Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

AO

MARQUEZ DE POMBAL
POR

Alberto de Magalhães

Poesia recitada no Theatro Valenciano, no sarau litterario-musical de 8 de maio de 1882.

1782—1882

VALENÇA

Typographia Commercial

1882

Meus amigos

Anuindo ao convite para tomar parte do sarau literário do dia 8 de maio, recitei a poesia que vai ler-se, e vós aplaudindo-a indulgentemente, desejastes possuí-la.

Publicando hoje essa modesta composição, satisfaço o vosso desejo e cumpro um dever, prestando a minha singela homenagem ao Richelieu português, ao nosso maior vulto político do século passado.

Guilherme de Azevedo — o distinto e chorado escritor, esse astro de primeira grandeza há pouco eclipsado no céu da nossa literatura, disse do Épico:

«A verdadeira homenagem a Camões ou se paga com uma epopeia ou com um ponto de admiração!

«Julgo preferível que o meu humilde nome subscreva antes esta segunda prova de respeito. Terá feito uma obra mais duradoura, e, sobretudo, muito mais incontestável!»

Eu, plagiando aquela frase tão conceituosa, direi o mesmo de Pombal. Um ponto de admiração seria uma homenagem mais duradoura e incontestável do que esse punhado de alexandrinos, que, ousadamente, vou sujeitar ao bisturi da crítica.

Que ela leve ao menos em conta a humildade do meu nome, que há pouco tempo ainda firma, nas colunas ignoradas de jornais de província e nas páginas dos almanaques, umas quadras massudas de um lirismo piegas.

Valença — Maio — 1882.

A.     M.
 
 
 

I

De joelhos heróis! Baixai a fronte altiva,

Que passa triunfante, aureolada e viva

A sombra d'outro herói! — a lusitana gloria

Que há um século morreu para viver na História.

É cedo inda talvez para a consagração;

Não 'stão extintas já as lutas da paixão;

E a treva — a emulação — debate-se na liça,

Enquanto não raiar o dia da Justiça.

Mas vós, a mocidade, a esperança do Futuro,

Que altivos caminhais, com passo bem seguro,

Na senda gloriosa e árdua do Progresso;

Vós, que haveis de lançar ao solo do Universo

A semente feraz da grande Ideia-Nova,

Deveis ajoelhar perante aquela cova,

Que encobre veneranda a ossada do gigante

Que há um século caiu em luta triunfante.

Ide!… ide ensinar ás gerações vindouras

Que há páginas de luz que são imorredouras

Na história das Nações!

 Dizei a vossos filhos,

Que estão calcados já os gloriosos trilhos

Que hão-de conduzir ao fundo de seu peito

A força da Justiça e a força do Direito!

 

 

 

II

 

A noite tenebrosa, a noite dos horrores,

Estendia feroz as suas negras cores

Sobre a Europa abatida e sobre a terra inteira;

Apenas o clarão sinistro da fogueira

Iluminava a custo aquela triste cena;

Sentia-se um rumor como o rugir da hiena,

Havia um cheiro forte e acre e nauseabundo

Subindo em espirais pelo azul profundo;

A carne a crepitar!.. Os gritos lancinantes!..

Como orgia infernal de velhos Coribantes!

Uma sombra indecisa, impávida e soturna

Flutuava ali à viração noturna;

Era a sombra do Mal — o negro pavilhão

Que tinha escrito em sangue um lema: Religião!

E sobre cada corpo, e sobre esses destroços.

Conjunto informe e nu de carnes e de ossos,

Andavam a pairar abutres esfaimados,

Despedaçando ainda os membros trucidados!

Humildes, evocavam o nome de Jesus,

 — O nome da Justiça, o esplendor, a Luz;

Traziam n'uma mão um velho Breviário;

A outra segurava o facho incendiário,

Um Cristo sobre o peito, aos ombros uma estola…

Era a turba feroz dos filhos de Loiola.

Portugal acordou, enfim, do seu letargo;

Esgotara de todo o cálix mais amargo.

Um homem, um gigante, um gênio portentoso

Erguera-se de pé, n'um brado poderoso,

E disse sem temor àquelas turbas vis.

«Hienas! recolhei ao fundo dos covis!

Largai a vossa presa, oh tigres sanguinários!

De joelhos, chacais! malditos salafrários!

Hei-de lavar com sangue o sangue da Inocência,

Matar-vos como cães, matar-vos sem clemencia,

E arrojar, por fim, ás fauces do abismo,

Os vossos corpos nus e o vosso Fanatismo…

«A verdadeira Fé sucede à Hipocrisia;

A Noite terminou, reaparece o Dia!»

