Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

A Cidade Maravilhosa, de Coelho Neto


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

A Cidade Maravilhosa

Aproximações

Notas Recolhidas

O Monumento

Os Sentidos

O Potro e o Sendeiro

Homens e Relógios

Coração de Ouro

Conspiração

À Hora do Rádio

O Príncipe Leproso

A Enfermeira

Um Sorvete

Na Treva

A Estrela

O Grande Jogo

A Visita

Emigrantes

A Vida

O Colecionador

Plantas de Vaso

Um Caso de Loucura

A Amante

Um Excêntrico

Uma Santa

A CIDADE MARAVILHOSA

I

Terminada a aula, no reboliço gárrulo da pequenada — uns, procurando atabalhoadamente os tamancos, pretexto para empurrões e cotoveladas; outros batendo nos joelhos os velhos chapéus empoeirados, ou embrulhando, a trouxe-mouxe, os livros e a ardósia e já combinando, aos cochichos, travessuras lá fora, Adriana deixou a mesa para fiscalizar a saída, como sempre fazia, com uma palavra meiga, um conselho, uma recomendação a cada um: — Direitinhos, hein?! Barnabé, seu pimpão, nada de enticar com os bois por aí. Olha seu Manoel Antônio, que está de cama até hoje da chifrada daquele zebu. Criciúma, se eu souber que você anda a matar passarinhos com atiradeira, conto a seu pai. Seu Bernardino não te perdoa a vidraça que lhe quebraste com uma das tais pelotas. Tu, enquanto não apanhares por aí uma tunda, não endireitas mesmo... E, em tom manso, pausado: Camilo fica ainda um bocado fazendo-me companhia. Temos uma conversinha.

O nomeado era um caboclinho casmurro, feio, entroncado, tipo de gnomo, quase sem pescoço, com uma enorme cabeça atarracada aos ombros quadrados, abanando orelhas acabanadas, que nem azas. A cara larga, ossuda, de boca rasgada, com um nariz chato, esparrimado, olhos oblíquos, tinha uma expressão de ferocidade cínica. Rixento e mau, se, na aula, vibrava um grito, já se sabia — era alguma maldade do caboclinho: beliscão à sorrelfa ou espetadela de pena. Aos que o denunciavam esperava nas voltas dos caminhos, caía-lhes, de surpresa, em cima esmurrando-os, rolando-os na lama; a um mesmo ferira com uma canivetada, ameaçando-o de morte se desse parte à professora:

Adriana retinha-o sempre à saída para dar tempo aos outros de distanciarem-se. E afagando a este, passando a mão pela cabeça daquele, uma palmadinha à face de outro, corrigindo-lhes as roupas, sempre mal amanhadas, acompanhava-os à porta, saía à estrada para os ver partir, acenando-lhes adeuses até os perder de vista. Então, dirigindo-se ao caboclinho, sempre sorumbático, amuado, amimava-o, aconselhando-o:

— Agora vai. Mas olha lá: juizinho nessa cabeça grande! Nada de maldades. Gente má não se salva: vai direitinho para o inferno, assim: e com o indicador apontado ao chão fazia menção de fincar. Vai. O valentão saía de cabeça baixa e ia rastejando o caminho com os pés chatos, levantando poeira ou chutando pedras. Volta e meia, porém, voltava-se para ver Adriana. Ela lá estava, a segui-lo com o olhar e ameaçava-o com o dedo, recomendando ainda:

— Direitinho, hein! Mal, porém, dobrava a esquina “aquilo era que nem um veado por ali fora”, como dizia o boticário, e sempre estripulias: pedradas aqui, nome feio adiante. Os próprios cães rosnavam quando o viam, embarafustando pelos matos de onde se punham a ladrar.

"Esse! ... Esse mesmo não acaba bem!" murmuravam todos no povoado.

Adriana estimava os seus garotos, o mais velho dos quais teria quatorze anos: pépé, andando aos saltinhos, arrimado à muleta. Um apenas fazia exceção — taludo, já de buço, grave, com ares de homem. Pouco assíduo na escola, não por vadio, porque até coitado! era o mais atento às lições, com vivo desejo de aprender, mas porque trabalhava. "Volta e meia tinham de ir a Barretos, a recados do pai, quando o não mandavam longe, com outros, para trazer boiadas", dizia ele com acanhamento para justificar as faltas.

Os pequenos adoravam Adriana, cumulavam-na de presentes — flores, frutas, doces, ovos frescos. E ela tinha sempre cromos, santinhos, quinquilharias de mascates para corresponder a tais gentilezas.

Apesar de amizades tão meigas e do carinho com que todos a tratavam na povoação, vivia tristemente, muito retraída. Se a convidavam para festas escusava-se com pretextos delicados. Uma vez, apenas, por ocasião da visita de uns estrangeiros à Cachoeira do Maribondo, fora na comitiva para aproveitar o ensejo de ver tão falada maravilha.

A escola era uma velha casa, de paredes de sopapo, com mais buracos do que um crivo. Quando chovia as goteiras eram o pagode da garotada. Para não viver só naquela espécie de rancho que, nos dias de vento, oscilava rangendo, em ameaça de desmantelo, Adriana tomara um quarto e pensão em casa de um casal vizinho.

Finda a aula uma cabrocha fazia a limpeza da sala, arranjava os bancos, fechava a casa e lá ia a professora para o seu quartinho pobre, de paredes caleadas, mobilado com uma cama, um lavatório e uma estante de ferro, cômoda, mesinha de estudo e a mala de roupa.

Ali passava o tempo lendo, bordando. Uma vez por outra ia a passeio ao sitiozinho de uns italianos, cuja filha, Sandra, robusta e alegre morena, era a única e verdadeira amiga que ali tinha.

A gente do lugar lastimava-a: "Tão bonita moça e tão instruída, falando que nem um doutor, diziam recordando-se de um discurso que ela pronunciara, quando da visita do inspetor escolar, e metida naquele fundão".

A povoação era triste — uma rua única, de casas esparsas. E todos os dias a mesma vida — bandos de enormes zebus pachorrentos levantando a poeira da estrada. Raro em raro um cavaleiro indo ou vindo de Barretos. Não se animava a sair, e para quê? Que havia ali que a pudesse distrair? Na venda, durante o dia, eram caipiras lerdos e tropeiros remancheando, bebericando; à noite, jogatina, violas e sanfonas. E, cedo, desapareciam as luzes, cessava de todo o movimento; de ruídos só o monótono coaxar dos sapos, o trilar dos grilos; de longe em longe um mugido, o uivo ou latir de um cão ou uma voz guaiando cantiga sertaneja.

Quantos sonhos desfeitos! E para aquilo estudara tanto, sempre metida em casa quando as outras se divertiam em bailes e espetáculos. Ali estava e ali ficaria, por falta de quem por ela se interessasse. E passavam-lhe pela mente certas figuras: rapazes com quem conversara. De um até, filho de fazendeiro, recebera versos, lindos versos, cheios dela. Quanta esperança morta!

Diplomada pela Escola Normal de S. Carlos, sua terra, fizera um curso brilhante, pensando em obter colocação logo que se formasse, tendo até promessa de um lugar de adjunta em uma das escolas do Município, foi um desapontamento para todos quando correu a notícia da sua nomeação para tão longe.

Os pais, italianos, viviam de um pequeno armazém. O homem, um brutamontes, sempre arremangado, tresandando a sarro e álcool, de cachimbo à boca fumegando nas barbas ásperas, nunca tomara a bem aquilo de estudos: "Luxos! Que aprendesse a ler e a escrever e se empregasse". A mulher, porém, contrariava-o docemente, repetindo-lhe os elogios que faziam à filha, até nos jornais. Mas todos os anos, com as despesas de uniformes e livros, reacendia-se o furor do homem e eram protestos e exprobrações: "Que estava velho, cansado e aquilo de Escola era para gente rica. O que ela devia era pensar na vida a sério, empregar-se como outras, que já ajudavam os pais".

Apesar das rusgas e rebentinas, sempre com a defesa materna, Adriana conseguiu completar o curso, sendo unanimemente eleita oradora da turma. No mesmo dia, porém, em que saiu da Escola laureada e abraçada por todos os professores e condiscípulas, como o pai, que não fora à festa por causa do armazém e porque não era homem de barafundas, lhe perguntasse pela nomeação, e ela lhe respondesse "que dependia ainda do governo", ele explodiu com um murro no balcão:

— Ah! Depende do governo?! Então espera por ela. Hás de tê-la quando eu for papa. E, remordendo o cachimbo, com as barbas fumegantes, embezerrou sombrio. E foi para isto que, durante anos, andei a gastar o que tinha e o que não tinha, encalacrando-me até os olhos. Depende do governo... Então para que diabo estudou você?

Desde esse dia não teve Adriana um só minuto de paz. Linda, que era as picardias, as insinuações, olhares de través, risinhos entre dentes foram-na consumindo. Esbateram-se-lhe em palidez as cores vivas do rosto, o brilho dos grandes olhos verdes apagaram-no as lágrimas, a boca, pequenina e fresca, tão graciosa quando sorria, contraiu-se em comissuras dolorosas. Tornou-se outra em tudo, emagrecendo a olhos vistos.

Para evitar os dichotes do pai, ora enfurecido, ora zombeteiro, segundo a monção alcoólica, encerrava-se no quarto a costurar ou a ler. A própria mãe, sobre quem recaia o azedume do homem, cada vez mais amiudado ao copo, começava a retrair-se, reconhecendo-lhe razão.

As horas de comida eram as de maior sofrimento e vexame para Adriana. Calada, de olhos baixos, recebia os pratos como por esmola, sempre a ouvir alusões: "Isto não é mesa para sabichonas... mas é o que há". Um dia, porém, por um par de sapatos que pedira, por estarem cambados e rotos os que trazia, desabou a tempestade e uma frase dura e vil foi como um raio que a feriu:

"Sapatos, sapatos... Arranje-os! Vá buscá-los à Escola ou onde quiser. Quem sabe se eu hei de estar aqui a matar-me para sustentar vadias?! Arranje-se. Fruta madura não falta quem queira". A insinuação brutal atingiu-lhe o pudor. Lágrimas subiram-lhe aos olhos, mas não chegaram a cair, sumindo-se como gotas de água em placa esbrasida.

Nesse dia resolveu tomar rumo, arranjar qualquer coisa, fosse o que fosse e, enchendo-se de coragem, procurou uma das suas ex-colegas, filha de um deputado, expôs-lhe a sua situação, pedindo-lhe intercedesse por ela ao pai. Quinze dias depois aparecia a nomeação para a escola de Icen, em Barretos, quase sertão.

II

Os dias sucediam-se em monotonia banzeira. De manhã, antes mesmo de levantar a vidraça de guilhotina do seu quarto, como que via antecipadamente, tanto os tinha nos olhos, o céu muito azul, o campo raso, de ervagem fina, tremulando ao vento, dando impressão de correr como as águas de um rio, as árvores mirradas que lhe ficavam em frente. Ainda com o sol sempre se distraía: — eram pássaros aos revoos, crianças em correrias, tropeiros, boiadas. Mas no tempo das águas, semanas a fio de chuva, enlameando os caminhos, onde os carros rinchavam atoladamente, cavando sulcos moles, e as patas morosas dos bois espapavam-se, isso era de morrer. As árvores vergavam-se gotejando, como se chorassem; as boiadas passavam em silêncio, vagarosamente, as vozes soavam abafadas, e a impressão era de derrota, agravada pela melancolia do voo dos urubus e pelos enxames enfezados de moscas que invadiam as casas buscando abrigo.

E ali ficava ela prisioneira naquele quarto, ouvindo a voz esganiçada da mulher repetindo sempre a mesma cantiga e os passos lerdos do homem no corredor. Nada que lhe recordasse a vida — uma terra chã, lhanura de areal até o horizonte, gente rude, mazomba e a pasmaceira de tapera, tudo à natureza: mato bravio, bois soltos, porcos fossando lameiros, galinhas cacarejando pelos caminhos.

Nem jornais, ao menos. De tempos a tempos uma carta em gatafunhos — letras saudosas com que a mãe lhe pedia notícias e dizia-lhe da vida amargurada que levava com o pai cada vez mais rabugento e grosseiro, acarrando-se em muafas que o atiravam de borco, a roncar, obrigando-a a ir para o balcão, numa trabalheira que a arrasava.

Das colegas, nem uma linha. Jazia ali esquecida, como morta e ali ficaria embrutecendo-se, invadida pela selvageria da natureza, na ignorância lorpa daquela gente, adquirindo-lhe os hábitos, as, superstições, até os dizeres e a própria inflexão das vozes, acaipirando-se no falar, nas maneiras, em tudo. E lembrava-se das ruínas de uma igreja que vira afogada em mato, com árvores enormes dentro da nave, rompendo o telhado com as frondes, e os altares esboroados, o púlpito apenas assinalado pelo baldaquino e uma aresta do piso, lajes deslocadas e, aqui, ali restos de esculturas e entalhes, escassilhos de azulejos, vestígios truncados do tempo em que ali houvera culto, se dissera missa e ressoaram cânticos devotos.

Depois das aulas, trancando-se no quarto, refugiava-se nos livros, a ler, a ver estampas, cenas antigas da história ou vistas de grandes cidades com edifícios enormes, multidões nas ruas, festas, jogos, recreios em praias tortulhadas de barracas. Deitava-se cedo, sem sono, a pensar em tanta coisa, em todas as suas esperanças perdidas e, lá fora, o silêncio pesado do deserto, a tristeza do grande ermo com os ruídos misteriosos. De quando em quando uma voz longínqua, soturna ressoava em lamento — eram os bois errantes, os grandes zebus selvagens que dormiam soltos nos campos, ou ruminavam melancolicamente deitados nas macegas mornas.

Uma manhã, ao levar-lhe o café com leite ao quarto, como de costume, a dona da casa perguntou-lhe se conhecia um moço alto, moreno, de cabelos muito pretos, que andava a pintar por ali, de fazenda em fazenda?

— Não. Não conhecia. Por quê?

— Ele falou na senhora. Conheceu-a naquele passeio à Cachoeira do Maribondo. Vai agora pintar a derrubada lá de baixo. Vem ficar aqui uns dias, no quarto lá de fora. A senhora não se importa, não é?

— Eu? Eu, não. Por quê? De onde é ele?

— Do Rio. De vez em quando aparece, mete-se por esses matos, pintando, e vai-se embora. Bonito moço! Engraçado como ele só. Toca violão e canta que dá gosto.

Tal notícia alvoroçou o coração da professora adormecido naquele ermo e, desde logo, ainda deitada, pôs-se a imaginar o pintor, criando-lhe o tipo segundo retratos de artistas de cinemas que tinha em velhas revistas, já atraída por ele, desejando-o como se o esperasse na sua tristeza. Levantou-se estouvadamente, com alegria, tratando de arranjar-se com mais alinho e arrebiques, mirando-se, remirando-se ao espelho, compondo o rosto, polindo as unhas. Sentia, de quando em quando, estos, bafagem de calor nas faces, o peito enchia-se-lhe em respiração mais larga. Nunca um dia lhe parecera tão lindo como aquele.

Na aula, preocupada, sorria à toa e os pequenos como se lhe sentissem a distração riam, chalreavam, enticavam uns com outros, forçando-a a chamá-los à ordem.

Despachando os alunos deixou-se ficar na escola com a cabrocha a ver uma coisa e outra, mas o que, em verdade, a retinha, era o vexame de encontrar-se com aquele estranho, ter de falar-lhe.

Era agosto, mês das queimadas. O ar cálido, fumarento, abafado dava sensação de febre. O vento que soprava morno trazia um cheiro acre de rescaldo e fonas que esvoaçavam. Rolos negros de fumo subiam ao céu cor de chumbo, acumulando-se como em nuvens de tempestade, e o sol amarelo, coalhado, sem brilho, parecia uma brasa, a morrer.

Começava a declinar o dia com o melancólico gemer das rolas, quando ela se decidiu a fechar a escola e recolher-se a casa. Logo ao entrar deu de frente com o hóspede.

Era um rapagão alto, espadaúdo, tipo de atleta. Estava em mangas de camisa, botas de couro cru. Debruçado sobre uma caixa, que arranjava com os cabelos em anéis à fronte, cantarolava baixinho. Sentindo-a voltou-se e, ao vê-la, sorriu com lindos dentes à flor dos lábios, desculpando-se do trajo de trabalho. "Estava como chegara do campo". Estendeu-lhe a mão com intimidade, lembrando-lhe o passeio à Cachoeira. Adriana observava-o procurando recordar-se e, de mãos presas, olhavam-se encaradamente.

— Então não se lembra? Estivemos juntos à beira do Fervedouro. Creio até que possuo uma fotografia em que nos achamos: eu, a senhora e um senhor, que não sei quem é.

— Ah! sim...

— Pois então?

Daí entraram por lembranças daquele dia alegre, cheio de peripécias: a desfilada em automóveis pelos campos secos, esturricados do sol; o almoço opíparo na fazenda de um criador de gado indiano, com os grandes zebus rondando a casa; a chegada tumultuaria a margem do rio largo; a travessia em canoas; a caminhada estafante, difícil, trambecando no matagal que o fogo arrasara, alastrando de cinzas o solo pardacento e fofo, estrepado de tocos carbonizados, até o lapedo escuro, amontoado de calhaus e lascas que rolavam ao piso; por fim, o penedio negro, talhado em alcantis a pique sobre a torrente, que rolava em reboleira férvida acachoada em vortilhões coléricos de espuma, de onde se levantava um nevoeiro iriado.

E as águas barrentas, estendidas espraiadamente, ora em estirões calmos, alagoados, ora apertados entre rampas graníticas, reboleando-se em corredeiras precipitosas. Penhascos redondos surgiam em meio de remoinhos, semelhando monstros que atravessassem o rio arrebanhados.

Longe, as "Andorinhas", outra cachoeira estirada em socalco, branca como um altar. E o piquenique na gruta; correrias arriscadas nos pedrouços lisos e orvalhados; saltos temerários do cimo de penhas ao fundo de algares, em pedregulho; e tudo a risos e pilhérias, cada qual mais afoito em estroinices.

Um a cantar aqui; outro, além, em ousio fanfarrão ameaçando chegar à ponta extrema de um lajedo, a cavaleiro do abismo, bradando para dominar, com vozeiro, o marulho do fervedouro; fotógrafos guindando-se a píncaros, equilibrando a tripeça em chanfras de rochedos para apanhar aspectos inéditos. Em tudo a alegria, com um sol maravilhoso a iluminar incendidamente a paisagem, cintilando nas águas revolucionárias.

E deixaram-se ficar à mesa recordando episódios do passeio, tipos, pontos pitorescos e acidentes cômicos.

Os dois velhos da casa, habituados a recolherem-se cedo, remancheavam, lerdos, bocejando e, fosse sinceramente ou astucioso pretexto para pôr termo à conversa, a mulher, que andara a aferrolhar portas e janelas, rompeu na sala exclamando, extasiada:

— Não imaginam o que estão perdendo! O luar parece dia. O pintor pôs-se de pé, dizendo:

— E uma das coisas que eu mais aprecio na roça, o luar. Na cidade, com a iluminação, ninguém dá por ele. Na roça, não. Na roça o luar aparece em todo o seu esplendor: é a noite de Deus, simples e pura, sem artifício. Lá, tudo são enfeites, joias falsas, colares de luzes, broches de lampadários. Pechisbeques.

— O senhor gosta mais da roça do que da cidade...?

— Conforme... olhar com que ele a envolveu perturbou-a. Afoguearam-se-lhe as faces e uma sensação languida, como deslize macio de uma pluma ao longo da espinha, fê-la vibrar estremecidamente. Levantou-se atarantada, como a fugir, dizendo: "Vou ver..." Chegando à porta sufocada, sem fôlego, exclamou comovida:

— Que bonito!

— O luar? perguntou o pintor com interesse.

— Não. A queimada.

— Oh! Preciso ver isso. Abalou pelo corredor e, à porta, onde se postara Adriana, impou o busto altivo, volteando a cabeça para abarcar todo o horizonte em chamas, murmurando em arroubo:

— Belo espetáculo! Realmente! E vá um homem pintar uma cena destas. Caem-lhe logo em cima os críticos — que é fantasia, absurdo.

O horizonte ardia. Um cairel de fogo barrava a extrema da planície, acima da qual, com a refulgência do incêndio, o céu dourava-se em clarões de alvorada. As labaredas afetavam formas as mais bizarras — zimbórios, minaretes, obeliscos. O aspecto era o de uma cidade fantástica, toda de ouro, obra mirífica de gênios ou de fadas, cheia de templos e palácios suntuosos. Deslumbrava.

Por vezes uma coluna de fumo subia revolvendo-se em espirais ou um clarão mais fulgido explodia no lumaréu. O perfil das árvores mais próximas, esbatendo-se naquele fundo bizantino, destacava-se em negrume e, por entre as chamas, dir-se-ia mover-se um grande povo — eram pontos negros que esmaltavam iterativamente o relume.

De repente todas as labaredas baixavam como os capinzais ao vento, e ficava uma orla direita, sem a menor aresta, logo, porém, levantavam-se, espichavam-se de novo em aspas flamejantes e a visão recompunha-se.

O pintor aproximou-se de Adriana sem uma palavra, chegando-se lhe muito ao perto, corpo a corpo. Sentindo-lhe o contato ela relançou-lhe um olhar de espanto, sem ousar, todavia, repeli-lo. Ele tomou-lhe o braço, apertou-a a si, buscando-lhe carinhosamente a mão. Ela tremia com medo e feliz de sentir-se assim afagada.

— Vamos para a estrada, intimou baixinho. Dali vê-se melhor. Que noite! E a lua, hein? Caminharam vagarosamente, de olhos no astro solitário. De repente, voltando-se como a um chamado, o pintor olhou em volta. Ninguém! Então, aludindo ao fogaréu longínquo, exclamou:

— Linda cidade!

— Onde? perguntou Adriana. E ele, apontando o horizonte.

— Ali, pois então? Cidade maravilhosa! Cidade do sonho, cidade do amor.

Na solidão em que se achavam, sem viva alma que a socorresse, aquela palavra aterrou-a. Era a primeira vez que a ouvia de lábios de homem e foi como se um bandido a assaltasse cravando-lhe um punhal no peito. Estacou de golpe, a pé firme, forcejando por arrancar-se do braço que a prendia. Sentindo-lhe a resistência mais se lhe aferrou o pintor.

A estrada coleava, branca e deserta, cortando o campo e longe, cada vez mais fulgura, a queimada flamejava estendendo-se em galão de fogo na linha do horizonte raso. Docemente, em voz de segredo, o pintor falou-lhe, inclinando-se-lhe ao rosto:

— Mas diga-me: Como é que uma menina linda, inteligente e instruída como a senhora pode conformar-se com isto? Aqui há segredo, maliciou, sorrindo.

— Segredo? Que segredo pode haver?

— Se não fez voto de penitência, para ganhar o céu... tem aqui alguém que a prende pelo coração.

— Eu? Coitada de mim!

— Só o amor consegue abnegações como esta, o amor ou a fé. Caminharam ainda em silêncio. Na quietude do campo era perene o guiseiro dos grilos. Um caburé arrulhou lúgubre.

— Vamos voltar! Implorou Adriana. É muito tarde.

— Tarde! Nem nove horas ainda. É tarde aqui, neste ermo, cemitério de vivos. E, de repente: Conhece o Rio?

— Não, senhor. Ele voltou-se e, estendendo o braço para o fogaréu, disse com ênfase teatral:

— E aquilo! Um esplendor, não de fogo, a queimar, mas de luzes iluminando a vida. Ali, sim! Ali é que a senhora deve viver. Isto é bruteza crassa, terra bovina. Justamente um zebu atravessava a estrada, lento, pesado, meneando a cabeça, com a badana do pescoço em flácido balouço. Olhe! É isso. E por aí tudo é o que se vê: bois. Deixou-lhe o braço e, tomando-lhe as mãos ambas, frente à frente: Ouça-me... Sentindo-a tremer, gelada, tranquilizou-a: Não tenha medo. Está diante de um cavalheiro. Ouça- me, e a voz parecia ir-se-lhe, aos poucos, extinguindo na garganta. A senhora acredita que eu me tenha abalado do Rio, deixando os meus interesses, para vir a este sertão pintar quadros, que nem sequer podem interessar pela paisagem mesquinha e triste, porque tudo aqui é chato, mortiço, como vê? Acredita?

Ela murmurou de olhos baixos:

— Não sei...

— Se vim, Adriana, foi para vê-la, abrir-me com a senhora, dizer-lhe o que sinto desde aquele passeio à Cachoeira. À medida que falava ia-a atraindo a si e já os corpos se tocavam, apesar da oposição de Adriana, que relutava para evitá-lo. Venha! implorou, meigo. Venha comigo. Não sou rico, mas a minha arte dá-me bastante para fazê-la feliz. Terá o conforto que merece e o ambiente intelectual que o seu espírito reclama. Venha! Será a minha companheira, a minha inspiradora, participante das minhas glórias, minha... Súbito, abarcando-a num abraço em que a prendeu violentamente, vergando-lhe o busto, procurou beijá-la. Adriana fugia com a cabeça cerrando os lábios; ele, porém, em desvairo, brutalizando-a, venceu-a e as bocas colaram-se em um beijo longo, esmagador, sorvido em resmungos de volúpia. De repente, porém, num ímpeto de desespero, repelindo-o, ela escapou-se-lhe das mãos, deitando a correr espavoridamente. Entrou pela casa esbaforida, foi direita ao quarto, mal atinando com a chave. Parecendo-lhe ouvir passos já se dispunha a gritar pelos velhos quando a porta cedeu. Entrou, trancou-se, desafogando-se em um suspiro largo, de alívio.

Então, de pé, enclavinhando as mãos, sentiu o horror de que se salvara, a grande, irreparável desgraça de que fugira.

Mas, afinal, por que fora? Como se deixara levar por aquele homem, conhecido de horas? Que prestígio teria ele para arrastá-la até quase à desonra, valendo-se daquelas chamas que ardiam além, dentro da noite clara? Pensou no diabo. Bem podia ser.

O coração enchia-se de remorsos, sim, remorsos do que fizera, ela, tão recatada, sacrificando-se, como se sacrificava para manter-se pura. Que diriam depois — seu pai, sua mãe, toda a cidade!

Lágrimas subiam-lhe aos olhos com a vergonha do que acontecera, vergonha e ódio daquele beijo que a envenenara, correndo-lhe pelas veias como um fogo vivo. Atirou-se à cama abafando os soluços no travesseiro. Mas no horror da lembrança trágica passava-lhe pela mente aquele beijo, que persistia numa sensação em que todo o seu ser vibrava; e remordia o travesseiro, ora em revolta, ora em espasmos, oscilando entre ódio e amor, num duelo em que se encontravam a carne e o espírito.

Passou a noite em claro. Antes de romper o dia, com a lua a adormecer na alvorada, pé ante pé, deixou o quarto, abriu devagarinho a porta da rua, encostou-a de leve e foi-se pelo campo orvalhado, através dos matos, a caminho do sítio dos italianos.

No horizonte, onde ardera a queimada, o céu estava tisnado de fumo.

III

Ao ladrar dos cães, que investiam furiosamente à cancela do jardim, Sandra, que acabava de ordenhar as vacas, no tendal, acudiu ao alarma, logo, porém, reconhecendo Adriana, deitou a correr, atirando alegremente os braços.

A propósito do acolhimento hostil com que a canzoada a recebera recriminou-a:

— Estás vendo em que dá a ingratidão? Nem os bichos te conhecem mais, até o "Jagunço", que tu criaste... É bem feito! E, refugindo, em negaça, ao abraço com que Adriana lhe acenava:

— Não! Não! Olha como estou... Curvou-se, risonha, e, avançando a cabeça, com os braços para trás, beijou-a nas faces. Estranhando-lhe, porém, a visita àquela hora, perguntou, a rir:

— Vieste fugida?

— Não. Vim cedo por causa do sol. Seu Gomes foi ontem a Barretos, no trole e, como não há outro... Que fazer? Vim por aí devagarinho, com a fresca.

— E ficas comigo?

— Dois ou três dias.

— Só!?

— Mais é impossível. Tenho a escola. Sandra, muito corada, com os cabelos enrodilhados à nuca, os braços nus, as saias arregaçadas até os joelhos, descobrindo-lhe as pernas robustas, de um moreno queimado, levou-a por entre as vacas e os bezerros, que mamavam a marradas sôfregas. Um crioulinho soltava a criação de penas e era uma barafunda de aves em ânsia de liberdade — galinhas a correrem de azas abertas; galos a cantarem em triunfo; patos muito rebolidos, gansos arrogantes, grasnando, de pescoço espichado, a olharem de alto, como em vigilância; perus pantafaçudos, encachiando roda, aos bufos. Pombos voavam com estalos de azas e, às correrias, latindo aos bois, os cães arrebanhavam o gado para o levar ao pasto. Em volta da casa, toda cercada de trepadeiras floridas, com uma latada de maracujás à frente, era um contínuo bezoar de abelhas.

