Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Lira Paulistana, de Mário de Andrade

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       Edição de referência:

Poesias Completas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987

ÍNDICE

Lira paulistana

A meditação sobre o Tietê

                                                                 

Acalanto para Luís Carlos, filho de Guilherme de Figueiredo com Alba

 

Lira paulistana 

Minha viola bonita,

Bonita viola minha,

Cresci, cresceste comigo

Nas Arábias.

Minha viola namorada,

Namorada viola minha,

Cantei, cantaste comigo

Em Granada.

Minha viola ferida,

Ferida viola minha,

O amor fugiu para leste

Na borrasca.

Minha viola quebrada,

Raiva, anseios, lutas, vida,

Miséria, tudo passou-se

Em São Paulo.

São Paulo pela noite.

Meu espírito alerta

Baila em festa e metrópole.

São Paulo na manhã.

Meu coração aberto

Dilui-se em corpos flácidos.

São Paulo pela noite.

O coração alçado

Se expande em luz sinfônica.

São Paulo na manhã.

O espírito cansado

Se arrasta em marchas fúnebres.

São Paulo noite e dia...

A forma do futuro

Define as alvoradas:

Sou bom. E tudo é glória.

O crime do presente

Enoitece o arvoredo:

Sou bom. E tudo é cólera.

Garoa do meu São Paulo,

— Timbre triste de martírios —

Um negro vem vindo, é branco!

Só bem perto fica negro,

Passa e toma a ficar branco.

Meu São Paulo da garoa,

— Londres das neblinas finas —

Um pobre vem vindo, é rico!

Só bem perto fica pobre,

Passa e toma a ficar rico.

Garoa do meu São Paulo,

— Costureira de malditos —

Vem um rico, vem um branco,

São sempre brancos e ricos...

Garoa, sai dos meus olhos.

Vaga um céu indeciso entre nuvens cansadas,

Onde está o insofrido? O mal das almas

Quase parece um bem na linha das calçadas,

A palavra se inutiliza em brisas calmas

De andantes, onde estou! No entanto é dia claro...

Toda forma de ação se esvai numa atonia,

Há desamparo e aceitação do desamparo.

— Essa história de amar quando começa o dia...

Ruas do meu São Paulo,

Onde está o amor vivo,

Onde está?

Caminhos da cidade,

Corro em busca do amigo,

Onde está?

Ruas do meu São Paulo,

Amor maior que o cibo,

Onde está?

Caminhos da cidade,

Resposta ao meu pedido,

Onde está?

Ruas do meu São Paulo,

A culpa do insofrido,

Onde está?

Há de estar no passado,

Nos séculos malditos,

Aí está.

Abre-te boca e proclama

Em plena praça da Sé,

O horror que o Nazismo infame

É.

Abre-te boca e certeira,

Sem piedade por ninguém,

Conta os crimes que o estrangeiro

Tem.

Mas exalta as nossas rosas,

Esta primavera louca,

Os tico-ticos mimosos,

Cala-te boca.

Esse homem que vai sozinho

Por estas praças, por estas ruas,

Tem consigo um segredo enorme,

É um homem.

Essa mulher igual às outras

Por estas ruas, por estas praças,

Traz uma surpresa cruel,

É uma mulher.

A mulher encontra o homem,

Fazem ar de riso, e trocam de mão,

A surpresa e o segredo aumentam

Violentos.

Mas a sombra do insofrido

Guarda o mistério na escuridão.

A morte ronda com sua foice.

Em verdade, é noite.

O disco terminara e a companhia estava volnerada.

Foi quando Camargo Guarnieri arrancou:

— Mas nunca numa sala de concerto se pode obter sonoridade assim!

Um disse:

— Essa música é uma mentira.

Meus olhos se enchem de lágrimas.

Tudo se turva em recusas escuras,

Muxibas congeladas, casas

Em série, músicas racionadas,

O deus novo científico e marcial

Gerando latagões. Em latas.

Partir eu parto...

Mas essa música é mentira.

Mas partir eu parto.

Mas eu não sei onde vou.

O bonde abre a viagem,

No banco ninguém,

Estou só, ‘stou sem.

Depois sobe um homem,

No banco sentou,

Companheiro vou.

O bonde está cheio,

De novo porém

Não sou mais ninguém.

Eu nem sei si vale a pena

Cantar São Paulo na lida,

Só gente muito iludida

Limpa o gosto e assopra a avena,

Esta angústia não serena,

Muita fome pouco pão,

Eu só vejo na função

Miséria, dolo, ferida,

Isso é vida?

São glórias desta cidade

Ver a arte contando história,

A religião sem memória

De quem foi Cristo em verdade,

Os chefes nossa amizade,

Os estudantes sem textos,

Jornalismo no cabresto,

Tolos cantando vitória,

Isso é glória?

Divórcio pra todo o lado,

As guampas fazem furor,

Grã-finos do despudor,

No gasogênio empestado,

Das moças do operariado

São os gozosos mistérios,

Isso de ter filho, néris,

E se ama seja o que for,

Isso é amor?

Mas o pior desta nação

É ter fábrica de gás

Que donos-da-vida faz

Ianques e ingleses de ação,

Tudo vem de convulsão

Enquanto se insulta o Eixo,

Lights, Tramas, Corporation,

E a gente de trás pra trás,

Isso é paz?

