António Feijó
ILHA DOS AMORES
AUTO DO MEU AFETO
ALMA TRISTE
Edição de
Catarina Feijó Rodrigues
Guilherme Pinto
Joana Martinho
Mónica Castro
Coordenação de Ângela Correia
Lisboa
2015
[Fiz o meu mel de todas estas flores,]
António de Castro Feijó nasceu em Ponte de Lima, a 1 de junho de 1859 e faleceu, em Estocolmo, a 20 de junho de 1917. Concluiu o liceu em Braga, e licenciou-se depois em Direito, pela Universidade de Coimbra, em 1883.
Além de Ilha dos Amores (1897), António Feijó publicou também Transfigurações (1862), Cancioneiro chinês (1890) e Bailatas (1907).
Apesar da importância de António Feijó na literatura portuguesa, este poeta permanece desconhecido do grande público, facto que, em larga medida, nos levou a ver na presente reedição uma oportunidade de divulgação. O título do livro que aqui reeditamos, por outro lado, chamou a nossa atenção pelo diálogo com Os Lusíadas.
O livro-fonte
Preparámos a presente reedição a partir da digitalização de um exemplar da primeira edição de Ilha dos Amores, disponível no site oficial da Casa Fernando Pessoa.
A nossa pesquisa levou-nos a concluir que o livro Ilha dos Amores teve apenas uma edição, em 1897. Na capa, além do título Ilha dos Amores, constam ainda dois títulos impressos num tamanho de letra mais reduzido: Auto do meu afeto e Alma triste. Embora o livro seja conhecido pelo primeiro título, ele corresponde apenas ao título do primeiro conjunto de poemas do volume, correspondendo os outros dois títulos aos dois outros conjuntos de poemas. Por baixo dos títulos, uma imagem feminina levanta uma faixa onde se lê “Espalharei por toda a parte”.
Na capa, foi também impresso o responsável pela edição — “M. Gomes, Editor / Livreiro de suas Majestades e Altezas” — bem como a morada do editor — Rua Garrett (Chiado), 70-72, Lisboa — e a data em numeração romana.
Sobre o lado direito da capa pode observar-se um carimbo, onde se lê “António Augusto Lopes Cardozo / N.º 21 / Favaios”. Este carimbo foi posteriormente riscado, provavelmente aquando da mudança de propriedade.
Normas de transcrição
— Mantivemos todas as caraterísticas ortográficas do livro-fonte, bem como os tamanhos de letra relativos do corpo do texto, títulos e subtítulos.
— As palavras, expressões, versos e poemas em itálico mantiveram-se tal como se encontram no livro-fonte.
— Não reproduzimos nem a imagem de capa nem as gravuras que antecedem e concluem cada conjunto de poemas, nem as capitais decoradas.
— Não reproduzimos o espaço entre os sinais de pontuação e a palavra anterior, que se observa por vezes no livro-fonte.
— Não reproduzimos as páginas em branco do livro fonte.
— Mantivemos, na medida do possível, a disposição dos versos nas páginas.
— Não reproduzimos um sinal gráfico, constituído por três asteriscos dispostos em triângulo, que separa poemas, nem mantivemos a numeração das páginas do livro-fonte.
— Uniformizámos o espaçamento entre as palavras.
— Distinguimos com cor sépia os passos que no livro fonte foram assinalados a lápis por leitor indeterminado.
Três fermosos outeiros se mostravam
Erguidos com soberba graciosa...
CAMÕES.
Com rumo ignorado
Embarquei-me e parti no meu iate de Sonho,
Por um luar de balada e um céu todo estrelado,
Em busca do Arquipélago risonho
Onde o Gênio do Amor vive encantado.
Andei a procurá-lo, às cegas, como um crente,
Sem jamais o encontrar,
Entre as rosas trigueiras do Ocidente
E os lírios brancos do jardim polar…
Quem sabe se ele existe, ocultamente,
Nalguma ilha do deserto mar?!
No ardor que me inflamava
Larguei ao vento as arquejantes velas;
Era claro o luar e o céu azul vergava
Ao peso imenso das estrelas.
O vento enchia as velas palpitantes
E arrepiava as águas cariciosamente,
Fazendo-as cintilar como pó de diamantes
Na tremulina do luar fulgente.
Com rumo incerto e sem destino, a proa ao largo,
À medida que a terra se escondia,
Em pé sobre o convés, os meus olhos alargo
Pela amplidão do mar deserta e fria …
Nada via surgir do horizonte sem bruma;
Somente a vaga a espreguiçar-se resvalava,
Como uma grande flor de espuma
Que a proa do navio desfolhava.
Mas de repente ouvi certas vozes perdidas,
Numa orquestra, a distância e em surdina, a cantar…
Pensei que eram sereias doloridas
Dizendo trovas ao luar;
Mas eram vozes conhecidas,
Vozes de amantes esquecidas
A cantar e a chorar...
E olhando ao longe, dentre as úmidas neblinas
Que sobre o mar na viração desciam.
Grupos sonâmbulos de ondinas
Das águas preguiçosas emergiam.
Seus cabelos doirados e macios.
Seus peitos cor de nácar luminoso.
Mesmo através da bruma, eu conheci-os...
Não se enganava o meu olhar ansioso.
E uma por uma os seus encantos celebrando,
Como um longo cortejo misterioso,
Todas diante de mim foram passando...
……………………………………………………
Esta, de olhos azuis como um linhar em flor.
De cabelo em anéis cor de bronze doirado,
Foi a que mais amei... Gozo, Volúpia, Dor,
Tudo em ânsias bebi no seu peito gelado!
Se tinha coração era um floco de neve,
Que ao fogo das paixões nunca foi derretida;
Era duro e gelado o coração, se o teve,
Como a sua garganta em ágata esculpida!
Aquela, a do perfil aberto em lava fria,
Esbelta e senhoril como uma escuna ao vento,
Tem ainda a expressão que no seu lábio ardia,
Rainúnculo de fogo entreaberto ao relento.
E outras mais, outras mais... Traidoras, de olhos garços,
Lindas e meigas como o sol por entre as chuvas...
Ingênuas, de cabelo em fios de oiro esparsos,
E de olhos pretos como as uvas!
A cantar e a gemer queixas de rola aflita,
Passavam a tremer num nevoeiro indeciso,
Com o olhar a cerrar-se em volúpia infinita,
Com a voz a expirar no encanto do sorriso.
Graciosas como ao vento os leques das palmeiras,
Via-as, sem emoção, baloiçando-se ao largo,
Belas como em abril os bosques de amendoeiras
De flor tão perfumada e fruto tão amargo!
E todas, pouco a pouco, em seu cortejo lento,
Foram-se dissipando e sumindo na bruma...
Cabelos torrenciais a dispersar-se ao vento,
Corpos brancos de neve a fundir-se em espuma!
Meu coração porém não podia esquecê-las;
Deram-lhe anos de dor, mas divinos instantes,
E pôs-se a repetir às nuvens e às estrelas
Velhas canções de amor que lhe inspiraram de antes:
Astros das noites límpidas, velai-vos!
Luar, desmaia o teu clarão, desmaia!
Cravos, papoulas, rosas, inclinai-vos!
Deixai-a dormir, deixai-a...
Aves, calai-vos no arvoredo antigo!
Silêncio, espumas que beijais a praia!...
Dorme!... sonha talvez... sonha comigo...
Deixai-a dormir, deixai-a...
Soprai de manso, virações caladas!
Ungi-a de perfumes, inundai-a
No aroma das magnólias desmaiadas!
Deixai-a dormir, deixai-a…
Cristalizai-vos, lágrimas noturnas,
E em perolas trementes orvalhai-a;
Cai de leve das cerúleas urnas!
Deixai-a dormir, deixai-a ...
Astros, luar, constelações, velai-vos!
Aves, silêncio! brisa, perfumai-a!
Cravos, papoulas, rosas, inclinai-vos!
Deixai-a dormir, deixai-a…
Dizes que o Amor, tema antiquado,
Só nos agita os corações
Para no Verso atormentado
Fazer modernas variações;
Que para o Poeta e para o Artista,
Que a Sensação queima e sacode,
Toda a Mulher, fácil conquista,
Ou é uma Estátua ou é uma Ode;
E que do Amor, que tudo abarca,
E alaga em sangue e abrasa o mundo,
Fica um soneto de Petrarca
E um «Beijo» ideal de João Segundo…
No teu desdém calcas a esmo
Toda a ilusão, toda a ventura,
Voluptuosa de ti mesmo,
Ébria da própria formosura;
E para a Forma que eletriza,
Achas triunfo mal completo,
Ser só na tela Mona Lisa,
Ser só perfume num Soneto.
Talvez não saibas, por desgraça,
Sendo como és vaidosa e bela,
Que o sangue nosso é quem amassa
A tinta ardente duma tela!
Nem como é rude o esforço adverso,
O desespero, a comoção,
Com que se engasta num só verso
Sangrento e vivo o Coração!
Não serei eu quem te persiga,
Mas que esse Orgulho nunca pense
Que em ti achei a Forma Antiga
Num sonho vão de ateniense...
Adoro-te. E ninguém, minha Estrangeira loira!
Conhece o teu país, a pátria onde nasceste,
Nem que alvorada inunda esse teu busto, e doira
O âmbar do teu cabelo e a cor do olhar celeste!
