QUEIXUMES
DO
PASTOR ELMANO
CONTRA A FALSIDADE
DA
PASTORA URSELINA.
EGLOGA.
LISBOA:
Na Officina de SIMÃO THADDEO FERREIRA.
ANNO 1791.
Com Licença da Real Meza da Comissão Geral sobre o Exame, e Censura dos Livros.
Metido tenho a mão na Consciencia,
E não fallo senão verdades puras,
Que me ensinou a viva experiencia.
CAMÕES.
ÉGLOGA.
Seu manto desdobrava a Noite escura,
E a Rã no charco, o Lobo na espessura
Vociferando, os ares atroavam;
Do trabalho diurno já cessavam
Os rudes, vigorosos Camponeses:
O Vaqueiro, cantando atrás das Rezes,
Após as Cabras o Pastor cantando,
Iam para as Malhadas caminhando,
Tudo jazia em paz, menos o triste,
O desgraçado Elmano, a quem feriste,
Oh pernicioso Amor, cruel Deidade,
Flagelo da infeliz Humanidade:
Tudo, enfim, descansava, exceto Elmano,
Que a mão do Fado, universal Tirano,
Sentia sobre si descarregada;
Que, longe da Paterna Choça amada,
Dependente vivia em Lar estranho,
Sendo os desgostos seus o seu rebanho.
Honrados Maiorais o Ser lhe deram
Lá junto ao Sado ameno, e lhe fizeram
Das Artes cortesãs prezar o estudo:
As Musas o encantaram mais que tudo,
Ateando-lhe n'alma o Fogo santo,
Que estúpidos Mortais desdenham tanto.
Inflamado com ele, ao som da Lira
Quebrava dos Tufões a força, a ira,
E o venerando Tejo sossegado,
A cuja fresca praia o trouxe o Fado,
Mil vezes, para ouvir-lhe as ternas mágoas,
A limosa cabeça ergueu das Águas.
Cego, convulso, pálido, e sem tino
Entrava na Cabana de Francino
O desditoso Elmano. Entre os Pastores
Geral estimação, gerais louvores
Francino com justiça disfrutava:
Alto saber, o Espírito lhe ornava,
Na vasta Capital fora criado,
E por expertos Mestres cultivado.
Doce nó de Amizade os dois unia,
Concorrendo a Razão, e a Simpatia
Para tão bela, e plácida Aliança.
Notando, pois, a fúnebre mudança,
Que no aspecto do Amigo aparecia,
Assim Francino a causa lhe inquiria:
FRANCINO.
Que tens, Elmano? Que fatal desgosto
Banha de tristes lágrimas teu rosto?
Tu, que, ainda há brevíssimos instantes,
Te aclamavas feliz entre os Amantes,
Logrando mil carinhos, mil favores
De Urselina gentil, dos teus Amores,
Vens tão choroso, tão aflito agora!
Ah! Conta-me a paixão, que te devora,
Das ânsias tuas o motivo explica:
Comunicado o mal, mais brando fica.
ELMANO.
Ai de mim! Venho louco, estou perdido.
Oh peito ingrato! Coração fingido!
Oh desumana, oh barbara Pastora!
Fementida Mulher enganadora!
E tiveste valor para a mais feia
Traição, que pode conceber a ideia?
É possível! é certo! Oh Céus! Socorro.
Eu pasmo, eu desespero, eu ardo, eu morro.
FRANCINO.
Amigo, torna em ti, recobra alento,
Declara-me o teu íntimo tormento.
Do cego frenesi, que te domina,
Quem é causa, Pastor? é Urselina?
ELMANO.
Quem, senão ela (oh Céus!) me obrigaria
A tão pasmoso extremo? A Sorte impia
Com todo o seu poder nunca tem feito
Desmaiar a constância de meu peito:
Quem me abate é Amor, não o Destino.
Eu te conto o meu mal, eu vou, Francino,
Retratar-te a mais negra, a mais horrível
De todas as traições. Não é possível
Nos Ermos encontrar da Líbia ardente
Monstro, seja Leão, seja Serpente,
Que possa comparar-te à Fera humana,
Que com tanto rigor me desengana.
Quantas vezes notaste, honrado Amigo,
Finezas, que a traidora obrou comigo!
Quantas vezes daqui presenciaste
Seus gestos, seus afagos, e julgaste,
Que o mais ardente amor, a fé mais pura
Pagavam minha cândida ternura!
Ouve, e conhecerás (ai de mim triste!)
Que foi sonho, ilusão tudo o que viste.
