Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Inverno em flor, de Coelho Neto


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

Primeira Parte

I

II

III

IV

V

Segunda parte

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

Terceira parte

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

PRIMEIRA PARTE

I

Jorge Soares costumava dizer: “Sou dos poucos homens que podem narrar a história da própria vida desde as primeiras manifestações intrauterinas”.

A mãe e as tias, ao longo da sua infância amimada, contaram-lhe, por miúdo, todos os casos anteriores ao seu nascimento e os trabalhos que dera em criança, os sustos que pregara, os colos que molhara, as suas graças, as suas manhas: como uma tarde o foram achar engatinhando nu, Jorge rechonchudo e forte, quase a rolar a escada da varanda; a primeira palavra que tartareara, tudo, enfim, até que o professor Sarmanho, sisudo e austero, arrancou-o ao afago amolentador das saias encerrando-se com ele numa sala vasta, onde passava sonolentas horas soletrando a carta e somando parcelas. Distraia-se com as borboletas que entravam batendo as grandes azas sucumbindo, quase sempre, espatifadas a uma pancada da regoa que o inflexível Sarmanho brandia como uma batuta, berrando, com furor, as vogais.

Desde que D. Antonia, num triste domingo enevoado, abandonou a mesa, às pressas, engulhando, a queixar-se do estomago, desconfiada das negras “que deitavam feitiço na comida”, as irmãs de Jerônimo Soares, o Mata boi, como era conhecido no Pirahy por ter derrubado e morto, com um murro, um boi de canga, cochicharam sobre a gravidez da cunhada. Jerônimo, porém, descorçoado, saiu-lhes em resposta com palavras de mofa:

— Tinha graça, aos quarenta anos. De certo que havia de enjoar: não comia senão guloseimas indigestas: coalhadas, paçocas e frutas verdes. Até não sabia como ainda tinha estômago. As irmãs, porém, insistiram: “que aquilo era gravidez”. Jerônimo, incrédulo, sorria, abanando com a cabeça:

— Se queriam que a tal gravidez desaparecesse, arranjassem um chá de folhas de laranjeira ou um pouco de macela. Uma manhã, porém, ele mesmo, ao sair do quarto, esperou que as irmãs acordassem e disse-lhes confidencialmente:

— Olhem cá... Pelo sim, pelo não, o melhor é vocês irem arranjando alguma coisa para o que possa vir.

D. Antonia que, a princípio, vivia cercada de crioulinhos, criando-os carinhosamente, maternalmente, foi, aos poucos, esquecendo-os. Os pequenos rolavam pela sala choramingando e, muitas vezes, foi necessário que os carregassem para a cozinha porque a senhora sentia-se nervosa com os gritos das crianças. Passava os dias afundada na rede, lendo brochuras, enfezada, de mau humor.

Se uma negra cantava, irrompia irada contra a falta de respeito; tirava presságios fúnebres se uma ovelha tresmalhada vinha balar perto da casa; isolava-se. Às vezes, procurando-a por toda a casa, iam as cunhadas encontra-la de joelhos na capela, agarrada ao altar, soluçando. Traziam-na carinhosamente, interrogavam-na sobre as suas lágrimas:

— Pois não fora ela mesma quem pedira um filho à Nossa Senhora?

— Sim, pedira... Mas desconfiava daquilo. Beija-flores pardos revoavam pela sala; tinha constantemente sonhos maus, com água, com carne. E falava, aterrada, dos partos na sua idade: eram quase sempre fatais. Sentia alguma coisa que lhe saltava no ventre: umas vezes eram como pontapés sobre os rins, ou então um grande bolo que lhe subia ao peito como se a fosse sufocar. À noite, acordava em sobressalto, sem ar, o coração aos baques. Aquilo não era natural. E meneava tristemente com a cabeça em desalentos pressagos. Mas as cunhadas animavam-na:

— Era assim mesmo, quando a criança movia-se. E, para convencerem-na, mandavam vir as negras de casa, fechavam-se com elas, interrogando-as sobre os fenômenos da gestação:

— Se não sentiam movimentos, dores, ânsias... E as negras, passivamente, submissamente, iam afirmando: “É assim mesmo, nhanhã. É assim mesmo.” Outras adiantavam: “Que às vezes até ouviam o choro da criança.” E D. Antônia, apreensiva, passava os dias em beato recolhimento com os santos, fazia promessas, pedia às cunhadas, às mucamas que rezassem com ela à Senhora do Parto para que lhe desse uma boa hora.

A vida rural enfarava-a. Diziam-lhe que saísse em passeios lentos pelas terras, recusava-se e, poucas vezes, aparecia à varanda para olhar o terreiro e o engenho. Os negros evitavam-na receosos e, em uma noite santa, como os escravos cantassem no quadrado diante da capela, D. Antônia teve uma violenta crise de choro, clamando:

— Que fizessem calar aqueles diabos. Parecia que estavam encomendando um morto. E o feitor saiu a dispersar a gente, mas a senhora, aterrada com o silêncio que se fez, tremia à ideia de um castigo da Mãe de Deus que os escravos glorificavam. Arrependida, chamou de novo o feitor, ordenando-lhe que abrisse a capela para que os negros cantassem.

— Não sabia que era o Terço que eles estavam entoando, mentiu. E, recomeçando, pouco depois, o canto religioso, ajoelhou-se no seu quarto e, por entre lagrimas, pôs-se a repetir as palavras do coro que iam pela grande noite como uma santificação.

O ventre crescia-lhe. Uma manhã atirou-se aos braços do marido soluçando: “Ia morrer. Não tinha forças para resistir àquele parto” e, em segredo, anunciou-lhe: “que eram gêmeos”. Jerônimo estremeceu: desconfiava também. Já havia falado às irmãs; todavia, para anima-la, fanfarronou:

— Melhor, filha. Um casal, hein! Que dizes? Um rapaz e uma rapariga... isso é que é. E tens medo...? Medo de que? Pois a Balbina, que um espicho, não teve dois rapagões e não está pra ai sacudida? Até parece que ficou mais forte. E quantas! E quantas! Isso é uma coisa à toa. Não me tens a teu lado? Já não tens confiança no teu velho? Deus é grande, filha. Hás de ser feliz e, se forem dois, melhor. E a rir, passando-lhe o braço forte pelas costas: Eu fico com o rapaz e faço-te presente da pequena. Ria e D. Antônia forçava um sorriso triste.

