Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

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A. do C.

Anthero do Quental, e Ramalho Ortigão

 

COIMBRA — IMPRENSA DA UNIVERSIDADE

CARTA

A

A. D'AZEVEDO CASTELLO-BRANCO

Amigo! Contente com a alma sublimemente burguesa, que tu me conheces, vejo com pasmo, do limiar da minha porta, desfilar a soberba coorte dos predestinados, que vão quebrando lanças em prol do belo, do ideal, do justo, por eles espremidos em guindadas teorias, capazes de reduzirem as cabeças mais bem construídas e duras à triste condição de um fruto podre de maduro. Vejo-os, e não com indiferença, porque sou curioso e adoro tudo o que me dá assumpto para o mexerico. Ora bem; o mexerico: aí tens a razão principal da minha carta; aí tens a razão porque descruzo as mãos de sobre o abdômen para tomar a pena do escritor. E que escritor!

Além d'isso acrescia em mim o desejo de te oferecer um delambido manjar, com que pudesses, se te aprouvesse, aumentar a abundância, que se acumula sobre a mesa dos perdulários e lambareiros colecionadores.

É tal porem a nossa terra, tal a natureza das relações, que apertam seus habitantes, que nem sempre há permissão de se abrir à luz do dia um pensamento franco, por inofensivo que seja. Assim dou razão do modo arrastado e fadigoso, porque aparece a minha tardia carta.

Ha muito que anda, a coitada, no extravio d'esses correios. Veremos se pela nova forma, que hoje lhe dou, logra enfim chegar-te às mãos. Perdeu já todas as pretensões a levar-te novidade; pois não é muito que rumoreje em Villa-Real o que, por cá, é objeto das quotidianas palestras.

Nada obsta, todavia, a que conversemos amigavelmente; e muito mais quando se trata de um teu amigo, e teu companheiro, lá nos venturosos tempos, em que ainda eras acadêmico.

Falo do sr. Antero do Quental.

E, já que transpareceu na tela, d'ele me ocuparei primeiro; mesmo porque o conheço mais de perto: de o ver passar na rua, e de lhe falar às vezes.

Conhecê-lo não é ser seu amigo; não é seguir-lhe as ideias; não é pôr cobro à imparcialidade.

É pois — necessito que o creias — é sem lisonja, consciencioso, imparcial, que me abalanço a esboçar-lhe aligeirado perfil do retrato literário, correndo a vista por esses arraiais agitados e acesos em contendas porfiosas de literatura.

A carta do sr. Antero — primeiro grito de alarma — fez mais que mostrar-nos um talento, revelou-nos um caráter. A dignidade das letras — além de ser novo atestado do conceito em que tínhamos seu autor, veio confirmar as ideias anteriormente expendidas.

Eis o que o sr. Ramalho Ortigão está disposto a não conceder por forma alguma.

Eu conhecia este escritor portuense por um retrato grosseiro, traçado por alguns malquerentes, de que nunca se livrou o homem mais cauteloso, uma vez que tomou para si a missão de julgar das cousas a seu bel-prazer, com franqueza ou sem ela, sem curar muito em se adequar ao gosto e sabor das multidões. Alguma cousa me dizia, porém, que o retrato tinha seu quê de infiel. E, com efeito, o escrito, que hoje me veio à mão, acabou de me desenganar.

O pequeno folheto do sr. Ortigão, pequeníssimo para o grande título, que o decora, porque se chama — Literatura d'hoje, é um como espelho em que se não perde, me parece, uma feição do autor. Ele mesmo mostra desejá-lo, porque dá relevo, com frequência e não sem cálculo, à sua individualidade, como se lhe pesasse deixá-la nas sombras do quadro. É o homem das cidades, que se vaisentar, com o seu charuto, em frente do confortativo fogão com a pachorra de um sibarita, ancho como um professor, que legisla do cimo da sua poltrona o despotismo da palmatoria, terror dos meninos, que não sabem a lição. Na linguagem é, a meu ver, perfeito. Não cede livre curso à imaginação para não atropelar o bom-senso; nem, tão pouco, rebaixa a dignidade de escritor à grosseria de termos plebeus. Suas ironias e sarcasmos são, por assim dizer, aristocraticamente petulantes e azedos. A palavra aparece rigorosa, e sem esforço, à evocação da ideia sugerida. E não é fácil entrever-lhe brecha por onde possa infiltrar-se algum travor do ridículo. Todavia fica a gente desconsolada por ver manchado todo esse asseado composto na sórdida pobreza de verdade.