És a Minerva antiga, a olímpica e serena
Palas de oiro e marfim, que Fídias concebeu,
Ou a Virgem Cristã, a Mística Açucena
Que sobre o globo ostenta o seu perfil judeu?
Anfitrite que o sol do boulevard perfuma,
Porventura surgiu das águas cristalinas
O teu corpo imortal, como uma flor de espuma
Que navega ao luar entre as Horas divinas?
És tu a Sulamite, a Esposa dos Cantares,
Longe do teu senhor, num desejo sem fim?
A Tentação que passa envenenando os ares,
Hécate espanejando asas de Serafim?
És Vitória Colona? Aspásia? Fornarina?
Que divino escultor teu corpo cinzelou
E te incendiou no olhar, cujo clarão fulmina,
O corisco imortal que Prometeu roubou?
Flor de prata ostentando os seus pistilos de oiro,
Surges, deusa radiosa, aos meus olhos sem fé,
— Solto na espadua ebúrnea o teu cabelo loiro —
Como diante do espelho a Eva grega, Psiquê!
Archanjo ou cortesã, quando a flor do sorriso,
Abre nos lábios teus, romã quase madura,
Que enigma lhes imprime esse marmóreo friso
Com laivos de desdém, de escárnio e de amargura?
Que nevoa tolda a cor desses teus olhos garços
E te faz semelhante aos Anjos fulminados,
Se o teu cabelo rola em turbilhões esparsos,
Como um manto real, nos húmeros nevados?
É o Ódio quem produz essa ironia acerba?
A inconsolável dor de algum ideal perdido?
És porventura a estátua augusta da Soberba,
Ou a Mulher que vinga o seu Amor traído?
Nunca em teu coração, que a angústia contamina,
Viste desabrochar, ingênua e virginal,
A Piedade, essa flor que em todos nós germina
Como um lírio encerrado em urna de cristal?
Nunca um raio de amor, como um luar macio,
Brilhou nos olhos teus que o antimônio aviva,
Nem um beijo esvoaçou desse teu lábio frio,
Como uma abelha de oiro errante e fugitiva?
Donde vens tu, que assim o espírito alucinas
Daqueles sobre quem poisa o teu claro olhar,
Rainha que a sorrir, nas mãos longas e finas,
Podes tanta ilusão radiosa estrangular?
Donde vens, donde vens, que o Amor e o Medo espalhas
Como a flor que a espargir venenos entreabrisse?
Dizem todos que a um tempo abraças e amortalhas,
Mas vão cair-te aos pés a soluçar: Beatrice…
A Vingança é cruel, inconsequente e cega!
Se alguém zombou de ti, pálida romanesca,
O efebo antigo adora e anima a Estátua grega,
Paolo morre beijando os lábios de Francesca!
Oculto no teu seio existe com certeza
Algum negro, infernal, demônio familiar,
Que te deu a expressão terrível à beleza
E contra o qual sucumbe o Amor, anjo do Lar...
Tudo o que as almas prende e os corações enlaça,
Tudo o que dá realce e brilho à Formosura,
A harmonia, a expressão, a suavidade, a graça,
Veio reunir-se em ti, Eva orgulhosa e impura!
A Natureza foi horrivelmente injusta
Pondo manchas no sol, nevoas no azul do ar,
Dando a um corpo de Heloisa uma alma de Locusta,
Dando à serpente hedionda olhos da cor do mar!
Foi cruel, ao fundir teu corpo incomparável,
Cujas ondulações felinas e indolentes
Deixam no ar não sei quê de puro e de inefável,
Que aos lábios faz subir os corações frementes.
Foi barbara, aos vestir de ingênuos atrativos
Essa augusta expressão de Juno sobranceira...
— O teu sorriso tem venenos corrosivos,
E contudo rescende à flor de laranjeira!
Ninguém, ninguém dirá que és a Mulher funesta,
Suave querubim, como a inocência, loiro!
Mas eu vejo, através da tua graça honesta,
Cleópatra a sorrir sobre a galera de oiro!
Lodo que o sol doirou num raio deslumbrante!
Fulge no teu altar de estrelas circundada,
Loira Virgem do Mal, no orgulho triunfante,
Calcando o Homem aos pés, como a Serpente odiada!
Como Hercules aos pés de Onfale, eu, rude e forte,
Se estou junto de ti, que és melindrosa e frágil,
Sinto que tudo pode a graça do teu porte,
Vejo como o teu braço é vigoroso e ágil.
Longe de ti blasfemo, exalto-me, protesto,
A fraqueza escondendo em ostentoso alarde...
Apareces, e basta uma palavra, um gesto,
Humilha-se de novo o coração covarde!
Com a clava do Herói, o Orgulho, braço a braço,
Luta, iroso titã, contra o Desejo infrene;
Mas da Hidra esmagada assim, cada pedaço
Vem de novo enroscar-se em mim, luta perene!
Passeios, distrações, viagens, o imprevisto,
Sentia em toda a parte esse lampejo eterno,
E as vozes da paixão, num coro nunca visto,
Como lobos a uivar, famintos, pelo inverno.
Não há desdéns, não há injurias nem afrontas
Que possam insuflar-me uns últimos assomos...
E é com esta baixeza horrível que tu contas!
Confessaste-o uma vez... Que miseráveis somos!
E no entanto, — vê tu que horrível desatino! —
Se em meus braços te cinjo, ou demônio, ou rainha,
Esquecendo traições e infâmias, imagino
Que és minha, toda minha, unicamente minha!
Na tua boca macerada
Por tantos beijos mercenários que sofreste,
Meu lábio achou ainda a candura sagrada
Que da avidez das outras bocas escondeste...
E no teu peito exausto, onde em tumulto ouviste
Tantas paixões rolar,
A minh'alma escutou, num eco amargo e triste,
A primeira inocência em segredo a chorar!
A chorar em segredo a pureza da infância,
A candura perdida,
De que eu sentia ainda a última fragrância
A evolar-se de ti, como de urna partida.
Pobre flor torturada! O teu doce perfume
Foi delicia e veneno...
Pairava o teu Amor como num alto cume:
Só podia atingi-lo o meu beijo sereno!
Todo o teu ser vibrou como uma flor ao vento,
Tremeu, desfaleceu...
E a tua alma, esquecendo o seu longo tormento,
Num sorriso de glória à tua boca ascendeu!
Vinha cheia de graça e candura inefável,
De inocência e de pejo,
Que eu fiquei a cismar se esse beijo insondável
Seria porventura o teu primeiro beijo!...
Vejo-a em frente de mim, melancolicamente,
Na sua graça real de flor branca e doente,
Doirada pelo sol claro da minha terra...
Vejo-a em frente de mim, no exílio que me aterra,
Abrindo o seu piedoso e macerado olhar,
Onde o amor e a paixão se enlaçam a boiar
Na lágrima em que vai suspensa a minha vida.
És tu, ficção divina, a Esposa Prometida,
Aquela virginal, pálida criatura,
Meiga como a pureza, alva como a candura,
Que no meu coração tenho há tanto gravada,
Toda de sol vestida e de astros coroada?
És tu o ardente ideal que o Sonho concebeu,
Eco da minha voz, ser paralelo ao meu,
Com o mesmo pensar e a mesma aspiração,
— Dois corações marcando uma só pulsação,
Chamas da mesma luz, lábios à mesma altura?
Não és tu quem procuro há tanto? Porventura
Meu pobre coração, fremente de ansiedade,
Não lê no teu olhar, claro como a verdade,
Na tua boca divina onde florescem beijos,
No teu seio tremente e virgem de desejos,
A ternura, a expressão, o resplendor, a graça
Daquele imenso amor, que nos subjuga e enlaça
E os nossos corações funde no mesmo raio?
Que significa então este intimo desmaio,
Esta volúpia em que me sinto adormecer,
Senão a irradiação divina do teu ser,
Que em mim acende e ateia esse clarão intenso
Que sai do coração e vae, alto e suspenso,
Beijar e iluminar o alvor da tua pele?
Não é amor, não é paixão, isto que impele
Os nossos corações, como no imenso mar
Duas garças reais que vão voando a par?
Desde que te sonhei, muito antes de te ver,
O fluido misterioso e puro do teu ser
Já no meu coração, doutros sonhos proscrito,
Tinha estratificado o incoercível mito
Nessa pedra angular do amor e da paixão,
Que a espuma do prazer bate num turbilhão,
Sem nunca a desgastar, sem nunca a submergir!
Ha uma folha que é sempre a última a cair
Das árvores; há sempre um sonho ou uma ilusão
Que é a última a expirar dentro do coração...
Vi desfazer-se tudo em miserável poeira!
Só tu me restas, flor branca de laranjeira,
Como ao dia que morre o ocaso luminoso,
E a estrela d’alva ao céu noturno e misterioso...
Que profunda tristeza olhando esse caminho
Por onde Ella passou, entre círios a arder!
Ia branca no esquife, em seu manto de arminho,
Rainha da minha alma, ave do meu carinho,
De asa implume e já morta antes do amanhecer...
Como eu me lembro ainda, olhando essa avenida
Por onde Ella passou, nevoa branca de incenso!...
Morta, virgem e noiva, a que era a minha vida!
A acácia tem ainda a sua rama pendida,
O chorão verte ainda o seu pranto suspenso...
