Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

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CONTINUAÇÃO DO

PORTUGAL ENFERMO

POR VICIOS, E ABUSOS

DE AMBOS OS SEXOS.


PART. II


DEDICADO AO SENHOR

JOSÉ LUIZ GUERNER,

CONSUL DE S. M. SICILIANNA,

POR

JOSÉ DANIEL RODRIGUES DA COSTA,

ENTRE OS PASTORES DO TEJO

JOSINO LEIRIENSE

LISBOA:

NA IMPRESSÃO REGIA.

ANNO 1820


Com Licença.

Em louvor do Autor, um Gênio dado às Musas, bem conhecido, e muito aplicado, mandou o seguinte

MADRIGAL.

Musa, (disse eu à gentil Clio um dia)

      Pois que ao jovial Josino

A palma deste da imortal Poesia,

      Mimoso Dom Divino,

Com que louva a virtude, o vício prostra,

E aponta as causas, e os efeitos mostra

      Da decadência nossa;

      Dá-me também, que eu possa,

Cantando o Vate, que do Céu nos veio...

      «Basta (me torna Clio);

Suas obras, e não louvor alheio,

      São o seu Elogio.»

                                    Campelo.

Chama-se a isto um

PRÓLOGO.

Curioso Leitor, ou Ouvidor, que não te escandalizo neste segundo nome, porque também é de lugar de letras, consta este Folheto da Segunda Parte de Portugal Enfermo por vícios, e abusos: continua na mesma crítica, na mesma boa moral, e com a costumada jovialidade. Mas se ainda assim mesmo achares este Folheto sem sal, dá-lhe alguma desculpa; porque foi acabado agora, e por isso vai muito fresco. Primeiro que o publicasse, fui consultar (como costumo em todas as minhas Obras, seguindo o preceito dos nossos antigos Mestres) com talentos superiores aos meus, judiciosos, e de bom critério, que com sinceridade me asseveraram que este Folheto levava vantagem ao primeiro. Si ita est, fiat.

Não passaram de quatro até cinco gênios mordazes, que não lhe podendo pôr outro defeito, foram publicando que a Obra não era minha, a ver se isto pegava, como pegou a moda do Tiro-liro por toda a parte. Ora vejam Vossas Mercês, pelo amor de Deus, que tal ficaria eu quando mo disseram! A Obra não será minha; mas o primeiro Folheto imprimiu-se, e reimprimiu-se, e eu recebi o produto de mil e quinhentos Folhetos. Talvez que estes indivíduos campem melhor no público com cavalos emprestados, trastes, e dinheiros alheios, do que eu com versos de outrem! Nunca fui plagiário; antes os tenho encontrado de obras minhas: e desde a primeira, que imprimi, que foi a Obra dos Ópios, ainda não mudei de estilo; porque me não acho com forças, para imitar os Guindados do tempo.

Leitor, o primeiro parágrafo pertence-te, o segundo pertence aos quatro, ou cinco Ruminadores, que com caráter de mal intencionados Zoilos, mastigam toda a qualidade de papel, como fazem os que enjoam pelo mar: e diz muita gente boa ser isto um remédio contra os enjoos; o que eu dou quase por certo, porque já o vi verificado em várias Senhoras, que são as que enjoam no mar com mais facilidade.

Aqui acabou o Prologo de repente. Coitado! Ainda há pouco tempo estava de perfeita saúde! Que não somos nada neste mundo, este Prologo o prova; porque, também na minha estimação, tornou-se em nada, e foi-se sem se despedir no Latino idioma, como os outros Prólogos fazem talvez por não entender mais.

Agora, Leitor, com ingenuidade dirás se a Obra em si alguma cousa

Vale em Português.

PORTUGAL ENFERMO PELOS VÍCIOS E ABUSOS


Não sou Poeta de palavras crespas,

Com que alguns dão picadas, como vespas:

E no zunzum de termos esquisitos,

Só fazem o zunido dos mosquitos

Não escrevo por cifra, nem por cetra,

Nem sei falar, senão ao pé da letra.

                             Do Autor.


Portugal, Portugal, não te conheço?

Vives esmorecido, e eu esmoreço,

Vendo-te com achaque tão profundo,

Que pouco já figuras neste mundo:

Perdeste toda a tua bizarria;

As famílias perderam a alegria;

Todos andam de caras tristes, serias,

Não ouço senão prantos de misérias:

Ficarás só com casas, mas sem gente;

Pois muitos, de paixão, já vão morrendo;

Porque com a desgraça não podendo,

Caloteiam, mendigam, degeneram,

E só na morte o seu descanso esperam.

Não se encontra em ti outro desafogo,

Que não seja o do jogo, jogo, jogo,

Que é onde inda aparece algum dinheiro,

E já se faz ofício de Banqueiro:

Nele se encartam mais os ajudantes,

Sócios olheiros, sempre vigilantes:

Qual rapaz, que nas terras põe gaiola,

Onde pássaro mestre desenrola

Agradável gorjeio, com que chama,

E as aves novas faz cair na trama

Das varas enviscadas da costela:

Assim subtil Banqueiro arma a esparrela,

Sendo pássaro mestre, que apresenta

De moedas em crúzios mais de oitenta,

Que estão chamando ao visco os coitadinhos,

Os quais lhe vão cair, pobres patinhos!

Que quando o caso em sortes bem não corra,

O seu, e alheio vai tudo à desforra.

Hoje em qualquer função por essas salas,

Depois do chá, escutam-se estas falas:

A Senhora quer Ronda, ou quer Banquinha?

Vão se chegando a mãe, tia, e sobrinha,

E por desgraça (aqui fique entre nós)

Té para a Ronda vão mesmo as avós:

Quizilando o que tem cartas na mão,

Que a primeira inda deu, segunda não:

E se por um acaso deu segunda,

Era vez de a pespegar recebe tunda;

Porque sucede às vezes, cousa rara,

Recolher inda menos que parara,

E atribui logo ao corte da velhinha

Ser a sorte com ele tão mesquinha.

Em outra sala estão tafuis armados

De copos novos, grosas de bons dados:

Treze primeiro que oito, barro, topo:

Levou três onças de ouro, passa o copo.

Busca para o passar qualquer aresto,

Que o parceiro não quer jogo de resto.

Dinheiro só se vê nestes combates,

E em cartuxos nas lojas dos rebates:

Ou seja em Batizado, ou Casamento,

Função de anos, ou outro ajuntamento,

Com outra qualquer cousa não se atina,

Vai-se seguindo sempre esta rutina;

Té depois de um enterro uns enojados

Em casa do defunto os vi sentados

Jogando o Voltarete com franqueza,

Para se distrair mais a tristeza.

Esta a paixão, que é hoje dominante,

E nisto é que a função se faz brilhante,

Sendo do Alcorão que no outro dia

Se murmure de quem nela perdia,

Dizendo-se: Fulano perdeu munto!

Cento e tantos mil reis tinha ele junto,

Em menos de uma hora, mas virou,

Perdeu o ganho, e a bolça despejou.

Um Fulano de tal, que apareceu,

Esse quanto puxou tudo perdeu.

Cento e tantas moedas lá disseram,

Fora cinquenta mais, que se não deram.

Aonde, Portugal, estão sumidos

Teus entretenimentos divertidos!

Aonde estão as Arias, as Modinhas,

Os Quartetos, que ao cravo sempre tinhas?

Os graves Minuetes bem dançados,

Pelas regras da Dança executados!

E no intervalo a Dama mais discreta,

Dando o Mote engenhoso ao bom Poeta

Que em Sonetos, e Decimas galantes,

Pareciam as horas uns instantes.

Estão divertimentos tão luzidos

A baralhos de cartas reduzidos;

Mas se julgas que nisso te confortas,

Verás que o jogo te há de pôr por portas.

Portugal, Portugal! não te conheço!

De te ver nesse estado desfaleço!

Quanto mais faltas vejo de dinheiro,

Mais vejo pôr-se o luxo de poleiro!

Até nos tratamentos tenho visto

Cousas, que fazem rir no meio disto.

Ninguém—Vossa Mercê—quer hoje em dia,

Hão de dar-lhe por força Senhoria:

E por maior nobreza, e mais decência,

Já puxa a Senhoria uma Excelência.

Tem este desacordo muita gente,

Mesmo sem nada ter com que a sustente:

Sem rendas, nem brasões, tudo devendo,

Desta aura popular se vão mantendo;

E a quem nesta mania assim se ceva,

Ninguém lhe vá lembrar Adão, e Eva.

E que direi dos Dons? parecem praga!

Em qualquer parte o Dom nasce, e propaga.

Dons já muito velhos, outros novos,

Além dos Dons, que estão inda nos ovos:

E se a menina em prendas se afamou,

O Dom sai logo à luz, não se gorou.

