GARATUJAS
por
Mello Freitas
Bacharel formado em direito, Socio correspondente da Sociedade de
Geographia de Lisboa, Socio fundador da Associação dos Jornalistas e
Escriptores portugueses e mais nada.
Tem versos naturaes, parecem prosa!
Bocage (Sonetos).
AVEIRO
IMPRENSA COMMERCIAL
Rua de José Estevam.
1883
* * * * *
ÍNDICE
Extramuros[1]
João de Deus é incontestavelmente o nosso primeiro lírico.
Homem que acredita em Deus para não ser um João "Ninguém" que, nas vésperas de uma epidemia, caiou de alto a baixo a povoação inteira de Messines, e que no remanso de alma inventou com afeto um método racional de leitura para alegria e alívio das crianças, qual outro mais apaixonado, de maior delicadeza e tão mavioso?
Atrás dele grasnou por largo espaço de tempo um rancho de patos numa vozeria medonha imitando-lhe a beleza das rimas, e a estrutura da frase.
A "Morte de D. João" de Guerra Junqueiro produziu de súbito um cataclismo como se se rasgassem as entranhas da terra e uma cratera se abrisse vomitando a lava em rolos de fumo. Todos se julgaram nesse instante com direito a molharem o pincel nas cores iriadas de tão esplendida palheta, esboçaram por isso com as mesmas tintas os perniciosos frutos do lupanar, cantaram o mercúrio, a copaíba e a sífilis, esfalfaram as plurais dos adjetivos, evocaram a desditosa Ofélia, obrigaram Cristo a marchar em todas as linhas das suas estrofes, e finalmente prenderam a cotovia entre alexandrinos caudalosos com os epítetos mais extravagantes bebidos na leitura da opulenta prosa de Flaubert, Zola e Daudet.
Na esteira fosforescente do sublime trecho de Soares Passos — "O firmamento" — muitos outros gonfaloneiros da poesia científica tem atualmente interrogado o mistério e a dúvida, hasteando um lábaro de perguntas mais causticas do que um emplasto de mostarda, pimenta e cantáridas.
O plagiato é o grande afluente, que assopra as vagas empoladas da literatura.
Vou por certo, estuando e redemoinhando, entre os cachões daqueles que não inventam, mas imitam, e hoje que os maiores poetas do nosso país arfam dentro de encadernações luxuosas, e gemem em papel velino, no belo tipo renascença as suas endechas mais subtis e transcendentes, para me afastar deles, e lhes não manchar a clâmide guerreira, se obedecesse aos impulsos do meu merecimento devia gravar o escalracho dos meus sonetos, carregados de lepra, na casca doente dos plátanos ou imprimi-los, quando muito, em papel pardo. Esta confidência é talvez estéril, mas urgente.
31 de dezembro de 1882.
Mello Freitas
A charanga transuda uma gavotte:
Dois caturras discutem acirrados,
E com bengalas córneas de estoque
Vibram política em medonhos brados;
Um coronel solene, um D. Quixote
Exige a continência duns soldados,
E trauteando a polca da Mascote
Giram damas a passos alquebrados;
As lorettes com artes de raposa
Perseguem os alferes; conjecturo
Que não seja talvez p'ra boa cousa.
Finalmente um burguês, nédio, maduro
Ri do estado inter'ssante de sua esposa
Porque se julga o pai do nascituro.
Não te esqueço, florinha humilde e bela
Que tornas a campina um firmamento,
Inocente, sublime bagatela,
Joia viva, risonho monumento.
Não sei que poesia encontro nela,
Que instila em roda etéreo, vago alento
Tão breve, tão discreta, tão singela,
Qual pirilampo, o nítido portento.
Nessa titilação fosforescente,
Lágrima-esmalte da urze tão subtil,
Abrandas as escarpas da torrente
Mensageira do lascivo mês de abril
Quem te não ama, o coração não sente
Miniatura com pétalas de anil!