Ah, que melancolia o espírito transporta,
Aqui, neste caminho, à dor desse momento!...
Era estreito o caixão, muito estreito... que importa?
Se os meus sonhos levava enlaçados na morta,
Mortos uns de volúpia, outros de sofrimento!...
Corpo de arminho, alma de arminho,
O teu perfil espiritual
Lembra uma santa iluminada em pergaminho
Num livro de Horas medieval.
De rendas finas como penas,
Feitas num místico tear,
As tuas mãos parecem duas açucenas
Desabrochadas ao luar.
Branco de neve e luar coalhado
Sobre magnólias a entreabrir,
Teu lácteo seio é como um ninho imaculado
Onde os meus sonhos vão dormir...
Acorde místico e divino.
Murmúrio languido de prece,
É como um som azul e branco, harpa e violino,
A tua voz que me adormece.
O olhar azul, o olhar celeste,
Tem tal doçura e tal unção,
Que duma auréola seráfica te veste
Como o esplendor duma Assumpção.
E o teu cabelo, oiro tostado,
Tão lizo e loiro sobre a testa,
Traz o teu rosto de madona emoldurado
Num bizantino halo de festa.
Que direi eu, que mais exalte
Essa figura espiritual,
Oh minha santa iluminada a oiro e esmalte
Num livro de Horas medieval?
Avè, Maria! É este o grito
Em que os meus versos se condensam,
Quando te vejo e o teu olhar, sempre bendito,
Cai sobre mim como uma benção…
No tear do Sonho, ao luar dorido,
A minh’alma triste pôs-se a tecer,
E de pensamentos fez um vestido
Para te cobrir e te proteger.
Fez-se cor da Noite e da minha Mágoa
O pesado estofo em que te envolvi...
Túnica ou sudário, olhos rasos d’água,
Pus-me a soluçar quando to vesti.
O brocado régio era nevoa espessa...
Como pôde crer a minha alma viúva,
Que do próprio sangue uma aranha teça
Musselinas de oiro em manhãs de chuva?
Tecedeira triste, alma de exilado,
Que podia dar, vindo do desterro
Põe-se a imaginar mantos de brocado
Mas apenas tece ouropéis de enterro.
Eram ilusões tudo o que eu tecia,
E na minha dor, nem sequer pensava
Que o prateado fio em que a teia urdia
Era dos meus olhos que se desfiava...
Sempre que cerro o olhar involuntariamente,
Como um pássaro a voar na direção do poente,
Para junto de ti meu pensamento esvoaça,
Cheio daquela unção, irmã gêmea da graça
Que a tua alma divina irradia na minha...
Cuido então que o teu ser aéreo se avizinha,
Ouço-te respirar, sinto o arfar do teu seio,
E ajoelhado a teus pés, nesse amoroso anseio,
Ébrio duma fragrância ideal que me sufoca,
Penso que andam no ar beijos da tua boca,
Como rosas de abril que a viração desfolha
E deixa sobre mim cair folha por folha...
Alucinado, estendo os braços e procuro
Contra o meu comprimir teu seio branco e puro,
E no êxtase do Sonho, assim, ambos unidos,
Os nossos corações palpitam confundidos
E abrasados no mesmo ardor, na mesma chama.
O eflúvio virginal que o teu olhar derrama,
Inefável clarão do alvorecer do dia,
Como um vinho de luz que as almas inebria,
Verte na minha mágoa a beatitude estranha
Que só o luar produz quando, sobre a montanha,
Em estalactites cai pelo arvoredo antigo!
Horas e horas fico a antegozar contigo,
Na volúpia suprema, a transfusão divina
De duas almas que o mesmo ideal prende e fascina,
Realizando assim na terra esse adelfado
Sublime, esse alto e puro amor, esse elevado
Sentimento, imortal e místico prazer
Da completa absorção dum ser pelo outro ser.
Isto que sinto em mim, sinto-o e vejo-o presente
Sempre que cerro o olhar involuntariamente,
Sempre que para ti meu pensamento esvoaça.
É o divino reflexo, o resplendor da graça
Com que a virtude antiga o teu perfil reveste,
Que aos meus olhos te faz surgir, Lírio celeste,
Como uma aparição de estrelas circundada,
Tendo a lua a teus pés de um palor de alvorada,
E uma Açucena de oiro em tuas mãos erguida!
É assim que eu te vejo em sonhos, concebida
Sem mácula, sem nodoa alguma do Pecado,
Como um raio de sol sobre a neve coalhado,
Como uma orquídea de oiro orvalhada ao luar.
Ideal, visto através duma aurora polar,
Não é o teu corpo, a forma augusta, incomparável,
Que mais adoro; é o teu espírito inefável,
É o teu sorriso, é a tua voz, é o teu olhar,
Onde a graça divina arde como o luar,
Numa noite profunda e sem astros, suspenso.
É essa virginal auréola, esse intenso
Resplendor que te cerca a fronte e te circunda
De raios, em que o meu espírito se inunda,
Que da minha memória em tormento apagaram
Todas essas visões que antes de ti passaram
Pelo meu coração devastadoramente.
Desses vastos clarões de incêndio, lentamente
Extintos, o montão imenso das ruinas,
Apenas descerraste as pálpebras divinas,
Transformou-se ao luar dos teus olhos radiantes,
E o Amor, Fênix eterna, as asas palpitantes
Abrindo, sobre mim como uma águia pairou.
Nessa luz sororal tudo se dissipou;
Nem do primeiro amor vejo a sombra ilusória,
Como uma flor morrendo a um canto da Memória.
Trago o meu coração um céu estrelado
Feito do resplendor dum dia de noivado...
Tudo canta em redor de mim, tudo palpita!
Bendita sejas tu, oh minha Irmã, Bendita!
Separei-me de ti há séculos, — três dias! —
E és tu a única luz, és tu que me alumias,
É sempre o teu olhar suavíssimo e profundo
O sol que para mim arde e ilumina o mundo,
A estrela d’alva, o meu refúgio, o meu amparo!
Longe embora de ti, de ti nunca separo
Meu pobre coração que anda por toda a parte
Num alvoroço eterno e santo a acompanhar-te,
Deixando em seu lugar, esculpido em meu peito,
Esse busto imortal, puríssimo e perfeito,
Que eu vejo dentro em mim todo resplandecente,
Sempre que cerro o olhar involuntariamente,
Sempre que para ti meu pensamento esvoaça...
Bendita sejas tu, Avè! cheia de graça...
Fiz o meu mel de todas estas flores,
Mas o doirado e precioso mel,
Quando a alvorada abria o leque de esplendores
Transformava-se em fel…
Como uma abelha andei de desejo em desejo
Pelo Jardim das Ilusões,
Colhendo em cada boca a flor do mesmo beijo,
Vendo o mesmo sorriso a disfarçar traições.
Saturei o minuto da Existência
Em toda a embriaguez...
Dizei-o vós, oh noites de demência,
Peitos brancos de Inês!
Dizei, contai o meu delírio insano,
Beijos mais numerosos que as estrelas!
Mas o meu coração, de engano em desengano,
Passou nos escarcéus como um barco sem velas...
Comprimido, esmagado em seu cárcere estreito,
O meu Sonho procura em ânsias atingir...
Deus não podia pôr-me este incêndio no peito
Só para cinzas produzir!...
E por isso embarquei no meu iate de Sonho,
Por um luar de balada e um céu todo estrelado,
Em busca do Arquipélago risonho
Onde o Gênio do Amor vive encantado...
A viração da noite as nevoas diluía;
Pairava em torno a mim um silêncio sem par;
Nem o vento gemia,
Nem suspirava o mar...
A Lua Nova adormecida
Erguia as pontas a anunciar procelas...
— Foucinha de oiro esquecida
Numa campina de estrelas.
Aves tristes de agoiro, em orbitas incertas,
Esvoaçavam no ar quente e paralisado,
E um enorme condor, de asas negras abertas,
Levava um coração no bico ensanguentado.
Mas se há presságios maus e difíceis jornadas
Quando a Fé não subjuga as quimeras errantes,
Nas terras de Galaad as bíblicas estradas
Perfumavam os pés dos míseros viandantes.
Alma intrépida, ao largo! O vento refrescava,
E no silêncio ameaçador,
Gracioso e leve, o meu navio bolinava
Cortando as águas sem rumor.
Nada via surgir do horizonte sem bruma;
Somente a vaga, ao vento alísio, resvalava,
Como uma grande flor de espuma
Que a proa do navio desfolhava.
Mas pouco a pouco o luar sobre as águas morria,
Entre nuvens a erguer-se em alteroso cerro,
E a escuridão profunda e trágica descia,
Caindo sobre o mar como um pano de enterro.
Relâmpagos, trovões, mar em fúria, rajadas,
Ondas tentando erguer-se às nuvens incendiadas,
— A tudo impávido afrontei!
E após a luta, olhando ao largo, ansioso e ardente,
Quando a luz da manhã fez explosão no Oriente,
Terras longínquas avistei!
Não eram sombras nem miragens
Na luz difusa e pálida do dia;
Era um mundo lunar com estranhas paisagens
O que aos meus olhos ávidos surgia.
E quando a pouco e pouco as sombras desmaiavam
No resplendor do sol, que das águas rompia,
Erguidos com soberba graciosa,
Três formosos outeiros se mostravam
Coroados de nevoas cor de rosa...