Pois nada vale a verdade,

Ela mesma está vendida,

A honra é uma suicida,

Nuvem a felicidade,

E entre rosas a cidade,

Muito concha e relambória,

Sem paz, sem amor, sem glória,

Se diz terra progredida,

Eu pergunto:

Isso é vida?

O céu claro tão largo, cheio de calma na tarde,

É ver uma criança adormecida

Baixando as pálpebras sem pensamento

Sobre um mundo que ainda não viveu.

Luzes suaves e certas, luzes até nas sombras,

Doçura em tudo. Os homens estão mais longe,

São apenas recordações mansas pousando

Num sentimento sem temor.

Os ruídos se amaciam quase envelhecidos,

Doçura em tudo. O chão é vagarento,

O ar se esquece. A tensão do insofrido se abranda

Como a firmeza das continuações.

Eu te guardo, homem do meu caminho...

Oh espelhos, Pireneus, caiçaras insistentes,

Por que não sereis sempre assim!

Abril...

Tua imagem se apaga em certos bairros,

Mas tua dor rasga nos ares,

Não me deixa dormir.

Oh, Gilda, Oneida, Tarsila, me fechem a boca,

Tapem meus olhos e meus ouvidos,

Para que a glória do insofrido

Volte a cantar Minas Gerais!

A tua dor se dispersa nos ares,

Mas tua imagem suando ao dia inútil

Me impede até de chorar.

Eu vou-me embora, vou-me embora,

Fazer week-end em Santo Amaro,

Repartir em vãs alegrias

Meu desejo vão de esquecer!

Só isso levas, coração.

Numa cabeleira pesada

Que ondula defronte de mim

No bonde,

Há reflexos de sol vermelho.

Um calor nasce no meu corpo

Que todo se desfolha em dedos

Amigos

Que eu perco pelas multidões.

Os reflexos do sol vermelho

Incendeiam as multidões

Felizes

Que construirão a outra São Paulo

Que reconduzirá meus dedos

Para a conclusão do meu corpo

No leito

Duma cabeleira pesada.

Na rua Barão de Itapetininga

O meu coração não sabe de si,

Não se vê moça que não seja linda,

Minha namorada não passeia aqui.

Na rua Barão de Itapetininga

Minha aspiração não agüenta mais,

A tarde caindo, a vida foi longa,

Mas a esperança já está no cais.

Na rua Barão de Itapetininga

Minha devoção quebra duma vez,

Porque a mulher que eu amo está longe,

É... a princesa do império chinês.

Na rua Barão de Itapetininga

Noite de São João qualquer mês terá,

Em mil labaredas de fogo e sangue

Bandeira ardente tremulará.

Na rua Barão de Itapetininga

Minha namorada vem passear.

Beijos mais beijos,

Milhões de beijos preferidos,

Venho de amores com a minha amada,

Insaciáveis.

Rosas mais rosas,

Milhões de rosas paulistanas,

Venho de sustos com a minha amiga,

Implacáveis.

Luzes mais luzes,

Luzes perdidas na garoa,

Trago tristezas no peito vivo,

Implacáveis.

Ideais, ideais,

Ideais raivosos do insofrido,

Trago verdades novas na boca,

Insaciáveis.

Jornais, jornais,

Notícias que enchem e esvaziam,

— Me dá uma bomba sem retardamento,

Implacável!

Horas mais horas,

Rio do meu mistério esquivo,

— Me dá violetas pelos meus dedos

Insaciáveis...

Silêncio em tudo. Que a música

Rola em disco sem cessar.

Uns pensam, outros suspiram,

Um escuta.

Lourdes reina a paz em Varsóvia.

A advertência dos vidrilhos

Ladrilha tudo. Nos cantos

Murcham as flores de retórica.

Rui bom, cuidado! Motorista

Dos highlands do pensamento:

Nessas landas os nativos

Não consertam as estradas.

Minas Gerais, fruta paulista,

Sambre et Meuse bem marxante,

Periga às vezes, por confiança

Nas gageures.

Esse clima de São Paulo,

Muito vento e bem calor,

Abrir e fechar de portas

Nas auroras do cristal.

Paulo Emílio assim que o ruído

Ruiu, o trem descarrilou

No screen-play ruim... Mas os ratos

Os ratos roem por aí.

Um largo gesto desmaia

Na ribalta. Não faz mal

Que em São Paulo deciolizem

Lagartixas ao sol.

Essa impiedade da paineira

Consigo mesma... Qualquer vento,

Vento qualquer... Os canários

Cantam que mais cantam.

Lourival sentencioso,

Parceiro de dor e vale,

Nunca houve fúrias de Averno

Em diabo grande.

O arreliquim de Tintagiles, Gilda,

Me esconde tudo, neblina.

A hera deu flo... A saudade

Lilá ri das inquietações.

Silêncio em tudo... Que a música

Na cuíca mansa e amiga,

Faz que diz mas não diz...

Adormeceram.

Bailam em saltos fluidos

Na graça flébil da tarde

— Adeus, meninas e violas! —

Mas o goleiro alvo explode

Num fulgor que salva o gol.

