Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

RAUL BRANDÃO

Humus

2.ª EDIÇÃO

EDITORES

ANNUARIO DO BRASIL — RIO DE JANEIRO

Renascença Portuguesa — Porto

O que tu vês é belo; mais belo o que suspeitas; e o que ignoras muito mais belo ainda.

DE um autor desconhecido.

AO MESTRE COLUMBANO

 

ÍNDICE

A vila

O sonho

A vila e o sonho

Papéis do Gabiru

Atrás do muro

O sonho em marcha

Fevereiro

A mulher da esfrega

Papéis do Gabiru

Outra vila

Deus

O dever

A velha e os ladrões

Diálogo dos mortos

Primavera eterna

Deus

Céu e Inferno

A árvore

Papéis do Gabiru

Terceira noite de luar

 

A VILA

13 DE NOVEMBRO

Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste...

Uma vila encardida — ruas desertas — pátios de lajes soerguidas pelo único esforço da erva — o castelo — restos intactos de muralha que não têm serventia: uma escada encravada nos alvéolos das paredes não conduz a nenhures. Só uma figueira brava conseguiu meter-se nos interstícios das pedras e delas extrai suco e vida. A torre — a porta da Sé com os santos nos seus nichos — a praça com árvores raquíticas e um coreto de zinco. Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a umidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na umidade. Nos corredores as aranhas tecem imutáveis teias de silêncio e tédio e uma cinza invisível, manias, regras, hábitos, vai lentamente soterrando tudo. Vi não sei onde, num jardim abandonado — inverno e folhas secas — entre buxos do tamanho de árvores, estatuas de granito a que o tempo corroera as feições. Puíra-as e a expressão não era grotesca mas dolorosa. Sentia-se um esforço enorme para se arrancarem à pedra. Na realidade isto é como Pompeia um vasto sepulcro: aqui se enterraram todos os nossos sonhos... Sob estas capas de vulgaridade há talvez sonho e dor que a ninharia e o hábito não deixam vir à superfície. Afigura-se-me que estes seres estão encerrados num involucro de pedra: talvez queiram falar, talvez não possam falar.

Silêncio. Ponho o ouvido à escuta e ouço sempre o trabalho persistente do caruncho que rói há séculos na madeira e nas almas.

15 DE NOVEMBRO

As paixões dormem, o riso postiço criou cama, as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutraliza, e só um ruído sobreleva, o da morte, que tem diante de si o tempo ilimitado para roer. Há aqui ódios que minam e contraminam, mas como o tempo chega para tudo, cada ano minam um palmo. A paciência é infinita e mete espigões pela terra dentro: adquiriu a cor da pedra e todos os dias cresce uma polegada. A ambição não avança um pé sem ter o outro assente, a manha anda e desanda, e, por mais que se escute, não se lhe ouvem os passos. Na aparência é a insignificância a lei da vida; é a insignificância que governa a vila. É a paciência, que espera hoje, amanhã, com o mesmo sorriso humilde: — Tem paciência — e os seus dedos ágeis tecem uma teia de ferro. Não há obstáculo que a esmoreça. — Tem paciência — e rodeia, volta atrás, espera ano atrás de ano, e olha com os mesmos olhos sem expressão e o mesmo sorriso estampado. Paciência... paciência... Já a mentira é doutra casta, faz-se de mil cores e toda a gente a acha agradável. — Pois sim... pois sim... Não se passa nada, não se passa nada. Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os hábitos lentamente acumulados. O tempo mói: mói a ambição e o fel e torna as figuras grotescas.

Reparem, vê-se daqui a vila toda... Lá está a Adélia, o Pires e a Pires como figuras de cera. Ninguém mexe. Num canto mais escuro a prima Angélica não levanta a cabeça de sobre a meia. Tanta inveja ruminou que desaprendeu de falar. Chega o chá, toma o chá, e apega-se logo à mesma meia, a que mãos caridosas todos os dias desfazem as malhas, para ela, mal se ergue, recomeçar a tarefa. Um dia — uma semana — um século — e só o pendulo invisível vai e vem com a mesma regularidade implacável — p'ra a morte! p'ra a morte! p'ra a morte!

Passou um minuto ou um século? Sobre o granito salitroso assenta outra camada denegrida, e as horas caem sobre a vila como gotas d'água duma clepsidra. De tanto ver as pedras já não reparo nas pedras. A morte roda na ponta dos pés e ninguém ouve seus passos. Todos os dias os leva, todos os dias toca a finados. O nada à espera e a D. Procópia a abrir a boca com sono, como se não tivesse diante de si a eternidade para dormir. Tudo isto se passa como se tudo isto não tivesse importância nenhuma, tudo isto se passa como se tudo isto não fosse um drama e todos os dramas, um minuto e todos os minutos...

Não há anos, há séculos que dura esta bisca de três — e os gestos são cada vez mais lentos. Desde que o mundo é mundo que as velhas se curvam sobre a mesma mesa do jogo. O jogo banal é a bisca — o jogo é o da morte... O candeeiro ilumina e a sombra rói as fisionomias, a majestosa Teodora, a Adélia, a Eleutéria das Eleutérias, o padre. Salienta-se do escuro uma boca que remói, a da D. Biblioteca. Os padres exaltam-na, a Igreja exalta a sua caridade, que rebusca a desgraça para lhe dar três vinténs. Só distingo, despegadas dos crânios, as orelhas do respeitável Elias de Melo e do impoluto Melias de Melo, lívidos como dois fantasmas. Ambos regulam a consciência como quem dá corda a um relógio. Dividas são dividas. Tudo isto parece que flutua debaixo d'água, que esverdeia debaixo d'água. A luz do candeeiro ilumina as mãos da D. Leocádia, que põe acima de tudo o seu dever, e que leva para casa uma órfã a quem sustenta e que lhe entrapa as pernas: ósseas e secas enchem a sala toda, o mundo todo...

Não sei bem se estou morto ou se estou vivo... Decorre um ano e outro ano ainda. O relento sabe bem, e o tempo passa, o tempo gasta-as como o salitre aos santos nos seus nichos. Se o desespero aumenta não se traduz em palavras. A D. Procópia odeia a D. Biblioteca, mas nem ela sabe o que está por trás daquele ódio, contido pelo inferno. Toda a gente se habitua à vida. Matar matava-a eu, mas várias palavras me detêm. Detém-me também um nada... Chegamos todos ao ponto em que a vida se esclarece à luz do inferno. Mas ninguém arrisca um passo definitivo.

As velhas com o tempo adquiriram a mesma expressão, com o tempo chegaram a temer um desenlace. Debruçadas sobre a mesa as figuras não bolem. Não bolem outras figuras que se envolvem no escuro, e o que me interessa não são as palavras do padre — Jogo; — nem o que a Adélia diz baixinho à Eleutéria, para que a velha temerosa ouça: — A nossa Teodora está cada vez mais moça!... — o que me interessa são as figuras invisíveis: é a dor dessas figuras imóveis, e sobre elas outra figura maior, curva e atenta, que há séculos espera o desenlace.

A vila petrifica-se, a vila abjecta cria o mesmo bolor. Mora aqui a insignificância e até à insignificância o tempo imprime caráter. Moram na viela íngreme e cascosa, que revê umidade em pleno verão, velhas a quem só restam palavras, presas, alimentadas, encarniçadas, como um doido sobre uma coroa de lata que lhes enche o mundo todo. Mora dum lado o espanto, do outro o absurdo. E todos à uma afastam e repelem de si a vida. Mora aqui a Telles que passa a vida a limpar os moveis, só e fechada com os moveis reluzentes, talvez resto dum sonho a que se apega com desespero, e velhas só mesuras, só baba, só rancor. Ter uma mania e pensar nela com obstinação! Criá-la. Ter uma mania e vê-la crescer como um filho!... Mora aqui a D. Restituta, sempre a acenar que sim à vida, e a Úrsula, cuja missão no mundo é fazer rir os outros.

Cabem aqui seres que fazem da vida um hábito e que conseguem olhar o céu com indiferença e a vida sem sobressalto, e esta mixórdia de ridículo e de figuras somíticas. Mora aqui, paredes meias com a colegiada, o Santo, que de quando em quando sai do torpor e clama: — O inferno! o inferno! — Moram as Telles, e as Telles odeiam as Souzas. Moram as Fonsecas, e as Fonsecas passam a vida, como bonecas desconjuntadas, a fazer cortesias. Moram as Albergarias, e as Albergarias só têm um fim na existência: estrear todos os semestres um vestido no jardim. Moram os que moem, remoem e esmoem, os que se fecham à pressa e por dentro com uma mania, e os que se aborrecem um dia, uma semana, um ano, até chegar a hora pacata do solo ou a hora tremenda da morte.

Mora aqui o egoísmo que faz da vida um casulo, e a ambição que gasta os dentes por casa, o que enche a existência de rancores e, atrás de ano de chicana, consome outro ano de chicana. Cabem aqui dentro as velhas cismáticas, atrás de interesses, de paixões ou de simples ninharias, dissolvendo-se no éter, e logo substituídas por outras velhas, com as mesmas ou outras plumas nos penantes, com os mesmos ou outros ridículos, fedorentas e maníacas; os homens a quem se foram apegando pela vida fora dedadas de mentira, prontos para a cova — e o Gabiru e o seu sonho. Cabe aqui o céu e as lambisgoias com as suas mesuras, a morte e a bisca de três. E cabe aqui também uma velha criada, que se não tira diante dos meus olhos. Obsidia-me. Carrega. Obedece. Serve as outras velhas todas. A Joana é uma velha estúpida.

Serviu primeiro na vila, serviu depois na cidade. Serviu um antropologista exótico, que fundira cem contos a juntar caveiras, e de quem a Joana dizia ao amolecer-lhe os edemas dos pés: — Este senhor é um 2.º Camões! — Serviu a D. Hermínia e a D. Hermengarda. Serviu com uma saia rota, as mãos sujas de lavar a louça, uma camisa, os usos e seis mil reis de soldada. Lavou, esfregou, cheira mal. Serviu o tropel, a miséria, o riso, que caminha para a morte com um vestido de aparato e um chapéu de plumas na cabeça. Para contar fio a fio a sua história bastava dizer como as mãos se lhe foram deformando e criando ranhuras, nodosidades, codeas, como as mãos se foram parecendo com a casca duma árvore. O frio gretou-lhas, a umidade entranhou-se, a lenha que rachou endureceu-lhas. Sempre a comparei à macieira do quintal: é inocente e útil e não ocupa logar. A vida gasta-a, corroem-na as lágrimas, e ela está aqui tal qual como quando entrou para casa da D. Hermengarda. Faz rir e faz chorar. Os meninos borraram-na — adorou os meninos. Os doentes que ninguém quer aturar, atura-os a Joana. Já ninguém estranha — nem ela — que a Joana aguente, e a manhã a encontre de pé, a rachar a lenha, a acender o lume, a aquecer a água. Há seres criados de propósito para os serviços grosseiros. Por dentro a Joana é só ternura, por fora a Joana é denegrida. A mesma fealdade reveste as pedras. Reveste também as árvores.

É uma velha alta e seca, com o peito raso. O hábito de carregar à cabeça endireitou-a como um espeque, o hábito das caminhadas espalmou-lhe os pés: a recoveira assenta sobre bases solidas. Parece um homem com as orelhas despegadas do crânio e olhos inocentes de bicho. É destas criaturas que dão aos outros em troca da soldada o melhor do seu ser, que se apegam aos filhos alheios e choram sobre todas as desgraças. E ainda por cima dedicam-se, e quando as mandam embora, porque não têm serventia, põem-se a chorar nas escadas. — É preciso escodeá-la — asseverou a D. Hermengarda quando lhe foi em pequena para casa. Escodeia-a. Noite velha e já ela bate de cima com a tranca no soalho, a chamá-la. — E não te servindo a porta da rua é a serventia dos cães. — Mas ela apega-se. Nunca teve outra ama como aquela senhora. Venera-a. Anos depois diz das pancadas: — Merecia-as. — Já não é preciso chamá-la: a Joana ergue-se num sobressalto, alta noite, noite negra, e dorme com um olho fechado e outro aberto. Velha, tonta, abre de quando em quando os olhos, põe o ouvido à escuta num movimento instintivo, à espera de uma imaginaria ordem: ouve sempre a voz da D. Hermengarda a chamá-la.

Mal se compreende que depois duma vida inteira, esta mulher conserve intacta a inocência duma criança e o pasmo dos olhos à flor do rosto. Trambolhões, fome, o frio da pobreza — o pior — e, apesar de amolgada, com uma saia de estamenha, no pescoço peles, as mãos gretadas de lavar a louça, uma coisa que se não exprime com palavras, um balbuciar, um riso... Misturou à vida ternura. Misturou a isto a sua própria vida. Aqueceu isto a bafo.

Tem as mãos como cepos.

16 DE NOVEMBRO

Debaixo destes tetos, entre cada quatro paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificância. Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância, edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida. Tapá-la, escondê-la, esquecê-la. O sino toca a finados, já ninguém ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimônia, em que a gente se veste de luto e deixa cartões de visita. Se eu pudesse restringia a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o mofo, e a vila a cor de mata-borrão. Seres e coisas criam o mesmo bolor, como uma vegetação criptogâmica, nascida ao acaso num sitio úmido. Têm o seu rei, as suas paixões e um cheirinho suspeito. Desaparecem, ressurgem sem razão aparente dum dia para o outro num palmo do universo que se lhes afigura o mundo todo. Absorvem os mesmos sais, exalam os mesmos gazes, e supuram uma escorrência fosforescente, que corresponde talvez a sentimentos, a vícios ou a discussões sobre a imortalidade da alma.

Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos hábitos. Construímos ao lado da vida outra vida que acabou por nos dominar. Vamos até à cova com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, têm a espessura de montanhas. São as palavras que nos contêm, são as palavras que nos conduzem. Toda a gente forceja por criar uma atmosfera que a arranque à vida e à morte. O sonho e a dor revestem-se de pedra, a vida consciente é grotesca, a outra está assolapada.

Remoem hoje, amanhã, sempre as mesmas palavras vulgares, para não pronunciarem as palavras definitivas. Toda a gente fala no céu, mas quantos passaram no mundo sem ter olhado o céu na sua profunda, na sua temerosa realidade? O nome basta-nos para lidar com ele. Nenhum de nós repara no que está por trás de cada sílaba: afundamos as almas em restos, em palavras, em cinza. Construímos cenários e convencionamos que a vida se passasse segundo certas regras. Isto é a consciência — isto é o infinito... Está tudo catalogado. Na realidade jogamos a bisca entre a vida e a morte, baseados em palavras e sons. E, como a existência é monótona, o tempo chega para tudo, o tempo dura séculos. Formam-se assim lentamente crostas: dentro de cada ser, como dentro das casas de granito salitroso, as paixões tecem na escuridão e no silêncio, teias de escuridão e de silêncio. Na botica sonolenta ao pai sucede o filho sobre o tabuleiro de gamão. Quero resistir, afundo-me. Começo a perceber que o hábito é que me fez suportar a vida. às vezes acordo com este grito: — A morte! a morte! — e debalde arredo o estúpido aguilhão. Choro sobre mim mesmo como sobre um sepulcro vazio. Oh como a vida pesa, como este único minuto com a morte pela eternidade pesa! Como a vida esplendida é aborrecida e inútil! Não se passa nada! não se passa nada e eu sinto aqui ao lado outra vida que me mete medo e que não quero ver. Essa vida talvez seja a minha verdadeira vida. Mas o pior é que eu percebo que, se se apodera de mim, não posso mais viver. Agarro-me com desespero ao hábito e às palavras. Tu não existes! tu não existes! O que existe é isto com que lido todos os dias, as palavras que digo todos os dias, os seres com quem falo todos os dias. — E tu rodeias-me, tu reclamas-me e queres viver comigo para todo o sempre. Não te posso ver!...

Se há momentos em que o caixão que um galego leva às costas me chama à realidade, ao espanto, desvio logo o olhar e reentro à pressa na vida comezinha. Finjo que sorrio e esqueço. Mas sempre não posso! Ano atrás de ano não posso! Não há mais nada! não há mais do que estas figuras paradas, e as horas verdes que de espaço a espaço caem como gotas d'água no fundo dum subterrâneo. Outro ano ainda! outro passo ainda para a morte! Sinto uma dor sem gritos por trás da imobilidade. Cada hora é menos uma hora na minha vida. E o tempo foge, o tempo cor de mata-borrão que ao granito salitroso junta camada denegrida, e às almas sepultadas outra pazada de cinza... Há momentos em que as figuras têm tanta vida como os santos imóveis nos seus nichos — mas há momentos em que cada um redobra de proporções, há momentos em que a vida se me afigura iluminada por outra claridade. Há momentos em que cada um grita: — Eu não vivi! eu não vivi! — Há momentos em que deparamos com outra figura maior que nos mete medo. A vida é só isto? Por mais que queira não posso desfazer-me de pequenas ações, de pequenos ridículos, não posso desfazer-me de imbecilidades nem deste ser esfarrapado que vai de polo a polo. Tenho de aturar ao mesmo tempo esta ideia e este gesto ridículo. Tenho de ser grotesco ao lado da vida e da morte. Mesmo quando estou só o meu riso é idiota. E estou só e a noite. Por trás daquela parede fica o céu infinito. Para não morrer de espanto, para poder com isto, para não ficar só e o doido, é que inventei a insignificância, as palavras, a honra e o dever, a consciência e o inferno.

E ainda o que nos vale são as palavras, para termos a que nos agarrar.

É então um mundo de formulas a que eu obedeço e tu obedeces? Sem ele não poderíamos existir. Se víssemos o que está por trás não podíamos existir. O nosso mundo não é real: vivemos num mundo como eu o compreendo e o explico. Não temos outro. Estamos aqui como peixes num aquário. E sentindo que há outra vida ao nosso lado, vamos até à cova sem dar por ela. E não só esta vida monstruosa e grotesca é a única que podemos viver, como é a única que defendemos com desespero. — Pois sim... pois sim... — Estamos aqui a representar. Estamos aqui todos ao lado da morte e do espanto a jogar a bisca de três. Estamos aqui a matar o tempo. Este passo, que é único e um só, damo-lo como se fosse uma insignificância. Mais fundo: não existem senão sons repercutidos. Decerto não passamos de ecos. Submeto-me, subjugas-me. Já não reparo, já vejo turvo. — Jogo! — E de repente todo o meu ser é sacudido pelo espanto que tateia à minha roda. Raras vezes entramos em contato, mas sinto-o aqui ao meu lado — sem nos chegarmos a entender. Nem quero! nem quero! Se me alheio um momento dou um grito de dor. Escaldo-me.

Na verdade o que eu não posso é ver, o que eu não quero é ver! A vila regula-se por hábitos e regras seculares — mas há outra coisa enorme para lá do cenário de que me rodeio. Para não ter medo criei eu isto, para a não ver criou o Santo o inferno. Há outra coisa esfarrapada e dorida. — Jogo! — Cada vez me sinto mais reles, cada vez as palavras me parecem mais gastas. Há outro ser que vai de polo a polo... Esta figura grotesca não é a minha figura. O salitre roeu os santos nos seus nichos — roeu-os também o sonho... Curvado sobre a mesa repito os mesmos gestos inúteis para não desatar aos gritos. — Jogo! — Isto para fingir que é indiferente o que nos rodeia, que estamos habituados ao que nos rodeia, que sorrimos ao que nos rodeia! Está ali a morte — está aqui a vida — está aqui o espanto — e só a ninharia consegue deitar raízes profundas.

20 DE NOVEMBRO

Fecho os olhos. A chuva desaba interminavelmente do céu, e na luz turva vejo sempre a vila, com as mesmas figuras de museu sentadas na mesma sala... Insignificância, insignificância, insignificância. Portas chapeadas que rangem nos gonzos como portas de prisão, fachadas com os vidros partidos, e uma, duas, três camadas de pó sobrepostas. Lojas térreas donde vem um bafo úmido que trespassa... Como todas as almas, todas as janelas estão perras, e o tempo vai substituindo uma figura por outra figura, uma pedra por outra pedra. Ponho-as em fila diante de mim, com os seus penantes usados, grotescas e maníacas. Considero. Vejo vir os gestos, as cortesias, as ações do confim dos séculos. Isto é nada — é vulgar e quotidiano. É uma aparência.

A vila é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro.

Atrás desta vila há outra vila maior. A lentidão, o gesto usado, a meia tinta mesmo em plena luz, toldam-me a visão. Sobre cada ser caiu uma camada de pó. A vila é isto — e a vila não é isto. Que me importa a Adélia, um dia deinveja, um dia de aquiescência, um sorriso, baba, mesura atrás de mesura? Outra velha mexe por trás desta velha mesquinha. As letras assignadas, as letras protestadas deste ser absorto, o exagero minúsculo, têm outra significação. A realidade é a manha, a astúcia que cada um põe em jogo. Não há velhas com cartas na mão; há orgulho, soberba, inveja paciente. Há intuitos, cautela de quem caminha na ponta dos pés. Há forças e experiência, avareza e astúcia. E mais fundo outro, outro subterrâneo... Todas as palavras que se empregam têm, além da significação banal, uma significação que cada um pesa e calcula, — e outra significação superior. Há palavras que requerem uma pausa e silêncio, e há palavras que é preciso afundar logo noutras palavras. Há pelo menos dois seres neste homem que toda a gente conhece, pautado, regrado, metódico. Ele e o doido morto por fazer esgares. Ele e o doido que só consegue comprimir à força de pontualidade. Esta velha não é a velha com quem lidamos — é outra. Tem tido um trabalhão para fazer mal, nunca conseguiu fazê-lo. Se se arrisca, há-de contar consigo mesma para se contrariar. É uma discussão que não acaba, com a boca amarga, arrependimento — e por fim não realiza uma catástrofe autêntica, que a engrandeça. Curvada sobre o lar remexe sempre as mesmas cinzas frias...

Todos se defendem. Por isso existe uma certa grandeza em repetir todos os dias a mesma coisa. O homem só vive de detalhes e as manias têm uma força enorme: são elas que nos sustentam.

Reparo melhor na vida secreta e na vida subterrânea. Compreendo como é difícil viver todos os dias e todas as horas, como através de tudo é forçoso seguir um fio invisível — e ser reles e sorrir. Gasta-me uma força superior, e com todas as chagas e todos os vícios, com a vida mesquinha e a vida quotidiana, o nada, o penante usado, o fel e o vinagre, tenho de arcar com uma coisa imensa de que me separa apenas um tabique. Tudo o que faço é um arremedo. Está ali outra coisa quando falo, quando me calo, quando me rio. E falo mais alto porque a ouço mexer... Todos suportam o drama de todos os dias, o cinzento de todos os dias, as aflições e a usura que tornam as figuras ridículas e coçadas. Todos suportam os tratos que envelhecem e preparam para a cova, os pequenos interesses, a inveja, a ambição, a dor física. Todos os dias a Hermengarda amarga os brasões da Biblioteca, a Bisbórria todos os dias cisma na sua respeitabilidade, e aturam o azedo que pouco e pouco se deposita nas almas — e com isto uma coisa desconforme, que se levanta e deita conosco, não se tira do nosso lado, em quem ninguém fala e com quem temos por força de coabitar; diante de quem é forçoso ser vulgar e dissimulado, fazendo que a não vemos e com ela à cabeceira da cama...

Atrás da insignificância andam os céus, os mundos, os vagalhões doirados. Anda o desespero. Anda o instinto feroz. Atrás disto andam as enxurradas de soes e de pedras, e os mortos mais vivos do que quando estavam vivos. Atrás do tabique e das palavras anda a Vida e a Morte e outras figuras tremendas. Atrás das palavras com que te iludes, de que te sustentas, das palavras magicas, sinto uma coisa descabelada e frenética, o espanto, a mixórdia, a dor, as forças monstruosas e cegas.

Em certas ocasiões, se as palavras e a insignificância desaparecessem da vida, só ficava de pé o espanto.

Só a insignificância nos permite viver. Sem ela já o doido que em nós prega, tinha tomado conta do mundo. A insignificância comprime uma força desabalada.

Para não ver, para não ouvir, é que nos curvamos sobre a mesa de jogo. Para te não ouvires a ti mesmo, para não veres o que te gasta a todos os minutos e a todas as horas, usura imensa que não sentes e que te vai levar para o escantilhão sôfrego, que te vai mergulhar no silêncio profundo. Usura de todos os instantes. Gasta-nos, desgasta-nos. E todos os dias acordamos mais velhos, todos os dias acordamos mais inúteis. Todos os dias acordamos com mais fel. E todos os dias com mesuras, sem gritos de terror, nos curvamos sobre esta mesa de jogo, não vendo, fingindo que não existe, o espanto que está ao nosso lado, e o espanto pior que trazemos conosco. Chama-se a isto o quotidiano. Isto não tem importância nenhuma. Com isto enchemos a vida até chegar a morte. Esta mesa de jogo é a nossa existência vulgar, a vida de todos os dias, com o galope da outra vida ao lado. Não se passa nada! Não se passa nada! No verão o calor sufoca, de inverno a mesma nuvem impregna o granito, e apega-se, amolece, dissolve pilares das janelas, casebres e a oliveira da praça, só tronco e duas folhinhas cinzentas. Em volta um círculo de montanhas, descarnadas e atentas, espera a tragédia — e as montanhas não desistem. De quando em quando, na solidão que à noite redobra, caem do alto da Sé as badaladas, uma a uma, pausa a pausa. O som tem um peso desconforme.

Estamos aqui todos à espera da morte! estamos aqui todos à espera da morte!

 

O SONHO

6 DE DEZEMBRO

Chove. Cada vez vejo mais turvo, cada vez tenho mais medo. Estamos enterrados em convenções até ao pescoço: usamos as mesmas palavras, fazemos os mesmos gestos. A poeira entranhada sufoca-nos. Pega-se. Adere. Há dias em que não distingo estes seres da minha própria alma; há dias em que através das máscaras vejo outras fisionomias, e, sob a impassibilidade, dor; há dias em que o céu e o inferno esperam e desesperam. Pressinto uma vida oculta, a questão é fazê-la vir à supuração.

Esta manhã de chuva é um minuto no rodar infinito dos séculos, e os seres que passam meras sombras. Tudo isto me pesa e pesa-me também não viver. Do fundo de mim mesmo protesto que a vida não é isto. A árvore cumpre, o bicho cumpre. Só eu me afundo soterrado em cinza. Terei por força de me habituar à aquiescência e à regra? Crio cama e todos os dias sinto a usura da vida e os passos da morte mais fundo e mais perto.

 — É necessário abalar os túmulos e desenterrar os mortos.

É o Gabiru que se põe a falar sem tom nem som. Um homem absurdo. Olhos magnéticos de sapo. É uma parte do meu ser que abomino, é a única parte do meu ser que me interessa. às vezes deita-me tinta nos nervos. Fala quando menos o espero. Chamo-o, não comparece. Se quero ser pratico, gesticula dentro do casaco arrepiado: — A alma! a alma! — Singular filósofo! É capaz de desejar a morte para ver o que há lá dentro; é capaz de achar vulgares até as coisas eternas. Ao lado da vida constrói outra vida. Sonha, e os seus sonhos são sempre irrealizáveis, transformam-se-lhe nas mãos em barro informe. Toda a gente se ri — já sonha outra vez... Para ele a vida consiste, encolhido e transido, em embeber-se em sonho, em desfazer-se em sonho, em atascar-se em sonho. Meses inteiros ninguém lhe arranca palavra, dias inteiros ouço-o monologar no fundo de mim próprio. Ignora todas as realidades praticas. Na árvore vê a alma da árvore, na pedra a alma da pedra. Deforma tudo. Põe a mão e molha. Destinge sonho...

 — A alma — diz ele — ao contrário do que tu supões, a alma é exterior: envolve e impregna o corpo como um fluido envolve a matéria. Em certos homens a alma chega a ser visível, a atmosfera que os rodeia toma cor. Há seres cuja alma é uma continua exalação: arrastam-na como um cometa ao oiro esparralhado da cauda — imensa, dorida, frenética. Há-os cuja alma é duma sensibilidade extrema: sentem em si todo o universo. Daí também simpatias e antipatias súbitas quando duas almas se tocam, mesmo antes da matéria comunicar. O amor não é senão a impregnação desses fluidos, formando uma só alma, como o ódio é a repulsão dessa nevoa sensível. Assim é que o homem faz parte da estrela e a estrela de Deus. Nos vegetais, nas árvores, a alma é interior, pequenina emoção, pequenina alma ingênua e humilde, que se exterioriza em ternura a cada primavera: tocada pelo grande fluido esparso, onde andam as nossas lágrimas, vem à tona em oiro e verde, em deslumbramento. Nos minerais, na pedra concentrada e recalcada, que dor inconsciente, que esforço cego e mudo por não poder abalar as paredes e comunicar com a alma do universo! A pedra espera ainda dar flor.

Para ele estas coisas etéreas são visíveis. Vê tão exatamente como eu te vejo a ti a paixão, o ódio, o amor, os grandes fluidos desgrenhados de oiro, de piedade e de gênio. Há noites em que não resisto: fecho-me com ele a sete chaves. Tem-me estragado tudo. É o doido que em nós prega e nos deixa aturdidos. às vezes consigo afastá-lo, mas sucede que fico sempre com pena: se o ouvisse talvez fosse mais feliz e mais desgraçado... Desdenho-o, e sinto-lhe a falta quando o não tenho ao pé de mim. Deita-me a perder se me apanha desprevenido. Quase sempre é ele quem manda em minha casa, e, mesmo quando falo como toda a gente fala, e quando rio como toda a gente ri, só a ele o ouço no mundo. Diz-me coisas que nunca ouvi, isola-me num vale apertado e cismático, longe de toda a terra, arrasta-me, ou desespera-me. Desaparece como um cão vadio, e quando volta, com lama de todos os caminhos, folhas de todas as florestas, reflexos de todos os enxurros, vem exausto, mudo e feliz. Vem feliz! É ele que me prega: — Toda a agitação é inútil. Não tenhas medo da desgraça! — E eu tenho medo da desgraça. à força de hábito cheguei a mantê-lo no seu lugar, mas nunca o pude suprimir, e quanto mais me aproximo da morte, mais saudades levo do Gabiru, que me estragou a vida toda.

Mora num velho pardieiro encostado à muralha, abafado dum lado pela muralha da vila, que à noite redobra de proporções. O granito enegreceu, poliu-o a chuva, e a escadaria de pedra dá calafrios a quem entra.

 — Essa alma, essa alma disforme, que vai de mundo a mundo, e que em cada ser realiza uma primavera é que é tudo. O resto insignificância. É ela que nos devora e faz da morte a vida e da vida a morte...

Dum lado a muralha de dentes arreganhados para o céu, do outro o sórdido pardieiro, no alto a noite de luar como uma camélia gelada. Dentro disto sonho.

Ponho-me a olhar para ele — ponho-me a olhar para mim. Passou a vida naquela inutilidade, de que sai a rever sonho, e com os cotos partidos a esvoaçar na noite dorida. Primeiro afundou-se em experiências do laboratório, à procura da pedra filosofal. — Ridículo. Depois na aplicação da eletricidade aos vegetais, que se consomem de febre, que se desentranham em flor, sem produzirem fruto. — Grotesco. Agora ninguém o arranca a infindáveis monólogos caóticos: — A morte! a morte! a morte! — Incongruência, obscuridade e dor também; a dor de quem vem da irrealidade, encolhido e transido; a figura estranha de quem se debate com o sonho e sai da luta esfarrapado e doirado. Se o tiram do sonho titubia e não sabe onde põe os pés. Tem as asas partidas. Compreende então a sua inutilidade e desespera-se até reentrar na nuvem que o envolve. Puxa a si o mistério, e, entre as árvores e os fios elétricos que correm todo o quintal e ligam todas as árvores, ouço a sua voz magnética, que impregna de sonho o luar todo branco:

 — Isto é um fluido dor, falta-me condensá-lo. É uma nuvem que envolve tudo, que vem do turbilhão da Via Láctea, arrasta tudo consigo, e ascende em espiral até Deus. Não, a sensibilidade não é individual, é universal. Basta ferir a sensibilidade, que vai dos nossos nervos até à Via Láctea, para transformar as noções do tempo, do espaço, da vida e da morte — basta deitar dentro dum tanque uma gota de vermelho para tingir toda a água. Deito-lhe sonho dentro...

7 DE DEZEMBRO

A vila é tumular e encardida, mas oculta dentro dos seus muros um sonho desconforme. Talvez desconexo, mas desconforme. O sonho é dele: a própria casa de granito revê sonho. O Gabiru mistura, revolve, extrai sonho do sonho. Debalde o que é mesquinho lhe mostra os dentes: o Gabiru não ouve, não vê, não sente. O sonho isolou-o da própria mulher transida de frio, no casarão que deu à costa como uma nau do passado, com o cavername roído pelo mar das trevas.

É um ser quase etéreo. Nem sei dizer se existiu, se a criei; sei que se sumiu num sopro cada vez mais efêmera, com dois olhos verdes de espanto. Sei que me pegou sonho, e que fui levado, perdido, como uma coisa inerte...

Morreu transida de frio. Uma mulher pálida — o que vale um pássaro. Ternura e dois olhos verdes de espanto. Hesita, mal pousa os pés no chão, chora baixinho, e vai talvez acordá-lo, queixar-se... Não se atreve, e esboça um sorriso logo molhado de lágrimas. Morre de frio. Agosto — morre de frio. Até para lhe sorrir se esconde, e põe-se então a olhar o muro (vou-te dizer o sitio) a falar com o muro, a queixar-se à grande nódoa de umidade da parede. Dois olhos verdes de espanto, um vestido de seda, e as meias rotas nos calcanhares. Um nada de ternura tê-la-ia salvo — ninguém o arranca àquele sonho informe. Morta...

Ninguém. Depois que a perdeu tresvariou. Estende fios no chão entre as árvores, e as árvores, sob o fluido elétrico, todo o inverno se desentranham em flor. Pegou-lhes sonho também. É um desbarato, uma profusão que as devora. Absurdo. O quintalório ao pé da muralha, que há séculos revê umidade, não é maior que um lenço; a primavera só chega aqui tarde e de mau modo, com pena das árvores de saguão. Arrepende-se logo. Já veem que o absurdo é maior ainda... Dezembro e primavera. O céu gelado, um brilho de estrelas em engastes novos, e, entre a carie das paredes, as macieiras baixinhas e humildes como exalações de ternura. Mortas. Mortas, secas de sonho. Mortas as árvores desfeitas em flor.

 — Este eflúvio é que é tudo: a torrente de ideias e a torrente de paixões. A minha atmosfera, a alma, penetra a tua atmosfera, e dissolve-a, domina-a, conquista-a. Recua, tateia, hesita. Mas escusas de falar para que eu te entenda. A matéria muitas vezes não me deixa compreender, mas é raro que eu não saiba logo quem tu és, e, mesmo que seja a primeira vez que te fale, as vezes que te tenho encontrado no mundo. — E logo: — A vida perdi-a a sonhar. Depois de morta é que dei com ela. Mas que importa! Acabei com a morte, vou ressuscitá-la. Viveremos sempre, amar-nos-emos sempre...

A noite é de aparato. A lua de coral sobe por trás da montanha em osso, e depois na chanfradura das ameias. Mais flores — todos os galhos dão flor. Sente-se, quase se ouve, a dor das árvores, dos seres vegetativos, ao terem de apressar, de modificar a sua vida lenta, dispersos em ternura.

 — Perdi-a, perdi a vida! Esqueci-a como esqueci tudo. Perdi-a e mais dois dias e tinha suprimido a morte!

Sob o fluido elétrico o quintal tresnoita. Cai neve e abrem os primeiros botões. A árvore transforma-se num ser dorido e esplêndido — transforma-se em sonho — em sonho desfeito em flor, em flores espezinhadas uma atrás das outras por camadas sucessivas. Os ramos espremidos escorrem dor. Até as pedras deitam tinta. O quintal escorre sonho como a alma do Gabiru. Atrevem-se e acordam as coisas apodrecidas, e velhas pedras iludidas põem-se a cantar nesse pio triste dos sapos, que sai da fealdade como uma inútil queixa de desventura. A noite côncava e branca — gelada — cobre indiferentemente tudo isto. Que não cobre a noite? Quatro paredes negras, no fundo remexe o sonho. Perco também a noção da realidade.

 — Tanta flor!

 — Para a sua cova. — E pondo em mim os olhos atônitos: — O que é preciso é ir buscá-los ao fundo da mixórdia, arrancá-los à obscuridade, juntar outra vez as bocas dispersas. Não morrer é nada: vou ressuscitá-los...

Imagina o negrume dum poço — imagina dentro o espanto, e não sei que luz viva, não sei que dor recalcada, não sei que de humilde, que quer viver apesar de dorido. Vivo, e a pata enorme que espezinha e esmigalha. Escuridão e oiro — silêncio e oiro — espanto e oiro.

 — Vê tu a árvore... Uma camada de flor — um grito; outra camada de flor — outro grito. Vê tu a árvore como se transforma num fantasma de árvore, e depois em emoção!...

Suprimir a morte! É uma coisa grotesca. O sonho transborda, o luar transborda — branco e dor — branco e sonho. Depois o silêncio, depois a sua voz magnética — depois a sombra imensa que ameaça desabar sobre nós, no quintal do tamanho dum lenço. Desato aos gritos quando todas as roseiras, fartas de dar rosas, secam, quando da catedral e do silêncio caem uma, duas, três badaladas, que me apertam uma, duas, três vezes o coração. E o Gabiru com olhos de frenesi insiste:

 — Não morrer é nada, suprimi a morte. O que é preciso é arrancar os outros ao silêncio. É uma coisa simples, é uma questão de síntese.

 — A morte, — afirmo-lho — é o repouso eterno.

 — Repouso eterno, estúpido! É exatamente o que está vivo, a morte. É o que está mais vivo.

10 DE DEZEMBRO

Na escuridade e no silêncio o sonho deita braços desconformes. Pega-se-me. Debalde luto contra o fluido que avança para mim como uma exalação de frenesi e de nervos. A teia invisível rodeia lentamente a inutilidade, a teia dissolve as almas, e fios impalpáveis apoderam-se da vila quieta e absurda onde só ele se atreve e cisma... Isto é possível ou isto não passa dum sonho grotesco, de mais outro sonho grotesco?

De que é feita a tiborna, o liquido viscoso, cor de sabão, com filamentos verdes, que o Gabiru com olhos de sapo revê no vidro, através da luz — a maior descoberta do século, o soro que acaba de vez com a velhice e arreda a morte para confins ilimitados? Alguns sais, o sódio, o enxofre, o magnésio, o bromo, o carbono — e sonho. Dezessete elementos, entre os quais a prata, o cobre, o oiro, o arsênico — e dor. Matéria, espírito e concentração. O mistério é este e mais nenhum: é exprimir como o que é espírito se transforma em matéria, como a poeira se condensa, como a alma se faz corpo. Gritos, mais desespero. Contar o quê? As noites infinitas, as mãos que tentam arrancar farrapos ao manto em que o mistério se envolve e procuram retê-lo quando ele se dissipa? Outra vez absorção, outra vez o rebuscar em ti mesmo o inexplicável, e os nervos que tendem e quebram o cérebro que doe, o lento acordar das vozes submersas, a discussão, o tumulto, e poder distinguir entre tantas bocas que falam, a única que tem direito a falar. É desta obscuridade, desta discordância, que emerge a ideia de suprimir a morte. Não te rias. Já to disse: é um ser aparte com cotos em vez de asas, que se agitam num desespero para voar. Não se contenta com esta vida nem dá por ela, mas fica sempre a meio caminho, e tão dorido que não é possível tocar-lhe. Já to disse: é um ser grotesco que põe em mim os olhos turvos e teima, insiste, repete:

 — Sobre a vila, repara, paira uma atmosfera cinzenta, composta de todas as atmosferas: é a alma da vila. — E afirma cheio de convicção: — Deito-lhe sonho dentro.

Queira ou não queira faz-me cismar... Na realidade morrer é absurdo. Nunca me capacitei a sério que tivesse de morrer. Morrer é estúpido. Não compreendo a morte, e, por mais que desvie o olhar, prendo-me sempre a essa hora extrema, só essa hora me interessa... Um ser grotesco, um unguento verde, e aquela voz aos meus ouvidos. É caricato e pega-me doirado.

E o pior é que este sonho é afinal o meu sonho e o teu sonho. Ninguém o confessa senão a si próprio. O nosso sonho é não morrer. Quando a gente se esquece a vida tem já passado. E quando a vida tem já passado é que nos agarramos com mais saudades à vida. A resignação custa muitas horas doridas em que ficamos alheados e suspensos. A morte... A morte é inevitável? — pergunto baixinho. E como a morte é inevitável, como não lhe posso fugir, para não perder tudo, criei a outra vida. E afinal quem sabe se este sonho que a humanidade traz consigo desde que pôs o pé no mundo não é o maior de todos os sonhos e o único problema fundamental?