— Não repares, desculpou-se Sandra, correndo um olhar vergonhoso pelo corpo — de manhã é assim. Sou eu que faço tudo aqui fora. Mamãe, é lá de dentro. Papai, cedinho já está na roça com os camaradas. Eu, é aqui com os bichos. Debruçou-se a um tanque, lavou os braços, enxugando-os ao avental. E então, abraçando Adriana pela cintura, levantou-a no ar com força de homem:

— Sua ingrata de uma figa! Quase dois meses sem vir ver-me.

— Trabalho...

— Trabalho, hein? Pois sim! E, ameaçando-a com o indicador. Ando, há muito, desconfiada desses teus modos comigo.

— Desconfias de mim, Sandra...?

— De ti, não: de certo sujeitinho de Colina, que anda agora muito por aqui.

— Eu?! Não penso nisso.

— Pois olha — o meu dedo mindinho nunca me enganou. Enfim... Entraram. E Sandra foi logo prevenir a mãe para que fizesse uma macarronada.

Apesar da confiança que lhe merecia Sandra, Adriana não lhe disse toda a verdade, calando, por vexame, a cena brutal da estrada. Falou do pintor, do seu ar atrevido, das suas maneiras estouvadas, das suas frases, das suas atitudes:

— Um tipo sem modos. Aquela gente não o devia ter recebido, não achas? Fala-se de tudo... Um homem que ninguém sabe quem é, nem de onde vem. Não quero. Ele está lá por dias; enquanto não se for hás de ter paciência de aturar-me.

Sandra fez-se séria e concordou:

— Tens razão. Quanto a ficares conosco bem sabes que só nos dás com isso prazer.

— Demais, preciso descansar um pouco.

A vida era serena naquele lar simples. A mulher — tipo acentuado de romana, forte, com a beleza ainda viçosa, era de uma alegria infantil, sempre a rir, com duas filas de dentes admiráveis, destacando-se, muito alvos, na frescura dos lábios vermelhos. A sua preocupação era a casa, trazia-a muito alinhada, desde a sala até a cozinha, que ela mesma dirigia, tendo apenas uma velha negra para cuidar do fogo. O homem, um gigante, franco e brincalhão, sempre disposto a pilhérias, vivia para dois amores — a sua gente e a terra. Falava da sua lavoura com orgulho, e do pomar e do jardim, árvore por árvore, planta por planta.

— Isto, com mais dois anos de trabalho, valerá uma fortuna. Mas não vendo. Era mato quando comprei e hoje...? Diziam-me que não fizesse negócio, porque as formigas não deixariam vingar uma planta, e quanto a café, que eu tirasse tal ideia da cabeça. Pois aí a tem. Dá-me de um tudo. Estou vendo que, mais dia, menos dia, entra-me pela casa dentro um dos meus homens com uma cesta de moedas colhidas na árvore das patacas, que, se não me engano, cresce aí por esses matos. Terra má... mau é o homem, isso sim!

A noite reuniam-se na varanda, diante do céu estrelado, sentindo o cheiro das flores e da seiva das árvores. Os vagalumes passeavam centelhas. Na quietude a voz mansa do gado valia por um canto bucólico e, ouvindo-o, docemente espichado em uma cadeira de lona, de olhos semicerrados, o homem cantarolava baixinho canções da pátria, nas quais, às vezes, a mulher e a filha intervinham em coro nostálgico, muito afinado e brando.

Nessa mesma noite, na varanda, ao luar, a propósito do cheiro de coivara trazido pelo vento, Adriana falou da queimada:

— Que beleza! De longe parecia uma cidade de ouro, como as dos contos de fadas.

O homem resmungou apenas, com intenção:

— De longe! E, depois de um silêncio. Foi todo o capoeirão do Bricio e muito ainda de campo. Eu vi daqui. E quer saber? Para mim aquilo foi maldade. Bricio anda sempre metido em questões com meio mundo. A terra é que paga. Não imagina a pena que me faz vê-la assim causticada. E depois como fica. E, de repente: Olhe, eu tenho de ir amanhã para aquelas bandas. Quer vir comigo?

— Quero! aceitou Adriana com alegria e Sandra logo propôs-se:

— Eu também!

— Pois está dito. Cá a patroa fica a cuidar da polenta. E a minha amiguinha verá o que resta da cidade de ouro, a tal cidade maravilhosa que avistou lá de longe.

De manhãzinha, ainda com a neblina, já o trole estacionava junto à cancela e o homem, enquanto esperava as moças, que se aprontavam, pôs-se a andar pelo jardim examinando as roseiras, quebrando: aqui, um ramúsculo seco; fincando mais fundo, além, um espeque. Quando elas apareceram, com enormes chapeirões de palha contra a soalheira no descampado, o homem subiu à boleia, tomou as rédeas, atitou às bestas, que arrancaram folgadas.

Que frescor nos caminhos do sítio, com o seu arvoredo muito verde, denunciando trato, e o milho em larga seara loura, e as canas ondulando molemente; e, mais longe, escuro, o cafezal novo, arruado a capricho. Aqui, ali, entre o verdor das árvores, uma casa alvejando. Pancadas monótonas martelavam o silêncio e no ar fino, azulado, era uma gorjeada de pássaros revoantes.

— Até aqui é nosso! disse o homem com orgulho. E entraram no terreno sáfaro.

Era um solo duro, pétreo, de macega ríspida, averrugado de cupins. Arvoretas raquíticas, de raras folhas amarelentas, subiam dentre os capins penugentos e o trole, apesar da cautela com que era conduzido, volta e meia topava em um socalco ou batia fundo em caldeirões ocultos sob a ervaçal.

Cortes profundos entre barrancas esfoladas, trilhados em sulcos paralelos — vincos de carros de bois no tempo das águas — corcoveavam em aclives e declives. O homem ora estugava a parelha, ora a retinha, sem, todavia, evitar os trancos em certos pontos mais escavados, onde o trole inclinava-se, ora a um lado, ora a outro, em risco de virar. O ar estava toldado de cinzas que voavam ao vento apegando-se às roupas.

— Fecha os olhos! recomendava Sandra a Adriana, obrigando-a a baixar a cabeça, puxando a aba do chapéu à fronte. E o cheiro morno da terra adusta tornava-se mais ativo e a poeirada mais densa. Pássaros voejavam estonteados, e abelhas, e maribondos. Grandes besouros zuniam como balas.

— Cá estamos na sua cidade de ouro, a sua cidade maravilhosa, disse o homem a rir, voltando-se de esguelha na boleia. E está sério isto... Temos de andar com cuidado, porque o fogo ainda lavra. E olhe que começou anteontem, à noitinha. Quem deu por ele fui eu, lá da varanda. Ainda pensei que fosse clarão do luar, mas depois... O vento tocou-o. A meia noite ardia tudo. Temos obra ainda para alguns dias. Isso agora vai devagarinho, como digestão de jiboia.

O trole deslizava vagaroso, macio, como se fosse por uma alfombra. Mas que desolação! Era um imenso cemitério, onde os tocos carbonizados semelhavam as placas que numeram as covas. Troncos negros mantinham-se de pé, hirtos que nem postes; outros ainda fumegavam à maneira de tições; e pelo solo cinéreo, balofo, eram galhos encarvoados, alguns ainda com folhas encoscoradas. Dir-se-ia uma floresta mumificada.

Urubus voavam em círculo na altura à espia de carniça e pássaros atarantados piavam em reclamo triste, pousando nos galhos fuliginosos, à procura, talvez, dos ninhos.

Em certos pontos a terra árida fumegava e havia brasas, estralejo de chamas. Era a ruminação do incêndio. A terra estuava em calor de fornalha. E o trole avançava a passo e passo das bestas, evitando troncos, toros, coivarais que ardiam. Uma árvore, que tombara sobre as raízes, chiava como em estertor.

— Aqui a tem, a sua cidade maravilhosa. Viu-a de longe, era linda, Veja agora. Ilusões, fanciulla. Ilusões... Adriana olhava estarrecida. Mas não era a destruição das árvores, não eram aquelas cinzas pardacentas, ainda mornas, não eram aqueles troncos denegridos, aqueles ramos que rechinavam amojados de seiva que a comoviam, mas a lembrança da sena da estrada, a sedução do homem sinistro a mostrar-lhe, ao longe, no fogaréu rutilante, a cidade maravilhosa, cidade do sonho, cidade do amor.

E, na imaginação, pôs-se a comparar o seu destino ao daquelas árvores, ao de toda aquela terra calcinada e em miséria depois de umas horas breves de esplendor. Não a houvesse Deus protegido contra a sedução e... ai, dela!

Tremia. Iam-lhe os olhos desvairadamente da terra em cinzas às árvores carbonizadas, ao céu enublado e via-se como aquela desolação: perdida, rondada de abutres, com as suas virtudes como aquelas aves tontas que procuravam, a chorar, os ninhos incendiados.

A comoção travou-lhe a garganta. De repente, descaindo ao ombro de Sandra, desatou em pranto.

— Que é, Adriana? Que tens? perguntou-lhe a amiga aflita, sem compreender aquelas lágrimas. Que é? Fala!

O homem reteve os animais e, voltando-se preocupado, indagou:

— Que foi?

Ela sacudiu a cabeça, deu de ombros limpando os olhos:

— Nada. Pena. Tenho pena das árvores, dos pássaros, de tudo. Corta o coração ver isto. Tão lindo, de longe...!

— Ah! menina, é assim. A distância engana. De longe é uma coisa, chegue-se a gente perto e verá. Pena também tenho eu. Para mim as árvores sentem, como nós. Sentem! Oh! Se sentem! Tem razão. Mas não chore. A terra refaz-se...

— A terra...! suspirou Adriana.

— Basta uma chuva para tudo rebentar de novo...

— Mas as lágrimas, por mais que as choremos, não fazem o milagre das águas do céu.

Percebendo que a crise voltava a Adriana, Sandra intimou:

— Olhe, papai, quer saber de uma coisa? o melhor é voltarmos. É até um perigo metermo-nos por aí, com esses troncos que ameaçam cair. Depois os animais estão sofrendo com os pés nas cinzas quentes. Vamos voltar.

— Pois sim! concordou o homem, pachorrento. E, subindo para a boleia, tocou em rumo ao sítio. Adriana voltou-se para a desolação e, muito tempo, esteve a olhar, a ver, não aquela tristeza da terra devastada, mas a queimada da véspera, o deslumbramento que a fascinara, a cidade maravilhosa, toda de ouro dentro da noite, sentindo na boca o sabor daquele beijo infernal, que a queimava por dentro, como o fogo ainda lavrava naquele páramo reduzido a cinzas.

APROXIMAÇÕES

— Pau que nasce torto, meu amigo... É o meu caso. As minhas atrapalhações começaram com o meu nascimento. Eu não sei de que freguesia sou, quero dizer — não sei, ao certo, se sou deste século ou do outro.

— Como?

— É verdade. Há dúvidas sobre a data do meu nascimento. Querem uns que eu seja de 31 de Dezembro de 1899; afirmam outros que sou de lº de Janeiro de 1900 e de tais dúvidas resultou o nome complicado que tantos vexames me têm trazido: Silvestre da Circuncisão Brochado.

— Da Circuncisão...!?

— É como lhe digo. Um nome a talho de foice, não é verdade?

— Mas por que isso?

— Por causa dos relógios. O relógio de parede da minha casa, um cuco, marcava 11 e 47 minutos quando surgi aos berros, e no relógio de meu pai, um cronômetro suíço, passavam cinco minutos da meia noite, dia seguinte, portanto e eu fiquei engasgado entre as duas datas e com um nome de Dezembro e outro de Janeiro e mais o Brochado, que é o apelido de família.

Todos os anos havia tremendas discussões em minha casa a propósito do meu nascimento. Mamãe era pelo relógio de parede; papai batia-se pelo cronômetro suíço e estiveram quase a divorciar-se por não chegarem a acordo nessa questão de tempo. Cresci em tal embrulho, a ouvir o bate-boca desde lº de Dezembro a lº de Janeiro. E, até hoje, a minha vida tem sido uma atrapalhação, ou encrenca, como agora se diz.

Por mais que faça nunca sei a quantas ando. Penso em uma coisa, sabe-me outra. Todas as vagas que me aparecem são, para mim, como as de Copacabana para os banhistas: em vez de me salvarem, afogam-me. Na Loteria, por exemplo. Compro um bilhete — não sei se é porque fui sempre um tremendo abolicionista...

— Mas quando o senhor nasceu já não havia escravos...

— Não havia, tem razão, não havia porque nasci atrasado. Sempre a questão de tempo, mas o pensamento, o amigo compreende, o pensamento que eu teria trazido se houvesse nascido a tempo, esse seria tremendamente abolicionista! Pois foi, ou antes, é por isso que só compro bilhetes brancos, mas sempre em aproximação com um prêmio. Há dias comprei um inteiro: 13.518. Lindo número, não é verdade? Sabe o que aconteceu? os contíguos: 13.517 e 13.519 foram premiados — o primeiro com cinco contos; o segundo com duzentos mil réis. O meu, branco. E em tudo é assim. Casei-me. Minha mulher era um modelo de esposa, senhora de excedentes virtudes, religiosa como um catecismo. Adorava-me! Éramos até citados como exemplo de amor conjugal. Pois bem, quando rebentou a guerra, um primo dela, que vivia em Paris, apareceu-nos em casa. Hospedamo-lo. O tipo era dos tais que dançam em cabarés e tocam guitarra. E mais uma vez fui vítima da aproximação. O pelintra contou tais lerias à minha virtuosa mulher que eu... fiquei a ver navios e de casado conservei apenas o título, título que vale tanto como outros de empresas falidas que me entulham as gavetas.

Agora ando com uma questão de terras em Jacarepaguá. Sempre as aproximações. Certo vizinho, homem de maus bofes, entendeu de invadir-me a roça com os animais — bois, porcos e os filhos, que são umas feras. Pois, meu caro, tenho gasto rios de dinheiro para ser dono do que me pertence e estou vendo que o homem acaba tomando conta de tudo. Que hei de fazer? É sina. O senhor, garanto, não tem dúvidas sobre a data do seu nascimento, sabe em que dia veio ao mundo, pode dizê-lo alto, de cabeça erguida. Eu, não. Eu dependo da pêndula do relógio de parede, da inteira confiança de minha mãe, e do cronômetro suíço, tido por infalível por meu pai. Acho-me entre dois tempos, sempre na incerteza, aproximado, nunca, porém, em justo, nem aqui, nem ali.

— No meio.

— Isso, no meio, como fiambre em sanduíche. Sou vítima do jogo de empurra. Quero uma coisa, vou direito a quem me pode dar e, quando penso sair servido, saio com uma carta para outro, que, por sua vez, me remete a terceiro e assim ando eu aos empurrões. Agora tenho a atenção voltada para o divórcio, que será a minha taboa de salvação, porque a verdade é que eu sou casado, mas não estou, tenho mulher, mas em poder de outro, e como não são permitidas as acumulações...

— Remuneradas.

— Sim, tem o senhor razão, mas o governo até que tire isso a limpo, sei lá!

— Mas se a Lei não permite as acumulações remuneradas não se opõe aos biscates.

— É... é... mas eu não quero posições duvidosas. Para dúvida basta-me a da data do meu nascimento. Já agora espero o divórcio. Pode ser que, desta vez, consiga alguma coisa, não por sorte minha, mas porque há muita gente interessada no caso. Será um bilhete de sociedade e, como é possível que no grupo haja algum felizardo, aproveitarei a monção e irei por ela. Por mim, só por mim, pode estar certo de que tal lei encalha na Câmara, talvez chegue ao Senado. Aproximação... sempre as aproximações. E querem ainda que um homem como eu ame o próximo, como a si mesmo. Pois sim...!

NOTAS RECOLHIDAS

— Ribot extrairia do meu caso um livro. Conheces a obra de Le Dantec Les frontières de la maladie?

— Conheço-a de vista. Folheei-a na biblioteca do Gusmão, esse cabotino que adoptou a divisa de Pico de la Mirandola: De omini re scibili...

— Pois, meu amigo, por mais que os médicos tentem tranquilizar-me dissuadindo-me do que eles chamam "as minhas cismas", sinto que estou muito perto de uma de tais fronteiras. Com o que ela extrema não sei, está-me, porém, a parecer que a região limítrofe é deserta, sombria, voejada de sombras, como aquele pálido país cimério onde Ulisses penetrou levado por Homero.

— Mas por que dizes isto?

— Porque sinto. O meu maior orgulho outrora, se te recordas, era a minha memória. Mnemosine não a tinha mais fiel. Pronta, infalível, atendia às minhas solicitações frequentes como o telefone atende ao chamado.

— És injusto com a tua memória, porque nada conheço mais remisso na obediência do que esse aparelho. Mas deixemos o telefone e vamos ao teu caso, que me interessa.

— Eu tinha os meus estudos, as minhas leituras em ordenado registo. Livro que eu lesse ficava-me gravado indelevelmente na memória e assim fatos, dos mais recentes aos mais remotos, datas, nomes, endereços, tudo! Reproduzia, sem falhas, páginas e páginas de autores, poesias longas; não recorria jamais ao catálogo para verificar o número do telefone dos meus amigos e dos meus fornecedores e, ouvindo um discurso — como sucedeu com o do Rui pronunciado no Politeama — repetia-o quase integralmente. Tal poder, feito de atenção, faculdade apreensora, e de memória, registo de fixação, foi, pouco a pouco, enfraquecendo. Hoje tudo confundo, baralho. Distraio- me, esqueço-me... Não sei.

Antigamente não me preocupava com anotações. Se me ocorria um assunto ou uma imagem, dormia sem preocupação, certo de que, na manhã seguinte, ao primeiro apelo que fizesse ao cérebro, ele me responderia com o que eu lhe confiara. Hoje, antes de deitar-me, verifico se tenho à mesa de cabeceira o meu caderno e o lápis para fixar o que, por acaso, me venha à mente e que possa ser aproveitado em algum trabalho.

A minha memória tornou-se um verdadeiro crivo, através do qual tudo passa e se perde.

O meu antigo método degenerou em desordem. Perco objetos, começo uma leitura e passo páginas e páginas inteiras tão alheado do texto como um homem que atravessa uma rua conhecida sem atentar nas casas, indiferente a tudo, andando a esmo, de olhos no chão. Nos salões — e por isto evito frequentá-los — não imaginas como me atrapalho. Pessoas que me sorriem, que me falam e que eu conheço, mas de cujos nomes não me lembro... isso é comum. E sinto, sinto que alguma coisa estranha se passa dentro de mim. Sabes esse ruído de guiseiro que há no interior das grandes florestas, ruído feito de vozes de insetos, de bulício de folhas, de murmúrio de água, de voos leves entre a folhagem, ruído do silêncio como já alguém lhe chamou? Pois bem, esse ruído ressoa perene dentro de mim, como se o meu crânio fosse uma concha, entendes? É horrível! Enfeza. É a tal coisa.

Saí do mundo normal, entrei no deserto e marcho em direção à uma fronteira desconhecida. Reminiscências acodem-me de vez em vez, miragens, espectros do passado.

As opiniões dos médicos variam: uns atribuem tais fenômenos à fadiga; outros à vida solitária que levo. Já até um deles me comparou a Santo Antão com as alucinações demoníacas, as visualidades, os delírios sensuais que obsidiavam o eremita. Literatura.

Quanto à vida solitária... não sei. Em verdade, meu amigo, eu vivi demais na mocidade, gozei e sofri como poucos, acumulei impressões e sensações do meu tempo e casei-me muito jovem, tornando-me um homem da família, um prisioneiro do lar e, cá fora, a vida continuou progredindo. A cidade desenvolveu-se, os costumes modificaram-se, tudo se transformou e eu... pai de família.

Conheces a história daquele colono que se instalou em um lote de terra fértil e, trabalhando de sol a sol, vivendo com a mais apertada economia, todo o lucro que trazia da feira, trocado em notas, metia em uma lata, que enterrara na roça?

Acumulando anos e anos, quando julgou a fortuna bastante para realizar o sonho de toda a sua vida trabalhosa, que era adquirir uma quinta na terra natal e nela assentar-se para gozar na velhice o repouso que jamais tivera na mocidade, desenterrou o tesouro e foi-se com ele ao banco. Ao despejar a papelada, velha de mais de quinze anos, o recebedor encarou-o espantado e, repelindo as notas, disse-lhe escarninho:

— Isto não vale nada. O que aqui há são notas recolhidas. De onde vem você, homem de Deus! Estás a ver que o desgraçado não teve forças para resistir ao choque e, em vez de sair dali com o dinheiro para a quinta do sonho, saiu em carro de força para uma cela do Hospício.

Eu estou nas mesmas condições desse homem e receio ter o fim trágico que ele teve.

Com a morte de minha mulher fui forçado a reentrar no mundo, do qual me havia apartado. E como entrei? Entrei com as ideias antigas, com os costumes antigos, com os hábitos e a moral do meu tempo: notas recolhidas, como as do colono. Se me não tivesse encerrado, como me encerrei, tê-las-ia trocado, à medida que fossem sendo chamadas à Amortização, mas... que queres? Com os ciúmes da falecida, que me não deixava por pé em ramo verde, exilado na fazenda, entrar assim, de repente, em vida nova, com tudo isso que por aí se vê... e com as minhas ideias recolhidas, compreendes... Acho que todos os males que me acabrunham, essa desordem cerebral, desequilíbrio, arvoamento, enfim... Pode ser que tudo corra por conta do meu atordoamento, porque, em verdade, passar um homem a melhor parte da vida a acumular para, em dado momento, na hora em que se decide a empregar as economias, saber que toda a sua fortuna é um monte de notas recolhidas, não é só para atordoar e fazer perder a memória, é para fazer perder de todo a cabeça. Ainda assim sou mais forte do que o colono, porque, como vês, não visto ainda a camisola de força.

— Mas, pelos modos, estás com vontade de experimentar a de onze varas. Se é por isso não te incomodes. Tenho meios de trocar as tuas notas recolhidas e sem desconto, talvez, até, com ágio.

— Em que Caixa de Amortização?

— Há tantas por aí...! principalmente para um homem nas tuas condições: viúvo, ainda forte e cinco vezes milionário. Se quiseres poderemos começar o resgate hoje à noite, num clube e, trocando, por exemplo, a valsa do teu tempo de solteiro, pelo Charleston, nota da última emissão.

— Homem... logo o Charleston. Começas pelas notas grandes... Vamos devagarinho. Onde poderei eu trocar a polca pelo foxtrote...?

— Ora... isso em qualquer parte, é dinheiro miúdo. Acho que deves começar pelo Charleston.

— Uhm! Depois do regímen do meu tempo de casado, um abuso assim ... Tenho medo que me dê na fraqueza.

— O Charleston? Não há fraqueza que lhe resista. Tenho visto milagres, palavra! verdadeiras ressurreições.

O MONUMENTO

Foi uma das primeiras a chegar à praça, em meio da qual avultava a mole do monumento ainda encoberta. A um lado, como coreto em festa de arraial, trapejando bambinelas de metim, erguia-se o palanque destinado ao elemento oficial e pessoas gradas, e, delimitando o andito reservado para a cerimônia, um círculo de mastros empavesados, ligados por uma corda de flâmulas e galhardetes.

Subindo ao gramado, onde havia um banco, sentou-se com um suspiro de alívio. Ardiam-lhe sinapisadamente os pés, doíam-lhe as curvas das pernas da caminhada longa que fizera, ela que vivia metida em casa, rebolando o corpo pesado de um a outro canto do quarto, ou na rede, onde passava a maior parte do tempo, com uma moxinifada de molambos, fuxicando um, fuxicando outro, a passear com a memória pelo remoto passado. Quantos anos vividos! Como iam longe, Deus do céu!

Era uma mulheraça morena, de um moreno de sândalo, gorda, colo e quadris anchos, braços roliços, de pele fina, com duas covinhas de amor nos cotovelos. Devia ter sido bonita e ardente no sangue de mestiça. Os olhos, grandes e negros, ainda rebrilhavam; a boca, pequena, de lábios carnudos, entreabria-se, como em fadiga, mostrando os dentes muito brancos; fronte breve, finamente riscada a estrias: cabelos fartos na pretidão dos quais apareciam fios brancos como fitas de luar no escuro de um balsedo. Não fosse o reumatismo que a tolhia! ...

Quando a dona da casa (na qual ela ocupava o melhor quarto, com janela sobre o quintal), lhe deu notícia da inauguração do monumento, no domingo próximo, o coração bateu-lhe forte, a ímpetos estuantes. Tirou precipitadamente os óculos e, encarando a senhoria com ar pasmado, como se duvidasse do que lhe ouvia, pôs-se a repuxar o grosso lábio, como distraída, o olhar perdido ao longe. Por fim indagou:

— Monumento? Mas que é?

— Estátua, D. Leocádia.

— Estátua!? Ora essa! Mas estátua, por quê? A senhoria deu de ombros. Mostrando, porém, o jornal com o retrato e a biografia do grande homem, disse: — Olhe. Está aqui. A velha repôs os óculos e, chegando muito aos olhos o jornal, examinou atentamente a gravura, com franzidos da fronte.

— Não está muito parecido, não; mas é ele. E que é que diz? A senhora pode ler para mim?

— Pois não. E a senhoria pôs-se a ler. Era um louvor de princípio ao fim, desde a infância estudiosa e exemplar até a culminância ascensional — deputado, senador, ministro de Estado, íntimo do Imperador, condecorado por vários monarcas. Citava-se a sua dedicação à coroa quando, constando que um batalhão se revoltara, enfermo, com febre, ele se levantara da cama e, com febre, afrontando a noite tempestuosa, mandara tocar para S. Cristóvão, indo colocar-se ao lado do Imperador.

Isso é verdade, eu me lembro, confirmou a mulata. E, até o final do artigo, foi esse o seu único comentário. Tivesse-a, porém, a senhoria observado em certos passos da apologia referentes às virtudes do grande brasileiro, "cuja vida, pela austeridade, podia ser inscrita entre as dos varões de Plutarco", e teria surpreendido meneios de cabeça, caramunhas, momos, olhares muito abertos de espanto. Em certo ponto em que o articulista, tratando da vida íntima desse que fora um modelo de sisudez, "um verdadeiro sacerdote no templo da família", a mulata não se conteve e irrompeu estabanadamente:

— Pois sim...! Venha com essas pra cá! A senhoria indagou:

— Que é?

— Histórias! Pra que essa lengalenga toda? Mentira! Remexeu-se freneticamente na rede como remordicada nas enxúndias.

— Olhe, eu não sou mulher de falar dos outros, mas há certas coisas que enfezam. Como eu já contei à senhora, e todo o mundo sabe, eu fui cria daquela casa. Ali nasci, ali me fiz moça e... Aboquinhou os beiços em amuo e espocou um muxoxo. Criamo-nos juntos. Ele era mais velho do que eu uns seis ou sete anos. Menino levado, a senhora não imagina. Um capeta!

Fez uma pausa arquejante e o colo encheu-se-lhe como em afluência de saudades que lhe subissem do coração. Pôs-se a brincar com os óculos. Um sorriso malicioso rondava-lhe os lábios, abria-se-lhe no rosto cheio e, de olhos baixos, pudicamente, murmurou:

— Mau, não era; isso não era, mas repetir o que está aí no jornal, não, que eu não minto. Homem de respeito! Atirou o busto para traz: Qual! Homem de respeito... Casquinou um risinho canalha. O que ele fazia na política, isso não sei. Ouvia dizer que era deputado, depois passou a senador, a ministro e não sei que mais. Tinha carro, ordenança e a casa andava sempre numa barafunda que punha a gente tonta. Trabalhava até as tantas da noite, não sei se por que tinha mesmo que fazer ou se era esperteza para ficar acordado e andar pela casa como assombração.

Olhe, Rosinha está aí com dois filhos dele. Coralia, uma mulatinha quase branca, linda que fazia gosto, teve de desmanchar o casamento com um moço estabelecido por causa dele. Eu mesma, que é que a senhora pensa? eu mesma, se não fosse quem sou e se não dormisse perto do quarto do casal, fechada por dentro, não sei! Quanta vez ouvi barulho na porta: era ele empurrando, chamando por mim, baixinho. Nem sei como Sinhá não ouvia. E não havia criada com que ele não bulisse.

Uma espanhola, moça séria, casada com um condutor de bonde, essa, se não fosse a gente, teria feito uma água suja dos diabos. Pois o homem não se emendou.

Quando Sinhá subia para Petrópolis e ele, ficava cá em baixo, por causa da política (política era a desculpa) não lhe conto nada! Depois ciumadas, brigas na cozinha e na copa; falava-se dele em toda a vizinhança. Era uma pouca vergonha. Nem sei como Sinhá não dava pela coisa.

É que essa gente não se importa muito com a casa, só quer saber de costureiras, de cabeleireiros, de bailes, de teatros. Agora está aí esse homem contando balelas no jornal. Eu só digo que se ele foi tão grande na política como foi virtuoso em casa... pode a senhora acreditar que não valeu nada. Enfim, como depois de morto todo o mundo é santo... deixá-lo. A senhora nunca comeu carne de boi porque no açougue tudo é vaca. Pois é assim. Eu, enfim, vou até lá. Sempre quero ver a tal estátua.