Insultos, glórias, estertores,

Menino que me recusas

Tua verdade em cruzeiros...

A massa bruta se esgueira

Buscando os refúgios.

Onde andam os perdões?

A dor fugiu para as ilhas,

Enquanto a noite nega

Enfermos e agitados

Corpos, corpos, corpos.

A catedral de São Paulo

Por Deus! que nunca se acaba

— Como minha alma.

É uma catedral horrível

Feita de pedras bonitas

— Como minha alma.

A catedral de São Paulo

Nasceu da necessidade

— Como minha alma.

Sacro e profano edifício,

Tem pedras novas e antigas

— Como minha alma.

Um dia há de se acabar,

Mas depois se destruirá

— Como o meu corpo.

E a alma, memória triste,

Por sobre os homens arisca,

Sem porto.

... os que esperam, os que perdem

o motivo, os que emudecem,

os que ignoram, os que ocultam

a dor, os que desfalecem,

os que continuam, os

que duvidam... Coração,

Afirma, afirma e te abrasa

Pelas milícias do não!

Agora eu quero cantar

Uma história muito triste

Que nunca ninguém cantou,

A triste história de Pedro,

Que acabou qual principiou.

Não houve acalanto. Apenas

Um guincho fraco no quarto

Alugado. O pai falou,

Enquanto a mãe se limpava:

— É Pedro. E Pedro ficou.

Ela tinha o que fazer,

Ele inda mais, e outro nome

Ali ninguém procurou,

Não pensaram em Alcibíades,

Floriscópio, Ciro, Adrasto,

Que-dê tempo pra inventar!

— É Pedro. E Pedro ficou.

Pedrinho engatinhou logo

Mas muito tarde falou;

Ninguém falava com ele,

Quando chorava era surra

E aprendeu a emudecer.

Falou tarde, brincou pouco,

Em breve a mãe ajudou.

Nesse trabalho insuspeito

Passou o dia, e nem bem

A noite escura chegou,

Como única resposta

Um sono bruto o prostrou.

Por trás do quarto alugado

Tinha uma serra muito alta

Que Pedro nunca notou,

Mas num dia desses, não

Se sabe porque, Pedrinho

Para a serra se voltou:

— Havia de ter, decerto,

Uma vida bem mais linda

Por trás da serra, pensou.

Sineta que fere ouvido,

Vida nova anunciou;

Que medo ficar sozinho,

Sem pai, mesmo longínquo, sem

Mãe, mesmo ralhando, tanta

Piazada, ele sem ninguém...

Pedro foi para um cantinho,

Escondeu o olho e chorou.

Mas depois foi divertido,

Aliás prazer misturado,

Feito de comparação.

O menino roupa-nova

Pegava tudo o que a mestra

Dizia, ele não pegou!

Porquê!... Mas depois de muito

Custo, a coisa melhorou.

Ele gostava era da

História Natural, os

Bichos, as plantas, os pássaros,

Tudo entrava fácil na

Cabecinha mal penteada,

Tudo Pedro decorou.

Havia de saber tudo!

Se dedicar! descobrir!

Mas já estava bem grandinho

E o pai da escola o tirou.

Ah que dia desgraçado!

E quando a noite chegou,

Como única resposta

Um sono bruto o prostrou.

Por trás da escola de Pedro

Tinha uma serra bem alta

Que o menino nunca olhou;

Logo no dia seguinte

Quando a oficina parou,

Machucado, sujo, exausto,

Pedrinho a escola rondou.

E eis que de repente, não

Se sabe porque, Pedrinho

Para a serra se voltou:

— Havia de ter por certo

Outra vida bem mais linda

Por trás da serra! pensou.

Vida que foi de trabalho,

Vida que o dia espalhou,

Adeus, bela natureza,

Adeus, bichos, adeus, flores,

Tudo o rapaz, obrigado

Pela oficina, largou.

Perdeu alguns dentes e antes,

Pouco antes de fazer quinze

Anos, na boca da máquina

Um dedo Pedro deixou.

Mas depois de mês e pico

Ao trabalho ele voltou,

E quando em frente da máquina,

Pensam que teve ódio? Não!

Pedro sentiu alegria!

A máquina era ele! a máquina

Era o que a vida lhe dava!

E Pedro tudo perdoou.

Foi pensando, foi pensando,

E pensou que mais pensou,

Teve uma idéia, veio outra,

Andou falando sozinho,

Não dormiu, fez experiência,

E um ano depois, num grito,

Louca alegria de amor,

A máquina aperfeiçoou.

O patrão veio amigável

E Pedro galardoou,

Pôs ele noutro trabalho,

Subiu um pouco o ordenado:

— Aperfeiçoe esta máquina,

Caro Pedro! e se afastou.

Era um cacareco de

Máquina! e lá, bem na frente,

Bela, puxa vida! bela,

A primeira namorada

De Pedro, nas mãos dum outro,

Bela, mais bela que nunca,

Se mexendo trabalhou

O dia inteiro. Nem bem

A noite negra chegou,

O rapaz desiludido

Um sono bruto prostrou.