Viva Deus! a Alegria abre as asas serenas
Pairando sobre mim como um largo dossel;
Fazem ninho em meu lábio as abelhas de Atenas
Que a boca do Poeta impregnaram de mel;
Andam no ar perfumado ecos de cantilenas,
Músicas pastoris de helênico vergel.
Suspenso o coração, e os olhos deslumbrados
Naquela aparição desse raro momento,
Começava a entrever bosques, rios prateados,
Com a mesma surpresa e o mesmo sentimento
De alguém que ao despertar visse realizados
Os castelos que andou a edificar no vento...
E é lá que a minha Noiva em sobressalto espera,
Como uma deusa antiga o seu pastor errante.
Nas colinas em flor, sorrindo, a Primavera
Cobre de áureos festões seu tirso de Bacante,
E as Horas vão passando, engrinaldadas de hera,
Umas da cor da Lua, outras do Sol radiante!
Oh Musa Antiga, de olhos plácidos, rasgados
No mármore dum busto aureolado e sereno!
Inspira-me e desvenda aos meus olhos nublados
A graça e a proporção do sentimento heleno.
Revela-me num gesto os mais altos modelos
Do Verso lapidar, para nele esculpir,
Com encantos de deusa e doirados cabelos,
Essa flor de volúpia a tremer e a sorrir!
Ensina-me em segredo o gênio incomparável
De poder transformar os versos que componho,
E dum jacto fundir, com tua arte impecável,
Num dístico imortal a visão do meu Sonho!
Basta o oiro do sol para a cor dos cabelos;
Para os olhos azuis basta o azul cristalino,
Se o Verso lapidar souber circunscrevê-los
Num jambo grego ou num hexâmetro latino!...
E enquanto a minha voz sem eco se perdia
Na ardente aspiração da Graça e da Beleza,
O meu navio as vagas límpidas fendia,
— Velas brancas ao sol sob um céu de turquesa.
Mas, — oh prodígio! oh maravilha! —
A miragem divina afasta-se e recua!
Sobre as águas levada, a misteriosa Ilha
Como uma enorme flor aquática flutua!
E o meu navio avança, o pano todo ao vento,
Mas a Eterna Quimera, a distância, a iludir-me,
Murcha em meu coração como a flor dum momento,
Corre diante de mim como a Esp’rança a fugir-me!
E assim andei de tudo e todos esquecido,
Anos, dias talvez, talvez breves minutos,
Tendo entrevisto o Ideal sem o ter atingido,
Coberto o coração de inconsoláveis lutos.
Hoje, de volta ao meu eterno exílio,
Mal pode a fantasia imaginar
— Todo cheio de sombra e paisagens de idílio —
Esse mundo lunar...
O sol da Mocidade escondeu-se no Poente;
Mas nos seus últimos clarões,
De joelhos peço a Deus, numa súplica ardente,
Novas quimeras e ilusões,
Para o meu coração em silêncio adorar,
Quando o Inverno vier melancolicamente
Sentar-se ao pé de mim no meu deserto Lar!
(1887)
PRELÚDIO
Ao luar dormente, ao luar dos trópicos, no exílio,
Sobre um terraço à beira-mar,
Procurei na memória as rimas deste idílio,
— Contas perdidas dum colar...
Do coração, robusto ainda, em cada leiva,
Com todo o afeto arquitetei-as;
Insuflei-lhes calor, graça, perfume, serva,
— Tudo o que espuma em nossas veias...
Derradeiros clarões dum poente cor de sangue,
Onde, em tristíssima viuvez,
Como águia moribunda, a Mocidade exangue
Contempla o sol a última vez...
Ingênuos corações que idealizais venturas!
— Andam morcegos a esvoaçar…
Lede vós, lede vós as minhas desventuras,
Olhos vermelhos de chorar! …
In questi rime sparsi
Son d’Amor mille inganni,
Brevissimi diletti, e lunghi affanni.
Chi legge i miei martiri
Raffreni i suoi desiri;
Che seminando in fral beltà si coglie
Pianto amaro, aspre doglie.
De’ madrigali di
PIETRO PETRACGI
I
Ontem, quando passei, de olhos cravados
Nos teus olhos azuis, — como um gracejo —
Com esses dedos finos e rosados,
Atiraste-me um beijo.
Que mal fizeste! Os beijos namorados
São como certos frutos do Equador:
— Devem ser nos arbustos apanhados
Para terem sabor...
II
Ninguém sonhou palavras inflamadas
No incêndio da paixão e do desejo,
Que na eloquência fossem igualadas
Ao frêmito dum beijo.
Deixemos pois as frases requintadas,
E os nossos versos languidos acabe-os
O estrépido das rimas, esmagadas
Sob a pressão dos lábios!
III
Quando tu falas, nem sequer palpita
Meu coração, de súbito parado...
E queixas-te de mim, tudo te excita,
Por me veres calado.
Mas quem, ouvindo a música bendita
Da tua voz, não se há de extasiar?
Quando nos fala uma mulher bonita
Ouve-se com o olhar...
IV
Que impertinência a tua! E todavia
Prefiro ver-te assim, branca e nervosa,
Nos relevos da cólera sombria,
Filha de Eva orgulhosa!
Ficas mais bela assim, pálida e fria,
Vibrando nesse elétrico lampejo...
Mas não te exaltes mais, toda a ironia
Dissolve-se num beijo…
V
Adoro o teu olhar que me fulmina,
Sendo um claro e suave rosicler;
E beijo a tua mão pálida e fina,
A tua mão que me fere...
Por um momento apenas, imagina
O que eu faria, que nervoso alarme,
Se essa traidora mão, quase divina,
Quisesse acariciar-me!?
VI
Com a triste ironia do desgosto,
Expondo as minhas queixas amorosas,
Lamentava que Deus tivesse posto
Os espinhos nas rosas...
E tu, erguendo o iluminado rosto,
Disseste cheia de infantis carinhos:
Devias adorá-lo... por ter posto
As rosas nos espinhos!
VII
Não sei que mágoa o teu silêncio encerra,
Que tenebrosa ideia te domina...
Fala! Responde! O teu silêncio aterra,
E o teu olhar fulmina!
Deus fez o Amor para animar a terra,
Fez o Prazer para encantar a vida...
Abre os teus lábios, meu amor! Descerra
O teu olhar, querida!
VIII
Tens medo de morrer, alma insofrida!
Ainda há pouco, tremente de receio,
Reclinavas a fronte dolorida,
A chorar, no meu seio...
Mas essa apreensão indefinida
É quem alenta a nossa horrível sorte!
Existiria algum prazer na vida,
Sem o terror da Morte?...
IX
Dizes, quando os teus olhos inefáveis
Julgam as minhas amarguras ver:
— «Abandona esses livros miseráveis!
Não é belo viver?» —
Como és ingênua! A dor que me trucida
Não vem dos livros que costumo ler;
Para aprender a desprezar a vida,
É bastante viver!
X
Afasto-me de ti porque receio
Que o meu amor te faça desgraçada…
Não brota na charneca do meu seio
Nem uma flor sagrada.
Por isso fujo da atração que leio
Na clara festa desse olhar risonho,
Com a tristeza, o desespero, o anseio,
De quem foge dum Sonho…
XI
Devo partir... Teus braços enlaçados
Prendem-se em mim como um colar macio,
Quando se tinge em laivos inflamados
O céu pálido e frio...
Gritos, soluços, prantos derramados!
— Os braços da mulher que nos enleia,
Por mais ternos que sejam e adorados,
— São sempre uma cadeia...
XII
Apalpo o lado esquerdo... Não sentia
Bater meu coração, que te adorava;
De mim, saudoso, o misero fugia
E o teu seio buscava...
Assim devia ser! Como eu partia,
Ele que tanto amou, tanto sofreu,
Convulso, aflito, exânime, devia
Ficar junto do teu...
XIII
No abandono da minha soledade,
Em que a Memória absorve o Pensamento,
Como a lua das ruinas, a Saudade
Abre o olhar sonolento.
E é nessa luz, é nessa claridade,
Que o teu vulto divino se acentua,
Como a nuvem dum céu de tempestade
No sudário da lua...
XIV
Muitas vezes a Ausência prolongada
Tudo esbate em longínqua perspectiva;
Outras vezes porém, chama sagrada,
As imagens aviva.
— Tumultuosa corrente extravasada,
Tudo submerge e arrasta num momento!...
Mas quando torna a angústia concentrada,
Devora o Pensamento!
XV
O que mais me comove e me contrista,
Neste pesar que se apossou de mim,
É não saber, — que tenebroso egoísta! —
Se te lembras de mim...
Qualquer ideia em que a memória insista
Redobra a nossa angústia, é uma aflição...
E eu vivo a repetir: — Longe da vista,
Longe do coração...
XVI
Mandaram-me dizer que me traíste...
Nunca o meu cego amor acreditou!
Mas um dia, no peito amargo e triste,
A dúvida passou…
E esse vivo relâmpago persiste,
Labareda em continuo turbilhão...
O que será de mim, se me iludiste,
Minha única Ilusão?
XVII
Já não duvido mais! Na minha ausência
Mostraste bem toda a perversidade...
O que eu julgava ser maledicência
Tornou-se em realidade.