A verdade é que teima. Não nos larga na vida e levamo-lo escondido para a cova. A verdade é que foi esta sempre a nossa maior aspiração, que há-de acabar talvez por se converter em realidade. Temos construído o universo assim, podemos construí-lo de outro modo. Falta só um passo... A vida eterna admitimo-la, mas, no fundo, o que nós queremos é este sol, esta pobreza, esta dor, estas ilusões moídas e remoídas. Deixem-nos a vida que aceitamos tudo. Aqui há, portanto, um erro primário. Protestas do fundo do teu ser: a morte é absurda. É preciso cortar um nó que não existe. E passar do império do possível para o império do impossível é talvez uma questão de vontade. A vida é um ato de fé de todos os instantes. Acordo e grito: — Eu não vivi! eu não vivi! — E cada vez o meu protesto ascende mais alto. Quero tornar a viver a mesma vida aborrecida e inútil, quero recomeçar a desgraça.

Ninguém pode com semelhante peso. Não há quem possa com ele. Na solidão, a primeira coisa que procuro é a ninharia para esquecer a morte. Um minuto sós a sós com o espanto, recamado de mundos, que caminha desabaladamente no silêncio, dura um século e outro século ainda. Não posso, nem tu nem eu, viver sobre o fio duma espada e olhar para a voragem dum e doutro lado; não posso arcar todos os dias com esta usura que me gasta sem mergulhar na insignificância. E agora até a insignificância me é impossível. O silêncio... O pior de tudo é o silêncio e o que se cria no silêncio, o que eu sinto que remexe no silêncio...

Carrega em cima de nós tal peso que ninguém o suportava se desse por ele. É o peso do espanto.

Juntem a isto a vila comezinha, e o negrume que levanta os cotos esfarrapados, como se fosse voar, quando o padre Timóteo dá o seu passeio habitual no pátio da Misericórdia, e, na meia dúzia de metros quadrados com árvores éticas do jardim, as Souzas arrastam os vestidos, última moda do Grandella. Juntem a isto a grande nódoa de umidade a que ela costumava queixar-se. Juntem a isto a Morte e aquela voz de desespero cada vez mais frenética, que não cessa de pregar, e que me põe em frente de mim mesmo, que é o que mais temo no mundo.

 — O que eu quero, é tornar a viver. A minha saudade é esta. O que eu quero é recomeçar a vida gota a gota, até nas mais pequenas coisas. Não reparei que vivia e agora é tarde. Sinto-me grotesco. Recomeçá-la nas tardes estonteadas da primavera e na alegria do instinto. Encontrei há pouco uma árvore carcomida: deixaram-na de pé, e um único ramo ainda verde desentranhou-se em flor... Pudesse eu recomeçar a vida! — Cala-te! — Terei de confessar a mim próprio que nunca amei, que nunca fui arrastado até ao amago pelo desespero ou pela paixão e que de tal forma se me entranharam as palavras e as regras, que passei a vida a mascar palavras e regras? Terei de confessar a mim mesmo que vou para a cova com a boca a saber-me a vulgaridade e a pó? Antes me soubesse a fel — antes a dor!... — Mas sonhaste, estúpido! — Sonho. E o que me resta nas mãos inermes, nas mãos para que olho com espanto e terror, nas mãos de velho, senão grotesco, farrapos de grotesco, restos de grotesco, com alguma tinta em cima?... Não; viver é que é bom, viver com o instinto, como os ladrões e os bichos, os malfeitores e as feras, sem pensar, sem sonhar, sem palavras nem leis, até cair a um canto, morto e feliz, de barriga para o ar. Isso sim! isso sim!... — Quantas conversas temos tido juntos! quantas discussões inúteis! quantos desesperos de que não há sair, batendo com a cabeça na mesma parede! às vezes subjugo-o: — Cala-te! cala-te! — às vezes fala ele mais alto e domina-me. Rio-me de ti e impões-te-me. És ridículo e só tu te atreves; só tu és feliz porque te atreves a dizer inconveniências sem fé nem lei. Só tu não tens método, só tu te fechas a sete chaves à tua vontade, livre, feliz e desprezado. No fundo invejo-te.

Aquilo incha, trasborda, como um rio que alaga tudo. Pega-se-me e molha-me. Aturde-me. É só ele que fala no mundo, cada vez mais obcecado e mais alto, com interjeições e gestos desordenados pelo meio: — Estúpido! — Hei-de falar! quero falar! hei-de por força falar! — E há aqui dor e ridículo. Há um esgrouviado a dizer vulgaridades, e uma coisa que vem da raiz da vida num frêmito e que me mete medo. Um bafo, e logo mil vozes que aproveitam o momento e desatam a pregar sem tom nem som. — Toda a gente se ri de ti... — Deixá-lo. — Toda a gente se ri! toda a gente se ri! — Quero por força tornar a viver! hei-de por força tornar a viver! Sinto que a minha vida não termina aqui. Este sonho hei-de levá-lo a cabo.

Debalde lhe aconselho calma, o Gabiru insiste:

 — Entrevejo na morte um sofrimento atroz. O inferno não é uma palavra vã. É um desespero sem consciência nem gritos. A vida não é senão uma trégua — um ah — e logo um mergulho nesse inferno de dor. Na dor estreme. Eis o que é a morte: a dor estreme, a dor emudecida. O terror instintivo da morte é uma advertência. Não quero morrer e vou ressuscitá-los!... Viver sempre! amar sempre! sonhar sempre! — que esplêndido sonho! A vida é quase nada. Tudo que custou tanto desespero, tudo sumido num buraco para sempre. Ouves? Para todo o sempre. De que serviram os gritos, as lágrimas, subir, trepar, chegar ao topo do calvário? Para todo o sempre! Bem sei: aquilo a que me apego é impalpável: é a mulher que passou, assomando-lhe ao focinho uma expressão de ternura, e que nunca mais tornarás a encontrar; é aquela manhã de chuva em que nos molhamos juntos (e ainda me sinto molhado) e que se não repete, é o minuto que nos escorre das mãos como um fio d'água, mas doira-o o sol, e é esse mesmo minuto translucido que quero tornar a viver, sem a sombra da morte a meu lado. É a essa mesma ninharia que é a vida a que deito as mãos com desespero. A vida é nada — é esta cor, esta tinta, esta desgraça. É saudade e ternura. É tudo. É os meus mortos e os meus vivos. Levo pena de tudo, até da fealdade. Agarro-me a tudo, tudo me prende, o sonho que não existe, as horas inúteis, o possível e o impossível. A floresta não faz parte do meu ser, e eu tenho aqui a floresta, o som e o aroma da floresta, a vida da floresta; o céu não faz parte do meu ser, e eu sou o céu profundo, o céu trágico e o céu esplêndido. Dá-me a vida — dou-te tudo em troca... Agarro-me como um naufrago, agarro-me com uma saudade, que vem não só de mim, mas de muito mais longe, da base mesmo da vida. Para sempre! para todo o sempre! — E, com um suspiro mais fundo, repete: — Suprimi a morte, vou ressuscitá-los!

Trago comigo um pó capaz de doirar a própria eternidade. Não sei donde me vem, nem porque nome lhe hei-de chamar. Todas as noites sufoco diante do negrume — ele reanima-me. Insiste diante das forças desabaladas e da imagem da morte. Quero a vida! quero-a! quero-a vulgar, tumultuaria e cega. Inerte não! inconsciente não! Tenho-lhe horror.

Se com o nosso esforço coletivo forjamos o mundo, porque deixamos a morte de pé? Criei o universo. Destaquei da massa confusa o tempo — destaquei o sonho.

Fui eu que dei valores e perspectiva ao quadro. Fui eu que lhe entornei ilusão. Na verdade só existem cores como só existem gritos. Porque não hei-de acabá-lo? É talvez uma questão de vontade. Se até para dar o primeiro passo precisamos de crer, porque não havemos de dar o último passo? Ilusão, mentira? Mas eu é que faço a verdade e a mentira. Dou-lhes o meu bafo. Deus cria-me a mim, eu crio Deus. Uma verdade pode não existir. Com uma mentira posso forjar outro mundo. Arredemos de vez este suor frio.

A noite vem, a noite avança. Sinto os mortos. Ainda vivo, já estou em seu poder: faço parte da legião. Noite imensa sem gritos. Pior que sofrer é não sofrer — para sempre. É nunca mais sentir. É ter as orbitas vazias voltadas para o céu e nelas não se refletir a luz das estrelas. Mais um passo e é o silêncio absoluto. Mais um passo e tapas-me para sempre a boca.

Não me importa ser feliz — não me importa ser desgraçado. O que me importa é o que há depois, é o que está por baixo da terra e o que está por cima da terra.

Já não luto. E ele insiste e cada vez prega mais alto:

— Eu não vivi. Que importa, vais morrer! Para sempre, para todo o sempre, o mesmo buraco donde não sai rumor. Escuta isto: donde não sai rumor. Repete isto: para todo o sempre. Nenhuma explicação te é licita, nenhuma transação é possível. A morte não espera nem atende. É estúpida. Primeiro é estúpida, depois é incompreensível. É tremenda porque contém em si mistificação ou beleza. Absurdo ou uma beleza com que não posso arcar. O nada ou uma coisa que a minha imaginação não atinge. Se é o mistério, e se desvenda dum golpe, apavora-me. Se é o nada repugna-me. Apenas um minuto, e lá em cima as mesmas estrelas, e outros vagalhões de estrelas... Para ela tanto vale um segundo como um século, carrega um ser inútil ou um ser delicado com a mesma indiferença para o tumulo. Tens passado a vida a esperá-la. Que outra coisa fizeste na vida senão esperar a morte? É a tua maior preocupação. Debalde a arredamos: a vida não é senão uma constante absorção na morte. Então para que nasci? Para ver isto e nunca mais ver isto? Para adivinhar um sonho maior e nunca mais sonhar? Para pressentir o mistério e não desvendar o mistério? Levo dias, levo noites a habituar-me a esta ideia e não posso. Tenho-te aqui a meu lado. Nunca se cerra de todo a porta do sepulcro. Estou nas tuas mãos... Adeus sol que não te torno a ver, e água que te não torno a ver. Árvores, adeus árvores que minha mãe dispôs; adeus pedra gasta pelos seus passos e que meus passos ajudaram a gastar. Para sempre! para todo o sempre! Tenho-te horror e odeio-te. Interrompes os meus cálculos. És o maior dos absurdos. Ver para não ver, ouvir para não ouvir, viver para morrer!...

E aqui te faço uma confissão: o que mais me custa a largar é, como à cobra a pele, a vida comezinha. Se é a vida superior é também o meu lume. É o ruído monótono da chuva nas vidraças. Além da alma há outra alma que se apega às pequenas coisas, à coluna de oiro perfumada que me entra de manhã pela janela — outra alma humilde e pequenina, que se acomoda com um fio d'água, um cantinho de lume... É a alma da matéria. Não, o fim logico da vida não é morrer, é viver sempre, é ascender sempre. Até onde? Até Deus. Vou ressuscitá-los! Vou ressuscitá-los! E em eles se pondo a caminho vais ver doirado. A vida toma novo impulso. Desaparecendo a morte é que tu abranges a vida. Vais ver a cor que toma o mundo, as tintas que o mundo escorre, e as flores que as árvores criam... Vou ressuscitá-los! Vou ressuscitá-los!...

A terra remexe. Sinto um esforço e revive o suor da desgraça; um arranco na profundidade, e todas as primaveras dispersas não tardam, uma atrás de outra, a reflorir. Há sepulcros até ao fundo do globo. De mais longe vem um ímpeto — são outros mortos ainda. Uma sombra desmedida, uma sombra que se despega da obscuridade, com todas as lágrimas que se choraram no mundo condensadas, vai desabar sobre nós. As suas palavras criam. O pior foi tocar-lhe! Neste debate entra agora o mundo todo. Entram as árvores e as pedras. Não há dúvida para mim: quando sair disto tenho renascido: o mundo não é o mesmo mundo, o céu o mesmo céu, a vida a mesma vida. O que existe é outra coisa doirada e imensa, esfarrapada e imensa. Põe-se a caminho outro panorama, como se todo o infinito de repente se aproximasse de nós, com os seus mundos, o seu mistério indecifrado. Põe-se a caminho a imensa floresta apodrecida, outras árvores como nunca vi árvores, e outros seres desmedidos e frenéticos. Põe-se a caminho uma vida que há muito sentia aqui ao lado, sem me atrever a olhá-la. Tudo mudou de repente. Repara que o céu aumentou em profundidade. O que existe são gritos, o que existe é o espanto. O pior foi tocar-lhe...

Um remexer de treva, que até agora podemos recalcar, soltou-se da escuridão e pôs-se a caminho. Já não há esforços que a contenham... Um borrão trágico avança — outro borrão informe prepara-se. Os mortos empurram os vivos — desde profundidades desconhecidas...

Passa no mundo a estranha ventania: é a morte que custa a separar da vida. O rasto que fica atrás, a perspectiva que fica adiante foi cortada. A morte está aqui dum lado, está do outro a vida. Tinha raízes enormes: arrancaram-lhas de vez. Agora atrevo-me a tudo. O turbilhão colérico abala o mundo, oiro e negro, esplêndido e feroz. Desenraiza tudo. As almas acordam num sobressalto, e não há homem que se não ponha à escuta. Passa no mundo a doida ventania das nossas aspirações secretas, das nossas duvidas, dos nossos desesperos. É uma voz — são muitas vozes. É um grito — são muitos gritos. — É o grito contido há milhares de anos, o grito dos mortos libertos.

 

A VILA E O SONHO

18 DE DEZEMBRO

Em lugar do uso de palavras fazia isto melhor com o emprego de dois tons — cinzento e oiro: uma nódoa que se entranha noutra nódoa. O sonho turva a vila. A primavera toca neste charco só lodo e azul: tinge-o e revolve-o. Mas o hábito de tal forma se entranhou na vida, que coabitam com o espanto e continuam a ir à repartição. Horas na torre. Mais silêncio. A morte roda aqui por perto, alguém fala: — Então como passou? passou bem? — O hábito tem profundidades de légua.

A princípio olham-se desconfiados, com medo uns dos outros. Sem dúvida gostam de viver mais um século, mais dois séculos, mas não sabem ainda que emprego hão-de dar à existência. Não se lhes dava mesmo de morrer com tanto que continuassem a jogar o gamão no infinito. O que lhes custa mais a perder não é a vida, são os hábitos. Veem-se e não se reconhecem. Há almas embrionárias, velhos lojistas que olham para si próprios com terror. A maior parte da gente, nasce, morre sem ter olhado a vida cara a cara. Não se atrevem ou ignoram-na: a outra existência falsa acabou por os dominar. Não há máscara que não custe a arrancar — há mentiras que têm raízes mais fundas que a verdade. Por isso, para uns não morrer é continuar a jogar o gamão pela eternidade, para outros é juntar uma moeda a outra moeda, um dia a outro dia inútil. Sempre... Já na botica dois idiotas recomeçaram com escrúpulo uma partida que deve durar cem anos, e o bocal amarelo, as moscas mortas estão ali com outro ar. Fixaram-se. Estão ali embirrentas e sórdidas para toda a eternidade.

Pouco e pouco o sonho dissolve, a nódoa de oiro alastra. vai mexer com o subterrâneo, acorda os mortos, desenterra o sonho submerso há dois mil anos, sobressalta o instinto, bole com todas as almas sobrepostas até ao fundo da vida. Transforma, volta a existência do avesso, deita o muro abaixo. Por ora é só uma ideia, mas sai-nos de cima o peso do mundo... Mexe em tudo, revolve todas as raízes que se apoderaram da vila. O sonho cai na regra, no charco de interesses, na hipocrisia que se não atreve, nos dentes afiados que se transformaram em sorrisos, na paciência de quem espera uma herança com vagares de quem tece uma teia. Certas existências são formidáveis, outras existências são como alcovas onde nunca entrou a luz (cheiram a relento) e onde agora se agita e gesticula um ser desconhecido. Certas existências são feitas de ódio minúsculo, de inveja que sorri — porque nem a inveja se atreve. Certas existências são crepusculares. Em certas existências são os mortos que ordenam, muito mais vivos e imperiosos depois que estão no sepulcro. Quase toda esta gente se desconhece. Nunca se atreveram e agora perguntam-se: — Sou eu? sou eu?

Aqui estou eu que finjo que sorrio, e acabo por fingir toda vida. A minha vontade era anular-te — e finjo, e o sorriso acaba por ganhar cama, a boca por se habituar à mentira, a ponto de já não saber discernir o meu ser, do ser artificial que criei peça a peça. — Pois sim... pois sim... — Mas atrás disto há outra coisa — há fel; E quando tiro a máscara? Mas eu já não posso tirar a máscara, mesmo quando me fecho a sete chaves: a mentira entranhou-se-me na carne. Este fantasma chegou a ter mais vida que a própria realidade. E aqui andam outros seres. Eu não sei quem sou e até o meu metal de voz estranho. Eu não sou quem falo. A meu lado, atrás de mim, vem um cortejo de fantasmas, uma cauda disforme que me conduz e empurra, e adiante de mim há uma projeção de vida até aos confins dos séculos.

Acaba a hipocrisia. Acaba principalmente a hipocrisia para conosco, mais difícil de largar que a própria pele. Eu minto mais a mim mesmo do que minto aos outros, finges tanto com a tua alma como com a minha. Primeiro é a hipocrisia que descasca. Acabou! acabou! E com espanto ouço e desconheço a minha própria voz.

É que a morte regula a vida. Está sempre ao nosso lado, exerce uma influência oculta em todas as nossas ações. Entranha-se de tal maneira na existência, que é metade do nosso ser. Incerteza, duvida, remorso... Nunca se cerra de todo a porta do sepulcro, sentimos-lhe sempre o frio. Agora não, a vida pertence-nos. A morte não existe, desapareceu a morte...

Ali a um canto um ser desata a rir, a rir, a rir como nunca ninguém se riu.

E, através da pedra destas fisionomias, transparecem já outras fisionomias: as velhas, como uma roda de aranhas de penante na cabeça, apertam o círculo em volta da majestosa Teodora. São anos de paciência, de inveja e de fel — são anos de tragédia. Sobressaltam-se as futilidades que estavam para durar séculos, mas ninguém arrisca ainda um gesto que o comprometa. Têm-lhe obedecido de rastros. O tempo passa, e com o tempo esta luta entre o inferno e o sonho revestiu-se de cimento e de grandeza.

Obedece e sorri a Eleutéria. Mói, tem moído a vida inteira. Mói-se a si e aos outros. — E o tempo passa... — Obedece e sorri a Adélia, que esperou, tem esperado a vida inteira. A miséria conserva: tem os cabelos pretos. Seis, doze vinténs desequilibram-lhe o orçamento: perde-os todas as noites com um sorriso de angústia. Obedece e sorri a Porfíria, que é a pior de todas; é feita de destroços e de restos. A aquiescência também está presente com a D. Restituta, de guarda-chuva na mão, acenando sempre que sim à vida: — Pois sim... pois sim. — Faz-se um pouco surda para só ouvir o que lhe convém. Nunca diz mal dos outros, nunca repete numa casa o que ouviu cá fora. às vezes, de noite, vira-se revira-se na cama, mas nem sozinha se explica: suspira. É na aparência um pouco trôpega, um pouco adoentada e surda: tem uma saúde de ferro e um filho escondido. E ao passo que a D. Restituta, tendo dito a tudo que sim, tendo dito a tudo e a todos que sim, já não pode dizer, com o mesmo esgare, senão que sim: — Pois sim... pois sim... — a Adélia é ríspida: um vestido, um xale, um chapéu de plumas, e o desejo exasperado de toda a sua vida (tem sessenta anos) de ter uma sala de visitas com dois castiçais de prata e um álbum. O álbum lá está, na sala que cheira a bafio, e há vinte e dois anos que dois paninhos redondos de crochê esperam os castiçais de prata. Obedecem as figuras secundarias, atentas e imóveis sobre o jogo, dependentes umas das outras, ligadas pelo mesmo interesse. A alma desta velhas chegou assim a ser prodigiosa. Façam o favor de entrar... Algumas flores murchas num cantinho com mofo. Depois paciência, avareza, depois um vasto campo funerário, onde passa o vento da desolação como na retirada da Rússia. E dominando a paisagem dois ou três marcos geodésicos. Lá no fundo uma pegada de vida empoçada e que reflete o céu: ali se miram e remiram na sua mocidade. Notem: nenhuma disse uma palavra mais alto. Tudo isto se fez pelo lado de dentro — tudo isto cresceu pelo lado de dentro, de tal forma que se fosse material não cabia no mundo, com colunatas, pórticos, destroços e subterrâneos, como uma catedral gótica. Aqui nesta cripta está o relento, branco e mole, criado na escuridão e no silêncio, branco e mole, branco e sem olhos. Várias sepulturas com estatuas jacentes e, mais adiante, sobre sarcófagos, a Tradição e a Formula, que durante os anos que durou a bisca, defenderam a majestosa Teodora dum envenenamento. Aqui agora — cuidado! — a escuridão é viva, a escuridão é sonho, é sonho requentado, como um acrescento de todos os dias, sonho com que não podem mais ao lado da vida quotidiana. Como sempre as velhas deitam-se cedo, rezam o terço, e antes de dormir juntam um pormenor ao sonho inútil, uma figura aos nichos, um pórtico aos pórticos, um terraço aos terraços — até que adormecem com um sorriso cândido e um cheiro pela boca que tresanda... Aqui com o tempo acrescentou-se um alto relevo esquecido; aqui as figuras são figuras de delírio; aqui a nave atinge alturas desconexas sustentada num único pilar; aqui abre-se uma ogiva com vitrais, que esclarece a uma luz funérea um quadro indistinto, e que é talvez a recordação dum amor já morto — porque elas também amaram — aqui o mistério envolve-se em sombras condensadas, onde agoniza um Cristo exânime que mete medo. Adiante num friso incompleto com uma cidade fantástica, campeia o diabo; depois um remate enfumado, cachorros sustentando uma arcatura, onde se admira a delicadeza e a abundância de ornamentação (é a paciência); e, neste canto, mais sonho, entre negrume acumulado, treva viva num buraco de treva, que a si própria se enovela num desespero, até que não cabe na catedral, irrompe para o lado de fora e chega num jacto ao céu... Isto não é a catedral de Burgos — é a catedral do fel e vinagre.

Todas aceitavam, a morte e a vida quotidiana. Resignavam-se. Mas o que esta palavra representa de sonho desfeito em fumo, de cóleras inúteis, de inveja inútil, de bolor e de despeito, tradu-lo a paciente D. Hermínia por este grito feroz:

 — Estou farta senhor padre Ananias! Estou farta de o aturar a si, de aturar os outros, e de me aturar principalmente a mim mesma!

Toda a gente dá a mesma ferocidade, ódio e instinto. Espremidos deitam as mesmas paixões. Uns ignoravam-se. Outros usavam a vida em manias. Outros gastavam-na em grotesco. Outros habituavam-se. A paciência era pegajosa. A paciência tinha uma cor especial, verde desbotado, que mal feria a vista, e um filho, a cobiça, tal qual como a D. Restituta, que encrespa o pelo e se põe de pé com o guarda-chuva em riste.

Cada ser me perturba como se contivesse em si o céu e o inferno. Bem sei que a formula não é inútil: ao contrário a máscara é indispensável e é por ela que nos julgam. Mas, apesar de criarmos o mesmo bolor e nos sepultarmos ao mesmo tempo com certa comodidade sob alguns palmos de terra, há qualquer coisa que remexe e que faz parte integrante da vida. Até o escuro se eriça — até a grande sombra se deforma. — Muita gente na vida só conta com a morte. A D. Desidéria desata aos ais. E é com secreta satisfação que vejo esfarelar-se este edifício tão bem construído sobre bases, que pareciam inabaláveis, do interesse, da hipocrisia e das conveniências... Impelidos por uma mola dão todos um passo em frente, e há três dias que os padres se descompõem na colegiada sem se chegarem a entender: — Lá vai o inferno! lá vai o inferno! — E, efetivamente, dum instante para o outro, lá vai o inferno que tanto custou a fazer, e outras sombras temerosas reduzidas a cisco. Lá vai o cenário admirável e monstruoso, todas as regras, todos os papeis pintados, que atravancavam o mundo, e eram pelo menos metade da nossa existência. O que tinha uma importância extrema passou a não ter importância nenhuma; o que parecia indispensável à vida, e sem o que se não dava um passo na vida, reduziu-se num minuto a zero. E outras coisas insignificantes assumiram proporções enormes... Os padres clamam num coro desesperado: — Acabou o inferno acabou tudo! — Descompõem-se na sala da colegiada que deita para o passado — o claustro com um pé de oliveira, e dois túmulos encravados na parede, cenografia para o Hamlet, — ser ou não ser eis a questão... Cheiram a ourina e a ranço. — A religião sem inferno está perdida. — Mas lá pôr o homem ter suprimido a morte, não deixa de haver inferno — observa o estúpido cônego Fazenda. — Isso está claro que não deixa, obrigado pela observação, mas é um inferno tão distante que não mete medo a ninguém. — Protesto! — Lá vai o inferno! acabou o inferno!

Lá vai também o céu, mas o céu não faz falta nenhuma.

Já não há esforços que contenham o mundo subterrâneo que se pôs a caminho. Aos mortos cheira-lhes a vida, a saque, a infâmia. A poeira remexe. Por mais que queiram conter a vida dentro de certos limites, ela extravasa, e vem à supuração; por mais que a queiram comprimir estala por todas as costuras. É inútil. Além da vida aparente, há outra vida de ódio, de sonho, de interesses ocultos. É a vida, é o que eu cismo de noite e me sustenta de dia. É o desejo de extermínio, é o sonho que arredo e que me pega fuligem: são os restos de sonho de toda a gente. Em todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior escondido. Saem dos antros entontecidos e respiram, olham o céu e respiram. Saem dos buracos e põem-se a rir, ou falam só, o que é a primeira vez que sucede na vila. Emergem da noite e vão deixando cair os farrapos. Respiram com sofreguidão, os gadanhos afiam-se-lhes, e o mesmo desejo os domina: a vida! a vida! a vida!

Só esta velha parou de remexer nas cinzas frias. Petrificou-se mais, petrificou-se mais ainda, e a figura curva exprime, na imobilidade trágica, sonho e desespero, dor e desespero, noite e desespero...

É um erro supor que o homem ocupa um espaço limitado no universo: cada homem vai até ao interior da terra e até ao amago do céu. A parte de cima foi cortada, mas o que resta da alma é um poço sem fundo. Uma obscuridade. Por vezes fala a lei e o hábito. Intrometem-se coisas abjetas a que não sei o nome. Agora é a vez de impulso — agora é a vez do interesse. A mania também tem os seus direitos. De mais baixo ascendem ordens que se não chegam a formular. Desço mais fundo no poço e encontro restos sórdidos e candura. Por baixo sonho — por baixo fragmentos e gritos... As velhas, por exemplo, não são más, mas têm atrás de si séculos de ruina e de destroços. Há-as que acordam sempre com a boca amarga. Já tiveram vinte anos, e cada uma delas suporta uma cauda de desespero, de ilusões desfeitas, de ilusões intactas, de desejos irrealizados, que lhes pesa como chumbo. Cada velha arrasta consigo uma porção de cadáveres... De mais fundo vem outro impulso... Começo a ouvir vozes que supunha de todo extintas. Acordam e de tal forma se impõem, que a D. Procópia desata a falar sem tom nem som. Nessa vaga, nesse lodo adormecido, jaziam seres ignorados que veem à superfície: sente-se no silêncio as mãos agarrando-se às paredes. Um a um todos deitam raízes tremendas. E a nódoa imensa alastra, a nódoa desordenada, que satura de oiro a insignificância e o gênio, a nuvem que envolve a D. Inocência, encrespa os cabelos à D. Leocádia, fez esquecer a dispepsia ao D. Prior, arreganha os dentes a D. Restituta. Pega-se. Torna uns mais ridículos, concentra outros. vai remexer no que estava sepultado há dois mil anos, no bolor e no bafio, nas paredes compactas da Sé, nos santos imóveis nos seus nichos, na inutilidade e no hábito. E doira, doira, doira, doira o Telles e o Reles, doira a hipocrisia e o medo, o egoísmo e o interesse. E ao mesmo tempo que os transforma, põe-nos frente a frente a uma coisa estranha que não admite subterfúgios — à realidade.

Desaparecendo a convenção e as palavras, que vai sair daqui de temeroso e de ridículo? Transformado o mundo, com que olhos vamos ver o mundo? Tudo isto eram frases e só existem instintos? A honra era uma frase, o dever uma frase e a vida um cenário? Cada ser é capaz de todas as perguntas e de todas as respostas. Escorre todas as tintas e possui todas as cores, e só por hábito adquirido há séculos é que conseguimos olharmo-nos cara a cara, quanto mais alma a alma.

Há diálogos na obscuridade em que se empregam palavras que nunca se usaram, e figuras que já não são as mesmas figuras. Todos nós somos disformes. — Deixem-me! deixem-me! — Agora quando falam já não é para dizer coisas convencionais. — Estou à espera, tenho estado aqui à espera toda a minha vida. — à espera de quê? — à espera deste hora suprema, a tua espera... — Mas fala... — Não posso, só com gritos é que posso falar... — A outra coisa temerosa sacode-os... — Tu ouves? — Não te quero ouvir. Se consegues ficar comigo sós a sós, sinto que estou perdido. Tudo que me deu tanto trabalho a construir, alue-se num único minuto. Teimo em me defender — teima em se fazer escutar... — Tu ouves? tu ouves?... — Mas tu não existes... Ou tu não existes ou só tu existes no mundo... — Estremecem até à base da vida, e, neste cataclismo, ainda se lhes pegam coisas vulgares e coisas inúteis — o que se faz e o que se não faz, o que se usa e o que se não usa, as conveniências e os hábitos rançosos. Há diálogos formidáveis na obscuridade. Há almas extáticas, há-as reduzidas ao espanto. — Ouves? — tu ouves? — Não tenho a que me apegue, mal ouso pôr os pés. Até agora sabia quem era, ou fingia sabê-lo, agora pergunto se sou a D. Leocádia, a D. Procópia e a D. Penarícia? Só posso viver ligado a certas palavras, a certos factos, a certas bases que julgava indestrutíveis, e um nada destruiu tudo isto, transformou de todo a vida. O sonho tem outra cor, e a nódoa de oiro alastra, corrói, mistura-se a nódoas mais escuras e mais fundas, penetra, dissolve, produz logo manchas corrosivas como úlceras. — Frases ainda eles as têm, mas o pior é que cada um sente com espanto que já não subverte a verdade. Pergunto a mim mesmo se a deixo morrer, ou se a deixo viver mais duzentos, mais trezentos, mais quatrocentos anos? Agora que a sua vida só depende de mim, pergunto a mim mesmo se a deixo viver — contra os meus interesses? Eram tremendas as questões de dinheiro que a morte resolvia. Quem as resolve agora? Debatem-se em cada consciência problemas que só têm uma solução — a morte. Escusas de desviar o olhar: só têm uma solução — a morte. E de mais fundo ascendem outras vozes e falam cada vez com maior desespero. — Não desvies o olhar. Tu ouves?...

Assim como esta clamam as vozes interiores, mais alto, sempre mais alto, imperiosas, as vozes da multidão que constitui a tua alma. Isto coincide com o grotesco dos homens de calva e ventre gorduroso, meios nus em plena praça, sem se atreverem a vestir-se ou a largar de vez os trapos convencionais; isto coincide com uma primavera antecipada, em que as árvores, sentindo talvez que vão ser a nossos olhos apenas coisas utilitárias, se apressam a dar flor, em que os céus noturnos e sem macula parecem ter gelado em azul com fundos de oiro revolvido...

Alguns põem-se a caminho e marcham com olhos inquietos. Passa essa sombra trágica, a mulher do Anacleto. Estes dois que foram sempre pessoas consideradas, com assento na existência, e que usam a cabeça como quem usa um resplendor, o Elias de Mello e o Melias de Mello, sentem um baque que os amolga. Porquê? Eles têm tudo em dia, as contas, os livros, os escrúpulos. A praça considera-os, Deus considera-os. — A nossa mãe morre... — E não tiram o lenço dos olhos. — Veneram-na. Mas o respeito pelos pais só resiste enquanto os pais respeitam o interesse dos filhos. Há decerto uma lei moral, mas há sempre por trás uma boca a pregar. Uivos, gritos, exasperos. É a transformação do grotesco em ferocidade, é a camada de hipocrisia que custa a romper. Imaginem isto: imaginem o lojista em debate com a vida subterrânea, o lojista deparando pela primeira vez com uma alma esplendida, e a D. Adélia, de chinó postiço, fechada numa gaiola com a verdade, e aos saltos uma à outra.

Foi grotesco, começou por ser grotesco. Mas escuta-te: é um mundo que lá tens dentro, é uma multidão que se prepara para o assalto. Estava adormecida, acordou. Mete medo. E pregam, açulam-se, avançam direitos aos seus apetites, ao saque, à guerra, à luxuria. Continham-na arames enferrujados, o medo da morte, o hábito de crer em Deus (sabendo bem que Deus já não existia) fantasmas, cacos de armadura que derruíram dum dia para o outro. Descobrir que não há Deus que alegria! Põe a gente à vontade. Respira-se doutra maneira. Descobrir que a morte não é inevitável endurece. O mundo muda de aspecto. Agora é que eu contemplo a vida — e me perco na vida. Começo a ter medo de mim mesmo e não me posso olhar sem terror. Que é isto, este sonho, esta dor, esta insignificância entre forças desabaladas? Onde hei-de pôr os pés? Eu sou a árvore e o céu, faço parte do espanto, vivo e morro ligado a isto. Sou temeroso e ridículo. Não me desligo do turbilhão azul, sem nome, que me leva arrastado, estonteado, iludido, e ao mesmo tempo discuto, nego e afirmo. Sou ridículo e construí o mundo. Sonho e acabo reduzido a pó. Sou capaz de tudo e um nada me abate. Sou sórdido e fútil e não tenho limites — vou de mundo a mundo e de espírito a espírito. Dei alma às coisas inertes, significação ao universo, vida ao que não existe, luz às estrelas — e no fim acabo grotesco. Sou nada entre o pélago e sem mim tudo se afunda no pélago. O que olhava com indiferença mete-me agora medo. Não posso com o mundo transformado, com outros seres, e onde não me desligo duma força cada vez maior e mais desabalada.

Preciso de olhar para mim, sou forçado a olhar para dentro de mim mesmo, a encarar comigo mesmo, e ou desato a rir ou fujo transido de pavor. Não me posso compreender no universo, não entendo esta luz insignificante no negrume gelado, nem esta discussão interminável no silêncio absoluto, nem este ridículo, nem esta figura mesquinha que representa o mundo. Com que destino rio ou choro entre o enxurro de oiro e os impulsos tremendos que veem não sei donde e caminham desabaladamente para um fim que não distingo? Tenho medo de mim mesmo! tenho medo de mim mesmo! Nunca o acaso pariu nada tão monstruoso e tão grotesco como isto a que se chama a vida. Tenho medo de mim mesmo! Cada vez me sinto mais abjeto e mais transido — cada vez me sinto maior e mais capaz de tudo. Não me posso olhar nos olhos, com medo de ver o que nunca vi, em todo o seu horror e em toda a sua nudez. Grito.

Gritos — gritos — gritos ainda sufocados. Ouço-os na noite imperturbável, na harmonia esplendida, na árvore e na pedra. Mais gritos no turbilhão dos mundos, e atrás desse turbilhão outro maior — e mais gritos ainda. A ternura sou eu que a presto ao absurdo e à dor. O que fica na realidade são gritos. A harmonia parece imensa porque as coisas não têm boca para pregar — ou não as sabemos ouvir. Tudo isto se reduz a dor muda, a dor intolerável num escantilhão de desespero — de desespero sem significação — de desespero cada vez maior. E sempre outras bocas pregam mais alto na noite que não tem limites, outras bocas que nem sequer existem. Levanta-se a poeira trágica, a poeira que anda espalhada há milhares de anos, a poeira dos mortos e a poeira dos vivos. Mais poeira ainda, que vem dos confins, toda a poeira dispersa, que já foi ternura e desgraça, poeira desaparecida que foi sonho, poeira inútil que foi dor.

Os maiores dramas passam-se porém no silêncio.

23 DE DEZEMBRO

«Se ela morresse...» Esta ideia ao menor obstáculo, esta ideia a que eu fujo e a que tu foges, e que ambos arredamos, mas que se obstina até a proposito dos que mais amamos — esta ideia transforma-se logo em ação: — Vou matá-la.

Desapareceu a morte e eis-me aqui preso a esta criatura de olhos tristes fitos em mim. Para sempre! Até as coisas mais belas se transformam em absurdo e me pesam como chumbo. Pesa-me a tua amizade, pesa-me o teu amor — para sempre.

A pobreza e a humildade não se toleram para sempre.

A ninharia a poder de anos e de persistência impõe-me respeito. A ninharia um século, outro século, transforma-se em grandeza.

Quanto menos sinto a morte necessária para mim, mais a julgo necessária para o outros. É um muro que é forçoso deitar abaixo. Para respirar é preciso deitá-lo abaixo.

Muitas vozes, a deste, a daquele, a de tantos mortos, a imporem-me a sua lei... Agora só eu falo e com a minha própria voz.

Agora só eu mando. A vida vou julgá-la com os meus próprios olhos. Vou tomar folego, vou tomar peso à vida. Sei-a de cor e salteado. Sei o que valem os preconceitos, as ilusões e as palavras — sei o que vale o dinheiro. Não torno a ser iludido.

A vida é um combate, que só se vence pela bajulação, pela manha ou pela audácia — todos os meios são bons. Os escrúpulos não servem para nada, a convenção tolhe-nos os braços. Meia dúzia de regras afiadas bastam. Honestidade a precisa para que confiem em nós — piedade a bastante para que não nos assaltem os cofres. Fora disto logro.

Se tenho forças uso-as.

A vida nestas bases é talvez monstruosa, mas não posso modificá-las. Aproveito-as. Tiro da vida o que ela me pode dar. Com ilusões podia-se ser pobre — sem ilusões só se pode ser rico.

25 DE DEZEMBRO

O pior é que se passa no silêncio. É a outra coisa que acorda, é a outra coisa desconhecida que começa a empurrar o tabique. Deitamos-lhe todos as mãos para o segurar, mas, no escuro e no silêncio, a pressão redobra... Está outra coisa por trás do tabique, outra coisa que eu não quis ver, e que o sacode com desespero. Bem sei, bem sei que existes! Bem sei que estiveste sempre ao pé de mim. Nunca te deixei discutir comigo. Senti sempre que estava perdido se te deixasse abrir a boca. Há tragédias de que desviava o olhar, fingindo não as ver. Agora hei-de vê-las por força. Há mistérios que não queria debater e agora se me impõem. Há vozes que não queria escutar e que falam mais alto que a minha voz. Há seres que não queria conhecer e que discutem agora tu cá, tu lá comigo. Tenho de os aceitar. Romperam pelos sepulcros fora — despedaçaram todas as tampas. E esta intrusão na vida modificou de todo a vida.

Cada um vê doirado. Tem de pôr o problema ali na frente e de o resolver. Tem de ir até ao mais profundo do inferno e até à vacuidade do céu. Cada um tem de se olhar a si mesmo, nu e ridículo, nu e esplêndido. Cada um vê por uma fresta a força desabalada, e põe-se a cismar como Dante com a mão ferrada no queixo. Temos todos de resolver o problema. Debalde amontoamos inutilidades ou palavras, aí está na nossa frente o mundo real, o mundo da verdade, o mundo sem subterfúgios. Traz flores como uma primavera, traz enxurro. Arrastou-se pelas folhas apodrecidas e pela lama. É doirado — é feroz. Tem todas as tintas e todas as cores, e sobre isto frenesi. É humilde, leva consigo no mesmo ímpeto ternura, dor e desespero. Está dorido e vai tão fundo como a própria desgraça. Impele-nos. É a vida e o sonho, é a tragédia — não existe. Não tem nome. Chama-se a vida e a morte. É uma coisa absurda. Mete-me medo e extasia-me.

As velhas já não dizem: — Jogo! — Houve uma coisa que se meteu de permeio. Os passos aproximam-se e o esforço aumenta. Sinto-lhe o bafo monstruoso, sinto-o mais perto de mim e encostado ao meu ser.

As velhas ouviram passos apressados dentro das próprias almas, o sonho veio à tona, e ficam absortas com as mãos agarradas aos queixos e as bocas espremidas a remoer em seco...

O medo acabou, e o escrúpulo, a hipocrisia da gente que vive à roda duma ideia sem atrever a encará-la. — É preciso matá-la! — São anos e anos, são séculos de inveja paciente, que sobem à superfície: até as figuras de pedra ressumam dor e desespero. Agora metem-me medo. As velhas somem-se, e ficam gritos, fica o espanto, ficam fantasmas.