Foi uma das primeiras a chegar, acompanhou de longe toda a solenidade, com pena de não ouvir os discursos, de não poder ver bem a estátua. Mas quando a tropa desfilou, quando se retiraram as autoridades e o povo foi-se dispersando, ela adiantou-se vagarosamente, postou-se diante do monumento e, examinando a figura culminante, de fardão de ministro, braços cruzados, voltada para o mar, em atitude altiva, meneou com a cabeça desconsoladamente, murmurando:

— Qual! Este mundo, este mundo! ... Olhem que a gente vê cada coisa! ... O engraçado é que parece que o homem que fez a estátua foi o mesmo que escreveu no jornal, porque isso que está aí tanto pode ser ele como não sei que... Não vê que ele era assim! ... E pôs-se a notar defeitos no corpo, nas feições, na atitude.

De repente, apertando os olhos, teve um frouxo de riso. É que se lhe afigurara o grande homem, não como ali se achava rígido no bronze, mas em camisola de dormir, pisando em pontas de pés, descalço, sorrateiro, avançando na penumbra do quarto, apalpando-a no leito, a chamá-la baixinho, em voz abafada e trêmula: "Leocádia! ... Cadinha" ... Ouvia-lhe os estalidos dos artelhos, sentia-lhe o hálito quente.

Uma onda de sangue subiu-lhe ao rosto, o coração encheu-se-lhe de saudades, todo o seu corpo vibrou num arrepio sensual.

Então, fitando a figura imponente, pareceu-lhe vê-la transfigurar-se — e era aquele mesmo cujos cabelos macios seus dedos anediavam carinhosamente.

Suspirou e foi-se, devagarinho, passo a passo, como para não ser sentida, com receio do homem que ela conhecera tão bem, cuja voz, trêmula de volúpia, ainda lhe ressoava no coração, como reboa nos búzios o marulho do mar, lembrança de tempos idos evocada por aquela figura que se impunha no pedestal, hirta, de bronze, brilhando com lampejos de ouro ao sol.

OS SENTIDOS

Assim como não vemos o nosso rosto, ainda que nele tenhamos os olhos, também não apreciamos, com julgamento seguro, as nossas qualidades boas e más, ou sejam: os nossos vícios e virtudes. Ninguém se conhece. Inscreveram muito alto, no frontão, o que devia jazer em baixo, no limiar do templo, para que todos vissem e praticassem o ditame délfico: Nosce te ipsum.

Miramo-nos todos em um espelho e esse espelho é a opinião pública. Por ela é que nos conhecemos.

— Mau espelho, meu amigo, sempre embaciado.

— Por quê?

— Ora porque... Se o rosto for de um humilde, ainda que formoso, como o de Antínoo, ficará empanado; se for de um patife de prestígio, máscara de hediondez como o doairo de Polifemo, a feiura se esbaterá no baço da lisonja. A opinião pública será, se quiseres, uma sombra, o delineamento do perfil, sem o mais leve traço da fisionomia. Os olhos estão mal colocados. Deus deveria tê-los posto um em cada mão, na palma, e assim, não só olharíamos o mundo, como nos veríamos completamente, da cabeça aos pés e até pelas costas.

— Seria horrível! Teríamos de andar com as mãos adiante do corpo, como fazem os cegos quando tateiam.

— A propósito dos cegos, pergunto-te. Já leste "O meu universo" de Helen Keller?

— Não.

— Pois lê. Não é obra de uma vidente, mas de uma cega e surda muda. É o canto heroico de uma domadora, ou melhor: de uma civilizadora.

— Civilizadora... Por quê?

— Porque fez com os sentidos, que nós outros relegamos por inferiores, ou inúteis, o que os exploradores de sertões bravios fazem com os selvagens: educou-os aproveitando-lhes as qualidades e utilizou-os como nós nunca imaginamos que eles pudessem ser aproveitados. Nós, em verdade, só nos servimos da vista, e só a ela prestamos atenção, tanto que para os olhos apenas inventamos instrumentos de apuro, como são as várias lentes de que nos servimos; com os demais sentidos pouco nos preocupamos, ou deles até nos desinteressamos: o tato, sentido das mãos; o gosto, sentido do paladar; o olfato, sentido nasal; a audição, sentido do ouvido nada valem e se os aplicamos é com indiferença ou por voluptuosidade. Há, sem dúvida, quem se sirva de algum deles com certo carinho ou malícia. — Do ouvido, por exemplo, vale-se a curiosidade, que escuta às portas ou o diletante que se delicia com a música; do paladar vale-se o degustador, ou gourmet, que demora o bocado na boca para que as papilas lhe absorvam todo o saibo; ou o sibarita que aspira uma rosa, a essência de um frasco ou acende um pivete de sândalo para embalsamar o ambiente. São como senhores que se servem de escravos. Nós consideramos inferiores esses quatro sentidos, tudo para nós é a visão, o mais constitui um pequeno coro de acompanhamento. Helen Keller, cega e surda, tratou de aproveitar os sentidos que lhe restavam e tão bem os educou que, na treva e no silêncio, não se deu por infeliz. São palavras da grande civilizadora:

"Não me cabe dizer se é com os olhos ou com as mãos que se vê melhor, o que sei é que o mundo que eu vejo com os meus dedos é animado, brilhante e satisfaz-me. O tato dá aos cegos inúmeras certezas agradáveis que, por não ser tal sentido neles educado, não são percebidas dos videntes. Quando eles olham as coisas fazem-no de mãos nos bolsos e isso certamente concorre para que as suas observações sejam sempre vagas, superficiais, inexatas e, as mais das vezes, inúteis."

Os sentidos, pacientemente disciplinados pela extraordinária americana, serviam-na com a maior solicitude. Assim, não era simplesmente o aroma das flores que lhe chegava na travessia do jardim ou durante um passeio à mata — mas todo o olor das plantas e da própria terra, o cheiro dos troncos resinosos, das raízes recumantes, do limo das pedras úmidas, do húmus do solo, de água e até do ar no qual se difundem todas as exalações.

Ao paladar não era apenas o saibo do fruto que lhe dava prazer, como o aroma em tudo se impregnava e, assim, ela o sentia, não só no que lhe ia diretamente à boca, como por sugestão, digamos, nas menores coisas que apalpava, na própria respiração, no calor do sol, na fluência de água: e o tato dava-lhe impressões de tal modo precisas que ela tinha nos dedos tentáculos que a serviam como ao polvo e como as antenas servem a certos insetos.

E não era simplesmente a visão que ela supria com o leve roçar macio dos dedos inteligentes, mas também a audição e de que modo? pela hipersensibilidade que lhe fazia de todo o corpo um órgão subtilíssimo de receptividade, susceptível à mais ligeira vibração, como esses registradores sísmicos que acusam o mais leve arrepio da crosta do planeta, anunciando terremotos que abalam a terra a milhares de léguas. Tal era o grau de apreço em que essa deserdada tinha o tato que o maior louvor de tal sentido, que nós ingratamente desprezamos, foi por ela feito nestas palavras:

"Se me fosse proposto por uma fada escolher entre o sentido do tato e o da vista eu não consentiria em privar-me do primeiro pelo prazer que ele me dá com o contato tépido e carinhoso das mãos humanas, as riquezas de formas, a nobreza, a plenitude que se oferecem, múltiplas, às palmas das minhas mãos."

Nós somos monocultores como os fazendeiros de café — contentamo-nos com a vista, esquecendo os demais sentidos, como eles deixam em abandono o pomar, a horta, o pascigo e a pequena lavoura tão necessária à vida.

— Tudo que dizes é interessante, não há dúvida, mas se Helen Keller, por um milagre, recobrasse a luz dos olhos e visse o esplendor magnificente de uma alvorada no céu e na terra, estou certo de que esqueceria todos os sentidos educados para pôr a alma nos olhos, como em janela, e gozar o espetáculo maravilhoso do romper do dia. Quem não tem cão, caça com gato, e educar um gato para todas as caçadas, deixem lá! não há de ser fácil.

Eu também, se não visse, havia de arranjar meios e modos de andar pela vida catando sensações aqui e ali, como os cegos procuram objetos às apalpadelas. Mas a vista, meu amigo — louvemo-la como a louvou S. Francisco de Assis, louvemo-la, nós que a possuímos, porque é mais do que um sentido, é a liberdade. Helen Keller falou do fundo de um cárcere onde, assim como Silvio Pellico domesticou uma aranha para o acompanhar, ela domesticou sentidos, principalmente o tato, para comunicar-se com o mundo das sensações.

— E conseguiu.

— De longe, como se sente o mar pelo rumor da quebrança das ondas; como se sente a floresta pelo sussurro das árvores, como se beija a boca da mulher amada... ao telefone.

Mas, afinal, perdemo-nos. Sobre que falávamos nós quando a Senhorita Helen Keller nos veio interromper?

— Sei lá! Coisa sem importância. Não me lembro. Passemos adiante.

O POTRO E O SENDEIRO

Sinto que começais a aborrecer-vos com os casos que vos conto. Um poeta meu conhecido, dizia: "Quando vires alguém bocejar, cala-te para não falares em vão, porque o que abre a boca diante de um narrador está a dar saída à atenção".

Em verdade, que há nos meus casos de interessante? Nada. São fatos reais e a realidade é comezinha e triste. A própria alegria, que lhe sobrenada, é como a espuma que ferve no rebojo da onda, ou melhor — como essas flores efêmeras que desabrocham à tona dos pauis, cujas raízes se embebem em lodo.

Vamos sair para o largo, ou remontar em voo. Há um mundo melhor que o nosso, igual ao Paraíso, ao qual nos leva aquela mesma que criou a Fé: a Imaginação. Vamos a ele e divertidamente. Os que me quiserem acompanhar, interessando-se no conto, devem pôr a credulidade nos quadros da fantasia, como o enxadrista dispõe as pedras nos escaques do tabuleiro. Será um jogo. Vamos, pois, à partida. E o velho narrador começou:

Era uma vez um feiticeiro que vivia em uma caverna fazendo o Bem para conseguir o Mal. Se fazia o Bem não era com intenção generosa de beneficiar a Humanidade, senão como meio de a atrair ao pecado para entregá-la, rendida, ao seu senhor, o Diabo. Também o pescador isca o anzol, não para alimentar o peixe, mas para o prender pela gula. O que o feiticeiro espalhava era como confeitos que, sob a capa de açúcar, escondem a amêndoa amarga e, por vezes, venenosa. Assim compunha tinturas, unguentos e cosméticos, com que as mulheres se alfenam, untam e dão frescura e cor à cútis, rosam as unhas, carminam os lábios, denigrem cílios e supercílios e, fomentando-lhes a vaidade, tornava-as mais sedutoras e mais ardilosas para perderem os homens. O ouro saía-lhe em barras da covanca profunda e tenebrosa para que os homens, cunhando-o em moedas, espalhassem à rebatinha motivos de discórdia. A pretexto de consolação soltava de seu antro a Mentira e com ela todos os seus sequazes, desde a Hipocrisia, sempre rebuçada, até a Calúnia e, quando enriquecia alguém com esse só fazia centenas de invejosos, que eram outras tantas vítimas que ele entregava ao Inferno.

Ora, uma noite, achava-se o feiticeiro às voltas com os seus abracalans, quando foi procurado por dois estrangeiros: um, velho, alquebrado e quase cego, caminhando apoiado ao ombro de outro que era um robusto e garboso mancebo.

Chegando-se à presença do bruxo, interrogou-os ele sobre o que ali os levava, e o velho disse em palavras trêmulas:

— Senhor, somos dois descontentes e quiséramos merecer do vosso prestígio um favor fácil, que outros maiores sabemos haverdes feito. E o feiticeiro, acocorado à beira do fogo, a mexer, com uma tíbia, o caldeirão sortílego, que fervia borbulhantemente, ordenou em voz rouca:

— Fala! E o velho falou:

— Somos, como vedes, eu quase um centenário e o meu companheiro mancebo de pouco mais de vinte anos. Nada do que há na vida me é estranho — conheço todos os bens e todos os males, todos os gozos e todos os pesares, o avesso e o direito do que chamamos sina. Saí da pobreza, que foi o meu berço, e, unicamente à custa do meu engenho, e esforço, alcancei as maiores posses e pus o meu nome tão alto que se media quase com o do rei. O muito querer, porém, perdeu-me: quis com ambição e aventurei-me ousadamente aos mais arriscados cometimentos e aconteceu-me o que se dá com os alpinistas que tentam chegar aos cimos encobertos das cordilheiras: pisei em falso e o que me parecia um degrau para a grandeza não era mais do que uma laje frágil, de gelo, a esconder o abismo onde me precipitei.

De tudo que adquiri em tempo tão prolongado resta-me apenas a experiência. Pudesse eu pô-la agora em prática e não só restauraria toda a riqueza perdida como ensinaria aos homens segredos que lhes haviam de ser de grande utilidade. Infelizmente, porém, o corpo não me ajuda, vergado para o túmulo, como está, sempre a ensaiar-se em sonos para a Morte.

O mancebo, robusto, como o vedes, nada produz de útil, porque a alma que lhe governa o corpo só o guia para divertimentos e prazeres mofinos. Em vez de aproveitar o vigor em trabalhos esbanja-o, desperdiça-o, estraga-o em estouvanices e, assim, tanto perde em energia física como se lhe vai desmoralizando o que de divino nele existe.

Se trocásseis as nossas almas (o que vos não será difícil, porque prodígios maiores tendes realizado), tudo ficaria bem e ajustado convenientemente.

Minha alma, com o que adquiriu em ciência e prática, posta em corpo novo, realizaria verdadeiros milagres que me tornariam tanto como um deus entre os homens e a alma trefega do mancebo, encerrada em um corpo como o que lhe ofereço, de meu, farto de gozos e atido à prudência, produziria como o sábio que foge do tumulto mundano fechando-se, para estudo tranquilo, entre as paredes brancas de uma cela.

Todo o mal ou desequilíbrio da Vida resulta da má gerência do Destino. Quando o espírito amadurece em reflexão e sabedoria não acha forças no corpo para aplicar o que sabe. Assim também é raro que alguém consiga fazer fortuna na mocidade, sempre a riqueza chega a horas tardas, quando o favorecido já se não sente capaz de aventuras e o corpo só lhe pede calor de lume e conforto de leito.

Trocai as nossas almas de corpos, fazendo com que a minha se instale no do jovem e que a dele venha ficar no meu e assim equilibrareis sensatamente as duas vidas, dando a cada qual aquilo de que carece: a uma, prudência; a outra, energia.

Sorriu o feiticeiro e, anediando, de leve, a imensa e derramada barba, disse:

— Pois seja como pedes. Para isso, porém, é necessário que eu vos adormeça, aos dois, porque a operação exige tempo e vagar. Ao despertardes tereis o que a ambos vos parece de bom conselho. Acederam os dois na proposta do feiticeiro e este ainda lhes disse, antes de iniciar o trabalho:

— Ficai, porém, avisados de que o que for feito, como sair ficará até a morte. Ainda que vos arrependais não me será possível desfazer a troca, restabelecendo as vidas como as confiais.

— Não nos arrependeremos! disseram os dois, contentes.

A alma do octogenário, logo que se sentiu no corpo do mancebo, foi tratando de lhe experimentar o vigor. O corpo, porém, com o estuo do sangue, em vez de atender ao que lhe impunha a experiência anciã, pôs-se logo a caminho dos prazeres: bailes, banquetes, jogos e alegres noitadas de amor. E a pobre alma, fatigada de tais andares, desandou a brados, arrependida:

— Senhor! Senhor! Por quem sois! devolvei-me ao meu velho corpo. Não posso com o que me destes. E o feiticeiro, fazendo-se ouvir no vento:

— Onde viste um velho domar potros? Assim quisestes, ainda que avisado. Pois, meu caro, aguenta-te enquanto puderes. Pouco se aguentou que não caísse nas profundas dos Infernos, onde era esperada em caldeira acesa. Por sua vez a alma trefega do moço...

Mal se achou na carcaça do macróbio, com todos os ardores próprios da juventude, ainda que a encontrasse combalida, tanto lidou com ela, tanto a estimulou que a miséria lá foi aos trancos, tropeçando, bamba. Pouco, porém, avançou e, horas depois da saída, tombava inerte e, onde caiu, ai mesmo exalou de si o último suspiro:

E eis a alma jovem a bradar:

— Senhor! Senhor! o corpo que me destes traiu-me, mal o pus em caminho logo arriou esfalfado, e assim como caiu ficou. E a voz do feiticeiro passou assoprada no vento:

— Onde viste, mancebo, um sendeiro resistir ao peso de tamanha carga, como a que lhe puseste em cima? Quisestes, tu e o velho tonto, tentar uma experiência e com ela só lucrou o inferno e lucrarão no mundo os que dela tiverem notícia, porque assim não haverá ridículos de velhos a quererem figurar de moços nem hipocrisias de moços aparentando sisudez de velhice.

Tudo se deve fazer segundo o seu tempo e de acordo com ele.

HOMENS E RELÓGIOS

Com a lente encravada na orbita o velho Borromeu examinava atentamente o machismo de um Patek, Filipe, quando Tibério irrompeu na oficina bradando, desde a porta:

— Bolas! É demais! Tanta injustiça assim revolta, faz com que um homem perca a fé. E, com um gesto violento, arremessou alguma coisa ao chão, sentando-se estabanadamente em um tamborete de esparto, onde, à noite, saboreava o café da amizade, comentando o noticiário dos jornais da tarde.

Era a sua cachacinha de noveleiro. Borromeu não tinha o direito de receber informações de outro e se, por distraído, sucedia-lhe, alguma vez, ao ouvir Tibério sobre qualquer novidade, afirmar com a sua voz pachorrenta: "Já sei" ou "Ouvi dizer", o velhote encarava-o de má sombra, pálido, remordendo o beiço e, girando nos calcanhares, resmungava: "Se já sabes, melhor pra ti. Boa noite"! E não havia contê-lo.

Borromeu, ainda que um caso se passasse diante dos seus olhos, guardava discreta reserva para não desgostar o amigo de tantos anos.

Na revolta dos marinheiros, apesar de uma bala de fuzil lhe haver entrado em casa espatifando-lhe o mostrador de um dos relógios de parede, excelente regulador suíço, quando Tibério lhe apareceu na oficina, esbaforido, comunicando-lhe a mashorca e a disposição em que estava João Cândido de varrer a cidade a metralha, e as providências que tomara o governo para dominar o rebelado, fez-se alheio a tudo, dando mostras de espanto ao ouvir a narração que, com exagero, lhe fazia o amigo, descrevendo a mortandade e o pânico em que a população abalava espavorida; acossada pelo tiroteio.

Tibério, porém, compreendeu que o relojoeiro fingia ignorância para agradá-lo, e avançando, em impulso de gratidão, estendeu-lhe comovidamente a mão agradecendo a grande prova de estima que lhe dava, afetando ignorar o que o canhoneio propalava a estrondos, desde a orla das praias até os mais remotos subúrbios.

— Obrigado, meu velho. Agora convenço-me de que és verdadeiramente meu amigo. Olha que é preciso mesmo que o sejas para dizeres que não sabes que estamos de baixo do fogo dos dreadnoughts. Dá cá um abraço. Dando, porém, com o relógio, cujo mostrador fora reduzido a escassilhos, perguntou:

— Que foi aquilo? O relojoeiro esteve por um tirte a dizer a verdade, mas conteve-se, respondendo:

— Homem, Tibério, se queres que fale com franqueza, acho que foi alguma bala que se perdeu aqui na oficina. Eu estava a trabalhar quando ouvi um estardalhaço. Não dei importância ao caso e continuei na minha tarefa. Agora, porém, com o que me dizes, quero crer que tenha sido alguma bala. Os olhos de Tibério encheram-se de lágrimas. Grande amigo! Nessa tarde, porém, com aquela entrada de furacão, levantando a cabeça e desentalando a lente da orbita, Borromeu encarou o amigo com verdadeiro espanto:

— Que é isso, homem? Que te aconteceu?

— Que me aconteceu?! Ainda perguntas...! Estou até aqui, e agadanhou o gasnete. É demais! Ouve e dize-me se tenho ou não motivo de sobra para revoltar-me, até para mudar de religião. Tanta injustiça assim dói! Não sei que má sorte me persegue. Sou um homem de bem, religioso, incapaz de praticar um ato de que venha a ter remorso. Uma vez resolvi confessar-me... Pois, meu amigo, fui à igreja, ajoelhei-me diante do Padre e, para não fazer figura triste, inventei uns pecados, porque no ativo da minha consciência não achei coisa que valesse a pena referir. Pois, com tudo isso, sou o mais infeliz dos infelizes. Tudo me sai às avessas, e patifes que conheço, patifes rematados, réus de polícia egressos da cadeia, assassinos, larápios, caluniadores, maus filhos, esposos infames, pais indignos estão ai a subir como balões, enriquecendo não se sabe como, impando importância, falando grosso, grandes senhores, e se tentam um negócio é contar na certa com o êxito e ainda com sobras para os parentes e joias para as amantes. Eu estou à espera de uma vaga no quadro dos fiscais do imposto de consumo desde a criação de tais cargos: comprei não sei quantos milhões de marcos e tu sabes em que deram os tais papéis; menti-me ai em um negócio de câmbio e perdi até o jeito de andar; tentei o bicho e só acertei naquele que apanhei no pé, no piquenique que fizemos em Paquetá. Na loteria é o que se vê. Tens ali a prova. E mostrou, com desprezo, o papelucho que atirara amarfanhado ao chão. É o 3941, saiu branco. Pois o 1493 tirou os quinhentos contos.

— Mas não compreendo, Tibério. Que tem o 3941 com o 1493?

— Que tem? Pois não vês? É o meu número às avessas. Que é isso? Se a coisa tivesse corrido direita a esta hora eu seria meio milionário e associar-me-ia contigo, não nesta baiuca de cacaracá, mas em uma grande relojoaria na Avenida. Não está certo. Deus não é justo, dando a uns tudo e deixando outros em petição de miséria. Não compreendo tais preferências.

— Não blasfemes, Tibério. Deus não tem culpa do que se passa cá embaixo. Ele cria os homens, o mais é com eles. Isso de sorte, meu amigo, é como maquinismo de relógios. Olha aí para essas paredes e aqui para o mostrador do balcão. Tens vários tipos de relógios, alguns de excelentes marcas, das mais reputadas fábricas que, entretanto, não valem um caracol. São muitos, eu acerto-os de manhã, pois ao meio dia já não estão de acordo: uns adiantam-se, outros atrasam-se; param alguns, emperram às vezes, até desandam. E queres saber? o que melhor regula é um despertador vagabundo, um alcaide pelo qual ninguém dará cinco mil réis. É assim, meu amigo.

O relojoeiro não tem culpa do que se dá com os relógios. Os maquinismos têm todos as mesmas peças, montadas na mesma ordem, entretanto uns são excelentes, outros são pinoias, como este Patek que aqui vês, incrustado de brilhantes e rubis, que eu já desanimei de corrigir. É uma joia, mas não regula, e a minha cebola de latão é o que sabes. De quem a culpa? do relojoeiro? do maquinismo? sabe-se lá! de um mistério qualquer que, se fosse em homem, chamaríamos sorte, mas como é em relógio chamamos-lhe defeito. Eu, se fosse o marido da dona deste Patek, que não me sai da oficina, já o teria vendido, apesar de todas as pedras preciosas e do lindo cinzelamento que o adornam. És um homem virtuoso, mas... estás nas condições desta espiga, que eu não troco pela cebola de latão que achas ridícula. Os homens são como os relógios, Tibério: todos da mesma fábrica, uns bons, outros maus; uns felizes, outros infelizes. A culpa não é do fabricante, é de não sei que... Mas isso que importa se o Tempo passa com a mesma indiferença tanto sobre o que se atrasa como sobre o que se adianta. És um homem virtuoso, como esse Patek é uma joia de preço, mas, como ele, não regulas. É isso. Mas vamos a saber: Que há de novo? Tibério, porém, que ainda não lera os jornais da tarde, depois de passear os olhos pelos relógios de parede, todos em desacordo, uns adiantados, outros em atraso, e o maior mazorramente parado, respondeu resmungão:

— Tudo velho, Borromeu.

— Grande verdade, meu amigo. Tudo velho, como nós, ou melhor, como a vida.

— Como a vida, não, Borromeu. A vida, quanto mais envelhece, mais se renova. Nós passamos, ela fica.

— É o relógio, Tibério, e nós somos as horas.

— Falas como relojoeiro.

— E como queres que fale senão em linguagem do meu ofício? Só entendo de relógios, e deles tiro o pão e a minha filosofia de algibeira.

CORAÇÃO DE OURO

Ouvindo o suspirar plangente de Isolina, que recolhia a roupa do coradouro de lapido, na raiz da pedreira, ao fundo do cortiço, Dionísia, que deixara o tanque e caminhava muito rebolida, raspando vagarosamente a espuma dos braços entroncados, repreendeu-a com a sua voz marimacha, sempre soando a mau humor:

— Está a senhora aí a agourar o homem. Deixe-o lá, criatura! Isso de mais hora, menos hora não quer dizer nada. Eles, lá de vez em quando, tiram os seus dias forros. É natural. Quem trabalha precisa divertir-se. O meu — e é um homem de peso, graças a Deus! — as duas por três perde a medida e aparece-me em tal estado que eu até tenho vergonha do pequeno. Já uma vez andou por aí a bater de casa em casa sem atinar com a porta. Foi preciso que eu o fosse buscar e quase o trouxesse em braços para não ficar ao tempo, estendido na lama, entre as carroças. Pensa que me zango com tais farras? Acho-lhes até graça, palavra. Rio-me de o ver baboso, a tropeçar nas cadeiras, muito delambido comigo. É para o que lhe dá. Santo nenhum deles é. Cada qual tem lá o seu fraco — este é a pinga; aquele é a sota. Pior é quando eles dão para andar por aí atrás de rabos de saia. Isso sim! Isso é que é desgraça! A mim tanto se me dá como se me deu. Pinte à vontade, contanto que não me falte com o necessário, a mim e ao pequeno, o mais... Quer que lhe diga? eles, quanto mais aperreados, pior. Então é que viram duma vez. Deixe-o. Não se esteja aí a amofinar. Quando lhe apertar a saudade, que é como uma fome do coração, ele voltará, tão certo como estarmos aqui e Deus no céu.

— Mas a senhora pensa que é ciúme, sá Dionísia?

— E não é? Ora morda-me aqui, e estendeu- lhe o indicador. Também eu já tive disso. Dor de canela, e da boa!

— Não é. Juro por Deus!

— Então que é?

— Medo, sá Dionísia. É medo.

— Medo!? Medo de quê, criatura? Está tudo sossegado. Não se fala mais em prisões. Medo de quê?

— Há tanta maldade neste mundo, sá Dionísia... Tanta! Depois... a senhora não vê? são desastres todos os dias, uns atrás dos outros, crimes... Eu, outro dia, já não gostei de achar a camisa dele manchada de sangue. Perguntei se tinha se machucado, se havia brigado. Nada! É um homem esquisito como a senhora não imagina. Por mais que eu lide para lhe arrancar uma palavra, é escusado: não fala.

— São burros. É como o meu. Mete-se a um canto a pensar, a matutar e acabou-se. Às vezes nem janta. Burros!

— Não. Em Manoelzinho é tristeza, tristeza à toa, não sei. Porque, não é por falar, mas se a senhora quer ver uma criatura de bom coração é aquela. É capaz de tirar a camisa do corpo para dar a um pobre. Mas também gênio, Nossa Senhora! ... gênio é ali! Porque é que eu evito sair com ele? Queima-se com qualquer coisa. Disso é que eu tenho medo. Uma vez, quando morávamos no Pedregulho, só porque, uma noite, num mafuá, um moço boliu comigo... a senhora não imagina! Foi um tal tempo quente que eu não sei mesmo como não fomos parar na Polícia. É uma fúria! Isso é que me dá que pensar, o mais, não. Ciúme de mulher... Encolheu os ombros esticando o beiço em gesto de desprezo. Depois o serviço dele sempre de noite, até as tantas... Sei lá! Só peço a Deus que tenha pena de mim.

— Ele é da Polícia, não? Perguntou Dionísia com mistério.

— Olhe, Sá Dionísia, para falar verdade, eu mesma não sei. Acho que é. Mas como eu lhe disse — ele não fala. Chega sempre de madrugada, às vezes já com o sol fora, cansado que faz pena; toma uma xícara de café, que ele mesmo faz na máquina, deita-se e é um sono de pedra. Quando acorda vai logo brincar com o filho. É doido por ele. De dia sai pouco. Aqui fora mesmo é raro aparecer. Não se dá com vizinhos, sempre metido consigo. Amigos... que eu conheça só um, Tito. Esse mesmo há muito que não aparece. Acho que foi pra fora.

— E para a senhora?

— Para mim? Olhe, eu lhe digo — eu não podia encontrar homem melhor. Nisso não tenho inveja de ninguém. Fui casada, como a senhora sabe, nunca tive razão de queixa de meu marido — homem sério, trabalhador, mas felicidade, felicidade eu vim conhecer na companhia de Manoelzinho. Nunca teve um mau modo, uma palavra pesada; não é homem de beijos nem de abraços, isso não é, mas é o que eu quero, custe o que custar. Se eu trabalho, acredite, é contra a vontade dele. Mas eu não sei estar à toa, com uma mão atrás, outra adiante. Hei de fazer sempre alguma coisa. É assim. Tão bom, pode haver. Melhor, duvido.