E era tal o fervor, tal a demência
Dessa paixão, que envergonhado escondo,
Que ainda tinha perdão, tinha indulgencia,
Para o teu crime hediondo!
XVIII
Uma formosa e tímida peônia,
Que a luz da lua fez desabrochar,
Pensou de madrugada que morria,
Saudosa do luar...
Mas quando o sol deslumbrador sorria,
Como doce caricia que flutua,
Numa volúpia languida, a peônia
Esqueceu-se da lua...
XIX
Voa como uma flecha o Pensamento,
Alto e largo no azul, batendo as asas,
Entre as poeiras astrais do firmamento
Radiantes como brasas...
Mas debalde procura o esquecimento;
Resplende em cada estrela uma ilusão...
Deixá-lo andar no seu deslumbramento:
Dorme tu, Coração!
XX
Um rouxinol apaixonou-se um dia
Por uma altiva e delicada rosa;
Mas debalde cantava, não o ouvia
Essa flor desdenhosa…
E o rouxinol, coitado, sucumbia…
Vendo que a bela e zombeteira flor,
Dos insetos grotescos recebia
O fugitivo amor…
XXI
Confessaste uma vez, sincera e franca,
Num momento de angústia e de aflição:
— Dos nossos corações ninguém arranca
A primeira paixão… —
Por isso a minha dor nunca se estanca,
Vendo a antiga ilusão murcha entre gelos,
Como o cadáver dessa rosa branca
Morta nos teus cabelos…
XXII
Foram as tuas culpas relevadas
Porque sofreste, e mais, porque choraste!
Tinhas ainda as faces orvalhadas,
Rosa a tremer na haste...
Lágrimas são as abluções sagradas;
Filhas da nossa dor, delas dimana
O sal que limpa as almas enodoadas
Na corrupção humana.
XXIII
— «Tornar a ver-te! Que divino encanto
Teus olhos vertem no meu peito exangue!
Deixa-me inebriar, murcho amaranto,
No aroma do teu sangue!» —
Mas tu, sorrindo, sufocada em pranto,
Disseste-me: — «Que belo era morrer!
Ninguém no mundo tem vivido tanto,
Se sofrer é viver!» —
XXIV
Tu, que frivolamente me traíste,
Lamentas hoje o teu passado escuro,
E aquele amor que nos meus olhos viste
Imaculado e puro...
E, na saudade em que a memória insiste,
Choras sobre esse amor, branca e piedosa,
Com o teu rosto lacrimoso e triste
De Vênus Dolorosa...
XXV
Comove-me essa angústia, essa desgraça,
Porque da mesma dor também sucumbo;
Ambos choramos a Ilusão que passa
Num féretro de chumbo...
Mas antes que de todo se desfaça,
Que o nosso olhar a enleie num instante,
Como uma trepadeira que se abraça
A um poste gotejante…
XXVI
No estio os bosques toucam-se de ramos,
Mas a flor que morreu não ressuscita!...
Porventura nos beijos que trocamos,
O antigo amor palpita?
Nas volúpias, que em sonhos evocamos,
Um vendaval aspérrimo soprou;
É que entre nós, que tanto nos amamos,
Uma lesma passou...
XXVII
Junto de ti, o meu fervor consiste
Em reanimar o Sonho que morreu;
E o meu olhar, contemplativo e triste,
Abisma-se no teu.
Mas a ilusão, que momentânea viste,
A uma visão funérea se transporta:
A outra, que eras tu, já não existe...
E imagino-te morta...
XXVIII
Sonho-te morta, e vejo-te deitada
Sobre a eça, entre lívidos tocheiros,
Com a fina cabeça emoldurada
Em doirados nevoeiros...
Sonho-te morta, e vejo-te levada,
Sem um grito, um murmúrio de oração...
Mas toda a terra sobre ti lançada
Cai no meu coração! …
XXIX
Rimei estas oitavas dia a dia,
Para esquecer um íntimo pesar…
Dizer as nossas mágoas alivia,
É um balsamo cantar...
Assim na grande nau da Fantasia
Pelo Oceano das Lágrimas navego,
Entre as doiradas vespas da Ironia,
E o Ciúme — esse morcego…
Domingo triste, protestante e frio...
Onde estais vós, Domingos doutros anos,
Adro da minha Egreja, alamedas do rio,
Dias santos de sol católicos-romanos?
Vejo-vos através deste obscuro Dezembro
Como por uma lente de esmeralda;
Se penso em vós, nem sinto a neve, nem me lembro
Da febre impertinente que me escalda.
Sinto-me reviver sob o luar da Saudade,
Como se porventura ao seu doce clarão
O cadáver da minha Mocidade
Se levantasse do caixão!
E de novo regresso à minha terra,
Fugindo em desalinho,
Como o perdido viandante que se aterra
E torna atrás no seu caminho.
Chego, e diante de mim, onde a vista se perde,
Em minha honra, abrindo o festival tesoiro,
A terra estende a sua toalha verde
E o céu acende os candelabros de oiro.
Rindo, percorro os sítios prediletos
— Adros de Igreja ou pátios de casais...
Mas de certa janela uns certos olhos pretos
Cravam-se em mim como punhais!
E eu fico absorto, como outrora, ao vê-la,
A gelosia onde esse olhar flameja,
Tão luminoso e ardente, que a janela
Fulge como a rosácea duma igreja…
Como são belos os domingos nas aldeias!
Missas d'alva, manhãs serenas de alegria,
E um Deus amável, que até mesmo as feias
Leva rindo e cantando à romaria!
Danças alegres pelas eiras,
Cantigas tristes nas quebradas...
Capelas a luzir cercadas de roseiras,
Laranjeira em flor sorrindo às namoradas!
Cantam os galos... Tocai, sineiros!
É missa d’alva, que lindo dia!
E como o rio se espreguiça, entre os salgueiros,
No seu lençol de areia aveludada e fria!...
Rindo e brincando, passam as horas
Pelos outeiros do meu lugar,
— Lábios risonhos tintos de amoras,
Bocas vermelhas sempre a cantar...
São João era moreno,
É moreno o meu amor;
Anda ao sol, anda ao sereno,
Nunca muda aquela cor.
Desde que o sol anda fora
Ponho o meu linho a corar;
Quanto mais o linho cora,
Mais morena hei de eu ficar.
A rosa da Alexandria
Dá-lhe o vento, cai no chão;
No meu peito, noite e dia,
Nunca dorme o coração.
O barquinho vai nas águas
Com a borda rente ao mar;
Pesam tanto as minhas mágoas
Que mal pode navegar.
Mas a doce canção morre nos meus ouvidos
Como o ruído da vaga a espraiar-se na areia;
Se o canto ainda se escuta, as notas são gemidos...
Só a voz da Saudade ecoa em terra alheia!
Desperto; volto a mim; foge o encanto da hora;
O vento geme na vidraça...
Vou correr, divagar pela cidade fora;
Mas só de quando em quando algum enterro passa!...
«Sait-on au juste ce que Narcisse a vu dans la fontaine et de quoi il est mort?»
Dizem que a Vida é curta... E os que sofrem, famintos?
Para mim é tão longa e tão cheia de enganos,
Que eu penso, ao revolver os meus sonhos extintos,
Que nasci há cem anos!
E espanto-me, fitando o meu rosto no espelho:
Nem uma ruga só, nem um cabelo branco!
Mas nos meus lábios paira um sorriso de velho,
E as lágrimas a errar nos meus olhos estanco...
A fronte guarda ainda a firmeza vaidosa
Que à força juvenil dá relevos de herói;
Mas se o fruto conserva a sua polpa graciosa
Já no seio alimenta o verme que o destrói.
Horas inteiras fico a olhar, hipnotizado,
Essa imagem que o espelho a princípio compôs;
Mas pouco a pouco vejo o meu rosto mudado...
E contudo ninguém entre nós se interpôs!
Traços de mocidade extinguem-se de todo;
O cabelo embranquece a ondular sobre a testa,
E num rosto de asceta, um olhar sem denodo,
Paira como o luar de uma noite funesta...
Ponho-me a analisar traço por traço a imagem,
E o meu modo de ser nela se reproduz;
A primitiva sombra era apenas miragem,
Ilusão, aparência ou capricho da luz.
O meu retrato é este, o verdadeiro: é vê-lo!
Não sou eu porventura esse velhinho ansioso?
Tantos anos de dor bronquearam-lhe o cabelo,
Mas a resignação deu-lhe o riso bondoso...
Abelhas a esvoaçar sobre um nectário... Abelhas
De oiro! O mel desse nectário
Vai ser roubado agora às papoulas vermelhas...
Primeira comunhão de amor, hóstia e sacrário!
Torcei-vos, girassóis! Aleluia! Aleluia!
Fez-se purpura a alvorada...
Duas bocas rimando a primeira poesia,
— A pureza da neve à inocência colada!
O tempo corre; a Infância é Mocidade; agosto
A seara amarelece...
Lateja o sangue, espuma olímpica dum mosto
Escorrendo a ferver no esplendor da quermesse...
Melros de bico de oiro, assobiai na espessura!
Rosas brancas, inclinai-vos!
Quatro lábios cantando as arias de bravura...
— Na pureza do arminho há corrosivos laivos!
E quase noite. O poente é uma fornalha extinta...
Corações mortificados,
A noite cai; a sombra alastra como tinta,
E cobrem-se de neve os cabelos doirados...