O que se passa em cada casa, dentro de cada ser, no fundo de cada poço? Ouve-se as almas, como se fossem facas, afiarem no escuro. Estão prontas. Bem sei, falam ainda entaramelado, não dizem o que sentem, mas já caminham segundo o interesse, o ódio e o sonho. As resmas de papeladas são inúteis, a lei todos os dias se reduz a zero. A nódoa alastra. E agora é que se vê bem o que cada um trazia dentro de si. Nesta primavera há duas primaveras. Agora é que eu compreendo que as palavras que se pronunciavam eram rituais, que os gestos, com séculos de existência, eram necessários e significativos. As frases rançosas das velhas nos dias de enterro, as frases banais, eram as únicas capazes de amortecer a dor; este hábito ridículo de jogar o gamão um ópio, como esta história que a Bacellar conta a si mesmo, com um ar idiota, um princípio de sonho. Tanto vale uma tragédia. É preciso fugir à realidade. Compreendo tudo. O que elas odeiam no Gabiru é a sua imensa capacidade de sonho; o que a vila escarnece é o que a vila inveja. Bem se importa esta roda de velhas, em volta duma mesa de jogo e o candeeiro ao centro, com a bisca lambida: durante algumas horas esqueceram a mediocridade da vida — esqueceram também a morte. O xale velho a que a D. Leocádia se achega todas as tardes mesmo no pino do verão, pego nele e, quanto mais no fio, mais peso tem: está encharcado de sonho...

 

PAPÉIS DO GABIRU

26 DE DEZEMBRO

O que me impede de ver a tragédia da vida, é a ninharia da vida.

A alegria é a luz. A luz suprema é Deus.

Se ele não existe — nós criamo-lo.

Cheguei a um ponto da vida em que nem os outros me interessam, nem eu interesso os outros. Não falamos a mesma língua. Só entendo alguns desgraçados.

Tudo na natureza são formas da minha alma. Minha alma passa como uma luz em frente da escuridão. Extinta só resta a treva.

Se não fosse o hábito uma árvore matava-me. Não posso olhar o céu sem terror, e tenho de fechar todas as portas para voltar à vida comezinha.

Para o outro mundo é preciso uma iniciação.

Sinto que cada passo que dou é irremediável.

Se me perguntassem o que queria ser — queria ser isto mesmo. Assim na eternidade te queria, minha alma, com o mesmo sonho, a mesma vida e os mesmos erros. Não te troco por outra alma.

Não há beleza completa sem uma pontinha de saudade.

A pobreza, a desgraça e a dor metem-me medo. Mas que prestigio! Ser alimentado pela desgraça dá outra fibra, que só à desgraça pertence. Faz-se parte duma legião esplendida.

Há uma porção melhor do nosso ser, não há negá-lo. Luz entre resíduos, gritos e instintos. Se não existe outra vida, pergunto para quê?

Se fosse possível suprimir a ilusão — morríamos todos à uma. Vivo entre quatro paredes, e entre quatro paredes analiso e comento e construo o universo. Fora desse casulo nada existe para mim. Sucede, porém, que da parte de fora é que está o resto...

Se me perguntam o que é a vida — não sei o que é a vida. Sei que me devora — sei que tenho ao pé de mim a morte.

Que faz de nós a vida? A vida gasta-nos, reduz-nos a linhas essenciais. Habitua-nos a viver, e, quando estamos habituados a viver, suprime-nos.

Sei que tudo são aparências, com uma única realidade, a morte. Para morrer não valia a pena viver, para me encher de saudade não valia a pena viver. Só para ser mistificado não valia a pena viver.

A melhor parte da vida — é a saudade da vida.

A que se reduz afinal a tua vida? Algumas ideias mesquinhas — e a uma coisa que não cabe cá dentro.

Sim a vida tem minutos belos, quando a gente a esquece. E acima de tudo o sonho. O sonho vale a vida.

É nada e menos que nada. Impulso, desconcerto e logica, e no fundo do teu ser uma ânsia superior a tudo, que é a melhor parte do teu ser. Melhor, que te faz desgraçado. Melhor que teima em querer um universo a seu modo, e que pouco e pouco, apesar de tudo, contra tudo, tem construído o mundo a seu modo. Foi ela que fez Jesus. É ela que te impele para cima, cada vez mais para cima.

Ouço-me viver com terror — e caminho nas pontas dos pés para a morte.

Se a vida futura é um absurdo, esta vida é um absurdo maior. É tudo uma questão de hábito. Tanto sonhei contigo que te construí.

Sou aqui tão necessário como as estrelas do céu. Aqui estou, criatura mesquinha, com a dor a meu lado, com sonho a meu lado. Hei-de acabar por te dominar. Não há morte que te valha!

Isto é abjeto, às vezes é grotesco — mas se isto desaparecesse, desaparecia Deus, e, com o maior dos sonhos, todos os outros sonhos.

30 DE DEZEMBRO

A vida é tecida como o linho: um fio de dor, um fio de ternura. Eu intrometo-lhe sempre um fio de sonho. Foi o que me perdeu.

Só dei por ela depois de morta. As horas mais belas perdi-as a sonhar, quando a vida estava a meu lado. Eu não vivi! eu não vivi!

Agora é que me lembro dela, como duma tarde que viesse devagarinho na ponta dos pés, e se fixasse num minuto, no silêncio, nas coisas suspensas na luz — nos botões quase a abrir.

Estraguei tudo, estraguei a minha vida e a sua vida.

O dia de hoje não existe para mim: só penso com sofreguidão no dia de amanhã. Ora amanhã é a morte. E sucede também que só dou pelas coisas belas da vida, depois que passaram por mim, e que as não posso ressuscitar.

Há na vida um único momento. Um momento que sorri. Que concentra em si todos os momentos. Troquei-o pelo absurdo. Troquei a vida pela morte.

Só agora seus olhos verdes de espanto me chamam, seus olhos que exprimem o irreal e o mundo todo, seus olhos cheios de dor represa e de sonho coado por lágrimas...

Agora é que ela está viva! agora é que ela está viva! E tão viva que a confundo com a morte.

 

ATRÁS DO MURO

10 DE JANEIRO

O tabique caiu, e contemplo a vida. Mas entre mim e mim interpõe-se um muro. O drama não tem personagens nem gestos, nem regras, nem leis. Não tem ação. Passa-se no silêncio, despercebido, entre mim e mim. É um debate perpétuo.

Que dúvidas? Pois se a minha vida é esta e não há outra vida; se o minuto é este e não há outro minuto, que força me pode deter para que eu não realize o meu destino contra ti e contra todos?

Há um ser que ocupa o meu ser e me domina quer eu queira ou não queira. Quem há aí capaz de dizer que a mesma ideia o não persegue? — Se ela morresse... — Arreda-a. Também eu. Mas saio disto aos gritos. Esfacelado. Tenho por força de o admitir na minha companhia. Subjuga-me. Pior: faz-me falta quando o não tenho ao pé de mim.

Talvez eu seja um ser complexo, talvez os outros sejam tão complexos como eu. Tudo me faz sofrer — mas metade do meu sofrimento é representado. Tenho é certo duvidas — mas metade das minhas dúvidas são postiças. Hei de acabar por não crer em mim como não creio nos outros.

Eterna contradição de todo o teu ser. Não sabes o que queres nem como o queres. Não sabes no que crês nem no que não crês. És um impulso. Vais até à cova levado por todos os ventos, sempre a barafustar sem sentido. Explicas tudo, ignoras tudo, adivinhas tudo. És um mar de inverno num dia de verão.

Está tudo decidido — dizes — está tudo pronto. Só uma coisa me falta: pôr isto em ação. E essa coisa, que é um nada, tem o infinito de comprido.

Desde que este fantasma se pôs a caminho nunca mais consegui detê-lo.

Começa por uma ideia que afugento. Começa por um pensamento tênue, por uma simples palavra que afasto.

Insiste. Há ainda dias em que discuto. E por fim domina-me, tem mais vida que a minha vida, tem mais realidade, mais sonho e dor, do que eu.

Assisto à sua ação e não o posso conter. Acaba por acampar entre os destroços do meu ser como um dominador.

Mas eu não o criei! não fui eu que o criei! Não só o não tolero como lhe tenho horror. Mas para ser sincero devo dizer que há ocasiões em que me submeto com alegria. Para ser sincero até ao amago, devo dizer que nesta dor, neste desespero, é que me sinto inteiramente viver. Com ele é que eu grito. Decerto eu não sou isto — não quero ser isto. Tenho-te medo e pertenço-te. És a melhor e a pior parte do meu ser.

Felizmente não vemos senão detalhes. Se alguém pudesse encarar uma alma até às maiores profundidades, e ver ao mesmo tempo de que ternura, de que ânsia, de que desespero e de que tempestades essa alma é capaz, nunca mais podia desviar os olhos desse espetáculo. Fosse ela a minha alma ou a tua alma. Era o mundo todo, era o universo. Era Deus.

Que posso eu contra a vida? E se me recuso, se luto, que me espera? A renúncia? A estúpida renúncia, e cada minuto que passa me aproxima do nada, me leva, queira ou não queira, para o nada? Na cova, na podridão, desfeito em pó, arrastado por todos os ventos, daqui a um século, daqui a milhares de séculos, ainda todas as partículas do teu ser, que não soubeste impregnar de vida e alimentaste de simulacros, te hão de pregar: — Estupido! estúpido!

Remorsos? Eu não tenho remorsos. Duvidas? Eu não tenho dúvidas. Desde que te vi — vi o universo. Compreendi tudo. Compreendi que não tinha vivido, e que toda a minha existência tinha sido fictícia — que mais valia um minuto na vida, que cem anos de vida. Que só há uma hora na existência e que é preciso aproveitá-la. Que tudo é simulacro e só tu és a verdade. E apercebi o universo como força e destino a tal profundidade, que nesse rápido segundo passou por mim numa rajada todo o turbilhão da vida, com as suas vozes, os seus mistérios e toda a sua grandeza feroz. Vi tudo. Senti tudo. Bastou ver-te. Portanto não tenho dúvidas nem remorsos. Ao contrario estou calmo, ao contrário estou decidido.

Mas há uma coisa temerosa, uma coisa inexplicável e imensa — um fio que não posso cortar. Tenho a sensação de que, cortando-o, aniquilaria a vida. Não a minha vida, que não importa — mas o que há de mais extraordinário e de mais tênue na vida. Se houvesse Deus, diria que aniquilaria Deus.

Há uma atmosfera de mentira que ninguém deve ultrapassar — há uma atmosfera viva que todos nós respeitamos.

Mergulho. Mergulho mais fundo ainda e não encontro nada. E no entanto tu existes. És muda e existes. Quando me imagino livre de ti, é que tu tens mais força. Procuro explicar-te por palavras, por convenções, por regras aprendidas, por habilidades... És muito maior do que eu.

Ponho o ouvido à escuta de encontro ao mundo, ouço-me para dentro, para surpreender as coisas fundamentais que ele me ordena e são duas ou três simples, de instinto e ferocidade. E além disso outra coisa imensa — que não existe.

Como te chamas tu? E tu, dor, como te chamas?

11 DE JANEIRO

Ponho-me a olhar para ti consciência, e exijo que me fites nos olhos e que me fales claro. Não entarameles a língua. Em primeiro lugar diz-me o que és e o que significas: medo, receio, uma voz que se cala se a miséria aperta ou a luxuria levanta a cabeça. Um nada, uma voz tão tímida e tão pronta a sumir-se... Incomodas-me é certo, mas não impedes nada. Falas quando devias estar calada, não sabes o teu papel e nunca entras a tempo. Herdei-te: és convenção e egoísmo alheio entranhado no meu egoísmo, sintetizado em duas ou três regras para comodidade dos outros. Fazes de mim uma presa fácil para quem a não tem. És escrúpulo, e o escrúpulo é, pelo menos, inútil.

Estás em perpétua contradição. Inutilizas-me metade da vida e nunca me pude desfazer de ti. Nesta luta de todos os dias, quando me julgo livre, é quando te sinto todo o peso.

Isto é decerto a vida. Mas a vida é também o instinto que me diz: — Aproveita, não deixes fugir o único minuto. Se a vida é um momento entre o nada e o nada, o que vale a pena é aproveitá-lo.

A questão suprema é esta e só esta: Deus existe ou Deus não existe. Se não há Deus, a vida, produto do acaso, é uma mistificação. Aproveitemo-la para satisfazer instintos e paixões. Se Deus não existe, não há força que me detenha. Não há palavras, nem regras, nem leis. Tudo é permitido. Questão logica: pois eu hei-de ir para a cova, para todo o sempre, para toda a eternidade, sem ter extraído da vida tudo que ela me possa dar, preso a palavras ou a meras questões de forma? Oh! ponhamos a questão, consciência: se Deus não existe tu não és senão um estorvo, meia dúzia de regras aprendidas ou herdadas. Ponhamos enfim a questão com toda a clareza, porque este é o único problema que me importa e que te importa resolver.

Escusas de encher a boca com o dever. O dever não me interessa nada. A questão fundamental, a questão que eu debato com todo o meu ser, e de que me não consigo desligar, é a da morte eterna e a da vida eterna.

Se Deus existe eu sou um homem, — se Deus não existe eu sou outro homem completamente diferente.

Não existindo tu consciência, o que tu te intrometes na minha vida! E tanto faz analisar-te, discutir-te, negar-te, incomodas-me sempre. Estás morta — estás viva. Na cova hei-de chorar inutilmente por te ter obedecido. Hei-de revolver-me com desespero, por teres conseguido amolgar-me e amesquinhar-me. Por mais que queira desfazer-me de ti, tu impões-te-me. Quando te julgo aniquilada, aí começas a falar outra vez.

Vens de muito fundo!

Ás vezes protesto e imponho-me. Decido passar sem ti: humilhas-te. Humilhas-te para logo levantares a cabeça e revolveres o punhal na ferida. Pesas-me como chumbo. És de ferro. Bem tento explicar-te: são os escrúpulos que me não deixam trair, mentir, subir. O que é eficaz não é ter escrúpulos, é fingir tê-los. É tudo o que os outros nos pedem. — Mas tu não transiges. Se te abaixas, é para te ergueres de novo, para de novo me atormentares. Não me largas. Acompanhas-me por toda a parte.

Se me livrasse de ti! se me livrasse de ti!

18 DE JANEIRO

O que eu tinha era medo. Medo da morte, medo da sombra. Só isto existia? Quando tudo em mim me pregava que aproveitasse este momento, que deste único momento extraísse tudo que ele me podia dar — alguma coisa me detinha. Eras tu consciência. E tu não existias! Fale a logica, fale a razão, fale também o instinto... A consciência é sempre religiosa. Mal posso dar um passo no mundo sem tremer. O mundo é Deus, Deus rodeia-me. Tudo para mim é uma causa de espanto — e através deste espanto pressinto ainda um espanto maior. Sinto-me como balouçado num sonho imenso. Ando nas pontas dos pés. Mal ouso respirar no cantinho onde contemplo. E a minha consciência era um reflexo deste universo. Mas se tudo isto se converte em forças, se arredo de vez a sombra temerosa, se tudo é acaso no acaso, se nada existe, se é indiferente o que eu penso e o que tu pensas, se só eu sou ao mesmo tempo o bem e o mal, a consciência já não é a mesma consciência e a sentimentos novos corresponde uma consciência nova. Bem te procuro encontrar no fundo do meu ser. Rebusco-te. às vezes, nos momentos trágicos, já não é contigo que eu deparo — é com outro ser que assiste sempre, como um espectador, a todos os meus exageros. Deitavas-te comigo, levantavas-te comigo, ferrada como um punhal — e não existias. Neguei-te. Expliquei-te. Reduzi-te às tuas verdadeiras proporções — e tu não existias! Atormentaste-me e fizeste-me sofrer mesmo quando já compreendera que não existias. E agora mesmo, quando o universo é outro universo, ainda te encarniças sobre mim como um fantasma.

Escusas de te rir — tu não existes. Dependias da morte, e o que eu tinha na realidade era medo. Talvez medo para depois da morte — medo da minha alma em frente da minha alma, medo de aparecer nu e com pústulas diante do que é eterno. Carreguei-te como um fardo inútil. Põe-me a questão, põe-me todas as questões que quiseres. Tenho diante de mim este mundo e a voragem, este mundo e o nada. Não te metas de permeio, que já não tens razão de ser. Seria mistificação sobre mistificação. Não me atrever agora é absurdo. Porque, consciência, o que importa é a parte interior — é a verdade sós a sós comigo, fechado a sete chaves, e essa é temerosa. Não tentes iludir-me. Não podes mentir a ti mesmo. Vê que passaste a vida a conter o mal — e o mal fez parte, queiras ou não queiras, da tua vida. O mal é pelo menos metade do teu ser. Agora sim — agora estou livre e atrevo-me. Para sempre livre da morte e livre do tempo, calco-te aos pés. Nenhuma sujeição. Nenhum temor, nenhum fantasma. Sem escrúpulos! sem escrúpulos! Uma força entre forças e mais nada. O mundo pertence-me. Pertence-me e olho-o cara a cara sem desviar o olhar. Sou a única força consciente, sem palavras que me diminuam, nem escrúpulos que me contenham...

Agora fala! Aproveita o minuto único, a infâmia, o enxurro, o sabor a fel e a lágrimas da vida, ou enfileira-te, se podes, no estúpido rebanho, e reentra na vida quotidiana, feita de pequeninas regras e interesses. Vem-me um vomito: tenho vontade do fugir de mim e dos outros: só o que é selvático me interessa e acorda em mim sonho, perfume e ferocidade... Quero saber o que me impede agora de matar, quero saber o que me impede de olhar nos olhos o inferno, de seguir o instinto e de obedecer ao impulso...

 

O SONHO EM MARCHA

20 DE JANEIRO

Eu sou um desconhecido para mim mesmo. Ia para a cova sem me ter encontrado um momento sós a sós comigo. E é com dor, é com espanto e dor, que me reconheço; é com olhos de pasmo e dor...

Tudo mudou. A sofreguidão que todos os dias da vida — sempre! sempre! — nos empurra e leva; o sentimento da vida efêmera e o horror da morte — mais perto! cada vez mais perto! — ; esta coisa imponderável que debalde tento deter — sem nome e a que se chama o tempo — que nos usa, a que não ouço os passos e que caminha inalterável — tudo desapareceu de vez. Respiro. E, modificada a ideia do tempo, todas as outras se alteraram profundamente. Os sentimentos não são os mesmos. A vida assenta noutras bases, a vida fica amarga.

Resta-nos a lógica e a consciência. Mas a consciência admito-a, contanto que não me embarace. A consciência que quiseres, contanto que não me amesquinhe, ou não me iluda. O único juiz sou eu. O fim da minha vida não é dominar-me, é dominar-te.

Todos temos de matar, todos temos de destruir, todos temos de deitar abaixo.

A paciência acabou, a resignação acabou — e acabou a morte. Suprimida esta ideia, suprimido também o tempo e o espaço, as velhas não existem; o que está vivo é a ferocidade, a paciência e a mentira — e tudo espera a ocasião. Espera e desespera. A parte de dentro é que está viva e reclama de pé e de ferro a sua vez. Notem: nenhuma arriscou um gesto mais brusco. Por mais fel que lhes venha à boca estão habituadas a engoli-lo. Nem com a cabeça tapada se atreveram a olhar a verdade. P'ra dentro! sempre p'ra dentro! E assim sucede que não se construiu nunca catedral com alicerces mais fundos. Está viva. Uma sustentou-se de côdeas, outra sustentou-se de fome. A inveja também sustenta, o fel também sustenta. À Araújo só a paciência e o cálculo lhe permitiram viver. às vezes tem fome — nunca disse a ninguém que tinha fome. Sabe logo quando entra numa casa as palavras que agradam à velha rancorosa e à filha cheia de pretensões a quem ensina as escalas; de quem há-de dizer mal esta semana e bem para a que entra. Esperou como a aranha espera com o estomago vazio. Nunca pediu esmola. Melhor: conseguiu dar-se ao respeito. E calcula, calcula, cheia de fome, o tempo que a majestosa Teodora pode durar. A D. Penarícia é abjecta, mas só a abjecção lhe tem permitido viver. A mentira tem razão de ser — sem abjecção a sociedade repele-nos. Admitimos alguma abjecção, não completa e total, que repugna, mas a precisa para servir de realce e moldura ao nosso quadro. Acresce a isto que teve de viver com despreocupação, de sorrir com despreocupação, de mentir com despreocupação — com a miséria atrás de si.

Com fel constrói-se uma vida — o fel dá certa solidez. O pior é meter logo para dentro toda a inveja que lhe vem à boca. Pior ainda: na velhice misturou-se tristeza ao fel. Não só a D. Penarícia tem inveja, não só a D. Penarícia odeia, mas a D. Penarícia chega ao ponto em que percebe a inutilidade do fel. A Teodora pode aniquilá-la de um gesto. Fel e vinagre — mais fel e tristeza. É um vasto campo de destroços de que desvia o olhar. Foi-lhe então inútil o fel? Se não fosse o fel já tinha morrido. Quando passou fome, quando deu dinheiro ao homem para o jogo, quando perdeu na bisca para a Teodora ganhar e sorrir, o que a sustentou foi o fel. Quando vestiu a filha e a passeou no jardim, com trapos como os outros trapos, o que a sustentou foi o fel. Juntem a isto coisas inverossímeis que se lhes pegam e as reclamam, velhas coisas esquecidas, velhos sapatos de ourelo, desaparecidos para sempre nas profundidades do nada; velhos hábitos, costumes aferrados, misérias crônicas, adquiridas pela vida fora e que erguem a voz, cabelos postiços, sentimentos postiços, gritos, e o exaspero de quem não pode berrar: — O que eu quero é gozar! o que eu quero é encher-me! — o que representa ainda mais fel e tristeza, mais fel e vinagre. Ali estão frente a frente, e pergunto se estas velhas que passaram a vida à espera duma herança não têm direitos. Pergunto se é possível que a majestosa Teodora continue a viver mil anos e a impor-se, a mandar, de quico na cabeça e com o cofre atrás de si, e as outras agarradas à mesa do jogo e à espera da morte. Pergunto se ter inveja não é sofrer, se ter paciência não é sofrer. Há que tempos que cada uma delas só pensa em matá-la e arreda a ideia com medo ao inferno. A teia aperta-se. Mais um momento e a teia torna-se visível. A majestosa Teodora não pode escapar. Todos os dias se tecem fios que a envolvem, todos os dias aquelas vontades atuam, todos os dias o sonho constrói. Sufoca. Formou-se um ser que tem vida própria, uma atmosfera, uma alma comum, de que fazem parte todas aquelas almas. A majestosa Teodora pertence-lhes. Hoje a Adélia cravou de repente a agulha sobre a mesa, e a majestosa Teodora desatou de súbito, aos ais, aos ais, como se visse ali lavrada a sua sentença de morte. Todas as fisionomias mudaram alteradas e profundas, subindo à tona das profundidades do universo ou de poços mais profundos ainda. Agora o sonho não é um segundo, o sonho vai ser a vida.

 — Está certo o senhor? Está certo o senhor padre Ananias, que depois desta vida há ainda outra vida de que nos têm falado? Ou há só esta vida? só esta?! E isto é uma comedela?

O que elas estavam era sepultadas num vasto cemitério do tamanho da vila. Sobre cada velha havia pó, sobre cada interesse pó, sobre cada fisionomia outra fisionomia. Efetivamente a Teodora é uma insignificância. Só dá leis. O melhor é matá-la. E todos os olhos se cravam nos olhos do padre, todas as velhas mastigam em seco, todas as velhas dão de repente um salto brusco no vácuo.

Ó paciência que já não és paciência e trazes veneno na algibeira, com que despeito olhas para trás, para o Himalaia de inutilidades. Debalde a paciência tenta dizer ao sonho: — Amanhã — ; tenta iludi-lo: — Espera... — e a mentira propor-lhe uma transação. O sonho toca na paciência como quem toca num nervo, e quando a Restituta vai mais uma vez dizer-lhe à pressa: — Pois sim... — aperta-lhe o gasganete e pela primeira vez na vida a deixa desorientada... Comediante, vê se aproveitas o excesso da tua dor para praticares uma nova infâmia!

21 DE JANEIRO

A mesma interrogação se formula em todas as almas: quer então dizer que só vivi uma vida fictícia ao lado da vida e que perdi o melhor da existência com aparências? Quer então dizer que tudo para que vivi não existe? Ponhamos a questão! ponhamos a questão! A maior conquista do homem, Deus, desapareceu para sempre — desapareceu também a morte. Ponhamos a questão: façamos tábua rasa. Está tudo em terra, o dever, a honra, as formulas e as regras. Ponhamos a questão por uma vez, nítida, clara e sem subterfúgios. Ponhamos a questão e todas as questões...

Avançam e recuam logo. Do sonho grotesco ou esplêndido, ridículo ou feroz, à realidade vai um passo desmedido. Interpõe-se um muro... Todos passamos os dias a resignarmo-nos. Muitos nem dão pela vida. Há seres que tanto faz estarem vivos como mortos. Outros nunca repararam sequer na sua verdadeira fisionomia (porque até a nossa fisionomia é mais verdadeira que real). Em alguns o murmúrio das vozes é tão afastado que não chegam a interpretá-lo... Há-os que saem da luta esfarrapados, há-os cheios de reticencias e que mal visionam o mar morto indescritível. O que os farrapos custam a largar! o que o muro custa a deitar abaixo! Pesa-lhas a vida anterior, o hábito reclama-os. Adere-lhes o infinito e as cólicas, a usura e o fel. E sobre tudo isto há a contar também com a imbecilidade e a apagada, inépcia. Há a contar com a langonha que também tem o seu sonho. Há a contar com o que se arrasta no escuro, com olhos brancos, com olhos vagos para a lua e para o sonho. Há a contar com as velhas encardidas de hábitos e de fistulas. Em seres amorfos e aguados, quase inertes, no fundo remexe ainda um resquício de sonho, que se traduz no mesmo gesto pautado, na mesma mimica, e no olhar, onde, até na imbecilidade cerrada, se distingue não sei que de temeroso. Por isso a questão não é fácil de resolver. Por isso o Anacleto ainda não a matou. Ainda não conseguiu deitar o muro abaixo. Não é o que se pode dizer na praça, porque a praça venera-o. Não é também que a ideia de a matar o assuste. A vila conhece o seu escrúpulo e honra-o. Nunca deixou de pagar uma letra. Mas há não sei quê que o contraria e se opõe. Também as velhas se detêm, também o Santo se detém. Mas a maré que aí vem sobe sempre. Ao mesmo tempo entontece-os e ao mesmo tempo perturba-os. — Eu não quero ver! eu não posso ver! — e tenho de me olhar cara a cara, tenho por força de te admitir, tu que és o meu verdadeiro ser, imenso e profundo, com raízes em toda a lama e braços que chegam ao céu. — Eu não sei donde vem isto, e isto aturde-me. Olha como sorrio para ti, como finjo que sorrio de mim e de ti que te pões a falar. O gesto que eu faço, não me pertence, perturba-me o som da minha voz. E a noite é cada vez mais cerrada... — Ninguém quer achar-se frente a frente com o seu próprio fantasma. Nem tu, nem eu. Fugimos-lhe sempre. E, se sucede encontrarmo-nos, quedamo-nos com um sabor que nunca mais se esquece. Um passo está dado, falta dar outro passo. Custa... — Ao que quase todos se apegam não é a grandes ações, é a simples peripécias. As existências que se nos afiguram dramáticas são cheias de ninharias, de ideias fixas e de paciência. O Torres engrandece a mania de copiar inutilidades: daqui a dois dias ou daqui a dois séculos, ainda o encontras curvado sobre o mesmo manuscrito, onde traslada o folhetim do Século. À Araújo que dá lições de piano é desespero inteiriço. O honrado Elias de Mello vê o tratante Elias de Mello pôr-se a caminho e não o pode deter. — Aí começas tu também a perceber que a tua vida foi um mero simulacro, que, a tua bondade for sempre um simulacro, que a tua felicidade não passou dum simulacro... — A D. Fúfia, que há muitos anos está morta por dizer mal, que nunca se atreveu a dizer mal, e que, quando ia a dizer mal, dizia logo bem de toda a gente, rompe agora a abocanhar todos os ridículos, todos os orgulhos, todas as vaidades: — O que isto consola!... — Divagam, falam queiram ou não queiram com os próprios fantasmas, monologam, discutem, gritam. A cada passo uma interrogação exige resposta, a cada passo um abismo aberto... — D. Leocádia, o meticuloso dever foi a tua vida e agora descobres que o dever não existe, descobres que tudo aquilo para que viveste não existe, e que existe outro dever maior e mais vivo. Descobres que as palavras não te servem de nada. Descobres que tens de ir de encontro às questões e não as podes desviar do caminho. Descobres que por tuas próprias mãos criaste uma criatura disforme, que alimentaste de mentira. E, a esta luz que te dá de chapa, descobres que a tua caridade e os teus escrúpulos eram uma luta de vaidade e de medo, de palavras e de instinto, onde não entrava uma única verdade. Descobres que criaste um ser falso que abominas e te abomina, e que não te podes separar desse horror. Descubro também que errei a vida, e não sei recomeçar a vida, e que tudo que fiz não fui eu quem o fiz, mas o outro que me mete medo, e que tanto vale a minha vida que perdi a arcar com Deus, como a da Telles de Meirelles que a gastou com um trapo. Com um trapo e palavras, ambos subvertemos o mundo — um dia, uma semana, um século. — Examinando bem a questão, meticuloso Anacleto, uma palavra bastou para te deter... Examinando bem a questão reconheces que foram as conveniências... Hás-de arrepender-te até a consumação dos séculos. O mundo vesgo que em mim descubro no outro compartimento, é o mesmo que em ti descobres. Faz esgares como certos rictos indecisos que se formam à tona dos pântanos. Todos sentimos atrás de nós um mundo, outro mundo, outro mundo de ninharias, de palavras sem nexo, de coisas que perderam a expressão, de apetites que nunca se realizaram — todos cobrimos isto de aparências. Passamos a vida a conter outro ser — outra coisa — outro espanto. Há um fio invisível que ninguém se atrevia a ultrapassar. Uma ordem que ninguém rompia. Até a cólera e o desespero mantinham certo verniz. E agora descobrimos todos ao mesmo tempo, ó meticuloso Elias, ó impoluto Melias — com risca e vinco, com vinco e risca — que resolver matá-la é fácil, mas para a matar temos de deitar abaixo léguas de espessura. Deixamo-la morrer ou não a deixamos morrer? E nem sequer podemos iludir a resposta. A mesma coisa desconforme entra pelo nariz e pela boca do Santo. Entope-o. Esvazia-o e endireita-o depois de amolgado. Outro ser, num estonteamento, bate com a cabeça pelas paredes. — Mas então?... pergunta atônito. — Mas então posso, atrevo-me?... Tudo isto era uma mistificação? Mas então tudo é possível e posso realizá-lo amanhã, hoje, logo? E estas teias de ferro eram teias de aranha?... Mas então o medo, a morte, o inferno... — Aqui estou eu com esta mulher a meu lado, e sem querer pergunto a mim mesmo... — Mas então?... — Sim, resta-me certa pena e saudade, mas o interesse levanta a cabeça e deita as suas contas tão baixinho que mal lhe ouço fazê-las... — Teçamos, teçamos todos a nossa teia esplendida, vulgar ou grotesca...: — Mas então... — E encaro com um mundo novo, a que por ora nem eu, nem tu, nem nenhum de nós se afoita. Só as interrogações são cada vez maiores em todas as almas. Todos os bonecos arreganham os dentes e a Porfíria sua inveja. Efetivamente não se compreende para que vivem certos seres inúteis, que atravancam a nossa existência e um pequeno incidente podia suprimir. Efetivamente não se explica que bastem alguns fios imateriais para nos conterem, e que um vidro de vidraça seja suficiente para nos separar da vida.

Até a D. Restituta que era um poço sem fundo, desata a repetir os segredos de toda a gente, fazendo gestos na obscuridade com o guarda-sol de paninho.

 — Acuso! acuso! acuso!

Tocou-lhe também a vez. Usou-se a obedecer, a dizer a toda a gente que sim. Hoje uma gota de fel, amanhã outro resto amargo. Já não sabe dizer senão que sim, já não consegue apagar as dedadas que lhe imprimiram. Coçada, coçada, coçada. Fez as vontades à D. Procópia, à D. Felizarda, à D. Hermínia. Sujeitou-se às vontades do conselheiro Pimenta, quando por desfastio lhe fez um filho. Orgulho? Ninguém tolera, ninguém concebe, que a Restituta tenha orgulho; ninguém tolera, ninguém concebe que a Restituta tenha vontade. Habituou-se, apelintrou-se. A Restituta é um reflexo. Diz-se tudo diante dela. Há famílias separadas por ódios seculares: só ela entra e sai nessas casas quando precisam comunicar. Naquela alma incutiu-se até profundidades desconhecidas o respeito às pessoas ricas, a consideração às pessoas importantes. Que tem a Restituta que desata aos gritos:

 — Acuso! acuso! acuso!

Debalde lhe tapam a boca. É um vomito, um chorrilho de palavras precipitadas — a vida de toda a gente — são os despejos entornados. Em vão dez, vinte mãos ansiosas se lhe agarram às goelas abertas: aquilo sai num jorro impetuoso — tudo quanto estava recalcado, todos os segredos que ouviu, todas as misérias que lhe deitaram para dentro, e, se para um momento, é para tresvariar num riso feito de todos os risos postiços, num esgare feito de todos os mil e um esgares que acumulou durante a vida: — Eu também tenho um filho! eu também tenho um filho como vocês! — Empurram-na, escorraçam-na, e ela agarrada ao guarda-chuva ainda brada:

 — Acuso!

A vida irrompe, o sonho irrompe como hastes de cáctus, nascidas dum dia para o outro, com escorrências nas extremidades ridículas e pueris. Arredei sempre isto — isto que estava ao lado da vida. Nunca quis ver isto, fingi sempre que isto não existia. Também tu o arredaste... E isto existe. E isto é enorme. O que aí está fede. Tresanda. Sua viscosidades. Apega-se. É uma marcha furiosa e desordenada. É a Vida. São todas as ânsias soterradas que se não chegaram a exprimir. É um inferno de gritos e de impulsos, sonhos impossíveis de sonhar, aquecidos a bafo e ternura, sem forma nem cor, ou admiráveis sonhos de tragédia. Mais um passo e tudo que estava recalcado, tudo que estava morto e sepultado, toda a podridão, todo o desejo encarniçado e oculto, toda a mistela que luta às cegas na escuridão para vir à superfície, desata a falar à toa. Mais um passo e o sonho é realidade. Fala a infâmia e o grotesco, fala a candura ao mesmo tempo.

23 DE JANEIRO

Ao Santo só lhe resta orgulho. O sonho descarna-o e deixa-lhe o orgulho intacto. Debalde prega, debalde luta consigo mesmo. — Eu já não creio no inferno. — E detém-se com espanto diante dos destroços, das formulas, da insignificância, dos simulacros que foram a razão da sua vida. Tudo que lhe enchia o mundo não existe, tudo que não existia lhe parece maior: — Eu quero crer! eu quero crer e não posso crer! — Debalde insiste consigo mesmo: — Nossa vida aqui é nada, nossa vida eterna é tudo. Nosso destino é a morte. Só assim posso explicar o universo, só assim posso compreender o universo. — Tudo o que se tinha apoderado do seu ser até às mais intimas raízes, tudo o despedaça até às mais recônditas raízes. Dilacera-o. — Não me atrevo sequer a olhar a vida, a olhar para mim, a olhar o pélago desordenado. Eu quero ver e não ouso! Eu quero crer e sinto-me pequeno e grotesco ao lado disto! Desta coisa monstruosa que não posso arredar. Não posso arredá-la. — Para ti também o problema é insolúvel, D. Leocádia, que ressurges com o vestido coçado, mais seca e mais verde. Estais ambos encalacrados. — Tu viveste sempre para Deus e para o inferno e nem sequer o inferno existe. E tu procedeste sempre segundo a tua consciência, regulaste tudo conforme a tua consciência — e tu e tu — e aí estais ambos atônitos e verdes, ressequidos e verdes, desesperados e verdes, sós a sós em frente duma figura que vos não larga.

 — Trouxe-a para casa, sustentei-a, mas nunca a pude ver, diz ela — Deste-lhe codeas mas não pudeste amá-la. Sustentaste-a por caridade, sustentaste-a de restos para calares uma voz tremenda. Ella foi pior que uma criada, foi uma criada que se não pode despedir, presa pela gratidão — observa a outra D. Leocádia — Fala claro, fala alto. Atreve-te. — Atrevo-me. Toda a minha vida fiz o sacrifício de a manter, toda a minha vida por caridade a tive junto de mim, calada e subalterna, amachucada e sem vontade, para cumprir perante Deus o meu dever. E agora a consciência exige de mim?... — Exige. — Exige de mim, porque o meu filho lhe fez um filho, que o case com a órfã, sustentada de esmolas, calada e viscosa? — Exige. — Por quem eu só sinto repulsão? — Exige, e o pior de tudo é que lhe deste restos, mas não pudeste amá-la.

Torce-te, torce-te mais ainda. A cada camada de verde pega-se-te logo outra camada de sonho. A D. Leocádia coçada e seca sacode em vão e arreda outra D. Leocádia inteiriça e coçada. Também o Santo está aqui, só e o pecado, só e Deus, só e o desespero: «Deus existe — ou Deus não existe. Se Deus existe, se tenho a certeza que Deus existe e se interessa pela minha dor, esta vida transitória é um único minuto com a eternidade à minha espera. Tudo me parece fácil. Que exige o meu Deus? Que me reduza a pó e despreze a aparência? Tudo é vão diante da eternidade que me espera. O meu Deus enche o mundo. Só o meu Deus exista, e todo o resto no universo é tão pequeno e tão fútil, que reclamo mais dor, mais sofrimento, mais fome. Que a desgraça caia sobre mim com todo o peso da desgraça; que a dor me descarne até à medula. Desprezo a dor. Exijo-a diante da eternidade. Sou capaz do andar de rastro com a boca no pó, sou capaz de sofrer todos os tormentos, com a certeza de que me livro duma eternidade de angústias para ver Deus. Venham todos os escárnios, todos os gritos, todos os suores da agonia — venha meu Deus a cruz! Até à morte hei-de crer no que creio. Sem crer não sou nada — sem crer não existo — sem crer não compreendo a vida. Preciso de caminhar para um destino. Crer é uma necessidade absoluta, um sentimento primário, a própria vida, sua razão e seu fim. Tenho necessidade de Deus, como do ar que respiro. Sem ele a vida é desconexa e atroz; pior, é monstruosa. Creio porque creio. Se a vida se reduzisse só a isto, a vida seria abjecta. Dentro em mim tudo me fala numa lei, numa lógica, numa razão de ser, num sentido. Eu vejo Deus, eu sinto Deus.

Mas se Deus não existe — se Deus não existe que me fica no mundo? Sou nada no infinito. Fui tudo — e sou nada. Leva-me a força bruta. Sou o acaso na mistificação. Sou menos que nada no monstruoso impulso. Se Deus não existe tanto faz gritar como não gritar. Não tenho destino a cumprir: saio do nada para o nada. Nas mãos da força bruta que sou eu no mundo que grito, que discuto, que clamo?... Atrás deste infinito vivo, há outro infinito vivo. Atrás desta impenetrabilidade, há outra camada de impenetrabilidade, outra vida ainda, outro desespero sôfrego. Não encontro aqui lugar para Deus que me ouça, que me atenda, ou que saiba sequer que existo.

Os gritos são inúteis, tu não me ouves. Estou só neste absurdo que me impele e esmaga... Que não houvesse o céu, que existisse o inferno só o inferno! E nem o inferno existe!...

Se Deus não existe... O pior de tudo é que eu digo e afirmo, — Deus não existe! — mas na realidade não sei se Deus existe ou não. Não há nada que o prove — ou que prove o contrário. O pior de tudo é que eu sinto uma sombra por trás de mim e não sei por que nome lhe hei-de chamar. O pior que podia acontecer no mundo foi alguém pôr esta ideia a caminho. Mas mesmo que Deus não exista, tenho medo de mim mesmo, tenho medo da minha alma, tenho medo de me encontrar sós a sós com a minha alma, que é nada, o fim e o princípio da vida e a razão do meu ser. Mesmo que Deus não exista e a consciência seja uma palavra, há ainda outra coisa indefinida e imensa diante de mim, ao pé de mim, dentro de mim. Vem a noite e com a noite interrogo-me: — Existe? — O que existe é monstruoso. Não ouve os nossos gritos. O que existe é o espanto. O que existe reclama dor. Sustenta-se de dor e não dá por ela.

O que existe então é isto — é um ulular de dor na noite — no turbilhão, no escuro. O que existe são gritos, e eu sou levado, arrastado nesta mistificação. Por trás de mim há uma coisa que me apavora, por trás de mim há uma coisa cada vez mais sôfrega, cada vez mais frenética — e que de cada vez exige mais dor. Espera: a harmonia não existe — existe a dor; a beleza não existe — existe a dor; Deus não existe — existe a dor. E há um momento apenas para realizar a vida. Nesse momento de paixão todas as forças se concentram e ponho o pé no mistério. Tenho de aproveitá-lo.

Tudo o que exista na noite imensa, na noite ignóbil, é pior que Deus. Tudo o que existe me faz horror, tudo o que existe entre as forças desordenadas me causa espanto... E por mais que grite, por mais que proteste, estou aqui diante do incompreensível, vivo no nada, de pé na voragem. E para lá há uma coisa infinita, um negrume infinito, uma vida infinita. É imenso — é inútil. Sou menos que nada. Só deparo na minha frente com infinito sobre infinito, com o negrume sufocado, com o negrume impassível, com o negrume vivo e imenso, desesperado e imenso. Só contei contigo meu Deus — e agora quero crer e não posso crer. Estou aqui defronte do espanto e sinto-me perdido na vastidão infinita. Tudo o que disse — disse-o diante do vácuo, tudo o que sofri — sofri-o diante do vácuo. Todo o meu desespero, a minha dor, a renúncia, os esforços, o calvário diante do vácuo!»