— Então porque há de estar a senhora aí imaginando coisas? Deixe lá o homem.

— Se eu lhe contasse os sonhos que tenho tido ultimamente...

— Sonhos... e a senhora dá importância a sonhos? Sonhos são brincadeiras do sono. Se eu me fiasse em sonhos estava arranjada.

Escurecia. Rolos de nuvens cor de chumbo sotopunham-se no céu como fumarada de incêndio que viesse vindo de trás do monte. Um calor de fornalha subia da terra seca. Começou a soprar uma bafagem morna. De repente foi um bater estrondoso de portas e janelas, fraldejar de roupas nas cordas, torvelinhos de folhas secas e papéis; a poeirada espessa. Palmas de coqueiros vinham pelos ares como penas de aves gigantescas. Surdos, trovejantes rumores precediam a tempestade anunciada pelo calor estuante do dia de uma luz amarela de fogueira.

Carroças entravam aos tropelões solavancando na buraqueira do pátio, esbarrando; em calhaus rolados da pedreira escalavrada. Tendas de canteiros, soltando-se dos pegões que as prendiam ao solo, trapejavam estaladamente com a fúria da ventania.

As lavadeiras corriam em alvoroço retirando as roupas das cordas, recolhendo-as do coradouro. Acudiam crianças de todos os lados como aves acossadas demandando os ninhos. E entravam ambulantes caminhando a trote sacolejado — quitandeiros com os cestos averdurados, peixeiros e operários. Era contínuo o taroucar de tamancos e, com o grazinar do falário assustado, misturava-se o latido alegre da cainçalha que parecia divertir-se com a espavorida balbúrdia.

Burros soltos espojavam-se na poeirada ou reuniam-se em volta do bebedouro. Relâmpagos fremiam, lívidos. Apareciam mulheres às portas das casas ansiosas pelos maridos e os trovões aproximavam-se soturnos; coriscos laivavam o brumo do céu.

Isolina e Dionísia desciam juntas equilibrando à cabeça trouxas de roupa, quando um velho quitandeiro, que estivera à porta conversando muito afreimado, ao ver Isolina estacou surpreso. Tirou o cachimbo da boca e ficou-se a olhar franzindo, desfranzindo o rosto em esgares. De repente, como se respondesse a uma pergunta, curvando-se diante de Isolina, atirou-lhe como um escarro à face:

— Foi preso... Eh! Preso!

— Quem? perguntou Dionísia intrigada. O velho sacudiu a cabeça arremetendo de queixo, como em esporada a Isolina. Então, arriando os cestos, afastou a tampa de um deles, desatafulhou um jornal amarfanhado e, abrindo-o, mostrou-lhe na primeira página, entre extensos dizeres em grandes letras negras, o retrato do amante e, em baixo, uma mulher de borco aos pés de uma cama revolta.

Isolina estremeceu reconhecendo Manoelzinho e, no arrebatamento com que se precipitou, arrancando o jornal às mãos do velho, a trouxa tombou-lhe da cabeça rolando em um lameiro.

Chegando muito aos olhos a folha, tremia boquiaberta encarada na gravura, no seu "homem" esgargalado, de catadura feroz, como o vira na sena do mafuá, tal qual. Súbito, levando às mãos à cabeça, a apertá-la, a sacudi-la desesperadamente, rompeu em pranto e, dirigindo-se a Dionísia, que se estatelara em espanto, recordou-lhe:

— Eu não lhe disse que estava com medo dos meus sonhos? Não disse? Está aí! Mataram o meu pobre Manoel! Mataram Manoelzinho! Coitado! Um homem tão bom, que não fazia mal a ninguém! ... Sentindo a indignação de todo o cortiço, Dionísia afastou-se sorrateiramente, aproveitando-se da angustia da companheira e, ganhando distância, apressou o andar rebolido, a fugir, com as saias em revoluteio às lufadas do vendaval.

Ouvindo-a em tais exclamações o quitandeiro olhava em volta, airado, como à procura de alguém. Apesar da ameaça do tempo gente apinhava-se em grupos comentando o caso. Crianças corriam com a notícia, apontando Isolina que se lastimava, interrogava o velho agarrando-se-lhe aos braços em frenesi.

— Mas por que foi? Diga, pelo amor de Deus! Porque foi que o mataram? O velho, então, com um riso idiota no carão moreno, rilhado a traços que se vincavam a mais e mais, desabafou:

— Não... E com o grosso dedo sujo, de unha negra, mostrou os títulos, a figura trágica da mulher tombada numa poça de sangue, junto à cama. E disse: Ela, não. Foi ele que matou... e é o matador de mulheres. Não está vendo aí? Ele está preso. Confessou tudo. Essa foi a terceira. Era russa, dessas... Ele está preso. Isolina olhava estarrecida, sem compreender o que ouvia:

— Manoelzinho? ... Matar? Não! Digam o que disserem. Não acredito. E logo uma mulher. Ainda se fosse em briga... Não! Manoelzinho, não.

Grossas gotas apedrejaram o solo. Uma muralha baça avançava com um surdo rufo. O quitandeiro agachou-se, tomou aos ombros o pau de carrego e foi-se a trote, sacolejando as cestas. E a chuva desabou torrencial, com estrondo. E dentro do ambiente fosco, esfuziado a relâmpagos, Isolina bradava desnorteada, sem sentir a tempestade que a zurzia a vergalhadas de água, cada vez mais ríspida, trovejada estrondosamente a detonações de raios.

CONSPIRAÇÃO

— Não sei de conspiração mais ardilosamente urdida do que essa de que foi vítima, e ainda o é, o pobre velho. Um novo Lear e mais assediado do que o outro, porque, se não tem os genros, tem a mulher, a filha e um médium.

— A mulher conheço eu: é uma espécie de walkiria com cabeça de Medusa.

— Qual walkiria! Não injuries as amazonas aéreas — é uma virago horrenda, bruxa de quimbandes, sempre com mandingueiros, frequentando candomblés suburbanos e pajelanças aí por esses morros. De uns tempos a esta parte meteu-se a espírita e celebra sessões em casa, não por fé, mas com o fim único de dar cabo do que resta de juízo na cabeça do marido, se é que ainda há vislumbre de razão naquela cachola avariada. Por que me olhas assim espantado?

— Pois tu! exclamou Viveiros cruzando os braços e encarando Máximo com ar de assombro. Tu, falando contra o espiritismo!

— Perdão, eu não falo contra o espiritismo. De resto, mais uma vez o digo, e não cessarei de o repetir: os que me tomam por espirita enganam-se. Eu sou o que sempre me inculquei — um curioso que ronda uma cidade misteriosa, de altas muralhas, dentro das quais há uma população como a do país cimério. É uma Tróia.

— À espera de um Ulisses com um calo de pau.

— Não, à espera de um predestinado que descubra a chave do arcano para abrir a porta que nos separa da outra Vida.

— E tu ainda não encontraste brecha ou fenda nas muralhas por onde, ao menos, espiasses o que se passa dentro de tal cidade?

— Não. Sinto entretanto, que há nela vida.

— Vida há em tudo, meu amigo. Os cadáveres, quando apodrecem, refervem em vermes: vidas que saem da morte. A matéria reproduz-se por transformações sucessivas. O homem é larva.

— Larva, dizes bem. A borboleta é a alma: Psique. Mas deixemo-nos de filosofia de algibeira. Vamos ao caso do comendador Marcelo. Viste-o?

— Creio que sim. É um jagodes achaparrado, calvo, com uma beiçola trombuda que lhe dá o aspecto de um botocudo, olhos de carneiro morto...

— Imbecilizado. É esse mesmo. Pois foi um homem! digo-te eu; uma das figuras de maior realce do nosso comércio. A primeira firma em ferragens e tintas. Está reduzido ao que viste: um frangalho que trambolha pela casa, servindo de joguete à família e a um tal Fabiano, que se diz médium, refinadíssimo patife, que já devia estar numa cela correcional. Anda por aí a polícia à caça dos vendedores de cocaína, ópio, diamba, éter e outras drogas, e deixa livres esses envenenadores de almas e profanadores de uma ciência que começa a surgir e que será a grande Verdade em dias próximos, a "Boa Nova" esperada pela Humanidade. Os que se interessam sinceramente pela metafísica não podem aceitar as práticas de que se servem os mistificadores, que são hoje legião. Fabiano é um dos tais que vivem à custa da ingenuidade dos simples, iludindo-os com passes e fantasmagorias, invocações de mortos, prodígios que só podem ser tomados a sério pelos papalvos que lhe frequentam a casa que, segundo afirmam, é uma verdadeira gruta de necromancia, como a caverna de Endor. Fabiano foi o instrumento de que se serviram as duas criminosas mulheres para reduzir o comendador ao estado em que o viste. E como? De um modo que seria cômico se não fosse horrivelmente trágico. Contou-me a lúgubre história o Estevão, meu atual chauffeur, que foi criado do comendador. Despediram-no porque o rapaz, que estimava o velhote, um dia revoltou-se contra a tortura que lhe infligiam e, como o tal médium lhe saísse com arrogâncias, respondeu-lhe com um par de taponas que o deixaram de cara à banda. Eis o caso tal como me foi contado. As duas mulheres, irritadas com a sovinice do velho, que trazia sempre o seu dinheiro bem contado, resolveram domá-lo e puseram-se a estudar o melhor meio de o fazer até que lhe descobriram o fraco e entraram por ele a fundo.

Arredado do negócio, mas com o hábito da ordem, o homenzinho às seis da manhã já andava pela casa, a ver uma coisa e outra, a arrumar gavetas, a arrolar papéis, pondo cada objeto em seu lugar e ninguém lhes tocasse, que isso o fazia dar por paus e por pedras. Se lhe desaparecia qualquer coisa vinha o mundo abaixo e, enquanto não davam com o objeto não havia descanso em casa — era a família, eram os criados, tudo em alvoroço por uma tesoura de unhas, um lápis, uma carta antiga, uma simples nota, fosse lá o que fosse. Pois foi por essa mania que entraram os conspiradores.

Começaram a sumir objetos — um hoje, outro amanhã... e o velho pelos cabelos. Um dia desapareceu-lhe uma espátula de tartaruga, espátula com que, momentos antes, ele abrira uma carta. Escusado é dizer que a casa foi revirada canto por canto, móvel por móvel. O que houve não me disse o Estevão, mas é fácil adivinhar — sugestão das mulheres, preparo hábil da alma do pobre velho para a traça do intrujão.

Na noite seguinte lá foi ele para a primeira sessão, a portas fechadas. E a espátula apareceu em um canteiro do jardim. Depois da espátula foi uma série de coisas e o médium fez-se da casa, ficou como empregado, com obrigação de receber bons espíritos que indicavam os sítios onde os obsessores ocultavam os objetos. O que, com tais manobras, ele perdeu e nunca mais achou, nem achará, foi o juízo. Lá está como o viste — uma sombra a errar pela casa, enxotando espíritos, seguido sempre do médium, que o defende dos tais obsessores. E lá anda ele a procurar coisas perdidas, e o médium, a engordar, a encher-se de dinheiro, enquanto as duas mulheres, que compraram um landaulet, vão a tudo em grande luxo — a chás, a espetáculos, corridas, jogos, gastando a mãos rotas o que o velho ajuntou em quarenta anos de trabalho pertinaz. E ele, o coitado, não come, não dorme, não para, sempre pela casa resmungando, coscuvilhando, a procurar coisas imaginárias que os tais obsessores (a mulher e a filha, já se vê) escondem e o que o médium, com os seus auxiliares do Além, logo descobre.

Que merece tal súcia? E é assim que se mata uma ciência no nascedouro, como se pisa e acalcanha um rebento mal saído do gérmen.

Não me insurjo contra o espiritismo, ou metapsiquismo, que é uma pesquisa honesta, revolto-me, sim, e protesto contra os que o exploram, contra os profitentes, que os há em todas as seitas, em todas as religiões como há parasitas nas árvores mais fortes.

— E são os únicos que lucram em tudo isso.

— Os únicos, não! A melhor parte será sempre a dos honestos. Nem todos são da laia daquele Fabiano e daquelas mulheres. Fariseus há-os em toda a parte... Mas vamos ao nosso chá. São horas.

À HORA DO RÁDIO

O que impressionava naquele homem não eram propriamente as palavras, mas o tom, a serenidade com que ele as pronunciava vagarosamente, formando as frases como um enxadrista meditado dispõe com segurança calculada as pedras no tabuleiro.

Quando ele começou a falar fez-se-lhe em volta um silêncio religioso. As próprias senhoras, que sempre cochicham e acham motivos para sorrir, acotovelar-se à socapa, trocar olhares críticos, ainda no discorrer dos mais graves assuntos, mantinham-se quietas, atentas como se ouvissem um oráculo. E ele dizia:

— Duas causas concorrem para a desordem que, de uns tempos para cá, observamos no mundo e na vida — uma física, outra espiritual. Estamos assistindo a um combate comparável ao que, segundo a mitologia, provocaram os titãs, filhos da Terra, contra Zeus e o Olimpo e os povos bíblicos com a desmedida mole com que pretenderam chegar ao céu.

Sabe-se o que aconteceu aos gigantes e aos homens — uns foram fulminados a raios, ficando soterrados sob as próprias montanhas que escalonavam; aos outros, confundiu o Senhor as línguas, de modo que, por se não entenderem, tiveram de suspender a obra de tanta arrogância. Como havemos nós de explicar essa série contínua de cataclismos que ameaçam subverter o mundo — ciclones, terremotos, enchentes de rios, erupções vulcânicas, descidas de gelos polares, quedas de aludes, que sei eu! senão como represália dos poderes divinos contra o que o homem está realizando, cada vez com mais audácia? Os oceanos, dantes apenas aflorados na superfície ou, quando muito, penetrados por mergulhadores em demanda de pérolas, são agora varejados nas suas profundidades obscuras por submarinos. O espaço tornou-se acessível ao homem, que por ele anda como o pássaro e a nuvem. As forças ocultas da natureza são hoje conquistas servis que executam docilmente tudo que delas se exige. A atmosfera presta-se a conduzir o som, as palavras.

Hermes, o antigo, mensageiro dos deuses, com azas no galero e no calcâneo, faria tristíssima figura, com o seu caduceu, se tentasse disputar velocidade com as antenas transmissoras. Os sons transitam de um país a outro com a celeridade do pensamento — os antípodas podem conversar ou fazer ouvir os seus cantares e músicas como o fazem, no campo, pastores em malhada, reunidos em volta de uma fogueira.

Ora, meus amigos, a Natureza reage contra os que a violam. Isis não consente que se lhe arranque o véu da face e os que tentam tal profanação pagam caro o atrevimento.

Se os mortos milenares se rebelam contra os que invadem os hipogeus, onde jazem, como vimos com os que trouxeram da escuridão ao sol a múmia de Tutancâmon, quanto mais as forças vivas, as forças eternas que nos cercam, servindo-nos, mas livremente, misteriosamente e não escravizadas como as queremos ter.

Até onde pretende levar o homem a sua audácia? Pelas minas desce ele às mais profundas entranhas da terra, abisma-se nos mares, eleva-se em voo ao éter e já cuida em traçar roteiro para comunicar-se com os planetas, seguramente com o plano interesseiro de os conquistar, senão como presa, ao menos para neles criar mercados e implantar os seus costumes e hábitos, estragando-os de uma vez. Pois essas catástrofes, que abalam o nosso velho mundo, para mim não são outra coisa senão revoltas da Natureza que reproduz vingança, como as tomaram Zeus e Javé, nos tempos primitivos, contra os hecatônquiros e os filhos de Cain.

O homem não se contenta com o que teve, porque não consta que Deus lhe houvesse dado direito sobre toda a criação, limitando o dote ao Paraíso e ao que no mesmo se continha. O homem está querendo mais do que deve e, para obter o que a ambição lhe sugere, furta a Deus, como pretendia fazer com o fogo o que foi agrilhoado no monte, deixando, todavia, o exemplo da sua insubordinação temerária para que os homens o imitassem, como o estão imitando.

A terra, o ar, as águas estão impregnados de fluídos, fluídos que foram atraídos ao nosso habitat e que, dentro em pouco, tornarão o mundo inabitável.

Não há muito revoltamo-nos contra a cadeira elétrica, na qual a Justiça yankee assentou três condenados, e estamos preparando um ambiente eletrizado para viver até que um curto circuito, ou outro destempero qualquer, dê com tudo isto em pantana. E será a vitória da Natureza.

— Acha o senhor, então, que estamos arriscados a desaparecer?

— Tão certo como nos acharmos aqui no mais elegante e civilizado salão do Rio, atordoados pela vitrola do vizinho, enquanto o Salustio prepara o rádio para ouvirmos o concerto que hoje realiza, em Nova York, a nossa Guiomar Novais.

Houve um instante de silêncio em que todos pareceram recolher-se meditando as trágicas palavras do homem impassível. A vitrola do vizinho atroava à noite com a voz póstuma de Caruso.

Por fim uma das senhoras perguntou:

— E a outra causa, a espiritual, que concorre para a desordem da vida?

— Ah! sim... a grande guerra. Li, não sei onde, um comentário que me impressionou profundamente. E eu não sou dos que se impressionam com qualquer coisa.

Como sabem, contam-se por alguns milhões os combatentes que pereceram na guerra. Os espíritos, ou almas de tais heróis, espalharam-se no espaço como se dispersam, atônitas, as abelhas quando lhes crestam o cortiço. E esses enxames de almas, partidas antes de haverem completado o seu destino na vida, almas violentadas pela morte, erram, vagueiam atordoadas, procurando pouso onde assentem para cumprir a genitura que traziam. Que resulta de tamanho desbarato, de tamanha confusão? resulta o que vemos: a desordem moral no mundo.

Como pode haver calma onde esvoaça toda uma vespeira? Como pode haver tranquilidade em um ambiente alvoroçado de espíritos?

E até que todos assentem, reentrando em novos corpos, ressurgindo em novas vidas, reencarnando-se, digamos, o mundo há de ressentir-se da tumultuosa confusão e só repousará com o Renascimento ou volta à vida dos que dela partiram de surpresa, expulsos antes de haverem realizado a missão em que haviam baixado.

Assim se explica o que vemos, o que sofremos, o torvelinho em que nos atordoamos, o caos em que nos debatemos, as crises que deflagram aqui, ali, alhures atormentando o Homem com os males da fome, do frio, das enfermidades, da desarmonia e com o desvairo.

— E não lhe parece que também concorrem para esses males a cocaína, a morfina...?

— O cinema, resmungou uma matrona enfezada...

Felizmente Salustio interrompeu a palestra anunciando que o rádio estava pronto e em comunicação com o Metropolitano de Nova York, onde Guiomar Novais realizava o seu primeiro concerto da estação.

O PRÍNCIPE LEPROSO

Dos soberanos da terra, o mais feliz entre os felizes, era, sem dúvida, o do reino dos Arômatas, país de tão ameno clima e de tanta fertilidade que todas as produções, desde as que pedem ardência de sol, e só medram nos trópicos, até as que exigem o rigor mais áspero das neves eternas, nele eram em tal abundância que os seus portos estavam sempre atravancados de navios, carregando para todas as partes do mundo cereais e ouro, frutos e rebanhos, lenhos de aroma, essências e ainda pérolas que mergulhadores traziam do fundo do mar, gemas extraídas das rochas ou tomadas nas areias dos rios e sedas e tapeçarias em que eram exímios os seus artistas.

A numerosa esquadra e o exército de dois milhões de guerreiros garantiam a paz do reino, mantendo à distância os que o olhavam cobiçosamente. Não havia esse, ainda o mais humilde, que se queixasse de penúria, porque, na abundância, as obras eram tantas que o dá-las de mão a mão era tão natural como o transbordo dos rios nas cheias do inverno.

Não eram, porém, tais riquezas que atraíam para o reino a atenção do mundo, senão o que se dizia da beleza do príncipe herdeiro.

Aos seis anos tais eram nele os encantos, que vinham forasteiros de além mar, afrontando perigos de escolhos e tormentas, para terem o prazer de o ver e admirar quando, de manhã e à tarde, para alegria do povo, ele aparecia entre alas e pajens, no alto terraço do palácio.

E tamanha era a impressão que de tal vista levavam que iam pelo mundo espalhando louvores à beleza do príncipe maravilhoso.

Um dia, porém, ao entrar na câmara em que ele dormia, e ao tomá-lo nos braços para beijá-lo, a rainha descobriu-lhe nas faces estranhas manchas vermelhas, como duas rosas que nelas houvessem nascido.

Duas rosas! ... Os deuses ciumentos, sentindo que o príncipe lhes prejudicava o culto, porque o povo, em vez de ir aos templos, acorria às imediações do palácio, resolveram destruir a obra perfeita, em que tanto se haviam esmerado para premiar a virtude dos reis, que eram justos e generosos. E o príncipe, de um dia para outro, todo se cobriu de uma crosta asquerosa, tornando-se quase negro e inchado, ficando-lhe o corpo como o de um afogado que se retira dentre os lúridos juncais de um lago: roxo, túmido e picado dos peixes. Era a lepra.

Desde então a alegria desertou o palácio, em volta do qual foram as patrulhas redobradas, afim de que ninguém nele entrasse nem saísse, e o lúgubre acontecimento jazesse em segredo.

O povo, porém, não vendo aparecer o príncipe, entrou a desconfiar do resguardo e logo, por toda a parte, foram murmurações, murmurações que subiram de ponto no dia em que um palanquim fechado atravessou apressadamente a cidade, em direção ao palácio, entre cavaleiros armados de lanças e de alfanjes.

Quem seria? As conjecturas sucediam-se, nem uma, porém, acertada. Fossem lá adivinhar que o oculto do palanquim era um astrólogo, que lia na luz das estrelas e que fora chamado para consultá-las sobre a doença do príncipe.

— Ficará curado e com toda a beleza, disse o mago, depois de quatro noites de vigília na torre mais alta, se o banharem em lágrimas nascidas num coração.

Trezentas embaixadas foram expedidas em demanda de tão difícil remédio, com promessas de honras e riquezas e carta branca para praticarem tudo quanto fosse necessário para aquisição da misteriosa medicina.

E os emissários partiram, cada qual a seu rumo.

A ânsia em que ficaram os reis fazia que os dias lhes parecessem mais longos e revoltavam-se contra a morosidade do sol, que tanto custava a esconder-se atrás das montanhas. E as noites pervigilas, como se arrastavam nas horas!

Uma manhã, porém, atalaias que vigiavam nas muralhas da cidade, anunciaram a chegada de três apenas dos enviados, que, do restante, nunca mais houve notícia.

O primeiro introduzido em palácio, prostrando- se reverentemente ante o trono, falou em palavras confiantes:

— Majestades, com as ordens de que me armastes, abri milhares de peitos arrancando de todos o coração palpitante. A dizer verdade, por mais que esvurmasse, em nenhum achei lágrimas. Trouxe, porém, as que recolhi dos olhos dos que choravam pelos martírios de que eram testemunhas — lágrimas de mães, de esposos; lágrimas de irmãos e de filhos. Com elas, tantas foram! enchi cem odres. Experimentai-as no príncipe e praza aos deuses que o sarem.

Não faria tanto o pez fervente como fizeram as lágrimas trazidas pelo primeiro enviado. As feridas do príncipe abriram-se-lhe sangrando e a pele descolou-se-lhe do corpo, deixando-o em carne viva, como fica a rês esfolada pelo magarefe.

E a um aceno do rei a cabeça do enviado rolou no tapete a um golpe cerce do alfanje do carrasco.

E o segundo emissário adiantou-se sobre o sangue, ainda quente, do primeiro e, prostrando-se ante o trono dos reis, disse mostrando um renque de ânforas transbordantes de lágrimas:

— Majestades, não houve crueldade que eu não praticasse por amor do príncipe, glória da nossa raça. Se souberdes de campos incendiados, de cidades arrasadas, de morticínios em massa, de loucura de mães, de suicídios de esposos, de desesperos de órfãos, não pergunteis pelo causador de tantos males, que outro não foi senão quem vos fala e que tudo fez pela obediência que vos deve. Se eu derramasse o que trago em odres, que sobrecarregaram cem dromedários, inundaria de lágrimas este salão e elas correriam pelas escadas como se precipitam por pedras as águas das cachoeiras. Praza aos deuses que tantos sofrimentos aproveitem ao príncipe, mais do que aproveitaram aos corvos, que se regalam na carnificina.

Se fossem lavas inflamadas o que continham as ânforas do segundo emissário — não teriam arrancado tantos e tão desesperados gritos ao enfermo como arrancaram.

E o carrasco, pela segunda vez, vibrou, a duas mãos, o alfanje, fazendo rolar no tapete a cabeça do enviado.

E foi a vez do terceiro.

Era um jovem, lindo e airoso, meigo de feições e simples. Quando ele se adiantou para o trono, o astrólogo, que assistia junto aos reis, sorriu de boa sombra. E o mancebo falou:

— Majestades, inclino-me à vossa clemência, só ela me poderá salvar, porque o que trago é tão pouco que nem sei se terá resistido ao calor escaldante do deserto. E tirando do seio um pequenino frasco de cristal, tão pequenino que talvez não pudesse conter água bastante à sede de uma cigarra, disse:

— Atravessava eu o deserto quando, no mais intenso calor do sol, abrasado em sede, avistei um bosque de palmeiras. Nem foi necessário estimular os animais porque, ao farejo da água, todos a uma, lançaram-se a galope. Era um fresco oásis pelo qual serpeava um córrego e, entre as palmeiras, à beira da água sonora, uma mulher amamentava uma criança. Um mau espírito falou dentro de mim:

"Toma o teu khanjar e degola o pequenito e as lágrimas que por ele chorar a mulher serão a medicina que buscas, porque as lágrimas das mães nascem no coração."

Investi a infeliz e ia a ferir o infante quando a coitada se me atirou aos pés, oferecendo-se-me para morrer pelo filho. Comoveu-me tanto a desventura da pobre mãe que não tive forças para desfechar o golpe e, lembrando-me de um filho pequenino, que eu deixara ao colo da minha esposa, chorei e... perdoei. E são as minhas lágrimas que aqui vos trago, tão pouco é, à vista do que vos trouxeram os outros, que nem coragem tenho de vô-las entregar.

— Entretanto é necessário que o faças, disse o astrólogo, que a tudo assistira mudo, de pé, junto ao trono dos reis e, tomando o pequeno frasco, foi-se com ele à câmara. Umedecendo, então, os dedos, tocou, de leve, o rosto do leproso e logo, como em relâmpago, a pele negra e apostemada caiu-lhe aos pés e o príncipe reapareceu como dantes — belo como um deus e sorrindo.

E a rainha, lançando-se-lhe aos beijos, maravilhada do que via, exclamou:

— Como pôde tão pouco pranto, pouco mais que três gotas, fazer o que não conseguiram tantas lágrimas!?

— É que esse pouco, senhora, disse o astrólogo, veio da Piedade, do mais íntimo do coração, e as outras lágrimas gerou-as o sofrimento, e só podiam agravar o mal, como agravaram.

E foi assim que o mancebo, que se julgava perdido teve em honras e riquezas o prêmio da sua Bondade.

A ENFERMEIRA

— Isto não é de cavalheiros, protestou Amintas pondo-se vivamente de pé e, perlongando o salão a largas passadas, insistiu: Não é de cavalheiros, tenham paciência. Se aqui houvesse uma mulher capaz de defender o Sexo com a eloquência de Portia ou com o argumento decisivo que deu a vitória à Frineia...

— Isso querias tu!

— ... eu não me constituiria advogado ex-ofício da acusada. Mas o que aí há são apenas imagens de mulheres, mudas, como o Moisés de Michelangelo: umas, em telas, outras em mármore, como a Vênus que ali está, de cócoras; ou de bronze, e só em cabeça (disparate em se tratando do sexo feminino) como a arrogante Diana de Falguieres. Estão vocês a imitar Salomão, Eurípides e outros misóginos despeitados. Não é generoso. Nenhum de vocês, garanto, seria acolhido à távola do Rei Arthur.

— Ah! sim... o Rei Arthur contentava-se com o seu sócio — Lançarote. Bom exemplo nos trazes. É verdade que a sua admirável esposa chamava-se Genebra e foi, talvez, pelo nome que a generosa dama lhe subiu à cabeça enchendo-a de furúnculos escandalosos. Mas continua. Estás com a palavra.

— Sim, estou com a palavra e com a razão. Eu podia confundir-vos a todos narrando casos admiráveis de virtude e abnegação de mulheres.

— Aí vens com a Poesia: Sita, Antígone, Imogênia, Marina...

— Não. Não me valerei da Poesia, que é o recurso supremo. Tenho à mão prova recente, colhida na minha própria vida. O caso que vou referir data de pouco tempo, é contemporâneo da gripe, da qual não estou ainda de todo curado. Ciro, que se levantara para guardar os originais do poema, cuja leitura tantos aplausos provocara, fez retumbar o gong para que o criado restaurasse a cratera, onde não restava gota do punch, com que fora deliciosamente regada a hora literária. Décio, da otomana, onde se espichara, a fumar, reclamou em voz languida:

— Continua, Amintas. Dá-nos esse caso único. É possível que, ouvindo-o, eu me reconcilie com o sexo, do qual, há tanto, ando divorciado. Fala-me da hipocrisia. O tema presta-se excelentemente para uma palestra íntima, em noite fria e de chuva, como esta.