Por trás da fábrica havia

Uma serra bem mais baixa

Que Pedro nunca enxergou,

Porém no dia seguinte

Chegando pra trabalhar,

Não se sabe porque, Pedro

Para a serra se voltou:

— Havia de ter, decerto,

Uma vida bem mais linda

Por trás da serra, pensou.

Oh, segunda namorada,

Flor de abril! cabelo crespo,

Mão de princesa, corpinho

De vaca nova... Era vaca.

Aquele riso que faz

Que ri, nunca me enganou...

Caiu nos braços de quem?

Caiu nos braços de todos,

Caiu na vida e acabou.

Com a terceira namorada,

Na primeira roupa preta,

Pedro de preto casou.

E logo vieram os filhos,

Vieram doenças... Veio a vida

Que tudo, tudo aplainou.

Nada de horrível, não pensem,

Nenhuma desgraça ilustre

Nem dores maravilhosas,

Dessas que orgulham a gente,

Fazendo cegos vaidosos,

Tísicos excepcionais,

Ou formando Aleijadinhos,

Beethovens e heróis assim:

Pedro apenas trabalhou.

Ganhou mais, foi subindinho,

Um pão de terra comprou.

Um pão apenas, três quartos

E cozinha, num subúrbio

Que tudo dificultou.

Menos tempo, mais despesa,

Terra fraca, alguma pêra,

Emprego lá na cidade,

Escola pra filho, ofício

Pra filho, um num choque de

Trem, inválido ficou.

— Sono! único bem da vida!...

Foi essa frase sem força,

Sem História Natural,

Sem máquina, sem patente

De invenção, que por derradeiro 

Pedro na vida inventou.

E quando remoendo a frase,

A noite preta chegou,

Pedro, Pedrinho, José,

Francisco, e nunca Alcibíades,

Um sono bruto anulou.

Por trás da morada nova

Não tinha serra nenhuma,

Nem morro tinha, era um plano

Devastado e sem valor,

Mas um dia desses, sempre

Igual ao que ontem passou,

Pedro, João, Manduca, não

Se sabe porque, Antônio

Para o plano se voltou:

— Talvez houvesse, quem sabe,

Uma vida bem mais calma

Além do plano, pensou.

Havia, Pedro, era a morte,

Era a noite mais escura,

Era o grande sono imenso;

Havia, desgraçado, havia

Sim, burro, idiota, besta,

Havia sim, animal,

Bicho, escravo sem história,

Só da História Natural!...

Por trás do túmulo dele

Tinha outro túmulo... Igual.

Na rua Aurora eu nasci

Na aurora da minha vida

E numa aurora cresci.

No largo do Paissandu

Sonhei, foi luta renhida,

Fiquei pobre e me vi nu.

Nesta rua Lopes Chaves

Envelheço, e envergonhado

Nem sei quem foi Lopes Chaves.

Mamãe! me dá essa lua,

Ser esquecido e ignorado

Como esses nomes da rua.

Vieste dum futuro selvagem,

Todo fera e diamante bruto,

Trazido pelo vento sul,

Vento sul.

Me perseguiste em toda a parte,

Me brutalizou teu minuto

Em Mogi, São Bernardo e Embu,

Vento sul.

Mas a devastação fraterna

Incendeia o coração puro

Em labaredas de ouro e azul,

Vento sul.

E na promessa do teu nome,

Partindo os espelhos do escuro,

Me converteste em vento sul,

Vento sul.

Moça linda bem tratada,

Três séculos de família,

Burra como uma porta:

Um amor.

Grã-fino do despudor,

Esporte, ignorância e sexo,

Burro como uma porta:

Um coió.

Mulher gordaça, filó

De ouro por todos os poros

Burra como uma porta:

Paciência...

Plutocrata sem consciência,

Nada porta, terremoto

Que a porta do pobre arromba:

Uma bomba.

Quando eu morrer quero ficar,

Não contem aos meus inimigos,

Sepultado em minha cidade,

Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,

No Paissandu deixem meu sexo,

Na Lopes Chaves a cabeça

Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem

O meu coração paulistano:

Um coração vivo e um defunto

Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido

Direito, o esquerdo nos Telégrafos,

Quero saber da vida alheia,

Sereia.

O nariz guardem nos rosais,

A língua no alto do Ipiranga

Para cantar a liberdade.

Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá

Assistirão ao que há de vir,

O joelho na Universidade,

Saudade...

As mãos atirem por aí,

Que desvivam como viveram,

As tripas atirem pro Diabo,

Que o espírito será de Deus.

Adeus.

Num filme de B. de Mille

Eu vi pela quinta vez

A triste vida de Cristo,

Rei dos Reis.

Num mictório de São Paulo

Pouco depois li uma vez,

Sobre o desenho dum pênis,

Rei dos reis.

Num automóvel de luxo,

Sessenta vezes por mês,

Bem barbeado, bom charuto,

Rei dos reis...

Oh, vós todos, homens, homens,

Homens, o escravo sereis,

Si dentro em breve não fordes

Rei dos reis!

Entre o vidrilho das estréias dúbias,

Luisito, voas na guerra italiana...

És minuto e depois minuto, e inteiro

O corpo novo se retesa

Na contensão dos esforços finais.

Cada momento de tua vida é um fim final.