Eu vejo pais às filhas embutindo

A escolha de Convento, persuadindo

Que passa vida santa, e descansada

Quem vive no Mosteiro clausurada.

E caminhando vão por este trilho,

Para que boa casa fique ao filho,

Fazendo professar as inocentes

Com festas, e visitas de parentes.

Em quanto os pais são vivos bem vai tudo,

As mesadas se cobrão a miúdo;

Vive uma Freira em paz com alegria;

Conformando-se um dia, e outro dia.

Mas em morrendo os pais tudo vai mal,

Nem pelo São João, nem no Natal

Se faz à pobre Freira pagamento,

Té ficar em total esquecimento;

Que o irmão, das mesadas incumbido,

Cuida só em fazer o seu partido:

Destrói a casa toda, como louco,

Que para nutrir vícios tudo é pouco;

Fica a mísera Freira mendigando

Pelas outras, que estão também penando.

Repetindo escrever a quem conhece,

Té ver quem de seu mal se compadece.

Aqui temos os grandes benefícios,

Que os pais fazem com estes sacrifícios,

Obrigando a Clausura, e Profissão

Quem nunca teve aquela vocação;

Sem ver que só aceita a Divindade

Esta vida abraçada por vontade;

Que uma Freira, por força ali metida,

A maldizer-se leva sempre a vida.

E armou-se rede tal com este dolo,

Para se regalar um filho tolo,

Que estraga tudo, sem de si ter dó,

Ficando todos pobres, como Jó.

Eu vejo as circunstâncias malignadas,

As origens dos ganhos estagnadas,

Os gêneros subindo, nós descendo,

Ora tristes chorando, ora gemendo.

Precisa-se dinheiro, não o temos;

E por desgraça nossa até já vemos

Os meios de o haver dificultosos.

Mas entretanto os homens viciosos

Não querem conhecer esta diferença:

Não há flagelo alheio, que os convença

A regular a vida de outro modo;

Não se apartam daquele mesmo engodo;

O mal encaminhado continua,

Gastando o que não tem, que é balda sua.

Deixa a mulher sem pão, filhos sem fato;

E a moça desfrutando um grande trato;

Sem ver que uma mulher desonestada

Não tem caráter firme, é descarada;

Pois basta a causa ser, como é sabido,

Da mulher viver mal com seu marido.

Estas loucas ruina são do homem,

Que quantos reais tem tudo lhe comem;

E porque para tanto não tem rendas,

De ladrão mui subtil nos mostra as prendas:

Qual fogo, que devora quanto apanha,

Com o que não é seu também se amanhã;

E quando se descobre, e se receia,

Ou quebra, ou foge, ou vai a uma cadeia.

O que joga, e que em jogos passa a vida,

Joga sem conta, peso, nem medida;

O que se trata bem, e dá jantares,

Em funções tudo vai por esses ares;

O que tem outros vícios adoptado,

Porque neles está habituado,

Nutri-los é o seu mais belo vinho,

Nem o tempo lhe ensina outro caminho;

Não há destes um só, que se contenha,

Antes nestas despesas mais se empenha;

E não sabendo donde lhe hão de vir,

Como quer às bazófias acudir,

Fingindo que a escassez lhe não faz mossa,

E que inda tem dinheiro, com que possa

Ostentar o que de antes ostentava,

O remate é furtar, pois não o cava.

Portugal, Portugal! não te conheço!

Cada vez mais de ti me compadeço!

Eu vejo umas famílias tolineiras,

Que nunca em suas casas são festeiras;

Ajustam as funções botando a ideia

A terem mesa posta em casa alheia.

Riu-se muito, bastante se brincou;

A família da casa é que o pagou.

A noite foi da véspera perdida,

Só para se acudir com tanta lida

As massas, aos recheios, aos guisados,

A depenar as aves, aos assados:

As criadinhas postas aos fogões,

Padecendo depois constipações,

Que todas trabalharam na oficina,

Para pronta se pôr a papa fina.

Quando o dono da casa sente a asneira,

Já não pode sair da ratoeira;

Mas é bem bom que assim fique ensinado,

Para vir a ser mais acautelado,

E fugir dos ajustes puxativos,

Feitos por certos gênios logrativos,

Prontos para banquetes, onde os há,

Porém que em suas casas só dão chá.

Eu vejo certos homens costumados

A mostrarem-se muito desvairados;

A cousa alguma prestam atenção;

Nas cousas de maior ponderação

Com chufas, e risadas só respondem,

E às vezes muita asneira nisto escondem;

Por sistema, por vicio, ou por maldade

Fogem de conversar com seriedade:

De todas as perguntas fazem mofa,

Só por tratarem tudo de galhofa;

Deixando os dependentes mais aflitos,

Por verem termos tais tão esquisitos:

Sujeitam-se, calando, os que dependem,

Mas ficam em jejum no que pretendem.

Homens assim não são muito seguros,

Que trazem a cabeça sempre a juros.

Cuidado lhes não dá o alheio int'resse,

Pobre de quem depende, e quem padece.

Eu vejo muitas casas de partidas,

Que são com as dos doudos parecidas.

Vem entrando co'a noite os assinantes,

Passão em conversar breves instantes.

A Prima conta à Prima o mau sucesso

De uma esperta gatinha cor de gesso,

Com malhas no focinho, e no costado,

Que fazem o animal muito engraçado:

Relata o muito amor, que ela lhe tem,

Enlevada naquele bom desdém.

Sai dali logo Dona Presumida,

Meia tafula, meia convertida,

(Que ao certo ninguém sabe inda entendê-la,

Se ela é que deixa o mundo, ou ele a ela)

E diz que tem por cousa do demônio

Haver homem, que fuja ao Matrimonio.

Como a matéria é vasta, vai durando,

Uns metendo-a em questões, outros mofando.

Chega o chá co'as fatias transparentes,

Que lhes ficam pegadas pelos dentes.

Assim se passa aquele bocadinho,

Té que as bancas se põem para o joguinho.

Então é que a criada da cozinha

Desenferruja a língua co'a vizinha;

Então é que outra à porta do jardim

De seus amores vai tratar o fim:

E a velha Preta à chaminé, qual mono,

Sempre a cabecear, podre de sono;

Porque os donos da casa divertidos,

Da Partida tirar querem partidos.

Nada os pode fazer deixar o jogo,

Só vindo-lhes dizer que em casa há fogo;

E em quanto se entretém com este aresto,

Fica à vontade da família o resto;

Que por isso da casa mal guardada

Se tem visto fugir filha, ou criada;

Ou suceder a alguma rapariga

O que a decência manda que eu não diga.

Muita cautela, e não facilidades,

Evita nas famílias novidades;

Porque donas de casa não previstas,

Que não sabem deitar por tudo vistas,

Sem determinação, amanho, e zelo,

Hão de achar muito roubo, e desmazelo:

Nos armários mil cousas estruídas,

As casas int'riores nem varridas,

Sobejos de comer dentro do cobre,

Por se não dar de esmola a tempo ao pobre:

Sem duração a roupa, nem asseio,

As línguas das criadas sem ter freio;

Pouco, e pouco a dispensa dizimada;

Louça fina escondida por quebrada;

E os vexados maridos com prudência,

Dizendo lá consigo: Ora paciência!

Porque se ralhão, são insuportáveis,

Se fecham tudo, são uns miseráveis,

Se trombudos, são mal encaminhados,

Se castigão, são homens mal criados;

Elas querem somente andar nas palmas,

E os maridos, que peçam para as Almas;

Com tanto que ande Sempre a bolsa aberta,

Que é quando com marido bom se acerta.

Conheço que há famílias de bom porte;

Não é nestas que assenta este meu corte:

Nem às outras também me determino

Levando nesta critica destino.

Atiro estes meus botes não pequenos,

Porque o mundo tem disto mais, ou menos.

Eu vejo uns homens ricos sufocados,

Té da sombra dos mais desconfiados,

Que vão, por ver se fica bem segura,

Mil vezes apalpar a fechadura

Da burra, que num lado tem da cama,

Temendo da família alguma trama;

E homens tais, afogados em riquezas,

Raras vezes se lembram da pobreza;

Havendo casas tão necessitadas,

Nunca por eles são remediadas:

Por mais ouro, que tenham, que lhes sobre,

É raro quando dão dez reis a um pobre.

Um só rasgo não tem de caridade

Para a triste viúva, ou orfandade.

Não sei que contas fazem homens tais

Ajuntando, e escondendo os cabedais!

Morrem té sem fazerem testamento,

Espirando num trato o mais nojento,

Depois de vida sórdida, e mesquinha,

Que nem mandão comprar uma galinha.

E vão-se deste mundo rebolindo,

Em quanto deles fica o mundo rindo:

Acabam suportando aquela surra,

Botando sempre os olhos para a burra.

