Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

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LUIZ COUCEIRO

A NUVEM

Peça dramatica, em verso, com prologo, dois actos e epilogo

AVEIRO
Typ. "Minerva Central"
1910
 
 

PERSONAGENS

Henrique

Fernando

Arminda

Margarida

Maria, criada

Uma criança de 6 meses

PRÓLOGO

Casa de Margarida, em completo desalinho. Uma mesa ao centro, à qual Henrique se encontra sentado, lendo alto a carta que acaba de escrever.

CENA PRIMEIRA

HENRIQUE, DEPOIS MARGARIDA E MARIA

Henrique

(Só)

“Corre um ano de vida desgarrada

Que sempre tem levado o teu amante,

E outra vida, decerto, atribulada,

Suavizar, se procura, neste instante.

Vou partir, Margarida, e sê feliz;

Porque enfim, cedo apenas a um esforço

De sentimento são; e às almas vis

Cabe-lhe sempre o prêmio do remorso!

Adeus! E vai fazendo o que poderes

Para esquecer este homem transviado

Do trilho, da conduta, e dos deveres!

Adeus! A nada mais sou obrigado!”

(Fechando a carta, pousando-a na mesa, e em momento resoluto)

Sim! sim! jamais pudera ser possível

Combater contra a minha reflexão!

E depois, que diabo! não é crível

Mudar-se o santuário da união

Pelo louco viver do mundanismo;

Não, não é crível ter a vida assim,

E salvar-me, procuro, deste abismo,

Quando, demais, alguém sofre por mim!

(Pausa e refletindo depois)

De facto, Margarida tem encantos,

Tem sim, mas quais? Aqueles tão somente

Que a tornam fascinada só de quantos

A pretendam gozar satiramente!

Gozo estúpido, gozo só brutal,

Que nos converte em feras, ou ainda

Num ente desprezível e anormal!

(Pausa, exclamando depois com sentimento)

E abandonar-te, eu, minha Boa Arminda,

Levado na corrente desse império!

(Tirando um retrato do bolso e admirando-o)

Oh! rosto tão suave de mulher!

Perfil tão nobre, tão grande, tão sério,

Como não será muito o teu sofrer!

Semblante de bondade, a contrastar

Com falsos atrativos de mundanas!

Aqui, traços de paz bem salutar,

(Em meditação)

Naquelas... linhas torpes e profanas!

Rosto meigo que outrora me prendeu,

A ele regresso, a ele vão meus passos,

E crê que vou guiado pelo céu,

Buscando, de amizade, os santos laços.

(Beijando o retrato e levantando-se de súbito)

Ah! É verdade! Tenho dela um filho!

Nem me lembrava desse poderio!...

Foi a fatalidade do meu trilho,

E complemento do meu desvario...

Contudo, não importa, porque em suma,

(Conformando-se)

É produto de falsas relações

Que se dissolvem, qual tênue espuma...

Existe uma criança; mas razões

Me forçam a esquece-la já também.

(Tirando do bolso uma carteira)

Concedendo dinheiro em abundância

Para que Margarida, como mãe,

Provenha ao alimento dessa infância.

(Pousando a carteira na mesa e espreitando em silêncio a uma porta lateral)

Coitadita da pobre criancinha!...

A dormir!... Tem nos lábios um sorriso...

(Atirando-lhe um beijo)

Recebe um beijo, o último, filhinha!...

(Retirando-se a custo)

Custa-me... mas então? Se me é preciso!

E depois, meu bom Deus, crê, eu vos juro,

Que farei tudo quanto for humano

Para velar por ela no futuro!

(Pausa, depois da qual, com coragem)

Vamos!

(Parando e com desalento)

                 É bem profundo o desengano!

(Pegando no chapéu)

De resto, casa, orgia... tudo aí fica...

E volto, enfim, ao lar santo e bendito,

Onde, só de virtude, a vida é rica,

E onde chego humilhado e bem contrito!

(Sai rapidamente).

CENA SEGUNDA

Margarida

(só)

(Entrando por uma porta lateral e esfregando os olhos)

Safa! Que dormir tão pesado o meu!

Nem que fosse uma noite de himeneu,

A prolongar um sono de fadiga!

E então, que curiosa luta e briga

Com os sonhos, os mais extravagantes...

A ver-me rodeada só de amantes,

Que disputavam a honra e primazia

Da posse luxuriante duma Lia!

Safa! Que pesadelo interminável...

(Pausa, depois da qual, repara na carta)

Olá! Temos missiva? Dum amável

D. Juan, talvez?

(Vendo a letra)

                          Mas não, porque esta letra

Pertence ao cavalheiro que penetra

No aposento. É do meu nobre senhor!

Não há dúvida! Ou antes, e melhor:

É dum obediente e humilde escravo!

(Lendo a carta e cinicamente admirada)

Hã?! O quê?! Que diz ele?! Bravo! Bravo!

Muito bem! Apoiado! É admirável!

(Largando gargalhada sarcástica)

Eis uma ação esplendida, louvável!

(Sentando-se)

Coitado! Que desgraça! Pobrezito,

Que diz voltar em tudo bem contrito

Aos braços da mulher!

(Rindo)

                                   sim, sim, coitado

Do triste e pobre errante, transviado

Do bem!... Mas que pateta! Mas que tolo!

Vai-te menino, vai-te, que o consolo

Não me falta, acredita; podes crer!

E lança-te nos braços da mulher,

Pois que duvida? Ora essa? Porque não?

(Com sarcasmo)

Mas que parvo, irrisório e toleirão,

Não veem!? Que ridículo ignorante,

Que nem ao menos sabe ser amante!

E deixa carta, sem ter a coragem

De dizer que se acolhe na frondagem

Da virtude!

(Reconsiderando)

                 Virtude! Mas que é isso?!

Um nome que se torna oco e omisso

Entre nós. A virtude é ter dinheiro

Que bem nos sustente o órgico viveiro,

Porque amantes, se atiram para o lixo,

Vindo outros que sustentem o capricho!

(Indo para sentar-se e reparando na carteira)

Ah! espera! deixou uma carteira!

E tem notas! Lembrança bem certeira,

Porque... enfim... é só isto o essencial

P'ra presidir à nossa bacanal...

(Depois de fechar a carteira e como que tomando uma rápida resolução, senta-se a escrever uma carta, tocando a campainha).

CENA TERCEIRA

MARGARIDA E UMA CREADA

Maria

(Entrando de fundo)

Que deseja?

Margarida

                 Recado algo importante

Que desempenharás já, neste instante.

(Levantando-se)

Levarás esta carta ao outro andar,

Mas não te deves nada demorar

Porque inda outro negócio bem urgente

Teremos que cumprir, presentemente.

(Entregando a carta à criada, que sai)

Vai...

CENA QUARTA

Margarida

(Só)

       Ora pois... sou livre por minutos

Dos elos desonestos e corruptos!

Mas não tão livre, não tão livre ainda,

Que Henrique não levasse à D. Arminda

O fruto do transvio de seu marido.

Coitado! Mas que triste arrependido!

(Rindo)

E talvez concebesse que o seu filho,

De futuro, me sirva de empecilho.

Ná, ná! Quem se desliga a compromissos,

Não o faz com intuitos só postiços.

Pois que!? Foge da vida desonesta,

E deixa aqui o pomo de tal festa?!

Ná! que o leve; que o leve para o lar,

Onde a contrição vai representar.

E depois, almas vis, más e perversas,

Podem às vezes ser nobres e adversas

Ao crime.

(Entrando rapidamente na alcova e voltando à cena com uma criança de seis meses)

                 Vais gozar criação casta,

Que te infiltra digníssima Madrasta:

Vais sair deste reles ambiente,

Onde se perde muita e muita gente!

(Num momento de súbita reflexão e levando a mão à testa)

Hã?! Que digo? Que disse eu inda agora?!

Não seria um lampejo, ou uma aurora

De verdade, que acaso iluminou

A minha alma, e p'la mente me passou...

(Com resolução)

Sim, minha filha, quero que vás. Vai;

Vai acolher-te à sombra de teu pai;

Vai abrigar-te nessas consciências

Que salvam e redimem existências!

CENA QUINTA

MARGARIDA E MARIA

Maria

(Entrando)

Satisfeito foi já o seu recado...

Margarida

Pois outro tem de ser executado

E diligentemente. Espera um pouco,

Enquanto escrevo à Dona desse louco

Que hoje me abandonou. E na pequena

Segura já.

(Entregando-lha e sentando-se a escrever)

                 Alguns traços de pena,

E pronto. Nada mais há a fazer

Na consciência de tão reles mulher!