Dentro da luz do sol das mil cores,

Luisito, voas no teu avião de combate,

E és único. Tão só! Estás tão destinadamente

abandonado

Num céu de tocaia, tecido a fogo e destruição.

Cada gesto, cada vontade tua é destruição...

Pousado na terra sem sono,

Dormes envolto num cenário insatisfeito,

E tudo o que é não é: teu lar, tuas namoradas,

Teus estudos e a promessa não cumprida.

Luisito! tens um sabor de promessa falhada!

Em pleno olho sem pálpebras dás morte,

Armado de morte, cercado de morte, amante da morte,

Voas e há somente morte em ti.

Como te fizeram antigo, Luisito, que pena!

Quando voltares, si voltares, jamais te perguntarei nada,

Jamais direi, jamais direi, ficarei mudo, mudo,

Jamais siquer me perguntarei o que sinto...

Mas como te fizeram antigo, meu Luisito!

Rajadas de sinos, rajadas de bandeiras, músicas e danças:

Tudo será esquecido na alegria,

Tudo será futuro em busca do homem novo.

Mas eu sei que em tua face não culpada

Estará inscrita a lágrima que eu choro.

Ah, que ninguém nos deixe aos dois sozinhos

Neste nosso lar familial!

Quem são os dois inimigos que se cumprimentam

formalizados?

Por que escurece a sala o friúme dum rancor?

Como te fizeram antigo, meu Luisito, que pena!

Como te medalharam de passados horríveis!

Não poderei perdoar quando estiver comigo!

Não deverás perdoar pra que sejas perfeito!

A porta vai bater fechando sem adeus.

E alguém, não serei eu, não serás tu, alguém,

Alguém que se quebrou em dois irremediavelmente,

Soluçará: — Que pena...

Nunca estará sozinho.

A estação cinqüentenária

Abre a paisagem ferroviária,

Graciano vem comigo.

Nunca estará sozinho.

E tanta luz formosa,

Tanto verde, tanto cor-de-rosa,

Anita vem comigo.

Nunca estará sozinho,

Artigas ali na Escola,

Sargentos, Yan? Me pede esmola

O rancor do inimigo.

Todo o Nordeste canta,

Zé Bento vem comigo,

Confissões na garganta,

Nunca estará sozinho.

A ponte das Bandeiras

Indaga das remotas

Zonas, imaturas zonas,

Meu sinal do Amazonas...

Nunca estará sozinho!

Nem há noite que o salve

Da angústia que o dissolve

Em amigos e inimigos.

  

 

A meditação sobre o Tietê

Água do meu Tietê,

Onde me queres levar?

— Rio que entras pela terra

E que me afastas do mar...

É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável

Da Ponte das Bandeiras o rio

Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.

É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,

Soturnas sombras, enchem de noite tão vasta

O peito do rio, que é como si a noite fosse água,

Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões

As altas torres do meu coração exausto. De repente

O ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,

É um susto. E num momento o rio

Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas,

Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam

Agora, arranha-céus valentes donde saltam

Os bichos blau e os punidores gatos verdes,

Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,

Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma

Humana corrupta da vida que muge e se aplaude.

E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra.

Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo,

Está negro. As águas oliosas e pesadas se aplacam

Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho de morte.

É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado

É um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana.

Meu rio, meu Tietê, onde me levas?

Sarcástico rio que contradizes o curso das águas

E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,

Onde me queres levar?...

Por que me proíbes assim praias e mar, por que

Me impedes a fama das tempestades do Atlântico

E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar?

Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra,

Me induzindo com a tua insistência turrona paulista

Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!...

Já nada me amarga mais a recusa da vitória

Do indivíduo, e de me sentir feliz em mim.

Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante,

E fui por tuas águas levado,

A me reconciliar com a dor humana pertinaz,

E a me purificar no barro dos sofrimentos dos homens.

Eu que decido. E eu mesmo me reconstituí árduo na dor

Por minhas mãos, por minhas desvividas mãos, por

Estas minhas próprias mãos que me traem,

Me desgastaram e me dispersaram por todos os descaminhos,

Fazendo de mim uma trama onde a aranha insaciada

Se perdeu em cisco e pólen, cadáveres e verdades e ilusões.

Mas porém, rio, meu rio, de cujas águas eu nasci,

Eu nem tenho direito mais de ser melancólico e frágil,

Nem de me estrelar nas volúpias inúteis da lágrima!

Eu me reverto às tuas águas espessas de infâmias,

Oliosas, eu, voluntariamente, sofregamente, sujado

De infâmias, egoísmos e traições. E as minhas vozes,

Perdidas do seu tenor, rosnam pesadas e oliosas,

Varando terra a dentro no espanto dos mil futuros,

À espera angustiada do ponto. Não do meu ponto final

Eu desisti! Mas do ponto entre as águas e a noite,

Daquele ponto leal à terrestre pergunta do homem,

De que o homem há de nascer.

Eu vejo, não é por mim, o meu verso tomando

As cordas oscilantes da serpente, rio.

Toda a graça, todo o prazer da vida se acabou.

Nas tuas águas eu contemplo o Boi Paciência

Se afogando, que o peito das águas tudo soverteu.