Ora descanse em paz, senhor defunto;

Cá fica quem lhe espalhe o que tem junto!

Eu vejo certos homens sistemáticos,

Que em tudo quanto pensão são fanáticos:

Cada fala é o estrondo de uma bomba,

Até parecem ter de porco tromba;

Falam pouco, e não gostão de ouvir nada,

Tudo quanto se diz tudo os enfada.

Um Cavalheiro deste paladar

Na loja de um barbeiro foi entrar.

O mestre fez-lhe a barba in continente,

Mas no muito falar impertinente.

Feita a barba, o soturno Cavalheiro

Disse ao tal falador mestre barbeiro:

Pois que o vejo verboso em novidades,

E em discursos de várias qualidades,

Queira dizer-me, que saber preciso,

Qual é o animal de mais juízo?

Que era o boi, respondeu o mestre pronto.

Isso somente expressa um homem tonto,

Lhe disse o cavalheiro, e não cuidava

Que uma resposta avessa assim me dava.

Tornou-lhe o mestre: é o cão ao dono grato.

Também não acertou por mentecapto,

Lhe disse o Cavalheiro, ouça-me atento,

Para tirar daqui um documento.

O bode é o animal nada ignorante,

Porque sendo de barbas abundante,

Tendo-as compridas, nunca as quis fazer,

Somente por barbeiros não sofrer.

Assim ficou o mestre corrigido,

Para ser em falar mais comedido.

Portugal, Portugal! não te conheço!

E quanto tu padeces, eu padeço!

Pois te vejo mais triste do que o dia

De invernosa estação! Quem tal diria!

Andas debilitado, empobrecido,

Saudoso, sem descanso, e esmorecido!

O teu Xavier de Mattos bem falou,

No galante Soneto, que traçou,

Quando disse com arte, e natureza,

Que dá soturna imagem da tristeza

Era um retrato vivo, e verdadeiro

Qualquer homem de bem sem ter dinheiro;

Cuja falta tem feito no presente

A ruina fatal de tanta gente.

Mas no meio de quanto se padece,

Um gênio criador nos aparece,

Que por nossa fortuna nos oferta.

Uma bem importante descoberta:

E bem se deixa ver no raro invento

O quanto pode um homem de talento.

De bons engenhos nasce a emulação,

Com que se aperfeiçoa uma nação.

Receba parabéns toda a Cidade

De uma cousa de tanta utilidade.

Não suponham que é plano, ou são maneiras

De a ferrugem tirar às oliveiras:

Não cuidem que é fazer dar direção

Um viajante aéreo ao seu Balão:

Nem deve presumir também o povo

Que tem de guarda-quedas molde novo:

Este invento os perigos acautela,

Mas em substância é cousa mui singela.

Agora me parece estar ouvindo

O Leitor curioso sério, ou rindo,

Dizer-me ou assentado, ou posto em pé:

Basta de franja, acabe, diga o que é!

Ora eu o satisfaço: há um Fulano

Dos que vestem casaca de bom pano,

Que por ideia sua, e risco seu

Para uma tenaz o molde deu.

Eu a vi, a qual era fabricada

De um puído metal, obra asseada:

Um destes ferros de encrespar cabelo

É mesmo o da tenaz fiel modelo.

De curioso eu, que o traste via,

Logo quis indagar de que servia?

Disse-me o inventor que fora feito

Por servir a quem fuma de proveito:

Que o lume no cigarro mais atura,

Uma vez que a tenaz é que o segura;

Que faz esta invenção perder os medos

Aos cigarristas de queimar os dedos;

Que os Mouros tem cachimbos de uma vara,

Que a tenaz é asseio, e moda rara.

Agora se descobrem novas minas,

Com outras invenções mais genuínas;

Já temos um moinho de vapor,

Que o de vento não mói talvez melhor.

De vapor hão de haver carros também:

Nas seges eu espero o mesmo trem.

Se a cousa for feliz, e se pegar,

Muitas cousas havemos de poupar!

Os machos, desta sorte, escusos são,

Hão de ficar em bestas de ceirão

Não terão preço a palha, nem cevada.

Se chego a ver tal maquina ultimada,

Afetando de grande personagem,

Protesto sempre andar de carruagem.

Grande cousa há de ser, se se inventar

O modo do vapor nos sustentar!

Despeço-me de açougues, e Ribeira,

E digo adeus à Praça da Figueira.

É tudo isto bem bom; mas o pior

É faltar o dinheiro no melhor!

E assim como nas Caldas toda a gente

Se anda sempre queixando de doente,

Nós aqui com a mesma singeleza,

Só ouvimos clamores de pobreza:

Moléstia, que amofina, e que faz tedio,

Que nem nas Caldas pode achar remédio.

Luxo, e mais luxo, podres, e mais podres,

Tudo cheio de vento, como os odres!

Há uns homens sagazes de tal sorte,

Que desfrutarem muito é o seu forte;

Pois no ramo, em que lidam, e em que estão,

Não deixam escapar ocasião:

Vão-se enchendo, e fazendo caramunha,

Só para que ninguém lhes veja a unha:

Mostram-se mui zelosos com sistemas,

Mas tem sempre o seu ovo duas gemas.

E aqui fica a razão verificada

De uns virem a ter tudo, e outros nada!

A uns tudo lhes vai bater à porta;

Outros não passão já da cepa torta!

Isto mesmo sucede a mais de mil,

E eu comparo estas cousas a um funil.

O que pode beber pelo bocal,

Sacia-se, e não vai de todo mal;

E quem pelo canudo sorve o vinho,

Tira quinhão, porém muito mesquinho.

Portugal, Portugal! o que bem pensa,

Tem encontrado em ti grande diferença!

Perdeste em alguns homens a verdade,

Que dava sempre tom à sociedade.

Em poucas partes há palavra firme,

E não falta com que isto se confirme.

A minha Musa de apontar se isenta,

Melhor o há de aplicar quem o exp'rimenta.

Eu admiro nos homens hoje em dia

De tocar os extremos a mania!

Que ou perdulários gastam quanto tem,

Fazendo mal a si, e aos outros bem;

Ou tão mesquinhos são, tão acanhados,

Que nem bons dias dão, por serem dados.

Pouco briosos são, faltos de ações,

Remoques não lhes fazem vexações:

Nada querem, que custe um só vintém,

Só o que é de tolã lhes sabe bem.

Não querem acertar num meio termo;

Estes, e outros que tais te põem enfermo.

Os homens de algum dia praticavam

A boa educação que os Pais lhes davam;

Mas hoje alguns modernos estou vendo,

Que logrativos vão o tempo enchendo,

Porque o que de espertezas mais se jacta,

Engana aquele mesmo com quem trata.

Tem-se hoje descoberto novos trilhos;

Nem há filhos por pais, nem pais por filhos:

Não vejo senão gênios desiguais;

Usam todos de termos mui gerais:

Verbi gratia, Desejo-lhe prestar;

Se precisar de mim, há de me achar;

Conheça que sou sempre seu amigo;

Em tudo o que eu puder, conte comigo.

Tudo palavras ocas, sem substância,

Ditas sem fé, com arte, e sem constância.

Também vejo alguns homens em balanças

Navegando no mar só de esperanças:

Figurões, que povoam este mundo,

Mas tem os fundos seus todos no fundo.

Abalroam co'a gente empavesados,

Em quanto se não mostram naufragados;

Depois são qual a uva já passada,

Que mostra baga, e pele, e sumo nada.

Portugal, tu tens tido alguma gente,

Que se tem feito a si, e a ti doente.

Muita especulação vejo eu fazer,

Que em lugar de lucrar, bota a perder;

Pois de ter perda certa não se isenta

Quem para tirar dez dispende oitenta.

Portugal, Portugal! não te conheço!

Que me fazes tristeza te confesso!

Homens há mais nocivos do que a peste,

E senhoras também de gênio agreste:

Enfadam-se com todos, e com tudo,

E parece que o fazem por estudo!

Não cessão de ralhar, e de moer

As famílias, por dar-lhes que sofrer:

Trazem a casa toda em labirinto,

Pela condição áspera, que pinto.

Também homens encontro de tal modo,

Que assentão que é já seu o mundo todo;

Umas caras, que estão sempre estanhadas,

Que ou riem muito, ou são embuziadas.

Com condições assim não há quem possa,

A repreensão não vexa, nem faz mossa.

Isto nasce dos mimos, que lhes dão

Nas faltas da primeira educação.

Vejo uns homens também afeminados,

No gesto, e no falar muito afetados,

Todos sentimentais, cheios de nicas,

Que algum dia chamavam-se Maricas;

Mas assentaram hoje bons engenhos,

Que deviam chamar-se homens gamenhos.

A origem deste nome bem se aponta

Num caso jovial, que aí se conta.