Que me não queira mal pela sinceridade. É a minha única arma. Veremos se saberei dar-lhe, com ela, plena satisfação em boas razões; boas ou más, consoante as tenho.

Mas, antes de ir mais longe, quero prevenir-te, meu Castello-Branco, de que não sou tão presunçoso, que ouse criticar. Havia de fazê-lo se soubesse. Assim, venho simplesmente fazer-te a inocente declaração do modo como avalio o escrito do sr. Ortigão em face dos escritos do sr. Antero.

Este, disse eu, que, na sua carta, produtora d'esses alvorotos atrevidos e impotentes, oferecera à luz do dia o fiel traslado do seu caráter. E quem deixará de ver do tumultuar harmonioso d'aquela magnifica frase, naquela prosa eloquente, a declaração de intimas convicções, depuradas, pelo fogo da imaginação, num estudo aturado, sério e refletido?

O sr. Antero tem alguma cousa da inflexível virtude do homem primitivo, que não cai bem no ambiente, saturado de artificio e de impostura, em que vivemos. Vê até longe, pela inteligência, os vícios e as degradações sociais, e quer passar pelo meio d'eles impoluto, com a mão na consciência, despreocupado das glorias do mundo, sempre austero e sóbrio. Sente, e diz o que sente numa linguagem toda d'alma, sem se importar com o agrado ou desagrado do sr. Ortigão. Bem ou mal acolhido nada parece ter com isso. Olha mais à dignidade do homem do que à chilra ostentação do literato. Isso, porém, está longe de significar que saiba tragar um insulto com evangélica paciência.

Aí tens os homens e os escritores.

Não digo que não seja falsa a minha apreciação. Se for, desde já rejeito o aforismo bem sabido de todos — o estilo é o homem.

Mais um arredondamento e um colorido nas feições, e podemos segui-los no combate.

O escrito do sr. Ortigão constitui uma galeria, enriquecida de retratos, que o autor intenta caricaturar, esquadrinhando lazeiras ou disformidades onde são perfeitas as formas, e velando chagas onde elas são manifestas. Tem um modo seguro e dogmático de dizer as cousas, que enrodilha e leva a imaginação descuidada na sinuosa compostura de bem jogadas palavras, dispostas com critério um tanto acima do ordinário, e também com não ordinária e decidida — má-fé. Desagradou-me, e desagradaria a todos, a crueza sarcástica com que asseteia o sr. Castilho, que, de qualquer maneira que o apreciemos, seja ele como for, quaisquer que sejam as suas intenções, merece ser venerado pelos vastíssimos conhecimentos adquiridos em tantos anos de estudo e, em parte, patenteados numa prosa, que ninguém excedeu ainda; ou mesmo, e principalmente, pelas traduções, que o sr. Ortigão menospreza, e que, todavia, são tesouros de riqueza para uma língua, e modelos preciosos para os que aprendem. Nos seus livros tem ele — é crença minha — um escudo poderoso e magico contra o qual se quebrarão as armas mais bem temperadas de seus detratores. Atribuem-lhe, é certo, atos que o deslustram, pouco generosos, e pouco nobres, que poderiam ser filhos, como eu cuido, da simples e efêmera vaidade de deixar na sua passagem seu nome celebre, preso a alguma anedota ainda mais celebre, que o fizesse lembrado na praça, no café, na família. Não é raro encontrarem-se caprichozinhos de semelhante jaez em agigantados talentos. São estes, porém, como a seara luxuriosa e medrada, que esconde e afoga, nas opulências de seu viço, as enfezadas parasitas, que se lhe enroscam no pé, só visíveis a olhos de lince, ou a olhos de alguém que, mal intencionado, de propósito as rebusca.

O literato porem faz esquecer essas pequeninas cousas.

E, se a alguém, ofendido, por qualquer motivo, assistia o direito de lhe exprobrar a culpa, esse, quer-me parecer, não devia ser nunca, quem não acha recursos na mais pura lealdade.

Não imagino que alguma cousa possa afligir e irritar tanto o melindre e vaidade do escritor como a cavilosa estratégia do crítico, que se afez a arrastar-lhe as ideias verdadeiras e boas no labutar de palavras, que ele torce e retorce, amoldando-as a contrário sentido com grave detrimento da boa hermenêutica. O sr. Ortigão, neste ponto, é crítico muito para ser receado.

Como me distraem ocupações mais serias contento-me em citar um ligeiro exemplo, dando de mão a algumas das asserções anteriormente aventadas, que eu me reservo confirmar quando m'o exijam. Isto, porque já me tarda a entrada no campo em que, Ruth de novo gênero, me propus respigar.