— A mulher é o único ser que se renova na vida, todos os mais repetem-se. A mulher é sempre nova, declarou Amintas com solenidade enfática.

— Endossas a opinião de Michelet, que até declarou não haver mulheres velhas, certamente porque todas lhe escondiam a certidão de idade. Mas vamos ao caso, enquanto não se renova o punch. Precisamos de alguma coisa que nos aqueça.

— Tenho profundo conhecimento da mulher.

— Eu não sabia que gostavas de explorar abismos.

— Não me interrompas, que diabo! Olha, Ciro, acho melhor mandares suspender o punch.

— Fala. Ante tal ameaça prometo ouvir em silêncio, declarou Décio.

— Em mais de mil mulheres de várias raças, que tenho conhecido e conversado, não encontrei dois exemplares da mesma edição.

— Naturalmente: pais diferentes.

— Não: almas, almas diferentes. Conheci heroínas da têmpera de Pentesileia, dedicações como Antígone, monstros comparáveis a Clitenestra, Athalia, Fedra e Fredegunda, amorosas do tipo lírico de Julieta e devassas do erotismo afrodítico de Messalina; mulheres mais pérfidas do que os horizontes dos desertos onde se refletem as miragens e outras tão verdadeiras como a própria Verdade.

— Em que poço ou cisterna as encontraste, ó Grão Turco?

— Não troces. Falo sério. De tantas criaturas heterogêneas que me passaram diante dos olhos a que mais me impressionou foi certa menina e moça (valho-me da expressão feliz de Bernardim Ribeiro) que conheci em Petrópolis e com a qual me acamaradei ao tênis. Linda como Vênus e ágil como Atalanta. E que espírito! Que cultura! Fala seis línguas.

— Misericórdia! Uma mulher com seis línguas...

— Da sua elegância basta que eu diga que ela levantou o prêmio de atitude no concurso aberto por uma revista de arte. Mas o que nela eu mais admirava era a independência.

— Uma mulher livre, como o 7 de setembro.

— Não respondo a tolices. Continuamos aqui a nossa camaradagem.

— Dize antes: flirt.

— Flirt, por que não? Afinal, que é o flirt? um pouco de aroma que se respira da flor sem destacá-la da haste.

— Mas às vezes desfolhando-a.

— Vocês não ignoram que estive aí uns tempos mal, com febre alta, dois médicos à cabeceira. Pois, meus caros, uma tarde — foi isso em começos da minha convalescença — estava eu a ler Verlaine quando o criado me entrou no quarto com um pequenino cartão de visita que, pelo perfume que exalava, mais parecia uma pétala de flor. Vocês não podem imaginar o meu espanto quando nele vi o nome da tal Senhorita. Está aí?! perguntei ao criado.

— Sim, senhor.

— Com quem?

— Só.

— Só!? Hesitei em recebê-la. Em um hotel... vocês compreendem. A Opinião Pública é o diabo... e tem agentes em toda a parte. Tomei ao criado: Não lhe disseste que estou doente, de cama?

— Disse. Ela sabe e, justamente por isso, faz questão de entrar. Quer vê-lo. Mandei pôr ordem no quarto e ... Que havia eu de fazer? Ce qui femme veut... Entrou. Soubera da minha enfermidade em casa do Durval e, desde logo, decidira-se àquela visita. O meu pobre quarto iluminou-se e aqueceu-se com a sua presença e o perfume que por ele se espalhou foi como o da explosão de uma primavera.

— Não há perigo maior do que aroma de flor em quarto fechado. Dá-nos exemplo disso Zola com a morte de Albina no Paradou. E quantos anos tem essa beldade?

— Dezoito, se tanto.

— Ainda sob a tutela do código. Perigo.

— Perdão, essa menina é uma virtude e eu sou um homem de caráter.

— Deixemo-nos de frases. Não há caráter que resista a investidas tais. O caráter é humano e o homem não é de ferro. Ciro lembrou o caso de S. Jacopo, citado por Bernardes.

— O homem poderá fraquear, contestou Amintas, a mulher, porém, quando é honesta não há força que a vença.

— Força, não digo, mas há razões que a dobram.

— Pois foram justamente as razões alegadas por essa menina que me convenceram da superioridade da mulher sobre o homem. Não sou tímido, confesso, pois, meus amigos, diante dela portei-me covardemente.

— Estavas doente, desculpou Ciro.

— Qual doente! Foi medo do escândalo. Fiz-lhe ver a imprudência daquela visita comprometedora e, agradecendo-lhe o conforto que me levara, o bem que me fizera com a sua presença, mais animadora que a do sol, tão esquivo ultimamente e que, naquela tarde, por discrição, de certo, se recolhera mais cedo, pedi-lhe que se retirasse. Sabem como respondeu? "Retirar-me!? Por quê? Que mal há em que eu aqui venha e me demore um instante a seu lado, fazendo-lhe companhia? A Opinião Pública, já sei. Sorriu encolhendo superiormente os ombros. Diga-me: Na guerra, a enfermeira que presta socorro aos feridos importa-se com os obuses que passam uivando por cima dos hospitais de sangue e com as bombas que despejam das nuvens os aviões? Não. Pois para mim os comentários da Opinião Pública valem tanto como para as enfermeiras militares esses engenhos de morte. Se para cumprir o meu dever for necessário arrostá-la, arrosto-a pouco se me dando do que ela possa dizer. Estou aqui como enfermeira e, se for preciso passar a noite a seu lado para dar-lhe o remédio a tempo justo, passarei. Os obuses que estrondem, as bombas que explodam. O perigo seduz-me". Escurecia. Voltei-me para a parede e acendi um fósforo.

— Fósforo? Para que fósforo? Pois no teu hotel não há ainda instalação elétrica? Em que espelunca te meteste?

— Não foi para alumiar-me que acendi o fósforo.

— Então para que foi? Para fumar?

— Não. Para fazer subir o termômetro a mais de quarenta graus.

— E ela?

— Com febre tão alta... que havia de fazer? Tirou a peliça...

— Ah! bem... antes assim... Eu estava com medo de que fosses tu que lhe deixasses na mão a capa da covardia, como fez o pulhíssimo José com a mulher de Potifar. E depois? ...

Nesse instante o criado entrou com a cratera de prata em que flamejava o punch.

UM SORVETE

Começara o baile e o marechal, aproveitando-se da alegre agitação da sala, esgueirou-se sorrateiramente para gozar o havano que trazia entre os dedos e já o acendia, com delícia, quando uma faiscação piscante, como de vagalume, levou-lhe os olhos para a sombra que fechavam os ramos entrelaçados do jasmineiro, em um dos extremos do terraço.

Olhava a fito, perquirindo, quando uma voz, graciosa e languida, muito conhecida do seu coração, que a escutava de longe, de muito longe, do fundo dos seus sessenta e três anos, anunciou a dona, que outra não era senão a linda Madame Lutécia.

— Que é isto, marechal? Aqui fora, o senhor, o herói do dia?

— Da noite, minha boa amiga. O meu dia passou.

— Mas cheio!

— De saudades! Pediu licença e arrastou uma cadeira de vime para o canto discreto em que se refugiara a viúva, dizendo: Eis a única vantagem que tiro da idade, que se sobrecarregou hoje com o peso de mais um ano. E deixem lá que não ó pequena a vantagem.

— Vantagem?! Ah! de sentar-se junto de mim?

— Pois então? ... E no escuro.

— Por isso não, marechal. A escuridão perdeu o prestígio, hoje tudo se faz às claras, de modo positivo.

— Ou positivista, gracejou o velho militar.

— As trevas dissiparam-se com o fiat do Progresso.

— Menos nos cinemas.

— Ora... os cinemas... Os cinemas são escolas primárias ou, quando muito, escolas noturnas para adultos. Mas sente-se, marechal. Sente-se. Está verdadeiramente delicioso o perfume deste jasmineiro.

— Estou fumando.

— Também eu.

— Mas diga-me: Não dança?

— Eu? Não. Prefiro fumar. O cigarro é um excelente par. Leva-nos pelo sonho em espiras de fumaça, nuvens como as que passeavam os deuses pelo Éter. Gozo aqui muito mais do que na sala e forro-me ao tédio de ouvir banalidades ou descrições de jogos renhidos, e não sujeito os meus sapatos a serem pisados por pés gloriosos de celebridades pontapedistas. Não baixo o meu olhar, por isso prefiro os que pensam, os que têm a força no cérebro, aos que se impõem pelos pés.

— Quer, com isto, dizer que não gosta do esporte?

— Não, gosto e pratico-o, como me preocupo com o esmero do corpo, o alinho do trajo e o mais que diz com a vida, quer como função, quer como representação, nem por isso, entretanto, ando sempre a falar em banho, em manicuras e costureiras.

Levou a cigarrilha à boca, deixando esfiar-se um filete de fumo por entre os lábios entreabertos. Por fim, sorrindo, perguntou maliciosamente:

— Então quantos, marechal?

— Sessenta e três, minha boa amiga.

— Ninguém dirá.

— Digo eu, e eu só digo verdades, ainda que me custem, como essa. Daqui por diante é o deserto.

— O deserto é ardente e agitado... principalmente quando sopra o simum.

— Ah! sim... Infelizmente o deserto para onde me encaminho não é como o Saara, onde verdejam oásis; o meu é o deserto de gelo, a solidão fria, desconfortável, sem sol, o contrário do outro, que arde. E o calor, como sabe, é a vida.

— A mocidade...

— Sim, o deserto quente. São os dois que se extremam: no primeiro ardemos ao sol e ansiamos por um pouco de sombra, o abrigo de um oásis. No segundo, o que almejamos é... não direi um raio de sol, que isso não há no polo, mas um lume que nos aqueça, que nos conforte, que nos dê ao sangue um pouco de calor.

— O marechal exagera.

— Não, não exagero: digo o que é, o que sinto.

— É pena que não haja aqui um termômetro. A coluna daria razão a quem a tivesse. O mercúrio não mente.

— Sim, não mente... quando o não forçam a mentir. Tive na Escola um condiscípulo que conseguia enganar os médicos fazendo subir o termômetro... à custa do cigarro.

— E o marechal porque não faz o mesmo com o charuto? O velho militar trincou o havano e, depois de um silêncio embatucado, disse pausadamente:

— Não, minha querida amiga, tais artifícios são sempre perigosos, ou o termômetro sobe por si mesmo ou então... paciência.

— Nunca pensei que o marechal fosse assim desanimado. Isso em militar não é bonito. Um cabo de guerra, como o senhor, morre, mas não se rende.

Experimente o charuto... E desatou a rir, um risinho irônico, malicioso, perverso. O marechal remexia-se na cadeira, cruzava, descruzava as pernas. Por fim, quebrando com a unha a cinza do havano, disse:

— Olhe, se eu tivesse de recorrer ao fogo pediria uma centelha a certos olhos que conheço, que luzem no escuro, como os dos felinos.

— Os felinos são ferozes, marechal e para atacá-los, principalmente quando se acham enfurnados, é preciso ter boas armas, coragem e sangue frio. A coragem varia. Militares dos mais valentes tremem, às vezes, ouvindo no escuro o estrépito do correr de um rato. Não sabe a lenda de Siegfried, o herói que não conhecia o medo? Pois uma criada espavoriu-o atirando-lhe, em cima, no leito em que ele se achava, uma celha de água fria com alguns peixinhos de tanque.

— E acredita a minha amiga que se me atirassem em cima um peixe...?

Um criado apareceu à porta do terraço com uma bandeja de sorvetes e, vendo brilhar na sombra a brasa do havano do marechal, adiantou-se com solicitude indiscreta. O bravo militar recusou. Lutécia serviu-se. Ao afastar-se o criado, ela sorriu e debicando o creme:

— Não imagina como eu gosto de gelados, principalmente numa noite quente como esta.

— Que pena eu tenho de não ser sorvete! suspirou o velho militar.

— Para que, marechal? O sorvete funde-se tão depressa...

NA TREVA

A um solavanco violento, que o atirou de encontro à parede da camarinha, o homem despertou em sobressalto, sentando-se no leito, aturdido. Que haveria?

O vagão oscilava desabalado e rangia em desconjuntamento, rilhando mordentemente nos trilhos. Por vezes um chiado longo rechinava como esfervedura de ferro em brasa imerso na água. A luz das lâmpadas vasquejava, ora em amortecimento, quase extinguindo-se, ora acendendo-se em clarão intenso, como olhos que se abrissem em espanto.

E o comboio corria vertiginosamente em velocidade de despenhamento, rebolando aos coleios, atirando-se em voltas bruscas em rabear frenético.

Ferragens estrepitavam entrebatidas, portas abriam-se como arrombadas, logo fechando-se de choque. O carro tremia como animal cansado.

O homem afastou a cortina da janela e olhou pela vidraça abrumada a noite, negra como um túnel infindável. Espectros de árvores, entrevistos em relâmpagos, recuavam espavoridos como se o terror se comunicasse à própria natureza. Luzes passavam rápidas.

De repente um silvo estrangulado rompeu angustiosamente prolongando-se pelo silêncio lúgubre. Dir-se-ia um apelo aflito, clamor de socorro bradado desesperadamente às cidades adormecidas, das quais se percebiam as ruas pelas paralelas de luzes; às povoações encostadas às roças, às próprias cabanas e casas de turma, à beira dos caminhos.

Estações passavam num fulgor instantâneo; e a treva adensava-se mais espessa, pingada de lumes amarelentos.

Havia alguma coisa de pressago naquele silvo que repercutia lancinantemente na escuridão. Estrondos surdos, reboos cavernosos, estrépitos metálicos davam impressão de que o expresso corria sobre cascalhada, esmagando, triturando ferros e lapedo. Que haveria?

O homem voltou-se para a frente. Duas pernas balançavam-se no ar como de um enforcado, escorregavam, desciam e apareceu um busto arremangado. Era o passageiro do leito superior. Tocando no soalho foi logo comentando a fúria daquela corrida:

— Isto é uma imprudência! Esse maquinista está louco. E, respondendo a alguém, que resmungara, confirmou. É... E no estado em que está a linha, imagine o senhor. É por isso que há tantos desastres. Não se corre assim. É demais. Ainda não consegui dormir.

— Nem eu.

— Ninguém. Estão todos por aí acordados. A locomotiva bufava.

A ímpetos, com os violentos empuxões de arranque, o carro chocava-se com os que o incluíam e eram trancos, baques nos para-choques, e um retinir trangalhante de correntes.

— E não há aqui uma pessoa com quem se fale. Toca-se a campainha, é o mesmo que nada.

— Onde estará o guarda?

— Dormindo por aí.

— É isto. Vozes sussurravam pelo vagão adiante. Passageiros deixavam os leitos e, encarando-se sarapantados comentavam:

— Onde se viu uma coisa assim!

— Não sei que é isto! Não compreendo. Senhoras protestavam. Crianças choravam. Um rapazola afoito propôs-se a quebrar o vidro para dar sinal de alarma. Alguns passageiros interpuseram-se:

— Não! Não! Pode ser pior. Deixe.

— Que horas serão? perguntaram.

— Quase três.

— Onde estaremos?

— Quem sabe lá!

— Se ainda houvesse aqui alguém que nos dissesse porque vamos assim. Deve haver alguma coisa.

— Atraso, com certeza. E, num momento, todos os passageiros, uns de pé no corredor central, outros dos leitos, entraram a conversar com intimidade, aproximando-se instintivamente.

E a velocidade cada vez maior. Os carros abalavam-se e, com o choque, os passageiros desequilibravam-se trambolhando uns sobre outros, agarrando-se à borda dos leitos superiores.

— É demais! A um sacalão mais ríspido um grito retiniu no vagão alvoroçado e, como em resposta, a locomotiva lançou novo silvo mais estrídulo e trêmulo.

— Vão ver que é algum maquinista novo.

— Ou bêbedo.

— Não duvido.

— Mas não se entrega a um maquinista novo um trem como este. Depois não querem que haja desastres. Para tudo isto ir por aí abaixo basta que um dormente dê de si, e no estado em que eles estão...

— O senhor acha? perguntou uma senhora passando a cabeça por entre as cortinas do leito.

— Mamãe... Mamãe... vem pra cá. Estou com medo... choramingou uma criança. Tal voz fez passar um arrepio de terror em todos como se partisse de um oráculo. Era a inocência que pressentia o perigo. Calaram-se estarrecidamente e na pausa profunda ficou ressoando, soturno, o rumor da corrida trágica.

Um homem gordo, de óculos, lançou-se do leito indignado e, descalço, com os suspensórios caídos, a camisa a espocar das calças, foi direito à porta. Abriu-a. Uma rajada de vento enfumaçado invadiu o carro: as luzes tremeram. O homem recuou aturdido, tombou de encontro a um leito. A porta bateu de estalo.

— Isto é um desaforo! Um trem de passageiros, cheio de senhoras e crianças, entregue a um louco. Pois esse homem não vê que nos está levando para a morte?!

Uma mocinha surgiu de um dos beliches, pôs-se de pé entre os homens, atordoada, chorando, a olhar para um, para outro, retorcendo as mãos. Do leito superior falaram-lhe:

— Deita-te. Não fiques de pé que podes cair e machucar-te. Deita-te. Assim como assim tanto vale ficares na cama como aí. Se tiver de acontecer alguma coisa, que Deus tal não permita... Deita-te. Há de ser o que Deus quiser.

— Deus é brasileiro, gracejou alguém. Eu é que me não levanto. Deitado estou pronto para o que der e vier. A viagem para o outro mundo faz-se à pés juntos.

A mocinha rompeu em pranto, remergulhando no leito, e um dos passageiros, que se voltara para o beliche de onde partira o comentário trocista, rosnou:

— Tolo! Extinguiram-se, de repente, as luzes; um grito repercutiu:

— Misericórdia!

Sob o amontoado de carros a locomotiva agonizava esvaindo-se em esguichos de vapor e dos destroços do comboio, e da treva em volta partiam brados, gemidos, gritos lancinantes, vozes confusas e sombras atropelavam-se clamando espavoridas.

O céu começava a encardir-se nas barras da madrugada.

A ESTRELA

O sol, enorme e baço, descia lentamente por trás das colinas bronzeadas. Reunidos os animais para prosseguirem na romagem, os servos iam e vinham cantando, contentes de todo um dia repousado naquele oásis farto em tâmaras, veiado de córregos cristalinos e de tanta frescura e sombras tão agradáveis que até os dispensaram de armar as tendas. A estrela, parada no céu, acima do palmar, começava a luzir em trêmulas cintilações.

Os três reis, já acomodados nos seus dromedários, esperavam que o astro se movesse quando Baltazar, que o contemplava, enlevado, disse em voz grave e morosa:

— Mais uma noite de esplendor. E Melchior:

— A última, talvez, porque, além das colinas, começam as terras abençoadas. Então Gaspar, anediando maciamente a barba longa, comentou com irônico sorriso:

— E trazemos conosco seis astrólogos, dos mais nomeados em todo o Oriente, e nenhum deles nos sabe dizer o nome dessa estrela maravilhosa, que nos vem guiando da altura, como um pastor conduziria o rebanho.

A tais palavras de escárnio o mais velho dos que liam nos astros, ancião de mais de um século, que era levado em andas, como um ídolo, falou por lodos os caldeus, sábios em vaticínios:

— Como quereis que digamos o que é segredo do Alto? Os astros, conhecemo-los todos, não só os que vemos na superfície da noite, como outros muitos que só com os números vamos descobrir além das raias do olhar. Essa estrela, porém, saiu do mistério, não veio de nebulosa.

É um astro em missão divina, talvez destacado da coroa do Criador dos mundos. Comparai-a às demais e vereis que há nela mais brilho do que em qualquer das outras. E não imagineis, apesar da vossa grandeza, que ela rompeu do céu apenas para guiar-vos. A muitos mais, e de todas as castas, vem ela trazendo no seu rastro, e não só homens como também animais, e até os ventos sopram na direção que ela aponta levando as oferendas dos montes e dos campos, das florestas e dos jardins, dos vales, dos lagos e dos grandes rios no perfume das flores que neles nascem. Só mesmo por prestígio de um Deus faria um astro prodígios tais.

E outro astrólogo, dentre as corcovas de um dromedário enxairelado suntuosamente, acrescentou:

— E a maior das maravilhas é que até cegos guiam-se por ela.

— Cegos! exclamaram a um tempo os três reis.

— Cegos! confirmou o astrólogo. Passamos por muitos. Viajam sem companhia e sem arrimo algum e tão certos no caminhar como os que mais veem. Um deles acompanha-nos, não porque precise de nós para orientar-se, mas porque todos o retêm e disputam, que outro não há que com ele compita em cantares heroicos e contos maravilhosos.

Quiseram os reis ver tal cego e logo dois homens o foram buscar, achando-o à beira de um córrego, a cantar entre guerreiros e servos. Era um homem do Cáucaso, alvo e louro, de porte agigantado, que trazia pendurada ao peito marmóreo uma lira rústica de três cordas.

Interrogado por Baltazar: "Como saíra da sua montanha remota? Como lograra chegar às planícies fáceis e desnevadas? Quem o guiara em tão revessos caminhos?", respondeu de mãos postas, sorrindo enlevadamente:

— A estrela.

— E tu a vês, sendo cego?

— Se a vejo? Certo que não, mas sinto-a. A sua luz entra-me na alma, e guia-me. Não só a mim, como a muitos outros infelizes. E a enfermos que se levantaram dos catres; e a paralíticos que a seguem estropiadamente; a anciãos, que mal podem com o bordão a que se apoiam; a crianças que andam em passo incerto, abrindo os braços para equilibrarem-se, como fazem os funâmbulos na corda. Quantos! Todos a seguem: os que a veem, os que a não veem, sãos e enfermos, válidos e valetudinários. Oh! reis, essa estrela, que os vossos astrólogos não conhecem e dizem ser nova no céu, é a mais antiga de quantas enfeitam e iluminam a noite, não essa noite passageira, que dura o tempo de um sono, a noite tenebrosa que se eterniza na alma, mais negra na do que não quer ver do que a da cegueira nos cegos. Essa estrela, reis, antes de aparecer, já iluminava as almas, como o sol, ainda oculto, projeta no céu as cores da alvorada. Foi ela que levou Israel do cativeiro do Egito às terras de Canaã. Era, então, a nebulosa de fogo que alumiava as noites no deserto.

— E desde quando é estrela? perguntou Melchior.

— Desde que o primeiro profeta anunciou à tristeza dos homens a vinda do Messias.

— Tu que assim falas, com tão perfeito conhecimento, deves saber-lhe o nome. Di-lo e assim darás lição proveitosa aos sábios que nos acompanham. Que nome tem ela?

O cego levantou para o céu os olhos enevoados e com um sorriso no rosto, de mãos juntas, em prece, disse:

— Rei, o nome dessa estrela é Fé. É ela que nos vai levando a todos pelo caminho da Esperança à presença daquele que nos há de remir.

Nesse instante um som de tuba retumbou longamente, como o rugido do leão no deserto. Esvaíra-se de todo a claridade solar e a estrela, abrindo encachiadamente a cauda luminosa, que aclarou a terra em luz mais alva e mais doce que a do luar, pôs-se em marcha em direção às colinas, além das quais o céu irradiava em esplendor assinalando a caverna em que Jesus nascera.

E, lentamente, a caravana imensa dos reis desfilou por entre as dunas, seguindo a estrela que deslizava no céu.

O GRANDE JOGO

— É, então, verdade que viste a Morte? perguntou Onofre a Serapião. O interrogado acendeu vagarosamente o cigarro, tirou uma lenta fumaça e respondeu com tranquilidade:

— Sim, é verdade. Tão verdade como te eu estar vendo aqui no meu quarto e o Corcovado ali defronte, o céu, tudo que nos rodeia, enfim.

— E como foi isso?

— Vi-a como se vê uma imagem ao espelho. Tive-a diante de mim, pertinho, como nos achamos e longe, tão longe como está de nós o céu. Via-a, mas não a alcançava, não podia tocá-la porque, entre nós, interpunha-se uma claridade intransponível, uma transparência que nos separava como o vidro isola a imagem que reflete. E não é assim mesmo? Que é que nos separa da Morte? um quase nada. Vemo-la em toda a parte, em tudo; caminhamos com ela ao lado e não a percebemos. Sente-se, por acaso, o peso da sombra? Não. Ela falava e eu não a ouvia, ou antes — não ouvia o som das palavras. Vês, à distância, uma pessoa caminhando, segues-lhe o rumo, mas não lhe ouves os passos, não é verdade? Pois era assim. Eu via-lhe o movimento dos lábios, a expressão do rosto, ora a sorrir, ora fechado em severidade, de tudo isso eu tirava a significação das palavras como se fosse decifrando uma escritura simbólica. Os mudos não se fazem entender? Não há os que interpretam hieróglifos? Pois era assim. As palavras da Morte chegavam-me à inteligência como folhas secas que caem em um lago e roçando-o, de leve, franzem-no em círculos que se vão abrindo, dilatando alargadamente. Eu ouvia as palavras mudas como na floresta, à noite, quando se atenta à escuta, ouve-se o misterioso rumor do silêncio.

— E que aspecto tinha a Morte?

— Que aspecto?

— Sim...

— O meu, porque era eu mesmo, ou antes: a minha imagem.

— Se eras tu mesmo como dizes que era a Morte?

— Por que... Serapião recolheu-se um instante em si, a pensar; por fim, levantando a cabeça, perguntou:

— Tu não tens pressentimentos? Já te não terá sucedido, ao caminhares, lembrares-te, de repente, de alguém e encontrares, poucos passos adiante, a pessoa em quem pensavas?

— Sim, acontece-me frequentemente.

— Pois foi assim. Eu, não sei por quê, pensei na Morte e logo vi levantar-se diante de mim esse outro eu.

— E não havia algum espelho onde estavas?

— Espelho?! Eu achava-me em plena floresta, meu amigo, entre árvores sombrias. Que espelho podia haver em tal sítio?

— E não tiveste medo?

— Medo... sim, no primeiro instante senti um arrepio gélido. Atentando, porém, no espectro, tranquilizei-me reconhecendo-me, porque era eu mesmo que ali estava em transporte, ou desdobramento. E por que havia de ter medo se a Morte está em toda a parte, em tudo, como o ar, a luz, o frio, o calor, sendo como é a condição mesma da Vida? É escusado tentar fugir-lhe. Foge-se à dor? não, porque a temos conosco. Foge-se a um pensamento? Foge-se ao amor? Não! Assim com a Morte. Ninguém a evita. Caminha-se com ela, é uma companheira invisível que nos guia ao nosso destino.

— Mas não estarias com febre quando tiveste essa visão?

— Queres atribuí-la a delírio... Não. Não foi delírio. E se tivesse sido? Que é o delírio? uma perturbação ou melhor: uma revolução sensorial. É como o torvelinho que se faz na água e que, quanto mais rápido rodopia, mais aprofunda o funil cuja extremidade toca o fundo do vaso. Pois o delírio é um remoinho no cérebro que, no giro vertiginoso em que se revolve, deixa entrever o fundo do mistério. A febre é uma fogueira interior que tanto aquece como difunde claridade, claridade sinistra, como a do relâmpago, mas claridade. Se foi delírio, não sei; mas que vi a Morte, isso juro!

E durou muito tempo essa visão?

— Não sei quanto tempo durou. Conheces a lenda do monge que, desejando ter ideia da Eternidade, rogou a Deus o iluminasse com um milagre e, descendo à cerca do mosteiro, atraído pelo canto de um pássaro ficou a ouvi-lo? Quanto tempo esteve o religioso a deliciar-se com os gorjeios? Minutos, acreditava ele, entretanto, ao reentrar no mosteiro, tudo encontrou mudado, porque o tempo que lhe parecera ter sido de minutos fora longo de um século. Não posso dizer tanto, o certo, porém, é que não sei quanto durou o que atribuis a delírio. Quando dei por mim estava a entrar na fazenda, já com a porteira à vista.

— De sorte que a Morte que viste eras tu mesmo?

— Sim, eu mesmo. E que é a Morte, afinal, se não a própria Vida? a Vida vista por trás, a Vida em sombra, a Noite do nosso Dia breve? Foi bom que eu a visse porque, dantes, quando eu pensava em morrer, tremia... hoje... Preocupo-me tanto com a morte como com o sono em que hei de adormecer à noite.

As árvores despojam-se das folhas uma e uma e continuam verdes, renovando a fronde, até que, um dia, minadas no cerne, qualquer vento as derruba, e então não são as folhas que caem, é o próprio tronco que abate.