Contágios, tradições, brancuras e notícias,

Mudo, esquivo, dentro da noite, o peito das águas, fechado, mudo,

Mudo e vivo, no despeito estrídulo que me fustiga e devora.

Destino, predestinações... meu destino. Estas águas

Do meu Tietê são abjetas e barrentas,

Dão febre, dão a morte decerto, e dão garças e antíteses.

Nem as ondas das suas praias cantam, e no fundo

Das manhãs elas dão gargalhadas frenéticas,

Silvos de tocaias e lamurientos jacarés.

Isto não são as águas que se beba, conhecido, isto são

Águas do vício da terra. Os jabirus e os socós

Gargalham depois morrem. E as antas e os bandeirantes e os ingás,

Depois morrem. Sobra não. Nem siquer o Boi Paciência

Se muda não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!... e os corpos

Podres envenenam estas águas completas no bem e no mal.

Isto não são águas que se beba, conhecido! Estas águas

São malditas e dão morte, eu descobri! e é por isso

Que elas se afastam dos oceanos e induzem à terra dos homens,

Paspalhonas. Isto não são águas que se beba, eu descobri!

E o meu peito das águas se esborrifa, ventarrão vem, se encapela

Engruvinhado de dor que não se suporta mais.

Me sinto o pai Tietê! ôh força dos meus sovacos!

Cio de amor que me impede, que destrói e fecunda!

Nordeste de impaciente amor sem metáforas,

Que se horroriza e enraivece de sentir-se

Demagogicamente tão sozinho! Ôh força!

Incêndio de amor estrondante, enchente magnânima que me inunda,

Me alarma me destroça, inerme por sentir-me

Demagogicamente tão só!

A culpa é tua, Pai Tietê? A culpa é tua

Si as tuas águas estão podres de fel

E majestade falsa? A culpa é tua

Onde estão os amigos? onde estão os inimigos?

Onde estão os pardais? e os teus estudiosos e sábios, e

Os iletrados?

Onde o teu povo? e as mulheres! dona Hircenuhdis Quiroga!

E os Prados e os crespos e os pratos e os barbas e os gatos e os línguas

Do Instituto Histórico e Geográfico, e os museus e a Cúria, e os senhores chantres reverendíssimos,

Celso niil estate varíolas gide memoriam,

Calípedes flogísticos e a Confraria Brasiliense e Clima

E os jornalistas e os trustkistas e a Light e as

Novas ruas abertas e a falta de habitações e

Os mercados?... E a tiradeira divina de Cristo!...

Tu és Demagogia. A própria vida abstrata tem vergonha

De ti em tua ambição fumarenta.

És demagogia em teu coração insubmisso.

És demagogia em teu desequilíbrio anticéptico

E antiuniversitário.

És demagogia. Pura demagogia.

Demagogia pura. Mesmo alimpada de metáforas.

Mesmo irrespirável de furor na fala reles:

Demagogia.

 Tu és enquanto tudo é eternidade e malvasia:

Demagogia.

Tu és em meio à (crase) gente pia:

Demagogia.

És tu jocoso enquanto o ato gratuito se esvazia:

Demagogia.

És demagogia, ninguém chegue perto!

Nem Alberto, nem Adalberto nem Dagoberto

Esperto Ciumento Peripatético e Ceci

E Tancredo e Afrodísio e também Armida

E o próprio Pedro e também Alcibíades,

Ninguém te chegue perto, porque tenhamos o pudor,

O pudor do pudor, sejamos verticais e sutis, bem

Sutis!... E as tuas mãos se emaranham lerdas,

E o Pai Tietê se vai num suspiro educado e sereno,

Porque és demagogia e tudo é demagogia.

Olha os peixes demagogo incivil! Repete os carcomidos peixes!

São eles que empurram as águas e as fazem servir de alimento

Às areias gordas da margem. Olha o peixe dourado sonoro,

Esse um é presidente, mantém faixa de crachá no peito,

Acirculado de tubarões que escondendo na fuça rotunda

O perrepismo dos dentes, se revezam na rota solene,

Languidamente presidenciais. Ei-vem o tubarão-martelo

E o lambari-spitfire. Ei-vem o boto-ministro.

Ei-vem o peixe-boi com as mil mamicas imprudentes,

Perturbado pelos golfinhos saltitantes e as tabaranas

Em zás-trás dos guapos Pedecês e Guaporés.

Eis o peixe-baleia entre os peixes muçuns lineares,

E os bagres do lodo oliva e bilhões de peixins japoneses;

Mas és asnático o peixe-baleia e vai logo encalhar na margem,

Pois quis engolir a própria margem, confundido pela facheada,

Peixes aos mil e mil, como se diz, brincabrincando

De dirigir a corrente, com ares de salva-vidas.

E lá por debaixo e por de-banda os interrogativos peixes

Internacionais, uns rubicundos sustentados de mosca,

E os espadartes a trote chique, esses são espadartes! e as duas

Semanas Santas se insultam e odeiam, na lufa-lufa de ganhar

No bicho o corpo do Crucificado. Mas as águas,

As águas choram baixas num murmúrio lívido, e se difundem

Tecidas de peixe e abandono, na mais incompetente solidão.

Vamos, Demagogia! eia! sus! aceita o ventre e investe!