Saboreia tu, meu Castello-Branco, a estratégia, que abaixo descubro, e aconselho-te que pautes por esta todas as outras, que ele por aí recortou em imagens de polpa, e por vezes elegantes.

Disse o sr. Castilho, criticando o Poema da mocidade, na falada carta ao editor, disse que a poética hodierna concede até certo ponto mesclar-se o burlesco pelo sério; e comprovou-o com a citação do D. João de Byron, do Diablo mundo de Espronceda, etc., acrescentando, em remate, que ao poeta, em questão (o sr. Chagas) não convinha imitá-los.

Isto a propósito de certas desgraciadas e truanescas concepções, desenvolvidas em versos chocarreiros e untuosos no mal-aventurado poema de supradito poeta. Nada mais justo, e mais para se louvar, do que a delicada solicitude de mestre e de amigo com que o sr. Castilho repreende sem ofender.

E queres saber a conclusão tirada pelo sr. Ortigão? Brada que não pode ser aquilo tomado a sério; que o sr. Castilho zombava quando tal disse, e, muito mais, porque, decorridas poucas linhas, elogia aqueles versos tristes, que dizem que

as folhas secas caíam

com leve bulha no chão,

versos comparados a outros versos tristes de Myllevoye.

E prossegue clamando que a autoridade d'este moço, de inteligência quase efêmera, é cruelmente anteposta ao exemplo dos gigantes, que reformaram as literaturas de Espanha, Inglaterra e França.

Como se engana o sr. Ortigão! E como é para lastimar que a sua espiritada inteligência se demore nestes sofismazinhos escolares!

O sr. Castilho não denota, numa palavra sequer, preferência a Myllevoye. Nem ao menos o compara com Byron, Espronceda, etc. O que ele faz é aconselhar cortesmente o sr. Chagas a deixar o enfatuado e infantil intento de seguir as pisadas de Byron. Aconselha-o como a prudência aconselharia o temerário Ícaro da fabula a não se avizinhar do sol, se estimava em alguma cousa a tolíssima existência e as pobres azas de cera. E já assim não acontece com Myllevoye, que o próprio esmiuçador portuense confessa, sem quebranto da história, que era dotado de quase efêmera inteligência, e que portanto podia, com um pouco de exagero, ser apontado como norma, e servir mesmo de confronto ao sr. Chagas, que, apesar do afamado poema, tenho para mim que lhe não falta merecimento.

É por outra forma mais lisa, mais portuguesa, mais nobre, que o sr. Antero encara na sua carta o chamado príncipe dos nossos poetas. Arrebatou-me aquela linguagem austera e verdadeira. Digo verdadeira, porque é sentida e franca, e não, de certo, porque o meu humilíssimo entendimento ouse partilhar tais ou semelhantes ideias.

Apareceu o atleta como era desejado, à maneira dos típicos lutadores da estatuaria grega; apareceu descoberto e desassombrado, porque vinha forte nas suas convicções.

O sr. Ortigão também apareceu; mais prudente de certo, mas bem mais astuto e agressivo. Pediu forças lizas e combateu, afagando os antagonistas, conduzindo-os por cômoros de flores para os presentear com envenenados bouquets.

Onde estão as forças lizas? Vejamos.

Fiz por definir os contendores. Agora vamos vê-los em campo.

Confessa o sr. Ortigão que, apenas obtida a carta do sr. Antero, a folheara guloso e açorado; e que começara a lê-la pelo fim. Causou-lhe profunda magoa — diz ele — ver frases insultuosas e provocadoras... E continua em estilo de dom cavaleiro, provocador e insultuoso, que não tem dúvida em se arriscar no dissaborido jogo da tapona contanto que, antes d'isso, o deixem tornear períodos de simpática energia.

A mim pasmou-me tanto o novo modo de argumentar, que por pouco não deixava passar a desgraçada contradição em que o nosso critico se precipitara. Engalfinhado no pérfido desfecho da carta, e vencido da justa cólera, que assalta as almas generosas em lances tais, esqueceu-se por força de que esse desfecho não é mais do que uma lógica e necessária dedução dos princípios largamente expostos antes, princípios, que permaneceram inabaláveis, embora a pesada indignação do sr. Ramalho lançasse pelos ares, esfacelada, a mal-aventurada conclusão. E permaneceram inabaláveis, porque ele, longe de os destruir pela raiz, perfilhara-os no seu folheto.

Uma vez provado que o ilustre critico lavrou, à sua parte, títulos de fútil, desonesto e tonto ao exímio poeta dos Ciúmes do bardo, mais digno por certo de respeito e acatamento, há de admitir-me sem contestação, a não intervir algum desmoronamento no intelecto nominal, que também o não admira, nem respeita, nem estima; que está plenamente de acordo com o sr. Antero; que se contradisse enfim.