Foi em uma noite fria de Junho que ela, em lágrimas, pedindo que acendessem velas do Santo Sepulcro e queimassem palmas bentas, recolheu-se ao quarto alanceada pelas primeiras dores. Escancararam-se as portas da capela e as mucamas, ajoelhadas, pediram por ela à Senhora do Parto. Uma negra benguela, mãe Victorina, fechou-se no quarto com a parturiente e um pajem partiu a cavalo para chamar o médico.

Jerônimo, as mãos nos bolsos, nervoso, passeava pela varanda. Se alguém aparecia na sala interrogava ansioso: — “Então? Ainda gemendo muito. Não estava melhor.” Vieram chama-lo: D. Antonia exigia a sua presença, queria-o junto a si... Negou-se: “Não tinha coragem. Deixassem-no.” E sentou-se no banco, olhando vagamente a paisagem que o luar empalidecia.

Ideias sinistras passavam-lhe pelo espírito: a Mulher morta: o filho, um monstrengo. Erguia- se, caminhava pela varanda, parando, de vez em vez, para lançar os olhos ao longe, a ver se o pajem aparecia. Julgava, a todo momento, ouvir bater à porteira. Eram eles, de certo. Esperava...

E ninguém para anima-lo! Que teria acontecido?! O grande silêncio da casa impressionava-o. Atreveu passos pelo corredor, em pontas de pés, mas, não longe do quarto, ouviu um grito estridente e longo. Recuou com os olhos transbordantes d'agua, os lábios em trêmitos, balbuciando baixinho: — Pobre criatura! Pobre criatura! E esfregava as mãos úmidas. Vinha de volta para a varanda, quando novo grito atravessou-lhe a alma. Desatou a chorar como uma criança e fugiu.

Quando uma das irmãs apareceu na varanda, procurando-o, avançou, os braços estendidos:

— Então, Julia? Então? anda! Então?! A irmã atirou-se lhe aos braços, sorrindo:

— Um menino!... E Jerônimo trêmulo, apertando-a muito:

— E perfeitinho Julia...?

—Ora! Lindo! um meninão! Vai vê-lo. Já podes entrar. E acompanhou-o. Jerônimo precipitou-se para o quarto morno e abafado. Vendo a mulher pálida, estirada nos lençóis brancos, os olhos amortecidos, os braços languidamente abandonados ao longo do corpo, ajoelhou-se, e tomando-lhe uma das mãos, cobriu-a de beijos e de lágrimas:

— Então, filha? Então? Então? É perfeitinho... Um rapagão, hein? E do fundo do quarto, na penumbra, um grito agudo partiu. Jerônimo ergueu os olhos molhados para os olhos meigos da mulher e, levantando-se, beijou-a na fronte fria.

— É ele! Suspirou D. Antônia. E Jerônimo acenou que sim: era ele! esse sonho de vinte anos solitários, a florescência do amor que ali tinham no fim da existência, quando já se lhes esterilizara no coração a suave esperança. E ambos sorriam, ouvindo enternecidamente o choro da criança que a benguela vestia.

Cresceu rechonchudo e forte, de colo em colo. A mãe trazia-o sempre agasalhado em flanelas e, se uma nuvem escurecia o céu, eram mantas, toucas de lã e o encerramento nos quartos mais íntimos onde não chegassem correntes de ar.

A ama, uma negra robusta e nova, era vigiada como uma criminosa para que não saísse e o filhinho tenro, de quem se separara, passava os dias deitado em panos, a um canto da sala de jantar, às moscas, lambido pelos cães que entravam. De vez em vez, quando o “senhor” adormecia, tomava-o carinhosamente ao seio, mas as senhoras intervinham rezingando: “Que o moleque era um bezerro! Era um mamar sem conta!” e apartavam-no do colo maternal, traziam xícaras e, às colherinhas, empanturravam-no de leite morno, para que os peitos criadores não minguassem na boca sedenta do escravo. A mãe sorria resignada. Quando o negrinho chorava, para que ela não se amofinasse, crioulinhas tomavam-no ao colo e subiam com ele para à varanda, ninando-o.

Jerônimo enfurecia-se se, ao voltar da roça, encontrava o filho enrolado em panos, cheio de abafadouros. Vociferava contra os trapos: às vezes tentava arranca-los, as mulheres, porém, investiam defendendo a criancinha da “brutalidade”.

— Aquilo não era sistema de criar filhos, bradava o homem: saiam umas coisas entanguidas, sem préstimo. A criança é como a planta — quer ar e sol para ganhar sangue. Vissem o filho da Mariana, um brutinho! criado ali assim ao Deus dará. Vissem aquilo!

E obstinava-se em propor passeios com o filho pelos cafezais, à hora fresca da manhã que robustece e dá vida.

— Deixassem-no a seu cuidado e haviam de ver o bicho que dali saía. D. Antonia resmungava, as tias acudiam enternecidas, com beicinhos, apertando muito o pequeno que desatava a chorar assustado. Jerônimo augurava um maricas.

— Homem, o melhor é guardarem-no em uma redoma. Isso tem lá jeito! E insistia em mostrar os crioulinhos que patinhavam n’água, chafurdando na lama, nus, como os bacorinhos que fossavam na fermentação fecunda dos fumeiros, gabando-lhes a saúde, a alegria, a rijeza dos corpos retintos.

— As crianças queriam justamente aquilo. Deixassem-se de luxos. D. Antonia intervinha:

— Se havia de mandar para onde os moleques seu filho, um inocentinho, que mal engatinhava. Aquilo até não parecia de um pai. Assim como assim o melhor era abandona-lo de uma vez na estrada. E Jerônimo, lentamente, explicava:

— Ela bem sabia o que ele queria dizer. De certo que o pequeno não estava em idade de ir para o campo nem de meter-se nos córregos.

Falava contra os abafamentos, contra a maldita mania de fecharem tudo, isso sim. Não era nenhum doido para aconselhar que deixassem o petiz com os crioulos, ao sol. Era um modo de falar; ela bem sabia.

