simão Carreira. Esmurraste o doutor, mas, que diabo! Murros de bêbedo... E desatou a rir espalmando a mão larga e dadivosa sobre o meu ombro. Ora, o Anselmo! Onde diabo foste achar tantas lágrimas? Teus olhos eram como duas torneiras abertas... Mas deixemos o que houve: águas passadas... Vamos ao que serve: Temos hoje, à noite, a festa do Bessa. Esperam-te...
— A mim, meu tio?
— Então? Hás de ir para a roça sem uma noção do grande mundo, do que chamam high-life? Não, senhor...
E emborcou o copo de Bourgogne.
O baile Bessa... (Comendador Saturnino Pessegueiro Bessa, 52 anos, da ordem de Cristo, alguns graus maçônicos, vários prédios e duas filhas; viúvo.) O baile de 04 de setembro, data do natal memorável da beneficência encarnada... como descrevê-lo neste tempo curto que me resta enquanto arranjam a minha bagagem? Como descrevê-lo assim asinha e de afogadilho sem retocar o estilo? Arte exige, e muita, a pintura de tão encantador e seleto convívio de damas e de cavalheiros.
Não, não descrevo, tenho tempo de sobra para cometimento que demanda esmero e argúcia, esmero para fazer com que brilhem, na forma ingrata das letras, a graça das senhoras e o sorriso das senhoritas, sorriso que afixa o reclamo de um coração disponível, sorriso com que a garridice pôs em reserva obsoleta a quadra da cantiga que começa:
Meu coração está vazio... etc.
e argúcia para penetrar o pensamento dos homens e as entrelinhas de uma certa viúva prematura, tão hábil na sedução que... não é exagero dizer que essa notável dama ensinou em meu coração a mais inabalável certeza da vitória dos meus olhos, pronunciando durante uma valsa de Strauss (o Danúbio azul, que tem arrastado nas suas ondas harmoniosas muitos pares ao altar) duas frases simples, mas de uma intenção clara e escandalosa que me fez corar. Simão Carreira, em uma ode imortal, explica que o pudor no homem é uma tolice... para as mulheres. Eu fui tolo durante os compassos de Strauss e a viúva acabou a noite nos braços de um estudante de farmácia, mais lépido nas danças e mais desembaraçado em colóquios. O estudante, depois da quadrilha final, sabia o endereço da viúva e eu aqui estou amarfanhando o enxoval para a viagem de amanhã.
Dançou-se até meia noite com orquestra, dessa hora para a madrugada senhoras revessaram-se ao piano. As filhas do comendador, gentis e conversadas, entretiveram-me com algumas observações de fina e atilada análise — falaram-me, com entusiasmo, das pelouses lamentando apenas a falta de fiscalização e os tribofes. Asseguro que esse termo feio e desgracioso “tribofe” não é uma invenção cerebrina, caiu dos lábios de Mlle, como uma lesma cai das pétalas de uma rosa. Os dicionários não o inserem por escrúpulo e, em verdade, “tribofe” é horrível. Falaram-me da ópera lírica e, como eu indagasse se tinham ouvido Wagner, uma afirmou — que sim! Mlle. Alice. A irmã, porém, não se lembrava e foi preciso que a outra recordasse a estreia de um vestido de faille para que a doce e angélica Delfina sorrisse achando a vaga reminiscência dum cavaleiro e dum cisne.
Mlle. Delfina, romântica, durante uma lânguida habanera, falou-me, enternecida, do Serge Panine e criticou a toilette exagerada da viúva que girava, com o busto em nudez, enlevada nas frases terapêuticas do seu amoroso par.