Juraste a minha perdição, ingrata,
A quem adoro como adoro a vida
Casta flor, flor de neve estremecida,
Que sorris, quando o teu olhar me mata.
Gravei no peito aquela rubra data
Em que te vi, amor! qual na avenida
Se entalha na fiel casca endur’cida
O nome da huri, que nos maltrata
E, apesar de seres tão bela e mansa,
Folgas que a desventura me persiga
Dilacerado de cruel esp'rança.
Seja assim! É atroz minha vingança,
Pois que amor e ódio tanto me castiga,
Cada vez te amo mais, doce inimiga.
Pobre flor, que se estiola
Na vertente da montanha,
Ninguém aqui te consola
Fria sombra te acompanha.
Comoção que te desola!
Uma peçonhenta aranha
Sobre a nítida corola
A sua rede emaranha!
Quem te lançou no degredo
Deste acerbo pavimento
Para te olvidar tão cedo?
— A meus pais fugi mesquinha
Fugi nas azas do vento
Triste sorte foi a minha!…
Le Roi Faineant cerrará os olhos
E partira entre nuvens para o céu
Surge, depois, na corte um escarcéu
Que brame da vingança nos escolhos
De altas vagas de bronze nos refolhos
Pôs a Intriga um galeão como troféu
A efígie de Pombal tinha em labéu
Jaz na poeira, no olvido, e nos abrolhos.
Então a Inveja alastra a baba escura
Qual serpente, que as roscas enovela
E a empresa do ministro transfigura.
Entretanto o Marquês com amargura
Diz fitando a grosseira caravela:
— Lá te vais Portugal agora à vela. —
Uma fita prendi cor de safira
No leve, tênue pé duma andorinha;
Este ano regressou a pobrezinha
E junto ao ninho seu constante gira.
Quando o sol no horizonte se retira
Esvoaça em redor de mim sozinha;
Também esta alma, sôfrega, mesquinha
Por ti enfeitiçada geme, expira.
Ella na espuma branca, qual arminho
Foge no mar à raiva dos açores
Não perdendo a lembrança do seu ninho
Só tu na primavera dos amores,
Como víbora oculta em rosmaninho,
De mim te olvidas na estação das flores.
(Falecido a 1 de junho de 1882.)
É morto o condottiere, o paladino
Soldado da razão e da justiça
Forasteiro, que o sangue desperdiça
Nas refregas do trágico destino.
Gênio do bem, suave e peregrino
Estatua de luz e amor toda maciça
A cujo aspecto a multidão submissa
Se agrupa em alvoroço repentino,
Guerrilheiro da América indomável
Espada de Dijon, e da Marsalla,
De Nápoles e Roma inconsolável!
O solitário de Caprera é morto,
E, quando o herói no tumulo resvala,
Um calafrio gela o mundo absorto.
Para que te amava eu? Corpo de espuma
Cruel enlevo de lábios cetinosos
Onde bailam desejos luminosos
Estrela, que de luz o céu perfuma.
Para que te amava eu? Que densa bruma
Me ofusca de saudade em tons nervosos
Desfolhando com gritos lacrimosos
As pétalas de amor uma por uma?
Para que te amava eu? oh! praza aos céus
Que em quanto o sol girar pelo universo
Naufragues da paixão nos escarcéus.
E porque sofro na tristeza imerso,
Pálido goivo ao pé dos mausoléus,
Oxalá que o amor te seja adverso!
Com fragor açoitando a vaga escura,
O temporal irado, espumacento
Cavalga um pérfido corcel — o vento —
Que solta gargalhadas de bravura.
Treme a terra, e com hórrida figura,
Como Atlante, sacode o turvo argento;
Nos gonzos oscilando o pavimento,
Dançam torres no assomo da loucura.
Vai o fogo alastrando o áureo manto,
As ruinas trucidam fugitivos,
Que sangrentos se abraçam convulsivos!