E são recomendáveis tais figuras

Nos trejeitos, e vãs caricaturas;

Té mastigam fazendo muito momo

O cheiroso Indiano cardamomo,

O qual trazem na boca largas horas,

Para terem bom bafo entre as senhoras;

Nem perdoam ao seu mestre barbeiro

A dedada de banha de bom cheiro.

E já houve um, que tendo a irmã de parto,

E entrando casualmente no seu quarto,

O cheiro da tal banha muito ativo

Da pobre endoudecer foi o motivo.

Antes do Terremoto se muniam

De pastilhas de cheiro, que traziam,

Em pivete, e em almíscar enfrascados,

Pareciam de alcorce ser formados.

Destas verdades não se escandalizem,

Que ainda há velhos vivos, que isto dizem.

Então eram faceiras, e casquilhos

No princípio da moda dos polvilhos;

Pelos tempos vieram a peraltas,

Mas hoje são tafuis, e alguns com faltas:

Os quais agora tem por maravilha

A barriga apertarem c'uma cilha,

Enfivelada com tal arte, e jeito,

Que a barriga se encolha, e alteie o peito;

Porque querem mostrar que podem ter

Perfeitos patriotismos de mulher.

Que errei esta palavra não se pense;

Pois vem na biblioteca Tafulense

Com pitéu, com pinoia, com chalaça,

Cucanha, mujangué, Caurim, que embaça

E para o peito ter maior altura,

E mostrar o que querem na figura,

Dão aos seus alfaiates a matraca

De almofadar as bandas da casaca.

Ora em trazerem cilha acho razão,

Visto haver ferradura por tacão!

São estas invenções todas de fora,

Nós somos de outros reinos firme escora.

Os mais aprestes eles virão vindo,

Pois que as outras nações ficam-se rindo,

Mandando engodos tais a Portugal

Por somas de dinheiro em bom metal.

Tomara persuadir aos que usam disto

Que usassem o que a muitos tenho visto:

Nas modas meio termo, e na despesa,

E nada de emendar a natureza.

Deixemos que um tal sestro as Damas tomem;

Que a perfeição do homem é ser homem,

E não trazer pescoço almofadado,

Tingir cabelo já esbranquiçado,

Ou pôr grande chinó da cor da amora

Co'as belezas mui brancas, e de fora,

Como vejo aos que são de meia idade

Filhos só do amor próprio, e da vaidade:

Com outros desacordos deste lote,

Que decerto não falta quem os note.

E que direi de velhos enfeitados,

Que são a um cepo bem assemelhados?

Assim como eu, que o digo, a quem os anos

Feito um espelho tem de desenganos,

Mas se viúvo estou, e já maduro,

Viúvo ficarei pelo seguro.

Não obstante eles verem-se encolhidos,

De pernas a vergarem carcomidos,

Assim mesmo meninas vão buscar,

Querendo-lhes fazer seu pé de altar:

Sem se lembrarem que uma franga nova

Atira com um velho para a cova.

Se buscassem dos anos a igualdade,

Inda lhes perdoaria a leviandade;

Mas quererem que as pobres raparigas,

Que por pouco escaparam das bexigas,

Atrás de algum vintém vão à lambujem,

E que morrão de nojo, e de rabugem!

Não posso levar tal à paciência!

Amor isto não é: conveniência.

Que em casamentos tais bem se conhece

Serem elas escravas do interesse.

Que prazer pode ter muito a seu salvo

A que se liga a um velho chocho e calvo?

É muito natural mais lhe aborreça,

Se calvo for de quanto há na cabeça;

Pois velho, que namora, e que se enlaça,

Tem a cabeça igual a uma cabaça;

E porque a natureza lhe é avessa,

Se tem dor de vazio é na cabeça.

Coitado! na figura, em que se vê,

Já podiam chamar-lhe a morte em pé.

Mas no dia do alegre casamento

Ressuscita com tal contentamento,

Que é pena ter o velho, que faz rizo!

Ressurreição sem dia de juízo.

Também noto que um velho de algum dia

Para a terra curvado é que pendia,

Grossa bengala a corpo ia sustendo,

E sobre as costas a marrã crescendo

Mas parece que a mesma natureza

Nos quer mostrar que nada tem firmeza;

Pois que os velhos, a quem tudo desanda,

Andam hoje tombados a uma banda.

Na velhice o estupor se reconcentra,

E não torna a sair uma vez que entra.

Por acaso algum dia se falava

Que em alguma pessoa estupor dava.

Eu sim me enganarei, mas ajuízo

Que nos vem este grande prejuízo

Do pão, do vinho, do vinagre, e azeite,

Quando gêneros tais levam enfeite.

E se isto assim não é, porque razão

Só em Lisboa há tal repetição?

E lá fora nas Villas, e Cidades

São estas cousas umas raridades?

Porque há lá menos gente? Não convence;

Bem que é mui natural que assim se pense.

E hoje até na florida mocidade

Se está vendo uma tal calamidade;

Mas os moços, além da razão dada,

Tem outra circunstância mais pesada,

Que é o irem por gosto aos sacrifícios,

Para as forças perderem pelos vícios.

São a saúde, e o tempo dois objetos

Estimados dos homens circunspectos;

E diz a mocidade que também

Estas cousas em grande valor tem:

Porém com apetites, e loucuras

Enxadadas vão dar nas sepulturas.

Um perdeu a substância, o outro a cor

Aquele anda tolhido de uma dor.

E já tantas moléstias lhes acodem.

Que nem armas, nem letras seguir podem:

Sobrevindo-lhes tal debilidade,

Que não podem gozar de longa idade.

Perdem filhos os pais, o Rei vassalos,

Porque a chusma dos vícios vem cortá-los.

Neles a mocidade é que se ilude

Para estrago do tempo, e da saúde:

Preciosidades estas, que perdidas,

Não vemos com que possa o ser supridas.

Portugal, Portugal! não te conheço!

Do que és, e do que foste não me esqueço!

Dos teus usos antigos te tiraste,

E é problema entre nós se melhoraste!

Do que tinhas melhor já te esqueceste,

E o que perder devias não perdeste!

Puseste cousas mil em confusões

Das modas, que te vêm de outras nações:

Té desprezas o solido alimento,

E por isso te vejo tão gosmento;

Não tens senão defluxos catarrosos,

Indigestões, torpores perigosos,

Com que continuamente te pranteias,

Fruto de altos jantares, grandes ceias:

Há cinco, e seis cobertas, e há pessoa,

Que a um só prato que seja não perdoa.

Um indivíduo assim Pai, Pai segundo,

É capaz de comer quanto há no mundo.

Fica esmola a pedir quem o suporta:

Tal gente longe vá da minha porta!

Portugal, sê na mesa acautelado;

A gula te vai pondo em triste estado:

Já nas casas de pasto frequentadas,

Já nas mesas dos ricos enfeitadas,

Mostras fastio à sopa, vaca, arroz,

Só queres fricassés, e fricandôs;

O rosbife, que em sangue inda escorrendo,

Os estômagos vai assim perdendo;

Rabiolos, fatia à Prussiana,

Pitéus de toda a casta de chanfana;

Que há cozinheiro tal, tão delicado,

Que de folhas de parras faz guisado,

Mujangués, vários molhos, e frituras,

Leite creme, pudins, e outras misturas,

Compotas com as caldas refervidas;

Tudo isto pouco a pouco acaba as vidas.

Depois tens nos cafés vastos licores,

Que alguns até se bebem pelas cores:

Um porque é cor de rosa muito vivo,

Outro o ser cor de goivo faz motivo;

O de cravo, que agita, bem que esquenta,

Hum, que se estima de hortelã pimenta;

O licor de canela, o marrasquino,

Licor de ouro também que é caro, e fino.

Eu inda espero ver licor de cardos,

De alfazema, tomilho, e lírios pardos.

Sai um Taful dali, que é todo brasa;

Se tomasse cantáridas em casa,

Não julgava ficar assim tão forte;

Quer conservar a vida, e busca a morte.

Se não se emenda disto, anda enganado,

Cuida que morre cru, morrendo assado.

Portugal, em mil cousas tens mudado!

Só te vejo aos abusos aferrado!

Por exemplo: jogar-se tanto o entrudo,

Em que se insulta o homem mais sisudo,

Com água, pós, laranjas, pulhas, peças,

Em que aberto se tem tantas cabeças!

Louvo que jantes bem nesses três dias,

Mas reprovo da ceia as demasias.

Pois comes sem discurso, ou reflexão,

Para teres p'rigosa indigestão!

Tens outro abuso, que é serrar a velha,

Tolice, que não pode ter parelha;

Para andarem por frios, e por lamas

Os homens a fugir das suas camas,

Fazendo levantar, vir à janela,

Para se constipar esta, e aquela,

Que sem juízo algum ama, e criada

Perdem a noite nessa mascarada,

Até que no outro dia a cozinheira

Dá ao demo tão grande baboseira;

Pois não podendo o sono disfarçar,

Deixou entrar o caturro no jantar.