Nos sonos que dormimos, à noite, vão-se os nossos dias, assim eles são como as folhas secas que caem da árvore da Vida, até que o vento frio, o vento misterioso se levanta e a árvore, vencida, debate-se um momento nas raízes e, por fim, tomba. Quantas morrem em semente! Quantas murcham ainda em broto! Quantas são violentamente desarreigadas em pleno viço! Para mim aquilo foi o que o povo chama "um aviso" e que os estudiosos da psicologia misteriosa chamam premonição. O nome pouco influi. O certo é que eu vi a Morte, que a tive perto de mim anunciando-me... sei lá o que! Quem sabe o que vem dentro das horas silenciosas? são segredos do Tempo, surpresas do Destino. Nós estamos dentro da Vida como as pedras no saco do Loto, ou víspora. A Morte tira uma ao acaso, canta-a e lá se vai o número para o cartão.

— Que, em caso tal, é o cemitério.

— Tabuleiro de jogo, como outro qualquer.

— Do grande jogo.

— No qual todos perdemos.

— Ou ganhamos, quem sabe lá!

A VISITA

Noite límpida. Frio de rachar. As estrelas cintilavam diamantinas, o que, para os conhecedores, era aviso infalível de geada. As luzes, que abotoavam a escuridão, tinham em volta um revérbero de névoa.

O evadido caminhava de cabeça baixa, braços cruzados, muito encolhido em um casacão escuro. Para ele quanto mais frio, melhor. Assim, ainda que dessem por sua falta, ninguém lhe sairia no encalço, afrontando noite tão ríspida por um desgraçado como ele. E que saíssem! Mato era o que não faltava. E com o ouvido de caçador, que tinha, ao mais leve ruído trataria de pôr-se a salvo, nem que eles trouxessem cachorros.

Tudo era silêncio de sono. De quando em quando, longe, um latido. O caminho, esse conhecia-o ele a palmo: era capaz de ir direitinho, de olhos fechados, até a sua casa. Mas o coração batia-lhe, sentia-se como sufocado, com medo de tudo. Também, quase três anos sem ver mundo, metido no Leprosário, a apodrecer.

Roçando em galhos tinha impressão de que o agarravam e puxavam. Voltava-se assustado, arrepanhando as abas do casacão. E se o apanhassem!? Seriam capazes de matá-lo de raiva.

Que o prendessem, pouco lhe importava e estava certo de que o haviam de prender mais dia, menos dia; com aquela doença não havia escapar, o que ele, porém, queria era ver a mulher e as crianças olhar a casa, o seu cantinho. E caminhava estugando o passo, a tropeçar em pedras, a resvalar em covas de areia frouxa. As vezes era um cupim que lhe aparecia hirto, como um vulto embuçado que o esperasse.

Atravessou a várzea deserta, faiscante de vagalumes, zunindo o guiseiro dos grilos ou grulhos intercedentes de sapos. Como respirava bem! O ar entrava-lhe a fôlegos pela boca, frio como goles de água bebida em fonte.

Ganhou a estrada lisa. Logo, porém, estacou, surpreso, diante de um casarão com uma chaminé espigada no escuro. Aquilo era novo. No seu tempo tudo ali era mato, um campo de "barba de bode", com umas palhoças de longe em longe. Devia ser a tal fábrica de meias. E ficou a olhar.

Era, então, ali que a mulher trabalhava. Um renque de eucaliptos acompanhava o muro e, lá dentro, grandes lâmpadas em postes espalhavam um clarão de luar. A sua casa ficava pouco adiante, logo depois da olaria onde, aos domingos, ele ia jogar a malha. Casinha alegre como ela só! E a coitada da mulher sozinha, com o peso todo da vida, três bocas para sustentar.

Da olaria, nem sinal. Tudo murado, no fundo uma casa nova. Portão de ferro com uma tabuleta ao alto. Que seria? Passou. De novo o vazio, e lá foi ele pensando, matutando.

"Coitada! Nem sabia como a pobre se arranjava com dois filhos pequenos e a vida pela hora da morte, como estava, Homem? Qual! Isso tinha certeza de que não lhe entrara em casa, primeiro, porque ela era honesta, depois... quem havia de querer? Por ela, não, que era bem bonita, morena e com aqueles cabelos que o tinham prendido, como a teia de aranha prende a mosca. Mas só quem não soubesse. Sabendo... mesmo... não vê! Mulher de leproso... Nem ele compreendia como a coitada conseguira empregar-se na fábrica, com aquela praga em cima de si. Ah! o bom tempo! quando ele batia aquilo tudo alegre, brincando com um e com outro, forte, vendendo saúde; a mulher moça, bonitona, ativa, a casa farta, os filhos crescendo entre os dois, de colo em colo, lindos! Bom tempo! Quantos castelos! compra disto, compra daquilo, mudança para mais perto da cidade, até porque, com o Leprosário a pouco menos de légua, deram em desconfiar de tudo, até da água e do ar. Tanto morfético... sabiam lá! Essa coisa pega! E pegou.

Mas como?! Fosse lá saber. A princípio ele notou que a cor da pele ia mudando; depois umas manchas como mordidelas de bichos, inchação, até que, uma manhã, a mulher lhe perguntou se não sentia dor. Não, não sentia. Talvez fosse erisipela. Em pequeno era muito sujeito. Mas não. Ele mesmo começou a desconfiar e escondia-se para examinar o corpo, mirava-se ao espelho, apalpando-se. E aquilo deu em encalombar, em arroxear — eram os dedos, era o rosto, eram os beiços, os olhos, as orelhas, a carne toda espocando, com uma cor esquisita de goiaba podre. Nem teve coragem de ir ao médico. Para quê? E começou todo o mundo a evitá-lo, nas vendas, nas estradas: não lhe apertavam a mão, falavam de longe, ariscos, com repugnância e se ele entrava num ajuntamento era logo a debandada; até a sua gente em casa — a mulher, que o repelia, os filhos que não lhe tomavam a benção. E foi a tanto que, um dia, por denúncia, de certo, o agarraram e deram com ele no Leprosário, como se atirassem ao lixo uma coisa podre.

Mas que culpa tinha ele? Se fosse um vadio, se dissessem que bebia, que jogava, que se metia em pagodes e barulhos, que era mau marido, mau pai, homem de vícios, ainda bem, mas por doença...! Se, em vez dele, fosse ela que houvesse apanhado a moléstia, ficasse como ficasse, caindo aos pedaços, ele não a abandonaria; havia de sempre lembrar-se que era sua mulher, a mãe de seus filhos. Ela, entretanto, nem para visitá-lo. Assim também não. Se a doença dá nojo também faz pena.

Lá estava a casa. Reconheceu-a — tal qual a deixara. E outra nova, um pouco adiante. E se ela se houvesse mudado? Não! Mudado para onde? Ali, estava a dois passos da fábrica. Demais, a casa era própria: terreno comprado; construção paga por ele.

Chegou-se devagarinho, parou junto à porta, por baixo da qual lagarteava um rastilho de luz. Era, com certeza, a coitada a fazer serão. Ah! bom tempo! E o frio cada vez mais intenso, talvez por estar ali perto o agasalho aquecido naquele silêncio de sono, como a sede aumenta quando se sente o fresco murmúrio de água. Olhou, olhou longamente. Por fim bateu de leve; bateu de novo, mais forte, sacudindo a porta. Ouviu rumor e logo a voz assustada da mulher:

— Quem é? E ele, em tom fanhoso, chegando-se muito à porta:

— Eu, Adelina.

— Eu, quem?

— Abre, criatura.

— Não abro sem saber quem é. Diga quem é.

— Sou eu, Valentim.

— Que Valentim?

— Que Valentim há de ser, filha de Deus. Valentim...

— Eu só conheço um Valentim, que é o meu marido.

— Pois sou eu mesmo.

— Credo! esconjurou a mulher.

— Sou eu, Adelina. Você está estranhando a voz por causa da doença, mas sou eu. Abre só a janela e espia. Eu me contento em ver você e olhar a casa e se você deixar eu ver as crianças... Fugi. Fugi de saudade, mode ver vocês. Abre, abre depressa, que eles, com certeza, já vêm por aí, dando em cima de mim. Abre. Juro que fico de longe, é só para ver. Depois... podem fazer de mim o que quiserem.

Houve um ranger de ferrolho. O leproso aproximou-se e, quando a janela se entreabriu e o busto da mulher apareceu na claridade, ele recuou surpreso. Contava vê-la como a deixara: com os grandes olhos negros e luminosos, os cabelos fartos e luzidios, a boca vermelha e o doce sorriso em que ela a entreabria, com faceirice, para mostrar os dentes muito brancos, e via-a avelhantada, uma ruína — tez amarelenta, enrugada, olhos sumidos e os cabelos ralos, repuxados, deixando-lhe descoberta a fronte vincada como a canivete. Ao dar com ele a mulher não conteve um gesto de espanto e asco: era uma carniça com dois fogos fátuos, os olhos. Bateu com a janela, em repulsa. Ele ainda gritou:

— Adelina!

— Não, filho de Deus. Não! Não é por mim. É pelas crianças, por nossos filhos. Deus me livre! Vai-te embora com Deus. Vai!

— Mas então é assim, Adelina? Você tem coragem? suplicou o mísero.

Não é por mim, já disse, é pelas crianças. Tem paciência. Você fez mal em vir aqui. Fez mal. Nunca pensei que você ficasse nesse estado. Deus me livre! Vai... Eu disse às crianças que você morreu. Vai.

— Que eu morri? Você disse isso? Pois então... Fica com Deus! Olha, abençoa os dois.

— Mesmo por mim. Eu via você como dantes, e agora... Pra quê! Pra quê!

Houve um baque como de corpo que rolasse e um choro lastimoso, soluçado. O leproso ficou um momento à porta, de cabeça baixa, ouvindo, e, por entre as pálpebras, em chagas, as lágrimas rebentaram-lhe grossas. Deu de ombros, resignado, e, lentamente, sem sentir o frio da noite, tornou por onde viera. A geada começava a polvilhar os campos.

EMIGRANTES

Ainda que se reconheçam nesta revelação não me poderão acusar de indiscreto as duas gentis senhoritas que se sentaram adossadamente a mim, na barca Imbui, em que viajamos para Niterói.

Se falavam tão alto não era, de certo, para que as suas palavras ficassem em segredo confidencial. Não só eu as ouvi: ouviram-nas — e com que gáudio! — quantos se lhes avizinhavam. E uma senhora gorda, de refegos desbordantes, que levava ao colo um embrulho, no qual o menos atilado fiscal descobriria, de pronto, contrabando, não só pelo remeximento como por um surdo cainhar, que ela assustadamente abafava, por vezes, fechando a carranca, esmoía resmungos contra certas frases que lhe pareciam impróprias de lábios virtuosos.

Uma das senhoritas, loura (louro de oxigênio) logo ao desatracarmos, dirigiu-se a outra, tipo espigado e petulante de morena, interrogando-a com interesse:

— É verdade que vais deixar o Banco? A interpelada voltou-se de golpe, encarando a curiosa com expressão de espanto, como se sentisse injúria na pergunta. Por fim, com um leve encolher de ombros, tornou à primitiva atitude. A outra insistiu:

— Houve alguma coisa?

— Nada. Estou farta! desabafou com tédio. Manteve-se um momento calada, busto ereto, rígida, o olhar ao longe, vago. De repente, como se desatasse a língua, voltou-se para a companheira e pôs-se a falar com volubilidade histérica, agitada:

— Não nasci para isso. Pensei uma coisa e ela é outra. Vou deixar o Banco, sim. Vou! Torno ao que era, a mim, à minha casa, aos meus, contentando-me com o que me puder dar meu pai. Queres que te diga? Não foi por ambição nem por vaidade que me empreguei. Não sou de luxos. Tanto me faz andar de seda como de casa. Empreguei-me por mera curiosidade, para conhecer o mundo dos homens, a vida que levam, como trabalham, como resolvem os grandes negócios, o que fazem nesses empórios de riqueza, os tais Bancos. Para satisfazer esse capricho lancei-me à aventura, deixando os meus hábitos, os meus livros, os meus bordados, o meu piano, as minhas amiguinhas, como os que abandonam a Pátria para tentar fortuna em terra alheia. Ofereceram-me o lugar no Banco. Aceitei-o. Antes de apresentar-me — porque só devia começar a trabalhar no princípio do mês, — não imaginas os castelos que fiz...! Lembras-te do pequeno Manuel a contar a sua partida da terra, as grandes esperanças de enriquecer para voltar à sua gente carregado de ouro; e o que sonhava a bordo, durante a travessia? Pobre pequeno! Pois o mesmo me aconteceu. Eu não pensava em outra coisa senão no Banco, via-o abarrotado de moedas de ouro, cheio de maços de cédulas...

— Até ficaste orgulhosa, confessa.

— Orgulhosa? Eu?!

— Sim falavas com a gente por cima dos ombros.

— Estás enganada. Vocês, sim. Vocês é que começaram a cumprimentar-me por favor. Muitas até evitavam-me, fingiam que não me viam, viravam-me, a cara, como se eu tivesse dado um mau passo. Eu, não. Orgulhosa, eu! Coitada de mim! Mas fui, tomei conta do lugar. O que senti naquela balbúrdia foi o mesmo que sentiu o Manuel quando se achou nesta cidade tumultuosa cercada de montanhas, com este céu muito azul, este sol muito quente, todo este esplendor tropical. Que diferença da sua aldeia pequenina e quieta. E o coitadinho, quando nela fala, arrasam-se-lhe os olhos de água. E que faz ele? anda por aí de tamancos, arrependido da aventura em que se meteu.

— Ora! Acabará rico, como os outros.

— Os outros... Os outros são poucos, minha amiga, esses mesmos...

Ficou um momento imóvel, de olhos em êxtase. E continuou: Deu-se o mesmo comigo. Ouro... cédulas... Pois sim! Aquilo é como um cortiço de abelhas, cujo trabalho ninguém vê. Sabe-se lá como eles ganham... O dinheiro entra e sai, exatamente como as abelhas no cortiço, mas o trabalho! ... O trabalho é segredo dos homens.

Que sou eu naquela balbúrdia? uma igual? não — uma estrangeira em terra alheia, uma mulher entre homens. Intrusa. Não te iludas. Eles aceitam-nos, como o fazendeiro aceita o colono para o trabalho da terra. E a morena suspirou balançando a cabeça: Que saudade da minha Pátria!

— Que Pátria? Pois estás no Brasil e tens saudade da Pátria?

— Eu digo: a minha, a nossa Pátria, a Pátria da mulher, entendes? a nossa casa, a nossa gente, tudo que é nosso, o lar onde nos criamos, o aconchego doméstico. Nós somos de outra região e, entre os homens, por mais que façamos, nunca chegaremos ao que eles são. Entramos-lhes pelos domínios, como os colonos entram pelas terras, sempre, porém, havidos como emigrantes. Aproveitam-se do nosso trabalho, mantendo-nos, porém, à distância. Volto à Pátria, torno aos meus. Pobre, mas feliz.

— Emigrantes por emigrantes eles também o são. Quem emigrou primeiro: a mulher ou o homem? E os lindos olhos azuis da loura fagulharam chispas. Responde. — Quem emigrou primeiro? Foi ele, o homem que invadiu o que chamas a Pátria da mulher. E como? Em primeiro lugar eliminando a barba, raspando o bigode, valendo-se dos nossos artifícios — cosméticos, corantes, depilatórios, vernizes: frequentando manicuras, corrigindo as sobrancelhas, afeminando-se, enfim. E hoje aí o tens recorrendo, até, a tafularias que desprezamos, como o espartilho, com que se arrocha, para que lhe caiam bem os casacos cintados, e alargando tanto as calças que, em breve, estarão transformadas em saias. Se ele entra pelo que é nosso, se emigra para a nossa Pátria não tem direito de nos opor barreiras.

— Pois sim... Mas a sociedade, apesar de todas as propagandas feministas e libertárias, continua ainda aferrada aos velhos preconceitos. Uma moça que ande só, sujeita-se a comentários. E a loura a rir:

— Só!? Nunca andamos tão acompanhadas como agora.

— Sim, mas acompanhamentos que nos comprometem...

— Se os não repelimos.

— Repelir é provocar escândalo e no escândalo sempre a mulher é a prejudicada, por ser a mais fraca. Deus, quando separou os sexos, foi para que cada um tivesse o seu destino, a sua vida à parte.

— Ora... separou! ... Separou-os para que a lei da atração universal os unisse.

A gorda, do cachorro (porque o contrabando, como certamente perceberam, era um lulu) levantou-se arrebatadamente com um muxoxo de revolta, resmungando contra os costumes soltos de hoje em dia. A barca, como se também protestasse, apitou roufenha, resvalando aos esbarros pela amurada da ponte. As duas senhoritas puseram-se de pé, sacudindo-se espanejadamente. Ainda pude ouvir a morena:

— Não, minha amiga — entre os homens, por mais que façamos, havemos de ser sempre tratadas como emigrantes. E a loura, muito espevitada:

— Sabes que te falta? Audácia. Na vida, sem audácia nada se faz. Quantos emigrantes estão hoje senhores das fazendas onde entraram como colonos...

Nada mais pude ouvir porque, na lufa-lufa do desembarque, as duas desapareceram na multidão.

A VIDA

Estirando-se, de pernas cruzadas, em um dos amplos reclinatórios do salão egípcio, Savio acendeu um charuto e, sorrindo a Hortêncio, disse:

— Não leves a mal o meu vício. Também o teu íbis está fumando. É verdade que no tempo de Ramsés ardiam incensórios, mas não se conhecia o havano; a fumaça, porém, é velha, nasceu do fogo, quando a primeira centelha crepitou inflamando uma folha seca; nasceu do fogo como a sombra nasce da luz. Demais, se quiséssemos obedecer rigorosamente a encenação faraônica, que este recinto estranho impõe, teríamos de recorrer aos figurinos do Museu de Gizé, em vez de nos vestirmos pelos moldes do Rabelo.

— Não vou tão longe com as minhas exigências. Faço questão do ambiente, isso sim, o mais... Nesta espécie de hipogeu isolo-me do século atravancado e ruidoso que tumultua lá fora. Aqui nem o próprio sol penetra — ilumino-me a lâmpadas absconsas. Sou uma espécie de alquimista incluso, e como afirmam que o silêncio é de ouro, esse é o ouro que busco. Quanto ao fumo do íbis, bem sei que te não agrada, garanto-te, porém, que é o autêntico kyphi, que ardia nos defumadores e nas caçoulas dos templos. Achei-lhe a fórmula em um papiro funerário e mandei-a a Bichara, em Paris, para que a reduzisse a pivetes. Achas o aroma demasiado forte, estítico...? Que queres, meu amigo... a culpa é nossa que degeneramos: na força, nas faculdades, nos sentidos, em tudo. Que criamos nós? nada, aproveitamos o que nos legou o passado, como os industriais aproveitam o que lhes dão lavradores, pastores, mineiros e quantos extraem da natureza a matéria prima. Aqui não me preocupo com o tempo, não ouço as horas, como se vivesse na eternidade impassível. Sonho...

— Sonhas... Pois, meu caro, o teu sonho é o meu pesadelo.

— Por quê?

— Porque mal apareço em um salão, como sabem que sou o teu amigo mais íntimo, logo me cercam curiosos interrogando-me sobre a tua vida misteriosa, pedindo-me informações do que fazes; se é verdade que habitas um subterrâneo; se o teu salão de trabalho reproduz a nave de um santuário de Amon; se tens contigo crocodilos, escaravelhos, serpentes e deuses com cabeças de bichos. Por aí já te chamam Tutancâmon. Afinal que te custa atender à essa gente, satisfazendo-lhe a curiosidade? Por que não ofereces um chá, uma libação qualquer à sociedade elegante, entre estes hieróglifos, estas, tapeçarias fantásticas e toda a cerâmica vetusta que aqui tens, aproveitando esse hediondo anão Bess como porta charutos e cigarrilhas? Em vez de jazzband porias aqui umas tangedoras de sambuca e de néfer e umas duas dançarinas e seria um sucesso. Restaurarias o passado livrando-me, ao mesmo tempo, dos importunos, que me não dão tréguas.

— Estás louco! Seria uma profanação, e tu sabes que os deuses egípcios são terrivelmente vingativos.

Não! Isto aqui é sagrado. Fiz um ambiente ideal para viver em paz.

— Uma câmara de morte...?

— Sim. A morte é imponente e serena como a estatuária. Aqui tudo é ideal, tudo é sonho. Passo semanas nesta clausura, já passei um mês, vivendo como no tempo de Sesóstris.

— E que tal?

— A vida em si é a mesma, nós é que a modificamos, exteriormente apenas. O tempo é invariável, assim a vida. Os relógios, sim, esses é que apresentam aspectos vários, tanto, porém, regula um simples despertador de níquel como um carrilhão de bronze, com o mostrador de prata e as horas em tauxias de ouro. O que se deve buscar na vida é o que ela tem em essência — poesia. Lá fora eu viveria como toda a gente; aqui faço uma existência à parte, só minha. Sonho. Aí onde estás deitado tive eu, à dias, uma visão estranha. E já agora, como Schopenhauer, não duvido das aparições. Não sei se foi sonho, delírio de febre, exaltação cerebral ou sugestão deste ambiente, afirmo-te, porém, que vi e, o que é mais, ouvi a aparição como te estou vendo e ouvindo a ti. Afinal, neste mundo delusório, que é, em suma, a Verdade?

O próprio Cristo não a definiu e o enigma terrível aí está no caminho da Vida, à espera de um Édipo que o decifre.

A Verdade tanto pode ser o que se nos manifesta à vista, perceptível aos sentidos, como o que apenas se nos afigura vagamente em impressões. Toda a nossa vida, o que chamamos Vida, que é um equilíbrio acima da Morte, o tal abismo, cujas rampas alcantiladas ninguém vingou jamais, que é, em suma? ação mecânica ou inspiração? Vive-se do exercício da matéria, da combustão do sangue, da eletricidade nervosa ou... por prestígio da alma? Quem sabe lá! Vive-se...! Que dirias tu de um homem que tentasse estudar o espectro à meia noite, procurando o clarão do sol à luz de uma candeia?

— Diria que era um louco.

— Pois, então, meu amigo, recolhe a um hospício todos os fisiologistas, porque outra coisa não faz eles com a sua Ciência senão o que faria tal louco diogênico. Não é na morte, no cadáver, que eles estudam a Vida?

As ilusões equivalem-se: tanto é estudar a Vida na Morte como procurar, com uma candeia, o sol à meia noite. Não nos iludamos, meu amigo; a Verdade ainda não foi achada e talvez nunca o seja. Vivemos, eis tudo.

Quando nos sentimos acossados pela curiosidade e perseguidos pelo Temor na escuridão da ignorância, batemos desesperadamente à porta de bronze do Mistério, bradando por Deus. Quem nos responde? a nossa própria voz em rechaço, o eco reboante do nosso clamor ao qual chamamos supersticiosamente oráculo. Não é isso? Já alguém conseguiu passar além de tal porta? Ninguém!

A Religião é uma boia que flutua no oceano da Vida, mas como toda boia — vazia. Imaginamos salvar-nos pela Fé, que é um vácuo, dentro do qual a eterna Esperança põe a nossa salvação em Deus. A boia resiste aos mais desabridos temporais, sempre à tona das vagas. Que é que a mantém? o vazio. Ponham-lhe dentro um pouco de peso, digamos: raciocínio, e irá ao fundo imediatamente.

— Estás séptico, homem de Deus.

— Não, não estou; não posso estar, porque não sou. Creio em alguma coisa, numa Força oculta, impassível, não Deus. Deus, segundo o concebem os crentes, seria justo e a Vida é indiferente — nem boa, nem má, Vida apenas, como a terra é terra, como o mar é mar. Deus é um polo magnético que nos atrai, e eu mareio por Ele, sem me preocupar com o que seja. Quanto a fórmulas religiosas, dogmas, revelações, evangelhos, fábula e doutrina, enfim, aceito-os como poesia de consolação, só isso.

Elevo-me em aspiração como a planta busca o sol. A minha religião é um êxtase. Mas tornemos ao nosso caso.

— A visão...

— Visão... pois seja como dizes. .E que é a luz? Enfim... foi tudo fantasmagoria, miragem, delírio dos sentidos, em uma palavra: fantasia. Mas que eu vi e senti... garanto!

— E que viste, afinal?

— A Vida e a Morte, o direito e o avesso do Destino.

— Viste?

— Vi!

— E então? A Vida sei eu o que é. E a Morte? Que tal? Horrenda, não? como a que apareceu ao lenhador da fábula?

— Não. Tudo que há de mais simples e de mais fisiológico. A Morte que me apareceu, a Morte que eu vi... era a Vida.

— Homem, francamente... começo a achar-te extravagante.

— Dize antes: amalucado. Pois, meu amigo, se te pareço doido, olha que o não são menos do que eu os sábios que nos andam a ensinar problemas da vida em cadáveres.

Não vejo em que diferem eles dos arúspices e outros sacerdotes de agouro, que liam os fados nas entranhas das vítimas. Mas vamos ao assunto. Sonho ou delírio, o caso é que me achei transportado ao vestíbulo de majestoso edifício que, pelas linhas arquitetônicas, me pareceu um templo, todo de mármore, cercado de colunas de capitel florido e reluzente como de ouro. A poucos passos, entre árvores de ramas em filipendulas, que se espalhavam ao vento à guisa de cabeleiras verdes, um rio, ou melhor — um córrego de águas transparentes, nas quais se cruzavam peixes de um brilho irradiante e moluscos em forma de flores iam e vinham, abrindo e cerrando as corolas, defluía com acento tão harmonioso como se lhe ressoassem harpas na correnteza. E o aroma das flores era tão intenso que me atordoava. Ilusão, dirás tu... Mas que poderosa ilusão seria essa que chegava a todos os sentidos, impressionando-os? Assim como eu via, não só o que me cercava, como ainda a vista se me estendia dilatadamente abrangendo todo o círculo cerúleo do horizonte, como sentia o perfume das flores e o cheiro seivoso do arvoredo e das ervas, ouvia o trêmulo som de água, tocava sensitivamente as colunas marmóreas, tudo como na realidade, com a consciência límpida que não se tem no sonho e menos ainda em delírio.

Desse templo vi eu sair uma figura admirável, branca como se fosse talhada na mesma pedra pentélica que reluzia em todo o edifício, ao clarão do sol. Tomei-a por uma sacerdotisa.

Levantei-me deslumbrado, antes, porém, que lhe dirigisse a palavra, ela sorriu-me, e sorrindo falou-me. E a sua voz ficou docemente soando aos meus ouvidos, como perdura, ondulando no ar, de leve, a trêmula vibração das cordas de uma citara:

"Eu sou a Vida, disse-me. Pede-me o que quiseres enquanto me tens diante de ti, fá-lo, porém, depressa, porque eu não paro."

Tal, porém, era o meu enlevo que não pude pronunciar palavra e quando, saindo do arroubo, bradei à aparição: "Leva-me contigo!" as minhas palavras caíram sobre a sua sombra, que era...

— A Morte.

— Sim, a Morte. A Vida ia longe, muito longe!

— Tens razão em afirmar que não foi sonho o que viste. Nada há mais real do que isso que descreveste. Todos nós ficamos deslumbrados diante da Vida e só nos lembramos de lhe pedir favores quando ela vai longe e a Morte, que é a sua sombra, se nos opõe, funérea. Tens razão em afirmar que não foi sonho. Também eu estive no tal templo, e vi a Vida, mas quando dei por mim e lhe pedi que me levasse consigo... a Vida anda tão depressa... tão depressa! que o meu pedido quem o ouviu foi a sua sombra.

— E a todos acontece o mesmo.

— A todos! porque todos, enquanto ela passa, embebidos nela, tudo esquecem e quando se lembram de lhe pedir favores... já ela vai longe, muito longe! e quem, por ela, atende é a sua sombra: a Morte.

O COLECIONADOR

A arca de Noé seria um modelo de ordem se a comparassem ao autêntico casarão colonial de Meroveu Barroso, descendente, conforme prova a sua ramalhuda árvore genealógica, de Meroveu, o famoso rei franco, que derrotou Átila nos Campos Cataláunicos.

Para ter-se uma ideia do caos bastaria visitar-se aquela barafunda heteróclita, onde jazem enterradas duas fazendas, uma de café outra de cana, seis prédios de sólida construção e não sei quantas apólices da dívida pública e ações de bancos e companhias.

Desde o jardim, em mato, até o socavão do forró, tudo é antigualha ou esquisitice: plantas exóticas, vasos retirados de escavações, fósseis, escassilhos de mármore e granito, ferros velhos, animais, uns vivos, outros empalhados; esqueletos de bichos desconformes, armas de sílex, de bronze, cerâmica, múmias egípcias, tijolos assírios.

Nos corredores, nas salas amplas, em quartos e alcovas e até na cozinha, em armários, vitrinas, pelas paredes, em pilhas ou em feixes uma arrecadação multifária de objetos os mais bizarros, desde capuzes entressachados de pérolas (um deles traz um cartel com o nome de Rhódope), até selins, sendo o mais notável o de Tamerlão, e tapeçarias, dixes, ídolos, livros.

Das paredes não se vê um palmo livre, tantos são nelas os exemplares de porcelanas, telas, azulejos, peles de bichos, panóplias varias. O que, porém, há de mais interessante e precioso nessa imensa Cafarnaum é a coleção de autógrafos.