(Ditando o que escreve)

“Senhora!

                 Deposito essa criança,

Filha de seu marido, e esperança

Tenho que irá ser muito mais feliz,

Do que no antro que apenas só se diz

Do vício, da vergonha!”

(Entregando a carta à criada)

                                    Ora aqui tens...

(À parte)

E inda dizem que são más estas mães!

(Àcriada)

Desejo que sem perda de momento

Ás minhas ordens tragas cumprimento.

Procuras indagar qual a morada

Do fugitivo Henrique, e lá, na escada,

A pequenita deves colocar,

Bem como a carta junta aí deixar.

Depois, tens que afastar-te de repente,

Percebes?

Maria

                 Muito bem, e fico ciente.

(Estupefata)

Porém, senhora! nem sequer um beijo

Na criancinha?!

Margarida

(Imperiosa)

                          Basta-me o desejo

Da sua vida. Vai! Assim to ordeno,

Muito embora com alma de veneno!

Maria

(Indo a sair e parando ao fundo)

Mas... mas de que é feito esse coração?!

Margarida

(Indicando-se)

É coisa que não há na habitação!

Vai...

Maria

(Repentina)

       Irei.

(Sai).

CENA SEXTA

MARGARIDA E FERNANDO

Fernando

(Entrando)

                 Margarida! A que dever

A honra e o distintíssimo prazer

Da sua carta?

Margarida

(Aproximando-se de Fernando)

                          Irá sabê-lo já,

Meu caro e bom Fernando! Venha cá?

(Levando-o junto à porta que deita para o quarto)

Julgo que conquistou ardente feito!

(Apontando para o quarto)

Ora diga? O que vê daqui?

Fernando

(Olhando)

                                             Um leito!

Margarida

Em que há pouco vagou certo lugar...

Fernando

(Interrogando)

... E então?!

Margarida

                 Querendo... Venha-o ocupar.

Cai o pano

FIM DO PRÓLOGO

ATO I

Casa de Arminda ricamente mobilada. Portas laterais e ao fundo. à direita alta um biombo cuja frente dá para os espectadores e encobre de fundo o que dentro se passa. Uma criança repousa num pequeno berço. Ao centro da sala uma mesa sobre que pousa um cesto de costura e onde se encontram algumas peças de enxoval para criança. Arminda, junto à mesa, vai contando uma a uma e com sentimento aquelas pequeninas peças de roupa.

CENA PRIMEIRA

Arminda

(Só)

... E vinte!...

                 O indispensável enxoval

P'ra essa criança, que é filha do mal!

Apenas o preciso p'ra o conchego

Do ente, que, desvario tolo e cego,

Arrumou para o mundo, e que o destino

Trouxe ao lar do infortúnio! Meu Divino

Deus! A vossa vontade seja feita!

E a mulher, que a desdita sempre espreita,

Curva-se ante o poder dessa grandeza,

Que a ela me ligou e me traz preza!

(Com dor)

Um pequeno enxoval, mas suficiente

Para poder cuidar desse inocente

Que a vil libertinagem enjeitou!

Que a infâmia, por onde só errou

A vida impura, incasta e ilegítima,

Trouxe aos portais da sua triste vítima!

(Afastando-se da mesa)

E que havia a fazer?... Repudiar

O fruto da loucura?... Rejeitar

A oferenda, que, quem sabe? foi Deus

A salva-la do mar, dos escarcéus

Da ignominia?! Quem sabe? foi alguém

A doa-la aos carinhos doutra mãe!

Que havia de fazer? Tornar-me ré

Da desonra, e com simples pontapé

Exclamar: — Vai, vai para a sociedade

Em que se mancha e perde a honestidade!

Vai também corromper-te em sacrifício

Dessa libertinagem, e do vício!

Não! Não! Ninguém me dá esse direito,

Que apenas criaria mais um leito

Na impudica mansarda da baixeza!

Não! ninguém me autoriza essa fraqueza.

Ninguém, mesmo ninguém, tal me concede,

Nem jamais a minha alma diz e pede

Que lance p'ra miséria e para o crime

Uma outra alma que dele se redime!...

(Entrando no biombo, e junto ao berço, com resolução)

Fica, pobre criança! Assim o quero

Fica, porque eu respeito e mui venero

O que o destino dá.

(Com pausa e sentimento)

                                   Ele predisse,

Em leis, que essa cruel libertinice

Dum marido não tinha o grave jus

De arrumar-te, impiedosa, para o pus

Virulento de infame corrupção!

(Curvando-se sobre o berço)

Fica sim! Tens aqui um coração

Repleto de carinho e sentimento!

Fica no lar, que, como deserta ilha,

Escolhos cerca! Fica, és minha filha!...

E tudo, pelo meu Deus, eu perdoo.

Fica criança, fica... Eu te abençoo!

(Sentando-se junto do berço)

E aqui 'stou sendo mãe, mãe adoptiva,

Do gérmen dessa orgia produtiva!

(Pausa)

Não quis Deus dar-me um filho que pedia,

E que neste deserto tanto urgia,

Para que num momento, num instante.

Tenha de acalentar o que é da amante!

Não quis Deus conceder-me tal mercê!...

(Pausa)

Marido... foge ao lar por onde a fé

Do amor pode ser a única sincera...

E lá vai, lá vai ele como a fera

Viciada, em procura do covil,

Onde recebe o gozo dessas mil

Desgraçadas sem alma, sem consciência!

Lá vai ele, deixando esta inocência

Do altar que a pura Egreja solidou,

Em troca do que nunca, nunca amou;

Porque amar, nunca e nunca sabe, quem

Se ausenta de tão santo amor de mãe!

Lá vai, lá anda nessa podridão

Que rouba o sentimento e a razão!

Que destrói, injuria e enxovalha,

Que infecta, que corrompe, prende e emalha

A noção do respeito p'lo dever!

Lá anda nesse impudico prazer,

Cujas garras tão vis, cinicamente

Arrebatam do puro e casto ambiente

Todo esse bem, que nele se criara;

Cujas garras, de força bruta, avara.

Arrebatam do lar santificado

O descanso e o bem que lhes é dado!

Lá anda, lá vegeta no monturo

Mais ignóbil, mais baixo, mais impuro,

Que a desgraça criou, sustenta e nutre;

Filando com intuitos só de abutre,

E atributos de farsa e de ironia,

As prezas de tão grande vilania!

Vilania, — que em seu lubrico espasmo,

Chasqueia da virtude, com sarcasmo,

Ri da fé, desvirtua a honestidade,

Deprava o sentimento e a dignidade.

Insulta, zomba e rasga sem respeito

O véu do precioso preconceito!

Suja, quebra, dissolve e inutiliza,

Macula, estraga e já esteriliza

A pureza e o brilho do que é são!

Abala, derrui, prostra em confusão,

Det'riora, desfaz, calca e elimina

A graça do bom lar, graça Divina!...

(Pausa, deixando tombar a cabeça sobre as mãos e exclamando dolorosamente)

E foi... foi assim que essa vilania

Me roubou o sossego e a alegria!

Foi assim, assim, que ela aqui entrou,

E que de mim se riu e só zombou!

(Encosta-se sentidamente ao berço)

CENA SEGUNDA

ARMINDA E HENRIQUE

Henrique

(Abrindo cautelosamente a porta de fundo, entrando a medo e penetrando a pouco e pouco no aposento, fala a meia voz).

Ninguém!... Somente a paz religiosa

Da verdade!... Só graça harmoniosa

Da virtude!... Somente o ar suavíssimo

Do bem!... O perfumado e o dulcíssimo

Aroma a castidade.. que traí!...

(Respirando desafogadamente)

Ah! Como se respira bem aqui!...

Deixai-me que, aspirando a longos tragos

O balsamo do amor e dos afagos,

Eu bem me purifique no sacrário

Que envolve o precioso relicário

Do natural, do justo, do aceitável!

(Suspirando de novo)

Ah! Sim! mas que atmosfera respirável

A realidade!

(Começa o diálogo natural entre os dois, que se não veem e se não ouvem um ao outro)

Arminda

(Parecendo despertar dum sonho)

                 E tudo, só tudo isto,

Se me afigura um sonho!...

Henrique

(Olhando para o ambiente)

                                             Além, um Cristo,

Em expressão suavíssima, a espargir

Bondade, a abençoar, a redimir!

Arminda

(Olhando para a criança)

Coitada! Que destino o teu seria!?

Henrique

(Continuando a reparar em tudo)

Ali, a Virgem Mãe! Virgem Maria,

Recebendo o amor em seus ternos braços.

Arminda

(Descobrindo o rosto da criança)

E em verdade, verdade, muitos traços

Desse teu pai, na fronte, tens escritos...