E que direi também das boas Festas?

Não devo criticar cousas como estas;

Porque trazem motivo mui sagrado,

Com que todo o Cristão, bem educado,

Deve ter alegria, e grande gloria

Em trazer tais motivos à memória.

Mas quisera, encontrando-se as pessoas,

Que abraçando-se, dessem Festas boas;

E que os que mais pudessem nestes dias,

Embora usassem grandes bizarrias,

Mandando, não Bilhetes de presente,

Mas sim cousas, que alegrem o olho à gente:

Bons perus, porcos, patos, ou perdizes,

Seis galinhas com doze codornizes,

Tortas, pudins, pasteis, ou pastelões,

Finas broas, gostosos massapões.

Eis-aqui umas Festas de prazer,

Que são de consolar, e agradecer.

Isto prova a amizade ser fiel,

E val’ mais que tirinhas de papel,

Ou Bilhetes de nomes em cartão,

Que os criados às vezes nem os dão:

A sege mui fechada à porta chega

A procurar aquele, que se nega;

E muito digno é de se notar

O que de ambos devemos ajuizar;

No da sege bem é que se suponha

Que de dar Boas Festas se envergonha;

Porque vai tão fechado, e tão oculto,

Que parece que teme algum insulto.

E esse, que em casa está, do amigo à espreita,

Em não falar-lhe faz-lhe uma desfeita.

Por isso implicam tais formalidades

Com as bem reguladas amizades.

Dizem que quanto mais se vai vivendo,

Mais cousas, nunca vistas, se vão vendo;

Mas eu outro conceito é bem que forme,

Que quanto mais se vive, mais se dorme;

E dou esta razão, porque suponho

Que viver, e dormir é tudo um sonho.

Sonho parece quanto vejo, e digo,

Além do quanto fica só comigo.

Porém vamos a cousas divertidas,

E falemos de velhas presumidas,

Que algumas há de tanta afetação,

Que por invencioneiras dão pensão.

Uma velha vi eu tão melindrosa,

Que fugia do cheiro de uma rosa,

Dizendo lhe exaltava logo o flato;

Tão estragado estava aquele olfato!

Sucedeu de visita ir esta lesma

A casa de outra igual Dona Seresma

A tempo que entrou logo outra visita

De uma grave Senhora, mui bonita,

A qual tinha nas tranças espetada

Uma perfeita rosa avermelhada;

E porque ao pé da velha se assentou,

Logo a velha aos arrotos começou,

Dando desta moléstia por motivo

Daquela rosa o cheiro muito ativo:

Foi crescendo a aflição a mais e mais,

E com afrontamentos grandes ais;

Caiu do canapé torcida toda

Com uma convulsão destas da moda.

Acudiu-lhe a Senhora a toda a pressa,

Que trazia a tal rosa na cabeça,

Dizendo que era seca, e que a comprara,

Por ser rosa de musgo, linda, e rara;

Obra feita por mão de uma Francesa,

Que nas flores imita a Natureza.

Quando a velha ouviu tal, envergonhada,

Fingiu tornar a si com lã queimada;

E foi então geral a zombaria,

Que fez da dita velha a companhia.

Eis-aqui as moléstias, que dão rizo,

E a que se expõem com faltas de juízo

As velhas infundidas em vaidade,

Que querem sempre estar na flor da idade;

Que há velha, que no modo de trajar,

Presume as raparigas desbancar.

Eu vejo raparigas enfeitadas,

Retóricas, porém pouco aplicadas,

De orelha palavrinhas apanhando,

Com as quais aos tafuis vão afetando.

Uma carta vi eu de uma senhora,

Muito desvanecida de Doutora,

Cuja carta era em verso, e era de amores:

Queixas de ausências, zelos raladores;

Quando só tinha lido a mocetona

As guerras de Alecrim, e Manjerona.

A carta não me lembra até ao fim,

Porém o seu princípio vinha assim;

De pungentes receios combatida,

Lembrando-me talvez o ser traída,

O meu ciúme trepido, fervente

Adeja sobre mim avidamente:

Eu desafio a magoa, e a impaciência

No campo dilatado de uma ausência,

Ululando, e exprimindo o sentimento,

Que me despenha em grande abatimento:

Anelando apelar nesta fraqueza

Para o tribunal dubio da fineza.

Que tal foi este parto sem parteira?

Ella chamou-lhe carta, eu chamo asneira.

Não critico as Senhoras instruídas

Em bons Autores, e Obras escolhidas,

Que com princípios bons de educação

Mostram que tem juízo, e tem lição:

Senhoras há discretas, que nas falas

Tomaram muitos homens imitá-las.

Também não noto aquelas coitadinhas,

Que lidam com dedal, agulha e linhas,

Vivem do bastidor, ou da almofada,

Que essas tempo não tem para mais nada.

Só murmuro daquela não sisuda,

Que em três dias a forma às modas muda,

Que só cuida do luxo mui garrida,

Da beleza, que tem, desvanecida;

Não lhe importa nem ler, nem trabalhar,

E o que sabe é somente namorar,

De janela esperando os valdevinos,

Feitas uns papagaios femininos;

Formosuras pasmadas quanto a mim,

Bem próprias para estátuas de jardim.

Portugal, Portugal! não te conheço!

Cada vez te vou vendo mais avesso.

Eu vejo também homens presumidos,

Com desvanecimento de instruídos;

Porém é um saber tão fofo, e escasso,

Que andam a tropeçar a cada passo.

Criticam tudo, nada se respeita,

Sem saber onde tem a mão direita.

Sofrer já mais se pode que a ignorância

O mérito confunda co'a jactância.

A ponto se me está representando

Um caso, que nos vem aqui frisando:

Nosso insigne Pintor Alexandrino

Falou ao Preto velho Pai Justino,

Para que lhe caiasse a propriedade

De umas casas, que tinha na Cidade.

Caiou-lhe o Preto a frente muito bem,

E no fim não lhe quis levar vintém,

Dizendo que um a outro companheiro

Era desatenção levar dinheiro.

Ora, assim como o preto, muita gente

Sonha em ser grande cousa de repente!

Assentemos que o mundo cada dia

É de doudos extensa enfermaria;

Porque um ser Matemático projeta,

Outro insigne Pintor, outro Poeta;

Um a Musico vai, outro a Letrado,

Outro na Medicina é enfronhado;

Um é Filósofo, outro é Arquiteto,

Outro quer ser da Lua, e do Sol neto;

E muitos sem princípios, nem razão,

Não sabem mostrar mais que presunção;

Pretendendo roubar a fama, e gloria

A quem cansou com livros a memória.

É tudo entusiasmo, e parvoíce,

Desconcertos nascidos da doudice:

E nas várias manias, que contém,

Assenta cada qual que assim vai bem.

Mas se viver por gosto assim pretendem,

Que nem já uns aos outros bem se entendem,

Vão vivendo, que as cousas deste mundo

Umas ficam em cima, outras no fundo;

Porque a razão nos mostra, e nos ensina

Que tudo toca a meta, e então declina.

Portugal, Portugal! não te conheço!

Quanto mais penso em ti, mais esmoreço.


Explicação dos Enigmas, Adivinhações, e Charadas do 1.º Folheto, ou primeira Parte desta Obra.

O 1.º Enigma é = a letra O = o 2.º = Dedos == o 3.º = Pares de luvas = a Adivinhação = Figos = a 1.ª Charada = um Soldado = a 2.ª Charada = um Caçador =.

Escolher té acertar.

Improviso do Autor.

Tafuizinhos deste tempo,

Se estado quereis tomar,

Deveis com muito sentido

Escolher té acertar.

Daquela, que rir sem tempo,

E esperta de mais falar,

Fugir de se lhe dar corda,

Escolher té acertar.

A que de lograr os homens

Com jactância se gabar,

Nem mais pôr-lhe a vista em cima,

Escolher té acertar.

Rapariga janeleira,

É bom dela não fiar,

Namora a muitos, pois quer

Escolher té acertar.

A que às modas aferrada

A moda não perdoar,

Deixá-la, mas logo ir outra

Escolher té acertar.

A que der costura fora,

E meias a acrescentar,

Deixá-la ir pela malha,

Escolher té acertar.

Daquela, que crê em bruxas,

Que se anda sempre a assustar,

Fazer-lhe uma cruz à porta,

Escolher té acertar.

Não vos enleve a menina,

Porque canta, e vai valsar;

Sem tempo, não há escolha,

Escolher té acertar.

Fingi ter paixão por todas,

Depois uma excetuar,

Fazei o que elas vos fazem,

Escolher té acertar.