O maior drama é o das consciências. O maior drama é arredar todos os trapos da vida, para poder olhar a vida cara a cara. O maior drama é ficar só com o vácuo e em frente do espanto, É dizer: nada disto existe. Só dou no meio deste assombro com uma coisa desconexa e abjecta, a discutir comigo mesmo, levada por impulsos. O maior drama é não encontrar razão para isto que vive de gritos e se sustenta de gritos — e ter de arcar com isto. Perceber a inutilidade de todos os esforços e fazer todos os dias o mesmo esforço. E isto não nos larga. Sacode-nos e abala-nos até à raiz, numa discussão que nunca cessa. Nem em mim, nem em ti, D. Leocádia. Essa figura tremenda insiste cada vez mais alto, cada vez mais sôfrega, cada vez mais desesperada. Ouve-la diante de ti, ao pé de ti, dentro de ti, mais coçada e mais verde, com outra camada de sonho e outra camada de verde?

 — O dever? que dever? Antes a deixasses morrer de fome.

 — Mantive-a para cumprir o meu dever.

Aqui tens tu a minha consciência, aqui tens tu a tua consciência, e aqui está a consciência da D. Penarícia. E tanto vale para o caso o gênio em frente da consciência, como o ridículo em frente da consciência. — Valeu a pena não matar? — pergunto — perguntas — perguntam. Aqui estou em frente disto, com um segundo e todo o seu esplendor e todo o seu espanto e todo o seu desespero, e pergunto, perguntas, perguntam, se o que se chama a honra e o que se chama a consciência e o que se chama o dever, têm forças para se me impor. Oh palavras não! A pergunta não é como as outras para ser iludida com subterfúgios. É a única que carece de resposta imediata como um punhal que vai direito ao coração. Vê tu que, apesar de tremulo, estou calmo... O problema é capital. Pergunto se toda a luta foi inútil, se todo o fogo do inferno que recalquei, foi inútil? Pergunto, perguntas, perguntam se as horas para nos contermos foram uma estúpida mistificação. E as bocas remoem em seco no escuro, e as mãos sôfregas palpam os vestidos de cerimônia. Estão decididas a tudo. Vem-lhes à supuração o antigo fel e vinagre, os pequenos desesperos, e os grandes desesperos. Tudo está vivo. Cada ser formula uma interrogação. Segue-se que se os pais teimam em viver, transtornam todos os planos, todas as regras e todos os preconceitos estabelecidos. Segue-se que acima de teu direito está o meu direito. Segue-se que a construção antiga desabou, e a um mundo novo correspondem criaturas novas. Segue-se que todos os problemas se reduzem a um só problema — o dos mortos. Segue-se que o muro é uma insignificância. Tapa o céu e a terra, não existe montanha de tanta espessura — é uma teia de aranha. Soa a hora da outra coisa disforme o aluir para sempre. Por trás do muro é que está a paixão, o crime, o desespero e a vida esplendida e feroz.

É preciso deitá-lo abaixo. Os túmulos estão gastos dum lado pelos passos dos vivos e do outro pelo esforço dos mortos.

 

FEVEREIRO

1 DE FEVEREIRO

Chega fevereiro. Primavera. Dá logo rebate o tojo bravio. A aspereza é a primeira a senti-la.

O tempo está fúnebre. Ouço o ruído calamitoso das águas. Só os botões dos salgueiros estalaram. Nos galhos despidos entreabrem-se flocos friorentos e peludos.

Corre um vento glacial e as árvores encolheram-se transidas. Mas nesta frialdade sinto já ternura.

O ar de fevereiro é outro: é morno. As rãs, de barriga no lodo, coaxam de satisfação, pegajosas e moles como a erva verde e úmida. E, dum dia para o outro, crescem à tona da poça azul, encastoada na terra negra, fios de erva a reluzir. Tinta entornada.

O ar sabe bem: sabe a bravio.

Ao longe o sol trespassa os montes. Manhã de nevoa e oiro gelado. Uma árvore nova cobre-se entontecida da primeira flor. Apressou-se, enganou-se... É uma haste de pele luzidia, três raminhos abertos no azul. E isto envolto em ternura, tanto faz que se trate duma árvore como duma rapariga.

Sente-se nesta atmosfera úmida a seiva inchar os botões túmidos das árvores. Volta a chuva gelada: a primavera tenta, vem com hesitações.

Muda o cenário. Acinzentam-se os montes por onde sobem arrasto pelas pedras rolos de fumarada. Acastelam-se no céu as grandes nuvens esponjosas. Chove. A voz é outra. Donde a onde descerra-se a cortina vaporosa e emergem os montes brutos e compactos.

Nos abrunheiros bravos estalam os primeiros botões. E quanto mais bravos, mais flor deitam. É uma prodigalidade.

Noite. A escuridão, o silêncio, o esplêndido céu todo de oiro sobre a massa negra dos montes. É isto e os gritos da moichela aos ais de aflição. Eis torna o silêncio, e a alma sufoca de espanto... O pio triste dos sapos irrompe de profundidades ignotas. E outra vez o silêncio, a noite imutável cheinha de estrelas — e sempre o mesmo fio d'água, misturando ternura a este espetáculo de assombro. É só isto, e a muralha disforme ao fundo, ainda pálida de luz.

A primavera é um fenômeno elétrico.

Na primeira tentativa da flor há fealdade e ao mesmo tempo candura; depois, da noite para o dia uma gota de tinta como uma gota de leite. Basta que à nevoa se mistura o sol, para entreabrir, ainda informe. Todos os seres, antes de se vestir, são abortos: têm medo de nascer belos.

Ás vezes basta um dia. Dum instante para o outro, poeira azul, entontecimento, sonho...

E isto não é só material. Neste mistério há certa dor, certa tontura, há até espanto. É um olhar que se abre para o mundo. Pela emoção a árvore comunica com o universo e manifesta uma vontade que triunfa sobre a dor inconsciente.

Entre a árvore, o céu e a terra há um compromisso de ternura.

5 DE FEVEREIRO

O que isto custou na obscuridade do mundo caótico!... Houve decerto uma primeira primavera, mas as flores, que hoje são ternura eram então espanto — tentativas frustradas de sonho. Os gritos da floresta primitiva, não os ouço mas estão aqui contidos. E ainda hoje a terra se perturba, porque vai assistir ao mesmo drama.

Todo o universo se concentrou para gerar a vida, todo o universo se concentra para a destruir.

A vila estremece ao sentir a primavera estranha. Noiva. Noiva a D. Úrsula, pergaminho e escrúpulo, que fez da vida um pecado, e ao rés de cuja alma liquida se espalmam flores venenosas. Não há ser que fique indemne. Até que chegou a vez à macieira anainha, que um bafo úmido-lilás turba e perturba. Há aqui um encolhido, que nunca saiu do saguão, que nunca olhou para o céu nem sabe que o céu existe: sente também a primavera. Assim me sucedeu com um tronco decepado que no inverno meti no fundo duma loja: na primavera seguinte tinham-lhe crescido ramos: sentiu-a através dos muros, e, com gritos represados, botou um simulacro de flor.

Fevereiro. Primeira noite de luar e de loucura. A primavera toca mais fundo, mais fundo ainda — esta primavera que revolve os vivos e os mortos. Todos deitam flor. Acordam na profundidade dos sepulcros, com o sonho que levaram para a cova, com todos os sonhos desfeitos em pó. Há-os que nunca se atreveram a declará-lo. Há-os que o sumiram com receio de sonhar. Há-os estonteados...

Ouve-los falar baixinho, surpreendidos, como se soltassem todos o mesmo ah — de espanto, e se pusessem a falar baixinho uns com os outros?... Fala a poeira, fala a sombra desconforme, fala o pó desaparecido.

Na frente uma aparência — a vida está na multidão que nos impele, a vida está nos mortos. Massa atrás de massa, os mortos empurram os vivos. Sente-se o esforço doloroso. Atrás destas mãos, outras mãos de desespero; atrás destes olhos sem orbitas outros se esforçam para a luz. O pior era o silêncio. O esquecimento é que é a morte definitiva, e por isso o esforço aumenta. Formam uma cadeia infinita, a caminho para a vida e para a dor; a todo o momento nos falam e nos guiam, e toda a sua ânsia é viverem depois que estão no sepulcro. A velha que saiu da existência mirrada, continua a trazer o menino ao colo. Outros caminham trôpegos, sacudindo a terra que se lhes pegou aos ossos. Ei-los dispostos a sofrer por uma nova ilusão. A vida foi um nada, impregnou-os para toda a eternidade: um instante de luz bastou para lhes dar gosto à dor. O que eles tentam misturar as suas lágrimas às nossas lágrimas! o que eles arfam para que o mesmo fluido que nos prende aos sepulcros — onde estremecem — se não desligue da vida que ainda se não tornou visível! É que não só os mortos mandam nos vivos, também os vivos mandam nos mortos. E avançam, empurram-nos... Conservam no fundo do tumulo as manias da outra existência. Esta velha aperta um trapo ao peito como um filho, com medo de o perder. A moça, mesmo na cova, dá um jeitinho tão lindo ao lençol! Este conserva na concha da mão uma moeda de cobre, e àquela, Maria Antonieta, René reconhece-a mais uma vez por a ter visto sorrir nas Tulherias... Estendem as mãos mirradas para se aquecerem ao nosso lume; guardam nos ouvidos pela eternidade os ruídos vulgares — os mais belos — o das folhas caindo uma a uma, o da fonte que corre e que nunca mais tornará a correr, o da voz que lhes falou na hora extrema; guardam nas mãos o último contato das mãos, e a réstea doirada deste sol doirado ainda lhes reluz nos buracos das orbitas...

Deitam-se ao mesmo tempo a caminho do fundo dos fundos e de mais fundo ainda. Mesmo morto o que eu não quero é morrer... Primeiro rebate, da primavera doirada e frenética, primeiro impulso que estonteia e deslumbra...

Os mortos é que estão vivos! os mortos é que estão vivos!

 

A MULHER DA ESFREGA

7 DE FEVEREIRO

Do sonho que revolve o mundo cabe também uma parte à mulher da esfrega. Arrasta tudo consigo. Cai o inverno dentro da primavera. Engrandece-a, espalma-lhe os pés, esfarrapa-lhe os vestidos.

Está aqui a figura — está aqui outra coisa. Muda de expressão, como se fosse possível as lágrimas usarem por dentro as figuras humanas, como a chuva ou os passos gastam a pedra. Aquilo dura um momento, transparece um minuto, mas esse minuto chega. Logo à submissão e a humildade se mistura um nada de entontecimento. Quase nada. Trouxe sempre consigo debaixo do xale um resto de sonho amargo. Remoeu-o transida de frio pela vida fora, quando fez recados, aqueceu a água e rachou a lenha. É um nada e ampara-a. Atreve-se... Toda a gente precisa de qualquer estonteamento para suportar a vida. Sonho gasto que andou por todos os caminhos, com pés espalmados como a recoveira. Há sonhos humildes que ninguém quer sonhar: servem à Joana que quando os usa os vira do avesso.

Velha quer dizer experiência e secura, e a Joana não tem experiência nenhuma da vida. Conserva a ternura intacta. Ninguém na ouve. Tem uma filha, nunca fala na filha. às vezes pousa em mim os olhos turvos:

 — O corpo pede-me terra.

Ainda hoje não comeu senão uma côdea que lhe deram. Aproveita tudo. Anda sempre absurda a fazer contas como um avaro. Os trapos são sempre os mesmos: seca-os no corpo. O monologo é sempre o mesmo com que enche a vida toda. É sempre a mesma obstinação desconjuntada, como se as palavras gesticulassem para o lado de dentro, e a mesma ideia que a persegue o que debalde repele. Seja o que for, a Joana esconde-o muito fundo. às vezes fica suspensa e alheada. Mal pode arrastar as pernas trôpegas. É pele, meia dúzia de ossos, um cangalho, que sente uma absoluta necessidade de repouso, de terra para dormir. O frio é de morte. Entranha-se-lhe até aos ossos, e a velha lá segue com o saquitel de boroa e os olhos turvos de tanto ter chorado. Vê sempre não sei quê que a não larga.

 — A tua filha?... — E nunca fala da filha.

Naquele desespero percebo uma palavra outra palavra. Sobre isto choro, sobre isto lágrimas em barda, como se nascesse uma fonte na escuridão. A Joana chora sempre, chora por tudo e por nada, chora por si e pelos outros. Não se sabe onde vai buscar tantas lágrimas.

A ternura é úmida.

Não compreendo este ser. Viro-o, reviro-o. É um nada com duas ou três ideias no caco. Cheira mal, cheira a aziumado. Passou a vida a aturar os doentes e a vida repele-a. Apega-se e a vida acaba por fazer de Joana de unhas roídas, peles no pescoço e olhos turvos, uma figura disforme. Irrita-me e prende-me. Sei como a Joana se encortiça dum lado e se faz sensibilidade do outro. Posso dizer quase dia a dia como as mãos se lhe deformam, como os olhos se lhe aguam, explicar como a mulher da esfrega se parece com o pano da esfrega. Não sei explicar o resto. Com este molho de ossos e alguns farrapos no corpo, há um fiozinho de oiro a reluzir, um fio que teima em aparecer à tona e em se misturar a água de lavar a louça. Anos, velhice, desgraça — e teima. Teima até ao caixão. Reluz sempre. Tem o mundo contra si, a vastidão sôfrega, o rodilhão do universo em perpétuo inferno. Resiste. Parece fácil de suprimir num sopro. Resiste a tudo, esse pó necessário como o pólen à asa para voar. Um nada com a noite diante de si, com a voragem diante de si. Tudo se gasta e desgasta — não o usam.

Tenho passado noites em debate com este ser absurdo. Acabo pelo desespero. Enfurece-me e apega-me ternura. Uma boca enorme que se fecha sem emitir palavras, os mesmos olhos inocentes de pasmo, e um ronco que lhe vem dos gorgomilos como do fundo dum fole. Mais nada. Sacudo-a — deita sempre a mesma água. O mundo é uma voragem. Tanto faz. A vida é uma mistificação. Debalde. Responde-me com ternura. Responde-me com uma vida humilde de desgraça e lágrimas. E outra coisa exprime a figura: surpreendo através dos farrapos e do ridículo, um nada imenso, uma força imensa que transmite outro nada: algumas lágrimas para chorar, outro ventre para parir. Um poder de se perpetuar — para gritos. Impelem-na — impele. Debalde a dor sua, a Joana caminha molhada e trôpega, mas caminha. É inútil a desgraça agarrar-se-lhe. Mais funda porque é muda como a noite. Faz parte da velha. Envolve-a, cresce, enrodilha-se-lhe. Sua. Só geme: — Anh... — Resiste à desgraça, resiste à vida, resiste ao ridículo. A velha consegue ser maior que a desgraça. Nem toda a água de lavar a louça suprime este facto.

O meu desespero termina aqui, diante desta criatura que não compreendo, de mãos roídas e um xale velho sobre o corpo mirrado de ternura. Estraga-me a vida toda. Perturba-me a lógica. Mete-me medo. Tanto faz que a Joana viva ou morra, que grite ou se cale: as mesmas estrelas no céu, a mesma grandeza absurda, o mesmo mudo espanto. E no entanto nesta confusão esplendida só a sua alma comunica com a minha alma. A sua dor, a sua mentira é que importam à minha vida e à tua vida. Negrume e um arranco: exaspero para manter de pé um resto de ilusão. Mal se fecha abre os olhos atônitos. Não diz palavra. Por fim chora, as lágrimas correm-lhe pelos sulcos das lágrimas e mistura-as ao pó de sonho com que foi entretendo a vida, a pequeninas coisas gastas e puídas — ao sonho que ninguém quer, ao sonho que ninguém usa, o que em todo caso a sustenta e a enleva, como as bonecas das crianças pobres, de trapo e com dois olhos abertos a retrós, que se lhes afiguram rainhas.

Há um mistério na vida de Joana, e no entanto na sua alma lê-se como através dum vidro. Tudo nela será falso exceto a dor. Não sei, ninguém sabe o que tem. Sinto que se obstina como se fosse de pedra e dentro houvesse outra Joana a dar com a cabeça pelas paredes. Não ouço o que diz, nem sei o que sofre — mas a desgraça sua naquele monologo sem pés nem cabeça, a que não ligo sentido. Debalde o sonho se encarniça. O sonho, que não cabe no mundo, cabe entre as quatro paredes daquele caco e revolve-a. Fecha a boca como se tivesse medo de falar. Não quer ver — e há-de por força ver. Persiste em manter de pé o resto da ilusão em que passou a vida, obstina-se o ciclone vivo em pô-la frente a frente à desgraça. É sonho contra sonho. O que ela não quer é ver, e só ela sabe o que não quer ver. Não pode com o peso desconforme que a torna grotesca, e de todo se assemelha agora à árvore do quintal: mais sonho — mais flor. Abre uma boca enorme, fecha-a sem emitir som. Mostra as mãos, aperta os gorgomilos e o sonho arranca-lhe farrapos. Há-de acabar por lhe extorquir a dor...

Sua vida é um monologo, que eu não sei traduzir. Nossa vida é sempre um monologo de interesse e de sonho. Sempre o mesmo monologo interior, de dia, de noite, quando acende o lume ou quando põe em mim os olhos turvos. Talvez os bichos monologuem assim, muito baixinho, p'ra dentro, só dor, sem entenderem a vida nem explicarem a vida. A desgraça está ali ao pé, cada vez mais seca, e nem o sonho nem a desgraça conseguem arrancar-lhe aquilo de vez para fora. — A minha filha... — Mas isso não basta! não chega! Mais dor, mais sonho. Abre a boca cada vez maior e não tira outro som dos gorgomilos: só emite um ronco. A desgraça e o doirado tingem e entranham-se na água de lavar a louça. Há-de acabar por falar... Até agora por mais que faça sai-me das mãos ridícula.

— E vai eu disse-lhe... — E estaca, esfarrapada e atônita. Sacode-a o sonho com desespero. — Anh... — E como naquele caco espesso só há duas ou três ideias como traves mestras, e ternura naquela alma obscurecida, não avança mais palavra. E a desgraça sua e tressua. Grotesco, grotesco, e desespero neste grotesco, e dor neste manequim desconjuntado, com um xale a esvoaçar e a boca espremida. Anda aqui um ser imenso que luta com um ser humilde e o amolga até à caricatura. Não pode mais — e ainda aperta a boca... O que tu lhe fizeste, sonho! o que tu lhe fizeste!... Tornaste-a disforme como a sombra dum bonifrate projetada sobre um écran. — Criou aquilo a bafo, trouxe-o sempre consigo debaixo do xale, com olhos agudos e tal ar de aflição que parece tonta. — A minha filha... — e tu arrastas-lho com um trapo por todos os esgotos. Debalde se debate: tem de falar...

 — A minha filha casou rica, a minha filha tem uma sala de visitas (é o que a Joana mais admira no mundo) como a das outras senhoras. A minha filha... não posso! não posso!...

E para não avançar mais a Joana ri-se de si própria. Quem a não soubesse capaz de exagerar, diria que exagera. Ajunta pormenores embaraçosos a essa história que se parece com a mulher da esfrega pelos empurrões e pelos trapos. Repete-se, hesita, volta ao princípio, sem termos para se exprimir. E atrás das palavras sem ligação sente-se cada vez mais dor: o pano sujo da esfrega está embebido de lágrimas.

 — Tenho uma tristeza metida em mim...

A narrativa desconjunta-se: ganha em dor e em grotesco. Enche a boca, perde em naturalidade, adquire em imponência. O tom carregado é de farsa com resíduos de lágrimas. A desgraça ri-se da desgraça. Aumenta as cores de exagero, carrega o traço, e a tinta engrossa:

 — A sala de visitas! a sala de visitas!... — Representa com ademanes e mesuras grotescas a sua entrada numa sala em passo medido de procissão. Avança um passo, recua um passo. E aí surgem agora as visitas da filha, umas atrás das outras com espalhafato. A Joana prolonga demasiado a cena para as velhas se rirem — e tem os olhos arrasados de lágrimas. Insiste, para-lhe na boca o riso desdentado como se tivesse um nó no gorgomilo. Teima, e desata a chorar. — E vai eu disse-lhe... — Reage e começa logo a rir. É um quadro estranho e sem realidade. No fundo, a tintas que resumam desespero, agitam-se figuras com penantes desconformes e sedas amarelas. Primeira dama, segunda dama — e os chapéus têm penachos doirados, os vestidos recortes de espanto. E as mesuras repetem-se num acesso. Terceira dama de cauda a rasto, outra dama, cumprimentando para a direita e para a esquerda, e já nos longes enfumados, sempre com exagero e grotesco, outras damas de espavento — da alta roda... E o ser esfarrapado mexe o crânio, para cima e para baixo, com um sorriso à sobreposse. Postiço sobre postiço. Representa — e todas estas figuras parecem sufocadas, todas estas figuras que ela cria ridículas, mal dão dois passos, estão mortas por desatar aos gritos — todas estas damas inverossímeis, de roxo, de amarelo e de verde, pariu-as o grotesco com dor. A Joana imita as contumélias, olha em roda, e recebe-as pé atrás pé adiante. E já o absurdo aumenta, a dor aumenta e trasborda, quando outras damas de farsa, outros manequins forjados pelo sonho, se agitam de cá para lá na sala de visitas, engrandecida e transformada na sua boca num salão doirado. É o ponto em que as velhas gozam, sentadas à roda da Joana, em que a D. Felicidade exclama: — Ai que eu não posso mais! ai que eu até fico doente! Vem-me a sufeca. — Estão ali todas. Está a D. Hermínia, e com a D. Hermínia um mundo de inveja paciente; a D. Penarícia, e com a D. Penarícia uma alma onde repousam exaustos, como num vasto dormitório, todos os despeitos duma existência inútil; a D. Fúfia com os cabelos arrepiados, e por trás da D. Fúfia as ruinas devastadas de Carthago. Está a mulher trôpega, amachucada, com olhos aguados de cão. E com isto ridículo, e sobre esta tragédia ridículo.

Já a história entra noutra fase. Tantas vezes se lhe tem perguntado porque é que a filha a deixa andar na esfrega, que a velha acrescenta pormenores embaraçosos. A narrativa torna-se obscura, dolorosa, hesitante, como se fosse arrancada aos pedaços duma alma espezinhada. — E vai eu disse-lhe...

 — Hoje é que ela está que até parece o Taborda!

Na realidade a Joana é insuportável. Repete sempre as mesmas coisas, depara-se por todos os cantos como um trambolho. De noite, quando se pilha na enxerga, cuido que mói ainda o mesmo sonho: — A esta hora lá está ela... a esta hora... A esta hora a minha filha... — E os olhos cerraram-se-lhe de êxtase, de dor ou de espanto no sórdido buraco.

Todas as noites a velha, quando sai da esfrega, dá uma grande volta no negrume, alta, ossuda, molhada até aos ossos. Ninguém sabe onde a conduzem os passos trôpegos, a falar só, a remoer o sonho que a sustenta e ampara. Por vezes palpa um pilar de granito, por vezes debate com um ser misterioso, uma questão insolúvel. Sigo a sombra esgalgada, que gesticula e reza. Para numa ruela, senta-se à porta dum casebre. Bate, não lhe respondem. Espera, e outra vez timidamente se atreve a chamar... — De dentro sacodem-na palavras bruscas, e a velha torna por o mesmo caminho, encharcada até aos ossos... Esta casa não é como as outras casas, esta sala não é como as outras salas, nem esta rua como as outras ruas.

8 DE FEVEREIRO

O sonho é um — a realidade é outra: a realidade é uma figura só dor. Remoeu aquele sonho quando seguiu a filha pelas vielas. As mãos secas de desespero tentaram em vão arrancá-la à desgraça. A filha desceu mais fundo, a Joana desceu mais fundo. Deu-lhe a vida e suportou o escárnio. Andou nas mãos dos ladrões e tem tal ar de aflição, que parece tonta. A desgraça pega-lhe pela mão e leva-a mais fundo ainda: aperta-a de encontro ao peito descarnado... Não faz ideia nítida da vida e da morte, nem daquela viela com mulheres. Atura a miséria e a desgraça. Suporta os vestidos encharcados no corpo. Foi disto que ela fez sonho — das noites de dor e do riso dos ladrões. — A usura da vida e a dor represa, engrandecem-na. Nunca se queixou. Escondeu de todos a sorte da filha. Guardou aquilo para si, noite a noite, toda a vida. Bronco e dor, uma carcaça e farrapos, e nos olhos não sei que expressão que a faz mais baixinha: — Aqui estou para te servir. — Passou por tudo, e um resto de ilusão bastou-lhe para poder viver. Sós a sós a figura tem uma expressão descarnada e refletida.

Nessa noite, à meia noite, nasce o menino entre ladrões. Vem morto ao mundo. A Joana pega-lhe a tremer com as mãos da esfrega e deita-o no xale. Quatro cabeças se curvam à luz do candeeiro de petróleo para verem o menino — três cabeças de ladrões e a cabeça da velha.

 — O menino está vivo! — afirma a Joana.

 — É preciso enterrá-lo de caminho — diz o ladrão mais velho, encolhendo os ombros. E juntam-se à porta falando baixo, enquanto a velha lhe aquece o corpo pegajoso com o bafo. Dentro a mãe geme.

 — Vamos.

Os gritos cessaram de todo.

 — Venha daí.

E, tomando o braço de Joana, que achega a si o menino embrulhado no xale, levam-na para a rua. Vão adiante o ladrão e a velha. Caminham até um terreno de construção, lama calcada e recalcada: ao fundo o pano dum muro e um resto de árvore mutilada. Escolhem o sitio e o pai abre a cova com o alvião. Nenhum diz palavra. Só a Joana aperta mais o menino de encontro ao seio murcho, como se fosse possível aquecê-lo. Agasalha-o dando voltas ao xale roto, e vai depois no escuro palpar a terra encharcada. Tira-lho o pai para o meter na cova, e ela ainda protesta:

 — O menino está vivo.

Nenhum dos ladrões se ri. O que ela quer é outra vez criar. Está disposta a recomeçar a vida, a deitar mais ternura, a tirá-lo à boca para o dar aos outros. E insiste:

 — O menino está vivo.

 — Vamos embora.

Sacodem as mãos: só a Joana conserva nas mãos a terra da cova. Rodeiam-na três sombras enormes e ela sente-lhes no escuro o bafo monstruoso. A seu lado caminha o ladrão mais velho. Os outros adiantam-se.

 — O estafermo da velha rica está só. Tu podes abrir-nos a porta...

 — Roubar!...

 — Ouve o que te digo... Tu não sentes o frio e estás molhada até aos ossos, tu de tanta fome já não sentes a fome.

 — Ainda hoje comi uma tigela de caldo que me deram.

 — Nem dás pela desgraça. Tu não vês a tua filha numa viela e nas mãos dos ladrões?

 — As bagadas que eu tenho chorado, senhor ladrão!...

 — A desgraça trá-la escrita na cara. Ainda ontem lhe bateram. Nem a lama das ruas é mais baixa e mais calcada. Tu ouves?...

E a Joana mastiga:

 — Naquela terra tão fria, chegado à terra...

 — Para não sofrer. Deixa lá os mortos. Os mortos podem mais que os vivos. Ouves o que te digo?... O menino matou-o ela ao parir...

 — Jesus!

 — Matava-o eu para não ser ladrão. Deixa lá o menino que está na terra. Escusa de ser ladrão... O estafermo da velha rica está só. Tu podes fazer-nos a entrega...

 — Senhor ladrão, vossa senhoria... Assim Deus me ajude... Como a terra está fria!...

— Que me importa a terra! O que me importa é o dinheiro do estafermo. Ouve! ouve! ouve! Ella é rica, tu és pobre...

 — O Senhor fez os pobres para servirem os ricos, e os ricos para ajudarem os pobres...

 — A minha vontade era esganar-te... Por tua filha! Se não nos abres a porta ele estorcega-a. A tua filha é menos que nada nas mãos dele...

 — A minha filha... Vocemecê, senhor ladrão, também teve uma filha, que eu sei...

 — Cala-te! Esta noite é por força noite de desgraça. Tive uma filha e não lhe pude valer. Vi-a morrer com os olhos enxutos. Morreu tisica, morreu-me à fome e não lhe pude valer! Fiz-me depois ladrão. Deixemos os mortos... Uma madrugada fui de prego em prego. Tinha despido o casaco para o pôr no prego. à porta dum estava um cavalo à carroça, com a cabeça metida numa ceira, a comer. O que eu invejei aquele cavalo! Morreu-me. Foi nesse dia que me fiz ladrão.

 — A sua filha morreu-me nos braços...

 — Tu não te calarás! Esta noite já me não serve. É noite de desgraça. Vai-te p'r'o diabo!

Repele-a, e ao pôr-lhe a mão no ombro, repara que só traz a camisa extreme sobre o corpo:

 — O xale? que é do xale?

 — O xale dei-o ao menino.

 — Fizeste-a bonita!

Tal é a figura esfarrapada. Maior. Maior pela desgraça e pela mentira. A Joana, quando faz rir as velhas de cuia postiça, mente. Tem duas existências, uma vulgar, outra oculta. Lava as escadas, calada e submissa: à noite vive com os ladrões e as mulheres das vielas. E mente. Mentiu sempre. Mentiu enquanto pôde. Mentiu a si e aos outros. Fez da dor mentira e da mentira sonho. Quanto mais desgraça, mais exagero e mais grotesca a sala de visitas — maior a sala de visitas — mais doirada a sala de visitas. A Joana não se atreve a sonhar a felicidade: contenta-se em sonhar a desgraça, e não lhe tira os olhos de cima, para não ver outra desgraça maior. Ilude-se. E debate-se numa cogitação profunda como a noite. Toda a noite lhe parece negra. É como se pela primeira vez desse com a vida. Deita as mãos, não encontra a que se apegue, e faz gestos para repelir o negrume. Remói coisas que não percebe bem, que se lhe confundem na alma e que traduz em palavras descosidas e sem significação. De quando em quando para, com os olhos fixos, e diz uma frase fora de propósito, a cismar com obstinação noutra coisa:

 — Casa de mulheres, casa de ladras.

Ou monologa parada a um canto:

 — O Senhor lá sabe porque a gente anda neste mundo e para que se criam estas coisas... Estas coisas... — E abre os olhos espantados. — Tudo está escrito no livro do futuro... Sempre ele há gente muito boa neste mundo! É o que vale à pobreza. — Depois um salto dentro dela: — Onze, não, doze vinténs é que são. Quatro vinténs, do baú que levei à cabeça, seis vinténs da esfrega... — E conta pelos dedos: — Seis, sete, nove vinténs... Depois aquilo remexe, vai ao fundo do fundo: — A desgraça não nasceu comigo nem há-de morrer comigo. — Ou explui num grito de quem não pode mais: — Não posso com este peso, com esta desgraça, com esta desgraça sobre esta desgraça, e com isto!... A dor que a gente cria aos seus peitos! E ainda por cima isto!

Depois cala-se. É pior. Fica confundida e atônita, como um cavalo prostrado, que não sabe porque sofre e mantem os olhos abertos — ridícula diante da desgraça e diante do assombro. Cala-se e outro ser imenso começa a falar dentro dela. É um debate ao mesmo tempo fútil e cheio de grandeza, que não posso fixar, mesquinho pelas palavras que emprega e grande pelo sentimento que o reveste. É uma coisa triste, uma coisa dolorosa, uma coisa desconexa, feita de nadas, de gritos, de mudez. A Joana fala com o Sonho tu cá tu lá e atira-se ao Sonho. E quando enfim o espanto se acumula sobre ela, a Joana dispõe-se a arrancar-lhe farrapos. Misturem a isto a dor, misturem a isto ridículo, porque a Joana revolve tudo, frases, sentenças, palavras que lhe acodem e que não formam sentido — veem de muito longe... — lágrimas, sonho, e ranho. Assoa-se ao avental.

 — Eu não sei dizer! eu não sei dizer!...

E sem falar à sombra que a não larga, a velha gesticula para o escuro: a desgraça tapou-lhe a boca, meteu-lhe outra vez a boca para dentro. Avança com as mãos abertas. A noite é imensa. Cabem na noite os mundos infinitos, mas só me interessa a alma de Joana. Quer compreender e não pode. Pior: o sonho humilde já lhe não é possível. Parece perdida, tão inútil no mundo! A ternura não lhe serviu de nada. E há outra coisa em que é preciso insistir: não sabe porque sofre, não lhe cabem lá dentro a desgraça e a explicação da desgraça. Outra vez recorre à perlenga com que amortece a dor: — A sala... a outra sala... — Mas na sala disforme vomitam-se injurias e as bocas transformam-se em bocarras monstruosas, que a Joana não consegue tapar. Está só e a noite, só e o sonho. Fica dor pelo lado de dentro, como a fuligem duma chaminé quando se incendeia e fica doirada pelo lado de dentro. O negrume é cada vez mais compacto e o esforço da velha cada vez maior. Quanto mais negra é a sala, mais a Joana insiste. Aumenta-a, e agitam-se as visitas em delírio: quem as recebe de pé a fazer cortesias de espalhafato é a própria desgraça vestida de amarelo. As cadeiras tomam outra expressão, o doirado dos moveis apega-se à noite espessa. Estes cacos são expressões de dor e é a desgraça quem os arruma.

A noite irrita-me com a sua imobilidade imperturbável, e ao lado este ser que só tem uma forma grotesca de exprimir o que sofre. Esta sala com um gato bordado a retrós, interessa-me muito mais que a noite negra, a noite funda, a noite caótica com esta vida e outra vida. A noite é inútil.

 

PAPÉIS DO GABIRU

10 DE FEVEREIRO

Ella foi uma flor que se aspira e se deita fora — quase sem reparar — cismando na imortalidade da alma.

Se eu pudesse cinematografar a vida e a morte duma flor, cinematografava a sua vida.

Não sei dizer se existiu se a criei, e o que na realidade me interessa, é o que ela disse à grande nódoa de umidade da parede.

Sei que chorou mas não a ouvi chorar. Ninguém a ouviu, ninguém deu por ela. Passou como uma sombra. Habituou-se. As lágrimas sumiu-as, meteu-as para dentro. A dor aprendeu a contê-la. Habituou-se a queixar-se à grande nódoa de umidade da parede.

Entre mim e ela interpôs-se o sonho.

A ternura também cansa. Deixem-me! deixem-me sonhar!

O principal para mim foi a queixa que ninguém ouviu no mundo; foi o que os seus olhos verdes de espanto decifraram naquele arabesco da parede. Podes por ventura conceber isto? Uma dor que não deixa vestígio, um sonho ignorado que não deixa vestígio, que passa no mundo e não deixa vestígios — a dor despercebida, as lágrimas contidas que se não chegam a chorar?

Não valia nada o que vale um pássaro, e em questões afetivas, em ternura, tinha a profundidade do mundo — a do silêncio — a do sonho.

Tanto se queixou baixinho que morreu de frio!

Deito-me debalde aos encontrões à noite. Nem um grito. Os remorsos são inúteis. Um passo na vida é sempre irremediável: não há forças humanas que o possam apagar.

11 DE FEVEREIRO.

A vida tem dois períodos: o do entontecimento, o da saudade. Não sei qual é melhor. Talvez aquele em que se ouvem os passos da morte, mais perto! mais perto! O frio da morte dá à vida um encanto superior e um prestigio maior.

Deixem-me! deixem-me! Deixem-me só com isto, deixem-me viver para isto. Deixem-me fechado a sete chaves com o sonho que me enche de ridículo, que não existe e é a razão da minha vida. Deixem-me ir para a cova agarrado a este nada imenso, que me doirou as mãos e me deixou atônito. Só no fundo da cova é que estou bem, sós a sós, fechado com ele para sempre.

Se o sentimento de beleza é a única coisa humana que não nos engana — se só a isto ficamos reduzidos — como não prever outra beleza maior?

De sobressalto em sobressalto, de assombro em assombro, de vulgaridade em vulgaridade e de contradição em contradição, assim vim até ao fim. Não consigo desprender-me de um, nem libertar-me do outro.

Atrás deste assombro há outro assombro — e depois outro assombro ainda.

Qual é a minha experiência da vida? Nenhuma. Qual é a lei que extrais da vida? Nenhuma. Só o espanto. Só uma coisa cada vez maior, sempre assumindo maiores proporções, que sinto desabar no silêncio, mais doirada e frenética que o sonho. Tudo se reduz a coisas a que damos valor, e a coisas a que não damos valor. E entretanto ao nosso lado passa o tropel magico, desesperado e caótico. Ali fora desabam os séculos e a torrente misteriosa que leva consigo estrelas em vez de calhaus. O jacto de portento vem do infinito e caminha para o infinito, levando consigo a alma, o universo, o logico e o ilógico, o absurdo e Deus.

Uma vida resume-se em duas linhas, sintetiza-se em dois ou três factos. Se a vida fosse só isso não valia a pena vivê-la. A vida é muito maior pelo sonho do que pela realidade. Pelo que suspeitamos do que pelo que conhecemos. Se nos contentamos com a superfície, não há nada mais estúpido — se nos quedamos a contemplá-la faz tonturas. É por isso que eu teimo que a Morte não tem só cinco letras, mas o mais belo, o mais tremendo, o mais profundo dos mistérios. Prepara-te.

O problema capital da vida é o problema da morte. Ele resolve tudo. Não há factos isolados; não há acontecimento no universo que não gere outro acontecimento. O inconsciente não pode criar o consciente. É impossível dar um passo a que não suceda outro passo. A vida gera a morte — a morte gera a vida. Mas que vida?

Sou nada diante do universo. Mas teimo, mas discuto comigo e contigo, ó espanto, mas defronto-me com o enigma, encarniço-me e saio daqui esfarrapado, despedaçado — mas teimo e hei-de vencer-te. Não quero morrer de vez. Não quero perder a consciência do universo nem a sensibilidade do universo. Eu sou o nada, tu és o infinito — hei-de por força vencer-te!

E no entanto sinto-me tocado de hesitação e de dúvida. Do que tenho saudades é desta vida. Ao que eu aspiro é a esta vida. O gesto que o moribundo faz ao arrepanhar o lençol é um gesto de naufrago.

Dum lado a matéria, do outro o espírito. Dum lado consciência, debate, luta, do outro a impassibilidade, a fatalidade inexorável. Nenhum grito a perturba. Dum lado a vida gasta num segundo, do outro a sucessão ininterrupta dos séculos, indiferente e eterna. Como acaso é atroz, a não ser que outra coisa nos espere.

Se não nos detivéssemos com palavras, se avançássemos todos ao mesmo tempo, esquecendo o que é inútil, para esta coisa que nos devora, subjugávamo-la. Conquistávamo-la por uma vez, por maior que ela fosse. Mas nenhum de nós se atreve e passamos a vida a fingir que não existe. E só ela existe.

 

OUTRA VILA

12 DE FEVEREIRO

O tempo era limitado, a paciência pegajosa, o gesto lento. Agora que a vida dura séculos ninguém espera um minuto.