— O que fazer? — inquire o rei em pranto,
O ministro lhe diz com nobre espanto:
— Sepultar mortos, e cuidar dos vivos. —
Faíscam os jaezes dos Cavalos,
Vibra o som dos clarins pela atmosfera;
No dorso de elefantes reverbera
A seda e prata em crebros intervalos.
Rodeado de inúmeros vassalos
Intrépido rajá de cor austera
Busca o tigre e leão, onça e pantera
Cruzando as selvas, e galgando os valos.
No cerrado paul ondula a brenha
E um leão de medonha, hirsuta juba
Em furioso valor se desentranha.
A raiva dos lebréus o estimula,
Os dardos o trespassam, mas derruba
O rajá, que nas vascas estrangula.
Nos estuários alpestres do Brasil,
Onde o sol inflamado resplandece,
A cabilda dos negros desfalece
Sob o látego torpe e mercantil.
Nas areias matiza-se febril
O ouro virgem, e no ‘spato permanece
O diamante, que arisco se aborrece
Entre o cascalho estupido, imbecil.
O escravo, quando avista um diamante
De dezessete carats quebra forro
As algemas sorrindo triunfante.
Que me valeu porém o descobrir-te
Diamante sem rival? — Suspiro e morro
A teus pés almejando possuir-te.
Dum frade libidino e bronzeado,
Ortego desenhou o rosto bento,
Grave ausculta no sexto mandamento
Uma jovem do século passado;
Fascinada respira o ar mesclado
Das lascivas perguntas de convento,
Que se aproveitam do veloz momento
Galopando na senda do pecado.
A pobre flor arqueja palpitante
Sob esse olhar, que vai como despi-la
Místico, corrompido e triunfante.
E na cruz sofredor, agonizante,
Mudo Cristo de velha e tosca argila
Pasma da habilidade do farsante!
1814.
Vai rir-se desdenhosa a sombra de Pombal!
Era doida a rainha. O príncipe regente
Ostentando gentil a bochecha eloquente
Tinha bom apetite e ventre clerical,
Mas logo que Junot açaima Portugal
Embarca a toda a pressa e deixa a nossa gente,
Panda vela o conduz ao Brasil florescente,
E rápido imagina um plano teatral.
Veloz como no monte a trepida gazela,
É certo resguardava a insipida pessoa
Adiposa e feliz para cingir a c'roa,
E da nação em prol tão lorpa se revela,
Que nomeia coronel do exército à cautela
O Santo Thaumaturgo António de Lisboa.
Taborda, altivo herói da gargalhada,
Que dominas no palco com bravura,
Quando vier sobre ti a morte escura,
Há-de sentir-se humilde, deslumbrada.
E rindo a vez primeira entusiasmada,
Desfranzindo a medonha catadura,
Ao ver-te e ouvir-te em alegria pura,
Despedaça a fera clava ensanguentada.
Como subjugas cauto a morte ingrata,
Vences também risonho a dúctil alma
Desta multidão gélida, pacata.
E Satã abismado diz em calma:
— Sim?!… Mais almas do que eu ele arrebata?
Já Diabo não sou!… Leva-me a palma. —
António Pedro, astro fulgurante
Que cruzas do tablado a vasta senda
Como guerreiro impávido da lenda,
Que, em busca de proezas, vaga errante.
Ei-lo cingindo as armas de diamante!
Sem que o cansaço, ou vil temor o prenda,
Cada vez mais se engolfa na contenda,
Em prol da esquiva fama altissonante.
Quando o véu do futuro descortino
No alcácer da justiça, que rebrilha
Sabeis o que descubro, e vaticino?
(Isto me pasma! transporta! e maravilha!)
Votado a berço humilde p'lo destino
Filho do povo, — a Glória — te perfilha!
Tépido sonho de luz,
corpo, que destila aroma,
sublime e claro axioma
espargindo amor a flux!
Uma vertigem produz
teu olhar, o seio, a coma,
voluptuoso sintoma
que a fantasia traduz.