Mal que a escolha se fizer,

Sem demoras ir casar,

Mas tomar bem as medidas,

Escolher té acertar.

Qualidades da senhora

Podeis por fora indagar,

Indagar não dá, nem tira,

Escolher té acertar.

O laço do Matrimonio,

Dado sem se ponderar,

Traz depois sempre a desordem,

Escolher té acertar.

Todos sabem que é melhor

Prevenir do que emendar,

Com brio, honra, e decência

Escolher té acertar.

Ser amante, e não velhaco,

Prometer, e não faltar,

E para mais segurança

Escolher té acertar.

Os que nada tem de seu,

Nem tem gênio de casar,

Desenganem, porque escusam

Escolher té acertar.

Hoje as mulheres não querem

Os maridos sustentar,

Antes tomam por sistema

Escolher té acertar.

Donzela, ou viúva rica

Pobretões não vão buscar,

Vão entre os homens chineiros.

Escolher té acertar.

Casamentos com juízo

Poucos vejo efetuar,

Se Amor vai com o interesse

Escolher té acertar.

Formosura, e qualidades

Já ninguém vai disputar,

Se o dinheiro é quem traz tudo,

Escolher té acertar.

Porém siga embora o mundo

Esse modo de pensar,

Ide só honra, e juízo

Escolher té acertar.

Vós deveis sem ambição,

Se tendes com que passar,

Nas honestas, recolhidas

Escolher té acertar.

As ricas devem também

Homens de bem amparar,

E nos mais bem comportados

Escolher té acertar.

Se todos isto seguissem,

Melhor se haviam de achar;

Mas dinheiro quer dinheiro,

Escolher té acertar.

A final será virtude

Pensões do estado notar,

E depois outro destino

Escolher té acertar.


Minhas filhas não caseis.

Improviso do Autor.

Namoradinhas da moda,

Vede bem o que fazeis,

Com tafuis atordoados,

Minhas Filhas não caseis.

Se tomais paixões de amor,

De velhas não morrereis;

Tira amor anos de vida,

Minhas Filhas não caseis.

Todos uns santos se inculcam,

Namorando cinco, e seis,

Em lhes conhecendo a balda,

Minhas Filhas não caseis.

São uns em quanto pretendem,

Depois são hidras cruéis,

Como a cobra, a pele mudam,

Minhas Filhas não caseis.

Destes frangainhos novos,

Ó Filhas, não vos fieis;

Andam sempre dando às azas,

Minhas Filhas não caseis.

Trazem-vos anéis das feiras

De vintém, e de dez reis,

Porque a mais chegar não podem,

Minhas Filhas não caseis.

De educação, e de gênio

É justo vos informeis;

Com homens desconfiados,

Minhas Filhas não caseis.

Entre a guerra dos ciúmes

Num tormento vivereis;

Meninas, coração livre,

Minhas Filhas não caseis.

Depois da primeira ofensa

Segunda não espereis,

Fugi sempre a lograções,

Minhas Filhas não caseis.

Como é raro em Lotarias

Achar a dos dezesseis,

É raro achar bom marido,

Minhas Filhas não caseis.

Não duvido que finezas,

E mil excessos acheis;

Mas são iscas para a rede,

Minhas Filhas não caseis.

As cartinhas amorosas,

São finezas em papeis,

O papel tudo consente,

Minhas Filhas não caseis.

Por uma verdade só

Mentiras mil sofrereis,

Olho vivo, prevenção,

Minhas Filhas não caseis.

Como Amor cego se pinta,

A mesma queixa tereis,

Se haveis cair por cegueira,

Minhas Filhas não caseis.

Aturar os pequerruchos,

Do marido os aranzéis,

São cousas, que custam muito!

Minhas Filhas não caseis.

Vós em casa com mil sustos,

Eles por outros quarteis;

Vós em jejum, eles fartos,

Minhas Filhas não caseis.

Casar, e ficar depois,

Como muitas achareis,

Viúvas, pobres, doentes,

Minhas Filhas não caseis.

Os velhos são rabugentos,

Os moços são infiéis;

Como há pouco, onde se escolha,

Minhas Filhas não caseis.

Por sustos, penas, cuidados

O descanso não troqueis,

Solteiras não sois escravas;

Minhas Filhas não caseis.

Rir, brincar, zombar de todos

É bem bom, se isto fazeis,

Não vos enterreis em vida,

Minhas Filhas não caseis.

Vivei libertas, Meninas,

Que contentes vivereis;

Boi solto lambe-se todo,

Minhas Filhas não caseis.

Bem conheço, minhas Filhas,

Que em velhas pouco valeis;

Mas que serve acertar mal?

Minhas Filhas não caseis.

Amor, juízo, e fortuna

É com que acertar deveis;

Isto é bom, mas onde há disto?

Minhas Filhas não caseis.

Nisto, que digo, vos mostro

O fruto, que tirareis;

Só por três dias de festa,

Minhas Filhas não caseis.

Abraçai os meus conselhos,

Porque vos não enganeis,

Mandai Amor à tabúa,

Minhas Filhas não caseis.


APÓLOGO.

A Galinha e os Pardais

Numa reserva de estrume

Galinha sôfrega andava,

Espalhando com os pés

O deposito, que achava.

Bando de espertos Pardais

Muito de perto a seguiam,

Quanto ela esgaravatava

Eles, famintos, comiam:

Neste, naquele lugar

Andava a triste cansada;

Os Pardais comiam tudo,

A pobre Galinha nada:

Té que sacudindo as azas,

Virou de repente, e viu

A manada charladora,

Que àquele estrume acudiu.

Então disse: Está mui bom

Esse modo de viver!

Eu descobrindo, e espalhando,

Para os mais virem comer!

Por certo que estou lograda!

Noutra não torno a cair:

Donde vir estes gulosos

Eu cuidarei de fugir.

Um Pardal de escuro bico

Dos outros saiu à frente,

Que por ser Pardal já velho,

Se julgava inteligente:

E querendo despicar

Aquela descompostura,

Deu à Galinha em resposta

Esta sentença madura:

Este lugar, em que andamos,

Não é vedado a ninguém;

Temos a ele o direito,

Que qualquer Galinha tem:

De mais há outro motivo;

Quem por espalhar trabalha,

É certo que já não quer

As mesmas cousas, que espalha:

Nós aproveitamos tudo

Fiados nesta razão;

Ninguém é tolo, que deixe

De aceitar o que lhe dão.

A Galinha envergonhada

Das satisfações, que ouviu,

Deu uma volta em redondo,

E nem mais o bico abriu.

Os que acham dinheiro junto,

Como herdeiros de seus pais,

Fazendas, copa de prata,

E outros muitos cabedais;

Que espalham tudo por vícios,

Apetites, e funções,

Dando cabo do que tem

Com loucas combinações,

Talvez que mais se acautelem,

Se disto se recordarem:

A Galinha espalha, espalha,

Para os mais se aproveitarem.


CONTO EPIGRAMÁTICO

Há pelas casas das Sortes

Três Tabelas penduradas

Com atrativas fortunas,

Mas são fortunas pintadas.

Tem por cima Prêmios grandes,

Que se chamam de cabeça;

Por baixo os mais diminutos,

Em que a gente nada int'ressa.

Entrou na loja um Lapônio,

Querendo Sortes comprar,

Meteu pronto a mão na caixa

A rir muito, e a perguntar:

Diga-me senhor caixeiro,

Porque saber me convém,

Se esses Prêmios de cabeça

Todos esta caixa tem?

Respondeu um dos que estavam

Arrumados ao balcão:

Descanse; que os de cabeça

Todos nessa caixa estão:

Cabeça é que nós não temos

Em vir sentar-nos num banco

A trocarmos o dinheiro

Por iscas de papel branco.


CONTO

Do Sábio por imaginação.

Certo Rapaz de Província

A Lisboa veio dar,

O qual não sabia ler,

Nem escrever, nem contar.

Para ganhar o sustento

Pôs-se a servir um Letrado,

Esperto, pronto, e fiel,

Mostrando-se um bom criado.

De três a três meses o Amo

Por costume lhe dizia:

Esfrega-me essas estantes,

Limpa-me essa Livraria.

Ajuntou alguns vinténs,

E a sua pátria buscou,

Onde se estabeleceu

Com fazendas que comprou.

Lá na Botica da terra

Ele ia as noites passar

Com o Cura, e mais pessoas,

Que ali vinham palestrar.

Numa noite uma questão

Se moveu c’um Estudante,

Em que ele se foi meter

Por atrevido e ignorante.

Instava sem reflexão

Dizendo: É que me faltava;

Se por ter aberto livros

Vossa Mercê me encovava.

Eu também Livros abri,

Lidei com discreta gente;

Não jugue o senhor novato

Que acha em mim algum demente.