(Com ternura)

Aos dele, se assemelham teus olhitos!

Henrique

(Voltando-se para a mesa)

Aqui, vejo uma cesta com roupinha...

Arminda

(Continuando a examinar a criança)

E também se parece esta boquinha

Bem rosada...

Henrique

(Analisando a roupa)

                 Enxoval duma criança,

Posto em disposição cuidada e mansa.

Arminda

O narizito não. Destoa um pouco

Do perfil desse mau e desse louco...

Henrique

(Pegando em algumas peças de roupa)

Chambrinhos e babeiros; camisinhas...

Arminda

(Descobrindo a criança)

São perfeitos os braços e as perninhas...

Henrique

(Continuando a analisar a roupita)

E outra tanta roupinha de petiz,

(Admirado)

Decerto, para algum ente feliz,

A quem Arminda serve de madrinha.

Arminda

(Cobrindo a criança)

Pobrezita! Afinal és isentinha

Do pecado...

Henrique

(Deixando a roupa e afastando-se um pouco da mesa)

                          Ella é meiga e caridosa...

É tão 'smoler, é tão afetuosa

Para os pobres...

Arminda

(Levantando-se, dá um beijo na criança, vai lentamente saindo do biombo para entrar na sala e exclama)

                          Meu Deus! Meu bom Senhor!

P'la Infinita vontade e grande amor,

(Saindo do biombo)

Aí fica, aí fica essa criança,

Que neste triste abrigo a sorte lança...

Henrique

(Avançando, surpreendido, para Arminda)

Senhora!...

Arminda

(Recuando atônita)

                 Ah!... Mas... Que vem fazer aqui?

Henrique

(Sufocado)

Buscar essa amizade que perdi...

Arminda

(Surpreendida e admirada)

Hã?! Buscar amizade?! Onde está ela?!

Henrique

(Avançando um pouco)

No saudoso ambiente desta cela!

Arminda

(Cada vez mais surpreendida)

O quê?! Aqui?! Decerto se enganou,

E sem dúvida, creio, a porta errou.

Diga? Diga? Que veio aqui fazer?!...

Henrique

Abrigar-me às caricias da mulher...

Arminda

(Profundamente admirada)

Hein! Que diz?! Da mulher?! Bem afirmo eu

Que o senhor se enganou, e qual judeu

Errante, anda passando em falsa estrada,

Iludindo-se ao certo na morada!

Henrique

(Avançando mais)

Arminda!...

Arminda

                 Ah! sim, sim! É esse o meu nome;

Porém, tal coincidência não assome

O direito de crer-me quem procura;

E revela somente muita usura,

Imaginar, que cá, por este mundo,

Esse nome de mim seja oriundo!...

Sim! Armindas há muitas, acredite,

E tantas, tantas, que bem me permite

Repetir quanto falham seus caminhos!...

Henrique

(Com sentimento)

Que têm sido de abrolhos e de espinhos.

Senhora!...

Arminda

(Impaciente)

                 Vamos! Vamos! Que deseja?

Henrique

(Contrito)

Confessar uma culpa que me peja.

E se há muito, se há muito ando perdido,

Bem penitente aqui tem seu marido!...

Arminda

(Com repugnância)

Que diz o senhor?! Meu marido?!...

Henrique

(Corajoso)

                                                      Sim,

E nessa qualidade eu aqui vim...

Arminda

(Com serenidade)

E como tal pretende apresentar-se?!...

Henrique

Se dá licença?...

Arminda

(Aparentando tranquilidade e indicando-lhe uma cadeira)

                          Então! Queira sentar-se.

(Ambos se sentam em vis-à-vis junto à mesa. Depois de pausa)

Com efeito... e em verdade, ideia tenho

De que alguém, com astucia e muito engenho,

Um dia conseguiu ver-me no altar

Dos esponsais. E ali, p'ra consagrar

Tal ato ou sacramento de evangelhos,

Ante um homem dobrei os meus joelhos!

Então... padre de aspecto venerando,

As orações do rito foi rezando,

Enquanto duas almas se fundiam

Àlei de Deus, e dois peitos se uniam

Ao regímen da mais pratica escola!

Deram-se as mãos; depois, a branca estola

As cobriu, invocando o juramento

Que firmaria o Santo Sacramento!

(Descansando)

E jurámos, jurámos nesse exemplo,

Que nos manda criar o belo templo

Do amor! Mas, amor, não é ter por teto

Somente a guarda e abrigo dum afeto!

É mais, que de sublime, tem o vulto!

É nele edificar paz, honra e culto!

E assim, bem se jurou mais igualmente

Que, obreiros de castíssimo ambiente,

Erigissem ali, em devoção,

O respeito, dever, religião!

(Pausa, depois prosseguindo)

Realmente, senhor, lembra-me que um dia,

Quando sã madrugada alvorecia

Toda em perfumes, cânticos e flores,

Alguém, que de mim tinha por amores,

O símbolo de aliança me entregava,

E em meu peito dizia que se achava!

Lembra-me!... Se me lembra, meu senhor,

Tão lindo despertar, tão lindo alvor

Da pura realidade dos meus sonhos,

Feitos de beijos castos e risonhos,

De melodias suaves e plangentes!

(Com mais vida, erguendo-se)

Se me lembra a manhã em que dois entes,

Deleitados na força da paixão,

Se uniam em solene sagração

Dum tributo!...

(Pausa, depois com mágoa)

                          Recorda-me... Entoava

O órgão religiosos sons! Rezava

Por assim dizer preces ao Bom Deus

Pelo bem de sagrados himeneus.

E que sons! E que sons tão inspirados

Na graciosidade duns noivados!

Que harmonia e conjuntos fervorosos,

Embalando a união de dois esposos!

Que acordes, que hinos tão sentimentais,

Incensando de amor uns esponsais!...

Sim!... Recordo em verdade o sorridente

Dia, e conservo ainda bem presente

Toda a felicidade que senti!...

(Pausa e apontando a porta de fundo)

Olhe... repare... foi... foi por ali

Que eu entrei com soberba majestade,

Envolta no meu véu de virgindade!

Foi por ali que entrei; e junto a mim

Vinha um noivo exclamando: “Em fim! Em fim!”

Henrique

(Levantando-se e interrompendo-a)

E esse noivo, senhora, era...

Arminda

(Atalhando)

                                             Era alguém,

Que na ambição de posse que se tem,

Nessa grande ambição a que se aspira,

Julgou depois que tudo era mentira,

Falsidade, ilusão, tolice e asneira!

Era alguém, que fitando em pasmaceira

A vitrine de objeto precioso,

Pensou e refletiu que ao usar-lhe o gozo,

Exagerara as suas qualidades,

E se precipitara nas vontades!

Henrique

(Pretendendo interrompê-la)

Mas, senhora...

Arminda

(Atalhando-o)

                          Não queira ter o arrojo

De desmentir-me, pois qual, qual estojo,

A guardar um brilhante lapidado,

Assim foi e era o meu véu de noivado;

Assim foi o meu véu, que descoberto,

Lhe mostrou, afinal, o que de incerto

Era o seu pensamento em ideal...

Henrique

(Interrompendo)

Mas hoje, o positivo e o real...

Arminda

(Impondo silêncio)

Nada de interrupções! Estou falando,

E desejo ir a pouco demonstrando

O meu sentir. Dizia eu há bocado

Que, tal como brilhante lapidado,

Era a mulher saída da inocência

Para o mundo da prova e exp'riência.

E... e senão, vejamos! Em geral,

Tem a mulher encanto natural,

E atrações de que muito foi dotada;

Mas quando pretendida, quando amada,

Ei-la que se transforma em maravilha,

E qual estrela, atrai, encanta e brilha!...

Anjo do céu, que assim tanto seduz,

Astro de fé, de vida, d'alma e luz;

A guia, o norte, a brisa perfumada.

A lira de amor, Virgem, Deusa e fada,

Tudo, enfim, de tal modo concebida,

De tal maneira olhada e percebida,

Que um Velasques, Murillo ou Rafael

Jamais produziriam do pincel

Inspiração igual! Mas, como as flores

Que em jardim vão brotando de mil cores,

A elas bem se assemelham as mulheres.

Cravos, jasmins, tulipas e outros seres

Que da espécie Deus pôs em geração,

Um ha que nos merece distinção,

E para ele vai vista atenciosa.

Dentre as flores, destaca-se uma, a rosa,

Pela cor e finura de formato;

Aroma que daria suave extrato,

E viço tal, que lágrimas de orvalho

Pousando-lhe com arte e lindo talho,

De pérolas, imita, colar fino,

A guarnecer um colo alabastrino!