Se o pequeno choramingava, D. Antonia precipitava-se aterrada, tomava-lhe o pulso, examinava-lhe o ventre, pedia médicos, folheava o Chernoviz, banhada em lágrimas, trêmula. As tias lembravam tinturas homeopáticas e a capela iluminava-se como para uma festa.

Às vezes, durante o dia, uma das senhoras entrava no quarto, em pontas de pés, ia ao berço, debruçava-se: a criança dormia sossegada e tranquila e a ama, estirada a um canto, repousava. O pequenino rosto não tinha uma contração, os bracinhos abertos jaziam imóveis como os de um morto. Era o bastante para que a desconfiança nascesse: “Meu Deus! Mariana... o menino teve alguma coisa?” A ama, despertada em sobressalto, atônita, como se tivesse sido surpreendida em crime, respondia:

— “Que nhonhô adormecera ao colo, depois de ter mamado.” E, aproximando-se do berço, confirmava: “Que estava dormindo”.

— Mas tão quieto!!

E a senhora não se convencia; deixava o quarto em pontas de pés e saia a comunicar a sua suspeita. Acudiam as três, aflitas, os olhos em lágrimas; invadiam o quarto, cercavam o berço, observavam. O pequeno continuava dormindo. D. Antonia rolava os olhos cheios de angustia, queria que fossem chamar o marido; ajoelhava-se inclinando o rosto sobre a pequenina boca e imóvel, atenta, procurava sentir o hálito da criança.

As outras interrogavam com acenos e ela, desalentada, levantava o olhar súplice, dolorido, meneando com a cabeça grisalha. E não se continha: “Meu filho! Meu filho! Jorge, meu filho!” E as outras: “Jorge! Jorge!” e sacudiam o berço. A criança tinha um estremecimento, abria os olhos espantados e chorava. Que alivio para as pobres senhoras. Com que ternura frenética tomavam-na nos braços, como a beijavam! De uma feita, Jerônimo encontrou-as nessa lida. Teve um acesso de raiva tratando-as de “desmioladas!” E como uma das irmãs aludisse à suspeita, explodiu:

— Qual morto, qual nada! Queriam vocês que ele dormisse dizendo mamãe, papai, ou virando cambalhotas? Só de doidas! A ama era logo chamada e aparecia com o túmido peito nu, tomava a criança e o homem, a olhar o pequeno que sugava cavando as bochechas, ia dizendo enlevado:

— Ai têm vocês o defunto. Deem-lhe disso, deem-lhe disso! As mulheres contemplavam sem uma palavra, com um piedoso amor nos olhos enternecidos.

E nesse meio de carinhos e de cuidados cresceu, como um arbusto em sombra, o pequeno Jorge, até que um dia a ama, surpreendida, ouviu o seu primeiro balbucio. Lágrimas jorraram e, como Jerônimo andasse pelos eitos acompanhando a colheita, foi despachado um moleque para chama-lo. O homem fustigou o cavalo e apareceu esbaforido, rubro, alagado em suor e logo na varanda D. Antonia, radiante, deu-lhe a grande notícia, e em torno da criança, que a ama sacudia nos braços fortes, reuniram-se todos instando com o pequeno para que repetisse a doce palavra, e ele, sorrindo, agitando os braços, gaguejou hiatos, súbito emborcando no seio da ama como em mergulho.

II

Anos passaram e Jorge, confiado à bílis de Sarmanho, emigrado político que deixara no reino um grande nome e dividas, andava pelos clássicos, pelas doçuras da história, pela aridez da álgebra e da trigonometria, quando uma artéria vital estourou no peito de Jerônimo, prostrando-o morto nos braços da esposa e das irmãs. A mãe vestiu o luto pesado e eterno da viuvez, e, com adeuses tristes, arrastou-se da fazenda para fugir à visão constante dos lugares amados, onde parecia terem ficado a sombra meiga do marido, o eco da sua voz, o cheiro do seu corpo, toda a expansão do ser que a morte arrebatara.

Recolheram-se a uma casa nas Laranjeiras, cercada d’arvores, na sombra da montanha, com um murmúrio d’água a entristecê-la como um pranto eterno.

Sarmanho, com a sua rabona e o seu ódio implacável ao miguelista, acompanhou as senhoras à cidade. E a fazenda, entregue ao administrador, ficou mergulhada no vale florescendo, frutificando em lindas e suaves primaveras, em prósperos outonos, para garantia do futuro lauto e tranquilo do filho amado.

As senhoras, apesar de reconhecerem em Sarmanho um sábio, de vasta leitura e muita moral, começaram a hostiliza-lo com importunações e pirraças por terem descoberto nos seus discursos palavras duras contra a religião.

O menino à mesa, d’olhos na calva erudita do mestre que, tranquilamente, cortava o seu bife, todo atenção para o prato, discutia dogmas, refutava crenças, combatia superstições e, de uma feita, para mostrar independência em matéria de fé, arrancou do pescoço uma penca de veneras de ouro e prata que as tias, sempre cuidadosas, haviam reunido para garanti-lo contra desastres e pestes.

Sarmanho foi despedido a pretexto de “não ser decente para três senhoras viverem com um homem de portas a dentro”.

O emigrado saiu sem revolta. Reuniu os seus livros, encheu pachorrentamente o cachimbo e desceu as escadas com altivez. O pequeno soluçou, repeliu as tias que o procuravam consolar e, nesse dia tremendo, como D. Julia indiscretamente desse a perceber as razões da despedida do venerando e intransigente sábio, Jorge revoltou-se, não contra as amáveis senhoras, que, com tanto empenho e zelo, cuidavam da salvação da sua alma, revoltou-se contra Deus, contra a Virgem, contra os santos, berrando, com atrevimento, a mão fechada em murro: “Que não acreditava em baboseiras, que não queria saber de religiões nem de nada. Que ia assentar praça para ser independente.” E pediu uma farda.

D. Antonia procurava enternecê-lo com a sua meiguice, mas o pequeno, irascível, frenético, bramia: “Que havia de ir para a marinha, custasse o que custasse! Quando mal pensassem estava a bordo.” Falava dos seus quinze anos como de uma longa vida experimentada, aludia aos estudos que fizera.