O estudante, que sabia

Que o tal servira um Letrado,

Querendo-o desmascarar,

Lhe respondeu enjoado:

Eu sei que livros abriu,

Mas diz gente verdadeira,

Que abria livros alheios,

Para tirar-lhe a poeira

Eis como alguns impostores

De sábios querem ter fama,

Lendo só rostos de Livros,

Nada fruto, e tudo rama.

Não estudam, nem se canção;

Querem que a sabedoria

Se pegue, bem como a febre

Em tempo de epidemia.


CONTO EPIGRAMÁTICO.

Havia um homem sagaz,

E bastante indagador;

Sempre das vidas alheias

Queria ser sabedor.

Por conseguir o seu fim

Valia-se de mil modos,

Louvando, ou dizendo mal

Sabia tudo de todos:

Com perguntas, e rodeios

Botava a rede em cautela:

Quem conversava com ele

Por força caía nela.

Adoeceu gravemente;

E um Médico foi chamado,

Que da língua deste enfermo

Vivia escandalizado:

Receitou-lhe um vomitório,

Mas com ele não lançou;

Repetiu segunda dose,

Igualmente se frustrou;

Até que o Médico disse:

Pasmo do caso presente!

Não vomitar quem tem feito

Vomitar a tanta gente!

E pois que o meu vomitório

Nada, ou pouco lhe aproveita,

Se quer vomitar, amigo,

Use da sua receita.


CONTO

Do Homem e o Macaco

Um Capitão de Navios

Trouxe do Brasil um Mono

De condição vingativo,

Mas fagueiro com seu dono.

O dono estimava-o muito,

E o Macaco o conhecia;

Disto dava o bruto provas

Nas festas, que lhe fazia.

Trepava por ele a cima,

Catava-o de quando em quando,

Punha-lhe a mão pela cara,

De roda dele pulando.

Ao animal finalmente

Só lhe faltava falar;

Tendo o dono ao pé de si,

O seu forte era brincar.

Viu o Macaco uma vez

Seu dono matar um galo;

Pilhou-o fora de casa,

Tentou também imitá-lo:

Entrou pela capoeira

Com uma faca na mão,

Foi matando tudo a eito,

E atirando para o chão.

Vindo o dono para casa,

E achando tal mortandade,

Esconjurou o Macaco,

Mais a sua habilidade;

Mas passando-lhe a paixão,

C'um pau o ameaçou,

Deu-lhe uma leve pancada,

E com dó dele ficou.

O bruto, que não perdeu

A pancada da lembrança,

Mesmo à bruta não deixou

De tomar dele vingança;

E pilhando no outro dia

O dono ao pé descuidado,

Botou-lhe com dentes, e unhas

A cara abaixo de um lado.

Quem dissera que por tempos

Se mostrasse tão cruel

Um bruto, que parecia

Tão submisso, e tão fiel!

Há duas moralidades,

Que daqui se hão de tirar:

A primeira é que nos brutos

Ninguém se deve fiar:

A segunda de que há homens

De uma aparente bondade;

São huns, e parecem outros

Por manha, e sagacidade.


APÓLOGO

A Pulga e o Mosquito

Numa noite de Verão,

E de bastante calor,

Encontrou-se c'um Mosquito

A Pulga num cobertor:

Cumprimentaram-se muito

Co'a política devida;

E disse a Pulga ao Mosquito:

Ando aqui desfalecida;

De vossa mercê me queixo,

Que do sustento me priva;

Estou tisica, e esfalfada,

Não sei como já sou viva:

Ando por cima de leitos,

Ando nas camas de chão;

Vem vossa mercê tocando,

Começa a minha aflição;

Se dou alguma picada,

É sempre em sustos, e medos;

Porque temo de cair

Na ratoeira dos dedos.

Num indivíduo, que dorme,

É onde janto, onde ceio;

Mas não me presta o que como,

Pelo meu justo receio:

Se lhe chupo numa perna

Sempre com cinco sentidos,

Vem logo a sua trombeta

Meter-se-lhe nos ouvidos.

Acorda o que está dormindo,

Dando a cantiga ao diabo;

Se me sente, põe-me o dedo,

E entre as unhas me dá cabo.

Por tanto quero pedir-lhe

Tenha de mim compaixão;

Que toque à gente acordada,

Porém à que dorme não.

Ó filha, disse o Mosquito,

Eu também sofro, e padeço;

Pois levo às vezes boléus,

Que da vida me despeço.

Dão bofetadas em si

Os que andam comigo em guerra;

E se me apanham no lance,

Atiram comigo a terra.

Os desastres que me conta,

Por certo me metem dó;

Mas é preciso também

Que não queira comer só.

Nestes termos, minha rica,

A vontade lhe farei;

Que engorde, e que viva farta,

É que eu muito estimarei.

Despediram-se um do outro:

E o Mosquito atraiçoado

Não fez nada do que disse,

Que é traidor dissimulado.

Perseguia a toda a gente;

A quem dormia acordava,

Por emulação à Pulga

Fazia o que costumava.

A Pulguinha muito afouta,

Vendo um homem a dormir,

Ferrou-se-lhe no cachaço,

Sem lhe lembrar o fugir.

O Mosquito pelos olhos

A zunir muito, e a morder,

Acordou o homem da sesta,

Para a Pulga surpreender:

Que, coitadinha! espirou,

Acabando o seu flagelo,

Entalada entre o sobrado,

E entre a sola de um chinelo.

Daqui coligir se deve

Que quando a vingança cega,

Quase sempre um malfeitor

O seu semelhante entrega.


APÓLOGO

O Burro e a Ratazana

Estava um Burro comendo

À noite a sua ração,

E uma velha Ratazana

Quis ter com ele quinhão.

Disse-lhe o Burro: Malvada,

Vai a outro sitio comer:

Não basta a ração ser pouca?

Mais pequena a vens fazer?

Respondeu-lhe a Ratazana:

Por hoje licença dá;

Que por estes oito dias

Prometo de não vir cá:

Eu sei mui bem que teu dono

Um grande queijo comprou;

Espreitei onde o meteu,

E à manhã com ele dou:

Hei de fartar-me à vontade,

Roendo-lho muito bem:

Sei que a vizinha debaixo

Bolos numa copa tem:

O criado, que te trata,

Tem lá numa prateleira

Um grande monte de sebo

Junto dentro de uma ceira:

Lá pelas águas furtadas

Já atinei c'uns buracos

Para saltar num pombal,

E chupar pombos dos cacos.

Á vista das descobertas,

Que já hoje tenho feito,

Espero passar sem fome,

Com subtileza, e com jeito,

Foi tasquinhando a ração

Naquela doce esperança,

Co'a imaginada fartura

Sempre posta na lembrança.

Do Burro se despediu

Com afago, e cortesia;

E foi de rabo estendido

Para a cova, em que vivia.

Porém lá pela alta noite

Tornou depois a sair,

E foi-se por certo atalho

Nas casas introduzir.

Andou em busca do queijo,

Porém já o não achou

No sitio, que imaginava,

Onde de antes se guardou.

Voltou-se ao primeiro andar

Para os bolos da vizinha,

Basculhou a copa toda,

E nem um só bolo tinha.

Cansada, raivosa, e triste

Ao quarto do moço veio;

E porque estava acordado,

Entrou com algum receio.

Saltou para a prateleira

Com o sebo no sentido;

Mas no dia antecedente

O tinha o moço vendido.

A saída deste quarto

Empresa foi arriscada;

Por se safar tão ligeira,

Não mamou uma arrochada.

Lá por outros escaninhos

Ao telhado caminhou,

Só para entrar no pombal,

Onde outras vezes entrou.

Mal que se pilhou de dentro,

Viu uns ninheiros mais baixos,

Ficou-lhe o olho luzindo

Co'o sentido nos borrachos.

O dono, que de outros ratos

Se via mais perseguido,

Pôs-lhe armada ratoeira

Com petisco apetecido.

Foi então que a Ratazana,

Não se podendo conter,

Cheirou-lhe a isca por fora,

Quis entrar dentro, e comer.

Deu voltas, meteu focinho;

Mas à dentada primeira

Ficou a pobre engasgada

Nos ferros da ratoeira.

Quanto esperava falhou,

E por mais infausta sorte,

Toda a alegria passada

Acabou nas mãos da morte.


CONTO EPIGRAMÁTICO

Um Autor compunha um livro,

Livros velhos folheando:

Perguntou-lhe um seu colega:

Que estás aí procurando?

Respondeu: Como não ha

Livro algum que tão mau seja

Que não tenha alguma cousa

Boa, que se note, e veja:

De cada um tiro um pouco.

Disto um novo livro ajeito

Ficando de cousas boas

Formado um livro perfeito.

Desta lição eu quisera

Que os homens se aproveitassem,

De cada um imitando

As virtudes, que lhe achassem.