Elegância suprema, ar donairoso,

A rosa atrai olhar ganancioso:

E com motivo, pelo mundo inteiro

Lhe chamam a rainha do canteiro!

Admira-se, contempla-se a beleza

Que a nossos olhos deu a natureza!

Pasma-se em fascinante adoração

Absorvendo o produto, a criação

Genial! E depois, não resistindo

Ao desejo de ter o fruto lindo,

Corta-se o encanto, o íman atrativo,

Para figurar qual decorativo

Numa jarra de Sèvres, ou cristal!

Mas, coitada! eis aí todo o seu mal!...

A pobrezita já dias após

Não escutava nem ouvia a voz

Da admiração! E há pouco desprezada,

Sem carinhos, de todo abandonada,

Curva-se, tomba, murcha, cai e acaba!

Nem sequer o perfume que exalava

Vem recordar a sua contextura!

Morreu e foi-se, foi-se a formosura!...

(Com desalento)

Assim é a mulher que se enaltece:

Também se apaga, cai e desfalece...

(Ouvem-se nesta altura uns vagidos de criança)

Henrique

Por Deus, senhora! atenda... queira ouvir

A voz de quem pretende redimir

Os erros de uma vida atribulada...

(Redobram os vagidos da criança)

Arminda

(Procurando afastar-se)

Não posso! Veja que outra vida brada

Pela minha presença, e bem me incute

Um dever! Veja! atenda? escute, escute

Os vagidos daquele inocentinho

Pedindo o meu conforto e meu carinho!

Henrique

(Atônito e escutando)

Os vagidos!? Os choros de criança?!...

(Confuso)

Mas, minha senhora!

Arminda

(Interrompendo)

                                   É uma herança,

Que chama os meus cuidados!

Henrique

(Inquieto)

                                             Mas perdão!

Apenas um minuto de atenção!

(Em confusão de ideias)

Aquele choro!... tão infantil!...

Traduz-me a existência de um ardil!...

Espere: Espere?

(Avançando)

Arminda

                          Diga, mas depressa,

Pois que aquele lamento jamais cessa

Sem ternuras de mãe!

Henrique

(Atalhando)

                                    Senhora!

Arminda

(Cruzando os braços)

                                                      Que há?!...

Henrique

(Aparentando sofrimento)

O martírio em minha alma! Mas... ná... ná...

Não pode ser! Não pode! Diga?! Diga?!

A que data, a que data, sim, se liga

O nascimento desse seu vivente?

Arminda

(Impassível)

Tem seis meses aproximadamente!...

Henrique

(Muito surpreendido)

Hã!? Seis meses?! Senhora! o que me diz?!

Arminda

A verdade! Foi Deus que assim o quis!...

Henrique

(Dolorosamente invocando a memória)

Deus?! Foi Deus!? Contudo... essa referência

Não condiz com a minha grande ausência

Desta casa! Senhora! Por quem e?

Veja o que em meu semblante já se lê,

Sabendo-se que há mais, há mais dum ano

Me ausentei... E esse filho... é...

Arminda

(Interrompendo)

                                                      É profano!...

Henrique

(Avançando de punhos cerrados e exclamando)

Ah!...

Arminda

(Imperiosa)

       Suspenda! suspenda, desgraçado!

Que não tremo ante o facto consumado!

Suspenda, porque não me atemoriza

A ira de quem adopta por divisa

A infâmia! Pare, pare, não avance,

Que não vacilarei em frente ao lance

Despótico de tão vil caminheiro

Do mal! Sim! pare, pare, cavalheiro,

Suspenda, porque não tremo perante

Afirmar... que esse filho...

Henrique

(Interrompendo)

                                             É?...

Arminda

(Altiva)

                                                    Dum amante!...

Henrique

(Interrogando)

E a mãe!...

Arminda

                 É a mulher que desonrou

O nome dum marido, que aviltou

A dignidade dum ser conjugal,

E se lançou para esse lodaçal

Da miséria humana! É a mulher

Que na loucura de órgico prazer

Se lançou ao enxurro da corrente,

Vestal indecorosa e deprimente!...

Henrique

(Interrompendo, e convencido de ser vítima de cilada)

É a mulher, que, sem honra e vergonha,

Buscou a aviltantíssima peçonha

Da desforra cruel, não é verdade?

A mulher que, perdendo a dignidade,

Em troco de torpíssima vingança,

A mostra, com a prova da criança

Existente no lar, que de novo ora

Procuro. Que se não vexa, nem cora,

Com a pratica dum crime aviltante;

A mulher que na sede devorante

De debitar afrontas, só reclama

A moeda emprestada, e a si chama

O direito dum plano indecoroso,

Pagando-se com ato vergonhoso;

Atirando-me ao rosto grave insulto,

E corrompendo todo, todo o culto

Que deve ter-se pela honestidade!

A mulher que despreza a probidade,

E que na hora da minha reflexão,

Aponta esse sinal de corrupção,

Como atroz vilipendio e atroz injuria!

É a mulher ardendo em ódio e fúria

Vingativa, sem alma, sem nobreza,

Sem outro qualquer dom de que se presa

A sociedade, pois não é assim?

É a mulher que jura contra mim

A guerra, de, a façanha, outra façanha,

E que em descaramento me arreganha

Os dentes da vileza e da traição!

A mulher que transforma o coração

Em veneno odioso e repelente,

Para em dado momento, e ardilmente,

O injetar em minha alma, proclamando

Um feito imoralíssimo e execrando!

A mulher que se isenta do civismo

E logo se máscara do cinismo

Que ultraja, sem que ao menos se recorde

Que a raiva que inocula, quando morde,

Encerra sempre o vírus e o micróbio

Para sua desonra e seu opróbio!

É a mulher, enfim, que, sem virtude,

A tais proezas tão vilmente alude!

A mulher, que tal nome não merece,

Quando só se desprende e só se esquece

Do fim para que fora concebida!

É a mulher, em suma, confundida

Na escoria da miséria, que profana,

Que atraiçoa, e que tudo, tudo engana!...

Arminda

(Interrompendo)

Ora nem mais, diz bem! É essa mesma:

É essa tal, o monstro, essa abantesma

Que descreve, acredite? É essa, é essa

Mísera que se expõe e que confessa...

Henrique

(Interrompendo)

O proceder infame duma esposa!

Arminda

(Interrompendo indignada)

É lá! Suspenda a frase rancorosa,

E não se atreva, não se atreva a tanto!

Fala-se da mulher, saiba; porquanto,

A esposa, está aqui, embora diga

Que deixou de o ser, para quem se abriga

No mal.

Henrique

(Furioso)

E a senhora? Onde se abrigou?

Arminda

(Correndo para junto do berço onde se encontra a criança, caindo de bruços sobre ela, chorando, enquanto Henrique lhe vai seguindo todos os movimentos.)

Nesta vida que Deus me destinou!

Henrique

(Cruzando os braços)

Mentira! e hipocrisia! Diga-me antes

Que se abriga ao produto duns amantes!

Que se abraça à tristíssima irrisão

Da mais adulterina concepção!

Diga antes, que se acolhe na sentença

Que me fora ditada; e que em presença

Desse escárnio, se prova a hediondez

Dum crime, que a vingança traz e fez!

Diga-me, antes, senhora, que aconchega

O fruto que a imoral lhe deu e lega

Como espelho constante de traição,

Como sóbrio reflexo da ilusão

Em que caí!...

Arminda

(Levantando-se e enchendo-se de coragem)

                          Pois seja! Assim o diga!...

Esta criança...

Henrique

(Interrompendo)

                          O insulto!...

Arminda

(Interrompendo)

                                             É o castigo!

Henrique

(Recuando e disposto a sair)

Passe Vossa Excelência muito bem

Minha Senhora!!

(Apontando para a porta)

                          Aquela porta, tem

O condão de se abrir ante a passagem

Deste tão iludido personagem;

E se aqui vim, buscando honestidade,

Convicto saio e vou, da falsidade

Com que ela se proclama e anuncia!

Tudo, enfim, é a mesma hipocrisia,

Variando somente em sociedade;

Porquanto; se lá fora a indignidade

Se expõe, aqui se oculta no cinismo

Que rodeia o ambiente! Pasmo e abismo,

Senhora, do que vejo! Abismo e pasmo

Ante o revoltantíssimo sarcasmo

Que preside à mudança deste lar

No mais indecoroso lupanar!

Arminda

(Revoltadíssima)

E eu então, pasmo e abismo, meu senhor,

Do biltre que, sem honra e pundonor,

Se arroja a censurar, altivamente,

A esposa que despreza infamemente!