— Era um homem e não estava disposto a viver eternamente na estufa do afago, sem expansões, sem liberdade. Se o queriam beato e carola, para o círio e o ripanço, tivessem-no deixado ignorante, não lhe houvessem dado os compêndios onde as verdades brilhavam como as estrelas no céu.

D. Antonia, posto que as palavras do menino magoassem fundamente a sua alma cristã, desvanecia-se de ouvi-lo, ficava ternamente humilhada diante da sabedoria precoce do filho que discutia as forças universais, comentava as religiões dos povos como se por elas tivesse passado comungando a hóstia de todos os altares, até encontrar a que fosse mais agradável ao seu paladar difícil de homem do século.

Desvaneceram-se, por fim, as saudades do mestre e Jorge tomou um feriado de meses, enquanto não chegava a época da matrícula no colégio de Pedro II. Permitiram-lhe pequenos passeios pelo bairro, à tarde; davam-lhe dinheiro e conselhos: “Que evitasse bandos, que não fumasse” e sempre: “Que voltasse cedo”.

Saia. Amigos vinham trazê-lo à casa, demoravam-se ao portão, conversando. As senhoras, por entre as cortinas, espiavam e, quando ele inventava, pediam informações: “Quem eram? de que família...?” E ele enchia-os de qualidades: “Eram gênios! riquíssimos e de grande consideração. Um tinha o pai no Senado”.

Uma noite, porém, já a rua caíra em silêncio, a ceia esfriava sobre a mesa e o menino ainda não havia entrado. D. Antonia, aflita, pensava em desastres: “Ele era tão tolo ainda, tão criança! Podia ter sido pisado... E se tivesse sido preso?! Alguma briga?! Era bem capaz, com aquele gênio.”

As cunhadas acomodavam-na:

— Que descansasse: estava, sem dúvida, com amigos; talvez em casa de algum conversando ou brincando. Era rapaz, estava na idade. E despacharam criados. A casa conservou-se aberta e iluminada.

Era mais de meia noite quando ele entrou lento, devagarinho. A mãe, os olhos vermelhos de chorar, estava derreada numa cadeira, entre as cunhadas.

Quando ele apareceu tranquilo, D. Antonia fitou-o com os olhos úmidos. Ele pousou o chapéu sobre a mesa, descansou a bengala e, dirigindo-se ao grupo taciturno, inclinou-se para beijar a fronte à mãe, mas a pobre senhora, escondendo o rosto nas mãos, desatou em soluços.

Jorge recuou olhando como desvairado:

— Mas que é isso, mamãe? Que tem?

— Que tem? Interviu D. Julia, pois isso são horas, Jorge?!

— Estive com amigos, distrai-me...

— E nós aqui aflitas. Os criados saíram à tua procura; estão todos na rua. Bem sabes que tua mãe anda doente, tem chorado toda a noite. E não é bonito, não é decente... um filho famílias entrar para casa de madrugada. Não é bonito, Jorge; tem paciência, meu filho. Não é bonito.

D. Antonia soluçava. As tias levantaram-se como para lhes dar inteira liberdade de expansão; ele, então, adiantou-se enternecido para a mãe e, inclinando-se, tomou-lhe carinhosamente a cabeça branca aconchegando-a ao peito:

— Que é isso, mamãe? E baixinho, beijando-a: — Não chores mais! Não chores mais, sim? E as lágrimas cessaram de correr, foram morrendo os soluços em doces recriminações e em queixas e, quando D. Julia reapareceu, Jorge descrevia à mãe, que o ouvia embevecida, o luxo do palacete do comendador Faria, pai de um dos seus melhores amigos que, nessa noite, o apresentara à família, retendo-o para o chá até aquela hora.

Em março de 65 Jorge fez os seus primeiros exames merecendo louvores dos mestres que o acharam de um raro e lúcido talento e notavelmente abastecido de boa ciência e literatura. Galgou três anos e foi entre os quartanistas que formou no dia solene da abertura das aulas. Não experimentou as sensações do calorato, posto que, mesmo imune às assuadas, graças às substanciosas dissertações do emigrado, sentisse acanhamento e tremuras diante do olhar invejoso e mal dos colegas que o recebiam hostilmente, em silêncio, considerando-o como um invasor.

Salientou-se, foi dos primeiros nas aulas e, ao fim dos trimestres, saía sempre com o seu banco de honra e laureado pelas boas palavras dos professores que o apontavam como um exemplo de aplicação e obediência.

D. Antonia acompanhava os progressos do filho com enternecimento. À noite velava com ele, à luz pensadora da lâmpada, cabeceando sobre romances dignos e, muita vez, interviu comovida ouvindo as pancadas sonoras do relógio soando forte na casa adormecida, para que se recolhesse, receando pela saúde do seu corpo que as vigílias enfraqueciam.

D. Julia e a irmã cuidavam do gabinete do bacharel, como lhe chamavam: espanavam os livros, a secretária, punham em ordem os papeis e, uma manhã, como indiscretamente abrissem um dicionário, descobriram uma larga folha de papel, marcada, com um cupidinho adormecido entre rosas, cheia de estrofes de excelente lirismo, falando de olhos azuis lavados em melancolias e de lábios úmidos que o amor buscava como as abelhas buscam as corolas.

Correram com o papel em triunfo para mostra-lo à D. Antonia e no jardim, à sombra de uma alta figueira brava, a poesia foi lida com devoção e mistério como se fosse um cântico religioso. Lágrimas borbulharam nos olhos das senhoras e a mãe, sempre apreensiva, lastimou que o filho tivesse nascido com a veia poética suspirando: “Que todos os poetas acabavam na desgraça.” Mas logo entraram pelas estrofes procurando descobrir, através das imagens, a dona de tão lindos olhos e de tão apetecida boca.

Anos correram. Brandas moléstias de Jorge haviam cavado rugas no rosto de D. Antonia que falava tristemente do seu próximo fim, lastimando não poder assistir à formatura do filho, do seu amado e único amor no mundo. Andava pela casa num passo sonolento, suspirando saudades do marido, que tanto desejara ver “o seu rapaz” formado, enaltecendo o nome dos avós, pobrezinhos que se haviam sumido em silencio no fundo pedregoso e frio de uma aldeia minhota.