Chorai constelações! Noites de Lua!... Oremos!
A vida é um sonho breve...
— Duas bocas reunindo os suspiros extremos...
A Saudade colada à rigidez da neve!
Última aurora, último dia, último ocaso!
Ainda há plantas em redor?
O ciclone estilhaça o derradeiro vaso,
Lasca o roble e desfolha a derradeira flor.
Saturno ergueu as mãos no azul, frio levita!
É o ultimo estertor...
— Quatro lábios saudando a alvorada infinita:
Os dois lábios da Morte e os dois lábios do Amor!
Aparição noturna, o solitário monge
Surge, como um espectro, às grades do convento;
A sombra do capuz cai-lhe na face, e ao longe
Ecoa o seu andar cadenciado e lento.
Da abobada suspenso o lampadário oscila;
Jorra laivos de sangue ao crucifixo erguido;
E do monge sombrio o espírito vacila,
Num pensamento abstrato e lúgubre perdido.
Caminha devagar sobre o lajedo e passa,
Magro pelos jejuns e a penitencia austera...
E ao ver no olhar do Cristo a sempiterna ameaça,
Nas pontas do cilicio as carnes dilacera.
Ao lábio não lhe assoma um riso de alegria;
Sem família, sem lar, na tumultuaria coorte
De horríveis tentações que o pensamento amplia,
Aspira à Liberdade, e a Liberdade é a morte!
Assim, estranho espectro, o exausto penitente,
No claustro abandonado, à lua branca e pura,
Todas as noites vai abrindo lentamente
— Coveiro de si mesmo — a própria sepultura.
E quando encontra alguém no seu burel curvado,
Alguém, que vai como ele a campa revolver,
A um silêncio profundo e eterno condenado,
Brada apenas: — «Irmão, é preciso morrer!»
.......................................................................................
Assim, oh meu amor! como esse monge andamos
Cavando a sepultura às nossas ilusões,
Com a mente no azul, onde em sonhos erramos,
E a noite do sepulcro em nossos corações.
E na angústia em que nunca o pensamento dorme,
— Como um luar que vem de inaccessíveis mundos,
Cuido ainda que tu, numa saudade enorme,
Inclinas para mim teus olhos moribundos...
Mas debalde procuro, ansioso, aflito, ardente,
A ternura, a expressão, daquele antigo olhar,
Que sereno e feliz vinha amorosamente
Revestir-me de ideal, como um lençol de luar...
E contudo se a mente exausta se debruça
No largo parapeito aéreo da Ilusão,
Dentre a cinza revolta a Esp’rança ainda soluça
Como triste, espectral, marmórea aparição...
Mas na minha profunda angústia cruciante,
Parece-me escutar, quase a desfalecer,
Não sei que estranha voz, sumida e lancinante,
Gemendo ao longe: — «Irmão, é preciso morrer!» —
O Prazer bebe-se às gotas,
A Dor por taças a trasbordar...
Corações a bater sob armaduras rotas,
É bem melhor na paz da sepultura descansar!
Partistes ao romper da aurora, a espada nua,
Bandeira ao vento...
Mas dessa aurora fez-se uma noite sem lua,
Do clamor da batalha um cantochão de esquecimento.
Combater, para quê? Se o fulgor da Verdade
É uma réstea de sol a tremer numa fresta;
Dá muito menos luz, mais dúbia claridade
Do que uma vela, exposta ao vento, a arder, numa floresta...
O pescador lançou no mar as suas redes,
Tirou conchas vazias...
E no insano lidar, as pérolas que vedes
Gera-as o sofrimento e a dor de surdas agonias.
Desmoronou-se a vossa casa;
Tentais de novo, mas debalde, erguê-la dos escombros...
Só vos resta a Memória a arder como uma brasa,
E o peso imenso da Saudade aos ombros!
A Ventura... o Prazer... Tanto esforço e trabalho
Para correr atrás duma quimera estranha,
Brilhante, mas tão frágil como as pérolas de orvalho
Tremeluzindo ao sol numa teia de aranha!
Desfez-se em ruinas o meu castelo...
Dos meus amigos quantos morreram!
Sinto flocos de neve a pratear-me o cabelo,
Sinto rugas por onde as minhas lágrimas correram...
Como o outono polar é nostálgico e longo!
Seis horas... Tarde triste e molhada da chuva...
Pelo horizonte, quando os meus olhos alongo,
Parece desdobrar-se um longo véu de viúva.
Penetra-me não sei que profunda saudade,
Não sei que perturbante, incoercível tristeza;
Falta-me não sei quê, — família, intimidade,
Paz, conforto do lar... tudo vaga incerteza.
Como o outono polar é triste! A noite desce;
Não se pode sair, chove continuamente;
O calor do fogão o meu corpo entorpece,
Vejo diante de mim tudo confusamente.
Sinto-me adormecer. Vou fumar, distrair-me;
O fumo em espirais toma estranhos aspectos,
Formas vagas... depois num desenho mais firme
Começa a transformar-se em fantasmas discretos.
Passam diante de mim, dos meus olhos nublados,
Brancas aparições num vapor indeciso...
Umas, de olhos azuis e cabelos doirados,
Tendo ainda no lábio o perdão do sorriso,
Outras, de olhar profundo e cabelos sombrios,
Com a mesma aflitiva e magoada expressão,
A chorar, a chorar sobre os meus desvarios
Lágrimas de amargura e acerba acusação!
E todas lá se vão, pela mente que sonha,
A esbater-se, a apagar-se em nevoeiros dispersos...
Só tu restas, visão de remorso e vergonha!
Sarcástica, venal, loira de olhos perversos!
Desperto, volto a mim; vejo o fogão sem brasas;
— Diluíram-se no fumo as visões que sonhei...
E a chuva sem cessar! Quem me dera ter asas!
Para fugir, voar... para onde? Nem sei...
(A UM PEQUENITO, VENDEDOR DE JORNAIS)
Bairro elegante, — e que miséria!
Roto e faminto, à luz sidérea,
O pequenito adormeceu...
Morto de frio e de cansaço,
As mãos no seio, erguido o braço
Sobre os jornais, que não vendeu.
A noite é fria; a geada cresta;
Em cada lar, sinais de festa!
E o pobrezinho não tem lar...
Todas as portas já cerradas!
Oh almas puras, bem formadas,
Vede as estrelas a chorar!
Morto de frio e de cansaço,
As mãos no seio, erguido o braço
Sobre os jornais, que não vendeu,
Em plena rua, que miséria!
Roto e faminto, à luz sidérea,
O pequenito adormeceu...
Em torno dele — oh dor sagrada!
Ao ver um círculo sem geada
Na sua morna exalação,
Pensei se o frio descaroável
Do pequenino miserável
Teria mágoa e compaixão...
Sonha talvez, pobre inocente!
Ao frio, à neve, ao luar mordente,
Com o presépio de Belém...
Do céu azul, às horas mortas,
Nossa Senhora abriu-lhe as portas
E aos orfãozinhos sem ninguém...
E todo o céu se lhe apresenta
Numa grande Árvore que ostenta
Coisas dum vívido esplendor,
Onde Jesus, o Deus Menino,
Ao som dum cântico divino,
Colhe as estrelas do Senhor...
E o pequenito extasiado,
Naquele sonho iluminado
De tantas coisas imortais,
— No céu azul, pobre criança!
Pensa talvez, cheio de esp’rança,
Vender melhor os seus jornais...
As abelhas de oiro fogem da colmeia,
Vão na terra alheia
Fabricar o mel...
As abelhas de oiro, de infiéis amores,
Ao murchar das flores
Fogem do vergel.
Sem levar saudades lá se vão embora,
E nenhuma chora,
Nem se lembra mais
Das primeiras rosas, dos primeiros favos,
Madressilvas, cravos,
Girassóis, mirtais...
Lá se vão em bando, no doirado enxame,
Já sugado o estame
À derradeira flor...
E não voltam nunca, nunca mais regressam,
E talvez esqueçam
O primeiro amor.
E na casa em ruinas, já sem mel nem rosas,
Larvas tenebrosas
Foram-se abrigar...
Já não cantam aves no silêncio morno,
Andam só em torno
Corvos a voar...
Madressilvas, lírios, primavera alada,
Oiros da alvorada,
Mocidade em flor!
Foram-se as abelhas... Coração vazio!
Veio a Noite, o frio,
A solidão e a Dor!
Nossa Senhora tem o peito atravessado
Por sete espadas, infinitas dores...
Monjas de rosto macerado,
Ungi-lhe os pés de lágrimas e flores!
Como um jardim de exangues açucenas,
Sôfregas de luar,
Erguei as vossas mãos torturadas de penas
Para o pranto que vai dos seus olhos rolar.
Cada lágrima sua é um diluvio de graça
Na deserta aridez do vosso coração;
Em céu canicular o chuveiro que passa
Alaga e refrigera o calcinado chão!
Ajoelhai, rezai, monjas de olhos queimados
Do continuo chorar sobre as culpas alheias!
Rezai por nós, por nossas culpas e pecados...
A prece embala como um coro de sereias.
Quem me dera poder como vós ajoelhar-me,
Erguer súplices mãos torcionadas de dor,
Confessar o meu erro em desvairado alarme
E obter do seu lábio o perdão redentor!