(Altiva, apontando-lhe a porta)

Saia! Que jamais tem autoridade

Para insultar, quem só na indignidade

Vagueia e lá procura o seu viver!

Henrique

(Altivo)

Mas eu sou homem!

Arminda

(Avançando um pouco para o fundo, enquanto Henrique vai recuando para sair)

                                    E eu... eu sou mulher!

(Indica-lhe a porta)

Fim do primeiro ato

ATO II

A mesma sala do ato anterior e com a mesma disposição. Dentro do biombo que continua a encobrir a vista dos personagens de cena, encontra-se ainda dormindo a criança. Ao subir o pano, entram pelo fundo Henrique e Margarida.

CENA PRIMEIRA

HENRIQUE E MARGARIDA

Henrique

Ora aqui tem os novos aposentos

Que servirão de gala aos meus intentos.

Repare? Veja o luxo desta sala,

Que a nada, mesmo a nada mais se iguala.

Hein! Hein! Que lhe parece?!

Margarida

(Admirada)

                                          Realmente,

É soberbo! ideal! Mas, francamente,

Acho belo de mais: belo de mais

P'ra quem se entrega a gozos tão vestais!...

Henrique

Engano, Margarida, puro engano;

Tudo isto é impostura e só profano!

Apenas a mudança de cenário,

Com quanto lhe pareça um relicário

O que está vendo, creia. Tão somente

De aspecto a mutação, mas aparente

E falso, no que indica, pois de facto,

Quanto vê, é traidor e bem ingrato;

Senão vejamos: Ha neste conjunto

O mais completo, o mais perfeito assumpto,

Para que se análise e fundamente

Toda, toda a ironia deste ambiente;

E descrever, eu vou, essa ironia,

Sem lhe opor a mais leve fantasia.

Queira ouvir:

Margarida

                          Ouvirei...

Henrique

                                             Repare então:

O que se nota nesta perfeição,

Unicamente serve p'ra esconder

A cínica existência da mulher!

Margarida

(Interrompendo)

Minha rival? Talvez!?

Henrique

                                   Nem mais, diz bem!

Sua rival, que arrojo mostra e tem

Para se apresentar envaidecida

No luxo de que a sala é guarnecida.

Conhece-a?...

Margarida

                          Talvez não... eu nunca a vi...

Henrique

Pois para isso a conduzo eu hoje aqui:

Mas antes, extasie-se no espavento

Destas decorações, cujo elemento

Só pretende encobrir o que lá fora

Se chama a todo o instante e a toda a hora

Miséria, corrupção e tudo o mais

Que tanto afronta e insulta bons mortais!

Admire-se perante as bambinelas

Que, pendentes das portas e janelas,

Servem para vedar todo este centro

A bacanais, passadas aqui dentro!

Reveja-se em vestais tapeçarias

Sufocando o ruído das orgias;

Nos estofos que abafam entusiasmos,

Os gritos de volúpia, os espasmos

Duma lubricidade ilimitada...

Margarida

(Interrompendo)

Mas diga? Não será exagerada

A afirmativa?

Henrique

                          Como assim? Duvida?

Margarida

(Admirada)

É que, em verdade, nunca em minha vida

Soube como se possa conjugar

Toda a revolução do lupanar

Com esta ordem e asseio que estou vendo;

E com efeito, Henrique, não entendo,

Não percebo a harmonia que se avista,

Somente discordante e antagonista

Ao meio onde se espalha a corrupção.

Henrique

É o que lhe parece...

Margarida

                                   Qual? Não; não

Posso acreditar, não, no que me diz,

Pois que a nossa existência jamais quis

Aceitar os cuidados deste apuro.

Henrique

(Interrompendo)

E contudo, afirmo, é um lar perjuro...

Margarida

(Em dúvida)

Será, mas... mas para isso não se admite

A aparência do arranjo, que transmite

Não sei que, de completa oposição

Àanarquia da nossa profissão;

E eu sinto que de instante para instante

O esp'rito se consulta, inquietante,

Na atmosfera que aqui dentro respiro...

Diga? Diga? Onde estou eu?!...

Henrique

                                                    Num retiro

Cuja devassidão bem se proclama,

Repito, muito embora tenha a fama

De honesto, muito embora ele se incense

Dum perfume que nunca lhe pertence.

Duvida ainda?

Margarida

                          Sim! eu... eu duvido!

Porque não pode ter aqui vivido

A mulher que apelida de devassa;

E afirmarei, senhor, que a nossa raça

Foge a toda e qualquer preocupação,

Que não seja gozar devassidão!

(Olhando para tudo)

Tudo isto que a meus olhos se depara,

É coisa que se torna muito rara

A nossos olhos! Coisa vaga, inútil,

Sem valor, pueril, impropria, fútil,

Para quem como nós, p'ra quem como eu,

Se ceva nos instintos que me deu

A sorte, e se refaz insaciada

Na sede duma vida depravada!

Henrique

(Aproximando-se de uma chaise-longue, e fazendo sinal a Margarida para se sentar)

Está bem Margarida, venha cá;

Sentemo-nos, que mui não tardará

Que momento oportuno e bom ensejo

Apresente mil provas de sobejo,

Distraindo, negando e desmentindo

Tão errada impressão que está sentindo.

Margarida

(Sentando-se)

Impressão tal, senhor, que, na verdade,

Se apossa de mim com necessidade

De profundar o fim deste recanto,

Receosa de crer que seja o manto

Da desonra que o cobre. Pois! Pois quê!

Aonde e em que parte é que ela se vê

Vegetando assim? Diga-me: em que parte

Ella pode adorar a beleza e arte

Do conjunto tão bem disposto aqui?

Não, Henrique! A desonra folga e ri

No turbilhão de imenso desalinho,

Não lhe sobrando tempo p'ra o carinho

E trato da vivenda que se habita;

A desonra somente tem escrita

Na mansarda a legível tabuleta

Que anuncia onde para, onde vegeta.

E as nossas mãos, que apenas tem o dom

De sentir, do dinheiro, o timbre e o som,

Não sabem como tudo isto se faz

Dentro da ordem e desta santa paz.

As nossas mãos têm o único mister

De procurar os gozos e o prazer

Do ouro, que só se emprega na razão

Do luxo, necessário à atração

Da vista indagadora das orgias,

E indispensável para a concorrência

Da prostituidora residência!...

As nossas mãos somente se utilizam

Nos postiços que tanto simbolizam

O antro por onde sempre residi,

E já nele então, uma vez ali,

Quando na ausência, quando no despojo

Das seduções, só tudo logo é nojo

No labirinto de horas viciosas,

Na balburdia de noites amorosas!

Uma vez ali, tudo vem dizer

Do estado social duma mulher!

E quer, senhor, fazer-me convencer,

Que possa nesta casa só viver

Alguém que a minha classe represente?

Henrique

Quero sim; quero, e muito facilmente...

Margarida

Porém, como? No luxo do aposento

Não, porque nele há todo o sentimento

Que eu ignoro. Na graça e harmonia

Muito menos, por quanto a apostasia

De virtudes se não traduz assim,

E nem ela se adquire com tal fim!

Henrique

Porque o sabe?

Margarida

                          No exemplo desta vida,

Que uma outra aniquilou e fez perdida!

Nas provas da existência que atravesso,

Demonstrando que tudo isto é avesso

Àdesorganizada habitação

De quem só se expõe à prostituição!

(Levantando-se e puxando Henrique pelo braço)

Ouça: se, como diz e me afiança,

Estamos sob um teto de aliança

Desonesta; se, como bem proclama

A devassidão neste lar se inflama

Por impudica e má camaradagem...

(Apontando para um Cristo que está na parede e para a imagem da Virgem, num quadro)

Que faz, senhor, além, aquela imagem?

E inda estoutra aqui? tanto a destoar

Do cortejo que envolve o lupanar?

Henrique

São os tais atributos da mentira,

Ante os quais se revê e mui se admira!

Margarida

Mentira?! Mas onde, onde aparece ela?

E como e de que forma se revela,

Se, por muito que faça, inda a não vi...

CENA SEGUNDA

OS MESMOS E ARMINDA

Arminda

(Entrando pela porta lateral à D. e exclamando dolorosamente surpreendida)

Ah!...

Henrique

(Reparando em Arminda e dirigindo-se a Margarida)

Quer ver a mentira? Olhe... Ei-la aí!

Arminda

(Altivamente)

Mas que significa este atrevimento?!

Henrique

Coisa de mero e simples argumento,

Não se assuste!

(Pegando numa das mãos de Margarida)

                          Apresento a minha amante...