Jorge vivia como um homem, independente, a carteira farta. Ia a teatros e, quando entrava, a mãe fingia-se adormecida para não vexa-lo. Expandia-se e, atrevido diante da fraqueza maternal, trazia para a sala de jantar, nos serões tranquilos, os seus amores em quadras, os hemistíquios ardentes da sua mocidade voluptuosa.

A mãe sofria calada sentindo os primeiros balanços do coração do filho como se já o visse fugindo docemente, docemente levado pelas ondas de cabelos louros para esse mar vasto de ternura e de gozo que ele tanto citava nos seus versos. Mas não lhe dizia palavra, ouvia e, às vezes, depois de o ter aplaudido, ia chorar para um quarto, em revolta contra a beleza das mulheres, que atraiam sedutoramente o seu amor santo, furtando-o ao egoísmo avaro do seu puríssimo e sensível coração de mãe.

O luto entrou em casa pela segunda vez com a morte de D. Gertrudes, a mais velha das tias. Um frio e tristonho agosto levou-a. No caixão, coberta de rosas, com a sua imaculada capela de virgem, parecia sonhar com o céu, as mãos postas, um sorriso triste nos lábios lívidos. Morreu sem queixa, deixou a vida sem pena com o coração vazio, a alma intacta, levando para o Além todo o seu longo e irrealizado sonho de mulher, ingratamente esquecida no ascetismo estéril da virgindade. Candidamente vestida para a grande núpcia levaram-na os amigos da família. A casa ressentiu-se.

As duas senhoras evitavam o quarto da morta com terror e supersticiosas, ligaram-se ainda mais, não se apartando nunca, como para resistirem à Morte pérfida que passara entre elas.

D. Julia, em pesados merinós, errava pelos corredores apavorada, vendo o vulto da irmã sempre pálida, diáfana, os grandes olhos brilhantes, arquejando fatigada pela tosse.

Uma noite, como passasse diante do quarto deserto, rolou por terra, aos gritos, escabujando. Acudiram e ela, esgazeada, a tremer, os braços hirtos declarou: “Que ouvira distintamente a tosse de Gertrudes e o seu doloroso e andado suspirar: ai, Jesus!”.

A casa, imensa e sombria, tinha a aparência de um claustro taciturno onde houvessem ficado duas monjas arrastando estamenhas e melancolias.

Meses depois, em dezembro, numa linda ma- nhã cheirosa e fresca, toda azul, toda em sol, Jorge em companhia do conselheiro Távora, um velho amigo da família, subiu para um coupé. Ia receber o grau de bacharel em letras.

O jubilo foi grande; todavia as senhoras, respeitando a morta, não abriram os salões, íntimos apenas sentaram-se cá mesa e os brindes correram frios, sussurrados, por entre lagrimas.

D. Antonia, com os olhos no filho, lastimava a ausência de Jerônimo. “Como ele seria feliz em poder abraça-lo! Pobre homem! Ele que era doido pelo filho! E mana Gertrudes...!” Às dez da noite já as taças dormiam nos armários e dois bicos de gás apenas iluminavam a sala onde o bacharel, como um ídolo, recebia as homenagens enternecidas das senhoras.

Foi Jorge quem propôs uma estação no campo. Passariam o resto do verão na fazenda folgando na viçosa paisagem, aspirando o pleno ar das matas. Elas ganhariam em saúde, ele ganharia em vigor e em saber; e garantindo que só as sensações da jornada, as noites às estrelas, galgando montanhas, sonos dormidos em casebres de palha, os encontros, a langorosa cantilena dos tropeiros, todos os incidentes imprevistos da viagem bastariam para desvanecer as tristes ideias que tanto nublavam as almas das senhoras, ficou resolvido que no dia seguinte começariam os preparativos da viagem.

Um negro foi despachado à fazenda e dias depois partiam no frescor de uma madrugada serena, com um rancho de escravos: as senhoras em liteiras, Jorge a cavalo e, fechando a marcha, a tropa dos cargueiros com um alegre tinir de campainhas.

Logo que entraram em terras da fazenda D. Antonia sentiu o coração oprimido, cheio de presságios. Era como um renascimento o que experimentava n’alma. Mergulhava na grande saudade e saia gotejante de lágrimas, asfixiada pela melancolia. O marido! Era ele que faltava à doce paisagem, tão triste àquela hora azul da tarde, já sem pássaros, apenas entrecortada pelo dorido piar das juritis tristonhas. E ela olhava, alongava os olhos como em busca de uma visão querida, revendo troncos que deixara, sítios onde costumava repousar quando saía com ele para correr a lavoura.

Jorge, extasiado, gabava a floresta que os anos haviam robustecido; e os cafezais, eito acima, saídos da primavera, nupcialmente cobertos de florinhas brancas. O administrador recebeu-os na porteira e moleques, nascidos na longa ausência dos senhores, já taludos alguns, outros pequenitos, em camisola, estendiam a mão pedindo a benção. Como D. Julia não os reconhecesse, o administrador apressou-se em dizer-lhes os nomes e de quem eram filhos. E as senhoras espantaram-se sabendo que negrinhas que haviam ficado impúberes já tivessem crioulos quase homens.

A casa resistira ao tempo: rija nos seus formidáveis esteios de cabiúna, toda aberta ao ar e à luz, muito branca, destacava-se sobre o fundo escuro da, mata que dominava sobranceira o alto da colina. As grandes salas caídas, os espaçosos quartos, os corredores imensos, estavam impregnados de recordações. Havia ainda um vago aroma do passado — os manes dos que ali haviam expirado pareciam errar na luz e na brisa, festejando as almas que voltavam como para aninhar-se no aconchego do ninho, pressentindo perto o duro inverno da velhice.

Negros e negras acudiram em alvoroço à varanda querendo ver os senhores: os velhos avançavam curvados, trêmulos, rindo; queixavam-se da idade que lhes ia dobrando o corpo e passavam as mãos pela carapinha branca com uma resignação de mártires; os novos, crianças de ontem, apresentavam os filhos e as senhoras, meigas, indagavam não só dos escravos que não viam, queriam saber dos animais, certos bois que haviam deixado, se ainda viviam, se ainda suportavam a canga.

D. Antonia, antes da ceia, quis ir à capela beijar os pés do Senhor. Jorge, debruçado à balaustrada da varanda, sentia-se invadido pela grande calma da paisagem cheia de silêncio e de sombras. Uma sineta tiniu e D. Antonia, ouvindo-a, suspirou:

— Que saudade! Vai para oito anos que a não ouço!