Mas, para que o aranzel não vá de longo fastidioso, convido-te, meu paciente Castello-Branco, a abrir o folheto, que se intitula — Literatura d'hoje.

Tu me dirás se pode levar-se a sério que um homem, que presa sua boa nomeada, não tema expor ao confronto as insultuosas, empeçonhadas e, ao mesmo tempo, divertidas páginas, que se referem ao sr. Castilho, com a página 36, retesada de nobre e dramática indignação com que o autor se desmente a si próprio, condenando nos outros o mesmo, que ele acaba de praticar, não generosa e varonilmente, mas com a covardia do escárnio, rebuçado em espírito, que, oriundo das bandas d'além dos Pireneus, gastou nos píncaros da cordilheira, quando a transpunha, frescura, suco e odor.

Pois lá, na boa sociedade, de que nos dá notícias, será uso falar-se a linguagem do ridículo e do escárnio a não ser com um fútil estonteado[1]?

Pois faz-se espírito à custa do homem, a quem depois se lavra diploma de honesto e grave[2]?

Pois consente-se ao primeiro, que passa, a petulância de repreender com arrogante denodo o poeta, o talento, o grande homem, que, mais além, se reconhece digno das honras do capitólio[3]?

Ou é muito extravagante a tal boa sociedade, ou s. ex.ª está perfeitamente concorde com o sr. Antero, e deve-lhe satisfação da afronta, caso lh'a não tenha já dado.

O que vale é serem estas cousas — não a expressão de um arraigado pensamento — mas, apenas, um culto prestado às pompas do estilo.

Abria-se-me agora azo de as imitar, blasonando contra a natureza humana em geral, e, especificando, contra a natureza do sr. Ortigão.

Mas, como não sei, digo que preso a nobreza da minha alma e o meu pundonor de cavalheiro. E fica dissimulada a imperícia.

Assim vaitudo.

O que realmente me parece digno de notar-se é que, chafurdando em contradições, tenha ainda folego o sr. Ortigão para as esmerilhar nos outros.

Atropelando desabridamente cortesia e conveniências começa ele, em termos raivosos e empertigados, a explicar os motivos que levaram o sr. Antero a louvar no opúsculo — Dignidade das letras — o drama Camões do sr. Castilho, que anteriormente, na carta, lhe tinha espezinhado, com todas as obras, em verdadeiro furor de iconoclasta.

Com um pouco menos de apaixonado seria outra e mais decorosa a explicação.

Não concebo a crítica sem reflexão e boa-fé. Quem poder dispor d'essas indispensáveis condições leia a carta — Bom-senso e bom-gosto, leia o opúsculo; e confronte-os, depois de compulsados em separado. Então verá que nem há sombras de contradição.

O sr. Antero entendeu que estávamos na idade de sacudir tutelas opressivas; e disse-o, animando a revolta.

Se fez bem ou mal nada tenho com isso.

Na dita revolta mediu a santidade do ídolo pelos milagres feitos, pelas obras, que lhe formavam o pedestal; e não colheu senão — algaravia, estonteamento, banalidade, ninharia; palavras compridas, que deviam de assanhar filantrópicos brios.

Mas isto, visto assim sinteticamente, em grande, não quer dizer que não houvesse possibilidade de descobrir-se pela análise uma formosa baga de ouro num monte de pedregulho; um lado fresco e saboroso num pomo dessorado.

No caso presente havia essa possibilidade; e tanto é certo, que o sr. Antero no seu segundo escrito, mais propenso à análise, fez lisonjeira e especial menção do drama Camões, que no primeiro tinha sido condenado de envolta com a generalidade.

Considerou-o no que ele é, e não curou de indagar, como parece, se seria ou não seria original.

Ora nisto subiu de ponto a infelicidade do sr. Ortigão.

O drama Camões — diz ele — é uma simples versão em que o tradutor se apartou do original unicamente para lhe interpolar um auto, etc.

E serve-se d'este artificio para fazer cair em falso os elogios, prodigalizados ao livro.

Mas, admitida tão arrojada proposição, a contradição, a censurada contradição, nem sequer fica sendo aparente, porque de todas as obras, que correm mundo com o nome do celebrado cantor da Primavera, foi exatamente essa, que lhe não pertence, a que alcançou os elogios.

A ser como o sr. Ortigão assegura, a que vem aqui a palavra — contradição?

O elogio era então, quando muito, um medido sarcasmo.