Já sabes, que no dia em que ligado
A Marcia Jônio foi pelo sagrado,
Indissolúvel nó, cantei louvores
A tão ditosos, tão fiéis amores,
E o número aumentei dos Convidados;
Já sabes as meiguices, e os agrados,
Com que a minha infiel me fez ditoso:
Ali, traçando um baile harmonioso,
Por parceiro me quis; ali sentada
Junto a mim, vezes mil a refalsada
Protestou, que em sua alma eu só vivia,
Que eu era de seus olhos a alegria,
Dando-me a bela mão furtivamente,
Que, ardendo de paixão, beijei contente.
Pediu-me o desleal, que ali tornasse,
Que tão doce prazer lhe não roubasse:
Guiado por Amor, fui inda agora
Seu desejo cumprir, que antes não fora,
Porque não sentiria este martírio,
Este ardor, esta raiva, este delírio.
Jônio, que estava à porta da Cabana,
Me veio receber… ah! Quanto engana
Uma aparência alegre, e carinhosa!
Entrei, pus logo os olhos n'aleivosa,
Que, em vez de me tratar com meigo agrado,
Tinha nas faces o desdém pintado.
Pasmando da mudança repentina,
Lhe disse: amado bem, cara Urselina,
Tu comigo tão áspera? Eu ignoro
Em que pude agravar quem tanto adoro.
Isto dizendo, avizinhei-me a ela,
Que estava ao pé da rustica janela,
E da terna pergunta não fez caso,
Nem o rosto voltou, e olhando acaso
Á próxima Cabana de Nigela,
Vi encostado Inálio à porta dela
Olhar para Urselina, a Deus dizer-lhe,
E sem pejo a Cruel corresponder-lhe
C'um doce riso, um gesto namorado,
De amantes expressões acompanhado.
Fervendo-me no peito o amor, e a ira,
Logo, logo em pedaços fiz a Lira,
E em mil imprecações, em mil queixumes
O furor exalei dos meus ciúmes,
Ameaçando a infiel, que eu me vingava
No odioso Rival, que me afrontava,
Se uma satisfação, que Inálio visse,
Logo o meu pundonor não ressarcisse.
Prometeu-me, que sim, mas de repente
A meus olhos se esconde, e vai contente
O lerdo, o baixo Amante encher de gloria,
Que não cabia em si pela vitória,
Que a pior das traições lhe tinha dado.
Fiquei louco, fiquei desesperado,
Contemplando este assombro nunca visto
Nem na imaginação. Não para nisto
Daquela ingrata a pérfida baixeza:
De novas fúrias cruelmente acesa,
Procura Aônio, inerte Pegureiro
Que é o riso da gente no Terreiro
Quando sai a bailar, a cada passo
Se esquece da harmonia, e do compasso,
Sendo falto de prendas, e de sizo
Como o louco Magálio, o rude Anfriso.
Urselina lhe diz, que me incitasse
A que a Choça de Jônio abandonasse,
Persuadindo-me, enfim, que não devia
Presenciar a afronta, que sofria.
Acreditei o indigno Conselheiro,
E saí da Cabana, onde primeiro
Tinha logrado os mimos da perjura,
Que assim desenganou minha ternura.
Ah gênio desleal, falaz, perverso!
Daquilo, que pensei, como és diverso!
Ai! Não me alucinava o meu ciúme,
Era mais do que justo o meu queixume,
Quando (triste de mim!) quando julgava
Que Inálio, inda que simples, te agradava!
Acusei-te mil vezes de fingida,
De que a ele querias ver-te unida
Em laços de Himeneu; mas tu negaste
Sempre o que hoje sem pejo declaraste.
Traidora! Eu não dizia, eu não jurava,
Que o meu sossego ao teu sacrificava!
Ah! Porque me não deste o desengano,
Que eu te pedia, Coração tirano?
Se Inálio, porque tem Campos, e Gados,
Numerosos Casais, amplos Montados,
Atrai esse teu gênio interesseiro,
E eu, posto que leal, que verdadeiro,
De clara geração, de sangue honrado,
Caducos, frágeis bens não devo ao Fado,
E por isso não posso no teu peito
Produzir da ternura o doce efeito;
Que razão te obrigou a acarinhar-me,
E de um fingido amor capacitar-me?
Coração, em perfídias atolado,
Ímpia, se o não tivesse inda criado
A vingadora Mão de Jove Eterno,
Devia para ti criar o Inferno.
FRANCINO.
Consola-te, Pastor; essa perjura
Não deve motivar tua amargura;
Castiga lhe a traição, e o fingimento
Lançando-a n'um profundo esquecimento.