Do que ouvi, no vão de uma janela, enquanto D. Brites, contralto, cantava ao piano um melancólico romance de Tosti, ficaram-me as palavras do Dr. Silvério Torres, deputado da oposição, socialista. Explicou-me, entre outras coisas, que a miséria é um resultado da abundancia, como a lama é o resultado do excesso da chuva. O mundo, no seu rudimento, não conhecia a miséria, disse-me — ela apareceu com a primeira moeda. E teve este pensamento, que deve ficar eterno como um dogma de economia política: “Quereis ver um país de fome? Entrai num país de milionários”, e estendeu o braço para o jardim procurando mostrar-me além, na grande noite, esse país de fome: Lá está, é a Inglaterra. Olhei maquinalmente e vi as estrelas do céu. O Rio, disse-me mais, vive sitiado pelo varejista. Nós não temos esquinas, temos vendas, barreiras onde o pobre vai diariamente pagar o seu imposto. O taverneiro ocupa os extremos da rua e, às vezes, assalta o centro — e esse excesso de mercado é uma das causas da luta de contingência. A luz é a vida, o excesso de luz é a chama, é o incêndio, é a morte. O taverneiro estabelecido torna-se, em pouco tempo, o senhor do quarteirão. Por intermédio do caixeiro, que vareja o mais íntimo recesso da casa e espia e ouve enquanto conduz a lenha, levando para o patrão, conjuntamente com o dinheiro, o segredo da vida privada do pobre, o taverneiro torna-se uma espécie de suserano — ele fia, ele sabe. É das vendas que vem os grandes desesperos para o proletário, é das vendas que partem as difamações mais cruéis. Dirão: — mas o pobre podia libertar-se desse jugo fugindo ao balcão do taverneiro. Infelizmente assim não é — nem sempre o mealheiro tine na casa do operário, o amanhã é tenebroso e no dia em que ele, baldo de recursos, por moléstia ou por desemprego, tentasse o crédito para o alimento dos filhos, o taverneiro, que não desconhece o prazer dos deuses, vingar-se-ia. A venda é o terror do pobre porque é o escoadouro do seu trabalho e, muitas vezes, a causa das suas lágrimas. Concordei. Ele ainda me fez saber o que eu, até então, ignorava — que essas casas de penhores são uma instituição do luxo. E demonstrou com sabedoria: Esses estabelecimentos de recurso pronto só recebem joias e objetos de alto valor. O pobre, quando muito, possui o colar que enfeita o pescoço do filhinho, as bixas modestas da esposa, um relógio de prata para marcar a hora do trabalho — tudo isso que vale?! Entretanto vá o senhor a um dos leilões das casas de empréstimos e há de ver — braceletes preciosíssimos, solitários ofuscantes, diademas, chuveiros, toda a joalheria fidalga e cara, porque a outra nem sequer é apreçada. O pobre vai aos Belquiores e não empenha, vende: o casaco dos domingos, a cama em que lhe nasceram os filhos, o oratório dos santos protetores. Logo: quem empenha? Os remediados, os ricos, para manutenção da aparência. E perorou iracundo: o prego é uma instituição do luxo, fomenta o vício e a hipocrisia. Íamos entrar em outras análises quando o comendador Bessa, a conselho de meu tio, veio tirar-me para uma valsa com a Ex.ma Snr.a D. Adelaide Fogget, esposa de um importador. Dancei e suei. E chamaram-nos para a ceia.
Lauta e facunda, bons vinhos e tropos. Falaram todos, menos eu, que fujo à exibição. D’entre os muitos discursos inspirados ficou-me o de um Bartolomeu de tal, gordo e curto, homenzinho redondo, um frasco. Louvou e bebeu com ênfase; ao fim da terceira taça, rematou: que o comendador era da massa de D. João de Castro e explicou o paralelo. Perdi, infelizmente, a explicação porque Mlle. Delfina, que distribuiu os lugares, fez com que eu ficasse entre a contralto e o deputado oposicionista, de modo que, durante o transbordamento da facúndia, os arroubos melomaníacos da direita e as invectivas da esquerda distraíram-me, ela que me dizia, com os olhos em alvo, que depois do Vorrei morire, só a morte, e ele que soprava maliciosamente aos meus ouvidos: Que àquilo só faltava o retrato a óleo.
Uma balbúrdia chamou a nossa atenção aplicada à ironia — era entre as senhoras. Todas as damas pediam ao deputado que respondesse por elas ao brinde do farmacêutico, que saudara na mulher a joia mais delicada saída das mãos do Criador. E o deputado, mastigando, às pressas, uma febra de presunto, empunhou a taça e disse coisas lindas, agradecendo em nome do sexo feminino. Depois da ceia (dezoito brindes e duas taças quebradas para que nunca mais concorressem a elevação dos dotes de um mortal, à mesa) voltamos às danças.
Grande coisa a vida! Já não baixo à terra fria sem o supremo gozo de ter passado uma noite em sociedade. Como é divertido um baile... Oh! Simplicidade do meu campo, oh! Cateretês da minha serra ingênua...! Ó noites no rancho, à beira da estrada, com a luz do luar, o bom cheiro dos bogaris abertos e a cantilena do serrano, ao som da viola, enquanto os curiangos contentes saltam piando na estrada lisa...
Recolhi-me com a noite — ela a desaparecer no céu, eu a mergulhar nos lençóis, estafado e triste. Acordei às três da tarde, moído. Meu tio, mal soube que eu abrira os olhos, subiu ao meu quarto para dizer-me que o doutor estivera com ele; e deu-me um cartão. Li; era lacônico e generoso.