Berra de amor humano impenitente,

Cega, sem lágrima, ignara, colérica investe!

Um dia hás de ter razão contra a ciência e a realidade,

E contra os fariseus e as lontras luzidias.

E contra os guarás e os elogiados. E contra todos os peixes.

E também os mariscos, as ostras e os trairões fartos de equilíbrio e

Pundhonor.

Pum d’honor.

Qué-de as Juvenilidades Auriverdes!

Eu tenho medo... Meu coração está pequeno, é tanta

Essa demagogia, é tamanha,

Que eu tenho medo de abraçar os inimigos,

Em busca apenas dum sabor,

Em busca dum olhar,

Um sabor, um olhar, uma certeza... 

É noite... Rio! meu rio! meu Tietê!

É noite muito!... As formas... Eu busco em vão as formas

Que me ancorem num porto seguro na terra dos homens.

É noite e tudo é noite. O rio tristemente

Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.

Água noturna, noite líquida... Augúrios mornos afogam

As altas torres do meu exausto coração.

Me sinto esvair no apagado murmulho das águas.

Meu pensamento quer pensar, flor, meu peito

Quereria sofrer, talvez (sem metáfora) uma dor irritada...

Mas tudo se desfaz num choro de agonia

Plácida. Não tem formas nessa noite, e o rio

Recolhe mais esta luz, vibra, reflete, se aclara, refulge,

E me larga desarmado nos transes da enorme cidade.

Si todos esses dinossauros imponentes de luxo e diamante,

Vorazes de genealogia e de arcanos,

Quisessem reconquistar o passado...

Eu me vejo sozinho, arrastando sem músculo

A cauda do pavão e mil olhos de séculos,

Sobretudo os vinte séculos de anticristianismo

Da por todos chamada Civilização Cristã...

Olhos que me intrigam, olhos que me denunciam,

Da cauda do pavão, tão pesada e ilusória.

Não posso continuar mais, não tenho, porque os homens

Não querem me ajudar no meu caminho.

Então a cauda se abriria orgulhosa e reflorescente

De luzes inimagináveis e certezas...

Eu não seria tão somente o peso deste meu desconsolo,

A lepra do meu castigo queimando nesta epiderme

Que encurta, me encerra e me inutiliza na noite,

Me revertendo minúsculo à advertência do meu rio.

Escuto o rio. Assunto estes balouços em que o rio

Murmura num banzeiro. E contemplo

Como apenas se movimenta escravizada a torrente,

E rola a multidão. Cada onda que abrolha

E se mistura no rolar fatigado é uma dor. E o surto

Mirim dum crime impune. 

Vem de trás o estirão. É tão soluçante e tão longo,

E lá na curva do rio vêm outros estirões e mais outros,

E lá na frente são outros, todos soluçantes e presos

Por curvas que serão sempre apenas as curvas do rio.

Há de todos os assombros, de todas as purezas e martírios

Nesse rolo torvo das águas. Meu Deus! meu

Rio! como é possível a torpeza da enchente do homens!

Quem pode compreender o escravo macho

E multimilenar que escorre e sofre, e mandado escorre

Entre injustiça e impiedade, estreitado

Nas margens e nas areias das praias sequiosas?

Elas bebem e bebem. Não se fartam, deixando com desespero

Que o resto do galé aquoso ultrapasse esse dia,

Pra ser represado e bebido pelas outras areias

Das praias adiante, que também dominam, aprisionam e mandam

A trágica sina do rolo das águas, e dirigem

O leito impassível da injustiça e da impiedade.

Ondas, a multidão, o rebanho, o rio, meu rio, um rio

Que sobe! Fervilha e sobe! E se adentra fatalizado, e em vez

De ir se alastrar arejado nas liberdades oceânicas,

Em vez se adentra pela terra escura e ávida dos homens,

Dando sangue e vida a beber. E a massa líquida

Da multidão onde tudo se esmigalha e se iguala,

Rola pesada e oliosa, e rola num rumor surdo,

E rola mansa, amansada imensa eterna, mas

No eterno imenso rígido canal da estulta dor.

Porque os homens não me escutam! Por que os governadores

Não me escutam? Por que não me escutam

Os plutocratas e todos os que são chefes e são fezes?

Todos os donos da vida?

Eu lhes daria o impossível e lhes daria o segredo,

Eu lhes dava tudo aquilo que fica pra cá do grito

Metálico dos números, e tudo

O que está além da insinuação cruenta da posse.

E si acaso eles protestassem, que não! que não desejam

A borboleta translúcida da humana vida, porque preferem

O retrato a ólio das inaugurações espontâneas,

Com béstias de operário e do oficial, imediatamente inferior,

E palminhas, e mais os sorrisos das máscaras e a profunda comoção,

Pois não! Melhor que isso eu lhes dava uma felicidade deslumbrante

De que eu consegui me despojar porque tudo sacrifiquei.

Sejamos generosíssimos. E enquanto os chefes e as fezes

De mamadeira ficassem na creche de laca e lacinhos,

Ingênuos brincando de felicidade deslumbrante:

Nós nos iríamos de camisa aberta ao peito,

Descendo verdadeiros ao léu da corrente do rio,

Entrando na terra dos homens ao coro das quatro estações.