E, se assim o interpretou o ilustre critico, que nome inventaremos para o fazedor de tais, tão desazadas e feias piruetas na corda bamba de sua adoutadora fantasia?

Vejo-me obrigado a rematar em poucas palavras para não ser surpreendido pela madrugada no vergonhoso rabisco de materiais, que têm o condão de fazer saltar avantesmas do mais perfeito interior do meu crânio. Vou pois concluir numa ligeira consideração.

Alcunha-se geralmente de abstrusa, por esse douto país, a forma adoptada na escritura pelos poucos mancebos, que tiveram o mau sestro de se fazerem literatos em Coimbra.

O sr. Teófilo Braga, que, pelos dons do seu brilhante e vigorosíssimo talento, obteria hoje, com os seus vinte anos, um dos mais nobres lugares nos próprios países, como França e Alemanha, em que as artes e as ciências constituem uma verdadeira religião, tem sido dos mais teimosamente mordidos. Tem sido alcunhado de abstruso e arrevesado por quase todos os que sabem emporcalhar com ferretes de tinta qualquer branca mortalha de cigarro. Que a destra de um príncipe se acoste à ânfora de ouro, perdida em escamas de esmeraldas e outras pedras preciosas, com a impossível e picaresca tenção de nela sepultar e arrefecer os ímpetos da milagrosa ebulição de ideias, que, alimentada pelo fogo sagrado do gênio, jorra da mente do poeta, pode consenti-lo o sistema nervoso; mas, que a mão gretada de rabugento chanfaneiro ouse apegar-se, para o mesmo fim, a gordurenta panela de barro vil, é de acordar estremeções e gritos de lastima. Porque o frágil instrumento, estalando em estilhaços, há de insculpir por força no rosto do sacrílego o untuoso negrume dos mil fragmentos.

O dó substitui a ira nos que veem.

Não suponho inútil declarar que não vai aí alusão a determinada pessoa. É outra, mais augusta, a missão da imprensa.

Condenemos — como diria um orador parlamentar, que eu conheço — condenemos as panelas, com toda sua garridice, a um ostracismo literário. Desterremo-las para local, que lhe seja próprio. E levante-se mão d'isto por uma vez.

A nebulosidade, quanto a mim, se é repreensível na prosa em geral, tolera-se todavia naquela que, à laia de certas concepções de Edgar Quinet, reveste grandes pensamentos. E, em certo gênero de poesia, quer-me parecer que até se torna necessária.

Dante, Goethe, Hugo e mil outros, cujos nomes posso aprender em qualquer catalogo de livreiro, não são sempre accessíveis á — simples intuição do belo, que é, ignita em todas as almas bem formadas[4].

Se as palavras abstruso, extravagante, que se catrafilassem ao nome de cada escritor fossem uma reprovação, grandes reputações teriam de mergulhar no esquecimento.

Por mim, gosto de ver transluzir através de um véu, como misterioso e encantado, as imagens, as concepções, os formosos sonhos do poeta; e estou quase inclinado a crer que há sobeja e singular estultícia na cabeça, que pretender a poesia judiciosa como um artigo de fundo, e transparente como um vidro de lampadário.

M. Magnin nas suas Coseries littéraires prova, baseado em estudos psicológicos, que a natureza da poesia, no momento de sua manifestação, est d'être folle ou, tout au moins, de le paraître — como ele mesmo diz.

Racine, o próprio Racine — fala M. Magnin — antes de suas audaciosas sublimidades virem a ser, com o tempo, a linguagem da razão, não se salvou da denominação de extravagante, que os espíritos prosaicos lhe davam prodigamente, nem, tão pouco, dos acerbos remoques dos que se persuadiam oráculos do bom-senso e do bom-gosto.

Não sei se isto terá todo o cabimento no caso presente.

A tua opinião, Castello-Branco?

Eu, se pudesse ter opinião, havia de aproveitá-la para me chegar a convencer de que estou com jeitos de escorregar nos lanzudos braços do sonífero deus.

Surpreendido, com o desfecho, fazes-me naturalmente as seguintes perguntas:

— Então isto acabou?! Mas que significa isto? Que novos mundos queres desencantar com as farfalhices do teu arrazoado? Que intenção é a tua, além dos prazeres do mexerico?...

— Imortalizar-me, está visto — respondo eu, com a pressa de quem deseja assignar-se

Teu amigo

A. do C.

Coimbra, janeiro de 1866.

[1] Literatura d'hoje, pag. 16, 17, 18, etc.

[2] Obr. cit., pag. 15, 16, 17, 18, etc.

[3] Obr, cit., pag. 31.

[4] Literatura d'hoje.