À mesa recordaram as graças de Jerônimo, os seus ditos, e D. Julia saudosa ajuntou:

— Se ele fosse vivo já a casa estava cheia de cães.

As negras serviam risonhas. Crianças espiavam e fugiam. De vez em vez uma avançava, pedia a benção, indo de um a outro, a mão estendida, um dedo na boca.

Recolheram-se cedo e, na manhã seguinte, ao tinir da sineta, D. Antonia saiu à varanda para ver a partida da gente.

E a vida, passadas as primeiras impressões, recaiu na monotonia antiga: dias longos, vazios, passados num círculo de verdura exuberante; noites crivadas de vagalumes, cheias de murmulhos e de mugidos e, longe em longe, o luar magnífico, em pleno céu e na terra, branqueando matas e serras, campos e águas dormentes, o grande luar suavíssimo dos campos, onde não há luz de combustores para desbotar a doce claridade.

Jorge, que levara ideias de leituras meditadas, esqueceu os livros na mala e só cuidava em cavalos, em matilhas, em aventuras de amor... Um negro, conhecedor das trilhas, andava com ele pelos matos ou descia à margem do açude, aos bebedouros, à espera das pacas. E falava-lhe dos “toques” de certos cães, do valor das trelas que possuía; ensinava-lhe os pios de reclamo e contava inauditas façanhas de caça no tempo do milho.

Jorge interrogava-o sobre as tocas; ouvia trinos no mais intrincado arvoredo e parava escutando, a espingarda engatilhada. O negro dissuadia-o: que era um pássaro à toa, sanhaço, não valia a pena.

Luzia tomava-o à noite. Era uma velha negra, de África, magra, esquálida, sem dentes; guardava porcos e, à noitinha, socava o café no grande tronco dos pilões. Entendida em rezas benzia e curava. Os negros temiam-na pelos segredos de mandinga que só ela sabia. Contavam que estragara um parceiro de nome Ludgero, um dos mais fortes na roça. Certo dia esbofeteou-o por uma questão de mulher. A negra caiu com a boca em sangue, mas jurou, e, desde então, não houve para Ludgero bebida que chegasse. Esteve no tronco, foi amarrado à escada, e nem assim, até que uma manhã campeiros encontraram-no de bruços à beira do córrego, a cara na lama, morto. Apartava casais felizes, provocava abortos, e afirmavam que seus olhos eram fatais, tanto que, se fitavam uma ninhada, ia-se toda em dias. Jorge, entretanto, ligou-se à Luzia. À noite, quando a casa caía em silencio, ela ia bater-lhe à janela do quarto e de fora, na escuridão, chamava-o. Jorge galgava a janela ansioso, e, guiado pela feiticeira, atravessava o quadrado para colher primícias de amor ou para trair escravos, cujas mulheres seduzidas deixavam sorrateiramente o grau e, descalças, desciam a entregar-se nos imensos paióis escuros onde morcegos esvoaçavam.

Luzia, acocorada, vigiava. Jorge durante o dia ia encontrá-la entre os porcos distribuindo a lavagem pelos cochos, arrastando na lama, fossada pelos cevados, os molambos sórdidos e falava-lhe de mucamas, indicava-lhe raparigas que entravam pela puberdade, interrogava-a. A negra, sorrindo, resmungava, emprazando para a noite. Ele atirava-lhe moedas que ela escondia na cinta entre panos.

Março, porém, chegava, e Jorge teve de partir deixando a vida sensual da fazenda. D. Antonia tremia ante a ideia de apartar-se do filho, S. Paulo parecia-lhe tão longe! E não foi fácil demove-la do propósito que fizera de acompanha-lo à cidade acadêmica. Pensava nas noites de áspero frio que o filho ia atravessar sem o aconchego do seu colo, isolado, entre estranhos, que passariam indiferentes, ainda que o vissem transido, à dura nevada. D. Julia animou-a:

— Com dinheiro não se morre de frio, mana, e em S. Paulo não há neves que matem. Jorge, não sem saudades, ia aferrolhando as malas, e, ao alvorecer de um sábado, as senhoras desceram com ele até onde os pajens esperavam com os cavalos encilhados. D. Antonia guardou-o muito tempo junto do coração, até que ele, num movimento brusco, desprendeu-se e saltou para o animal, disfarçando lágrimas, contendo soluços, e do alto, já na porteira, sacudiu o lenço despedindo-se das duas senhoras que haviam ficado imóveis, seguindo-o com o olhar até que desaparecesse.

As primeiras cartas do estudante, cheias de enternecimentos, uma delas “escrita com lágrimas, ao som da marcha fúnebre da procissão do Enterro que desfilava pelas ruas”, eram lidas pelas senhoras comovidamente. Choravam lastimando o isolamento do menino, a tristeza da terra, sempre nublada pela garoa, a indiferença dos que nem sequer acudiam com uma palavra de conforto a esse filho meigo que, mesmo de longe, procurava o seio materno para as suas queixas.

Entanto Mathias & Castro escreviam animadoramente “que o doutor vivia satisfeito e feliz, que era benquisto, não só entre os colegas como na fina sociedade paulistana, que para ele abrira a grande exceção de receber um estudante.” E ajuntavam contas que D. Antonia mal percorria d’olhos distraídos.

No fim do ano — já haviam começado os preparativos para a recepção de Jorge, que fizera o seu ato — uma carta arrefeceu o entusiasmo amoroso das senhoras. O menino não pretendia passar as férias na fazenda, bem que as saudades o impelissem para o caminho de Santos por onde diariamente partiam os colegas em caravanas alegres, recolhendo ao lar. Ficava em S. Paulo com um Limoeiro e Souza estudando as matérias do ano.

D. Antonia derramou muitas lágrimas, mas pensando no próximo triunfo e nos estudos que o filho ia fazendo nessa cidade de sabedoria e virtude, resignou-se dilatando a correspondência para que ele não passasse um dia sem cartas, sem benção e sem carinho e tão afetuosamente que, uma vez, escrevendo, esquecida de que o filho vivia longe, rematou a carta com estas palavras íntimas: “Bem, meu filho, é tarde, vai descansar. Até amanhã”.