Tenho aqui a vila sufocada de espanto, e, neste momento de silêncio e mudez, todos encaram com desespero os próprios fantasmas. Está aqui o fel — e o fel está vivo. Está aqui a mentira — e a mentira está viva. Está aqui a D. Leocádia e o dever, a D. Biblioteca e o postiço, o Anacleto e as conveniências. Estão todos. Não falta ninguém à chamada. Está aqui também o espanto e a mania, e a mania tem os cabelos em pé. Custa-me a admitir-te na minha companhia, custa-me a arrancar-te de profundidades ignotas... Tudo o que fiz era um simulacro, reconheço-o. Passei a vida a arremedar a vida. Passei a vida com uma voz a pregar-me: — Não metas aí o nariz. — E a minha vontade era meter ali o nariz. — Passei a vida a cumprir o meu dever e a amargar o meu dever. Passei a vida a arredar-te e agora tenho por força de viver contigo. E tu? — e tu? — e tu?... — Gastei-me, gastei-a... — exclama a D. Leocádia. Cumpri sempre o meu dever. Cumpri-o com fel. Para cumprir o meu dever lhe repeti a toda a hora que os pobres têm um lugar marcado na vida. Fi-lo por dever. Não transijo nunca com o meu dever. Assim como devia tirá-la do asilo por ser do meu sangue, assim o meu dever era educá-la para pobre e reduzi-la a um ser passivo e inerte. Vesti-a com um saco e gastei-me um dia, gastei-a outro dia, a ponto de usarmos as feições e de não nos reconhecermos. Espiamo-nos ambas, uma em frente da outra, no silêncio gélido da vila, onde se ouvia o trabalho lento das aranhas no fundo dos saguões. — Dei-te o sustento, tens de ser agradecida. Tirei-te do nada, livrei-te da fome, é preciso seres agradecida. Cumpre o teu dever. Eu cumpri sempre o meu dever. Cumpri-o contrariada, num perpétuo dize tu direi eu, numa eterna contradição, mas cumpri-o. Cheguei a tirá-lo à boca para a poder manter. Cumpri o meu dever e amarguei o meu dever. Usei assim a vida a arremedar a vida. E tenho-a aqui na minha frente, com a barriga à boca, à espera que eu cumpra o meu dever até final. Qual é o meu dever? Reconheço que a odeio — odiei-a sempre. Mas qual é o meu dever? pergunto. Qual era afinal o meu dever? Se fazia o bem, amargava o bem; e tu não me largavas se tentava o mal. A minha vida tem sido um perpétuo inferno, contrariada e impelida, e sempre a cumprir o meu dever amargo, o meu dever estúpido. — E os olhos não se lhe despegam do fantasma coçado e verde, de ferro e verde. Grita-lhe: — Cumpri sempre o meu dever! Se não cumprisse o meu dever ia parar a uma viela. — Queda-se estrangulada e surpresa, mais estrangulada e surpresa ainda, diante da voz que lhe diz não sei o quê de temeroso... — E tu? — pergunto — tiveste inveja? — Tive e recalquei-a. Arranquei tudo, destruí tudo, por ti que não existias. — Mas isto é infame, isto não sou eu! — És, és, mais do que nunca o foste. — Eu mesmo reconheço que sou outra casta de intrujão. Tenho outros preconceitos, falo outra língua e julgo-me superior. Na realidade sou outra casta de intrujão. O que me falta é desplante. Prendo-me a inutilidades, e, para me engrandecer, admiro os meus escrúpulos e dou importância às minhas teias de aranha. A minha vida é uma serie de transigências secretas — e por cima medo... — Fala mais alto! fala mais alto! — A minha vida tão bem construída é uma aparência, a minha serenidade, aparência. Talvez um pouco de logica, um pouco de acaso e mais nada. No fundo de mim mesmo tudo isto me parece um sonho monstruoso e sem nexo, e às vezes surpreendo-me a pensar: — Sou um doido? sou um doido? — É que me vem não sei donde, não sei de que confins ou de que recanto d'alma que tenho medo de explorar, um bafo que me entontece. Serei eu doido? — Cada velha se põe a recuar diante de si mesma; cada ser procura afastar-se; cada um a si próprio se repele. Mas todos são enrodilhados no pé de vento, que os leva sufocados e atônitos, balouçados entre a vida e a morte, entre o assombro e o inferno. E é grotesco este encarar com o sonho, pé atrás pé adiante, esta hipocrisia que teima em ser hipocrisia, esta mentira que quer ser mentira até à última extremidade. — Tu não deste um passo na vida sem obedeceres às conveniências e sem consultar o teu código de meticulosidade. Tens um Dever e Haver do tamanho dum prédio. A praça considera-te, Deus considera-te. E tu torturaste-a segundo as conveniências, habituaste-a a conter as lágrimas e a ser correta com o mesmo grito recalcado ao fundo do coração. E esse drama correto, torna-se mais correto ainda, e, século atrás de século, há-de acabar por atingir a correção suprema. — Não tenhas medo, avança um passo, outro passo ainda... — Que é isto? que é isto que se me pega, diz a Telles, diz a Reles — e que me não deixa pensar na mania? — E nos olhos de idiotia, a vida, camada atrás de camada, chega a vir à superfície. — Ah, a mania D. Telles, das Telles das Reles, a mania! Pensar neste trapo um dia, e só pensar neste trapo! Fazer de ti e de mim mania e só mania! — Dois castiçais de prata foram a minha vida. Pensei neles com minúcia. Um nada — ou Deus — bastou para me encher a vida. Acordei com eles, dormi com eles. Taparam-me o mundo. Isto foi o meu sonho e a razão do meu ser. Criei-o. Dei-lhe o meu leite. Vivemos juntos; ia morrer com esta mania, levava-a para a cova, sem ter pensado no resto, e agora encontro-me sós a sós contigo, desprevenida e sozinha. Foste para mim um filho. Alimentei-te e alimentaste-me. Reservei-te sempre o melhor cantinho do meu ser. Salvaste-me do desprezo de mim própria, pior que o desprezo alheio. Quando me sentia mais humilhada e mais pobre, recorria a ti, e encontrei-te nas horas em que a gente até de si dúvida, quanto mais dos outros. Trouxe-te sempre comigo. Sorrias-me. Foste a carne da minha carne e o osso do meu osso. Um filho podia-me morrer; tu não me deste um desgosto. Escondeste-me a vida e a morte — e eras um trapo, uma coroa de lata, dois castiçais de prata! Agora mesmo procuro agarrar-me — mas isto pega-se-me, deslumbra-me e ofusca-me... Há só uma coisa que eu queria ainda dizer, e não a sei dizer diante de isto que tenho ao pé de mim, dentro de mim e me não larga... — Ai! ai! ai! — Também tu, também tu, prima Angélica, que passaste a vida debruçada sobre a meia, também tu te ergues num arrebatamento, passa-te não sei que dor na escuridão cerrada, e procuras, com a agulha afiada como um punhal, furar os olhos de todas as pessoas que te fizeram bem!... Mas tanta inveja ruminaste que sorris e te curvas submissa sobre a mesma meia eterna, a que mãos caridosas já não desfazem as malhas, e que tem três metros de comprido... — A mesa da bisca lambida caiu por terra, e de tal maneira se olharam nos olhos, que não foi possível tornar a juntá-las. Só a mesma voz persiste dentro de nós mesmos, no silêncio e na mudez da noite infinita, tal qual a D. Leocádia: — Mas eu não posso! eu não posso! Tu obrigas-me a fazer o que não devo! Tenho aqui fel e hei-de, para cumprir o meu dever, fazer o contrário do que sinto: dominar-me todos os dias, moer-me todos os dias, pregar-me todos os dias: — A gente só vem a este mundo para cumprir o seu dever!... — O que há de pior no mundo é arrancar os desgraçados à desgraça! O que há de pior no mundo é não haver outra vida e passar esta vida a arremedá-la!

15 DE FEVEREIRO.

Até agora a mentira fez-me suportar a vida, a insignificância e as palavras tornaram-me a vida possível, a vida onde à custa de palavras cheguei a ser Eleutéria da Fonseca, Balsamão, Elias de Mello ou Melias de Mello. Só à custa disto pude aturar a vida e o horror da vida. Só por não a ver, pude encará-la. Só enquanto fui feito de pequenas misérias e de palavras inúteis a pude suportar. Mas agora que me resta se tudo é vazio de significação?

Custa muito a construir uma vida fictícia, a ser Telles ou a ser Santo, a criar um Deus ou uma mania. Custa a melhor parte do nosso ser. É certo que metade disto — metade pelo menos — é representado. Se te confessasses dirias: — Eu sou um ator, eu sou um ator de mim mesmo: represento sempre até quando sou sincero; até quando digo o que sinto, é outro, e noutro tom de voz, que diz o que sinto... Cá estou a vê-lo representar... Mais de metade, muito mais de metade dos meus sentimentos, são postiços. Todos estamos ligados por compromissos, aceitamos certas leis e vivemos de aparências. Existe entre nós e dentro de nós um acordo tácito. No fundo bem sei que o que me dizes é mentira, mas sei também que tenho obrigação de ajudar a mantê-la. Respeitamos um compromisso vital. Mais alto! mais alto!... Para podermos viver só lidamos com uma parte convencional da vida. A outra não existe: se existisse seriamos bichos. Esta vida é uma mentira — a outra vida é monstruosa. Desabada a arquitetura aparente, ficamos ignóbeis. Isto que aí está por terra custou muito desespero, primeiro na inconsciência e na obscuridade, através da inconsciência e da obscuridade, e depois através de terrores e de indescritíveis esforços. Custou aos vivos e aos mortos a dor das dores, poderem discernir dois ou três factos essenciais na treva condensada, na treva compacta duma noite que durou séculos. Esforço inconsciente de larva, com um destino a cumprir e léguas de granito a romper. Tiramos o mundo do nada. Levou séculos e séculos — mas tiramo-lo do nada. No princípio só fomos almas, criamos depois a casca. Também as árvores só a poder de tempo se revestiram dum invólucro. Éramos todos fantasmas. Criamos tudo — e a mentira. Tudo — e o hábito. Tudo — e a paciência. O sonho não é senão uma reminiscência. Todas as inutilidades não passam de adaptações à vida. Essas pequenas coisas são ao mesmo tempo temerosas e ridículas. Bem encarada a ninharia é uma tragédia. Destes seres saem outros seres grotescos e terríveis — terríveis e grotescos. No silêncio a mania toma proporções quiméricas, e não sei como hei-de juntar estas duas coisas — mania e desespero.

Dentro de cada ser ressurgem os mortos. Crescem dentes às velhas, afiam-se-lhes as unhas debaixo dos xales. Adquiriram outra expressão. Quase toda a gente emagreceu. Aguçam-se ferros no escuro. Procuram-se. Qual é o teu verdadeiro ser? Eu mesmo não sei. Dá-me um trabalhão encontrá-lo e acho-me sempre em frente de cacos, a que não consigo dar unidade. Uma ninharia — um impulso — um hábito. É isto que constitui o meu ser, ou é esta série de imagens, já desaparecidas, que formam a minha e a tua vida? Não, o meu verdadeiro ser sacode a poeira na cólera, na paixão, no amor ou no ódio, — porque aos sentimentos também é preciso desenterrá-los — e atua num frenesi. Acabaram as hesitações e as dúvidas, porque já não sou eu quem mando, a minha razão ou a minha vontade: são os mortos. E é quando me sinto viver.

E a insignificância? Até a insignificância. A insignificância com orgulho, a insignificância com desespero.

21 DE FEVEREIRO

Aqui está a vila toda — mas as figuras mudaram. São disformes. O próprio Santo cheirou as velhas, sacudiu as velhas e atirou com as velhas à rua. Do alto dos montes vomita cóleras sobre a vila passada de terror. O silêncio redobra, a dor redobra. E com isto uma alegria a que falta o ressaibo de tristeza que se misturava a todos os nossos sentimentos. Falta-lhe equilíbrio e harmonia. Tem a maior ferocidade. E produz o mesmo efeito que este cenário de assombro, que o vento e a chuva esfarelam, e onde sobrenadam restos. E com isto a voz que não nos dá tréguas e que atinge o desespero: — Não grites, D. Leocádia, não grites. Reconheço que és feita duma peça só. Foste sempre inteiriça. — Tirei-o à boca para a manter... — Tiraste-o. Tomaste a vida a sério. Entendeste sempre que pobres se educam como pobre, passaste a vida a azedar a vida, e o dever, que fizeste amargar aos outros, começou por te amargar a ti. E a esta luz intolerável as coisas tomam a teus olhos aspectos ignorados... — Mas então não há dever nenhum e eu não sou a D. Leocádia, 29-3.º-D.? — Outro passo, D. Leocádia, mais outro passo ainda... — Que exiges tu de mim então, que não compreendo? Que exiges tu de mim contra a minha vontade? Que me aniquile? Que me dispa para te vestir? — Não grites... — Que exiges tu de mim de absurdo com que não posso arcar? Um esforço sobre-humano? Ou exiges apenas que eu faça o bem que posso, uma parte do bem? Ou é o mal que tu exiges de mim e o bem é um pecado? Melhor será deixar a cada um a sua parte de desgraça e de cólera?... Eu posso talvez despir-me, posso cumprir o meu dever, mas que mais exiges tu de mim com que, ainda que queira, não posso! Que exiges tu de mim?! — Mas, D. Leocádia, eu não exijo nada de ti, cada um se aguenta conforme pode neste balanço...

 — Mas então não há dever nenhum? não há bem nenhum? Que fiz eu deste ser apagado e inerte com um filho do meu filho na barriga? — Oh D. Leocádia como tu educada sempre com as mesmas palavras e no mesmo dever, um dia de dever, outro dia de dever, e erguendo, no silêncio e no tédio, uma construção de trapos e de palavras que chegou ao céu e substituiu o céu — como tu tapas os olhos com desespero para não ver! Hás-de aguentar com este peso, que não podemos suportar... Talvez fiquemos cegos, talvez saiamos daqui aos gritos, os maníacos sem a sua mania, os bons sem a sua bondade, e os pobres só fel e vinagre, mas temos de ver o que não nos estava destinado. Para largar a pele, D. Leocádia, até a cobra adoece. Tanto importa que resolvas como que não resolvas o problema — todos temos de dar o passo. A vila é a mesma vila, as pedras as mesmas pedras. Nós mesmos não mudamos. A nova vida obriga-nos apenas a discutir o que estava ao nosso lado. Tudo existia no mundo, até este desespero; tudo estava vivo, até este grotesco. Nós é que estávamos mortos.

Passou no mundo a estranha ventania, e a morte de tal maneira se entranhou na vida que custa a separá-las. Mas já lá vão as formulas, os alicerces e os usos... No alto, sobre este absurdo, entre o borralho remexido, com a cinza e as faulhas atiradas indiferentemente para a escuridão, só a Via Láctea mudou de cor e alastra de lez a lez na abóboda recurva uma nódoa viva de sangue.

 

DEUS

25 DE FEVEREIRO

Dormi num tabuado, cingiu-me uma cadeia. Vesti-me com um saco. Todos os dias arranquei de mim próprio um farrapo e um grito. Arredei tudo para ficar só contigo no mundo. Sacrifiquei-te tudo. Fiquei nu e Deus, nu e a vida eterna. Tinha o horror da lepra, vivi com os leprosos. Calquei todas as afeições inúteis, e se uma andorinha me fizesse ninho na banca, como ao frade de Assis, torcia-lhe o pescoço. Encheste-me a vida toda.

E agora a morte não existe, Deus não existe, a vida eterna não existe. Uma luzinha e depois a escuridão!

Tenho diante de mim esta força cega, este absurdo a escorrer ternura e lepra, como uma primavera escorre morte, a irromper contra tudo e apesar de tudo, duma profundidade cada vez mais sôfrega e cada vez maior. Não quero ver e hei-de por força ver!

Este inferno, a que dei vida e a melhor parte do meu ser, não existe! Tinha conseguido só te ver a ti no mundo. Com uma palavra enchi o vácuo. E este Deus por quem sacrifiquei toda uma vida e a melhor parte da vida, não existe! Foi tudo inútil. Dilacerei-me. Dei-me a mim próprio em espetáculo. Assisti a esta tortura, e tu não existias! Vivi fora de mim mesmo e de repente tive de me aceitar a mim mesmo. Toda a minha vida foi inútil! tudo o que fiz foi inútil! Foi grotesco e inútil!

Sacrifiquei tudo a quê? Sacrifiquei o melhor da minha vida ao vácuo. Ofereci-lhe em espetáculo a minha dor. Mas então que existe? Qual a diretriz da minha vida? Qual a ilusão com que hei-de encher isto? E para que hei-de viver? Qual o sonho imenso capaz de substituir este sonho? Que é Deus agora? Deus é tudo e nada. É uma força. Deus é uma lei inexorável. Mas então tu que podes tudo — tu não podes nada. És uma lei — e hás-de cumprir essa lei. És um destino e não podes dar um passo fora desse destino. Não vês, não ouves, não sentes. Eu sou uma insignificância, e valho mais do que tu. Porque eu grito, eu sofro, eu atrevo-me. Amanhã quebro o meu destino. Tenho uma consciência. Sou ilógico e absurdo. Debato-me. E tu, Deus, não passas duma força cega e estúpida. Não me serves de nada.

Preciso dum Deus que me atenda, que me escute, que saiba que sofro e que me veja sofrer. Preciso dum Deus que me salve ou que me condene. Preciso dum Deus que me ampare. Preciso duma inteligência superior à minha e em comunicação com a minha.

Um Deus-força, um Deus que não se comove com os meus gritos nem com as minhas suplicas, não me interessa. Um Deus que caminha para um fim que não atinjo, é um Deus absurdo. De que me serve este Deus? Não ouve os gritos — destrói; não sente a dor — destrói. Destrói e caminha. É inalterável. Ilude-nos. Deixa-nos um segundo diante deste espetáculo, para nos mergulhar no nada. A nossa aspiração não cabe aqui: entrevemos, sonhamos, e, a meio do caminho, talvez no início de sonho maior, destrói-nos. Pior: tem uma necessidade de sofrimento cada vez maior, de sofrimento inocente ou culpado. Revê-se na dor. Deus é cego.

Debalde grito — não há quem me ouça. Debalde sofro — ninguém o detém. Tanto faz viver como morrer. Deus, tu és monstruoso! Destróis — caminhas. Destróis e não sentes. Vens do infinito, e atrás de ti fica um infinito de dores, uma massa de gritos e de seres espezinhados. Segues e destróis. Constróis não sei o quê de portentoso com que não posso arcar. Dessa pata monstruosa escorre sempre ternura. Não é indiferente que calques e recalques. Quanto mais espezinhas, mais gritos, mais ternura nas árvores, mais estrelas nos céus. Parece que a dor é inseparável da ternura, como a morte é inseparável da vida. — Até aqui eu tinha uma tábua a que deitar a mão. Até agora tinha um nome — agora não sei como me chamo. Agora tenho medo de mim mesmo, agora sinto-me isolado neste caos infinito, neste repelão desabalado, que me leva sem sentido e sem fim. Eu e a noite — eu e o doido! Até agora supunha-me tudo, eu e Deus, eu e a mão enorme que me conduzia e amparava. — Sofras ou não sofras, vais para a mesma cova, para o mesmo nada, para o mesmo silêncio. Antes o inferno! antes o inferno! Tu que foste desgraçado, ou tu que foste feliz, tu que te descarnaste até à medula e tu que passaste indiferente pela desgraça — vais para a mesma cova profunda, inútil, absurda e muda. Antes o inferno, antes a dor pelos séculos dos séculos a vir, do que a mudez e o horrível silêncio atroz! — Tudo foi indiferente tudo é indiferente ao monstro que passa e esmaga, que não ouve e esmaga, que não vê e esmaga. Indiferentes os teus gritos e as tuas suplicas; indiferentes a tua renúncia, a tua dor, as tuas lágrimas. Foi indiferente que fosses bom ou mau, que tentasses subir ao topo do calvário. Não existe na realidade nem vida nem morte — não há na realidade senão quimera e dor — não há na realidade senão este monstro que passa e esmaga, que caminha e esmaga.

Deus é cego! Deus é cego!

Enquanto te importaste comigo no mundo, foste o meu único pensamento e só tu me importavas no mundo. Agora não posso, agora não dou contigo. Agora não te encontro. Agora sou mais pequeno, e maior. Agora meto-me medo. Que voz pode ecoar e sobressaltar esta solidão infinita, este mundo infinito, onde os gritos se não ouvem a cem passos, e tudo que chamamos amargura, dor, grandeza, se apaga logo e se reduz a zero? O meu dever já não é o mesmo dever, a minha consciência já não é a mesma consciência. Só os meus instintos se conservam de pé.

Acuso-te de teres comprometido a minha situação no universo. Acuso-te de não me deixares ser infame. Acuso-te de me dares o remorso. Acuso-te de impedires o instinto. Acuso-te de teres transformado a vida e criado a consciência. Acuso-te de me deixares sozinho com este peso em cima, com a ideia da vida e com a ideia da morte. Acuso-te de me levares para um calvário como o teu, para me tornares grotesco, e de me colocares em frente de ideias com que não posso arcar. Acuso-te de não poder mais, e de me instigares a mais ainda. De me obrigares a olhar cara a cara o assombro que não existe; a morte que não existe; a consciência que não existe. Subverteste o mundo. Forçaste-me a criar outro mundo, a olhar para cima e a clamar no vácuo. Acuso-te de não me deixares atascar à minha vontade em lodo, de não me deixares mentir, matar, chafurdar. Acuso-te de me impelires para cima, quando a minha vontade era ir para o fundo. Acuso-te de não me deixares ser bicho.

Estou pronto para tudo. Desde que não há Deus tudo são palavras. Desde que não há outra vida, só há esta vida. Só há este minuto, esta hora presente. Sinto-me capaz de tudo. Estive anos a rezar a uma cômoda, a falar a uma cômoda, a sofrer diante de uma cômoda. Fui grotesco! fui grotesco e tu não vias! fui grotesco e tu não ouvias! fui grotesco e tu não existias!

Doe-me tudo, doe-me principalmente sentir-me grotesco! sentir que perdi a vida e sou grotesco! sentir que me detive e fiquei descarnado, impotente e grotesco!

Por uma palavra fui absurdo. Por uma palavra tenho atrás de mim uma arquitetura desconforme e destroços que enchem o mundo — por uma palavra e mais nada. Tu não existias!

Mas então — pergunta esta voz colérica — todo o esforço é inútil? todo o sacrifício é inútil? Criaste estas ideias falsas de dor, de renúncia — e não existes! Um santo viveu sobre uma coluna: «Desde que se punha o sol até que amanhecia o dia seguinte, estava de pé na coluna com as mãos levantadas ao céu». Oitenta anos de grotesco. Outro amaldiçoou-te: «Ai de ti cidade sensual onde os demônios fizeram sua habitação!» — Grotesco! grotesco! grotesco! Tu não existias! Que se levantem todos do sepulcro, uns atrás dos outros, que se erga o pó e te grite: — Tu não existias! Chamaram-te. Imploraram-te. Carregaram com a tua cruz. Andaram de rastros, reduziram-se a osso e a lepra. Foram indiferentes ao sofrimento e ao sarcasmo. Renunciaram à vida, deram-te o espetáculo da sua dor, a ti que não existias! Das profundas do mundo vem sempre a mesma ânsia, das profundas da dor ergue-se sempre o mesmo grito. Isto tem alicerces como nunca se cavaram alicerces. Cimentaram-nos os vivos e os mortos. E por mais esforços que empregue — tu na realidade não existes. Há outra coisa pior que está viva, outra coisa monstruosa que avança dentro de nós e direita a nós e que ninguém pode deter. Tu não existes e eu tenho de caminhar por força, não sei para que estúpido destino. Tu não existes e obrigas-me a avançar para um fim grotesco — desmedido e grotesco — que não compreendo nem abranjo. Tu não existes — e estou nas tuas mãos. Tu não existes e neste mundo absurdo, onde não encontro quem me condene e quem me salve, há ainda quem me empurre, quem me arraste e me faça sofrer, uma força cega que trago comigo, que me rodeia e me não larga! — Tens de existir por força. Tens de existir pelo que sofremos e pelo que criamos. És a única luz nesta escuridão cerrada, a única razão como verdade ou como mentira. Existe aquilo que eu quero que exista, é verdade aquilo que eu quero que seja verdade, aquilo que eu e os meus mortos transformamos em verdade. A fé é maior que todas as forças desabaladas, mais viva que todas as vidas. Compreendo a inutilidade de todos os esforços e faço pela mentira, o esforço que fazia pela verdade. Tenho de te manter à custa de desespero.

Se não existes é forçoso que exista um ditador moral, que extirpe sem piedade o pecado da terra. Que não ouça os gritos e condene, que realize o pensamento de Saint-Just e obrigue os ricos a trabalhar nas estradas, e cujo poder ignorado e oculto submeta a humanidade a uma lei de ferro, e a salve pela mentira, já que a não pôde salvar pela verdade. Cinja-me a mesma cadeia, durma no mesmo tabuado, e empregue o mesmo esforço, por um sentimento de desespero contra ti que me iludiste. Por mim próprio, para fugir de mim e de ti que não existes! Resisto, teimo. Só vejo treva e teimo. Levo-me todos os dias ao mesmo espetáculo. Rasgo-me com gritos. Ó desgraçado, aquilo em que tu crês é mais negro que o negrume!

A mesma força cega nos impele. Queira ou não queira sou levado para um fim que não compreendo... Caí nas suas mãos! Outra coisa me envolve a que não sei o nome, outra coisa que espera de mim uma ação que ignoro, outra coisa a quem eu me quero manifestar e que talvez se queira manifestar, sem nos chegarmos a entender. Rodeia-me. Sinto-a. Há ocasiões em que me toca. Ouço-lhe os passos. Debato-me. Constrange-me. Há momentos em que me iludo, para fingir que estou sozinho. Há momentos em que me escarnece. Sufoca-me: vou ouvir-lhe os gritos — tenho medo que me fale! Só ela vive no mundo, só ela anda à toa no mundo! Debalde apelo para mil manhas, debalde tento mil explicações. Estou nas suas mãos! estou nas suas mãos! Outra coisa inexplicável e imensa, temerosa e imensa, anda por trás de mim, dentro de mim, outro abismo maior, outra coisa que sua e me escalda até à medula. Procuro esquecer-me — ela aqui está ao pé de mim. Na vida e na morte estou nas suas mãos monstruosas. Sou a consciência — tu és o impulso. Sou a razão — e não sou nada. Luto até à morte, finjo até à morte, vou até ao fim dilacerado, escarnecido e iludido.

Estou nas tuas mãos! estou nas tuas mãos!

 

O DEVER

1 DE MARÇO

D. Leocádia o dever é um contrato. Um contrato com um ente superior ou um contrato com os outros. Há deveres para com Deus e deveres para com os homens. O contrato com Deus falhou, porque Deus não existe; o contrato com os homens não o cumpro, porque, se me sujeito a respeitar-lhe as cláusulas sozinho, espoliam-me. Restam os deveres para contigo, os deveres perante a tua própria consciência. Oh D. Leocádia, eis o fundamento da questão!... Tu tens passado a vida com uma personagem importante, que te julga, te aplaude ou te condena, e para ela, e só para ela, deste as tuas melhores representações. Para a enganares, enganaste-te, mentiste para lhe mentires. E reduzida a trapo, só desespero e orgulho, atiraste-te aos pés dessa avantesma que não existe, D. Leocádia — que afinal não existe! Como se consegue edificar uma vida sobre um broche com um sujeito de suíças e uma redoma de vidro com a imagem dum santo, e intercalar-lhe um drama baseado na ideia do dever, até ao ponto de se apoderar de ti até ao amago, é que eu não compreendo e admiro, ó sórdida antropopiteca com uma cuia de retrós! O dever era frio e amargo e tu cumpriste-o; o dever era coçado e hirto e tu cumpriste-o. Foi a razão da tua vida. Azedou-te e sustentou-te. Quando te vencias, vencias-te com orgulho. Deu realidade à tua existência efêmera. Foste ao mesmo tempo ator, tablado e público. Sem esse diálogo entre ti e ti, entre uma D. Leocádia de cuia de retrós e outra D. Leocádia de cuia de retrós, desesperado e pertinaz, articulado ou mudo, que te fez de fel e vinagre, a tua vida não tinha tido diretriz. Nas noites solitárias, em que não conseguias aquecer os pés com dois pares de coturnos, aqueceu-te. Diante do frio da pobreza teimaste: — Cumpri sempre o meu dever. — Diante da sórdida velhice, avançaste com autoridade: — Cumpri o meu dever. — E até diante da imagem pavorosa da morte, exclamaste sem receio: — Cumpri sempre o meu dever! — E só tu sabes o que é cumprir o dever dos deveres, o que é tirá-lo à boca para o meter na boca que se detesta, entre quatro paredes dum terceiro andar (29-3.º-D), desde o princípio da vida até ao isolamento da cova. Cumprir o dever minucioso e exigir o dever minucioso. Com ele dominaste-te e dominaste-a, gastaste-te e gastaste-a, esqueceste a vida e a ti própria te esqueceste. Com uma palavra e mais nada. Arreganha os dentes se queres ao teu próprio fantasma... Com uma palavra e mais nada. Subordinaste a tua vida ao dever, e o dever não existe: é um mundo de orgulho e de escrúpulos. Custa a entrar na cachimônia que a côdea que tiraste à boca para a manteres, o vestido que cortaste ao teu próprio vestido para a vestires, as noites de discussão interminável, tu e o dever — tudo fosse irrisório e inútil. Mas foi. O dever não existe, o mundo construído com alicerces por omnia século seculorum não existe D. Leocádia. Perdeste a vida e transtornaste a vida atrás duma sombra. Restam-te mil anos e um dia, para cumprires, se queres, o teu dever inútil, o teu dever atroz, para obedeceres a um fantasma absurdo, a quem dás o último leite dum peito exausto. Repara bem, atende bem... Chegou o momento em que vais aparecer diante do universo com as tuas ideias fundamentais e sem o teu vestido de lemiste, e, se te obstinas, mesmo no fundo da cova e com a boca cheia de pó, hás-de gritar de desespero, quando te compenetrares de que o dever postiço, o estúpido dever, fede que tresanda. Queiras ou não queiras chegou a ocasião de me rir de mim e de ti com dor e lágrimas, e de te expor tal qual és, nua e reles, nua e grotesca... Despe-te D. Leocádia!

Mas a figura verde não cede: traça o xale como quem se fecha com os sete selos do Apocalipse e exclama do alto do seu pedestal: — Eu sou de muito boa família!

(O pior foi dela, o pior foi desta figura seca e coçada, desagradável e seca, que eu conheço desde que me conheço, sempre a pregar contrariada o seu dever, sem um dia de descanso e na eterna duvida: — Cumpriria eu afinal o meu dever? — Vai para a cova farta de cumprir o seu dever e ignorando se na realidade cumpriu o seu dever nem para que serve cumpri-lo. Ninguém a pode aturar. Odeia o dever que cumpre, e cumpre-o sem desviar um passo como quem cumpre um destino. Até te digo mais: o que lhe custa a abandonar na hora extrema não é a tua, mas a sua companhia. Olha-o com desvanecimento. Faz-lhe falta. Mais falta do que Deus, essa avantesma de cuia de retrós com quem passou os melhores dias duma existência incerta. É talvez o seu verdadeiro Cristo, que continua, mesmo sem existência real, a reclamar que cumpra as cláusulas dum contrato já roto. Tem de cumprir o seu dever não acreditando no seu dever. A D. Leocádia é uma figura seca e coçada, enorme e seca, verde e grotesca, que desvia o olhar da vida, para cumprir, seja como for, o dever estúpido, o dever atroz. Tenho vontade de chorar)...

Foi buscá-la ao asilo e trouxe-a para casa, com o cabelo cortado como um recruta. Deitou-lhe a mão e fechou-se com ela por dentro. As paredes tomadas de frio salitroso, transiram de frio sepulcral. Quando se atreveu a rir, cortou-lhe logo o riso cerce — para não se tornar a rir, ao primeiro assomo de vontade, cortou-lhe logo a vontade rente — para não tornar a ter vontade; e, quando caiu de cama, postou-se dia e noite à sua cabeceira, hirta e solene como o dever. Um pobre não tem vontade, um pobre não tem orgulho. Nem pode tê-lo; veio ao mundo para cumprir o seu dever. Veio ao mundo para ser obediente. Pobres educam-se como pobres e ricos educam-se como ricos.

Só tu D. Leocádia te deste ao gozo superior de teres uma alma à tua descrição. E isto sem gritos, com um ou outro soluço logo represado, noite e dia, dia e noite, e um olhar de espanto, uma luz que se extingue até à impassibilidade, num terceiro andar de rua da Bitesga. Levou tempo a morrer essa ternura dorida, que teimou em vir à superfície, até que a D. Leocádia a conseguiu esmagar sob o calcanhar de ferro — para sempre, para todo o sempre. Por fim uma curvou a cabeça submissa, e a outra ergueu a cabeça triunfante. — Para a livrar da fome, para a subtrair à desgraça. Se não fosse eu ia parar a uma viela. Cumpri o meu dever. — Sim, e para a criar, para que não fosse parar a uma viela, o vestido que lhe durava uma eternidade, teve de lhe durar outra eternidade ainda; a côdea, que mal chegava para lhe matar a fome, repartiu-a com a órfã, guardando para si o bocado mais pequeno. Cumpriu o seu dever de ferro, o dever que pesa toneladas, e cumpriu-o sem desviar uma polegada da linha do dever. Obrigou-a a levantar-se de noite, mas levantou-se primeiro do que ela. Pobres querem-se como pobres, sempre na regra e no dever e sem levantarem a cabeça. Quando a órfã a olhou transida de dor e a D. Leocádia lhe bradou: — Cumpre sempre o teu dever! — já ela tinha cumprido o seu dever até final. Passaram-se anos ou séculos, morreram as aranhas de velhice no fundo dos saguões desabitados; nas paredes mestras de granito a camada de frio salitroso juntou-se camada de frio sepulcral, e a camada do frio sepulcral sobrepôs-se camada de frio desumano. E sempre tu cumpriste o teu dever e ela cumpriu o seu dever de hora a hora como um pendulo. Incutiste-lho tão fundo que aí a tens na tua frente, pálida e inerte, com um filho do teu filho na barriga...

Não te queixes D. Leocádia, porque afinal foste buscá-la ao asilo para te sentires maior no teu orgulho. A desgraça dos outros não comove, a desgraça alheia consola. Mas tinhas de cumprir o teu dever: ao majestoso edifício que arquitetavas, faltava-lhe ainda o remate. A côdea que tiraste à boca manteve-te melhor que se a comesses, e o vestido que lhe deste, agasalhou-te melhor que se o vestisses. Engrandeceste. Amargaste e doiraste. É verdade que também ressequiste. Espera, espera... Ressequiste, mas como o mundo é extraordinário, como a vida é prodiga e teimosa e irrompe até das pedras, extraíste não sei que ternura azeda do mais duro de todos os peitos — ó contraditória D. Leocádia, 29-3.º-D., que eu não chego a decifrar. Não podes com isto, não explicas isto, não aturas isto! Não compreendes. Nem eu. — Também eu D. Leocádia! Lé com cré. Também eu, se me liberto disto que não tem significação, não encontro nada que tenha significação. Chegamos ambos ao ponto e estamos ambos estarrecidos. Moeste-te e moeste-me por uma palavra apenas... Olha bem para ti! olha bem para dentro de ti! Moras na rua da Bitesga, entre duas ou três curiosidades seculares. Usas um vestido de lemiste, luvas de algodão no fio e um broche pendurado ao pescoço. Não sei por que bamburrio se te encasquetou no toutiço a ideia de Deus e do dever, e de que o infinito tem de dar importância ao teu problema, aos teus flatos e ao teu broche, onde um retrato de suíças não tira de mim os olhos de peixe... Não mastigues. Bem sei que só nós, tu e eu, eu e tu, com o teu vestido de lemiste, é que somos capazes de contrair noções, talvez errôneas mas profundas, do bem e do mal. Os outros bichos têm mais que fazer. Mas é por isso mesmo D. Leocádia que te caíram os dentes postiços e que começas, nesta nova situação, a compreender que o bem e o mal é tudo a mesma coisa. Talvez a gente não possa fazer o bem senão a si mesmo... — Mas então — e crispa a mão sobre o broche — talvez o bem seja uma monstruosidade, talvez todos tenhamos de destruir. O mal é que eu sinto. Para o mal é que eu fui criada! — E sua de aflição toda a tinta que lá tem dentro, quando outra D. Leocádia irrompe da carcaça da D. Leocádia: — Pergunto-te se o que tu não consegues é prolongar o mal. Pergunto-te se esse orgulho humano, se esse orgulho sobre-humano, não é um mal maior, e essa piedade que sentes não é por ti que a sentes. — E eu, e eu pergunto-te se a minha verdade falsa não me serviu melhor que a tua verdade amarga. — Pergunto-te a ti — e sacode-a — se não é isto que eu sinto cá de dentro, do fundo dos fundos. Pergunto-te de que te serve a mentira com que coabitavas. Nunca conseguiste bem nenhum, nunca cumpriste o teu dever. Logo que te pus a ti e a ela na mesma situação de igualdade já não pudeste cumprir o teu dever.

D. Leocádia, quem recebe o bem fica sempre humilhado. O bem constrange. O que tu chamas a piedade, e o bem põe quem o recebe na situação de te morder as mãos. E continuar a fazer o bem é elevar-te pelo bem que fazes e rebaixar-me pelo bem que recebo. Acabas por gastar o que em mim há de melhor. Oh D. Leocádia, se eu pudesse — eu é que te fazia o bem, para tu veres o que é o bem recebido, o bem agradecido e o bem amargurado. Antes tu me fizesses mal, D. Leocádia, porque o mal põe-me ao teu nível, e o bem acostuma o desgraçado a ser mais desgraçado ainda. Degrada-o. Põe-no na tua dependência e na dependência da desgraça. Cria uma superioridade, a tua, e um azedume, o meu. Classifica para todo o sempre. Estou perdido se não reajo em ódio. — Mas então... — e a D. Leocádia atira-se com desespero à outra D. Leocádia, e interrompe-a, primeiro com mudez, depois com gritos: — Ia parar a uma viela! — Avança e repete mais alto: — Ir parar a uma viela é o que há de pior no mundo! — E a outra torna com escárnio e diz-lhe ao ouvido não sei que segredo temeroso — e a D. Leocádia torce-se com pavor mas sustenta: — É o que há de pior no mundo! é o que há de pior no mundo! — E com dor, com angústia, com desespero, pergunta a si própria (a outra teima e não a larga): — É o que há de pior no mundo!? — Eu não sei se é o que há de pior no mundo, não sei se reduzir uma criatura, a trapo é o que há de pior no mundo. A tua piedade amesquinha-me. O que eu reclamo é o meu lugar na vida e o meu quinhão de desgraça. Não mo tires! Mas ela é de aço. Não transige e protesta:

 — Matei-lhe a fome.

 — Mataste-lhe a fome mas não pudeste amá-la.

 — Nem posso! nem posso! nem posso!

E encara-se mais atônita e mais verde, mais resoluta e mais verde, sem desviar o olhar.

 

A VELHA E OS LADRÕES

3 DE MARÇO

Sombras. Três cabeças monstruosas projetadas num muro, que se aproximam e afastam depois de confundidas. A velha a um canto agacha-se aos pés da filha. E ao lado as três sombras fundem-se numa única sombra disforme. Duas, três horas talvez... A sombra da velha reduz-se a nada, a menos que nada, à sombra da dor. Por fim erguem-se, mergulham e dissolvem-se na caligem da noite, as três sombras dos ladrões e as sombras das mulheres, a quem não distingo as feições... Eu já vi isto algures, em outro mundo onde me custa a entrar. Metem-me medo. E não é só medo, é dor. Vivi com estas sombras num pesadelo, de que saí atônito e exausto, num sonho em que tudo isto fazia parte integrante da minha própria alma, e que sonhei lavado em lágrimas. As três grandes sombras levam, não sei para que destino, as outras enrodilhadas. Duas, três horas da madrugada talvez... Caminham sem se lhes ouvir os passos à beira do rio que corre para o mar desde o princípio do mundo.

E o silêncio é cada vez maior. Só a água fala nos buracos puídos das pedras, em diálogos que nunca cessam, num coro de vozes ininterruptas e indistintas — ameaças, suplicas e gemidos. A Joana cala-se: só se lhe ouve um anh... anh... de cansaço, como se arrastasse na escuridão uma cruz do tamanho da escuridão. A seu lado o coro inútil da água corre sempre para o mar, com gritos, risos, vaias e apupos.

Uma voz, a do velho ladrão compadecido, diz-lhe baixinho:

 — A tua filha... Se teimas levantas a desgraça a teus pés.

E lá deslizam no escuro, e o rio sempre a correr e a pregar o mesmo presságio de dor no chape que chape onde se percebem ecos de todas as desgraças que sucederam no mundo, levando para o mar todas as lágrimas que se choraram no mundo.

Outra voz no escuro:

 — Ou tens de sofrer mil mortes na tua filha, ou tens de me fazer a entrega. Agora escolhe. Uma ou outra. Agora ouve: ela é nada nestas mãos. — E pergunta-lhe: — Tu és ou não uma coisa que me pertence? Posso matar-te? — Podes — E essa voz rouca, essa voz implacável torna: — E ou... Tu ouves velha? A mim ninguém me engana... Tu riste? (Ella faz anh... anh... — cansaço ou dor) — Aqui tens... Ouve mais... Tu ouves ou finges? Tu que dizes? A velha é rica também te cabe uma codea. Ninguém te pede mais nada. Eu cá é que executo.

E lança a dois metros um jacto de saliva.

A Joana recua: avançam logo e não a largam as sombras que a envolvem.

 — Tu hás-de abrir-nos por força a porta!

 — Estafermo! estafermo!

 — Tu abres-nos a porta. à velha deito-lhe a mão ao gasganete e não dá pio. Aperto no escuro — eeeh... — e sinto no escuro um estremeção e mais nada...

 — Jesus!...

 — Ó pandorga! És um trapo! és pior que um trapo!...

 — Deixem a velhota sozinha comigo, que nós dois entendemo-nos — intervém o ladrão mais velho. E leva-a suspensa pelo braço como quem leva uma pluma.

Cobre-os o céu profundo, onde palpita uma vida intensa. Arqueia-se sobre a velha e o ladrão de lez a lez a abobada recurva. Ao longe seguem-nos sempre as outras sombras temerosas.

 — Estupida! estúpida! Passaste a vida a servi-los. Aproveitaram-te e deitam-te fora. Só te deram restos e enchiam-se até aos gorgomilos. E tu apegaste e tu defendê-los!... Ouve tu abres-nos devagarinho a porta...

 — Jesus Cristo veio ao mundo para nos salvar!...