Débil flor, que o sol admira
beijando com azedume
as estrelas de safira…
mas ninguém sequer presume
que o meu coração expira
na mortalha do ciúme.
Conversa nos abetos a bafagem,
Nas franças range o vento compassado
E à matilha esquivando-se um veado
Pasma de ver no brejo a sua imagem.
Que rumor tão subtil, que doce agrado,
Poesia terna e pérfida, selvagem,
Em que os ecos se arrastam na folhagem
Entre dóceis de musgo aveludado.
Irrompem as gazelas nos aceiros
E as cobras aparecem na giesta
Quando as gralhas alagam os olmeiros.
Triste como o silencio da floresta,
Oiço dentro de mim uivos de horror.
Combatem dois leões — Ciúme e Amor!
A cerração é densa. O pobre iate
Sem leme desarvora na refrega;
Penetra na escotilha a onda cega,
Alquebra-se o baixel no duro embate.
A trovoada estala, a proa abate;
No escaler a maruja ao céu se apega,
Este a vida infeliz surdo lhe nega,
Que as lágrimas não bastam p'ra resgate!…
Um cão hirsuto, magro, avermelhado,
Com os olhos chorosos, flamejantes,
Que brilham como negros diamantes
Late com desespero, busca a nado,
Mergulha entre os cadáveres boiantes,
O dono encontra, e morre extenuado.
No matiz do tapete auri-felpudo
Haydée reclina as formas langorosas,
Cismam de inveja purpurina as rosas
Admirando-lhe as faces de veludo.
Modelo, que convida a obsceno estudo
Num desmaio entre gazes vaporosas
P'las caçoulas de prata sumptuosas
O âmbar, o beijoim arde a miúdo.
Quando rompe nos céus a madrugada
Sentem-se beijos em lascivo espasmo
Que iluminam a alcova perfumada
E um eunuco — decrépito sarcasmo! —
Que a barbacã vigia na esplanada,
Crê-se na terra um mero pleonasmo.
Que bela estatua! Colo de alabastro,
Um riso de cristal, faces ardentes,
Um ad’reço de pérolas os dentes
E os olhos chispam o fulgor dum astro!
De maus intentos o porvir alastro
Porque passando desdenhosa sentes,
Que intimidas com lívidas correntes
Quem doido beija o sulco do teu rastro.
Paradoxo cruel! treva de arminho,
Ídolo deslumbrante, ruim criança
Que da ternura forjas sevo espinho!
Quando te vejo ocorre-me a lembrança,
Flor de gelo, sinistro rosmaninho,
De enforcar-me a sorrir na tua trança.
(Palavras ditas entre bastidores a uma corista)
Tenho ideias com-fusas e geladas
Sobre a escala do amor onde resplende
Lá nesse vivo sol, que mais se acende
Ralentando as promessas calculadas.
A gama dos suspiros não atende,
É de mau tom possuir lindas manadas
De amantes, que se afinam nas ciladas
Das pausas, que o desejo não entende.
Algumas joias quis com ar guapo
E a compasso dos negros agiotas
Outras requer num prodigo — dá capo.
Morre-se — diz o adagio — de alegria
Portanto se eu pagasse em boas notas
Expirávamos ambos de … harmonia.
Sobre a mesa de mármore luxuosa
Descansa cintilante formosura
Duma criança esbelta, uma pintura,
Que parece dormir silenciosa.
As alvas romas, que a virtude esposa
São como alegre ninho de candura;
Tão fresca, tão sentida e melindrosa,
Causa pena entregá-la à sepultura.
Os estudantes em prodiga algarvia
Retalhando o cadáver delicado
Jogam chufas de sórdida alegria.
Mais tarde o esqueleto dissecado
Assiste às preleções de anatomia
À escuta com ar petrificado.
Meu coração aqui jaz, erma ruina
Onde habita a ironia, o vil fantasma
Golfão anacoreta entre o miasma
Perseguido p'la brisa cristalina.