Margarida

(Tímida)

Senhor! a que se atreve!?...

Arminda

(Cruzando os braços)

                                             Que farsante!

Henrique

Serei; no entanto, como as boas farsas

Reclamam a presença de comparsas,

Queira representar o seu papel,

Indicando com essa alma de fel

A peçonha do mal que tanto encobre

Nas aparências duma casa nobre!...

Vamos? Queira sair desse mutismo

Que estampa hipocrisia e diz cinismo!

Queira tirar a máscara traidora

E mostrar ante mim e esta senhora

Como a desonra neste lar se fez

E abunda por aqui aos pontapés!...

Arminda

(Com repugnância)

E porque não, indigno cavalheiro!

Porque não hei-de, em modo sobranceiro,

Indicar-lhe o que pede no momento?

Porque não hei-de dar conhecimento

Ao que exige em palavras que só são

Proferidas p'la boca dum vilão!

Porque não hei-de com toda a altivez,

Mostrar como anda o mal a pontapés?!

(Apontando para Margarida)

Mire-se no instrumento de façanhas

E doutras mil proezas que são ganhas

Na desgraça. O mal, paira por ali,

E também de igual forma o veja em si,

Como estigma do mais reles exemplo

Da profanação dum culto e dum templo!

Margarida

(Interrompendo e dirigindo-se impaciente a Henrique)

Por Deus, senhor! Indique-me onde estou?!

Henrique

Na casa de quem só rivalizou

Com a miséria a outros imputada

E que, insultando mesmo, toda irada,

A presença das nossas entidades,

O faz, creia, nas mesmas igualdades

Do direito com que eu deva insultar,

Da causa, que me instiga p'ra acusar;

E, se insultos se pagam com insultos,

Veremos então quem profana os cultos

Do bom caminho; quem mancha e arruína

O que a moralidade nos ensina!

Veremos então quem mais enodeia,

E quem com crime e farsa mais ombreia!

Arminda

(Indignadíssima)

É o homem que, sem brio e pundonor,

Assim fala! É o biltre, cujo horror

Repugna a toda, a toda a consciência,

E talvez até à dessa existência

Que ora aqui trouxe para mais vexame

Meu! É o homem perverso, mau, infame,

Ultrajando o que só é digno e honesto!

Henrique

(Interrompendo)

Mas que ao mais pequenino e simples gesto

Irá destruir essa honestidade

Apregoada com tanta falsidade!

Margarida

(Antepondo-se)

E é já tempo, senhor, para o fazer,

Visto que me pretende convencer

Do que vem afirmando.

Arminda

                                             Ouça, senhora:

Creio bem que, ante força vingadora,

Me encontro nesta sala; e é bem certo

Que, seja p'lo que for, eu já desperto

Mais ou menos da minha inconsciência,

Para crer que pratico irreverência

Encontrando-me nestes aposentos.

E eu então, que não tenho sentimentos

Senão os que a desdita me deixou,

Sinto que dentro em mim ora soou

Alguma coisa sã, e não sei quê

De estranho, a confirmar a crença e fé

Que há pouco me assistia, suspeitando

De que, por aqui, não anda pairando

O mal...

Henrique

(Atalhando)

                 Mas... como assim?! Se tal suspeita,

Vai muito brevemente ser desfeita

Ante o espelho fiel, e refletir...

Arminda

(Interrompendo)

Do grande sofrimento e minha dor!

Mas como Deus em tudo dá coragem,

Eu própria mostrarei toda a miragem

Do espelho que pretende descobrir.

(Com altivez)

Mas veja bem, que só vai refletir

A verdade, e ela, saiba, que aniquila

Os infames, tornando mui tranquila

A consciência acusada! E a verdade,

Chamando os vilões à realidade,

Vai prostra-los na imensa confusão

De crimes, sem desculpa, nem perdão!

A verdade, esse grande dom do mundo,

No peito dos malvados crava a fundo

O punhal do castigo merecido!

E ai de si, miserável! se vencido

Ficar na falsa luta que travou!

Ai de si, se, p'ra mim, Deus evocou

A redenção, à face do mistério

Que lhe autoriza tão cínico império

De insidiar, lançando-me labéus

Que apenas tanto o atingem e são seus!

(Com arrogância)

Pois bem! Perante mim, e neste instante,

Se defrontam marido e sua amante!

Margarida

(Surpreendida)

Senhora!? Que dizeis?! É seu marido

Este homem que comigo tem vivido

E que, não sei por quê, aqui me trouxe?!...

Arminda

É! Mas melhor seria que o não fosse!

Vamos: Perante mim e neste instante,

Se defrontam marido e sua amante.

Procurando em vilíssima baixeza

O mal que tão somente a eles lhe pesa!

E se era meu dever escorraçar

Quem se arroja e atreve a enxovalhar

Com descaro, a virtude desta casa,

Só muito antes a minha alma se empraza

A repudiar bem altivamente

Os instintos de tão ignóbil gente,

Ordenando que fiquem, por minutos,

Na expiação de feitos e seus frutos.

Henrique

(Interrompendo)

Mas essa altivez, é demais, senhora,

Para quem se transforma em pecadora!

Essa altivez repugna por excesso,

Na mulher que adoptou igual processo

De ilegitimidade em relações?!...

Arminda

(Com desprezo)

Basta! Basta de infames alusões!

Margarida

(Antepondo-se)

Sim! Sim! Basta senhor! Não diga mais,

Porque as suas palavras são fatais,

Fatais p'ra o nosso crime, e redentoras

Para quem se dirigem, salvadoras

P'ra quem lançadas vão! Basta, senhor,

(Apontando para Arminda)

Em nome da verdade oculta em dor!

Arminda

(Surpreendida)

Mas... o que fala aí, nessa existência!

Margarida

(Com pesar)

Qualquer coisa da minha consciência!

(Ouvem-se uns gemidos de criança).

Henrique

(Perturbado e levando as mãos à cabeça)

E agora fala a vós de alta vingança

Nos gemidos que solta essa criança!...

Margarida

(Subitamente e apontando para o biombo)

Senhora! Quem... quem é que chora além?!...

Arminda

É um pedaço d'alma que vil mãe

Desprezou!

Margarida

(Caindo de joelhos)

                 Ah! Meu Deus! perdão! perdão!...

Porque fala agora este coração!...

Henrique

(Admirado perante a posição de Margarida)

Surpreende-me esse humilde movimento?!...

Arminda

Fala o remorso em forte sentimento!

Margarida

(Levantando-se e dirigindo-se a Henrique)

Bem dizia eu, senhor! bem dizia eu,

Duvidando de que isto fosse réu

Do cinismo que tanto apregoava!...

Henrique

(Surpreso)

Como assim?! Se inda há pouco aí chorava

O produto do crime e da traição?!

Margarida

Era a voz da verdade e da razão,

Iluminando as trevas da mentira!

Arminda

(Interrompendo)

É a prova do mal que tanto aspira.

Para me confundir nessa torpeza

Que inventou, e que sempre se despreza

Com orgulho e altivez, porque, orgulhosa,

Bem se torna a mulher crente, e ciosa

Dos seus deveres, mesmo, mesmo quando

Isolada p'lo péssimo desmando

Do marido, mesmo inda que atirada

Para o jus da vingança provocada.

Orgulhosa se torna esta mulher

Que, no direito dum mau proceder,

Em desforço do seu procedimento,

Só antes se acoberta ao sentimento

Que a sã moralidade nos indica,

E ao bem que tudo, tudo dignifica!

E é então o senhor, que, sem nobreza

Daquilo onde se lê, estuda e reza

A melhor oração da nossa vida,

Vem hoje, perante esta alma esquecida,

Interrogar na mais dura exigência

Quais as razões porque tenra existência

Se acalenta no leito de inocentes,

Com meus afagos ternos e dolentes!

E é então o senhor, é o senhor,

Que, agravando inda mais a minha dor,

Vem hoje aqui no intuito de saber

Porque se encontra ao lado da mulher

Desposada, a criança que acalenta?

E sabe por quê? Sabe porque dentro

Deste lar se aconchega esse vivente?

Porque, sem dúvida, é seu descendente!

Henrique

(Surpreendido de súbito)

Meu filho?!... Que irrisória afirmativa

Para suas desculpas e evasiva!

Meu filho, hã? Com que então, meu filho? E esta?!

Só se a este lar se dá, faculta e presta

O mistério da tal santa doutrina!

Talvez! Talvez que a Graça, a obra Divina,

Por aqui estendesse o puro manto,

E que depois, p'lo dom do Esp'rito Santo,

Eu também seja pai?! Talvez, talvez

O mistério julgasse pôr-me aos pés

O filho que me indica, não é assim?...