“Meu caro:
Vim trazer-lhe o abraço de despedida. Parto para Belém no comboio da tarde. O meu caseiro escreveu-me, relativamente à venda de uma porcada (é o termo). Vou à verdade da vida — o interesse. Tenho um sítio e consolo-me das durezas e dos desenganos deste mundo cultivando rosas e criando porcos: o perfume e a linguiça, a floricultura amada dos áticos e o suíno repelido pelo Koran. Levo comigo um livro seu que achei sobre um dunkerque: Esquilo. É um escafandro para garantir o espírito. Boa viagem.
Sempre afetuoso
Gomes”.
— Então, meu tio, exclamei radiante, ele não levou a mal os murros...?
— Ora... A italiana não me atirou ao rosto Amor e Psiquê, e eu? ... Deixa-te disso. O mundo é um jogo de concessões. Deste-lhe um murro, amanhã ou depois ele te restituirá. Isto é assim. E, sem transição, cravou os seus olhos empapuçados no meu rosto: estava terno como uma mulher amorosa:
— Anselmo, porque não te formas? Não temos na família um homem de ciência...
Arrisquei o nome de meu tio padre — Cleofano Ribas...
— Cleofano... nem para missas! Temos aqui uma academia livre, estás pronto em humanidades, sabes latim, que é a palavra cie honra de convicção nas tribunas; porque não te matriculas? Em dois anos podes estar formado. Ficas comigo. Que diabo! É preciso que eu faça alguma coisa pela pátria — quero deixar-lhe um bacharel.
— Mas meu pai é contrário às cartas.
Desde que lhe receitaram tártaro para uma congestão hepática tem horror aos homens formados.
— Teu pai é um misantropo.
— Alceste, comparei sorrindo.
— Qual Alceste, nem meio Alceste. E sério: Que Alceste?
— De Molière, meu tio.
— Ah! Pensei que era o das loterias, esse é um excelente homem. Mas voltou logo à questão: Se queres escrevo a teu pai?
— Tente, meu tio.
Fiquei só na varanda enquanto Serapião Ribas, no seu gabinete, tratava de converter o irmão com uma longa epistola sobre o meu futuro.
E o resto da última tarde foi de inenarrável tristeza. Os pássaros pareciam chorar adeuses e havia no rumor vesperal dos ramos do jardim e na água da rega, que jorrava sobre os canteiros, o suave e blandicioso timbre de uma voz conhecida que me dizia, queixosa:
— Porque partes, ingrato? E eu? E o nosso amor? ...
— É impossível, Jesuína, comprei passagem de ida e volta, disse enlevado.
— Que é isso, rapaz? Estás falando só?
— Não, meu tio, falo com a minha ilusão.
E a noite veio fúnebre, mas rutilante de astros.
Às quatro da manhã, cantavam os galos pelos quintais, quando o criado bateu à porta do meu quarto avisando-me — que o carro estava pronto.
A lua viu-me atravessar o jardim e ela que conte os adeuses que fiz, mais tristes do que os de Boabdil à Granada. E enquanto durou a corrida, só tu, Jesuína, só tu, doce amor, mereceste os meus suspiros.
Tu, imprudente moço da parábola messiânica, tu, de certo, sentiste, voltando ao lar, desiludido e pobre, a mesma impressão que me feriu o espírito quando, abrindo os olhos à luz clara da manhã, reconheci o meu quarto modesto, alvo como uma cela monástica, ornado singelamente com os meus instrumentos de caça. Ao fundo, num velho armário tosco, os livros das minhas leituras ao lado da mesa ampla e pesada das minhas meditações.
Coisas mínimas para as quais raramente se voltavam meus olhos, como as mirei extasiado! E que prazer em folhear brochuras, em reler fragmentos, em passar a mão pelos couros estirados nos muros claros! E quem diria que eu, tão exigente outrora, achando infecto esse jornalesco patrício o Fanal de Tamanduá, havia de ler, desde o artigo de fundo sobre a questão do casamento do Braz Lamenha, infenso ao pretor e à lei, redigido pelo meu venerando mestre o reverendo Coriolano, até o anúncio do bazar do Pindela. Decididamente não há nada para revigorar o amor como a saudade.
Os rumores deliciavam-me e enterneciam-me — deixei-me estar muito tempo a ouvir o chofrar das águas do moinho, perto do meu quarto, e descobri um encanto divino no balido das ovelhas que erravam pelos caminhos.