O lírio, o trevo ri junto à bonina,
Só de raiva a minha alma abdica, pasma
Porque a tristeza famulenta traz-ma
Nas duras garras de ave de rapina.
Meu coração aqui, sob esta alfombra
Dos pálidos desdéns, justos ciúmes
Adora morto e frio a tua sombra.
Até que enfim — oh céus! — os meus queixumes
Te despertam o choro, que me assombra
Envolvendo o cadáver em perfumes!
Acorda a sombra tácita do lago,
Do rouxinol a cândida volata;
A lua em chispas tremulas de prata
Imprime ao lesto amor um tom pressago.
O vento raro e brando com afago
O tredo esquife languido arrebata
E o transporta subtil, como um pirata,
Dando azas ao terror ignoto, vago.
Suspira na floresta a morna aragem,
As 'strelas trocam beijos delirantes,
Que mais excitam castelã e pajem,
Eis brilha uma coiraça junto à margem
E a frecha sibilando alguns instantes
Acaba num só golpe os dois amantes.
Lego uma trança do cabelo dela
Para atar um cavalo à manjedoura
E as cartas da flácida impostora
Para embrulhar açúcar e canela.
Ao crédulo rival, deixo, leitora,
A licença de entrar pela janela;
Outrossim deixo as ligas e a fivela
Que cingiram a perna encantadora:
Os beijos que me deu ficam comigo
E a memória das noites palpitantes
Há-de caber também no meu jazigo.
O seu retrato irá ao lupanar
P'ra assistir à luxuria das bacantes
Já que a dona não vai em seu logar.
«Corre, voa, borboleta, vai graciosa
Libar ondas de néctar delirante
A anémona cingir, o lírio, a rosa
Com a aza fugitiva, coruscante.
«Vai sôfrega de amor e sê ditosa.
Dá-se no céu um caso semelhante
Quando estrelas em noite vaporosa
Se abismam numa queda extravagante.
«Vai mariposa, a chama te fascina
Na aresta do ludibrio, como esfinge
Em deserto de areia cristalina.»
Calam-se as vozes; picam-se as amarras;
A gondola desliza e o mar atinge
Ao som dos bandolins e das guitarras.
O dono miserável da locanda
O brocanteur terrível, sanguinário
Agoniza num catre solitário
Duma alcova minúscula, execranda.
Afinca as mãos convulso num rosário,
Ao céu a vida, súplice, demanda,
Numa imagem de Cristo veneranda
Crava os olhos de abutre, de corsário.
Pois apesar das lágrimas-remorsos
Das vítimas do seu medonho trama
Ruins fantasmas de lívidos escorços.
Nos paroxismos vende, além da cama,
O Cristo a um judeu, e em vis esforços
A alma entrega a Satã, que lha reclama.
O sol adormecera no horizonte;
As nuvens em retalhos sonolentos,
Parecem nos bizarros tons cinzentos
O grupo despenhado de Faetonte.
O riacho desliza ao pé do monte
Em frequentes e turgidos lamentos;
A filomela ensina o canto aos ventos
No chorão, que murmura junto à fonte.
A várzea rescende à laranjeira!
Da catedral nas frestas em ogiva
Um rancho de andorinhas se enfileira;
E nas trevas soluça a sombra esquiva
Do coveiro, que planta uma roseira
Onde jaz a venal filha adoptiva.
Rasga sacrílego a amplidão celeste
Um milhafre com azas pardacentas
E a cotovia harmoniosa investe
Armando as garras torpes e cruentas.
Negro como o letargo do cipreste,
Rosna o vento nas franças macilentas,
O sol dardeja num palor agreste
Que entusiasma as nuvens corpulentas.
A luz crua p'lo espaço se derrama,
Engrossam os trovões em alcateia,
Rutila do corisco a alegre flama.
A presa que o milhafre saboreia
É o emblema do fraco, o velho drama
Que o sistema do mundo patenteia.