(Irado)

Ora vamos senhora! Ponha fim

Àcomedia tão mal representada,

E diga como essa alma envenenada

Concebeu a pequena criatura

Arminda

(Apontando para Henrique e Margarida)

No desvario do pai e na loucura

Da mãe!...

Margarida

(Levantando-se e avançando para Henrique)

                 Que sou eu! Sim! Sou eu, senhor,

Que na ânsia de vingança e de rancor,

Me desfiz da criança que me deu.

A mãe maldita, está aqui, sou eu,

Que em cegueira da minha profissão

Atirei com a nossa criação

Ao sabor dos instintos desta vida.

A mãe, que tem por nome Margarida,

E por mister o vício infamante,

Sou eu! Esta que foi a sua amante,

E de cuja união sai oriundo

Esse fruto que vê a luz do mundo.

A mãe, sou eu, que na brutalidade

Do meu sentir e tão baixa maldade,

Apunhalou por forma audaciosa

O sossego do lar, e o bem da esposa!

A mãe senhor, sou eu, esta mulher,

Que um pedaço de carne faz viver

P'ra orgia, palpitando em sangue vil!

A mãe sou eu, eu, uma dessas mil

Clientes de tão indigna ala mundana,

E que, vivendo sob a forma humana,

Só renegam os dons da Natureza

Por bem degeneradas em baixeza!

A mãe sou eu, que tal nome invocando,

Se afronta um predicado venerando.

Alma não a tenho; ódios há alguns;

Nada de amor e méritos nenhuns.

A mãe? a mãe, sou eu, eu, este horror!...

Henrique

(Mal compreendendo a situação)

Margarida! Que diz?!...

Margarida

                                   Digo, senhor,

A primeira verdade em minha vida;

Digo que essa criança foi nascida

Das nossas relações, e existe aqui,

Em virtude do mal com que eu agi.

É minha filha! e sua o é também,

Mas nunca, nunca em mim, teve ela mãe!

Henrique

(Atônito)

É minha filha?! Mas então... então...

O que se fez da minha sã razão?!...

Arminda

(Aproximando-se do biombo e abrindo meia porta de forma a ficar visível o interior aos personagens)

De há muito anda perdida.

(Apontando para a criança)

                                             E aqui tem

Os espinhos da estrada donde vem!

Henrique

(Aproximando-se um pouco)

Meu Deus! O que vejo?! Ella? A pequenita?

Sim! é ela! Mas, como se acredita

Tudo isto?!

Margarida

                 Pela forma com que obrei

Em face desta nossa infame grei.

Henrique

(Encolerizado e avançando para Margarida)

Porém, com que direito me levou

A proclamar um crime que tramou?

Margarida

(Humilde e avançando um pouco)

Não sei! Olhe? não sei!... Bem vê, bem vê,

Que nós obramos sem alma nem fé.

Pois eu sei lá senhor! sim, eu sei lá

O que fiz? Foi apenas o que dá

Esta vil criatura! Foi somente

A pratica dum ato inconsciente!...

Arminda

(Interrompendo)

E que, talvez, por essa inconsciência,

Um porvir se consiga da inocência...

(Apontando para o berço)

Descansa ela no leito que lhe dei,

Embalada p'la dor que alimentei.

E nas minhas canções, mesmo chorando,

A pouco e pouco irei sempre insuflando

A redenção. Depois, quando mais tarde,

Ao bom Deus eu imploro que ma guarde

E desta virgindade faça alguém,

Já que o mesmo Deus dela me fez mãe.

(Aproximando-se do berço)

Vejam? Sonha decerto na ventura

Que o acaso lhe trouxe, e na candura

Do berço onde dormita! Berço pobre

De brocados, mas rico, rico e nobre

Do bem! Sonha decerto na esperança

Com que se entrega à minha confiança:

Sonha, quem sabe? na libertação

Da cadeia que traz humilhação!...

Margarida

(Avançando e exclamando)

Minha filha! Meu Deus! Grande verdade!

É a isto que se chama honestidade?

Arminda

(Continuando, enquanto Henrique fita a criança sucumbida)

Vejam?! E era, era então este senhor,

O grande, o grande espelho refletor

Do meu crime?!

(Vendo que Henrique emudece)

                          Ande? Diga? acuse e insulte,

Para que todo o mundo veja e ausculte

A farsa atribuída! Vamos, fale?

Porque emudece?

(Apontando para a criança)

                          Tem aqui o mal,

E é ante ele que deve demonstrar

O cinismo, a baixeza deste lar,

E tudo o mais que omito, oculto e calo!

Henrique

(Tímido e a custo)

Falar? Eu... eu... senhora?

(Com pausa)

                                             Sim, eu falo...

Eu vou falar, consente?...

Arminda

(Altiva)

                                             Porque não?!

Henrique

(Curvando-se humilde)

Pois falarei!

(Pausa)

Perdão!

Margarida

(Caindo de novo aos pés de Arminda)

                                             Perdão! Perdão!

Arminda

Mas, em nome de quê?... sim?... e porquê?!

Henrique

Do remorso que assiste, e se antevê!

Margarida

P'la crença, de que abjuro e reneguei

P'ra sempre o caminho em que me abismei.

Arminda

(Levantando os olhos para o céu)

Senhor! Senhor! p'ra os pomos da discórdia,

Venha a vossa infinita miser'córdia!

CAI O PANO

Fim do segundo ato

EPÍLOGO

A mesma cena do prologo. Margarida, ao subir o pano, encontra-se sentada junto duma pequena mesa, com a cabeça apoiada nas mãos e completamente sucumbida.

CENA PRIMEIRA

Margarida

(Só)

Eu a chorar! e lágrimas ardentes

Deslizando nas faces reviventes

De vergonha! Deus na alma! e ao coração

Amor! Ao meu esp’rito a reflexão!

Na consciência a revolta e o remorso

Em que já me debato e me contorço!

O que é? que pode ser? A reação

Convulsionando o corpo, e a razão

Subjugando-me, por demais vencida!

O que é?

(Pausa)

                 É a verdade, Margarida!

Verdade?! E quem responde? Quem me fala?

É Deus! Mas Deus compara, Deus iguala

Esta mulher aos dons da Natureza?

Sim. Porque se nasceu para a baixeza,

Redime-se p'ra o bem! Ah! mas eu minto

E pequei, pois agora mesmo eu sinto

Que para o mal o mundo me não doou.

Nem Deus para a baixeza me criou!

Deus, amando, só cria para amar,

E eu amei... oh! amei, mas a sonhar,

Apenas a sonhar, sim, porque alguém

Sepultou do meu sonho todo o bem!

Eu nasci para amar, e amei; amei

Quanto pude ante a Boa e pura lei

Do amor, mas, mas depois, quem tanto amava,

Disse-me um dia que isso não passava

De um mito, e foi-se andando na procura

Daquilo que à pobreza salva a agrura;

Foi-se andando na busca de riqueza,

Porque eu era pobre, e isso se despreza!

E é então, é então que o meu amor

Se arrebata nas garras do impudor;

É então, que me afundo nas camadas

Que alimentam as tristes depravadas!

Sim! Eu amei! E amei tanto, amei tanto,

Que por causa de amor tão puro e santo.

Busquei embriagar-me nesta orgia,

Para que o grande Deus a ninguém cria!

(Pausa)

Eu a chorar!... e lágrimas ardentes

Deslizando nas faces reviventes

De vergonha! Porque? E que fiz eu?

Fiz tudo e nada! Fiz crime e labéu;

Tudo, tudo p'lo mal duma existência,

E nada, nada pela inconsciência.

E porque alguém, alguém me aniquilou,

Fiz tudo, e nada. Fiz... fiz o que sou!

(Pausa)

Eu a chorar! e lágrimas ardentes,

Velando os olhos bem reminiscentes

Do que vi!...

                          E que vi eu?... A mulher,

A mulher como ela é e deve ser.

Vi-a altiva e com toda a majestade

Destruindo o insulto à sombra da verdade!

Vi-a repudiando com nobreza

Os feitos da maldade e da torpeza!

Vi-a... vi-a tomando nos seus braços

O fruto que proveio de devassos!

Vi-a, evocando graças divinais

Numa orquestra de sons tão maternais

P’ra criança que a minha embriaguez

Ousou depositar, lançar-lhe aos pés!

E como tudo ainda fosse pouco,

Em paga dum agir mau, vil e louco,

Eu vi-a, meu Deus! eu vi-a, meu Deus!

Pedir que me enviasses lá dos céus

O perdão!

                 Mas que fiz eu?!... Tudo... e nada...