Meroveu tem ali originais de todas as grandes celebridades do mundo e, em armário especial, trancado a sete chaves, o recibo que Adão passou ao Senhor quando recebeu o Paraíso, o diário de Noé, durante os quarenta dias do dilúvio; a harpa de David, alguns fios da cabeleira funesta de Absalão e a espada com que Judith matou Holofernes.

Tais preciosidades bastam para provar que Meroveu, em vez de viver no casarão colonial de Catumbi, onde se agitavam e disputavam chegando, às vezes, a dentadas e taponas, dezoito mulheres de raças e tipos diferentes (porque ele também colecionou exemplares raros do sexo feminino), devia, há muito, achar-se recolhido a uma cela do Hospício e assim a herança gorda não se lhe teria escoado das mãos pródigas em aquisições de tantas bugigangas e o bairro de Catumbi não tresandaria tanto a naftalina e canfora, por amor das peças suscetíveis de serem atacadas pelas sevandijas roazes e ele não chegaria à miséria a que chegou. Mais fácil, de certo, seria andar no labirinto de Creta do que mover-se alguém naquela trabuzana.

Meroveu não admitia que se esbarrasse em um móvel, que se acotovelasse um vaso, que se pisasse um tapete, que se roçasse por uma alfaia. No meio daquela cacaria, diante daquelas bugigangas exigia Meroveu que os visitantes se portassem como devotos num templo. Infelizmente, porém, a doença, que, há muito, rondava o pobre homem, atirou-o à cama, à cama, digo mal, a um estrame, porque, ainda que, para comer ou escrever, se sentasse em uma vertebra da baleia que engoliu Jonas e fizesse de mesa outra de um plesiosaurio, não se deitaria em uma das suas camas, por serem todas exemplares raríssimos de estilos vários.

Era num estrame que dormia e nesse estrame fui eu encontrá-lo jejuno, sem vintém e sem crédito para um pão ou para uma cápsula ou um comprimido na farmácia.

Achei-o só, rebolcando-se no estrame no meio do seu vasto arcaísmo.

Pobre sonhador! Mísero visionário!

A coleção feminina, mulherio sem ideal, aos primeiros rebates da miséria, atirou-se, de faca em punho, à bicharia viva, e comestível, e foi uma devastação nos aviários e em certas gaiolas. Os carnívoros repugnantes entredevoraram-se nas jaulas e o que ficou por último morreu inanido, sorte que, igualmente, tiveram, depois de urrarem e aulirem dias e noites seguidas, alarmando o bairro, os herbívoros. Quando não houve mais recurso a coleção feminina debandou, cada qual a um rumo, e Meroveu ficou como Ugolino na torre.

Felizmente cheguei a tempo porque o coitado, ao ver-me à sua cabeceira rasa, tomando-me as mãos ambas, disse-me por entre lágrimas:

— Ah! meu amigo, se não viesses hoje não sei que seria de mim porque, em verdade te digo — eu estava a pique de cometer uma profanação.

— Tu!?

— Eu, sim. Eu!! Sabes lá o que é ter fome. Ontem à noite (delírio, com certeza) comecei a ver tudo isto a mover-se em volta de mim, oferecendo-se-me. Lembras-te da tentação de Santo Antão, no grande livro de Flaubert? Pois foi mais ou menos o que se passou comigo. O boi Apis, que ali está, desceu vagarosamente do altar e, a passo curto, veio vindo, veio vindo até que se plantou diante de mim e mugiu. E vi, então, que ele se desmanchava em petisqueiras: em ensopado, em picadinho, em almôndegas e, por fim, em roastbeef. Depois foi Isis, a vaca divina, que me veio oferecer o leite das suas tetas. Imagina tu... eu mamando o mesmo leite que coalha, lá em cima, a Via Láctea. Depois... o peixe Oanes e, por fim, como sobremesa, um cabaz de frutos da Árvore da Ciência, da qual tenho um galho, comprado a um turco, em Jerusalém. Como eu repelisse de mim todas essas comedorias, aquela múmia, a primeira à esquerda, na entrada, que é de uma princesa, que morreu donzela, filha de Ousitersen Iº ou de outro faraó da mesma dinastia, desligou-se dos seus liames, levantou-se do sarcófago e veio deitar-se comigo nesta esteira imunda, acariciando-me, dizendo-me ternuras...

— E tu...

— Eu! Que julgas tu de mim? Eu respeito a minha coleção. Repeli-a, aconselhei-a, disse-lhe que tivesse juízo, que se deixasse de asneiras. E ela tornou ao sarcófago. E aqui estou eu, como vês, abandonado de todos os vivos, entre trastes velhos e outras burundangas, coisas interessantes para mim, mas que, para os outros, não valem um real. Tenho ali um dos crocodilos que eram adorados em Tebas. Mandei oferecê-lo por um quilo de carne, o açougueiro recusou-o. É assim, meu amigo. E, inclinando a cabeça encanecida, suspirou: E dizer-se que esbanjei uma fortuna nisso que aí está, que me privei de todos os gozos da vida para cercar-me de antigualhas pelas quais, estou certo, não acharei hoje a décima parte do que me custou o Diário de Noé ou o Recibo de Adão...

— Mas dize com franqueza: Tu acreditas na autenticidade desses documentos?

— Se queres que te diga a verdade... acreditar, não acredito, até porque tanto Adão como Noé eram analfabetos e no tempo deles não havia papel nem tinta.

— E porque, então, conservas esses gatafunhos e o resto? Porque não vendes tudo isso em leilão. É possível que apareçam americanos.

O pobre homem encarou-me pasmado e, depois de um momento de espanto, estirando vagarosamente o braço magro, mostrou-me sobre uma cômoda D. João V, uma imagem, diante da qual ardia, em últimos vasquejos, uma lamparina de azeite. E disse:

— Está ali uma imagem, que eu venero. É Deus? Não. E um símbolo: é ela, entretanto, que me conforta a alma nos momentos de desânimo. Vender ... Prefiro morrer à mingua com os meus objetos, olhando-os até que, de todo, se me apague a vista nos olhos. Foram as minhas ilusões, os meus ideais, o meu grande sonho, o melhor da minha vida. Que importa que sejam falsos se eu os amo. O próprio amor ...

 Pobre! Como esse, quantos colecionadores de ilusões morrem por ai à mingua na opulência imaginária que acumularam!

PLANTAS DE VASO

— Qual psicologia! Deixemo-nos de ilusões. A vida é governada pelo instinto, por ele apenas, que é o senhor absoluto da matéria. O mais não passa de convencionalismo, atitudes cerimoniosas que desaparecem na intimidade.

— Dás razão a Epicuro.

— Toda a razão. Foi justamente a tal psicologia que, por indução, me levou a preferir Eugenia à Delmira, mais nova, mais bela, mais interessante em tudo e por tudo. Submeti as duas à demorada análise e optei por Eugenia, embora com violência da minha inclinação, pelos motivos que te vou expor. Entre mim e Delmira havia a diferença de nove anos e na corrida do Tempo, meu amigo, ganham os que vêm atrás.

— É o "perde-ganha".

— Sim. Mas o que, principalmente, influiu na minha preferência foi a situação de Eugenia, em tudo igual à minha; dois anos apenas mais moça do que eu, ambos viúvos, cada qual com um filho. Ela trazia-me uma lembrança do primeiro matrimônio; eu levava comigo um legado da minha finada esposa. Assim, em igualdade de condições, não poderia haver desinteligências entre nós — dividiríamos os nossos corações com as duas crianças.

— Absurdo.

— Como absurdo? Absurdo, por quê?

— Por quê? Vou responder-te valendo-me, tanto quanto possa, de uma analogia. A terra, símbolo materno, se lhe arrancares uma árvore, mostrará a cova em que a mesma se gerou e cresceu. O plantador, esse, meu caro, muda de um para outro ponto, indiferentemente, a árvore que plantou, empregando nisso um pouco de esforço apenas. Na terra, da qual foi arrancada a árvore, ficam sempre restos de raízes, que, às vezes, repontam; o lavrador não guarda nas mãos mais do que um pouco de terra que lava no primeiro córrego ou bicame. O amor maternal é um sentimento egoístico, porque é o amor de si mesma, ou digamos — instinto de conservação. O amor paterno pouco mais é que um hábito.

— Um hábito...! Dás, então, à mulher o principal papel na geração?

— Sem dúvida. A terra é feminina, meu caro. O trabalho é masculino. A terra fica; o trabalho passa. O lavrador pode ter à sua conta todo um pomar; a leiva dedica-se apenas à árvore que lhe nasceu. É soterra que gera, que nutre, que ampara, que infiltra seiva à planta até que, abrolhando, comece a receber os benefícios do ar e da luz. O trabalho opera exteriormente; a terra deixa-se rasgar nas entranhas para que as raízes se dilatem, dando-se generosamente em força, em seiva, em humidade, em calor à árvore para que floresça, frutifique e se opulente cada vez mais. O trabalho exerce-se num instante e caminha; a terra fica. A mesma cova não agasalha mais de uma árvore e se nela puseres duas vingará a mais forte, a que tiver raízes mais fundas. É natural.

— Achas, então, natural que Eugenia maltrate minha filha?

— Que a maltrate, não; mas que a estime como ao filho... tem paciência. Se encarares o caso à luz da lei natural, que é a lei do instinto, chegarás a convicção de que até lhe assiste o direito de repulsa.

— E a recíproca? Se eu, por minha vez...

— Não há aqui recíproca. Tu és homem, lavrador; podes cuidar de muitas árvores; ela, não. Ela é mãe. Se tivesse perdido o filho e tu lhe aparecesses com a tua pequena, estou certo de que ela a adotaria contente. Alice encontraria um coração aberto para recebê-la, com a seiva à flux drenada pelo amor e tomaria a si, aproveitando-a, toda a ternura que era dada ao que morrera, como uma planta posta em cova de onde houvesse sido arrancada outra, viveria da força, de todo o vigor do solo orfanado.

Dou-te exemplo melhor, tomado da própria maternidade.

Foi o caso com uma parenta minha.

Criava ela o seu primeiro filho, robusto e lindo menino, que deveria ser meu afilhado, quando, aos cinco meses, em uma imprudente viagem a Petrópolis, em manhã de chuva, apesar de todos os agasalhos, o pequeno resfriou-se. Manifestou-se rápida e violenta pneumonia, contra a qual tudo foi baldado, e em dois dias, sem tempo de perder a robustez e as cores desapareceu o enlevo do feliz casal. Não podes imaginar o que foi esse desastre para a pobre mãe. Dentro, porém, do desespero, em que esteve a pique de enlouquecer, a natureza impassível, com as suas abelhas misteriosas, continuou a encher os dois favos de mel, o mel vital em que entra muito da alma suave das mães. Se as lágrimas lhe corriam em fios dos olhos, o leite entumecia-lhe apoiadamente os peitos, extravasando como de dois vasos quebrados, e fazendo-a sofrer, não só porque recordava o que se fora, como ainda por lhe provocar dores incomportáveis e inflamação com ameaça de erisipela.

A família recorreu à sucção artificial, essa, porém, não deu resultado, agravando, ainda mais, o sofrimento. Foi, então, que alguém se lembrou de que na vizinhança, em certa estalagem, havia uma pobre mulher, enferma, cujo filho ia perecendo à mingua, tão desnutrido por miséria que, com quatro meses, não chegava a pesar três quilos, em ossos e pelancas.

Ao receber a criança — tal era o seu aspecto langanhento, tal era o mau trato que se lhe notava, não só nas vestes como no próprio corpo mole e lívido — a minha parenta teve asco de achegá-la ao colo e dar-lhe o seio à boca. Se o fez não foi por piedade do inanido, mas como se aplicasse um remédio repugnante para alívio das dores que a torturavam.

Passando da miséria de um colo estanque à fartura de dois peitos transbordantes tal foi a transfiguração que em uma semana se operou na criança que a mãe, ao vê-la, acreditou em um milagre, não podendo atribuir tal viço a forças do leite humano.

E a minha parenta começava a afeiçoar-se ao pequenito, que se tornava lindo, quando, um mês ou pouco mais depois de o haver tomado, sentiu que o amor entranhadamente se lhe transmudava em vida, começando, desde logo, o pequeno a sofrer a influência do outro, do que se gerava, e tal foi ela que, se o não desmamassem, aquilo mesmo que o ressuscitará tê-lo-ia matado. Em tal caso não foi o ciúme da mulher, não foi a alma materna que se insurgiu contra o intruso, foi o próprio corpo que se negou a dar a outrem o que pertencia unicamente ao novo ser que nele se gerava. Foi a natureza a envenenadora, foi ela que, em benefício próprio, transmudou o elixir de vida em filtro de morte.

Se assim procede instintivamente a Natureza, como queres tu que a Mulher tenha outro procedimento? A mãe é a defensora do filho, contra tudo e contra todos. Madrastas e amas, ainda as melhores, são, para enteados e crias o que são as tinas para plantas. Tiradas do viveiro onde nasceram e postas em vasos as plantas não medram, tudo têm por medida: desde o ambiente, onde não se podem desenvolver, até os elementos que lhe dão viço — o ar, o sol, a chuva, dos quais apenas gozam quando alguma mão benfazeja as tira da sombra em que se estiolam.

Queres o meu conselho? cuida, tu mesmo, da tua planta órfã, fazendo do teu coração o vaso em que ela viva. Quanto ao mais... tu o disseste: a vida é governada pelo instinto. Se assim é, meu amigo, resignemo-nos, nada de atentarmos contra governos, como fazem os revolucionários.

UM CASO DE LOUCURA

— Quer o amigo a minha opinião? O Dr. Clarimundo está doido.

— Doido varrido, senhor vigário. Varridíssimo! Digo-lhe mais: doidos estão todos: ele, a menina, os pais da menina... Todos! Onde se viu uma coisa Assim? Um homem quase septuagenário (porque o Clarimundo é mais velho do que eu uns oito ou dez anos. Eu ainda estudava preparatórios quando ele se bacharelou em S. Paulo, e eu já estou com cinquenta e seis feitos) casar-se com uma menina de dezoito anos? Só de doido.

— Ou amor, quem sabe lá. Dizem os poetas que o coração não envelhece. Que é assim como uma boia, que flutua no Tempo, que é o oceano da vida.

— Qual boia, senhor vigário. Deixemo-nos de poesia. A velhice, quando chega, entra-nos por todo o corpo, nada lhe escapa. Isso de boia pode ser muito bonito em versos, na realidade é uma história. O que ele está é caduco, sem tento na bola, isto sim. Vossa Reverendíssima não imagina como eu fico quando o vejo ao lado da tal menina. Porque, babão, como está, o coitado deu em andar com ela, levando-a a toda a parte: a chás dançantes, cinemas, teatros, clubes de futebol e até ao Copacabana... Esteve lá com ela, em um baile carnavalesco, fantasiado de urso. De urso! senhor vigário. Faz pena vê-lo trôpego, arrastando os pés, a acompanhar os passos ágeis daquela mocidade trêfega. E o que se murmura quando eles passam, os comentários que fazem! Eu sei que esse casamento é um arranjo, porque Clarimundo tem alguma coisa, isso tem. Mas com que cara se apresentará na sociedade esse infeliz ao lado da mulher? Então esse homem não vê o ridículo a que se vai expor e o abismo em que vai cair? Vai ser um escândalo. Eu já recebi a participação do contrato nupcial. Não respondi, nem respondo. Não posso felicitar um homem que me comunica a sua desgraça. Seria o mesmo dar parabéns a alguém que me mandasse aviso da sua resolução de suicídio. E é o que vai ser esse casamento — um suicídio, escreva o que lhe estou dizendo. Um suicídio ridículo.

— Quem sabe lá!

— O que, senhor vigário!? Vossa Reverendíssima ainda tem dúvidas? Galo velho não canta, e, fazendo força, rebenta, estoura. É o que vai acontecer. Vossa Reverendíssima há de ver.

— Galo velho não canta..., mas dá boa canja, afirmou o vigário sorrindo maliciosamente.

— Ah! sim, isso dará, canja gorda: uns quantos prédios, apólices, o moute-pio e outras achegas. Quanto a isso não há dúvida. Mas, aqui entre nós, V. Reverendíssima não acha que é uma pouca vergonha? O juiz até não devia consentir em tal casamento quanto mais em fazê-lo. Vai-se dar com o Clarimundo o caso da panela de barro. V. Reverendíssima conhece, com certeza, a fábula das duas panelas, uma de ferro, outra de barro. Tendo de descer um rio propôs a panela de ferro à de barro ajuntarem-se, porque, unidas, resistiriam mais a correnteza. Aceita a proposta lá se foram as duas águas abaixo; no primeiro rebojo, porém, foi a panela de ferro sobre a outra e com o choque desfez-se a de barro em cacos, cacos que foram logo ao fundo. É o caso que se vai dar com o Clarimundo, que é uma panela de barro, velha e rachada.

— Mas o caso a que me refiro é outro. Não é pelo casamento que eu o tenho por doido, é por outra coisa, explicou o vigário.

— Por outra coisa?! Pois ainda há outra coisa?

— Sim, há. Ficou-se o vigário um tempo, de olhos baixos, pensando; por fim falou: Olhe, eu lhe vou contar, porque não é segredo. Não foi no confessionário que o ouvi, mas na sacristia, em presença do coadjutor, do sacristão e de umas senhoras que lá estavam, e para senhoras, o amigo sabe, não há segredos.

— E que foi?

— Foi o seguinte. Depois de fungar gostosamente uma pitada e de passar e repassar pelo nariz o vastíssimo Alcobaça, espalmando as mãos nos joelhos e inclinando-se para o Lauriano, disse pausadamente o vigário: Procurou-me o Dr. Clarimundo e, na sacristia, enquanto eu me paramentava, encomendou-me seis missas, das quais duas seriam no altar mor. Naturalmente perguntei em intenção de quem ou de que queria ele rezadas tais missas, e ele saiu-se com esta que, se não fosse dele, que é um homem sério, eu teria tomado por troça de gaiato.

"Senhor vigário, a vida está se tornando cada vez mais difícil. Por mais que um homem se esforce não consegue fazer sequer para a boca. Tudo aumenta à medida que diminui: as casas de hoje são verdadeiros cochicholos e custam os olhos da cara; o pão não dá para o buraco de um dente e vende-se a peso de ouro; a roupa é de má fazenda e justa, ou curta, se é de senhora. Um costume dá-nos panos para mangas; de um vestido que não chega com a barra aos joelhos isso, então, não se fala. Para atender à crise, os patrões aumentaram o salário do operariado, o comércio melhorou os vencimentos dos empregados e o governo decretou a tabela Lira em benefício do funcionalismo. Até aqui muito bem, mas... e o resto? Tempo é dinheiro, como dizem os ingleses, que, nisso de dinheiro, falam de cadeira. Pois bem, esse dinheiro que corre em toda a parte e que não se falsifica, não teve aumento algum, nem de um segundo. Por quê? Porque, para aumentá-lo, não têm poder os homens, ainda que adiantem os relógios, como fazem patrões e o governo, porque todos esses aumentos concorrem tanto para melhorar a vida como o adiantamento dos relógios para dar mais extensão ao Tempo.

— Eis um raciocínio que não parece de louco.

— Sim, não parece. Mas continuando: Para aumentar o Tempo só Deus. É isto que eu venho pedir a V. Reverendíssima que faça nas seis missas que encomendei.

— Isso, quê? Indaguei.

— Que V. Reverendíssima requeira a Nosso Senhor o aumento de alguns minutos nas horas do dia e da noite. Sessenta minutos não bastam. Que Ele aumente uns trinta por cento ao menos e ficaremos com mais algumas horas para o trabalho e etc.

Encarei o pobre homem verdadeiramente penalizado. Notando, porém, que ele tirava a carteira para pagar-me adiantadamente as missas, opus-me ao gesto: "Olhe, meu caro Dr. Clarimundo, se quer que lhe diga, acho que Nosso Senhor não atenderá ao seu pedido".

— E se as missas forem com órgão e uma de libera me...?

— Nem assim. O senhor compreende que esse aumento de horas vem atrapalhar a vida do planeta sem resultado prático para os homens, porque, como as novas horas trarão mais tempo para trabalhos, esse mesmo tempo acarretará despesas novas e ficará uma coisa por outra, se não ficar a emenda pior do que o soneto, como nos está acontecendo com as melhorias alvitradas, que são como lenha lançada a uma fogueira, porque quanto mais se aumentam os vencimentos, mais se agrava a crise. Deixemos o Tempo como está, senhor doutor. Deus sabe o que faz e dirige o mundo com mais tino do que os homens governam a República. Tabelas são panos quentes que não resolvem dificuldades. Assim lhe respondi, como me cabia.

— E ele?

— Insistiu pelas missas.

— E V. Reverendíssima?

— Eu? Que fazer? Vou rezá-las. Com malucos não se discute e que ele está doido... não há dúvida.

— Varrido, senhor vigário. Varridíssimo!

A AMANTE

Ao saírem da Brahma, onde haviam jantado, um lento e conversado jantar cortado a risos, quando lhes ocorria alguma recordação do tempo alegre da vida em comum: Álvaro, na Faculdade de Medicina; Lúcio, no jornalismo, postaram-se os dois à uma das portas, de charuto à boca, olhando os bondes que chegavam e partiam num movimento contínuo de alcatruzes despejando e logo enchendo-se de gente.

Mulheres trêfegas, muito encalamistradas, desciam lestas, sacudindo-se reboludamente; ficavam um momento a olhar, como à procura de alguém, ajuntavam-se às duas e às três, risonhas, e tomavam pela Avenida abaixo, à caça, acotovelando transeuntes, às olhadelas cúpidas. Garotos apregoavam jornais. Os autos, de lanternas fulguras, estacionados em filas ou rodando vagarosamente, espreitavam fregueses. Os cinemas, com as fachadas acesas, pareciam arder.

Álvaro hesitava entre um deles e um teatro qualquer, pretexto apenas para passarem mais algumas horas juntos.

— Homem, queres que te diga? nem uma coisa nem outra. A noite está quente. Se déssemos um giro por aí?

— Vamos a Copacabana. Não imaginas a saudade que tenho do mar...

— Pois vamos. Mas com uma condição: Nada de nos metermos no bar. Aquilo é hediondo! Irrita-me. Eu, Prefeito, acabava com aquele mafuá. É uma profanação. Aquela gente que arriba da cidade para refrescar-se por dentro e por fora, chalrando aos berros, esgargalhando-se escandalosamente; aqueles caixeiros pilherudos; aquela música enfadonha... Horrível! Copacabana devia ser reservada para a contemplação, um sítio de repouso, de êxtase — largo, sereno, com o infinito do oceano e do céu para folga da imaginação... e é aquilo: a balbúrdia. Quando me dá na cabeça lá ir sabes que faço? subo a Avenida Niemeyer meto-me num palhiço que há na barranca e ali fico horas e horas com um copo de cerveja, fumando, a olhar o oceano, onde a esteira do luar parece um grande peixe adormecido à tona das águas. Tenho horror à multidão. Na praia, com aquele ir e vir de povaréu, com aqueles automóveis apinhoados de gente, como em corso carnavalesco, com os idílios no areal e todo aquele casario pretencioso, de janelas abertas sobre salões muito iluminados como vitrinas... Não sei... Sou homem da quietação, do remanso, da solitude, como diria um poeta.

— Falas assim porque vives aqui. Dois anos de província curavam-te de tal fobia. Podes lá imaginar o que é um homem viver em uma cidadezinha do interior, assediado pelo silêncio, sem distração a não serem, de quando em quando, um baile, um circo, uma festa colegial com discursos e recitativos ou o joguinho morrinhento no clube? É de arrasar, meu amigo. Às oito da noite a vida estanca. Cai pesadamente o silêncio e os "noturnos" de Rostand tomam conta da cena: são as corujas, são os morcegos e os sapos rezando gargarejadamente nos aguaçais. Aqui, não. Aqui é isto. Com esta iluminação maravilhosa a noite aqui, dá-me a impressão de um dia trocado em miúdos. Em vez da claridade solar, uma nota única, essa profusão de lâmpadas, como moedas espalhadas num tapete escuro. E o movimento prossegue, a vida continua. Eu sinto necessidade disto: deste rumor, desta lufa-lufa. A província enerva. Não imaginas como me ataranto nas ruas. Estou como um homem que se houvesse levantado de uma paralisia e recomeçasse a andar e, demais a mais, tonto, acanhado, canhestro: um verdadeiro matuto. Vexo-me de tudo. Se entro em um hotel, em um café julgo estar sendo notado, observado por todos, comentado, analisado dos pés à cabeça e enfio, perco até o jeito de andar. Decididamente acabo mudando-me para cá.

— Fazes mal. A vida aqui está se tornando impossível, cada vez mais apertada. Médicos, há-os por aí às centenas, rondando Ministérios à cata de emprego... E todos os anos são novas fornadas. Lá, tens a tua clínica e ainda atendes a chamados de fora porque, segundo me disseram, és o cirurgião preferido na zona. Sempre tivestes jeito para cortar. Quando estudante eras a primeira tesoura da Faculdade, é natural que, como operador, sejas um bisturi perito. Vocação de talho.

Nada de fantasias, meu caro. Deixa-te estar onde estás. Trata de enriquecer, casa-te com uma herdeira de cafezais e quando tiveres fortuna vem, então, tentar o êxito, mas escorado por um capital. Eu sei que isto seduz, não digo o contrário, mas seduz como amante, entendes? Para vida de família, deixa lá! não há como uma cidadezinha provinciana: quieta, modesta, sem vícios. Arranja-te primeiro, depois... faze lá o que te der na cabeça. Pobre, meu velho, não te aconselho. O Rio só com muito dinheiro.

— De acordo. Tens razão. Lá fora nada me falta, mas... que diabo! não é só trabalhar. Preciso gozar um pouco.

— Eu, é como vês... Labuto de sol a sol, como um mouro e não passo da cepa torta. Aqui não se economiza. Com amantes, como esta cidade, não há meio de se ajuntar um vintém. Vai-se tudo e ainda se fica a dever. É um inferno! Viver aqui sem dinheiro é suplício igual ao de Tântalo, a menos que se não queira fazer vida de gigolô, à custa de expedientes.

— Eis o mal da cidade, o vício que nela se adquire.

— Qual?

— O de querer enriquecer, seja lá como for. Todos aqui só me falam em dinheiro. É a febre do arrivismo, a corrida aos milhões.

— Um esporte como outro qualquer.

—Eu, felizmente, nunca fui ambicioso: contento-me com o necessário.

— Ah! não és ambicioso?

— Não. A felicidade para mim, consiste em ter a gente o bastante; o excesso incomoda, traz preocupações. Os ricos não conhecem a felicidade. Exemplo disto dá-nos a fábula do argentário e o sapateiro, de La Fontaine. O desejo é que faz a ventura.

— Pois sim!

— É como te digo. Os que vivem na montanha não gozam o panorama e os quadros que ela oferece, estão fartos de os ver e passam por eles com indiferença. Os que lá vão a passeio, com uma matalotagem de piquenique, esses é que lhe apreciam as belezas, penetram sítios recônditos, correm a floresta, abeiram-se dos abismos no fundo dos quais escachoam riachos, param diante de uma aguazinha que se despenha de rochas, enlevam-se em uma clareira e, descobrindo, ao longe, a cidade por uma aberta do arvoredo, rompem em exclamações de entusiasmo. E o montanhês? o montanhês acha-os até ridículos. Assim os ricos: têm tudo, menos o principal, que é o desejo.

— Preferes a pobreza?

— Sem dúvida.

— Influência de Aristófanes ou de Jesus. Pois, meu amigo, eu quisera-me com os milhares de Ford, e se ainda pudesse dobrá-los, melhor seria.

— Ford, Rockfeller, Carnegie, todos esses açambarcadores de ouro, que têm eles mais do que nós?

— Dinheiro.

— É pouco.

— Achas?

— Não têm uma célula mais do que o mais vil mendigo.

— Aí vens tu com a anatomia.

— É verdade. Vivem encerrados em minas de ouro. Presos. Nós, não. Nós temos o desejo, que é um horizonte largo.

— Horizonte de praia. Eles têm a ambição, que é o horizonte no oceano.

— Compra o pobre ao rico. O pobre planta uma árvore no seu quintalejo, trata-a desveladamente, não deixa nela um parasito, rega-a, aduba-a, acompanha-lhe o crescimento e no dia em que nela descobre a primeira flor... isso é uma festa! Vem por fim o fruto pequenino, sazona, amadurece e o homem colhe-o cantando. E esse fruto sabe-lhe como nenhum outro, por ser bem seu, da árvore que ele plantou e que tanto lhe custou pôr a medrar. E o rico? O rico olha do seu automóvel os frutos expostos em pilhas à porta de um armazém. Desce, paga-os, entrega-os ao chauffeur e, à mesa, come-os dissaboridamente, sem saber de onde vieram, que árvore os produziu, que mãos os colheu. Riqueza é coisa que não me preocupa. Contento-me com a vida que me deu o Senhor. Ninguém vive um milésimo de segundo mais dentro de uma hora, não é verdade? Para que milhões?

Lúcio acenou alegremente a um rapaz de branco que estacara no passeio, além da arcada, movendo a cabeça em gesto interrogativo.