 — Isso! Até me metes nojo! Isso! Até me fazes rir! Só tu, calhordas, eras capaz de me fazer rir nesta hora aziaga. Pilhasse-te eu no meu tempo!... — E aperta-lhe o braço contra o peito, leva no ar aquele molho de ossos e ri-se com escárnio. — Tu lavas, tu esfregas, tu comes os restos, tu até cheiras mal! Tu metes nojo. E hesitas... Que se te pede? Que nos abras a porta e mais nada. Só há uma ocasião na vida, toca a aproveitá-la.... Se nos abres a porta, ficamos ricos. — Abraça-a. Vomita uma risada. Pior que matá-la, enlameia-a. Aquilo vem do fundo da terra, vem do boqueirão da noite e traz escárnio pegado. Sobre isto chove: parece que toda a lama fétida da rua subiu ao céu para tornar a cair. A Joana geme. Uma risada e um gemido que se amalgamam, gemido que se extingue para depois subir mais alto, para se confundir com a risada, sempre o mesmo gemido, sempre a mesma risada. E a noite é pó de desgraça, cada vez mais moído e mais negro.

 — Não te cabe nesse caco que ninguém tem pena de ti. Escuta o que te digo. Rouba-a, estúpida! rouba-a! Na cadeia também se come pão. Ao menos lá enches essa barriga. Abres-nos devagarinho a porta...

 — O que havia de dizer a minha senhora!

 — Ninguém no sabe. E ouve: se não nos abres a porta, a tua filha nunca mais a vês.

O silêncio e a noite com outras noites em cima, as sombras que caminham, e aquela sombra humilde cada vez mais pequena, reduzida à sombra da sombra e do escárnio. E teima, e teima contra a desgraça, contra as injurias e as vozes do rio. Há milhares de anos que o dialogo nas pedras dura, sempre nas mesmas ameaças, que vem do fundo da água e a Joana não ouve. Devagar palpa a algibeira e tira do bolso e entranha na pele um pedaço de ferro gasto e puído.

Outra voz na noite:

 — Mãe!

A vida dessa mão de rachar lenha, dessa mão de árvore e dor! Como ela se contrai, enquanto a Joana caminha absorta. Talvez uma hesitação instantânea, e depois, sem que ninguém repare, a mão abre-se e deixa cair a chave nas profundas da água, que continua a correr e a pregar, a correr e a falar às pedras e às estrelas nas mesmas palavras inúteis, ao lado da vida sem destino.

Chegam enfim à muralha do prédio, e outra vez as sombras se juntam numa única sombra, outra vez se ouve aquela voz sair da noite:

 — Mãe, olhe p'ra mim! olhe bem p'ra mim!

E a velha sente na cara três bafos monstruosos, ao mesmo tempo que as vozes roucas reclamam:

 — A porta... Depressa! depressa!

 — A chave perdi-a.

Um repelão e um grito, um grito que se afasta e sai da noite, cada vez mais longe e cada vez mais alto...

Sobre este ser humilde encarniça-se mais o sonho. Lá vai a mulher da esfrega empurrando o farrapo monstruoso que se agita na noite. A sombra e a mulher da esfrega, o espanto e a mulher da esfrega, o sonho doirado de grandes asas esfarrapadas no negrume e as mãos encortiçadas de lavar a louça, a vida frenética e a vida humilde. Uma boca enorme dum lado, a voz da Joana do outro, sentimentos caóticos impossíveis de traduzir em palavras, o que exprime a natureza impulsiva, o que responde uma criatura agarrada à ideia do sacrifício. — Anda para diante. — Estupida! estúpida! — A bondade entranhou-se-lhe até ao amago. Tudo está nos seus lugares: as coisas simples e as coisas eternas, e há outra coisa que ela não sabe exprimir, que a alma desta mulher não abrange: a intrusão do sonho na sua vida humilde. Bronco e sonho. Até agora só com a desgraça arca, agora o doirado tinge-a. Sacode-se como um cão molhado. Debalde tenta desfazer-se do sonho imenso que se lhe pega: irrompe em palavras baixinhas, hesitantes, que voltam atrás. Uma pausa e o monologo recomeça logo. Há não sei que de monstruoso no mundo, que bebe todas as lágrimas e leva todos os gritos. E não se farta. Há não sei quê que reclama dor. Toda a noite se desespera. A desgraça sua, a desgraça trôpega e ridícula. A desgraça enche a noite de esgares. Depois o sonho desgrenha-se. Depois sacode-a uma rajada, e lá torna, sem uma palavra, sem um grito, a grande sombra que se envolve em si mesmo e a si mesmo se estorcega. A desgraça sua de aflição sem poder exprimir-se. E quando a dor se concentra, quando a dor se torce como quem torce um farrapo e a velha não pode — a velha irrompe numa toada estúpida. Mais doirado, mais fundo...

Caminha e depara com a D. Restituta, que atravessou a vida com o guarda-chuva incólume e que faz gestos desordenados no escuro:

 — Acuso! acuso! acuso!

 — Senhora D. Restituta...

A senhora D. Restituta está cheia de lama. Tem a pena do quico partida: é uma figura feita com três traços de tinta e algumas manchas de desespero. O sonho doira-a, esfarrapa-a também. A pena em frangalhos agita-se como um pendão de revolta, esgarçado e chamuscado. Todas as vontades a compeliram e a esmagaram — quer retomar a forma primitiva. Dir-se-ia que cresce na noite, e que a sua boca é uma bocarra cada vez maior, para pregar, para açular, para vomitar injurias. Somente não emite outro som senão este: — Acuso! — a velha gasta, a velha inútil, a D. Restituta da Piedade Sardinha.

 — Senhora D. Restituta...

A outra não vê, não ouve, não mexe.

 — Minha senhora...

— Acuso!

 — ...para o que se vive neste mundo não paga a pena ruindades.

Debalde a Joana lhe fala. Resta diante do sonho com a mandíbula despegada e o velho guarda-chuva que conserva intacto desde a primeira virgindade — teve duas — metido debaixo do braço. Nem uma nem outra entendem aquilo. Uma empurra, afasta de si o sonho com as mãos de lavar a loiça, a outra com as mãos pacientes, as mãos diáfanas da mentira. Tem feito sempre todas as vontades, e se a figura um momento se engrandece, amarfanha-se logo, como um trapo suspenso que se deixa cair ao chão.

 — Acuso! acuso! acuso! De repelão — mete para dentro! uma vergonha mete p'r'o saco! desprezo, escrúpulo, fome — mete tudo p'r'o saco! Para um saco sem fundo. Passei tudo, passei mortes para o poder criar e nunca pude dizer que tinha um filho. Para o criar, para o poder criar nunca pude ver o meu filho. Meti tudo p'r'o saco, sem poder abrir bico, senão matavam-me à fome... E nunca pude ver o meu filho, senão matavam-me à fome. Criei-o longe para o poder criar, criei-o como pude, de vergonha, de restos, de codeas, de dizer a tudo que sim. E este filho! este filho que nunca pude ver, vi-o agora! Este filho que criei de mentira, este filho que criei de abjecção, sem nunca o poder ver, vi-o agora! Este filho que tinha sonhado às escondidas, com a boca tapada para não gritar: Tenho um filho, também tenho um filho! — vi-o! vi-o! vi-o! Meti tudo p'r'o saco! meti o diabo no saco! Só a noite me ficava livre para sonhar com ele, para o ver rico, para o ver como os filhos das outras... Aqui está a Restituta que é idiota, aqui está a Restituta que é um poço sem fundo. Diante dela pode dizer-se tudo, a Restituta serve para tudo, a Restituta mete tudo para o saco. Cala-se que é o que lhe vale — mete a viola no saco. Só a Restituta sabe o que se passa, o que está no prego e o que está no fundo das almas. Calei tudo, disse a tudo que sim para o poder criar. Mete p'r'o saco! mete tudo p'r'o saco! mete a viola no saco! — E num crescendo de desespero: — Acuso! acuso! acuso!

Debate-se a Joana numa cogitação a que não suporta o peso. É como se pela primeira vez desse com a vida e quisesse atalhar a vida. Tudo para ela mudou de expressão: a desgraça muda de expressão, a filha muda de expressão. E o sonho envolve-a, deforma-a, besunta-a. Sente-se-lhe o ranger dos gorgomilos.

A dor descarna-a e redu-la às linhas principais, à seca realidade. Um ulular de tempestade, e tudo quieto. Nunca o côncavo se concentrou em mais serenidade. Gritos, um desabar monstruoso, e este ser abjeto, que, como uma coisa que andou a rasto por todos os sítios suspeitos, não tem forma nem cor: tem cheiro, e dois olhos de tanto pasmo que fazem aflição. Desapareceu tudo: ficou a velha, ficou a desgraça aos tropeções pela vida fora.

É como se tivessem metido a dor dentro de um saco e dessem com ele pelas paredes.

Aqui está a mulher da esfrega e a desgraça que tem os seus direitos e não os perde nem transige. Não a larga também o sonho. Agora é que ela destinge todo o doirado e toda a água de lavar a louça. Agora é que ela ouve uma boca enorme falar no escuro, e queda-se atônita e confusa feita trapo e horror.

 — Para que é que vocemecê me criou?

Um soluço, um ranger da árvore que se deita abaixo, um estalido de cruz que não suporta o peso.

 — Antes vocemecê me tivesse esganado ao parir. O que eu tenho chorado!

 — Anh!...

 — Olhe p'ra mim! olhe p'ra mim!

É um ser diferente, um ser aparte, que a Joana vê pela primeira vez. Como pôde criá-lo aos seus peitos? Criar vida é criar um grito que não se extingue? que nunca mais se cala? Sempre o mesmo grito: — Para o que tu me criaste! para o que tu me criaste! — Juntem a isto o escárnio e todas as vozes que lhe pregam: — Estupida! estúpida! Toda a gente se ri de ti! — Andou nas mãos dos ladrões. — Rouba! rouba!... — E sente ainda nas mãos um pedaço de ferro gasto e puído como o aço, que entranha na pele. Um gemido luta com uma risada e tenta subir mais alto, cada vez mais alto... Juntem a isto que a Joana quer ser má e não pode, e misturem a isto humildade. Aqueceu a vida a bafo. Incutiram-lhe para sempre a subordinação, só lá tem dentro ternura. Faz o gesto de quem tenta abrir uma porta; quer levantar a cabeça, mas tanto tem obedecido que curva logo a cabeça. Ridículo sobre ridículo.

Agora vejo a figura, vejo-a agora completa. Pouco e pouco tomou relevo, tornou-se humana. Sumiu-se a velha tonta, caldeou-a a desgraça. à força de gritos represados obsidia-me. Engrandece-a a mentira e a dor. E aquilo persegue-a, encarniça-se sobre a velha trôpega, num espetáculo ao mesmo tempo desmedido e reles. A velha dum lado, do outro a grande sombra trágica que subverteu o mundo; o escantilhão sôfrego, e o gesto que a mulher da esfrega faz para o afastar de si. Ao mesmo tempo a alma dorida, a ternura que a não larga, e o contato feroz que não explica e a que sente o peso. — Para o que tu me criaste! para o que tu me criaste! — Atormenta-a, sufoca-a, e como não pode mais, como não compreende — não consegue — e como aquilo se encarniça, a Joana mostra-lhe as mãos enormes, as mãos roídas, as mãos só dor...

Tem as mãos como cepos.

 

DIÁLOGO DOS MORTOS

12 DE MARÇO

Há em mim várias figuras. Quando uma fala a outra está calada. Era suportável. Mas agora não: agora põem-se a falar ao mesmo tempo.

Sentiste-o avançar, pouco e pouco, no silêncio? Sentiste o teu pensamento disforme avançar mais um passo no silêncio? É porventura possível que o que se passa no mais recôndito do teu ser, alguém o pressinta e o ouça avançar no silêncio?

Perpétuo combate a que bem quero pôr termo e que só tem um termo — a cova. Eu e o outro — eu e o outro... E o outro arrasta-me, leva-me, aturde-me. Perpétuo debate a que não consigo fugir, e de que saímos ambos esfarrapados, à espera que recomece — agora, logo, daqui a bocado — porque só essa luta me interessa até ao amago... Estou pronto!

Todos nós pelo pensamento somos capazes de hecatombes. Detinha-nos a vida artificial, uma arquitetura mais temerosa que todas as catedrais do globo postas umas em cima das outras.

 Se me esqueço o meu pensamento disforme deita-se logo a caminho...

Vejo-o caminhar e não o posso deter. Por mais esforços que faça não o posso deter. É como se eu criasse figuras, que se pusessem logo a caminho. Todos os fantasmas se dissolviam à luz da madrugada. Agora estas figuras têm de cumprir um destino. E pergunto a mim mesmo baixinho se na verdade eu não desejo que avancem um passo — e outro passo ainda...

Tinha medo de aparecer no outro mundo deformado e grotesco, e agora tanto faz entrar na morte repulsivo, como transfigurado e só dor.

Olhava este momento que ia desaparecer, com saudade — porque nunca mais se repetiria no mundo. Nunca mais outro segundo igual nem na luz, nem vibração, nem na ternura... O momento em que me sorriste, balouçado entre o nada e o nada, nunca mais se tornaria a repetir, idêntico e completo, em todos os séculos a vir! Estava ali a morte — está aqui a vida. Agora pergunto a mim mesmo se te deixo morrer; e a pergunta obsidia-me e exige resposta imediata. Sei tudo, tudo o que me podes dizer — já eu o disse a mim próprio. Até hoje falava a alguma coisa que me ouvia, hoje só interrogo a mudez, a mim mesmo me interrogo.

Tu lutas contra esta figura que dentro de ti te impele; — tu queres fugir de ti próprio, queres separar-te de ti mesmo, e não podes. Só consegues, à custa de esforços desesperados, manteres-te dentro da formula ou da máscara que escolheste, e arredar o crime e a loucura, e fingir e sorrir; tu pudeste iludir o fantasma, seguindo pelo caminho trilhado. Iludiste os outros e a ti próprio te iludiste. Agora não. Agora sentes-te capaz de tudo. As grandes sombras que te entravaram a vida, ei-las reduzidas a dois punhados de cinza. Valia a pena a luta? O homem é sempre a mesma lama, os mesmos despeitos e os mesmos rancores, com resquícios de oiro à mistura. O que pode fazer é dominá-los. Mas sai sempre da luta esfarrapado e perguntando a si mesmo baixinho: — Valeu a pena? valeu a pena? — Depois que se venceu que lhe resta? Ele e o vácuo, ele e a saudade da lama que fazia parte integrante do seu ser. Ficou diminuído. A escuma também tem os seus direitos.

Há entre as figuras que compõem o meu ser, duas encarniçadas uma contra a outra. Há uma que crê, outra que não crê. Há uma capaz de todas as cobardias, outra capaz de todas as audácias. Há uma pronta para todos os rasgos e outra que a observa e comenta.

Mas há entre as figuras que compõem o meu ser, uma que está calada. É a pior. Olha para mim e basta olhar para mim para que eu estremeça. — Por muito que me acuses, já eu me tenho acusado muito mais!

Olhas-me e eu estremeço. A sofreguidão dos teus olhos, a sofreguidão verde dos teus olhos, que me reclamam como um abismo de dor e de espanto onde encontro enfim a vida!

Se te quisesse descrever, não te podia descrever. Sei que me pertences e que te pertenço.

 Talvez as almas fossem mal conduzidas, talvez já adivinhássemos o universo e depois o esquecêssemos. Creio que se não complicássemos a vida e a dirigíssemos noutro sentido, pressentiríamos tudo e resolveríamos tudo. Há em todas as existências alguns segundos em que sentimos o contato do mistério — de que nos separam logo léguas de impenetrabilidade.

Alguma coisa porem se interessa pela minha dor. Todas as noites grito, todas as noites sufoco os gritos. Todas as noites me debato com o mesmo problema e a mesma angústia. E há uma coisa que assiste a este espetáculo e se interessa, que cada vez me mergulha mais fundo para que eu me despedace — e se interessa...

15 DE MARÇO

Com que saudades me aparto da mentira! Dos nadas, das pequenas coisas que dão sabor à vida. Já reparaste que são as pequenas coisas da vida que nos fazem chegar as melhores lágrimas aos olhos? Na natureza os últimos dias do outono que se despedem de nós com saudade, o oiro úmido, o último sol nas folhas molhadas; as noites cheias de estrelas, em que se adivinham outras estrelas ainda; a ternura que não tem existência real, a sensação que passou por nós num segundo, sem deixar vestígios; e as horas que criamos, esquecidos e penetrados um do outro, ao pé do lume, já sumidas também na voragem. Nada — tudo. A tua expressão em certos momentos, em que uma figura transparece sob outra figura, como se me fosse dado contemplar, num rápido instante, a tua alma límpida — todos os sentimentos que geramos de ilusão, de sonho e de tristeza. Tudo e nada.

Agora a vida é amarga. Acabou a saudade e este sabor amargo é o sabor da vida nova que começa.

Até hoje bastava uma palavra tua para me prender, ou a ternura que os teus olhos exprimiam. Um fio detinha o meu horrível pensamento. Tu sorrias... Um sorriso e mais nada, ternura e mais nada. Uma forma transitória, sonho e mais nada.

Das estrelas a luz fosforescente envolvia o mundo. A noite tinha é certo negrumes profundos e espaços tão negros, que neles só morava o vácuo, mas no silêncio a vida das estrelas estava mais perto do meu coração. A impressão que me sufoca diante da eternidade sem limites e da duração da vida astral, misturava-se a ternura de teus olhos, que me faziam ascender do subterrâneo para a luz, que me ensinavam a soletrar o abcd, o céu, que antes de mim, na vida efêmera, outros tentaram decifrar, levando-o impresso na alma para o tumulo.

Ilusória irrisão. Tudo isto não existe, ou só existe como agitação e desespero frenético. Tudo isto desaba há milhares de anos numa queda infinita, num grito que nunca cessa nem ecoa. Que desapareças amanhã e as mesmas estrelas indiferentes luzirão no céu, o mesmo ímpeto de vida galopará no espaço. Só os teus olhos não procurarão os meus cheios de sofreguidão e espanto... Arredo a tua figura, a figura pálida que teima em me acompanhar sem palavra, a figura transida e pálida de que desvio o olhar. Encontrei-te noutra luz, noutra vida, noutro mundo talvez, e os teus olhos tristes enchem-me de inquietação e terror. Tu não existes! tu não existes! Escusas de soluçar. Não te tolero. Não sei quem és e conheço-te. Tens vivido na minha companhia, e és uma forma transitória e mais nada, um sorriso de ternura e mais nada.

Espera... Quantas vezes me tens confessado, sufocada de lágrimas, que te vem, não sabes donde, uma vontade do fugir pelo mundo fora para onde ninguém te conheça, deixando tudo, e abandonando tudo — fugindo a ti própria?... Para isso bastou aquela folha doirada, que o primeiro arrepio de vento leva sem destino. É essa mesma sensação que todos experimentamos a certas horas em que o universo se nos afigura monstruoso e inútil, com uma única certeza — a de caminharmos todos, através da incoerência, para a morte. Felizmente essa impressão dura um segundo. Num segundo todos ouvimos os passos da morte.

20 DE MARÇO

Agora não contenho a multidão que constitui a minha alma. Nunca estou só e ouço-os que clamam cada vez mais alto. Sinto fantasmas até à raiz da vida. Minha alma é um tablado onde todos os mortos se digladiam. Ouço-os! ouço-os! são impulsos, são seres que atuam e falam como se eu não existisse. Nesses momentos sou apenas um espectador que os vejo a caminho sem me poder defender. Ouço-os! ouço-os!

Se Deus não existe e a outra vida não existe — se disponho só desta vida, os deveres que tenho a cumprir são apenas os do instinto. Só tenho deveres enquanto não me pesam. Não te deixes iludir.

Era sempre com secreta irritação que eu fazia o bem. O bem contraria. Fugi sempre a este problema... Era sempre num impulso de paixão — e com todo o meu ser, que eu fazia o mal... O sacrifício, a piedade, a bondade só têm lugar no mundo como culturas artificiais.

Repete isto: a bondade é um sentimento falso e o mais artificial de todos os sentimentos.

Ah, a ironia... Há de te servir agora de muito a ironia!

O dever acabou, o estúpido dever, o dever que me dominava, a vida com um peso de chumbo, o dever de fazer todos os dias as mesmas coisas inúteis. Respiro.

Sim, a amizade... Falemos aqui baixinho um com o outro. Essa amizade era o meu interesse ou o teu interesse. Dominavas-me ou dominava-te. Passei anos sob esse jugo, e agora descubro com alegria que te detesto. Detestei-te sempre.

Odeio-te porque vales mais do que eu; odeio-te porque podes mais do que eu.

Assistir à ruina dos nossos amigos é talvez melhor do que assistir à ruina dos nossos inimigos.

Eu sou a única consciência nesta barafunda cega e sôfrega.

Temos de fabricar novas leis. Façamos leis para as classes superiores, e leis para as classes inferiores — leis para os pobres e leis para os ricos. As leis modificam-se com as consciências, e as consciências modificaram-se.

Formemos classes — as de cima e as de baixo. O problema da educação é um problema capital.

O amor é um único minuto. Um minuto esplêndido. O resto é hábito, palavras, hesitações, trampolinice, livros de capa amarela...

E o pior é que isto não são frases, o pior é que isto existiu sempre e impôs-se-me sempre. O pior é que quando eu te falava e sorria, e tu me sorrias extenuada e pálida, o meu pensamento era sempre o mesmo, e só a custo continha o tumulto dos mortos. O pior é que eu sei que desde que este fantasma se pôs a caminho, não o posso deter. O pior é que eu li hoje nos teus olhos ternura e espanto. O pior é o que os teus olhos exprimem — e eu não o posso deter...

 

PRIMAVERA ETERNA

5 DE ABRIL

Segunda noite de luar, segunda noite de espanto. As árvores são fantasmas — os homens são fantasmas. à noite a velha cerejeira é uma aparição. A mesma febre devora no quintal friorento as macieiras anãs. O respeitável Elias de Mello recusa reconhecer-se: assiste com uivos ao desmoronar da própria respeitabilidade. Chegou a primavera. Deita flor a D. Leocádia, a D. Hermínia e a D. Penarícia. Todas as árvores do monte se consomem de sonho.

Primavera entontecida de gritos e rancores, É a vila feita sonho; são aspirações ridículas, restos trôpegos que procuram adaptar-se. Para resistir forjaram a mentira, forjaram a mania, forjaram a abjecção, e essas pequenas coisas sem existência chegaram a ter um lugar mais importante que muitas outras a que chamamos reais.

Fisionomias de dor, fisionomias concentradas, fisionomias de desespero e paixão, vão aparecendo sob cada fisionomia, e todos deparam com sentimentos e palavras que nunca tinham encontrado. — Dez anos, vinte anos de galeras, deixa-me, vai-te, some-te! — O homem rói dentro do homem: criam-se olhos que veem na obscuridade. Começam a distinguir na massa confusa, no caos, nas duvidas, e descem a profundidades que não lhe estavam destinadas. Não é só o homem dum momento, é uma série de figuras ainda por criar: é o homem do futuro.

Mais braços na monstruosa árvore de sonho, mais braços que atingem o céu, mais tinta forjada de desespero. A própria noite escorre pus doirado...

Na pequena vila já havia, como em todas as almas, um Robespierre, um cadafalso, um Shylock interior, ódios, ganancia e uma serigaita a cantar. O quinhão é igual para todos — o que pode é estar sepultado. A questão era de proporções: os valores já não estão na mesma escala. Desapareceu o ridículo. Pensem nisto: desapareceu o ridículo. Num minuto acordou toda a peste, sobressaltou-se toda a peste, todo o ferro velho, toda a mania resignada à força, comprimida à força, levada à força para a velhice e para a morte. Todas as velhas se ergueram, impelidas pela mesma mola. Todo o cenário era cenário, toda a regra, regra, todas as cerimonias que nos ensinam, se conservavam ainda de pé, quando o mesmo furacão revolveu, arrastou tudo e levou tudo adiante de si. Tudo se varreu no mesmo instante, todos largamos a cena no mesmo instante. Todos, com velha baba a escorrer, com velhos tumores abertos, com velhas dentaduras postiças, o mistifório e a obscuridade, o pó inútil que largaste pelo caminho até chegar à velhice, a vida consciente e a velha Eulália, cuja existência é um subterrâneo e que mal sabe falar, todos ficámos estonteados...

 A vila entrou em plena primavera. Eis a D. Procópia, eis a mulher da esfrega. Aqui estão alimentadas a mentira, tendo passado a vida no testamento, na cortesia e na cólica; aqui está o topete, a filha para casar e as faltas de dinheiro — aqui estão todas enrodilhadas de pavor, mas cheias de decisão diante do céu e do inferno. Já abrem aquelas ventas. Aquilo cheira-lhes a coisas proibidas, que passaram a vida a desejar e a temer. Aquilo cheira-lhe ao suspeito e ao reles. Aquilo cheira-lhes bem. De pupilas dilatadas embebem-se no sonho. Até as penas velhas se encrespam, até nos restos de xales sem pelo, o pelo se põe de pé.

Todos nós somos árvores. Há que tempos que deitamos flor pelo lado de dentro. Fomos sempre construções vivas, árvores estranhas que bracejavam para o interior do tronco, ramos e tinta, mais ramos desmedidos e tinta, revestidos de casca pelo lado de fora. Foi por dentro que crescemos, e só por dentro nos era licito crescer, cada vez mais alto até a morte intervir.

Até as árvores estranhas, até as árvores só tronco, que metiam os ramos e a tinta para o interior, bracejam à custa de gritos ramos e tinta, ramos desmedidos e tinta para o lado de fora.

Este é nosso sonho, esta é nossa vida oculta, nossa vida de desespero, nosso sonho desgrenhado e imenso, doirado e imenso, amargo e imenso. Bem sei que isto doe. Bem sei que isto me custa a encontrar e a reconhecer nesta noite de luar e espanto. Bem sei que isto de ser homem é duma grande responsabilidade. Tem prós e contras terríveis. Também sei que o que nos separa dos bichos não é a inteligência: a inteligência é o menos. O que nos separa dos bichos é o esforço dos vivos e dos mortos, o compromisso de aceitarmos a mentira como se fosse verdade. O que nos mantem neste inferno é a arquitetura artificial, é o facto de não nos vermos tal qual somos, baseados numa convenção que julgamos indestrutível. De não nos vermos a nós e de não os vermos a eles. Porque o homem por dentro é desconforme. É ele e todos os mortos. É uma sombra desmedida. Encerra em si a vastidão do universo. Agora somos fantasmas, somos afinal só fantasmas, e o que construímos não cabe entre as quatro paredes de matéria.

Ouve-los? ouve-los? Passaram séculos e séculos no fundo da terra. Levaram séculos a compreender que foram iludidos. Redobraram séculos de desespero no interior das covas, até se compenetrarem de que todo o sacrifício foi inútil, de que toda a dor foi inútil. Ouve-los com dor e desespero?...

Queira ou não queira tenho de dar o passo, tenho de me desentranhar em amargura e sonho. Bem vês, a insignificância vai durar mil anos, a vulgaridade e a ternura têm séculos diante de si, de forma que tanto me pesa uma como a outra. Abafo. Tenho de durar mil anos, tenho de durar dois mil anos, com estas coisas diante de mim, hoje, amanhã, sempre. É escusado lutar. Enquanto era a razão que me guiava, andava às apalpadelas: agora é o inconsciente e cessaram de todo as dúvidas. Tudo se ilumina a outra claridade. Tudo me é permitido. Respiro doutra maneira, olho doutra maneira o que me atravanca o caminho. Toda a pergunta obtém logo resposta imediata. Todos os sonhos estão de pé para mil anos e um dia. — Ouve-los? ouves o grito dos mortos?... — A outra coisa não nos dá tréguas. Vira-nos e revira-nos. Mete-se como piolho em costura. Põe-nos a contas com a questão das questões, com a questão insolúvel. Tudo que estava num plano secundário passou para um plano principal. O meu interesse, o teu interesse, ó D. Penarícia, é matá-la sem que se venha a saber. Escusas de arreganhar os dentes descarnados pela gengivite expulsiva, esse passo tens de o dar contra o que se chama a tua consciência. Ergue a cabeça D. Lambisgoia e recorda-te que já foste fera. Podemos suprimi-la sem remorsos. Matar é uma palavra e mais nada. Por causa duma palavra nos arriscamos, é certo, a ir para a cova inúteis e grotescos, com sonhos remoídos durante noites e noites gelatinosas como velhas mestras de piano que tocam sempre as mesmas escalas. Mas hoje tudo se reduz a metê-la num jazigo selado e chumbado, com a chave entregue ao juiz de direito. Põe em mim teus olhos turvos, ó D. Desidéria e reconhece-te e reconhece-me. O que estava por baixo está agora por cima. à roda da mesa do jogo nunca pensamos senão em anulá-la. O remorso não existe, o crime não existe, a formula não existe. O passo nem tu o deste nem eu o dei presos a algumas palavras convencionais. Agora estamos fartos. Sim, sim, podes matá-la à tua vontade. És um produto fétido do acaso. Não duvides. Se Ele existe, nem suspeita sequer que existimos. Com que direito a esta luz que nos ilumina de chapa, queres que eu me subordine e submeta? Ou não existindo ainda exiges que proceda como se existisses?... Não duvides. Nada. Só algumas palavras formaram a tua consciência. Duas palavras e o hábito, duas palavras e a regra. Posso tudo o que quero. Peso tudo, calculo tudo sobre esta base: o que me convém e o que não me convém. Eu sou eu. O egoísmo é a suprema lei da vida. A honra não é essencial. Ao contrario o meu interesse é mentir, o meu interesse é trair-te. É indiscutível que tenho deveres para comigo, mas não é indiscutível que tenha deveres para contigo. Primeiro eu, depois eu. Todos os crimes me são permitidos com tanto que se não venham a saber. Serves-me ou não me serves? És meu escravo ou meu senhor? Serás tu meu inimigo?...

Que riso que nunca vi (é a cova que se ri)! que boca que nunca vi e que me cheira a defunto! Um passo ainda, outro passo, velhas lambisgoias, D. Insolência e D. Ninharia. Chegou a primavera. Vamos entrar noutra vida sem Deus e sem regras, noutro mistifório que o instinto nos impõe, ó D. Telles das Reles de Meireles, e talvez seja essa a tranquibernia suprema porque suspiramos sempre. Vamos ver que proporções atinge a langonha e a D. Hermínia, o fel e a D. Penarícia. Acabaram os escrúpulos e a luta constante que nos deixava esfarrapados. Tenho-vos aqui na minha frente com as bocas murchas de mentir, a suar grotesco e a gritar de desespero; tenho-vos aqui só bichos em frente da necessidade fatal, da verdade iniludível, nus uns ao lado dos outros, nus e reles, com o esplendor cada vez maior, cada vez mais sôfrego diante de nós. Estamos prontos. Estamos fartos. O que resta é o sonho de pé, só sonho e doirado, fétido e doirado, caótico e doirado. Está roto o contrato.

A primavera atingiu o auge nos vivos e nos mortos. Tinta sobre tinta, dor sobre dor. Ressuscitam todas as primaveras, as primaveras sucessivas, as primeiras primaveras em que a ternura se confunde com a fealdade e a fealdade é já ternura, outras primaveras, e outras oiro e verde, em que a tinta escorre do negrume. O que custou à árvore a transformar-se em sonho, à árvore dorida com a flor recalcada, até se desentranhar em emoção!... Mais outras primaveras frenéticas, mais outras tímidas e delicadas, mais outras que não chegaram a abrir cobrem os vivos e os mortos...

Mais braços na monstruosa árvore do sonho, mais braços que atingem o céu. E aí estão todas as flores e todos os gritos, a tentativa ridícula da flor e a flor esbraseada das noites sobre noites de concentração.

Todos ansiamos por este dia. Nós e os outros do fundo da sepultura contamos sempre com a primavera eterna — nós e a coorte muda cujo esforço senti sempre, muda e desesperada, cega e desesperada. Gritos que vem de longe, expressões mutiladas que tentam impor-se. Este sonho não era só meu. Arredei-o e pegou-me fuligem. Trouxe-o num cantinho do meu ser como uma coisa proibida. Nunca me atrevi a olhá-lo frente a frente, até que surgiu das profundas, caótico e doirado, de dor e de restos, coçado e doirado. Pertence-me e pertence-te. Vem do céu e do inferno. É nosso e dos mortos. É o patrimônio da vida, e do tumulo.

E os mortos estão arrependidos! os mortos estão arrependidos!

20 DE ABRIL

As velhas encarniçadas são outras, são velhas em sonho vivo. — Mata! mata! mata! — Aqui de rastros, ano atrás de ano, para ser comida! — Aqui a levar pontapés neste sitio, aqui a criar rugas e fel! — Pois eu não fui eu, e agora estou diante disto, deste assombro e deste desespero! — Gritam porque se não podem ver. Gritam porque a realidade e o sonho tomaram proporções que lhes não cabem nas almas. Gritam porque não lhe entreveem o fundo. A D. Penarícia tirou a cuia postiça, e atirou com a cuia ao chão. Depois fitou os olhos na cuia enrodilhada, e absorveu-se na cuia de retrós, como se tivesse ali em frente o símbolo do universo: — Não posso desfazer-me disto! não posso desfazer-me disto! Toma! Eu não sou isto, e hei-de estar aqui sufocada a aturar-te para não morrer à fome. Hei-de ver-me e ver-te e hei-de dizer: — Jogo! — Hei-de fazer-te as vontades e ver-me tal qual sou, tal qual era e tal qual hei-de ser? — à espera de quê, se nem da morte podemos esperar? — Então este esforço para ter uma alma não se conta? Este esforço para não andar de rastros como a cobra? Para viver com isto e com isto? Com esta amargura, o fel, o que é mesquinho e com Deus? Eu não posso com o que não compreendo, com o que está por trás de mim, com o que está a meu lado e com o que tenho de fazer todos os dias... — Falo! — Falo eu agora! — A tragédia é que eu iludia-me, mentia a mim mesmo e agora não posso mentir. Não há gritos que te valham e a ninharia desapareceu do universo. A insignificância acabou. — O pior drama — exclama outra — é que eu vejo o que fiz de mim própria.

 — A inveja que eu te tenho! a inveja que eu te tive sempre! E tenho que sorrir para ti, de dizer a tudo que sim!

 — Jogue!

 — Então eu passei a minha vida a ter paciência, à espera, passei-a a mentir e obedecer, e tu a mandares, e agora hei-de continuar a ser abjecta quinhentos anos, seiscentos anos?

 — E eu! o pão que me deste amarguei-o sempre. Cada dia que passava mais me sabia a zinavre. Não te matei porque não pude!

 — Corte!

 — Tu não és mais do que eu!

 — Ai! Também eu, também eu tenho a dizer uma coisa. É que eu sabia bem tudo isto, há que tempos que o sabia!... Mas não sei que era que me obrigava a fingir. Corto!

Avante! avante! Um cordão de velhas, como um cordão de sentinelas, não desampara o quarto onde a majestosa Teodora agoniza. Chove. Entre estas paredes forradas de papel doirado já não se moem as palavras de uso. Alumia-as o candeeiro a escorrer petróleo, e a luz fixa as arestas das figuras de cerimonia, todas vestidas de preto, a calva dum homem gordo, a quem só se veem as mãos esponjosas, os bicos das velhas retesas, cujas bocas remoem no escuro, a Adélia mais safada e mais sôfrega, e o padre no meio da sala dominando-os a todos. Onde vai o ridículo da D. Penarícia, as mesuras da D. Andreza, o riso idiota da D. Idalina, a langonha da D. Hermínia? Parecem forjadas de novo. Até as pregas dos vestidos caem como pregas de estatuas. Cada velha resolve que a cólica da Teodora seja a sua última cólica; em cada velha cresce, aumenta, trasborda, num tumulto, o inferno. Ao saque! ao saque! — É para mim. Eu é que sou a prima mais chegada. — Eu é que lhe tenho aturado tudo, é a mim que ela deixa os trezentos contos, os quatrocentos contos, ninguém sabe o que ela tem. — Nenhuma admite que a majestosa Teodora escape. Veem de muito longe estas figuras — veem das profundas... Nos olhos da D. Penarícia há claridades do inferno. Ganharam todas em fixidez e audácia. O sarcasmo não me chega à boca, passou-me a vontade de rir.

Desapareceram séculos de paciência e astúcia, surgiram figuras novas. Para as compreender pergunto a mim mesmo o que é isto embrulhado num xale, e não me atrevo a contemplá-lo. Ridículo e ferocidade? Uma coisa sem nome, produto do acaso, ou uma coisa abjecta? Uma alma ou um resultado de formulas? Está aqui a D. Penarícia e a D. Eulália ou Deus e o Diabo? Um mundo novo e um mundo atroz? Estão aqui perguntas vivas e respostas vivas: — Abra lá essa porta para trás! — Essa porta deita para a parte proibida da vida. O mal, suspeitam-no, talvez seja a melhor parte da vida. — Abram lá essa porta para trás! — Não lhes parece que esperam há anos, parece-lhes que esperam há séculos, e tem ali diante de si estateladas, as cortesias que fizeram à velha, — o pois sim que disseram à velha — os sorrisos com que sorriram à velha — as vontades que fizeram à velha. São tragédias. Veem de muito longe, duma vida sem limites. Em cada uma se representa um drama atroz, o drama do interesse e do cálculo, o drama da vida. Nuas, as velhas que estão na minha frente, são infinitas de grotesco e dor. Duram há séculos. Há séculos que têm paciência para viver e para sofrer. A D. Penarícia mente desde os confins do mundo: representa gritos, mais gritos represados. É um poço donde só saem ais e mais ais. O difícil é a gente habituar-se a viver esta vida e a outra vida: carregar com este peso desde o infinito e lidar e falar e viver. — Oh morte que tão bem cheiras!... — Bem sei, os séculos imprimiram-lhes dedadas, os séculos deformaram-nas... Mas agora estão aqui desesperos em frente de desesperos, e desatam a berrar umas às outras:

 — Tem paciência, tem sempre paciência. Doe-te? tem paciência; amargas? tem paciência...

 — Todos os dias da vida, todos os dias da minha vida à espera da morte. Estou farta! estou farta de despejar bacios, de dizer que sim, de dizer a tudo que sim, de ser a sombra de mim mesma. Agora está aqui a vida. Esta vida e todas as vidas. É preciso que ela morra, e se não morre é preciso matá-la. Ouve senhor padre Ananias, senhor padre unguento, senhor padre e as suas comidelas, senhor padre e o seu inferno?... Mentira! mentira! Eu própria era uma mentira. E só me aterra a ideia de acordar tarde, de acordar na morte, com a certeza de que era tudo mentira e só mentira...

Abrem as bocas desmedidas, fecham logo as bocas desmedidas.

 — Bem vê que não posso mais. Eu que mentia não posso mais mentir. Como hei-de viver?

 — Tem paciência, tem mais paciência, tem paciência por todos os séculos a vir...

Estão ali dispostas a morrer e a matar. Está ali um cordão de velhas como um cordão de sentinelas à porta do quarto da majestosa Teodora. Duas, ambas de quico, ambas de mitenes, ambas impenetráveis, trazem na algibeira o lenço com que hão-de amarrar-lhe os queixos. Todas esperam que ela se decida a expedir. Nenhuma abre o bico, mas apalpam os vestidos como se trouxessem um punhal escondido. Dum lado as gulas exasperadas, a hora extrema — chamem o tabelião! chamem o tabelião! — o testamento, a sorte grande — enfim! enfim! — os chapéus de plumas, o oiro mexido e remexido, as gavetas arrombadas, as salas do tapete, o vício e o gozo — do outro a vida nova, o todas as abjecções inutilizadas.

Ó morte que tão bem cheiras, aqui me tens para te servir. Como esta casa cheira bem! como cheira bem aqui dentro! — Ó morte que tão bem cheiras, tu diluis o travor de fel e acalmas a acidez da inveja. Resolves tudo, realizas tudo, os mais ignóbeis pensamentos, as mais secretas aspirações, que nem a Deus se confiam, ó morte que tão bem cheiras! — E calcando a alma que se atreve, dizem compungidas, por hábito secular: — Coitadinha já tem panela!...

Agora aguenta-te, majestosa Teodora! Nalguns minutos esse crânio obtuso com uma cuia em cima, tem de lutar com o crer ou não crer, com a vida antiga e a vida que antevê; tem de desfazer a unhadas um edifício mais vasto que o Coliseu e de deitar abaixo pedra a pedra todas as pedras que cimentou durante a existência; tem de se entregar ao sonho sem capacidade para o sonho; e tem, ainda por cima, de esquecer as inscrições e as decimas. Para escapar com vida, arrosta com a vida passada e com a vida futura. Tudo nela era imperativo. Decidia por uma vez: um passo, e é o inferno pela eternidade, o inferno com o sitio imóvel, com o tormento da vista, com o tormento dos ouvidos. Escapar à morte é fugir à lei de Deus. — E dum dado puxa por ela a vida, do outro puxa por ela o inferno — e as velhas lá fora esperam e desesperam. Sente as labaredas do sitio imóvel por a eternidade das eternidades; envolve-a, toca-a, engrandece-a também o sonho, e o inferno não cessa de reclamá-la, o inferno que foi o único deus que temeu neste vale de lágrimas. E esse debate esplêndido numa alma estúpida, deixa vestígios profundos: aquelas raízes não se arrancam sem produzirem buracos. E as velhas lá fora esperam, enquanto a majestosa Teodora desata aos gritos, balouçada — e com a cuia a desfazer-se-lhe — entre a realidade e o sonho, entre o inferno e a vida nova que começa. Mas como a estúpida vida de caldo e pão que levou antes de enriquecer, lhe deu fibra e caráter e não sei que de solido e amargo, a velha pode salvar-se, com um resto de xale e a cuia amolgada. A velha resiste, e ao abrir a porta exclama para o cordão das outras estupefatas:

 — Atravessei viva o inferno. Agora nem do diabo tenho medo!