Fiz... o que faz mulher desnaturada!

(Tomba a cabeça sobre as mãos em posição dolorosa)

CENA SEGUNDA

MARGARIDA E FERNANDO

Fernando

(Entrando pelo fundo)

Ora até que enfim, linda Margarida!?

Por onde tem andado tão perdida?

Margarida

(Interrompendo num estremecimento súbito de surpresa e quase de indignação)

Ah!...

Fernando

(Avançando e continuando)

       Por onde se tem tornado preza

E errante a sua graça e gentileza?!

Margarida

(Dissimulando a tristeza)

Em parte alguma, creia...

Fernando

                                             Não parece...

E olhe que o prometido não se esquece.

Mas que tem? Que tem? Vejo que chorou?!

Margarida

Chorar? Eu?! Eu?!

(À parte, limpando os olhos)

                                   Oh! sim! não se enganou!

(Alto)

Chorar? Eu?! Não!

Fernando

                          Mas, seus olhos vermelhos,

São de tal flagrantíssimos espelhos!

Margarida

(Dissimulando)

Nada isso diz, embora lhe pareça;

Efeitos só de dores de cabeça

Que há dias me apoquentam...

Fernando

                                                      E que, espero,

Melhorem ante o meu voto sincero,

E não impeçam minha estada aqui,

Já que de novo me honra, e me sorri

O convite, tornando-se ocupado

O lugar que me disse ter vagado.

Margarida

(Num rápido estremecimento)

O que?! Fui eu que o disse?! Eu é que o disse?!

Fernando

(Com estranheza)

Duvida? Mas que grande esquisitice

Representa essa dúvida!...

Margarida

Porque?!...

Fernando

(Tirando do bolso um cartão)

Em face do bilhete onde se lê

O seu pedido, e ainda mesmo, quando

Claramente dizendo e bem frisando

(Aproximando-se de uma porta lateral)

Certas palavras, junto desta porta;

A não ser que, que seja letra morta

O que me afirmou!

Margarida

(Com repulsão)

                                    Não! Não me recorda?!

Fernando

Veremos, nesse caso, se, se aborda

A frase muito nítida ao ouvido,

Para que ela jamais tenha esquecido.

Foi aqui, veja, foi neste lugar

Que, apontando-me altiva e sem pesar,

(Olhando para o interior dum quarto)

Certa vaga que ali dentro existia,

Perguntou o que lá se achava e via.

Respondi... o que ainda vejo:

                                             Um leito.

(Malicioso)

E por sinal que estava bem desfeito,

Em contraste com toda a compostura

Que ora se nota. Então, é nesta altura

Que assim exclama:

                                    “Está ao seu dispor”.

Margarida

Lembra-me com efeito!

(Àparte)

                                    Mas que horror!

(Alto e aproximando-se de Fernando)

É verdade! E a verdade diz, Fernando!

Mas foi um dito mau, dito execrando!

Dito que não devia proclamar

(Com desespero)

E que fez mal, só mal, em mo lembrar.

Fernando

(Surpreendido)

Porém, nada percebo, e muito menos

Com tais palavras, cujo modo e acenos

São expostos em termo áspero e rude.

Margarida

(Apontando o leito)

Aquela vaga, ocupa-a hoje a Virtude.

Fernando

(Estupefato)

Como assim?! Isso é dito com ironia?!...

Margarida

Falo com consciência e ufania

De a possuir!

Fernando

                          Verdade?! Isso é verdade?!...

Margarida

Digo-lho com a mor sinceridade.

O leito que em orgias se desfez,

Hoje... somente cobre a honradez!

Fernando

(Aproximando-se da mesa, sentando-se e com ironia)

Bravo!... Sim senhor! Muito bem! Contudo,

Espero que me explique por miúdo

O que em vida de grã desfaçatez

Se entende por virtude ou honradez.

Margarida

(Aproximando-se também da mesa e sentando-se)

Será um sacrifício, mas, enfim,

Cumprirei seu desejo.

Fernando

(Rindo)

                                   E quanto a mim,

Agradeço a irrisória explicação,

Que ouvirei com a máxima atenção.

Vamos. Comece. O que é honra e virtude?...

Margarida

(Com amargura)

Sabê-lo no passado, eu nunca pude,

Mas no presente, dela tenho a fé!

Virtude e honra, meu caro, eu lhe digo... É...

(Com certo desprezo)

É... o que o senhor nunca compreendeu!...

Fernando

(Cada vez mais surpreendido)

Que nunca compreendi? Que disse?! Eu?! Eu?!

Margarida

Sim, meu caro senhor! Que nunca, nunca

Compreendeu; pois quem lança p'ra espelunca

Do vício a mulher que disse amar,

A virtude não sabe interpretar.

Fernando

Alude então...

Margarida

(Atalhando)

                          Àminha triste historia

Muito bem refletida na memória!

Fernando

Mas isso... já lá vai há tanto, há tanto...

Margarida

Ah! Lembra-se? Pois bem! E embora o pranto

Volte a ofuscar-me as faces de vergonha,

Rememoro o que em época risonha

Duma vida serviu para o transporte

Da reles existência e fraca sorte.

Criança, inda bem nova, inexp'riente,

Senti n'alma o que sente toda a gente.

Despertando p'ra quadra dum amor:

E a pouco extasiada nesse alvor,

Deixei que me prendessem simpatias

Que vibravam num canto de harmonia:

Tudo então me sorria e tudo amava!

A graciosa manhã que despontava

No melódico trio de avezinhas,

O sol que vivifica as florezinhas,

O declinar da tarde, as noites belas,

Da lua o brilho, a graça das estrelas,

O conchego, a família, o trabalho,

A paz, tranquilidade e o agasalho,

A invocação, a Bíblia e a reza;

Eu amava, enfim, toda a natureza,

Pelo próprio amor da juventude,

A vibrar como cordas de alaúde

Num peito que se alava para o bem!

Mas de súbito, meu Deus! esse alguém

Que me elevara aos paramos do amor;

Quem me ajudara a crê-lo no primor

Da verdade, e guiava o norte meu,

Que devia subir até ao céu...

Corta, derruba, as azas deste alar,

E obriga-me a cair, faz-me tombar

No grande turbilhão da tempestade,

Na hecatombe e na mor fatalidade!

E tudo, tudo então quanto eu amava,

Breve se convertia e se trocava

Pela renegação, pela baixeza,

Deixando já de amar a Natureza,

Para me filiar em quê? Em quê?

Nas hostes dos que nunca têm fé!

E tombei! E caí!

(Chorando)

                          Sim, sim, tombei!

Àcusta de quê? Deus meu! Nem eu sei?!

(A Fernando)

Sei! Sei, senhor! à custa do abandono

Que me precipitou naquele sono,

Cuja letargia obra o desvario

Num corpo molestado e doentio,

Em proveito de todo o esquecimento

Do que de bem havia em sentimento!

Pois se eu amava tanto, e desse amor

Em si depositei e pus, senhor,

A esperança ditosa de meus dias,

Sem que se me opusessem fantasias;

Se tudo lhe entreguei: alma, honra e vida,

Para que tornar tão desvanecida

A fraqueza da minha confiança?...

Fernando

(Pretendendo desculpar-se)

Porque eu... porque eu também era criança...

(Levanta-se)

Margarida

Não! Não! Diga que foi a sede e fome

De usufruir, e após, pensar que o nome

Humilhava, e jamais lhe serviria

P'ra linda sugestão que me incutia;

Diga: foi o que muita gente faz,

Cativando, prendendo em forma audaz

O débil ser, a frágil criatura,

Que ora subjugada ante a noite escura

Do vosso infame e vil, e vil narcótico,

Obedece depois ao espasmódico

Furor de saciar as intenções

Com que se roubam fracos corações.

Não é isto?

Fernando

(Perturbado)

                          Mas...

Margarida

(Levantando-se)

                                   Mas... senhor Fernando

Queira explicar-me agora quando, quando

Foi por si concebida a qualidade

Virtuosa, por entre a sociedade?!

Fernando

(Sucumbido)

Atualmente à face da razão...

Que decerto ditou a reação

Do mal, desse mal que me inclui nos réus

Do mundo!

(Pausa e estendendo a mão a Margarida)

                 Margarida... adeus!...

Margarida

(Apertando a mão de Fernando)

                                                    Adeus...

(Fernando sai)

CENA FINAL

Margarida

(Só, depois dum momento de silêncio e de olhar toda a sala)

E nada, nada mais desse passado

Que abomino!

(Levantando os olhos para o céu)

                          Deus! Meu Deus!

                                                    Obrigado!

CAI O PANO

Fim da peça