— Nada, por enquanto, bradou-lhe. E a Álvaro: Um instantinho... Espera...

Um bonde aproximava-se. Rápido, num salto, ele atravessou os trilhos ao encontro do homem, que o esperava.

Álvaro elevou o olhar, como a seguir um pensamento e estava assim distraído, a assobiar baixinho, quando um velhote, renteando vagarosamente o edifício, parou diante dele, com um sussurro humilde, a oferecer-lhe cem contos. Recusou: o bilheteiro insistiu citando números de palpite. O médico cedeu por fim e justamente o velhote recolhia o dinheiro, com agradecimento: "Deus lhe dê a sorte, senhor doutor. Boa noite", quando Lúcio tornou à porta. Encararam-se os dois, sorrindo:

— Cem contos hein? Boa propaganda da pobreza, não há dúvida.

— Pensas que comprei pela sorte? Comprei de pena do pobre velho.

— Bem sei. Caridade prática, com probabilidades de fortuna. Emprestas a Deus com juros de avaro. Não te condeno, porque eu também jogo na loteria, com uma diferença apenas — é que eu o faço pelo dinheiro e tu pela piedade. Modos de ver. No fim dá certo. E batendo-lhe no ombro: Está ali um táxi decente. Vamos tomá-lo. Começas a viciar-te, meu caro. Se te demoras mais uns dias aqui acabas jogando no bicho e tomando cocaína. São as amantes que nos viciam e esta cidade é uma amante perigosa, perigosíssima! Cuidado com ela e se a quiseres ter por tua faze o que lago aconselhava: "Mete dinheiro no bolso, muito dinheiro. Vamos tomar o táxi".

UM EXCÊNTRICO

De Carmelo Vampa não se poderá dizer que tenha sido estragado pela "vã filosofia", porque, detestando os filósofos, nunca os leu.

Carmelo nasceu cético, como um fruto nasce azedo. É um homem impassível; nunca chorou nem riu, sorri apenas, pretexto para mostrar os dentes. Tanto se lhe dá que o dia amanheça luminoso como que venha nublado ou desfeito em aguaceiro. Encara todos e tudo com indiferença. A beleza não o atrai, a hediondez não lhe repugna; a alegria não o excita, a dor não o comove. Passa por um herói com a mesma despreocupação com que acotovela um bandido.

"Não faz por viver, diz ele, deixa-se ir na vida." E explica:

"A vida é um rio, não é verdade? Para que nadar, fatigar-me, se a correnteza me leva? Deito-me, cruzo os braços e, boiando, vou indo, de olhos no céu, até a cachoeira que me há de despenhar no abismo, a mim, a todos e a tudo. Os nadadores acreditam que vencem, a braçadas, a força das águas. Cansam-se, apenas, esfalfam-se em vão porque, quando entram no rebojo trágico, na inevitável atração, por mais que lutem nada os salvará. Eu, não. Deixo-me ir.

Se valesse a pena viver, enfim, é possível que eu tentasse agarrar-me a alguma raiz, alcançar uma barranca, tomar pé em algum ponto, mas francamente... isto não me seduz. Estou farto.

Que fazemos nós senão marcar passo, afundando, com os pés, a cova em que nos havemos de enterrar? O que vejo hoje vi ontem e verei amanhã e sempre. A monotonia aborrece. Felizes são os efêmeros, esses, sim: gozam intensamente. Lembro-me de haver lido em uma seleta francesa a história de certos insetos das margens de um rio da Ásia que vivem apenas um dia. Eis uma vida, vida solar, contada a horas. Em um dia vive-se, meu amigo, o miais é repiso, mesmice, remoalho. Não vale a pena, francamente.

Tenho a minha mesa cheia de cartões de "bons anos". Ano novo... Que é isso? A eternidade é imutável. O símbolo da vida é a pêndula: idas e vindas no mesmo andito. E há coisa que mais aborreça do que esse movimento iterativo, com o tic-tac invariável dos segundos que caem? A vida, para mim, é isto, esta casa onde moro há vinte e cinco anos. Conheço-a toda, desde o extremo da chácara até o portão da frente e, no prédio, canto por canto — salas, quartos, corredores, escadas, socavãos. Nela passo os dias e as noites, abrindo e fechando portas e janelas, recorrendo a móveis, deitando-me na cama para dormir, sentando-me à mesa para comer, executando automaticamente todos os atos dessa espécie de sentença a que chamam vida, atos que ei de executar até que me deite para dormir o bom sono.

Depois o rumor, meu amigo, o rumor...! Como pode um homem concentrar-se, sentir-se em si com essa atroada das ruas, assédio tremendo de ruídos, desde o pregão dos ambulantes até as detonadoras descargas e as azoinantes buzinas dos automóveis e ainda, lá por cima, a trepidação dos aeroplanos; sem falar nas várias vozes de homens e de animais, nos estrondos das pedreiras, nos retumbos dos caminhões que passam abalando os prédios, nas vociferações dessas bocarras de lata que berram das sacadas dos prédios, do fundo das lojas e até dos telhados. É horrível!

— Horrível...! Tudo é questão de hábito. Imagina que, apesar do teu apego felino a este casarão, que tresanda a séculos, resolvesses mudar-te. Logo ao entrares em tua nova residência não te assentarias tranquilamente à mesa de trabalho, nem te espicharias, com volúpia, no teu divã ou na tua cama. Antes, terias de pôr os móveis em ordem, de arranjar convenientemente o teu interior, peça a peça, desde o salão até a cozinha. Só no teu escritório, com o que tens em móveis, livros, objetos de arte, gastarias nunca menos de uma semana, isso mesmo com auxílio de armadores hábeis para o alfaiamento e de criados destros para o mais.

E o resto da casa? Durante dias andarias em verdadeiro atravancamento aos esbarros aqui, ali, transferindo objetos de um para outro compartimento, estudando disposições de móveis, de quadros, e mais isto, e mais aquilo. E terias de suportar estrondos de marteladas, rilhar de limas, arrastar de escadas, tinir de louça, ranger de portas e janelas perras, e passos, vozerio de trabalhadores indo e vindo, e até que se estabelecesse o silêncio, para reentrares nos teus hábitos de tranquilidade, muita água havia de correr para o mar. Pois o que se daria se te mudasses de casa está se dando com todos nós no mundo.

A Guerra mudou-nos de um tempo moroso para uma era infrene de grandes iniciativas. Se tanto pôr em ordem uma casa, calcula o que deve custar fazer o mesmo ao mundo.

O rumor de que te queixas é natural: rumor de mudança. Quando tudo estiver em seus lugares, então, meu amigo, a vida será uma delícia. Por enquanto não há remédio. Temos de sujeitar-nos ao atropelo, ao atabalhoo, ao barulho, à desordem, enfim. Mas não tardam os dias serenos, com uma vida melhor, mais confortável e ouso dizer — mais bela.

— As tuas razões não colhem. Em primeiro lugar porque, antes da mudança a que te referes, já eu me não sentia bem neste rame-rame, que achas adorável. Quando aqui se falou — (até sábios do Observatório entraram no coro) — na possibilidade de nos comunicarmos com Marte, vencendo a minha antipatia a tudo que cheira a militarismo, fui logo tratando de arranjar as coisas de modo a poder partir no primeiro transporte, fosse ele qual fosse.

Em segundo lugar, meu amigo, porque nunca me mudei, ou melhor: nunca me ocupei com mudanças. Moro, há vinte e cinco anos, nesta casa, que achas hedionda, por não obedecer ao estilo colonial. Quando para aqui vim, enfarado de roça, encarreguei uma empresa de fazer-me a mudança. Enquanto arranjavam a casa, segundo as minhas determinações, li todo o Rocambole no Hotel das Paineiras. Só desci quando me levaram a conta da empreitada, entregando-me a casa pronta, com a despensa sortida e todos os criados em serviço. Não sei o que seja mudança e essa a que te referiste, que modificou fundamentalmente a vida, a mim não causou o menor abalo. Sou um homem deslocado, e, por isto mesmo, revoltado. Não me sinto bem em parte alguma.

— Mas, afinal, que queres tu?

— Sei lá! Quero viver onde se viva, avançando, onde se caminhe para diante e não se ande em círculo como ponteiro de relógio. Um dos "Pequenos poemas em prosa" de Baudelaire tem este título estranho:

"Any where out of the world" ou "Seja onde for, contanto que seja fora do mundo". Nesse poema o poeta interroga a própria alma entediada sobre o sítio na terra em que ela prefere viver. Tenho aqui o livro à mão. Ouve lá. Começa assim:

"Esta vida é um hospital onde cada doente só tem um pensamento: mudar de cama. Este deseja que o ponham junto ao fogão; entende aquele que se o levarem para junto da janela logo se restabelecerá.

Eu creio que só ficarei à minha vontade no lugar onde não estiver e esta questão de mudança é uma das que eu mais discuto com minha alma."

E que responde a alma do poeta a todas as propostas de mudança que lhe ele faz? Responde-lhe com o título do poema:

"Seja onde for! Seja onde for! contanto que seja fora do mundo!"

Pois, meu amigo, assim respondo eu. Estou farto — farto de tudo! de tudo!

Disse, com amuo de asco, e foi dar corda à vitrola para ouvir um tango.

UMA SANTA

Desde a porta da rua, sempre sórdida, cascabulhada de rebotalhos hortenses: talos e folhas murchas de legumes, escoagem de balaios de peixeiros (porque a cozinheira, uma negraça anafada e falastrona, fazia as compras no corredor, de cócoras, com uma peneira ao colo, resignando enfesadamente), sentia-se no úmido bafio que vinha do interior o cheiro morno de incenso.

A casa, pela insistência das defumações, que a abrumavam, rescendia como uma capela. O aroma, porém, contrastava com o desleixo. O soalho negro cascarrava-se em placas de sujeira; as paredes, escalavradas, abriam-se em frinchas e tinham laivos de humidade; quadros reles pendiam de esguelha, desaprumados; os móveis branquejavam de pó; louça servida, avoejada de moscas, que enxameavam em restos de comida e cascas de fruta, espalhava-se na mesa e nos aparadores. E papéis amarfanhados pelo chão, panos tisnados sobre as cadeiras.

No lustre azinhavrado marinhavam aranhas urdindo teias; outras corriam espernegadamente pelo teto de ângulo a ângulo, porque D. Justina não consentia que as espanassem, certa, como afirmava, de que tais insetos davam felicidade. Demais, que lhe importavam os bichos, se não a incomodavam? Eram criaturas de Deus. Que vivessem!

Em toda a pequena rua, pobre e quieta, rua em que andavam galinhas soltas, mariscando nas sarjetas, ciscando em montoeiras de lixo, comentava-se, com veneração, a vida da piedosa senhora. "Aquela está com o céu garantido, diziam. Uma santa!"

Posto que ainda conservasse no rosto alvo, de palidez ascética, uma triste beleza, sem uma ruga, sem um fio de cabelo branco e os olhos admiráveis, grandes, negros, languidamente adormentados à sombra de cílios longos, não cuidava de si, alheada do mundo, certa de que a mais leve concessão que fizesse à moda compromete-la-ia perante Deus.

Não deixava o trajo negro — vestido escorrido, mal descobrindo os pequeninos pés que ela, propositadamente, calçava em sapatos rasos, de salto baixo; à cabeça uma capota, ao braço uma bolsa ancha onde metia atafulhadamente coisas de devoção e dadivas esmoleres. Nada que lhe pudesse realçar as linhas do corpo, revelar-lhe as formas: tudo simples, severo, humilde.

Na rua era sempre de olhos baixos, com as Horas aconchegadas ao colo, em defesa do coração, e balbuciando rezas.

Ao passar de leve, como uma sombra, crianças saiam-lhe ao encontro tomando-lhe a mão para beijarem; os vizinhos cumprimentavam-na respeitosos e ficavam entredizendo-se: "Lá vai ela, coitada! Não para!" Só o taverneiro da esquina, tipo suíno, de pança ao léu, bufando fervores de álcool, resmungava, inchando o papo rubro, quando a avistava:

"Lá vai a barata de sacristia, a sonsa. Fiem-se nela! Aquilo, mais hoje, mais amanhã está aí comadre de algum padreca. Conheço-as pela pinta! Oh! se as conheço! Para cá vêm de carrinho. E deixem lá que não é nenhuma croia. Isso não é. Quisesse ela vestir-se... Eu, cá por mim, digo — se me dessem a escolher entre ela e a filha, ficava-me com ela, deixando a lambisgoia para quem quisesse."

Rezas sabia-as como um livro, e para tudo: desde ladainhas até orações contra doenças e males de olhos — sezões, erisipela, quebranto; e para ajudar a morrer, e para aliviar parturientes em casos atravessados, até para conjurar raios, nas tempestades, acendendo, com a mesma intenção, um coto de vela do Santo Sepulcro e queimando palma benta, do que tinha sempre farta reserva a um canto do quarto.

Levantava-se ainda com o escuro para a missa das seis. Ao bater da meia noite de quinta-feira, houvesse o que houvesse, ninguém lhe arrancava palavra. Concentrava-se para varrer a consciência, ajuntando tudo que lhe parecesse sujeira da alma para despejar no confessionário, limpando-se escrupulosamente afim de receber, na comunhão, o corpo do Salvador.

Em casa era sempre a repassar rosários — e quantos eram eles! — de Jerusalém, de Lourdes, da Aparecida, do Senhor do Bomfim — e só tomava café (isso nos dias que não eram de preceito, nos quais observava rigoroso jejum) — depois de uma enfiada de jaculatórias rezadas de joelhos diante do oratório, dia e noite alumiado por uma lamparina de azeite ou a velas de cera em certos onomásticos de grandes santos.

Volta e meia era alguém a procurá-la em aflição para uma prece a Deus, a Nossa Senhora ou a algum santo milagroso, por isto ou por aquilo. E ela, piedosamente:

"Vá, vá com Deus! Vou fazer o que pede. Tenha fé". E suspirava compadecida, quando não recorria à bolsa, escolhendo, entre medalhinhas e bentinhos, o que mais conviesse ao caso, ajuntando, às vezes, uma moeda para o pobre de Cristo, dizendo em si mesma: "Deus não me há de faltar com a sua graça. Assim como agora faço por um que precisa, assim Ele fará por mim em caso de necessidade". Às vezes, noite alta, a campainha da porta retinia. Era gente a chamá-la para alguém que se achava nas últimas, e lá lhe recordava a oração dos agonizantes, ou para uma pobre coitada em apertos de maternidade. E fizesse o tempo que fizesse não se recusava ao sacrifício e ficava de guarda ao morto ou regressava cansada, tresandando a remédios, "empestando a casa com porcarias que trazia dos cafundós e bibocas onde se metia", como resmungava a filha com amuos de nojo.

O marido levantava-se da cama irritado, acendia um cigarro e, perlongando o quarto, descalço, desabafava:

"Isto não tem jeito. Afinal de contas você não é irmã da caridade. Não sei que parece andar uma senhora a estas horas da noite por aí em estalagens e casas de cômodos. Não é direito."

De cabeça baixa, calada, ela continuava a vestir-se e saía com a pessoa que a procurara.

Só em contribuições de caridade esgotava-se-lhe a maior parte do dinheiro que lhe dava o marido para as despesas domésticas e aí pelos vinte do mês começavam os recursos do expediente — era o caderno do armazém, eram notas para o açougue, assentamentos da quitanda e da padaria, compras a prazo aos ambulantes e, por abuso da filha, que se aproveitava do jubileu do "crédito", também encomendas no armarinho da turca — tecidos, rendas, miudezas, vidros de cheiro. E os cobradores faziam má cara quando os despachavam à porta, emprazando-os para o princípio do mês. Era a desordem. Tomando-lhe as práticas religiosas o melhor das horas não lhe sobrava tempo para cuidar da casa, que andava à matroca.

As criadas — a cozinheira e a arrumadeira, negrinha sapeca, que gostava muito de bailes — viviam em desmandada calaçaria na cozinha, rindo às cachinadas, ao recontarem-se cenas das sociedades de dança que frequentavam, escândalos relambórios da malandragem da zona.

A filha — dezoito anos viçosos e muito livres — era todo o santo dia a pensar em divertimentos. Na cama, abraçada com o travesseiro fofo, rebolcando-se voluptuosamente nos lençóis mornos, recapitulava, em enlevo, as noitadas de cinema e baile. Tomava o café, lia os jornais — apenas as seções mundanas e os programas de filmes; fazendo projetos para a tarde e à noite. Conhecia todos os artistas de cinema, sabia-lhes a crônica; tinha os seus ídolos entre homens e mulheres, suspirando por uns e invejando outras. Cortava-lhes os retratos de revistas, colocando-os em álbuns, que constituíam a sua biblioteca.

Levantava-se amolecidamente aí por volta das onze, descia para o banho, ainda preguiçando, bocejando e, enquanto se enchia o banheiro, sentada em um dos bancos da cozinha, ficava de prosa com as criadas, coscuvilhando escândalos: casos de namoro e outras malícias do bairro.

Ao sair da água almoçava às pressas, dissaboridamente e ia-se meter no quarto e, em camisola, pisando, a pés nus, os tapetes, com volúpia felina, cantarolava coisas de jazz, fazendo os arrebiques faceiros — lubrificação da pele com eletuários e cosméticos, trato das unhas, raspagem de pubescências, afinamento em curva das sobrancelhas, cor às faces, rouge aos lábios, negror aos cílios, sombra às olheiras, mirando-se, remirando-se horas e horas até que a chamavam para o lunch, se o não levavam ao quarto.

Depois era a lenta, trabalhosa escolha da toilette para o passeio à praia ou um pulo à cidade a compras de ninharias, pretexto apenas para bater a Avenida, mostrar-se, ser citada na lista das elegantes, fotografada num instantâneo. À noite, infalivelmente (salvo se tinha convite para alguma festa) era o cinema no bairro ou na cidade com amigas e aderências do outro sexo.

O homem esbofava-se no trabalho, topando a tudo. Para ele não havia domingos nem dias santos — era, da manhã à tarde e depois, em casa, pela noite a dentro, às vezes até a madrugada, a escrever, a somar parcelas, a corrigir contas, fumando cigarros sobre cigarros.

Além do que tinha como guarda livros da firma Mendonça, Aroeira & Cia., ainda tomava escritas para fazer em casa, encarregava-se de balanços, de exame de livros e dava uma aula de escrituração mercantil em um curso noturno. Nem assim conseguia equilibrar "a balança econômica". O peso da casa aumentava sempre, dando-lhe frenesis, pondo-o de mau humor, embezerrado à mesa. E augurava sombrio:

— Se eu caio de cama não sei que será desta casa. Porque é preciso que saibam: eu vivo do que faço, e só. Não pensem que tenho dinheiro junto. É demais! Eu fico doido!

Uma noite, ao entrar do curso, com os pés encharcados da chuva, a cabeça a estalar de enxaqueca, achou sobre a mesa de cabeceira um envelope atochado de contas. Examinou-as uma a uma, arregalando os olhos, retrincando os beiços, fulo de raiva. De repente, amarfanhando a papelada, desceu a escada e, na sala de jantar, encontrando a mulher a cabecear de sono, na cadeira de balanço, com o rosário entre as mãos e a filha amuada a um canto, resmungando contra o mau tempo, "sempre aquela chuva, aborrecida, que a não deixava sair", explodiu:

— Que contas são essas? A mulher levantou mansamente os olhos estremunhados, encarou-o um instante e baixou de novo a cabeça, remoendo o terço. Mas que faz você do dinheiro que eu dou para as despesas? Pois então ... e engasgou colérico, escarapelando-se agatafunhadamente, a andar pela sala a duras passadas, de mãos às costas, engrolando resmungos.

— Não! Isto não está direito! Assim não é possível! Não há quem aguente uma coisa assim. Voltou-se de golpe para a filha, interpelando-a com aspereza:

— E você? Por que não toma você conta da casa? A moçoila franziu o rosto em ritus escarninho, espocou um muxoxo, a súbitas, porém, aprumando o busto, encarou-o como a desafiá-lo:

— Ah! agora é comigo?! Eu é que hei de tomar conta da casa? Quem sabe!

— E por que não? Não é só cuidar de pinturas, de cinemas e de bailes por aí. Que faz você aqui dentro?

— Que faço...? Se sou de mais, se lhe peso, ponha-me na rua, respondeu com indiferença, cruzando a perna, a sacudir o pé, nervosa. E sorria balançando a cabeça, de olhos no lustre. Ele mastigou em seco, contendo uma resposta atrevida. E a filha, no mesmo tom desprezível:

— Olhe, entenda-se com mamãe. Se, em vez de andar pelas igrejas, metida com padres e beatas e aí por esses cortiços a cheirar defuntos, cuidasse das suas obrigações, ninguém teria razão de queixa. Mas é o que se vê. O dinheiro...! Quem sabe se o senhor pensa que o gasto comigo? Não tenho um vestido que preste, uso uns chapéus que até me fazem vergonha, sapatos... e estendeu o pé, mostrando-o. O dinheiro vai-se todo em esmolas por aí. E com ironia ferina: Fale com a santa! Comigo, não.

D. Justina olhou para a filha, balançando a cabeça, sentida da mordacidade; depois, levantando o olhar, como se buscasse o céu, murmurou:

— Deus que me julgue! Sou culpada... pois sim. O homem relanceava de uma a outra olhares airados. Por fim, abrandando-se, com pena da mulher, cujos olhos lindos começavam a marejar-se, concluiu:

— Eu só digo que não sou de ferro. Abusem... abusem e depois não se queixem. Se eu estourar, minhas amigas..., curvou-se e, estalando a unha do polegar nos dentes, concluiu: acabou-se!

Arrepanhou as contas e foi-se escada acima, batendo os pés; despiu-se e, de pijama e chinelas, meteu-se no quarto desarranjado, onde trabalhava numa barafunda de roupas, pilhas de jornais e revistas, caixas de chapéus e duas cadeiras desconjuntadas, com a palha rota, espipada.

A mulher seguiu-o em passos surdos, achegou-se-lhe humilde e, muito branda, roçando por ele, pediu:

— Não sejas assim áspero com tua filha. É moça, está na idade.

Ele voltou-se enfuriado:

— Aí vens com os panos quentes. É por essas e outras que ela está assim. Moça...! Está na idade...! Idade de quê? Outras há, mais moças do que ela, que vivem por si, do seu trabalho. E ela? Nem para te ajudar no governo da casa. É dormindo até às tantas é por aí em bailes, em cinemas, desmoralizando-se. Pensas que o mundo é cego? E é assim que ela espera achar marido? Há de achá-lo! Um homem de juízo não quer saber dessas "pinturinhas" que batem calçada e assinam ponto em cinemas; quer mulher que entenda do governo de uma casa, que saiba economizar o que é seu. Tu também foste moça, e bonita... Um relâmpago na memória iluminou o passado e ele quedou, como deslumbrado, de olhos fitos no rosto pálido da mulher. E ela, com a sua doce voz acariciante:

— Sim, mas no meu tempo, os costumes eram outros...

— Eram outros, eram...

— Mas não te amofines, e encostando-se-lhe ao ombro, alisando-lhe os cabelos de leve, devagarinho: Falas em doenças... Deus é grande! Foi como se o houvessem espetado. Pôs-se de pé, repelindo a cadeira e desabriu:

— Deus é grande! Deus é grande! É com o que lhe dás! Deus é grande! Mas quem se vê nos apertos sou eu, entendes? Eu é que me mato ao trabalho para não andar com a cara de rasto, perseguido pelos credores. Deus é grande, mas o burro de carga é que faz tudo. Estou farto dessa cantilena. Não há ainda um mês que tirei o relógio do penhor e estou vendo que tenho de o levar de novo e com mais alguma coisa para pagar tudo isto, e, com um gesto largado, mostrou as contas sobre a mesa. Deus é grande! ... Pode ser que seja para outros, para mim... D. Jesuína levou as mãos aos ouvidos para poupá-los àquelas heresias.

— Não fales assim, criatura. Isso brada aos céus! Não exponhas tua alma, que o demônio anda em volta de nós e é por palavras como essas que nos arrasta ao inferno.

— Demônios...! Demônios bem sei eu quais são! Os demônios do meu inferno... e atalhou a frase com um encolher de ombros. Cruzou violentamente os braços: E, aqui entre nós, achas direito isso de deixares as tuas obrigações para andar não sei por onde? Achas que o ser caridosa é uma mãe de família desbaratar o pouco que tem, sacrificar a casa, tirar de si, do marido, da filha para espalhar por aí à toa?

— À toa! Como à toa? São infelizes que precisam de nós...

— Ah! precisam de nós?! E a mim? quem é que me socorre nas minhas necessidades?

— Tu tens a graça de Deus.

— A graça de Deus... A graça de Deus está aqui! e mostrou as mãos engelhadas em grifas. É o que eu desunho no armazém, no curso e aqui até sei lá quando! Graças de Deus...! A boa caridade começa por casa, entendes? Como queres tu que haja ordem se deixas tudo entregue às criadas (porque a filha é o que vês) e só cuidas em rezas, em confessar-te, comungar, ouvir sermões e novenas, fazer quartos a defuntos, e não sei que mais...?

— Faço o que devo pela salvação de minha alma.

— Pois, minha amiga, devias fazer também alguma coisa em benefício do corpo. Eu não me casei para ter oratório: casei-me para ter casa. Não busquei uma santa, mas uma mulher.

— E eu não faço o que devo?

— Tu?! Encararam-se e ele surriou um risinho sarcástico. Se queres que te diga... não chego a entender a tua religião.

— Por quê?

— Porque... porque só vejo nela egoísmo, porque só cuidas de ti, unicamente de ti. Tratas de ganhar o céu como um náufrago que, embora veja outros em volta de si, lutando com as vagas, pensa apenas em salvar-se, pouco se lhe dando dos mais. Se Deus vê no fundo dos corações, minha amiga, acho que não te receberá de boa sombra quando lhe fores prestar contas, porque, com toda a tua beatice, não fizeste outra coisa senão arranjar um lugar para tua alma no Paraíso. Não praticas a Religião desinteressadamente, por fé, nem a caridade por amor ao próximo, senão por interesse de lucro, como o usurário que empresta dinheiro a prêmio.

— Muito obrigada pelo juízo que fazes de mim...

— Sou franco, digo o que penso. Como dona de casa... Olha para isto, e girou com o braço em volta mostrando a desordem do quarto. E tudo mais é assim.

— Estás arrependido de te haveres casado comigo, não é? Mas dize: Não tenho sabido respeitar o teu nome? Já te constou alguma coisa a meu respeito? Fala! Encararam-se fito a fito e foi ele que desviou o olhar, dizendo com aborrecimento:

— Aí vens com a eterna história! Para vocês, mulheres, a virtude consiste apenas nisso. Não! Isso é tanto como um capital confiado a um depositário, presumidamente honesto. Se o desbarata, torna-se criminoso como o estelionatário; se o aplica com inteligência, em bons negócios, enriquece. E tu, que fizeste? (Ela mirava-o pálida, de olhos apertados, mordicando os lábios). Escondeste-o, como o avaro enterra o seu tesouro. Não o esbanjaste, é verdade, mas também não o aproveitaste.

— Que queres dizer com isso? Palavra que não te entendo...

— Não me entendes? Pois, minha amiga, eu não estou falando grego. A mulher que sabe viver pode auxiliar o marido sem prejuízo da honra. As notas sujam-se, rasgam-se, as libras esterlinas, que circulam mais do que elas, porque tem curso em todo o mundo, valem o que pesam em ouro e, por mais que girem, passando de mãos de príncipes a mãos de carvoeiros, não se mareiam. Assim a virtude. E tu? Que fizeste? Abafaste a tua mocidade, murchaste ao calor dos círios e só conseguiste com isso ganhar fama de santa, santa milagrosa, mas só para os de fora, porque aqui em casa os teus milagres custam-me os olhos da cara. Para ganhares o céu fazes-me viver num inferno. É verdade que o adagio diz que "santo de casa não faz milagre...". Estás com o adagio... Sabes que é isso? Vaidade.

— Vaidade?!

— Pois então? Cada qual tem a sua: umas, isto; outras, aquilo. A tua é a de ser santa. Ela teve um gesto manso de resignação:

— Está bem. Vejo que errei votando-me a Deus. Devia ter ficado entre os homens. Agora é tarde para reparar o meu erro. Estou velha. Uma coisa, porém, posso assegurar-te: é que se te não enriqueci também não te dei prejuízo, porque o capital... está intacto. E quantas, meu amigo, virtuosas como as tais moedas, por se meterem em operações atrevidas começaram perdendo e, com esperança de ressarcir o perdido, tudo desbarataram! Não me faltaram propostas de negócios vantajosos, recusei-as sempre, para não tocar no dote que te trouxe e que era o nosso capital. Fui tola, confesso, mas agora...

Baixou a cabeça e, vagarosamente, curvada, sacudida a soluços, foi-se do quarto deixando o marido petrificado em arrependimento, evocando-a do passado, revendo-a nos dias da mocidade, linda, cheia de graça, cercada, de adoradores, sorrindo a todos, como a luz brilha dentro de uma lâmpada de alabastro em volta da qual esvoaçam em enxames negros besouros atraídos pela claridade, queimando-se, porém, se lhe chegam à chama.