Vento de tempestade em tenuíssima chama,
Um hálito de morte em minh'alma soprou...
Mas como um grito vão que a vossa fé proclama,
No meu lábio impotente a blasfêmia ficou!
Se tu não és, Senhora Nossa, Estrela e Guia,
Mãe de Deus, medianeira entre o Céu e o Pecado,
Quem nos meus lábios pôs esta acerba Ironia
E o teu peito deixou de lanças traspassado?!...
A Primavera bateu-me à porta...
— Abri-lhe a porta de par em par!
Mas vinha pálida, vinha morta
De tantos frios atravessar.
Visita alguma tão agradável
Para a minh'alma podia ser;
Depois do Inverno descaroável
No teu regaço vou-me aquecer.
Ha cinco meses que a neve rola,
Ha cinco meses, sem descansar,
Em alvos flocos, plumas de rola
Que ao vento frio dançam no ar...
Mas os teus olhos, reparo agora,
Não tem o brilho que tinham de antes,
E os teus cabelos, fios de aurora,
São menos fulvos e deslumbrantes.
Foi a fadiga da longa viagem...
Porém, que importa? quando sorris,
Sempre em teus olhos vejo a paisagem
Verde e doirada do meu país.
Abre os teus braços, limpa o teu pranto,
Sacode os raios dos teus cabelos!
Ficas imóvel, no teu quebranto,
Olhos vidrados de pesadelos?!
Não és a mesma da minha Infância,
Não és a mesma da Mocidade!
A tua antiga, subtil fragrância
Respiro-a ainda, mas com saudade...
— «Ah meu amigo, como te iludes!
Eu sou a mesma, vem-me beijar!
Foram os anos, invernos rudes,
Que perturbaram o teu olhar…
«Eu bem o vejo, bem o pressinto,
A minha vista já não te inflama!
És como a cinza dum fogo extinto,
Tépida ainda, mas já sem chama...»
Longos dias sem luz, sem horizontes claros,
Tardes setentrionais dum silêncio sem fim...
E esses olhos do Sul a brilhar como faros,
Mas suspensos do azul, muito longe de mim!
Vasto lençol de neve amortalhando tudo!
Florestas sem murmúrio, estradas sem ninguém...
Nesta desolação até o oceano é mudo,
Que a vaga, ao rebentar, se congelou também!
Sol sem calor, sem luz, tremeluzindo a custo,
Como um fósforo a arder num nevoeiro alvacento...
De longe em longe algum esqueleto de arbusto...
Silêncio e solidão! nem rumor d’água ou vento!
Devem de ser assim as paisagens lunares,
Sem vida e sem calor... neve, silêncio, frio!...
Mas num céu cor de zinco, esvoaçando aos pares,
Os cisnes brancos vem anunciando o estio!
Só no meu coração todo o gelo amontoado
Para se derreter e fundir de repente,
Precisava o calor do teu seio estrelado
Neste exílio polar, como um céu do Ocidente.
Sentada junto à murmura corrente
Cismava a melancólica donzela,
Mirando-se nas águas tristemente:
— «Meu Deus! Meu Deus! Se sou formosa e bela,
«De que me serve a formosura?» — exclama —
«Olho, e não vejo a mão que há de colher-me...
«Aquele a quem amei, já me não ama,
«E tão longe de mim, não pode ver-me!
«Rosas silvestres para o chão curvadas,
«Se soubésseis a dor que me sufoca!
«Rosas que suspirais, rosas magoadas,
«Tingi-vos no carmim da minha boca!
«Oh nuvens que passais, oh nuvens de oiro,
«No clarão fugitivo do sol posto!
«Como eu reparto as joias dum tesoiro,
«inflamai-vos no incêndio do meu rosto!
«Meu coração não tem onde se acoite,
«Barquinha abandonada entre os escolhos;
«Estrelas que sorris, lírios da noite,
«Abrasai-vos no lume dos meus olhos!
«Tu, dos que sofrem sossegado abrigo,
«Berço de paz, meu derradeiro norte!
«Vem receber-me no teu seio amigo,
«Toma o que é teu, ditosa e amada Morte!»
Ergueu-se então para lançar-se às águas,
A soluçar, com lágrimas saudosas,
Como joias de luz, feitas de mágoas,
Tremendo nas pupilas melindrosas...
De súbito aparece e vem sustê-la,
O suspirado amante que a buscava;
Mas a formosa e languida donzela
De alegria e surpresa desmaiava.
E ele, abrasado na amorosa chama,
Com voz tremente, que a emoção sufoca,
— «Eu sou a Rosa, oh meu Amor!» — exclama —
«Dá-me o vivo carmim da tua boca!»
E nisto, um beijo se escutou, roçando
À flor dum lábio cetinoso e brando...
«Sou a Nuvem que passa, a nuvem de oiro,
«Como um palácio nómada, ao sol posto;
«Vim roubar uma joia ao teu tesoiro,
Inflamar-me no incêndio do teu rosto!»
E nisto, um beijo se escutou na face,
Como harpejo subtil que se evolasse…
«Sou a Estrela a sorrir, lírio da noite,
«Vim guiar o teu barco entre os escolhos;
«Teu coração já tem onde se acoite,
«Abrasa-me no lume dos teus olhos!»
E nisto, um beijo se escutou, libado
No seu languido olhar, meio cerrado...
«Sou dos que sofrem sossegado abrigo,
«Berço de paz, teu derradeiro norte;
«Reclina a fronte no meu seio amigo...
«Vou levar-te comigo… eu sou a Morte!»
E tomando-a nos braços, dolorida,
Perdeu-se na floresta indefinida...
Terras do Norte, meu longínquo exílio!
Águas tranquilas, pinheirais, rochedos...
Por estes bosques nunca andou Virgílio,
Nem melros cantam nestes arvoredos...
Terras do Norte, meu longínquo exílio...
Lagos sem fim; desertos sem miragem;
Mares sem ondas na toalha azul;
Nem uma ave de aurórea plumagem,
Nem uma planta que recorde o Sul!
Lagos sem fim, desertos sem miragem…
Longos ocasos de esvaídas cores,
Na paz discreta em que as paisagens morrem,
Nem choram fontes nos jardins sem flores,
Nem voam aves, nem as águas correm.
Longos ocasos de esvaídas cores...
O azul do céu é desmaiado e frio;
O azul dos olhos sem fulgor latente;
Doira os cabelos este sol do estio
Mas não aquece o coração da gente...
O azul do céu é desmaiado e frio…
Miña nai, quando m'eu morra,
Se morrer em Ponte Vedra
Medraran rosas na cova…
Canção popular galega.
Noite profunda, noite impassível!
O alvor da neve, cobrindo tudo,
Torna o silêncio quase visível...
O alvor da neve cobrindo tudo.
São como espectros de coisas mortas
As grandes sombras dos arvoredos...
São como espectros de coisas mortas,
Lentos, dizendo graves segredos.
Noite profunda, céu sem estrelas...
Só na minh'alma soluça o vento,
Só na minh'alma rugem procelas,
Só na minh'alma soluça o vento!
E a neve rola continuamente
Na sua imensa desolação;
E a neve rola continuamente,
Mas cai-me toda no coração.
A noite imensa tudo escurece,
Mas os meus olhos, da terra estranha,
Voam às praias que o sol aquece,
Ás praias de oiro que o Tejo banha!
Oh meus amigos, quando eu morrer
Levai meu corpo despedaçado,
Para que possa, já sem sofrer,
Dormir na Morte mais descansado!
Nasci à beira do Rio Lima,
Rio saudoso, todo cristal;
Daí a angústia que me vítima,
Daí deriva todo o meu mal.
É que nas terras que tenho visto,
Por toda a parte por onde andei,
Nunca achei nada mais imprevisto,
Terra mais linda nunca encontrei.
São águas claras sempre cantando,
Verdes colinas, alvor de areia,
Brancas ermidas, fontes chorando
Na tremulina da lua cheia...
E funda a mágoa que me exaspera,
Negra a saudade que me devora...
Anos inteiros sem primavera,
Manhãs escuras sem luz de aurora!
Oh meus amigos, quando eu morrer
Levai meu corpo despedaçado,
Para que eu possa, já sem sofrer,
Dormir na Morte mais descansado.
Olhos d'Aquela que eu estremeço,
Se de tão longe pudésseis ver-me!
Olhos divinos que eu nunca esqueço,
Morro de frio, vinde aquecer-me…
Ils marchent devant moi ces yeux pleins de lumières…
BAUDELAIRE.
Olhos negros, iguais a dois lagos dormentes
Onde o luar se esqueceu uma noite a sonhar!
Sois indistintamente astros fosforescentes
E círios funerais nas trevas a brilhar...
Em que chama acendeis, Olhos dominadores,
O mortuário clarão que os meus passos conduz
Pela estrada suprema onde as Mágoas e as Dores
Pesam mais sobre mim que o lenho duma cruz?!
Ficam tintas de sangue as pedras do caminho,
Mas diante de mim esses faróis a arder
Vertem confusamente a embriaguez do vinho,
E eu sigo sem saber, por essa estrada fora,
Se o inefável clarão, que deslumbra o meu ser,
Sae do Inferno ou do Céu, vem do Poente ou da Aurora!