A vida ia-se tornando à mais e mais difícil, dizia Jorge nas cartas. A necessidade de uma grande paz para o estudo das leis forçara-o a tomar casa e criados, fugindo à balbúrdia dos hotéis e pensões. Vivia na Mooca com o Limoeiro, consultando códigos e velhos infolios de legislações antigas. Mas ao mesmo tempo que o estudioso rapaz enchia laudas com os nomes dos jurisconsultos, cujas palavras interpretava pacientemente, Mathias & Castro escreviam pedindo o auxílio dos conselhos de D. Antonia para a regeneração que intentavam, porque Jorge vivia em bambochata constante, em bandos de estroinas, com mulheres, arrastando uma vida devassa de serenatas, zangurrianas e jogo, em luta com a polícia, nos bairros remotos da cidade. D. Antonia pôs as mãos na cabeça e, hesitante entre as duas cartas, relia as palavras honestas do filho, relia as acusações dos correspondentes, sem compreender, atordoada, em pranto. Escreveu a Mathias & Castro, pedindo “como mãe” que lhe salvassem o filho, arrancando-o à devassidão das orgias e aos ranchos de tavolageiros; e escreveu a Jorge, fez com que D. Julia escrevesse, invocando o passado, lembrando-lhe o nome honrado de Jerônimo e a velhice que a acabrunhava e essas notícias que lhe feriam duramente a alma. Jorge respondeu secamente, apelando para o seu caráter e para o testemunho insuspeito de colegas. E terminou com uma acusação formidável a Mathias & Castro, “homens de fraudes comerciais, avaros até com a fortuna alheia.” E, para remate, queixou-se de ter uma noite caminhado uma légua a pé, à chuva, por não ter o caixa querido satisfazer um pedido insignificante que lhe fizera. Acompanhava a carta uma notícia cortada de um jornal, que dizia:

“O distinto acadêmico Jorge Soares tem no prelo um volume de versos.”

E Jorge perguntava: se aquilo era bambochata? Se um homem de devassidões, desbragado e ébrio, podia merecer de um jornal tão alta distinção? D. Antonia, calada, arrependia- se do que escrevera. “Maguara o filho...”, dizia, mas D. Julia animava-a:

— Que não, dera apenas conselhos, conselhos de mãe e em termos.

D. Antonia não acreditava nas palavras de Matinas & Castro.

O menino podia ter feito uma ou duas, mas sempre, todas as noites, como diziam, isso não. Demais, que tinham eles com o que gastava o menino? Que tinham?! para o deixarem sem vintém, obrigando-o a uma caminhada de légua, à chuva, como um mendigo? Isso não. O que era dela era dele; não fazia questão de dinheiro, com tanto que seu filho não passasse necessidades.

E à noite não conseguiu fechar os olhos pensando nessa caminhada através da tormenta, nesses terríveis e tenebrosos caminhos por onde seguira o filho amado, sozinho, chapinhando na lama, molhado, tiritando, a pensar nela. E no meio da noite, em camisa, descalça, saltou da cama, abriu a secretária e escreveu a Mathias & Castro uma carta de ordem franca.

E explicava: “Que os médicos, que o haviam examinado em pequeno, foram todos da mesma opinião: que nunca o contrariassem, tinha um temperamento delicado.” E a Jorge escreveu pedindo perdão do que lhe havia dito e anunciando a sua resolução relativa à questão de dinheiro.

   Veio o fim do ano e Mathias & Castro anunciaram uma grave enfermidade do “doutor”, ajuntando, porém, para que a senhora não se assustasse, a opinião dos médicos: “Que a verdadeira doença era medo de apresentar-se ao ato, porque não abrira um volume durante o ano”.

Na manhã seguinte à da chegada a S. Paulo— porque o crepúsculo frio e brumoso baixava quando D. Antonia atravessou as ruas da cidade deserta era companhia de Fernando de Castro, um dos seus correspondentes — encaminhou-se comovida para o bairro longínquo em que residiu o filho. O coração apertava-se lhe diante dos compridos muros de taipa e das alas verdes de bambus que faziam uma grande sombra triste sobre a estrada poenta que um rio minguado, correndo entre matos, parecia adormecer com um doce murmúrio.

A espaços uma casa, um rancho palhiço, campos viçosos e capoeiras exuberantes onde pastava livremente o gado. Fernando de Castro, como voltassem uma azinhaga, mostrou ao longe a “republica” de Jorge. Era um casarão, melancólico e sombrio como um mosteiro, fechado e silencioso à luz do sol que subia diluindo a nevoa da manhã.

Dois pinheiros esgalhados flanqueavam a larga entrada fechada por um pesado portão de ferro. Sobre os muros esborcinados inclinavam- se ramos e folhagens tenras. Fernando de Castro bateu as palmas e, enquanto não aparecia gente, D. Antonia passeava os olhos pelo pátio da casa que o mato agreste invadia. Mesmo nos degraus da escada a erva crescia, e todo o terreiro que cercava o prédio estava tomado pela vegetação exubere, revigorando-se ao sol e à nevoa.

Um criado desceu, a cara amarfanhada, os olhos empapuçados de sono, e vendo-a em pesado luto, com a aureola venerável dos cabelos brancos, aproximou-se espantado. À sua pergunta por Jorge Soares, disse: “Que ainda dormia. Entrara tarde. Mas que dissesse quem era, que queria”.

D. Antonia, querendo guardar segredo para causar ao filho agradável surpresa, disse apenas — “que chegara do Rio, trazia recados da família do doutor”.

O criado, sem abrir o portão, subiu a anunciar a visita: mas Fernando de Castro, impaciente, berrou para dentro, chamando alguém. No alto da escada, um estudante, em robe de chambre, apareceu escovando os dentes. O correspondente, mal o descobriu, perguntou amuado, num vozeirão:

— Jorge Soares?

O estudante entrou ajustando o robe de chambre que o vento abria e, pouco depois, o copeiro reaparecia precipitando-se pelas escadas. Abriu o portão dizendo: “Que o doutor não tardava. Podiam subir”.