25 DE ABRIL

E o doirado não cessa. Doira o luar e a inépcia, doira a tragédia e o ridículo... Teçamos, teçamos todos a nossa teia... A minha prendo-a às árvores, ao céu e às coisas eternas. Todos os sonhos se põem a caminho. É uma coisa equivoca. É uma coisa desgrenhada e fétida. É o sonho lastimoso das velhas, o sonho que não chega a ser sonho, onde boiam mortos informes, com laivos verdes, com tentáculos esbranquiçados que se prolongam no escuro. Toda a gente fala só. E o luar intolerável, o luar indiferente, derrete-se sobre as ameias, sobre a catedral, sobre os santos imóveis nos seus nichos. Dão horas, mas as horas acabaram. Coisa singular: esta gente só fala consigo mesma, em monólogos roucos, desesperados, infindáveis. Os olhos da D. Fúfia ganham em fixidez e concentração; a D. Hermínia começa uma tragédia, que dura uma noite inteira com a mesma palavra obscena.

A alma sórdida, o fluido que envolvia a vila, a atmosfera parda, feita de pequenos ódios, de pequenos interesses e de hábitos concentrados, encrespa-se e cresce em vagalhões magnéticos. Modifica todos os seres e abala as paredes mestras. Embebe-se no salitre e rói os santos nos seus nichos: até na imobilidade entranha desespero. Quedam-se estonteados e transidos, como se a vida fosse uma mera criação do luar e da loucura... A alma da vila é sacudida por uma tempestade de espanto. A botica está deserta, com o bocal, o pássaro empalhado, as moscas mortas.

Um momento angustioso não se ouve rumor, depois um tumulto, um clamor, um ah! A vila toda grita: — Ei-lo! aqui está o meu sonho, aqui está como o trouxe toda a vida, escondido, dorido, fruste, imenso ou humilde; aqui está a minha verdadeira figura — a figura do Melias e a figura do Melambes; a velha num debate perpétuo, a velha e as suas manias, o desespero e a Úrsula, o grotesco e o pó doirado que não sei donde se me pegou; aquilo de que te rias e eu me ria, e que todos nós escondíamos, cada vez mais oculto, cada vez mais para dentro, como somíticos... Lá vai a Adélia, com o chapéu às três pancadas, lá vai um lojista que parece Napoleão Bonaparte, e as Souzas armadas de ponto em branco — lá vai o inferno de luxuria e de egoísmo. O muro não existe — derrubaram o muro.

Nesse momento pesado de angústia todas as mãos se agitam no ar diante da outra coisa que no silêncio e na noite estende os farrapos das asas cada vez mais disformes. Está sôfrega. Cresce, grita, avança direita para nós. O que se pôs em marcha não vem de fora, mas de dentro de ti mesmo, da mais cerrada das noites. Há muitas camadas de mortos. Há-as a léguas de profundidade e até de lá sobem os gritos. O homem é o mais profundo, o mais vasto de todos os sepulcros.

Põe este homem vestido em frente deste homem nu, a fama o crédito, a praça, ao pé desta coisa desordenada que se encarniça e não nos larga, ó Elias, ó Melias, ó Melambes! A consideração não existe! a praça não existe! aqui estamos todos bichos em frente de bichos, os que pagam as letras e os que têm as letras protestadas, nós e nós, nós e os ladrões das estradas, nós vestidos e grotescos, nós nus e trágicos — nós e o universo monstruoso! Nós corretos e nós disformes, nós e o céu profundo na sua temerosa realidade. Salta laré, perirone, perirote! Mas salta com desespero, salta com as tuas eternas explicações, o subterfugio e o grotesco. Agora não nos servem de nada os relatórios, nem as razões dispostas como formulas algébricas — agora estamos aqui nós e o problema desalinhado e feroz, que nos impõe uma solução imediata. Salta laré, perirone, perirote! Se ela vive mais quinhentos anos lá se vai o dinheiro por água abaixo. Pior: se ela remoça lá se vai o nosso crédito na praça. Mas — pergunto — posso porventura deixá-la morrer quando está nas minhas mãos salvá-la? Não sou eu por acaso um homem de bem? Tu és um homem de bem, eu sou um homem de bem, nós somos todos homens de bem — depende das circunstancias. Os pais são pais, mas deixam de ser pais se nos dão cabo de tudo — e da firma. Por outro lado há a contar com o crédito. Pensem nisto, no crédito. O crédito pode perder-se de um dia para o outro, e sem crédito um homem não vale nada na praça. Meditem e atendam. Acima de tudo está o crédito. Está talvez acima de Deus, ainda que a minha consciência seja religiosa. Sem Deus ainda posso viver, sem crédito não dou um passo na vida.

 — Além da firma que nos resta na vida? Fora da praça não existimos. Pense que logo, amanhã, hoje mesmo, a nossa mãe remoçada deixa de ser a nossa mãe. Que quer o mano fazer? que pode o mano fazer? Destruir por suas próprias mãos o nosso crédito na praça?

Um defronte do outro abanam as respeitáveis cabeças, com calva e risca, com risca e calva, aquela distinção de porte e de vinco, aquela ponderação de estilo, aquela correção de maneiras, aquela seriedade das seriedades, que a praça honra, que as firmas honram, que a Igreja honra, e de que até o próprio Deus do céu já está à espera com o palio meio aberto. A firma Elias & Melias tão correta, com livros, ripolin nos caixilhos e nas almas, vê-se descascada até à medula e treme nos seus fundamentos. Está encalacrada. E o pior é que não são só eles que estão encalacrados, estamos todos encalacrados. Na verdade o que importa não é o que tu me dizes: é o que eu digo a mim mesmo... Ó Rinhe como tu rinhes com dor, com desespero, numa forma pastosa, a que se misturam já palavras vivas, em lugar das frases dos relatórios e dos bancos! Decerto te sentes bem no pegajoso, mas por trás não te dá tréguas o impulso. Neste conflito delicado só tu vinhas a tempo, ó morte que tão bem cheiras, e, cumpridas as formalidades do estilo, entregavas-me, com o testamento, a chave do cofre. Agora esta coisa encarniçada e feroz, sôfrega e imunda, leva-nos a mim e a ti, com desespero e gritos, com as formulas e o vinco, com a praça e o crédito!...

Agora não, D. Biblioteca das Bibliotecas, já preparada com todos os requisitos e unguentos para o horror do nada! Agora não! Já tentaram desligar-te da vida com as palavras untuosas do rito e promessas de outra vida melhor. Que te resta? A vida eterna. Poço p'ra a vida eterna! O que tu queres é esta vida, esta insignificância e estes restos — e está aqui a morte inexorável. Tanta saudade! tanto apego! Tudo te doe e do fundo dessa miséria e dessa pele engelhada vem um gemido baixinho diante da figura tremenda que não sai de ao pé de ti... Ó carne putrefata, como tu te apegas a um resquício de esperança, a um só que seja! O que te custa a largar o brasão na fralda da camisa, o postiço de toda a tua existência inútil, o alto da lista de subscritores — três tostões, seis tostões, um quartinho! ó carne fedorenta, ó carne já preparada para o mausoléu, com a gaveta aberta, latim e água benta, dois invólucros, um de mogno, outro de chumbo, e o picheleiro à espera!

E aí os tens sem piedade, inexoráveis como o destino. Agora não Elias & Melias, agora não D. Biblioteca das Bibliotecas, estais frente a frente com a realidade e a morte. Salta laré, perirone, perirote!

 — Não quero morrer! não me deixem morrer! Chamem os meus filhos, chamem toda a gente. Não me deixem morrer!

Todos os apetites, todas as sensações que pareciam extintas, assobiam como víboras. Horas antes de morrer ainda essa mulher está tão intacta por dentro como aos vinte anos. Ninguém a pode conter. Quer saltar pela cama fora.

 — Chamem os meus filhos! chamem os meus filhos!

 — Chamem o procurador!

Mas o que ela exprime por palavras, pelo olhar, pelos gestos, é a ânsia de viver.

 — Não, não. Tirem-me para lá esse homem. O que eu quero é viver.

Vê no último desespero a face estúpida do procurador dizer-lhe coisas grotescas:

 — Ó minha senhora cheguemo-nos à razão. Seja razoável.

 — Quero viver.

 — Temos em primeiro lugar a Igreja. Apelo para os seus sentimentos religiosos, que os teve sempre, e diante dos quais me curvo respeitosamente. Apelo...

 — Deem-me o remédio! Quero viver!

 — Segundo lembro a V. Ex. que tem sido até agora mãe extremosa dos seus filhos. Se volta aos vinte anos, pergunto respeitosamente a V. Exa., Exma. senhora, que é que V. Exa. é aos seus filhos?

 — Quero viver!

 — Perdão minha senhora! Esta fortuna tão bem administrada pelo casal de que tenho sido bastante procurador a que mãos irá enfim parar? Peço-lhe que reflita. Peço-lhe que se submeta. Lembro-lhe que estão ali fora seus respeitáveis filhos subjugados pela dor, lembro-lhe a sociedade, e atrevo-me a lembrar-lhe que não tarda aí o D. Prior.

Um fio, falta só um fio, e ainda aquela figura grotesca se debruça para lhe dizer: — V. Exa....

 — Fechem as portas! fechem as janelas! fechem tudo! — exclama o honrado Elias de Mello, com a calva arrepiada.

 — Não quero morrer!

Tem forças para saltar da cama, para se arrastar até à porta, e toda a noite no casarão ecoam gritos.

Não quero morrer! Um minuto e mais nada. Um minuto e, contido nesse minuto, o universo desabalado, a morte, o desespero e o procurador com o selo da lei e a saliva da lei. Tu dum lado decrepita — e do outro a sofreguidão caótica para mastigares com o único dente que te resta na boca. Um minuto e contido nesse minuto os vivos e os mortos, o teu fantasma e todos os fantasmas, a realidade e o sonho, — tu ungida e tingida, nós e nós — nós corretos e grotescos — nós Melias e doirado, nós Melambes e frenético!

30 DE ABRIL

Donde emerge esta figura encharcada de lama, menos a sombrinha, que, apesar da dor, conseguiu atravessar incólume todos os solavancos? A que se atreve depois de ver o filho? Cheguei a ter a visão nítida da montanha de pó acumulada sobre ela, e do desespero imenso para a romper.

Sabe tudo, vai dizer tudo. Tem ali as cautelas do prego e a malinha de mão onde levava escondidos, a enterrar, os fetos da D. Engrácia; só ela pode desvendar os vícios ocultos e o sitio onde a D. Biblioteca tinha a sua fistula. Conhece as misérias e os segredos das famílias corretas. vai enfim dizer tudo, quando lhe surge o filho que não via há anos. Ei-lo criado de orgulho e de codeas. Submete-se logo, mais coçada e mais gasta, diante daquela obra prima real e tangível. — Pois sim, pois sim... — Aí tens tu o teu sonho alimentado de codeas e transformado em realidade. Aí está patente o sonho que sonhaste com inveja, o sonho que sonhaste com fel, aos ais, com a boca tapada, o sonho feito de farrapos, que ocultaste de toda a gente para poder viver. Aí está patente, à luz do sol, como os sonhos dos outros, de ambição e de império, o sonho que ninguém viu sonhar, e que sustentaste à custa da tua própria alma — ó Restituta da Piedade Sardinha!

... — Sejamos lógicos mãe — diz ele — na vida é preciso ser logico. A mãe criou-me escondido, eu, por meu lado, disse sempre que não tinha mãe. Não hei-de agora que vou casar apresentá-la: — «Aqui está a minha mãe que me criou de esmolas, que me criou escondido».

 — Tens razão, filho.

 — O que é preciso é que a mãe desapareça. O que é preciso é que a mãe, que tem sido logica deixando-me fazer carreira, não estrague agora tudo. Quem soube sacrificar-se para me engrandecer, deve continuar a sacrificar-se. Não lhe peço mais nada: desapareça.

 — Desapareço.

Ella própria tem por aquela obra monumental de egoísmo, o respeito que teve sempre por as pessoas consideráveis. Está ali na sua frente de chapéu lustroso e luvas esticadas. Acrescentem a isto amor. Levou anos a criá-lo escondido, e revê-se embevecida nos cartões em que ele assigna Monfalcão dos Monfalcões (Sardinha). De resto não lhe custa nada desaparecer. Não lhe custa mesmo nada. É mais uma ordem a cumprir. Obedece. Obedece, como obedeceu sempre a D. Hermengarda, à D. Teodora, à D. Hermínia, como obedeceu a todas as pessoas ricas e de consideração, como obedeceu à vida que fez dela um trapo. Apenas um minuto e esse minuto chega. Um minuto e mais nada. Nesse minuto a figura contraída reconhece a figura de trapos e de restos. Nesse único minuto de dúvida a D. Restituta vive mil anos e um dia e concentra-se em horror e desespero. É o minuto supremo em que a velha Pois Sim se sente arrastada ao céu e ao inferno, ouve vozes que falam ao mesmo tempo, e ela mesmo pronuncia palavras que nunca ousou pronunciar, nem no recanto mais obscuro da sua alma. — Vi-o! vi-o! vi-o! Que é isto? que é isto que se me pega e se me entranhou na obediência e na mentira? O que é isto que não compreendo e que me doe? Desespero e pois sim, sofreguidão e pois sim, doirado e pois sim! Eu não posso com isto amargo e doirado! Eu só posso mentir, só posso obedecer, só posso com restos, com os restos dos restos. Tenho vivido desde o princípio do mundo a escorrer fel e pois sim. Tenho sido sempre Pois Sim, só Pois Sim, e agora sou Pois Sim e desespero!

Desespero, e neste desespero uma primavera de restos, uma primavera abortada, que só chega a deitar uma flor miudinha como a flor do escalheiro. — Mente! mente! mentir não custa nada! — Mas a D. Restituta já não pode mentir ainda que queira. Quer dizer que não, e com ela todos os mortos, todos os mortos que não se atreveram a sonhar, que não abrangeram o sonho, dizem à uma que sim, dizem com desespero que sim. Sonho e pois sim não cabem no mesmo saco. Não cabem no mesmo saco primavera e pois sim. A sofreguidão atingiu o auge e tu viste-o! viste-o!...

Salta laré, perirone perirote!... A sacudidela de revolta extingue-se, sai da luta exausta, com todo o peso da montanha em cima, diminuída, reduzida outra vez a pois sim... Esses minutos que passou só e contemplando a ruina de toda a sua vida foram amargos como fel. — Mete o diabo no saco! — Tão cansada e tão gasta que nem as feições lhe reconheço; tão amarga e tão ridícula, tão pois sim, que da D. Restituta só resta uma expressão de dor, de dor mutilada a dizer que sim, sempre que sim — a dizer a tudo que sim.

 — Mete tudo no saco, mete-o com lágrimas requentadas e o fel da submissão. Mete a tua alma e a minha alma, gastas de dizerem a tudo que sim. Mete o diabo no saco! mete tudo p'ra o saco, desespero e doirado, sofreguidão e pois sim!

Balouça ao vento, a uma réstea de luar, pendurado numa corda, o cadáver da D. Restituta, que parece dizer pela última vez que sim — para que o filho possa casar com a filha do conselheiro Barata. Balouça ao vento num sexto andar — esquerdo. Morre ignorada e desconhecida quem toda a vida viveu de codeas, para lhe assegurar o futuro e a assinatura com brasão e elmo, Monfalcão dos Monfalcões (Sardinha). Da mão crispada ninguém lhe arranca a fotografia de quando ele era pequeno, com o fardamento da Escola Acadêmica, como um guarda-portão em miniatura. A sombrinha lá está aberta ao lado da cama, por causa da umidade, e pela janela, aberta sobre o luar, veem-se os montes onde o Santo colérico não cessa de latir injurias sobre a vila agachada de terror.

6 DE MAIO

Chegou. Abriu a mais bela, a mais fecunda, a mais doirada de todas as primaveras — a primavera eterna. Revolveu a terra e cobriu os seres e as coisas de flores, por camadas ininterruptas e sucessivas, com todas as cores e todos os entontecimentos, todas as infâmias e todas as tintas — com todos os desesperos. Está aqui também presente a floresta apodrecida... As árvores não se veem, mas estão também aqui... Está aqui a floresta apodrecida, e com ela as formas de sonho e as formas de dor mutilada que vagueiam na profundidade das profundidades, os contatos viscosos, as mãos geladas ainda em esboço, os seres cegos e com gritos, porque não sabem ainda viver, as formas hesitantes do pesadelo...

É aqui que corre e escorre o verde, o roxo e o lilás — os tons violentos e os tons apagados. Até as árvores são sonhos. Atravessaram o inverno com sonho contido, com o sonho humilde com que carregam há séculos. E até esses sonhos se transformaram em realidade. Realizou-se enfim o milagre: as árvores chegam ao céu.

 

DEUS

10 DE MAIO

O que eu sinto é o desespero de não haver dor eterna. A dor pela eternidade das eternidades era ainda viver. Sofrer sempre, com a consciência do sofrimento, é viver sempre. Antes o inferno! antes o inferno! o inferno em lugar do nada.

O inferno era ainda o céu.

Alguma coisa nos conduz e nos leva até à morte. Rodeia-nos. Impele-nos. Não a vemos e está ao nosso lado. Só ela existe no mundo. Estou nas suas mãos com desespero. Extasia-nos. Aturde-nos. Escarnece-nos.

Tu não existes! tu não existes! E não há mãos mais cruéis que as tuas. És abjecta. És cega e frenética. Levas-nos enrodilhados e envolvidos. E queira ou não queira estou nas tuas mãos. Só tu existes no mundo.

Nem a vida nem a morte, nem o tempo nem Deus. A única realidade és tu — fétida e imensa, sôfrega e horrível. Gritas? hás-de gritar pela eternidade das eternidades. Fazes parte para todo o sempre desta força que vem do princípio da vida e se projeta nos confins da vida, com boca ou sem boca, capaz de todo o sonho e de toda a beleza — para nada! para nada!... Na minha alma reflete-se o diálogo do universo como a claridade na água para me entontecer.

Cheguei ao ponto em que tenho medo. Fecho as janelas, fecho tudo. Outra vez a primavera! outra vez o escárnio! O que tu queres é iludir-me. A um dia de nevoa sucede um dia doirado. E extasias-me. Se abro a porta, a noite está cheia de estrelas e de vozes. No fim da tarde, quando a água tem um som mais lindo, a neblina dá encanto à minha vida e aos grandes montes compactos. Alheias-me, fazes-me sonhar, levas-me escarnecido até à morte. Atrás de ti só há dor e o desconhecido. Mascaras-te para me iludires. Mais uma vez tentas inebriar-me com o teu aroma; mais uma vez os pinheiros sacodem no ar o seu pólen sulfuroso... Não quero ver! não posso ver! Não te posso ver! A vida é amarga, a primavera é seca e inútil. Fecho tudo para não te ver. Fecho tudo para não ver a primavera e sinto-a através dos muros.

Oh o grande oceano, a torrente impetuosa — sempre! sempre — o mar de mãos fluidas que me envolvem — o mar do silêncio, o grande mar inesgotável que desliza no silêncio — como tudo isto me mete medo!

Reconheço-te força, mas não me importas nada. Este deus faz o que ele quer e não o que eu quero. Este deus desordenado e imenso, não é feito à minha imagem e semelhança. Não me ouve nem me atende. Não o posso desviar da sua marcha à custa de suplicas e de gritos. Não se apieda. Não sei se tem o sentimento da justiça. Talvez tenha outro sentimento de justiça — outro maior — outro que não abranjo. Este deus não me é nada. Para ele é vão tudo o que se grita no mundo, tudo o que se sofre no mundo é vão. Todos os santos são grotescos. Todos, os que te chamaram e suplicaram, todos os que te ofereceram a renúncia e a dor, o fizeram no vácuo. Pai, tu não existias! E não existindo impeles-me, entonteces-me e esmagas-me. Estou nas tuas mãos e não as vejo. Crias-me e não existes.

Eu sei, eu sinto que estás aí desconforme, vivo, e obstinado — mas não és o meu deus. Tanto faz esfacelar-me contra este muro compacto, como conservar-me quieto, indiferente e calado. Tu estás aí patente, vivo como a vida, mas não me conheces nem eu te conheço a ti. Não nos chegamos a entender. Não tens nome. E estou nas tuas mãos.

Estou nas tuas mãos e não me interessas. O que me interessava eras tu. Tu, que não existes, entranhaste-te-me na carne e no osso, de tal forma que não me livro de ti. Não existes e dominas-me. Não existes e torturas-me. Não existes e só tu és a razão da minha vida, dos meus atos, e do meu ser. Não existes e só tu existes. Tenho mil anos e um dia para pregar diante do vácuo que não existes. Para te chamar sabendo que não ouves. Disponho de mil anos e um dia de desespero, de mil anos e um dia diante da mudez, a clamar, a pregar, a mentir.

O resto são frases e mais nada. Só a vida futura, só a vida presente sob o teu olhar tinha finalidade e razão de ser. O resto são frases com que me procuras iludir e com que te procuro iludir. Porque se um dia, sós a sós com a tua alma, te detiveste diante destas palavras — a vida eterna e a morte eterna, não como palavras mas como realidades, nunca mais pudeste desviar o olhar.

O que me interessava eras tu porque para, que tu existas é preciso que eu exista também. Eu não posso passar sem ti, mas tu não podes passar sem mim.

Se tu não existes, estou nas mãos da força obstinada e cega. O que me interessava era o espetáculo da minha própria alma, o dialogo dos dias e das noites entre mim e ti, a imensidade temerosa mas viva, de que eu fazia parte.

E agora, reconheço-o, toda a dor resulta de eu criar um universo que não existe. De tu me criares a mim e de eu te criar a ti. O resto do universo ignora a vida e a morte. Toda a dor resulta deste esforço para a mentira. De eu não me submeter à força desabalada e cega. De eu ter inventado um Mundo maior que o teu e diferente do teu, para o sobrepor ao mundo caótico, ao mundo atroz. De mentirmos com obstinação até à cova, ao céu e às estrelas. Destas duas criações antagônicas resulta a maior dor humana. Se eu não tivesse criado outra vida imaginaria, tu passavas e calcavas-me, tu passavas e esmagavas-me, mas não me cabia em lote a morte e a consciência da morte, a vida e a consciência da vida. Mas criando a mentira trágica sou maior do que tu.

 Resta-me o bem. Mas fazer o bem para quê se tudo acaba ali, se não há outra vida consciente, se não tenho de responder perante ti pelos meus atos? E mesmo diante do escantilhão sôfrego, o que é o bem e o mal? A que eu tenho de obedecer é ao instinto e mais nada. Se não estás aí para me julgar e para me ouvir, que importa fazer isto ou fazer exatamente o contrário? Só uma coisa resta: iludir os desgraçados, levá-los para uma mentira cada vez maior, para que possam suportar a vida. Não se trata do bem ou do mal, do justo ou do injusto — trata-se de mentir, de mentir sempre — de mentir cada vez mais.

Estou nas tuas mãos... Esta noite límpida como um diamante polido não existe. O que existe é atroz... Nem a primavera existe, e tudo se entreabre em entontecimento azul. Nem esta harmonia dos mundos, que eu criei, existe. O que existe é atroz. Nem este sonho em que ando envolvido e iludido. Só tu existes no mundo e me trazes estonteado no mundo. Fecho-me para te não ver e estou nas tuas mãos. Se eu pudesse ouvir-te, ouvia todos os gritos que se soltaram no mundo, se eu pudesse encarar-te em toda a tua plenitude — via o negrume monstruoso e caótico avançando para mim, o repelão doirado levando tudo diante de si, no desespero, na vida e na morte, esmagando sempre e renovando sempre, para criar mais dor. Não te fartas. Isto é desconhecido, é absurdo, é eterno — mas a beleza trágica da vida efêmera consiste em te resistir, todo o nosso afã em criar uma mentira para opor a tua verdade — de que resulte dor. Tu podes tudo como verdade. Estou nas tuas mãos. Eu posso tudo como mentira, e só assim saio das tuas mãos. A verdade é a dissolução e a morte, és tu; a mentira é a vida. Resisto-te para poder viver; para poder viver crio a mentira trágica. Se cedo ao teu impulso, se escuto as tuas vozes, levas-me para uma vida inferior; se te oponho a mentira, caminho por uma via dolorosa: engrandeço-me. Estou nas tuas mãos — e nego-te. E o homem é tanto maior quanto mais alto afirma que existes. Crispa-se-lhe a boca, dilacera-se até às últimas fibras, luta, grita e sai em farrapos das tuas mãos.

Todos os heróis são mártires, todos os santos foram iludidos até à morte.

 

CÉU E INFERNO

20 DE MAIO

Toda a vila, a vila toda, a que a luz artificial dava relevo, desata a gritar como se lhe arrancassem a pele. Gritam as velhas, grita o Santo em frente da sombra que se lhe introduziu na vida. Grita a paciência e a mentira, grita a hipocrisia. Desapareceram as figuras e só ficam gritos na noite. Outro passo — outro grito. É a custo que me separo deste ser com quem coabitei sempre. O escárnio está aqui; está aqui o escárnio e o rancor. Gritam no mundo subvertido. Mais gritos. Que dever? O dever de te matar? O dever de te cuspir? Matá-la, mas matá-la é até um caso de consciência, para que a minha vida seja a minha vida. — E os gritos aumentam — gritos de dor, gritos de espanto, gritos sufocados de cólera, mais gritos de seres que se não querem separar da antiga carcaça.

Tudo isto caminhava para um fim, tudo foi desviado ao mesmo tempo desse fim; tudo isto se alimentava de certas regras, tudo avança desesperado, aos gritos, ansioso e doloroso: — Pois és tu! és tu! E o interesse és tu! e o amor és tu! — O desespero aumenta, os gritos redobram. As criaturas com que deparo são temerosas. Uns desatam a rir com rancor e sarcasmos sobre sarcasmos. Há-os que se reduzem a baba e a pó. — O quê, tudo isto era tão pequeno! Pois passei metade da existência, anos atrás do anos, ao lado desta coisa feroz e esplendida, absorto em ninharia! E nunca dei pelo assombro, pela vertigem! Atrevo-me a matar, atrevo-me a odiar, atrevo-me a escarnecer-te... — Mas então — pergunto — eu fui o homem escrupuloso, eu fui o homem honesto que lutei toda a vida com os maus instintos, num combate perpétuo — para isto? Pergunto — para isto? Ali aquela desata aos berros e seres caminham transfigurados; seres que nunca sonharam, matéria impenetrável, deparam pela primeira vez com o sonho, o que os deixa atônitos. Ninguém pode encarar-se até ao fundo. A tua meticulosidade é de ferro, está de tal maneira entranhada no teu ser que sem ela não existes. Pois até a tua meticulosidade se há-de dissolver. E tu sem o hábito não existes, nem tu sem o dever, nem tu sem a consciência. A D. Úrsula que passou a vida a esfregar, a polir, a limpar os moveis reluzentes, deita-os todos a esmo do terceiro andar à rua. — Adoro-a mas não posso separar o interesse do amor — não posso separá-los. Está dito e redito. No fundo do meu pensamento, bem no fundo de meu horrível pensamento, uma outra ideia luta, avança e não a posso arredar. Estraga-me a vida toda. — O mundo moral está com escritos e reduz-se a uma loja escura, com teias de aranha no teto.

Vemo-nos! vemo-nos que é o pior! Porque na verdade eu nunca me tinha visto nesta horrível nudez sem arrepanhar à pressa os vestidos. Eu metia-me medo. E agora vemo-nos! vemo-nos! Todos os seres são temerosos. Mesmo grotescos são trágicos. Há neste trapo que criaste, nesta coroa de lata que foi a tua vida, não sei o quê que sua espanto. E dor! e dor na tua dúvida ridícula, no vislumbre, no minuto de sonho que entrevi nos teus olhos. Este momento trágico, esta pausa, este horror em que cada um se vê na sua essência, em que cada ser se encontra sós a sós com a sua própria alma, reduzido sem artifícios à sua própria alma, só tem outro a que se compare, aquele em que cada um vê a alma dos outros. Porque, por melhor ou pior que tenhamos julgado os outros, vimo-los sempre através de nós mesmos.

O que aí está é temeroso, seres estranhos; seres que, se dão mais um passo, nem eu nem tu podemos encarar com eles. Andam aqui interesses — e outra coisa. Com mil palavras diversas e ignóbeis, mil bocas que te empurram para a infâmia — outra coisa. Tens de confessá-lo. Não é a consciência — não é o remorso — não é o medo. É uma coisa inexplicável e imensa, profunda e imensa, que assiste a este espetáculo sem dizer palavra — e espera... És imundo, és a vida. Não te sei definir, não te compreendo. Se te levo até ao último extremo perco o pé... Não sei até onde vai o meu horrível pensamento. Até aqui tinha limites, agora nem o meu pensamento nem o teu encontram limites. Matar ou deixar de matar é tudo a mesma coisa. É tudo inútil. Agora não! agora não me quero ver nem te quero ver! Estamos no céu; e no inferno, D. Idalina e a langonha. Estamos no céu e no inferno, Anacleto, e tu ainda te enroscas na tua inalterável correção. Não te desmanches! Estamos enfim todos no céu e no inferno, e todos à uma percebemos que a vida foi inútil. É com gritos que a D. Leocádia reconhece que o escrúpulo não existe; é com espanto que ela percebe que o bem que fez foi inútil; é com horror que a D. Leocádia compreende que só lhe resta o vácuo. A inteiriça D. Leocádia berra no infinito, depois de se desfazer de todos os sentimentos falsos: — Mas eu cumpri sempre o meu dever! — Há-de te servir de muito! — E aqui te encontras diante desta coisa que não foi feita para ti, aqui estás tu atirada de repente para uma ação sem limites, com os cabelos em pé, — tu D. Leocádia e o infinito; tu D. Leocádia que moravas entre quatro paredes a rever salitre, e agora tens de morar no céu e no inferno. O drama é tu, D. Leocádia, não te poderes desfazer da outra D. Leocádia; o drama supremo é tu seres ao mesmo tempo, D. Leocádia 29-3.º-D e D. Leocádia Infinito. — Reduzi-me a isto e reduzi-a a isto! Cheguei ao ponto! cheguei ao ponto! Cheguei ao ponto em que te vejo cara a cara e percebo que tudo é absurdo e inútil! Talvez o meu dever fosse fazer o mal. Atrás de mim, atrás de ti, andavam duas figuras, que, por mais esforços que fizessem, nunca se chegaram a entender! — A tua vida, a minha vida, foi um perpétuo inferno. Tiveste um filho e apegaste-te mais ao teu dever que ao teu filho. Dedicaste-lhe as tuas economias. Por o dever esqueceste interesses e paixões, e na tua alma solitária só coube o exaspero e o dever. Mais nada. E à medida que a vida te inutilizou as ambições e te gastou os sonhos, mais te apegaste a essa palavra, que foi a única razão da tua existência. Também eu! também eu! Fechaste-te com ela no silêncio gélido da vila, onde, nas noites sem fim, se chegava a ouvir o contato das aranhas devorando-se com volúpia no fundo dos saguões. Todos os dias pesaste o pão que lhe deste, mas deste-lho. E, tendo perdido tudo, só o dever te restou no mundo — e a órfã, a quem já não consegues reconhecer as feições. A mesma coisa nos dilacerou a ambos, a mesma coisa dolorosa nos encheu de cólera, à medida que caminhávamos para a velhice e para a morte. E aqui chegaste, aqui cheguei, ambos ridículos e amargos, saindo duma luta desesperada com outra coisa que nunca quisemos ver. Ambos grotescos e de pé, tu e eu, eu e tu, com o teu broche, onde o mesmo sujeito de suíças — lembrança do primeiro matrimônio! — não tira de mim os olhos aguados de peixe. Ambos tendo atravessado numa tábua o mais trágico de todos os mares, e no fundo a mesma dor, no fundo o mesmo fel, no fundo o mesmo esforço para sustentarmos sobre a cabeça esta abobada que não existe. O que não queríamos ver era a noite... — Vontade tinha eu de fazer o mal, o que me não atrevia era a fazê-lo. — Oh D. Leocádia dá um passo, outro passo ainda e mergulhas na beatitude como quem cumpre um destino. — Cessou o debate. — Não fales mais, D. Leocádia. Está tudo dito...

A figura que aí vem mastiga em seco, com uma camada de verde e outra camada de sonho. A figura que aí vem, dum egoísmo concentrado, e a que aderem ainda os mil e um nadas da sua existência anterior de molusco, avança hirta para mim, inteiriça como uma barra de ferro. Ainda cheira a mofo, mas os olhos entranham-se-lhe num vasto panorama inexplorado. Vê para dentro, cada vez mais sôfrega e o seu sonho não tem limites. O mal não tem limites. Tem diante de si mil anos e um dia para essa absorção dolorosa e trágica. Abarca o mundo. Ó D. Leocádia agora é que tu chegaste ao amago! É um conflito entre ti e os outros mortos, uma luta num tablado que abrange o universo. Daí o seu prestigio — daí o imenso cenário que se desdobra diante da D. Leocádia absorta nesse panorama sem limites...

Só há no céu e no inferno outro espectro pior. É este ser sem nome, pedra e desespero, noite e desespero, que se imobiliza na inutilidade de todos os esforços.

Todos gritam de desespero no céu e no inferno. Confundem-se mil bocas, as coisas mais altas e as coisas mais reles. Aqui está a vila toda, virada do avesso, os ridículos sem vergonha do ridículo e os infames lambendo a infâmia. Aqui está a ilusão — e aqui está em pelo a D. Possidônia, que ainda conserva na cabeça o chapéu de plumas. Aqui está a ordem e aqui está a desordem, as palavras inúteis e a inútil burandanga, toda a formula, todo o calvário da vida para subir até a morte — e aqui nos vemos uns aos outros tal qual somos, admiráveis, obscenos, reles, todos da mesma lama e com as mesmas chagas. — Eras tu força estúpida e cega que me enchias de ilusão para poder suportar a vida? Eras tu o interesse, eras tu o amor?... Aqui estão duma banda as formulas (e só agora compreendo a sua necessidade) aqui está do outro lado a vida; aqui está o que se chamava a honra, e o que se chamava o dever. Ó amigos eis aqui todo o nosso grotesco, todas as nossas ambições, todas as nossas vaidades — e com elas o absurdo e a logica. E eis aqui o meu drama e o teu drama. Os grandes desmoronamentos, a cólera duns e o terror dos outros. Eis aqui o céu e o inferno, o máximo de ilusões e a ausência completa de ilusões. Aqui as vaias, o sarcasmo, os apupos, os grandes insultos e a suprema mixórdia. Desmoronou-se tudo, todas as fachadas e todos os artifícios. Gritos, mais gritos, mais sarcasmos e insultos. — Como eu te reconheço! e a ti! e a ti! — E a ti que és a figura silênciosa que há tanto tempo me persegues, calada e triste, o que eras a pior. Tu que curvas a cabeça, sem nunca te pronunciares, tu que sofres quando eu sofro, que te envolves em silêncio quando persisto neste caminho doloroso — como te reconheço! — Dá gritos! podes gritar à tua vontade!

Agora estou nu e toda a mentira me é impossível; agora estou nu e todas as palavras são inúteis; agora estou nu diante da imensidade e não posso ao mesmo tempo com o céu e o inferno. Agora é pior, agora tanto faz resistir um dia como um século. Agora é pior: não nos podemos ver. Como dois amigos que se encontram passados muitos anos, perdemos todos os pontos de contato. Estamos aqui a representar: a verdade é que não nos podemos ver. Eis-nos bichos em frente de bichos.

25 DE MAIO

Eis enfim a vila sonho, a vila fantasma. Reparem nas pedras e no que elas exprimem, na alvenaria e castanho assentes com outro destino... Ruas lajeadas, recantos onde nunca entrou o sol. Paredes mestras. Silêncio e umidade até à medula, gestos lentos, hábitos regrados. Uma rua desce até à igreja de cantaria lavrada. Um prédio enorme avança sobre a ruela onde os passos ecoam. Cresce aqui uma vegetação especial de sepulcro, e a sombra absorvida pelas muralhas da Sé exala-se em bafo passado um século. Os alicerces são temerosos, as traves duma casa davam para a construção dum bairro. E tudo isto se entranhou de salitre, de interesse e de ódio. Em tudo isto há uma mescla de inutilidade, de fé e de sonho. Tudo isto está cimentado para séculos. Cada barrote foi pregado com um destino, cada bloco metido na terra para se lhe erguer em cima não uma parede, mas uma ideia, uma vida, uma alma — tudo isto tem uma camada de bolor e se impregnou de desespero. Até os sepulcros foram construídos para a eternidade. A pedra depois de talhada, é uma expressão. Entro na catedral. Silêncio e um cheirinho a floresta apodrecida. As lajes estão gastas dum lado pelos passos dos vivos, do outro pelo contato dos mortos. Tudo aqui gira em torno da mesma ideia... A pedra esboroa-se, mas eu contemplo-a viva, com um povo de estatuas em cima, com um povo de mortos em baixo. Nos alicerces uma geração, outra geração, todos apodrecendo juntos na mesma terra misturada e revolvida. A parte exterior é maravilhosa, a parte subterrânea é mais maravilhosa ainda. É a única raiz que se conserva intacta.

Aqui não andam só os vivos — andam também os mortos. A vila é povoada pelos que se agitam numa existência transitória e baça, e pelos outros que se impõem como se estivessem vivos. Tudo está ligado e confundido. Sobre as casas há outra edificação, e uma trave ideal que o caruncho rói une todas as construções vulgares. Sob um grito outro grito, sob uma pedra outra pedra. Debalde todos os dias repelimos os mortos — todos os dias os mortos se misturam à nossa vida. E não nos largam.

Eis a vila abjecta, a vila banal onde se praticam todos os dias as mesmas ações e se repetem todos os dias os mesmos gestos... Aqui só há um pensamento fundamental: fugir à morte, protestar contra a morte, que é a mais viva de todas as realidades, que é talvez a única realidade. Protestar, contra as forças desabaladas, pelo sonho, em espírito ou em pedra, que se erga diante do Destino e desafie o Destino. Através da paciência e da mentira, todo o esforço do homem tende para outro homem, para o homem ideal, para a figura de sonho, que há-de ser um dia a criação dos vivos e dos mortos — o sonho realizado — o universo realizado. A vida ideal, a vida artificial, como a do granito, representa a mesma tentativa da mentira contra a verdade e a obstinação sobre-humana dos mortos para suprimirem a morte.

A vida em si é o mais profundo de todos os horrores, é o esforço inconsciente da larva repetindo as mesmas ações instintivas, que o destino nos impõe. Tudo que nos rodeia é monstruoso; o que nos rodeia de negrume vai desabar sobre nós, reclamando dor, reclamando gritos e sustentando-se de gritos. Separa-nos um fio. Só com a condição de não vermos a realidade é que podemos viver. Para a esconder erguemos a catedral imensa, reconstruímos o universo todos os dias pelo esforço dos vivos e das gerações passadas. E toda esta mentira trágica a levantamos até ao céu a poder de palavras e com a força magnética das palavras.

Não só os sentimentos criam palavras, também as palavras criam sentimentos. As palavras formam uma arquitetura de ferro. São a vida e quase toda a nossa vida — a razão e a essência desta barafunda. É com palavras que construímos o mundo. É com palavras que os mortos se nos impõem. É com palavras, que são apenas sons, que tudo edificamos na vida. Mas agora que os valores mudaram, de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzam a cólera, o instinto e o espanto.

Mas se tudo são palavras e de palavras nos sustentamos, o que nos resta afinal? Gritos em frente de gritos, instintos em frente de instintos. Fica a morte à solta e o instinto à solta. Ficam os mortos de pé — a coorte que não queríamos ver, erguida, como o vento ergue a poeira, até aos confins da vida.

A D. Adélia não existe, o que aqui está vem de muito longe. Está aqui a paciência com um xale, a mentira com uma cuia de retrós — estão aqui espectros. O que aqui está, com o infinito em cima e o infinito em baixo, são fantasmas. Todos praticam as mesmas ações banais entre a vida e a morte, mas eu vejo o riso sem boca e ouço o grito de dor, enquanto as máscaras se transformam e a matéria se decompõe. Eu vejo o que há dentro deste ser, que não tem limites, o que há dentro deste ser de real e verdadeiro. Cada um assume proporções temerosas. Caem lá dentro palavras, sentimentos, sonho — é um poço sem fundo, que vai até à raiz da vida. à superfície todos nós nos conhecemos. Depois há outra camada, outra depois. Depois um bafo. Ninguém sabe do que é capaz, ninguém se conhece a si próprio, quanto mais aos outros, e só à superfície ou lá para muito fundo, é que nos tocamos todos, como as árvores duma floresta — no céu e no interior da terra. Do mais baixo ainda veem terrores, ânsias, desespero...