O homem, que isto fizesse,

Um grande brasão teria;

Ficava sendo um composto,

Que ao Mundo exemplo daria.


APÓLOGO

O Saloio e uma Sorte de papel

Vendo nas casas das Sortes

Prêmio de oitenta mil reis,

Foi um Saloio comprar

Oito tostões de papeis:

E tudo desembrulhando

Um Prêmio só não achou,

Repetiu dobrando a doze,

Da mesma sorte ficou:

Foi comprando mais e mais,

Quanto comprava perdia,

Gastou dezoito mil reis,

E deles nem boia via.

Raivoso se foi à caixa,

Dizendo: Forte castigo!

Tirou mais seis tostões delas,

Que era o que tinha consigo:

Também lhe saíram brancas,

E o homem desesperou;

Mas a última entre os dedos

Deste modo lhe falou:

Saloio, quem quer que sejas,

Toma do mundo lição,

Todas as cousas pintadas

Como parecem não são;

Não te iludas com os Prêmios,

Que é natural o falharem,

E nesse engodo emagreces,

Para os outros engordarem:

Se o acaso der um Prêmio,

Põe logo no pensamento,

Que para um só ser feliz,

São desgraçados um cento:

O que tira três moedas,

Já veio vinte deixar,

E se inda não as largou,

É isca para as largar.

O que tira três tostões,

Fica de nós muito amigo,

Sem ver que deixou o porco,

E leva a corda consigo.

Os prudentes conceituam

Ser tudo isto uma Tragédia,

Que os felizes nestas casas

São como os Reis de comedia.

E porque em lojas de Sortes

Não gastes nem um vintém,

Uns conselhos vou a dar-te,

Com os quais te acharás bem.

Não olhes para as Tabelas,

Nem os mais vejas jogar,

Que se algum tem sorte em preto,

A ambição te vai tentar;

Olha sim, para a dinheiro,

Que está perdido no chão

Em sortes desembrulhadas

Da porta até ao balcão.

O Saloio respondeu:

Teu desengano me embaça,

Se se prometem fortunas

Onde se encontra a desgraça.

Á vista disto é razão

Que este vicio em mim se quebre,

Fugirei de toda a casa,

Que vende gato por lebre.

Vindo às mãos do Autor uma Quadra bastantemente conceituosa, tentou glosá-la pelo seguinte modo:

QUADRA

Dois Entes regem o mundo

Doce Amor, e Morte impía,

A Morte co'a fouce corta

Quanto Amor semeia, e cria.

GLOSA

1.

Logo que foi construída

Esta Maquina brilhante,

Não falhou um só instante

Na conta, peso, e medida:

Nem podia ser falida

Obra de um Saber profundo;

É seu criador segundo

O Tempo, que não faz pausa,

Por mando da Eterna Causa

Dois Entes regem o mundo

2.

Um é Amor, outro a Morte,

Cada qual com fortaleza,

Entre alegria, e tristeza,

Mudam dos Mortais a sorte:

No que um faz outro dá corte,

Que a desordem desafia,

Disputam de noite, e dia,

A qual mais poder encerra,

Andam sempre em viva guerra

Doce Amor, e Morte impía,

3.

Nesta horrorosa campanha

Não faz figura a Razão,

Nem há capitulação

(O que já se não estranha)

Tudo de terror se banha,

É imensa a gente morta;

E por mais que Amor a exorta,

Sem respeito às criaturas,

Searas verdes, maduras

A Morte co'a fouce corta

4.

Quando a paixão se declara

De Amor entre dois amantes,

Porque não fiquem triunfantes,

A Morte vê se os separa:

Como é das vidas avara,

Em sufocá-las porfia;

De balde Amor a vigia,

Que a Morte, que tudo extingue,

Trabalha porque não vingue

Quanto Amor semeia, e cria.

Quadra, que mandou uma Senhora ao Autor (talvez sem refletir) com muito empenho, para que lha glosasse; sendo assaz bem dificultosa, pelo veneno do tempo que tem consigo, etc.

QUADRA

Não sigas, Bela, os caprichos,

Que os Mortais tem fabricado;

Segue as Leis da Natureza,

Felicita um desgraçado.

GLOSA

1

Bela Nise, o Criador,

Que o Mundo fez, e governa,

Que com Providência eterna

He, e foi de tudo Autor,

É em quem devemos pôr

Os nossos desejos fixos;

De gênios que estão prefixos,

Com a maior impiedade,

Em negar esta verdade

Não sigas, Bela, os caprichos.

2

Dar a todos a entender

Por Fabula Céu, e Inferno;

Que não há castigo eterno;

Que nem prêmio pode haver;

Que há só nascer, e morrer

Sem lembrança de pecado,

Bem como bruto esfaimado,

Eis a perversa doutrina,

Só para nossa ruina,

Que os Mortais tem fabricado.

3

Quem na Pia do Baptismo

As luzes da Fé recebe,

O bom caráter concebe

No Grêmio do Cristianismo:

Não temer penas do Abismo

É ser de Lúcifer preza

Na Religião firmeza

É quanto todos convém

Inculto Gentio é quem

Segue as Leis da Natureza,

4

Ó Deus Eterno! é possível

Que o Cristão, que tu criaste,

Dos teus preceitos se afaste,

Á tua voz insensível!

Sua pena era infalível

Por ter a Lei quebrantado;

Mas o teu Poder sagrado

Falando-lhe ao coração,

O salve da escravidão;

Felicita um desgraçado.

CHARADA

Guarda a primeira e segunda

Dos rigores da estação,

E guarda a terceira as duas

Por amor, e gratidão:

As três conchegam seu dono,

Seja de inverno, ou verão.

CHARADA

Não quer demora a primeira,

A segunda é contra a fome,

Separadas não tem boca,

Ambas juntas muita toca,

Muita gente tem, que come.

CHARADA

É criminosa a primeira,

E aos crimes, que cometeu

Logo a segunda, e terceira

Justa sentença lhes deu;

Porém juntando-se as três

Entram em tanta harmonia,

Que o mal, que a primeira fez,

Torna-se em grande alegria.

CHARADA

A primeira diz aonde,

Esta, e segunda cultiva,

Evita a terceira o pó,

E de precipícios priva:

Primeira, e última aflige,

Nutre segunda, e primeira:

Há nas quintas, e fazendas

A segunda co'a terceira:

O bom cômodo dos homens

Nas três sílabas se encerra

Em cousa, que serve muito

Na paz, e também na guerra.

CHARADA

Da primeira, e segunda se gosta,

Que é onde se chora, se folga, e se ri:

Na segunda, e terceira aparece

O aspecto da gente por bom, ou ruim;

A segunda, e terceira dá nome

A uma alta serra do nosso país;

Mas se as três ajuntarmos, veremos

Um peixe saltante na praia a cair.

ADIVINHAÇÃO

Eu visito toda a casa,

E co'a gente desespero,

Como com El-Rei à mesa

Daqueles pratos, que quero;

Seja a Dama a mais formosa,

Mais pobre, ou mais abastada,

Mesmo diante de todos

Por mim há de ser beijada;

Ando sempre em viva guerra,

Vivo entre muito inimigo;

Mas sendo débil de forças,

Só pode o tempo comigo.

ADIVINHAÇÃO

Não tenho sete cabeças,

Co'a que tenho me governo,

Meu rosto não tem feitio,

Até sou da cor do Inferno:

Pareço no meu sustento

Nascer no Signo de Aquário;

E a minha condição é

Semelhante à do usurário;

Morro de uma ingratidão,

Que me faz ser infeliz;

Pois dão-me a morte por paga

Do benefício, que fiz.

Significação das Charadas, e Adivinhações deste Folheto.

= ecraeb = amõacar = ãzoccaa = sgausgenua = alacvo = oapaj = osacm =

A Significação destas Charadas, e Adivinhações aqui vão não por sua ordem, e até cada uma de per si com as letras trocadas, para maior confusão, e gosto de quem as adivinhar: cujos nomes escolherá para os apropriar, e colocar onde pertencerem, visto não haver outro Folheto, em que se explique, por ser este o último desta Obra, que torno a advertir se deve encadernar com a primeira Parte, e com o Poema do Balão aos Habitantes da Lua; que fica um Livro divertido.

Tudo se vende nas lojas: de Francisco Xavier de Carvalho defronte da rua de S. Francisco da Cidade; de António Manoel Policarpo da Silva junto ao Senado; de Antônio Xavier Moreira da Impressão Regia debaixo da Arcada; de João Henriques no princípio da rua Augusta, de Antônio Pedro na rua do Ouro; de Luiz José de Carvalho aos Paulistas; e em Belém na loja da Viúva de José Tibúrcio. Custa este Folheto 240; a primeira Parte outro tanto; e o Balão 160.