E o braço poderoso e forte de Pombal

Arrebatou da treva o velho Portugal,

Para lançar a Luz, para lançar a Gloria,

Sobre ele, que era só recordação na História.

Exausto e abatido ao sopro da desgraça,

Vergado ao Fanatismo — esse tufão que passa

E tenta destruir os brilhos da Razão —

Sentia emurchecer na sua heroica mão

Os louros que colhera ao sol de cem batalhas.

Calara-se o canhão; o fumo das metralhas

Já não tostava a tez aos bravos defensores

De Diu e de Malaca!

 Esses conquistadores

Que tinham ofuscado o nome de Veneza,

Que tinham concebido a audaciosa empresa,

 — Na febre do valor, febre de triunfar, —

De avassalar a terra e submeter o mar;

Esse povo de heróis, titânico, indomável,

Que dera ao mundo leis e fora inconquistável,

Já não queria colher da Heroicidade a palma.

Ele cuidava só… na salvação da Alma!

 

 

 

III

 

As gloriosas naus, as naus conquistadoras,

Que levavam no tope as quinas vencedoras,

Traficavam agora o oiro, os diamantes,

O topázio, o rubi, os límpidos brilhantes,

Que outrora o Oriente e hoje o Novo-Mundo

Lançavam sem cessar do seu ventre fecundo!

E todo esse tesouro, e toda essa riqueza,

Era p'ra abastecer a perdulária mesa

D'essa turba fradesca — a turba de vadios,

Que não passavam fome e não passavam frios,

Enquanto cá por fora os tristes proletários,

Famintos, rotos, nus, sem pão e sem salários,

Iam implorar ás portas dos conventos

As migalhas servis dos fartos alimentos!

Um rei fraco, imbecil, um rei dissipador,

Assim, à imitação do Rei — Inquisidor,

Lançava essa riqueza aos tigres de roupeta,

Que tinham branca a face e a Consciência preta.

Em vez de edificar escolas e hospitais,

Surgiam construções atléticas, brutais,

Que erguiam ao Azul, ao seio do Infinito,

As torres colossais, gigantes de granito.

IV

 

Pombal surgiu, enfim, e encetou a luta,

Heroica, gigantesca, audaz e resoluta,

Que havia de firmar a nossa autonomia,

E à Europa mostrar que era chegado o dia

Em que, aniquilada a negra Reação,

O velho Portugal tornava a ser Nação.

A Industria floresceu e a Arte ressurgiu;

O comercio acordou; de novo se cobriu

A vastidão do mar do nosso pavilhão,

Que ia transplantar a Civilização

E levar aos confins de todo esse Universo

O nome Português, extinto e submerso!

Depois, deixando assim firmado com ardência

O acrisolado amor da nossa independência,

Esse homem genial, espirito gigante,

Lançou o seu olhar ainda mais distante:

Reformou a Instrução — o foco da Verdade

Que pode aproximar o Gênio à Divindade.

Um dia — horrível dia! — um rude cataclismo

Lançou uma cidade ao seio do abismo.

D'essa terra gentil, que se chamou Lisboa,

Só restava um montão que fuma e se esboroa!..

Pouco tempo depois erguia-se imponente

A nova capital, mais bela e mais ridente…

Calemo-nos agora!... Há-de-se admirar!...

Porque a nossa razão não sabe explicar

Gomo é que um braço só pudesse, sem canseira,

Alevantar do pó uma cidade inteira!

V

 

Injusta muita vez, a Crítica, inglória,

Quer negar-lhe um lugar no panteão da Historia,

Chamando-lhe cruel, carrasco de mil vidas,

A ele, que remiu as raças oprimidas,

Que deu à escravidão a carta de alforria,

Apontando ao Porvir da Liberdade o dia!

E se ele teve, enfim, manchas ensanguentadas,

Também o sol as tem, que ficam ofuscadas,

Pela irradiação da sua luz brilhante…

Está limpo o pedestal da estátua do gigante!

Ele foi da Justiça o braço vingador,

Como depois na França os homens do Terror.

Saudai-o Mocidade! Um brado bem seguro,

Apóstolos da Luz, videntes do Futuro!

Vós, que saudastes já o gênio de Camões,

Erguei-lhe um monumento em vossos corações.

É justo que façais dupla consagração:

 — Ao gênio da Epopeia e ao gênio da Instrução!

Valença, 8 de Maio de 1882.