Leve, longínquo, soava o sino da paróquia, ora brando, ora forte, conforme a brisa e nasceu-me uma estranha curiosidade de saber se aqueles toques, que vinham pela manhã límpida, sonoros e festivais, eram por algum santo ou pelo batismo de mais um sertanejo. Mas, acalmando-me, entrei por uma dúvida incoercível recapitulando a vida fantástica desses oito dias aventurosos, que tão depressa correram. Pareceu-me que jamais passara além das montanhas levemente esfumadas no horizonte, reduzi essa viagem da minha imaginação a uma simples sortida de caça — a mesma fadiga que eu sentia era natural depois de tantas escaladas atrevidas, depois de tantos saltos temerários, ravinas acima, penhascos abaixo.
Que trazia eu que me demonstrasse ter vivido nessa cidade de luxo e de vício, tão celebrada entre serras pelos que, uma vez, pisaram as suas ruas e admiraram o seu fausto? Que trazia eu como documentos afirmativos? A carta de meu tio...? Sim era uma verdade a carta, tanto que arrancara a meu pai estas profundas palavras cheias de sabedoria: “Que eu me deixasse de sonhos. Que me dedicasse à terra, que é uma fonte perene de riqueza, porque neste país a lavoura é que rende, e citou a frase do estadista — isto é “um país essencialmente agrícola” aconselhando-me que não a perdesse de memória. Tudo mais, vaidade das vaidades”. E ajuntou: “que mais valia ter uma junta de bois e uma charrua para sulcar o solo do que todas as cartas das congregações. E, por fim, lembrou que a terra não produz perfídias nem calúnias e que viver entre as árvores é bem melhor do que viver entre os homens”. Convenci-me e decidi ficar no campo, lavrando.
Sonha-se tanto! Já uma vez sonhei que era amante de Cleópatra. Vivi dois longos meses felizes, de amor lascivo e de festas com a formosa rainha que me chamava: Ri-Ri.
Com ela enlaçado subi o Nilo muitas vezes, numa barca de cedro, que tinha um cisne de ouro à proa. Charmion sempre mimosa, cuidava dos meus cabelos lavando-os em essências que vinham da Etiópia e, até hoje, guardo a fisionomia simiesca de um retinto núbio de nome André, (coisa estranha, nome exótico na terra de Isis), que era o encarregado de encher o rython de prata por onde bebíamos, Cleópatra e eu, e descia a comprar-me cigarros quando me faltavam.
André...! É uma figura indelével na minha memória. Entretanto foi tudo sonho; porque, se a própria rainha, desligando-se das tiras com que os embalsamadores a prenderam, quebrando o seu sarcófago, viesse dizer-me que me pertencera um dia, eu lhe diria brutalmente na face: Mentes como uma bruxa, filha dos Faraós! Sonho, puro sonho. Com o Rio não se teria dado o mesmo fenômeno? Porque a verdade é que todos quantos caminharam pelas ruas da cidade excelsa gabam-lhe as maravilhas e de todos ouvi narrações de aventuras que eu, nem mesmo em sonho, concebi: mulheres que desciam a entregar-se, arrulhando entre limoeiros em flor; outras, mais abrasadas, que, em furor de ciúme, ameaçavam com escândalos e punhais, e noites delirantes e mil coisas que os persas imaginosos não incluíram nos contos de Scherazada.
Eu só não vivi: atravessei o Rio como uma sombra perdendo o fio do prazer quando já o tinha seguro e vendo diferentemente de todos, através do meu tédio e do meu sonho.
Assim foi que achei a rua do Ouvidor ínfima e acanhada; assim foi que abandonei o jogo no momento em que começava a acumular; assim foi que apenas provei o beijo de Jesuína e perdi a viúva. Todos os fatos experimentados, sem remate, interrompidos em meio, justamente como nos sonhos. Seria embriaguez? ... Teria eu atravessado toda uma semana bêbedo como Pedro Macaco, que confunde os dias com as noites e não tem, desde muito, a noção exata do tempo? Não creio. Sonhei, foi sonho decididamente. É assim quando sonho, sempre há de vir uma mulher para supliciar-me: foi Cleópatra primeiro, amei-a muito e passou; agora Jesuína.
A vida é um sonho. Quem sabe se não sonhei? Mas lá fora há uma voz que indaga — se cheguei do Rio. É Simão Carreira, sempre rouco, o mavioso lírico. Então não, não é sonho.
Não há nada mais real do que um poeta e Simão que pergunta se cheguei é porque sabe que parti. Então os sonhadores são outros que me fizeram a descrição do Rio, sonhadores ou mentirosos, sonhadores, em suma, porque a mentira é um produto de sonho. Mas Jesuína!? Foi sonho como Cleópatra, como Charmion, como o núbio André. Dreams! Dreams! Dreams!
E a vida é isto: sonho ou tédio. Antes sonhar.