Pois que mais uma vez eu me aniquilo sem reserva,

E me estilhaço nas fagulhas eternamente esquecidas,

E me salvo no eternamente esquecido fogo de amor...

Eu estalo de amor e sou só amor arrebatado

Ao fogo irrefletido do amor.

... eu já amei sozinho comigo; eu já cultivei também

O amor do amor, Maria!

E a carne plena da amante, e o susto vário

Da amiga, e a confidência do amigo... Eu já amei

Contigo, Irmão Pequeno, no exílio da preguiça elevada, escolhido

Pelas águas do túrbido rio do Amazonas, meu outro sinal.

E também, ôh também! na mais impávida glória

Descobridora da minha inconstância e aventura,

Desque me fiz poeta e fui trezentos, eu amei

Todos os homens, odiei a guerra, salvei a paz!

E eu não sabia! Eu bailo de ignorâncias inventivas,

E a minha sabedoria vem das fontes que eu não sei!

Quem move meu braço? Quem beija por minha boca?

Quem sofre e se gasta pelo meu renascido coração?

Quem? sinão o incêndio nascituro do amor?...

Eu me sinto grimpado no arco da Ponte das Bandeiras,

Bardo mestiço, e o meu verso vence a corda

Da caninana sagrada, e afina com os ventos dos ares, e enrouquece

Úmido nas espumas da água do meu rio,

E se espatifa nas dedilhações brutas do incorpóreo Amor.

Por que os donos da vida não me escutam?

Eu só sei que eu não sei por mim! sabem por mim as fontes

Da água, e eu bailo de ignorâncias inventivas.

Meu baile é solto como a dor que range, meu

Baile é tão vário que possui mil sambas insonhados!

Eu converteria o humano crime num, baile mais denso

Que estas ondas negras de água pesada e oliosa,

Porque os meus gestos e os meus ritmos nascem

Do incêndio puro do amor... Repetição. Primeira voz sabida, o Verbo.

Primeiro troco. Primeiro dinheiro vendido. Repetição logo ignorada.

Como é possível que o amor se mostre impotente assim

Ante o ouro pelo qual o sacrificam os homens,

Trocando a primavera que brinca na face das terras,

Pelo outro tesouro que dorme no fundo baboso do rio!

É noite! é noite!... E tudo é noite! E os meus olhos são noite!

Eu não enxergo siquer as barcaças na noite.

Só a enorme cidade. E a cidade me chama e pulveriza,

E me disfarça numa queixa flébil e comedida,

Onde irei encontrar a malícia do Boi Paciência

Redivivo. Flor. Meu suspiro ferido se agarra,

Não quer sair, enche o peito de ardência ardilosa,

Abre o olhar, e o meu olhar procura, flor, um tilintar

Nos ares, nas luzes longe, no peito das águas,

No reflexo baixo das nuvens.

São formas... Formas que fogem, formas

Indivisas, se atropelando, um tilintar de formas fugidias

Que mal se abrem, flor, se fecham, flor, flor, informes, inacessíveis,

Na noite. E tudo é noite. Rio, o que eu posso fazer!...

Rio, meu rio... mas porém há-de haver com certeza

Outra vida melhor do outro lado de lá

Da serra! E hei-de guardar silêncio!

O que eu posso fazer!... hei-de guardar silêncio

Deste amor mais perfeito do que os homens?...

Estou pequeno, inútil, bicho da terra, derrotado.

No entanto eu sou maior... Eu sinto uma grandeza infatigável!

Eu sou maior que os vermes e todos os animais.

E todos os vegetais. E os vulcões vivos e os oceanos,

Maior... Maior que a multidão do rio acorrentado,

Maior que a estrela, maior que os adjetivos,

Sou homem! vencedor das mortes, bem-nascido além dos dias,

Transfigurado além das profecias!

Eu recuso a paciência, o boi morreu, eu recuso a esperança.

Eu me acho tão cansado em meu furor.

As águas apenas murmuram hostis, água vil mas turrona paulista

Que sobe e se espraia, levando as auroras represadas

Para o peito dos sofrimentos dos homens.

... e tudo é noite. Sob o arco admirável

Da Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca,

Uma lágrima apenas, uma lágrima,

Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.

(Acalanto para Luís Carlos, filho de Guilherme de Figueiredo com Alba.)

Nasceu Luís Carlos no Rio E todo me transportei,

Luís Carlos do meu carinho.

Vive um Luís Carlos sozinho E todo me apaixonei,

Luís Carlos do meu respeito.

Luís Carlos, dorme em meu peito,

Goza a infância sossegado,

Sonha, brinca, dorme, dorme!

Luís Carlos, fecundo, enorme,

Sofre o sonho amordaçado,

Não cede, não vive, flâmula!

Criança, nasces num cúmulo

De nuvem rubra e pletora

Que dará volta na vida.

Homem, morres nessa lida

Pra que a criança de agora

Viva outra vida mais branca.

Dorme, Luís Carlos, a franca

Perfeição desse teu sono,

Enquanto o mundo é mudado

Pelo homem sacrificado

Por amor do teu futuro.

Que vivas íntegro, como

Hoje puro, amanhã puro.