Que mais satisfação, que mais vingança
Queres da vil, da súbita mudança,
Que ver exposta a pérfida Pastora
Ao ludibrio geral? Uma traidora,
Uma fera, uma ingrata, inda que bela,
Não merece a paixão, que tens por ela.
Pondera, que não foste injuriado
De seu duro desprezo inesperado,
Que o feminil capricho extravagante
Não te deslustra o mérito brilhante.
Nenhum, nenhum Pastor n'Aldeã ignora,
Que essa, que te deixou, foi até agora
Carinhosa contigo, e fez patente
Sua correspondência a toda a Gente:
Demonstrações em público te dava
De amorosa paixão, mas não te amava:
Baixo costume, natural fraqueza
É que a fez parecer de amor acesa;
Aquela alma não arde, não se inflama,
A todos corresponde, a ninguém ama.
Bem se viu com Bersálio, e com Laurênio
Seu inconstante, seu volúvel gênio:
‘Té no mais desprezível dos Pastores
É capaz de empregar seus vis amores,
Nunca soube escolher, tudo lhe agrada,
E inda que astutamente enfatuada
Faça crer aos Amantes o contrário,
É já sabido seu caráter vario.
Isto em teu coração gravado fique,
E não queiras, Pastor, maior despique:
Se até agora calei quanto te digo,
Foi por não te afligir, prezado Amigo.
Pouco importa perder quem nada vale.
Contente-te, que toda a Aldeã fale
Contra a sua imprudente aleivosia,
Que, se pensasse bem no que o fazia,
Jamais o falso Monstro, que te deixa,
Fechara a tudo os olhos como fecha.
Deveria lembrar-se a fementida
De que a sua afeição foi conhecida,
De que inda em tuas mãos tens os penhores
De seus furtivos, tácitos favores,
Para não te obrigar com tal injúria
A que dos zelos a violenta fúria
Despedaçasse um véu misterioso,
Um véu tão necessário como honroso.
Mas verás se mais hora menos hora
Não é punida a infiel Pastora:
Doiradas esperanças lisonjeiras
Nutrem-lhe ideias vãs, e interesseiras;
Mas Inálio é como ela ambicioso,
E só deseja um Himeneu lucroso,
Que lhe farte a cobiça, os bens lhe aumente:
Ele próprio mo disse, ele não mente,
Que a sua natural simplicidade
Não pode mascarar a sã verdade.
Eia, pois, cesse o pranto, enxuga o rosto,
Adora a Providencia em teu desgosto,
Não delires, Pastor, não desesperes,
Que és feliz em saber quem são Mulheres.
ELMANO.
Sim, meu amado, meu leal Francino,
Eu dou mil graças ao Poder Divino
Por me livrar do engano em que vivia,
Eu lutarei co’o a terna simpatia,
Que me fez adorar uma inconstante,
Aos falsos Crocodilos semelhante.
Embora logre Inálio os seus agrados
Fingidos, mentirosos, estudados.
O sórdido interesse é quem a inspira:
Se da Fortuna o meu Rival sentira
A triste, perniciosa variedade,
Se a violência de horrível Tempestade
Lhe derribasse as férteis Oliveiras,
Se o fogo lhe engolisse as Sementeiras,
Se a Cheia lhe afogasse os nédios Gados,
Verias em desdéns, e em desagrados
Mudar-se logo o amor, que finge a astuta,
Que de negra cobiça a voz escuta:
Tu a verias outra vez comigo
As chamas assoprar do afeto antigo,
Mendigando razões para aplacar-me,
Para me convencer, para enganar-me.
Mas ah paixão! Teu ímpeto reprime,
E busque-se vingança igual ao crime.
Ritália bela, encanto dos Pastores,
Merece meus suspiros, meus amores:
Com ela fui mil vezes desatento,
Negando-lhe o devido acatamento
Por cumprir o preceito rigoroso
De Urselina infiel, que no enganoso,
No detestável peito encerra, e nutre
Da venenosa Inveja o feio Abutre,
Porque a meiga Ritália é mais do que ela
Branda, risonha, delicada, e bela
Quanto é mais agradável, mais formosa
Que as outras flores a punícea rosa.
Ritália desde agora o lindo objeto
Será do meu fiel, constante afeto:
Arrebatado em êxtase de gosto,
Louvores de seus olhos, de seu rosto
Farei voar nas azas da ternura,
E assim me vingarei d'uma perjura.
Ella, por timbre meu, o escute, o saiba,
E o Coração no peito lhe não caiba
De inveja, de furor: eu, entretanto,
Troque em plácido riso o triste pranto,
E a fria indiferença, com que intento
Recompensar lhe o torpe fingimento,
Até tão alto grau nesta alma cresça,
Que eu veja a desleal, e a não conheça.