Agora o homem existe em toda a sua plenitude. Anda hoje no universo como andou sempre no universo. Para ele não há passado nem futuro porque ele é o passado e o futuro. A vila tomou outras proporções e sente-se noutras mãos. Quem lhe dera ser insignificante e grotesca! quem lhe dera não ver! Para não te aturar vida sôfrega e doirada, tive de me revestir de casca como as árvores, porque no princípio todos fomos fantasmas. E agora não sou eu quem falo — são eles que falam! O que as figuras representam vem do fundo dos fundos — o que elas têm de transitório e o que elas têm de temeroso, desde o homem que não bole junto das fazendas petrificadas, até à impenetrável D. Úrsula, que remói entre dentes o pavor. O que me parecia gelatinoso é uma força imensa, este hábito ridículo um princípio de sonho. A paciência e a mentira são aspectos da dor, e a bisca joga-se entre o pélago e o pélago. Os penantes usados, as cerimônias grotescas, passam-se entre fantasmas e fantasmas, num ciclone de desespero e gritos. Cada boca fala por outras bocas, e a D. Penarícia, coluna de Israel do fel e vinagre, é uma figura tremenda. Todos os dramas têm a mesma assinatura — Shakespeare. As ações veem dos confins dos séculos e o próprio mal não é um ato individual. O crime é sempre a ação impulsiva ou premeditada dos mortos. Para praticar um crime é preciso revolver camadas de fantasmas. Desperta ecos adormecidos até não sei que profundidades. Põe em debate este mundo e o outro mundo, e daí a fascinação que exerce em todas as almas. A vasa não na jogam só figuras somíticas: de cada ser paciente e sórdido arranca-se outro ser ilimitado. Vejo no escuro as outras figuras atentas sobre o jogo... Estão aqui as velhas amarradas por quinhentos anos à mesma mesa da bisca. Está a inveja, e a inveja esverdeada torce-se sob o olhar da majestosa Teodora. Está a paciência, e a paciência sorri diante da majestosa Teodora. Está aqui a mesa de jogo projetada no infinito, com seres que se não podem ver, e que hão-de coabitar acorrentados por quinhentos anos. há ocasiões em que vomitam as piores injurias; às vezes torcem-se e soltam ais sobre ais represos. — Jogo! — E a bisca segue pela eternidade fora. — Corto! — Também eu atravessei o inferno e tenho saudades do inferno! — E a majestosa Teodora parece calcinada pelo fogo do inferno. É o momento decisivo, quando, de pé, em roda da mesa, onde foram insignificantes, se veem umas às outras. Pior momento é quando a si próprias se veem, quando se chocam como ferros, e seus olhos adquirem tal percepção que não são só elas que olham, quando ao espanto se junta espanto e não são só elas que falam, mas muitas outras vozes, e não só as suas figuras gesticulam mas muitas outras figuras. Um momento, um século, e ei-las até aos confins. Todas as bocas pregam de cada vez mais fundo...

Cada boca se abre no escuro como se fosse o abismo; as bocas falam por muitas bocas que não tem nada de humanas e que moem e remoem com escárnio e baba; por bocas franzidas só pele e espuma; por bocas sem dentes; por bocas ascorosas que tentam ser bocas e que escorrem veneno; por bocas que se desesperam de ser bocas, para se fazerem ouvir.

E o candeeiro escorre o mesmo petróleo sobre elas e sobre as figuras invisíveis que arfam de desespero até à raiz da vida...

Nesse instante vemos todos os seres extraordinários que não tinham entrada no mundo; nesse instante toda a vila está de pé, a vila trágica, com os vivos e os mortos e o drama profundo das almas que toca no céu e no inferno. Eis a vila como não torna a aparecer outra na terra, e que dura um minuto e um século. Cada figura escorre dor, não só a dor própria, mas a do tumulo, cada figura é um ser de espanto. Até tu, no relâmpago antes de te curvares sobre a meia que já tem vinte metros de comprido, ó prima Angélica, ó figura tremenda de inépcia, que também achaste sabor à vida e logo te fechaste com ele na escuridão cerrada da idiotia — até tu, pela maneira como apertaste a mandíbula, pelo olhar que se fitou no meu olhar e veio da espessura dos séculos, descobriste não sei que mar nunca dantes navegado, não sei que dor transida e doirada, não sei que mistério que não fala, que não pode falar, mas que está, real e patente, aqui ao lado e na nossa companhia...

Há — sentimo-lo! vemo-lo! — forças que tateiam para lá e aumentam o nosso desespero. É talvez Deus que nos quer falar e que não pode, ou que fala e não o entendemos.

 Não são só os grandes fluidos que se entrechocam sobre a vila, há outra coisa que a todos os momentos nos reclama... E é um milagre que toda esta arquitetura — que não existe! que não existe! — se sustente de pé e no vácuo, baseada em palavras e sons, e que joguemos a bisca de três na encruzilhada da vida e da morte. Mais: é um milagre muito maior ainda que consigamos cerrar os ouvidos à força que bate estonteada à nossa volta e que faz esforços desesperados para comunicar conosco. Não tem boca para falar, mas tenta, numa dor muda, fazer-nos compreender algumas noções que transformariam o universo. às vezes estamos por um fio... — perdemo-nos logo numa escuridão que tem léguas de distância. Bom é cerrarmos os ouvidos. Se chegássemos a entendê-la tudo isto desaparecia no ar...

Chegamos ao ponto! chegamos ao ponto em que não nos distinguimos na floresta apodrecida! A vila é imensa, as figuras são imensas, só dor e sonho — jacto que vai de polo a polo e onde não existe nem vida nem morte. Na floresta putrefata o tempo e o espaço desapareceram: só existem seres estranhos e árvores estranhas. O que nós víamos eram sombras projetadas num muro. Mais um passo e todos saímos doirados deste mergulho no sonho — outro passo ainda e só existe uma força frenética e imensa, desesperada e imensa...

Agora é que ela anda à solta! agora é que ela anda à solta!

 

A ÁRVORE

15 DE SETEMBRO

Preciso aqui duma árvore... Uma árvore que dê sombra e ternura — uma velha árvore carcomida. Nunca pude passar sem essa sombra inocente. Meio morto de cansaço e de mentira deito-me ao pé dela e renasço. Todos a aproveitam — para o lume — para traves — para o caixão.

É filha de cavadores e neta de pedreiros: obstina-se e por fim afaz-se.

A dor afeiçoa-a. Aceita tudo: a vida e a morte com a mesma resignação. E depois desta vida aceita ainda outra com o purgatório e o inferno.

Pouco e pouco a ternura torna à supuração. A filha desapareceu. Sabe que a D. Hermengarda, pobre e caquética, para num hospício, e vai lá buscá-la. Caso extraordinário: vê mais naturalmente a desgraça da filha do que a pobreza da D. Hermengarda. É a sua senhora. Limpa-lhe a baba e cata-lhe o piolho; besunta-a de pomada, e nos seus olhos de cão há uma inexprimível serenidade. A D. Hermengarda ainda tem exigências. Manda e a Joana obedece. Melhor: trabalha para lhe dar de comer. Está afeita. Faz mais: a Joana agora rouba. Ella, que sacrificou a filha, rouba seis vinténs, doze vinténs... De dia carrega baús, à noite o quadro é este: a venerável D. Hermengarda numa cadeira de rodas, com um resto de quico na cabeça, e a Joana extática a satisfazer-lhe as impertinências.

Não ouve, creio mesmo que não pensa. Os seus gestos são conduzidos por outras mãos, atrás dela há outras figuras até à raiz da vida, que embalaram berços, choraram sobre a desgraça e tomaram para si o quinhão mais pesado. Até já nem é Joana que fala, mesmo para contar a sua história. Ou só, ou quando encontra alguém, a Joana divaga:

 — E vai eu disse-lhe... Fui ter com a filha e vai eu disse-lhe: — Deita-me aí pão quente numa malga com meio quartilho de vinho. — E vai ela disse-me: — Tenho aí pão velho, não enxerto o outro. — E vai eu disse-lhe: — As bagadas que tenho chorado caiam sobre ti.

Não sabe mais que dizer. Aquela fastidiosa perlenga ouviu-a a outras velhas e vem do princípio do mundo: aplica-a para exprimir a sua dor. Se lhe falam dos ladrões finge que não entende. Se insistem, a Joana responde com olhos de pasmo:

 — Os ladrões davam-me uma tigela de caldo.

Não soube nada na vida, não foi nada na vida, não percebeu nada da vida. Oh vida denegrida, monótona e sem sabor, de louça para lavar, de carretos para fazer, afundaste-a, esfarrapaste-a, amarfanhaste-a, engrandeceste-a!...

Diante do universo é menos que um caco, é um pobre coração usado pela dor. O último gesto que a Joana faz, é o seu primeiro gesto, mas esboçado apenas, como quem segue um fio já muito tênue de sonho que não tem força para levar até ao fim, o de aconchegar uma criança ao peito — gesto que vem de séculos em séculos, desde o início do mundo, repetido pelas sucessivas imagens de mulheres já desfeitas em pó, repetido no futuro por milhares de seres incriados.

O trabalho da vida é persistente e oculto. Gasta, desgasta, como uma pedra sobre outra pedra Não é só por fora que criamos rugas: por dentro a usura é imensa. Só a Joana conserva a ternura intacta. O que havia a dizer era como se formou esta alma e eu não sei dizê-lo. Por fora farrapos, por dentro vida. O tojo mais bravio deita mais flor. Um fio d'água que reluz prende-me horas e transforma as pedras. A ternura da Joana modifica-lhe a fealdade, pega-se-lhe às mãos e aos trapos que a vestem. O que eu não dou é a expressão, o que eu não dou é a luz. Afundo-a, amolgo-a. E no entanto a figura impõe-se-me pela expressão máxima da dor. A Joana debruça-se sobre uma grandeza com que não posso arcar. Resiste, luta e atreve-se. Aumenta. E também só ela no mundo não se importa de morrer.

Talvez a morte seja para ela a vida.

Esta luzinha viaja há muitos milhares de anos. É como a faúlha duma estrela, perdida na imensidão, que lhe custa a chegar à terra. E caminha sempre, humilde e obstinada, através do infinito — sempre. Por isso ela teimava: — O menino está vivo!... — Por vezes parece que se apaga. Reaparece através da obscuridade espessa acumulada há séculos. Talvez toda a grandeza desta mulher esteja nisto: é que ela é conduzida por uma mão enorme. A sua ternura é instintiva, a sua humildade é instintiva... Pare. Pare a desgraça. Cria. É a velha que tira a codea à boca para a dar aos netos. É a velha que encontraste há bocado no caminho, do olhos aguados. Cada vez maior; traz este carreto à cabeça desde o princípio do mundo, e ainda o não pôde pousar. Embala os berços. Pega nas crianças ao colo. Desde o princípio do mundo que estas mãos ásperas amparam. Não é uma figura — é uma serie de figuras...

16 DE SETEMBRO

O desabar da chuva lá fora di-lo-íeis não exterior, mas ligado ao teu próprio ser: são lágrimas que tenho ainda para chorar. Da escuridão opaca ressurgem e rodeiam-me os mortos: o montante que rachou a alvenaria, e os cavadores que lavraram a mesma terra e curtiram a mesma dor. Este cheiro a pobre, estes traços corroídos pelas lágrimas, estes tipos amolgados pela desgraça, povoam-me a noite toda e dizem bem com o desabar ininterrupto de lágrimas lá fora. Outra coisa exprimem as figuras denegridas que vão aparecendo por trás da figura da Joana...

Some-se a mulher da esfrega, e primeiro vem um velho que mói e remói obstinado uma codea de pão. O pai de Joana tinha oitenta anos quando morreu. Deram com ele caído sobre o lar, levaram-no em braços para a enxerga. Quatro paredes, duas caixas de castanho, e junto ao catre, junto ao peito, a pedra seca, o granito. Uma mulher desata aos gritos debruçada sobre o catre:

 — Vocemecê conhece-me? vocemecê conhece-me?

Os olhos não se lhe despegam da arca. Ao fim da vida tem de seu o alvião, a enxada e a manta no fio. A cabeça branca mirrou, a pele é como a crosta que calcamos. Tem não sei quê de raiz, tem não sei quê de tronco, afora os cabelos brancos que o tornam humano. O tempo revestiu-o da mesma cor dos montes. Desabituou-se de falar, e pela grandeza e pelo silêncio só o comparo à pedra. Tudo isto foi pedra. Ele e os seus, a poder de anos, moeram-na. Sua vida está ligada à vida da terra. Criou-a. à terra só falta comê-lo.

Terra, terra negra e ingrata, terra de detritos de rocha e mortos, poeira de árvores, suor de pobres, terra que tudo gastas e consomes, há muito que o fizeste teu igual. Nem sei distinguir-vos, mãos como pedras, pele como a tua pele.

A terra come e desgasta. A terra apega-se e encarde. Deforma-o. De revolver a terra criou cascão e um olhar profundo. Só o comparo a Cristo, a um Cristo que tivesse vindo até à velhice, de desilusão em desilusão e de desamparo em desamparo.

Na noite negra desfilam outras figuras. Um chega e diz: — O corpo pede-me terra: — A pobre, com um saco de estopa às costas, espera a esmola e reza. Agora este... Este ressequiu como os morros de pedra, como a laje compacta. A pedra pega pedra. As mãos tem terra nas rugas desde que lidaram com terra. Curtiu anos de fome e de terra entranhada na pele, entranhada na alma.

O casebre é de pedra, é de pedra o lar, e arrima-se dum lado ao coração do monte. Por teto uma trave e colmo, por chão terra batida. A casa também entra aqui. Pedras, ternura, aflição, tudo no mundo deita as mesmas raízes. Uma casa não é só alvenaria: é dor e vida e morte. A árvore também aqui entra: a árvore é uma construção viva.

A mãe ficou prenhe. Eram tão pobres que, para o que havia de nascer, só amanharam um paninho, duas camisas e um lenço. Vieram as dores e nasceram dois gêmeos. Repartiu as camisas, rasgou o lenço e o pano ao meio, e, no casebre perdido, entre a natureza bruta, a mulher pôs-se a chorar dando um seio a cada um.

Mais outras figuras se destacam ainda da noite. São de terra e pedra, são figuras desumanas. Remoem o pão devagar, e o fumo sobe pela parede e enegrece-a, camada atrás de camada. Aquecem-se ao lar. A pedra é um calhau arrumado à parede, uma lasca negra e ressequida. E agora, noite funda, todos os mortos estão ali presentes e atendem... A pedra tosca do lar, a pedra salitrosa à volta da qual se juntam, é muito mais que um calhau. A pedra é sagrada.

Está ali o montante que acometeu a pedra do monte dura como aço, e dias após dias curvou-se sobre a fraga e meteu-lhe o ferro até à raiz. Um deles cavou e escavou o sobrado e dorme com a cabeça encostada ao granito. A terra desgasta-o, a terra imprime-lhe relevo e caráter. Cerra-se-lhe a boca, greta-se-lhe a pele. Ele e o monte suportam a mesma dor, que não sabem exprimir.

A cor é a cor da fome, o frio o da pobreza. Gasta-o e desgasta-o o uso da vida e a terra entranhada.

É o cavador... Tudo que era exterior puiu-o no cavador a terra, na mulher as lágrimas. Ficou só a expressão descarnada, como nos montes, como na própria casa onde as coisas são simples e eternas. Pariu-lhe ali a mulher, entrou-lhe lá dentro a morte. E as palavras reduziram-se também a esqueleto e têm o mesmo emprego sóbrio: nem o cavador nem a fêmea têm que dizer um ao outro. Só o morro consegue deitar um fio d'água, que lima alguns palmos de erva. Concentrou-se em muda aflição para produzir essas gotas geladas e um lameiro verde.

O escuro gera uma serie infinita de mulheres... Há em todas um momento de ternura antes da terra se lhes entranhar. Aos trinta anos a fêmea encardida está velha. Está velha de fome. Está velha de trabalho. Ella carrega. Ella levanta-se de noite para coser a fornada ou para ir à vila. Ella quando tem um dia de folga vai ganhar seis vinténs de jornal. Ella pesa o pão e reparte-o, ficando com o quinhão mais pequeno. Com isto gasta-se. Nasceu com a pobreza, dormiu com a desgraça, e com os anos uma figura se foi sobrepondo a outra figura. Apagam-se linhas, salientam-se traços, e a mesma cor humilde reveste a mulher e a alvenaria. Ella e a pobreza, ela e o dia de hoje, o dia de ontem e o dia de amanhã; ela e os filhos para criar, os carretos para fazer; ela e a vida, todos os dias se vão amalgamando, lutando, empurrando com desespero, até se criar esta figura e se apagar a outra, gasta pelo uso da dor e pelo uso das lágrimas.

Sozinhas lutam, sorriem, amparam. Velhas e exaustas espalham ainda ternura. Curvam-se sobre os berços, vão pedir pelos homens. E sobre isto ignoram-se.

 — Mãe — pergunta a filha mais moça — mãe que coisa é casar?

E ela responde como sua mãe lhe respondera:

 — Filha, é fiar, parir e chorar.

A vida é uma coisa séria e por isso emudecem. Guardam para si o bocado mais amargo, a tarefa pior de fazer. Se choram, choram baixinho para que as não ouçam chorar, ali nas quatro paredes de alvenaria, ali onde as trouxeram pela mão, entre as coisas familiares, o forno, o lar, os potes, a enxerga... Na enxerga onde morreu a mãe, nasceram também os filhos.

Há séculos que a mesma série de figuras repete os mesmos gestos. Há séculos que a mesma mulher esfarrapada pare e o mesmo cavador revolve a terra. Há séculos que comem o mesmo pão e a mesma usura os leva até à cova. Há séculos que choram as mesmas lágrimas e o monte deita a mesma água. As mulheres trazem os pequenos ao colo e falam-lhes como lhes falaram a elas. O que se gasta, o que a dor e a vida consomem, é a parte externa: as lágrimas renovam-se sempre. As leiras dão sempre o mesmo pão escasso, no monte não se estanca o fio d'água, que, como o fio de ternura reproduz a vida e remoça sempre quatro palmos de erva. A mulher, esta ou outra, chora, debruçada sobre a masseira, pare com dor no mesmo catre, morre com dor na mesma enxerga.

E no fim de todas, apagada e sumida, surge outra, a serva. Do escuro saem gemidos. A casa desapareceu: só correm lágrimas. Sinto uma mão que procura a minha mão, e uma voz que me diz ao ouvido:

 — Escuita! escuita!

É a criada que serve o cavador desde pequena, a pobre que só tem de seu a saia que traz vestida, que mistura lágrimas às minhas lágrimas.

 — Escuita! escuita!

E aquece-me as mãos com bafo.

E se remexo o braseiro — vejo outras figuras, outras ainda, até ao início da vida. Estão ali o avô, os avós, os jornaleiros. A um, tão entranhado de terra, mal o descortino. E atrás destes, ainda outros, mudos e disformes — outros como terra — outros como árvores decepadas — outros como fome e que mal sabem exprimir-se — outros a quem só se veem as mãos nodosas — e a serie sumida de mulheres, bronco e dor, que a vida consumiu, e que procuram debruçar-se para ouvir... Tão longe! tão longe!... Mal descortino já a luz tão pequenina e humilde, mal distingo a vida na treva condensada — uma luzinha de candeia, que há séculos vem de mão de mulher em mão de mulher... Tudo volta à cinza. Diante de mim está sozinha a Joana, que me mostra as mãos roídas, as mãos enormes, as mãos só dor...

O mundo é feito de dor — a vida é feita de ternura.

 

PAPÉIS DO GABIRU

20 DE NOVEMBRO

Chove um dia, outro dia, sempre... Amanhece um dia nublado, outro dia alvoroce negro e áspero. O vento abala a pedra sobre que é construído o casebre. O inverno tem a sua voz própria, a sua cor, o seu vestido em farrapos com que agasalha os montes deixando-lhe os ossos de fora. Mas o inverno é sonho. Só agora o compreendo. É sonho concentrado: sob esta casca ressequida está uma primavera intacta. Esta voz clamorosa é a voz dos mortos. Uma pausa, a prostração da tempestade, e depois redobra o clamor... Andam aqui as suas lágrimas... Na sufocação reconheço esta voz que me chama. E depois a tempestade, novos gritos, a escuridão profunda...

Lá andaremos todos não tarda! lá andaremos todos não tarda!

E ouço sempre a mesma voz:

«Que frio o outro mundo! Que impassibilidade a do outro mundo!

Saudade, saudade de tudo, até do fel, saudade de te não sentir ao pé de mim. Tenho saudade da vida. Só poder aquecer-me ao lume, só sentir o lume neste inverno sem limites, neste frio de morte — sem outra primavera! O que a vulgaridade sabe bem! o que a matéria sabe bem!

Não vejo. Ceguei.

Disperso-me, e por mais esforços que faça, sinto-me desagregar: perco pouco e pouco a consciência de mim mesma. Sou ainda ternura e pouco mais. Já não tenho lágrimas.

Quem me dera a desgraça!

E uma pena da vida! uma saudade da vida! uma tristeza de não poder misturar-me à vida! A vida — e um cantinho do lume, a vida banal, a vida comezinha... Tenho saudades do muro a que costumava queixar-me.

Vive devagarinho. Aquece-te à réstea do sol como quem nunca mais tornará a aquecer-se; perde todas as horas a trespassar-te da vida.

Deixa que sobre ti caia o pó de oiro. Vive-a.

Tu és a nuvem, tu és a árvore. Enche a consciência de todas estas coisas, porque não tardarás a perdê-la.

Vive — não tornas a viver. Põe de acordo a tua alma com a pedra, extrai encanto do céu e da miséria. Pudesse eu gritar! pudesse eu ter fome!

Só agora dou pelo sabor das lágrimas.

Sorri, esquece, dorme, sonha...»

21 DE NOVEMBRO

Não me compreendo nem compreendo os outros. Não sei quem sou e vou morrer. Tudo me parece inútil, e agarro-me com desespero a um fio de vida, como um naufrago a um pedaço de tábua.

Nem sei o que é a vida. Chamo vida ao espanto. Chamo vida a esta saudade, a esta dor; chamo vida e morte a este cataclismo. É a imensidade e um nada que me absorve; é uma queda imensa e infinita, onde disponho dum único momento.

Talvez o mundo não exista, talvez tudo no mundo sejam expressões da minha própria alma. Faço parte duma coisa dolorosa, que totalmente desconheço, e que tem nervos ligados aos meus nervos, dor ligada à minha dor, consciência ligada a minha consciência.

Estou até convencido que nenhum destes seres existe. Este fel é o meu fel, este sonho grotesco o meu sonho. Estou convencido que tudo isto são apenas expressões de dor — e mais nada.

Nós não vemos a vida — vemos um instante da vida. Atrás de nós a vida é infinita, adiante de nós a vida é infinita. A primavera está aqui, mas atrás deste ramo em flor houve camadas de primaveras de oiro, imensas primaveras extasiadas, e flores desmedidas por trás desta flor minúscula. O tempo não existe. O que eu chamo a vida é um elo, e o que aí vem um tropel, um sonho desmedido que há-de realizar-se. E nenhum grito é inútil, para que o sonho vivo ande pelo seu pé. A alma que vai desesperada à procura de Deus, que erra no universo, ensanguentada e dorida, a cada grito se aproxima de Deus. Lá vamos todos a Deus, os vivos e os mortos.

O mundo é um grito. Onde encontrar a harmonia e a calma neste turbilhão infinito e perpétuo, neste movimento atroz? O mundo é um sonho sem um segundo de paz. A dor gera dor num desespero sem limites.

Eu não sou nada. Sou um minuto e a eternidade. Sou os mortos. Não me desligo disto — nem do crime, nem da pedra, nem da voragem. Sou o espanto aos gritos.

Cada vez fujo mais de olhar para dentro de mim mesmo. Sinto-me nas mãos duma coisa desconforme. Sinto-me nas mãos duma coisa embravecida pela eternidade das eternidades. Sinto-me nas mãos duma coisa imensa e cega — duma tempestade viva.

Toda a vida está por explorar: só conhecemos da vida uma pequena parte — a mais insignificante. E o erro provem de que reduzimos a vida espiritual ao mínimo, e a vida material ao máximo. O homem é um S. F. ligado a todo o universo.

Deus é eterno com a máscara sempre renovada. A alma há-de acabar por se exprimir, Deus, que olha pelos nossos olhos e fala pela nossa boca, há-de acabar por falar claro.

 Está tudo errado. Só há um momento em que o compreendemos. Mas nesse momento já não podemos voltar para trás. É quando, fazendo ainda parte dos vivos, fazemos já parte dos mortos.

Não só a sensibilidade é universal — a inteligência é exterior e universal.

O universo é uma vibração. A vida é uma vibração na vibração.

A matéria também existe em estado de nublosa — isto é um estado de dor.

Toda a teoria mecânica do universo é absurda. Daí a alguns anos todos os sistemas serão ridículos — até o sistema planetário.

O sonho completo é o universo realizado.

23 DE NOVEMBRO

Há dias em que me sinto envolvido pela morte e nas mãos da morte. Há dias em que não distingo a vida da morte, e agarro-me como um naufrago a este sonho...

...Cheguei ao ponto, Morte. Cheguei onde queria. Tu és o meu sonho frenético. Não há outro maior. Cheguei ao ponto em que te não distingo da vida. Tu és a vida maior. Por vezes vejo o grande mar, onde a lua deixa o seu rasto, caminhar direito a mim. Vagueia a floresta adormecida e avança desenraizada para mim... Cheguei ao ponto, Morte, em que não me metes medo. Aceito-te. De ti me vem a vida. Absorve-me. Só tu agora me prendes os olhos e de ti não posso arrancá-los. És o único mistério que me interessa. Confio em ti. Cheguei ao ponto, Morte, eu que só de ti espero. Só tu resolves e explicas. Só tu acalmas. Aceito-te mas intimo-te. Toma a forma que quiseres, mais negra, mais trágica, mais torpe — bem funda é a noite e está cheia de luzeiros: — recebo-te, mas como um passo a mais para outra iniciação, para outro assombro, e até para outra dor se quiseres, porque da dor extraio mais beleza, mais vida e mais sonho.

...E contudo esta resignação é fictícia... Não, nunca acordei sem espanto nem me deitei sem terror. Ainda bem que o digo!

Siga a vida seu curso esplêndido. Sabe a sonho e a ferro. É ternura, desgraça o desespero. Leva-nos, arrasta-nos, impele-nos, enche-nos de ilusão, dispersa-nos pelos quatro cantos do globo. Amolga-nos. Levanta-nos. Aturde-nos. Ampara-nos. Encharca-nos no mesmo turbilhão do lodo. Mata-nos. Mas, um momento só que seja, obriga-nos a olhar para o alto, e até ao fim ficamos com os olhos estonteados. Eu creio em Deus.

 

TERCEIRA NOITE DE LUAR

25 DE NOVEMBRO

Há no mundo uma falha. Os poentes são labaredas roxas com resquícios de escarlate e dois, três grandes jactos violetas que se estendem pelo céu — uma maravilha quimérica. A outra primavera prolonga-se: superabundância de flores nas árvores, espiritualidade na matéria, como se as árvores antes de morrer se esgotassem em sonho. Mais flores, mais poentes onde o oiro e o roxo predominam, mais gritos no mundo, mais vulcões de cores, que pressagiam catástrofes, e um ruído apagado, esquisito, insuportável dentro de nós próprios, que comparo ao som duma borboleta esvoaçando contra as paredes dum vaso.

É a morte que faz falta à vida.

Paira sobre o mundo uma alma monstruosa, um fluido magnético, onde se misturam todas as cóleras, todos os interesses e todas as paixões, e essa alma envolve, penetra e reclama dor. Formam-se tempestades e terrores elétricos. Anda ávida, desencadeia catástrofes, desaba desgrenhada, com uivos noturnos de desespero. Cala-se — é pior: ninguém lhe suporta o peso. Produz jactos de oiro, auroras boreais, grandes incêndios no céu, como se o globo ardesse. Despenha-se em montanhas de cor, em abismos roxos, paira em campos etéreos de uma serenidade elísia. São talvez os mortos que reclamam mortos. É talvez a vida universal perturbada. São outras gerações esquecidas, camadas informes de que ninguém suspeita o nome, legiões sobro legiões incógnitas — é a vida embrionária que reclama a sua entrada na vida.

E, no fundo, sob este subterrâneo, há outro subterrâneo: ouço passos e vozes de mais outros ainda que sobem para a superfície. Todos os mortos se misturam aos vivos. Arrombaram de vez os sepulcros. Tu que não viveste queres agora por força viver; tu que não mataste queres agora por força matar. Mais mortos desde o início — maior mixórdia. Todo o esforço era para virem à supuração. Atrás duma camada havia outra camada. há séculos que carregamos nas tampas dos sepulcros para os não deixarmos sair. Na realidade nunca se jogou o gamão, nem se disseram palavras vulgares. Atrás dessa aparência estava intacta uma coisa desconforme, e às vezes por uma fresta irrompia a claridade do inferno... Agora a terra desfaz-se em mortos, como uma acha se desfaz em fumo.

O que era vida irreal, é agora realidade, o que era vergonha, ninharia e ridículo, com mancha em cima, é a vida agora. O que toma pé são os sonhos, o que se agita são as paixões desregradas. Não há limites nem peias. Veem-nos como eu te vejo a ti. Tenho diante de mim este espetáculo, como se fosse possível aos homens desdobrarem-se, e tomarem corpo ideias e paixões. Eles são aquilo que ocultamente desejavam ser, são o que não se atreviam a ser. Sob um mundo de verdade há outro mundo de verdade. É esse mundo invisível e profundo que passa a ser o mundo visível. É esse. Todo o homem é uma serie de fantasmas e passa a vida a arredá-los. Chegou a vez dos fantasmas. As nossas ideias e paixões é que formam as figuras que atuam na vida.

Terceira noite de luar. O perfume estonteia. Terceira noite de luar branco, indiferente, coalhado, terceira noite de espanto. Redemoinhos de figuras e de ação até aos confins dos séculos. Outrora, numa vida monótona e incerta, só se realizavam duas ou três horas de exaltação. A vida agora é uma exaltação perpétua.

Tudo mudou: a árvore não existe como a pedra não existe. O único mundo real é o mundo irreal. Todos nós andamos a criar um mundo que é o único verdadeiro — os vivos e os mortos. Todos trabalhamos com o mesmo afã para o mesmo fim. Já a matéria se adelgaçava... O mundo ideal é o mundo da dor, do sonho, e o universo reconstruído, é o maior dos dramas — com a vida oculta ao lado — e cada dia tem o peso dum século.

As crianças e os pássaros emudeceram, o que produz na terra um silêncio atroz. Os olhos encheram-se-lhes duma tristeza irrefletida, inocência e extrato de vida, sentimentos que se não coadunam. Tenho vontade de fugir para onde não ouça o silêncio... Avança direita a mim a floresta apodrecida. Mais perto! mais perto!

Ri-te agora se podes da D. Leocádia, que rumina como lady MacBeth as piores ruinas. Esta vida é feita de todos os nossos esforços e dos esforços do fundo. Somos apenas um reflexo dos mortos, e agora que tu queres falar com a tua voz, é que as ordens são mais categóricas e o conflito monstruoso. Terceira noite de luar, branco, estranho, inefável. Toda a noite o rouxinol cantou. Duas, três horas, e canta ainda apaixonado e frenético... Debalde quero libertar-me dos fantasmas, debalde quero viver da minha própria vida!...

É que a vida não és tu nem eu, a vida é uma massa confusa e heterogênea, um pesadelo, uma nuvem negra ou uma nuvem de oiro, uma tempestade elétrica, com bocas abertas para risos e bocas abertas para gritos. Não é um detalhe — é um panorama. É um imenso farrapo dorido. Anda aqui a alma de Joana e a secura das velhas mesquinhas. É tão necessária a este fluido a dor muda do cavador como o sonho desconexo do Gabiru. Anda aqui a primavera, as lágrimas que tenho chorado e as que tenho ainda para chorar. Anda aqui a tragédia, a pedra, a árvore, a tua inocência e a minha desventura. Tudo isto se congrega, e esta alma não vive sem a tua alma, este grotesco sem o teu gênio, esta vida sem a tua morte. Andam aqui os mortos e os vivos, a árvore que há-de ser árvore e o tronco que se desfez em luz. É um ser imenso a que não vejo senão partes. Anda aqui a luz e a sombra, e a luz não se distingue da sombra nem a vida da morte. A vida está tão feita adiante de nós como atrás de nós. Está tão feita no passado como no futuro. Se o futuro ainda não existe, o passado já não existe. E tudo isto se congrega. A vida absorve-me e ponho-a em ação. Impregna-me e faço-a caminhar. Pertence-me e pertenço-lhe. É o passado e o futuro — Jesus Cristo vivo, Jesus Cristo morto, e Jesus Cristo ressuscitado.

26 DE NOVEMBRO

Estamos à superfície desse oceano embravecido, e o impulso vem das camadas mais profundas, das camadas informes. São todos. São até os que nunca tiveram olhos para ver, os seres esboçados, com mãos rudimentares, aparências de árvores e de figuras mutiladas. É a terra viva.

É só sonho, é sonho estreme e dor estreme. Cada um assiste à projeção da sua própria figura monstruosa no passado e no futuro, cada figura tem enfim as dimensões de dor, que as palavras, as regras e os hábitos lhe não deixavam ter. Cada alma é desmedida e trágica e vem desde os confins da vida até ao infinito da vida. Cada um na floresta entontecida representa o máximo de sonho e o máximo de ternura. Cada ser é enfim um ser completo e doirado, atinge a beleza e Deus.

As florestas já mortas, a luz das estrelas desaparecidas no caos — tudo aqui está presente. O esforço dos mortos, o sonho dos mortos, o desespero dos mortos sobre mortos, o reflexo de ternura, a mão que amparou, a boca que sorriu, levadas pelo vento que soprou há dez mil anos, aqui estão vivos. Aqui está vivo o sonho que sonhamos todos, o primitivo sonho humilde e o sonho repercutido de século em século, assim como a tua voz compadecida. O sonho sepultado nas profundidades da terra, o primeiro resquício, o nada e o sonho frenético, tudo aqui está na floresta embravecida. E, com ou sem boca, com ou sem consciência, nunca mais deixarei de andar nisto, disperso, amalgamado, confundido, de fazer parte deste drama, queira ou não queira, proteste ou não proteste. Tudo é inútil, todo o esforço inútil, todas as palavras inúteis. Reconheço-o. Mas não me canso de pregar, não posso deixar de pregar, até cair vencido e exausto dominado e deslumbrado. Na floresta embravecida, em que todos participam do mesmo ser, até a mulher da esfrega encontra enfim Jesus:

 — Será vocemecê o José do Telhado que o tira aos pobres para o dar aos ricos?

 — Sou um pobre de pedir.

 — Será vocemecê Nosso Senhor Jesus Cristo que veio ao mundo para nos salvar?

30 DE NOVEMBRO

Chega o momento em que me perco, em que tenho medo de mim mesmo, em que me atemoriza o som da minha própria voz. Quem sou eu? Os outros? Sou os outros? São eles que falam, que ordenam, que me impelem? Eu sou os mortos! eu sou os mortos! Eu sou uma serie de fantasmas, que se açulam entre mim e mim. Reconheço-os. O gesto esboçado há milhares de anos, e perdido, consumido, consegue hoje realizar-se, o grito que a morte calou numa boca ignorada, faz eco no mundo. Todos os sonhos são realidades, os mais altos, os mais humildes, os mais belos e os mais grotescos. Só os sonhos são realidade nesta noite quieta e caiada, com uma mancha vermelha de polo a polo.

Aqui está agora isto a que se chama noite de luar, branca, inerte, passiva, com a lua espargindo luz sobre o doirado. Aqui está a árvore, e era a isto que se chamava a árvore! Aqui está a pedra e era a isto que se chamava a pedra! Aqui está o céu e era a isto que se chamava o céu! Reconheço-vos.

A morte encontra-se só — cortaram a árvore pelo meio. Anda pelo céu como um cometa que desatasse aos tombos e aos gritos — de desvario em desvario. A cada grito empalidece, esbraseia, muda de cor, abre a cauda de oiro, de trambolhão em trambolhão...

A morte faz estremecer o mundo até à raiz. A morte já não tem a mesma significação. A morte é agora inútil e anda à solta no infinito, desgrenhada, dorida e doirada. Desespera-se. Tenho medo de lhe tocar. O drama que se passa em cima é maior que o que se passa em baixo. É pior este tumulto de inferno, este clamor de que me não chegam as vozes, esta força incoerente de pé — todas as forças de pé — posta a caminho para o desconhecido. É pior. E a cada grito em baixo corresponde um grito em cima.

Reconheço o grito que sai da noite. São os vivos e os mortos... Mas então que significação tem isto no universo, a dizer palavras inúteis no meio desta baldúrdia, desta escuridão cerrada, deste doirado feroz, deste redemoinho sem nome? Para que é que eu existo e tu existes? Para que é que eu grito e tu gritas? Isto não és tu! isto não sou eu! Isto é a vida temerosa, de que não representas senão uma insignificante partícula. Tu não és nada, a vida é tudo. O combate é incessante entre os vivos e os mortos, entre os mortos e os vivos. Todos gritam ao mesmo tempo, todos caminham ao mesmo tempo para o mesmo fim esplêndido. — Oh eu quero crer! — Porque é que gritas? — Fecha os olhos! fecha os olhos! — Agora sou eu quem falo! Agora são eles que falam!...

Oh minha alma pois eras tu! Agora te reconheço! Capaz de tudo, capaz de baixezas e capaz de sacrifícios. Tão pequena! tão transida! Não vales nada e pudeste tanto! Oh minha alma, pois eras tu, eras tu! Pudeste arcar com o universo, olhar Deus, construir Deus. Devo-te tudo: a ilusão, a tinta do céu, o sonho errático das vastas florestas. Eras tu! eras tu!... Tem-me custado a dar contigo, tão mesquinha e capaz de povoares o céu de estrelas e o mundo de sonho. Atreveste-te a tudo. Afirmaste. Negaste. Eras tu, sempre dorida, sempre ansiosa, nunca satisfeita, e coubeste dentro de quatro paredes. Tornaste-me a vida amarga. Encheste-me de ridículo. Atiraste-me aos encontrões contra a massa cega e compacta, levaste-me como restos de folhas nesta procela de sonho. Foste a melhor e a pior parte do meu ser.

Eras tu! E pude com esta enxurrada de cores, de tintas, de impulsos, a instigar-me e a deslumbrar-me! E pude ao mesmo tempo com a dor! Fiz parte da dor. A desgraça viveu comigo e o sonho viveu comigo. E pude com a vida! Atravessei este mar monstruoso, servindo-me de meia dúzia de palavras. Que importa ser ridículo? Que importa ser a D. Idalina ou a D. Ingrácia? Suportei a vida — suportei tudo. Que importa a tua mentira, se atravessaste a labareda e ainda conservas o xale tisnado?

Para onde vamos aos gritos? para onde vamos aos gritos?

E cada grito em baixo corresponde um grito em cima, a cada grito um estremeção no mundo, que se repercute de universo em universo. Um grito que acorda mais sonho e gera novo desespero.

Outro grito, outro mundo doirado, outra forma dorida que se deita a caminho.

O peso da vida e o peso dos mortos sente-se cada vez mais. Todos clamam ao mesmo tempo de pé para essa coisa imensa e doirada, num deslumbramento. Os mortos que nos pareciam mortos, camada sobre camada, estão aqui de pé ao nosso lado.

E o peso é cada vez maior. Até agora vivíamos com eles, respirávamos com eles, mas não sentíamos o peso dessa poeira viva que é a sombra e a luz. Agora não podemos com eles...

E o lamento, o uivo sobe cada vez mais alto. Debalde tapamos os ouvidos: o uivo penetra nas almas. E a um grito em baixo corresponde logo um grito em cima.

E as mulheres das vielas põem-se a chorar, os ladrões das estradas desatam a chorar...

 O uivo não cessa. Irrita. Enche o mundo todo. Quem grita? Nós próprios? O homem que range por não poder suportar a vida? O grito domina tudo, trespassa o globo e ecoa no mundo.

E outra coisa monstruosa tomou o lugar da morte, outra sombra se entranhou de salto na vida, outro turbilhão arrasta os homens. Modificaram-se as estrelas com os sentimentos. A outra coisa no infinito reflete-se na vida dos astros que mudam de cor, na dor que tomba desgrenhada de queda em queda. Todo o mundo se transforma a nossos olhos. Cada ser aumenta como se encerrasse em si a vida até aos confins dos séculos. O passado não existe, o futuro redobra de proporções. Perdeu-se a noção da desgraça e a noção do tempo, e a nódoa de sangue da Via-Láctea, onde se concentra toda a sensibilidade do mundo, alastra entre os astros, de lez a lez, na profundidade do céu.

Ouves o grito? ouve-lo mais alto, sempre mais alto e cada vez mais fundo?... — É preciso matar segunda vez os mortos.