Até hoje cantei o Amor e a Mocidade,
E nessas ilusões trouxe a minh'alma absorta;
Mas o Tempo não tem descanso nem piedade,
O Amor desfez-se em poeira, a Mocidade é morta!
Desse palácio de oiro e purpura, a Saudade
Ficou como uma estátua à funerária porta;
E em seu olhar de espectro, a augusta claridade
É o único esplendor que o pensamento exorta.
Vale a pena viver quando a Existência é isto?
Rasgar os pés transpondo a Rua da Amargura
Para beber o fel na esponja do Imprevisto?
Ah, como tudo é vão, mesmo o saber profundo!
— Ridícula invenção de ingênua criatura
Que sobre um grão de areia edificasse um mundo!
Depois daquele «adeus» que em beijos escondemos,
Quis ver ainda uma vez o nosso ninho, a alcova
Onde por nossas mãos urdimos e tecemos
Essa eterna ilusão do Amor, que é sempre nova...
Entro, pé ante pé, numa ansiedade estranha,
E, a falar-me de ti tudo o que me rodeia,
Vejo sobre o teu leito uma sinistra aranha,
Como outrora nós dois, compondo a sua teia.
Cai-me das mãos a luz! fico petrificado!
Pela janela aberta o luar meio azulado
Tornava ainda maior a sombra em que flutua...
E como um grito vão de angústia inconsciente,
Ouviam-se a distância os cães sinistramente
A uivar, a uivar, a uivar contra o Silêncio e a Lua!
Deixa aos olhos subir teu choro concentrado,
Alma triste, de mágoa e desespero louca!
É um alívio chorar, quando o peito esmagado
Estrebucha nas mãos da angústia que o sufoca!
Deixa o pranto rolar, pois que a dor te devora,
Nos teus olhos que estão queimados de sofrer...
Se a lágrima reflui ao coração que a chora,
É uma onda de lava, uma torrente a arder!
Mas essa lava a arder, como um rócio bendito,
Sobre o incêndio da Dor, do nosso olhar aflito,
Muda-se, ao resvalar, em simples gota d'água.
Deixa o pranto romper dos teus olhos enxutos,
Alma triste, e rolar sobre angústias e lutos
Como orvalho a cair sobre os goivos da Mágoa!...
És a Elektra distante a quem do exílio envio,
Como uma flor noturna, o pensamento exangue...
Vai de novo acolher-se ao teu gênio sombrio
E novo alento haurir no rancor do teu sangue!
Empresta-lhe o vigor da tua férrea vontade
Para não sucumbir quando a Vingança é prestes!
Longe dos olhos teus, negros de tempestade,
Estremece e vacila o coração de Orestes!
A dor que nos reuniu brotou do mesmo ultraje!
Mas se a memória sangra e o espírito reage
Vendo feliz e amado o insólito ladrão,
O braço tomba inerte e desmaia a coragem,
Porque a flor da Piedade, espontânea e selvagem,
Brota no mais deserto e miserável chão!
Não me amedrontas, não, tenebroso Esqueleto,
Que vens, diante de mim, alta noite passar…
Ha muito já que trago o coração de preto,
E que em minh'alma escuto os sinos a dobrar.
Quem és tu, quem és tu? Donde vens, de improviso?
Se és a Morte, bem vês, como há de ela assustar
Quem dos lábios deixou resvalar o sorriso,
E nos olhos sentiu todo o pranto secar?!
Responde: quem és tu? Liberta-me! A Existência
É o cárcere onde geme a nossa alma escrava,
E sobre mim perpassa um vento de demência,
Como o sopro de morte e ruina e pesadelos,
Que em Elsenor, sobre a esplanada, desgrenhava
Pela fronte d’Hamlet os revoltos cabelos…
A ti, caveira imunda, eu, Hamlet, pergunto:
Onde a graça do olhar, a luz que te incendiava?
Por que fendas saiu do crânio desconjunto
O espírito, a razão, a consciência, a lava?
Sustenho-te na mão com repugnância e nojo,
A ti, que eras um mundo! e o teu riso sem lábios,
Como um rictos de fera a espreitar do seu fojo,
É mais revelador que a boca de mil sábios!
Borboletas do sonho, inspirações sublimes,
Tudo quanto brotou dessa abobada hiante,
— Quimeras, intenções, larvas negras de crimes — ,
Desfez-se em pó, perdeu-se em fumo pelo espaço,
E dessa imensa forja em ignição constante
Nem te resta sequer o mais ligeiro traço!
Corpo de Lira grega! Escultura impecável
Que o Êxtase gerou num seio de Gioconda!
Linhas puras de estátua! Esplendor inefável!
— Sereis um dia iguais a essa caveira hedionda!
Olhos negros, aos quais o meu olhar se eleva
Como aos raios do luar mandrágora funesta;
Cabelos torrenciais, como um rio de treva,
Esbatendo, apagando o resplendor da testa...
Esvai-se-me a razão nas sombras do problema!
Pois quê! mesmo a Beleza, essa ilusão suprema,
É isto unicamente, a máscara do Nada?
Eu próprio, o que sou eu? Chama quase apagada…
Mas instintivamente o meu lábio estremece
Num murmúrio, nem sei se de blasfêmia ou prece.
O coração que chora resignado,
Tendo perdido as ilusões da vida,
Como um pássaro em busca de guarida,
Acolhe-se ao teu seio imaculado.
És como um rio azul, rio sagrado
Em cuja transparência adormecida,
Se transforma a existência pervertida
E se lavam as culpas do Pecado.
Bendita sejas tu, cuja bondade
Tem sorrisos de paz e de perdão,
Para os tristes que vivem na orfandade,
Para a dor que não tem consolação...
Bendita sejas tu, que és a Piedade,
Conduzindo a Miséria pela mão!...
AQVI JAZ FEIJOO ESCVDEIRO
BON FIDALGO E VERDADEIRO
GRAN CAZADOR E MONTEIRO
Epitáfio duma sepultura no Mosteiro de Celanova.
A casa bem provida,
A tulha cheia, a adega a trasbordar...
Como foi bela a tua vida,
E como o teu destino é de invejar!
Sem amarguras nem cuidados,
Nas tuas terras da Galiza,
Passaste a vida a montear veados,
Alegremente, descuidadamente,
Como um doce regato que desliza,
Cantando entre ravinas e valados,
No seu leito de areia alvinitente.
Bon fidalgo e verdadeiro,
Eras sadio e forte,
Nobre, ingênuo, leal, corajoso a valer;
E, — ventura suprema, ou galardão da Sorte! —
Suponho até que nem sabias ler!
Gran cazador e monteiro,
Não conhecias codigos nem lei;
Mas se o rude invasôr vinha a Patria ameaçar,
Sabias com ardor bater-te pelo Rei
E nobremente o sangue derramar!
Bon fidalgo e verdadeiro,
Finda a campanha, aos teus dominios regressavas,
Com a tua mesnada heroica e bela,
Teu pendão e caldeira;
E aos teus servos attonitos contavas,
Em volta da lareira,
As proezas dos nobres de Castella
Nas guerras da fronteira.
Passaste uma existencia sem cuidados,
Sem a tortura atroz do Pensamento,
A montear javalis, a perseguir veados,
E a derrubar cachopas nos vallados
Entre o centeio verde a baloiçar-se ao vento…
Bon fidalgo e verdadeiro,
Gran cazador e monteiro,
Como foi bela a tua vida
E como o teu destino é de invejar!
Com a paz do Senhor, a casa bem provida,
A tulha cheia, a adega a trasbordar…
Se visses em que linfa miserável
Se transformou teu sangue generoso,
Oh meu avô! o teu braço indomável
Caíra de vergonha, inerte e pesaroso!
Formado entre sorrisos cortesãos
Num tempo de elegância efeminada,
Nem com ambas as mãos
Poderia empunhar a tua espada!
Teu neto, bon fidalgo e verdadeiro,
Nem caçador, nem monteiro!...
Tenho medo do sol, do mar, das tempestades,
E enchem-me de terror, pelas noites caladas,
Os cães a uivar no pátio das herdades,
O grito dos pavões e o rugir das levadas!
Sou daqueles que passam a existência
Sofrendo imaginários pesadelos...
Quantas vezes os dedos da Demência
Tem desgrenhado os meus cabelos!
Mas… sei ler e contar. Fiz estudos às largas;
Li, pensei, meditei... que sei eu do que existe?
Dos livros só tirei desilusões amargas,
E das contas que fiz... desigualdade triste.
A montanha da Vida às cegas escalando,
Se ao vértice cheguei, que posso concluir?
Nasci, não sei por quê, e à toa caminhando,
Ignoro onde me leva o incógnito porvir;
Só sei que hei de morrer, mas nem sequer sei quando...
Não era bem melhor, a tua vida imitando,
Sob o mesmo epitáfio, oh meu avô, dormir?!
Bon fidalgo e verdadeiro,
Gran cazador e monteiro,
Ah, como o teu destino é de invejar!
Como foi bela a tua vida!
Tinhas a tulha cheia, a adega a trasbordar
A casa bem provida...
E tinhas Deus para te consolar!
FIM.
ACABADO DE IMPRIMIR
Aos dez de maio de mil oitocentos e noventa e sete
NOS PRELOS DA
IMPRENSA NACIONAL
PARA
M. GOMES, EDITOR
Rua Garrett (CHIADO), 70 — 72
LISBOA