Numa soirée heroica, ígnea e linda
Jurara o fulvo Arthur até à morte
Ser da formosa e pudibunda Olinda
Chumbando a ela p'ra sempre a sua sorte.
Por ela ao inferno iria, o mar ainda
Beberia dum trago! Ella é seu norte,
Meiga estrela de lucido transporte,
Palpitante de rubra graça infinda.
De manhã cedo a nossa Julieta
Desce nas crespas vagas a banhar-se
Mascarada num fato de baeta
E quando grita prestes a afogar-se,
Chega Romeu, exibe uma gorjeta,
Mas não vai lá, que teme constipar-se.
6 de agosto de 1870.
Desfraldam-se estandartes e trombetas,
Ouve-se o crepitar da espingarda;
Quando o canhão rouqueja à retaguarda
Cintila a larga messe das baionetas.
As coiraças protegem a vanguarda,
Dos capacetes poisam nas facetas
As crinas marciais, vermelhas, pretas,
Com expressão terrível e galharda.
Bonnemain determina a voz de carga:
Os estribos tilintam, fulge a espada,
Debalde a morte os esquadrões embarga.
Nesta luta ciclópica, gigante,
O exército francês em retirada
Teve assomos de heroísmo deslumbrante.
NOTAS
Le roi fainéant. — Alude-se a D. José. A contar de Clovis II até Pepino o Baixo, os reis da dinastia merovíngia são designados na história de França como reis fainéants, porque estiveram em permanente tutela debaixo da autoridade e poderio dos Maires du Palais.
Lá te vais Portugal agora à vela. — Ao amanhecer dum dos primeiros dias do mês do Abril de 1777, arrancaram do pedestal da estátua equestre o retrato do Marquês de Pombal, e em seu lugar colocaram as armas de Lisboa — o navio com os dois corvos proverbiais na lenda piedosa de S. Vicente. É tradição que o Marquês dissera então com acerado sarcasmo — Agora é que Portugal vai à vela — Vide Latino Coelho — História Política e Militar de Portugal no século XVIII, pag. 168.
Enterrar os mortos e cuidar dos vivos. — Alguns atribuem o dito ao ilustre general Pedro de Almeida, Marquês de Alorna — (Ferdinand Denis — Histoire du Portugal, pag. 353.)
Nostalgia. — Veja-se Oliveira Martins — Brasil e colônias portuguesas, pag. 86 e 87, sobre os diamantes do Jequitinhonha, — e Leon Gozlan, no seu romance Histoire d'un diamant, pag. 53, que diz numa bonita frase encarecendo a dificuldade da pesquisa dos diamantes, que os seus cofres estão selados com espato, jaspe e ferro; e acerca das minas de Visapur, (Bedjapour) vejam-se as páginas 134 e seguintes. O carat era a unidade de peso usada antes do sistema decimal para pesar os diamantes, as pérolas e as pedras preciosas, e era avaliada em quatro grãos, cerca de 22 centigramas.
Boletim militar. — O Marquês de Pombal contratara generais estrangeiros para a honrosa defesa do país, fortificara a fronteira, arcara com a cúria romana, tecera uma bem urdida rede diplomática, reconstituíra o reino, e tinha deixado os cofres do estado repletos. Sob o governo da rainha mentecapta o dinheiro gastou-se e o civismo como que desaparecera no alçapão duma mágica. Foi então que Santo António, que no tempo de D. Pedro II sentara praça e subira a major (Oliveira Martins — História de Portugal, tom. 2.º, pag. 179) ascendeu ao posto de tenente coronel. Há poucos anos correu na imprensa o celebre diploma, que concedeu tão exótica patente ao taumaturgo.
[1]. Esse poema, embora esteja no índice e seu título apareça no final do volume, não está transcrito na edição preparada pelo Projeto Gutenberg.
[2]. De fato, essa expressão “roi fainéant” encontra-se no poema “O Marquês de Pombal.
[3]. Essa nota parece referir-se, de fato, ao poema justamente intitulado “Boletim militar”.