D. Antonia, porém, negou-se: ficavam ali mesmo à sombra. Fernando de Castro, descobrindo, a um canto, um velho banco, a meio demolido e quase coberto pela parietária, insistiu com a senhora para que descansasse. “Estavam ali mais à vontade; nem era conveniente que ela entrasse em tal casa”, ajuntou, enjoado, lançando às vetustas paredes um olhar de desprezo e ódio. Sentaram-se, e D. Antonia, sem tirar os olhos da escada por onde devia descer o filho, ouvia o correspondente que lhe falava das orgias daquela casa, foco de escândalos, valhacouto d’uma estudantada vadia que, de vez em quando, abalava em serenatas pelas ruas com alaridos e berros, provocando a patrulha, despregando tabuletas de casas comerciais, com excessos criminosos, indignos de rapazes de boa educação, como o último assalto a um chiqueiro da Ponte Grande, de onde haviam tirado um porco, deixando em sangue, moído a pauladas, um pobre homem que saíra com altos clamores chamando a polícia.

Ainda se procedessem por miséria teriam uma desculpa, mas não, só por pândega, por troça, para fazerem uma opa que se tornasse celebre na tradição acadêmica. D. Antonia queria saber se o seu Jorge também fazia dessas coisas, e Fernando de Castro, carregando o cenho, garantiu que era um dos piores. Valente e temerário, apontavam-no como cabeça de motim, provocador dos tumultos que a desoras alvoroçavam estrondosamente a cidade.

E os lentes conheciam-no, sabiam de tudo quanto praticava tanto que, em palestra intima com o conselheiro Silva, dele ouvira palavras amargas contra esse terrível rapaz que nem diante dos reles recuava. E pediu que lhe falasse, que fosse enérgica, procurando principalmente arreda-lo daquela casa que era o refúgio do rebotalho da academia: repetentes incorrigíveis e gente sem profissão, que se ligava aos estudantes parasitariamente, incitando-os a coisas indignas.

D. Antonia meneava com a cabeça tristemente e já tinha os olhos rasos d’agua quando ouviu a voz do filho que aparecera no patamar da escada, em mangas de camisa, ainda abotoando a gola. Levantou-se de golpe. Jorge descia a escada olhando, como a procura-la.

Logo que a viu estacou, levando a mão em pala ante os olhos apertados e, reconhecendo-a, lançou-se pelos degraus com exclamações enternecidas:

— Mamãe! A senhora!

D. Antonia avançou por entre o mato, quase a correr, os braços abertos, já esquecida de tudo quanto lhe havia dito Fernando de Castro com relação à vida irregular do filho amado, do saudoso filho, que ela, enfim, revia depois de tão longa e angustiada ausência:

— Meu filho! E recebendo-o nos braços, apertou-o muito ao peito, molhando-lhe o rosto de lágrimas felizes.

O correspondente, de pé, mal disfarçava a decepção. Contava com uma ação enérgica da senhora, e ali estava como comparsa de uma cena piegas. Deu volta e, afastando-se discretamente do grupo, meteu-se por um caminho estreito, entre a erva, resmungando, indignado, a ouvir os soluços e as palavras ternas da pobre mãe amorosa, que só via o filho, que o sentia, que o beijava alucinada, apaixonadamente.

Jorge, nos braços maternais, prometeu corrigir-se, aceitando a proposta de D. Antonia para que deixasse aquela casa tão mal reputada que, segundo diziam, de quando em quando, alta noite, piquetes de polícia cercavam, varejando os quartos com espadas nuas, em busca de criminosos acoitados pelos moradores.

Dias depois o estudante instalava-se, com luxo e conforto, em uma pequenina casa do Arouche, com um galego de soíças que lhe espanava os livros cantarolando trovas. D. Antonia, depois de minuciosa revista à casa, aos móveis, despediu-se com lágrimas e beijos. E Jorge encerrou-se.

O galego, à noite, sentado à porta, zangarreava à guitarra; de vez em vez, uma rapariga atravessava o corredor, embuçada em mantilha, e de manhã, ao nascer da luz, saía discretamente.

Anos passaram e já havia começado a correr a chave anunciando para Jorge o termo do curso quando uma carta da tia chegou-lhe às mãos. Poucas linhas: a boa senhora pedia-lhe que não demorasse a viagem, seguindo logo que recebesse o grau. Nada mais. Presságios importunaram-no. Foi à casa de Matinas & Castro. Os correspondentes apenas disseram que não tinham letras de D. Antonia, desde agosto desse ano. Mostraram-lhe cartas da tia, cheias de interesse pois ele, franqueando-lhe dinheiro, recomendando-o.

Formou-se e Fernando de Castro, que o acompanhou à Academia, festejou em casa, com um baile, a sua formatura, aludindo, num brinde, aos tempos da estroinice, com uma parábola culturana em que Jorge entrava como o filho pródigo, voltando, não aos braços dos velhos pais, mas à honestidade, ao estudo, reavendo a estima e o conceito de todos. Com augúrios de prosperidade levantou hurras tremendos.

Na véspera da partida, à noite, andava o galego arranjando malas, quando Fernando apareceu para falar ao doutor. Jorge, estirado na rede, entre amigos, recordava episódios estroinas: assaltos, amores, rixas, cavalgadas para a Ponte Grande com mulheres e cabazes empilhados de garrafas, quando o negociante encapotado, um cachenês em volta do pescoço, pediu licença, à porta:

— Que o desculpassem de ir importunar os amigos, mas queria dizer adeus ao doutor e uma palavra em particular... Mas não tinha pressa. Sentou-se e, como entrasse na palestra, lembrou a casa terrível da Mooca, os grandes distúrbios, e, arregalando os olhos, referiu uma aventura de que ia sendo vítima, certa noite, quando se recolhia ao fim do voltarete com o conselheiro Silva. Os tais da casa, embuçados, deram-lhe cerco e um Taborda, flautista e capoeira, que trazia sempre uma faca na cava do colete, forçara-o a dançar e a cantar sob ameaça de ser atirado ao Tamanduatehy.

Os rapazes despediram-se e Jorge arrastou uma cadeira para junto do correspondente.

Fernando de Castro empalideceu, tirou do bolso um grande lenço e, estendendo-o sobre a perna, como um guardanapo, espalmou as mãos,

inclinando-se para o bacharel:

— Doutor, creia que bem me custa dizer-lhe o motivo da minha visita, a esta hora da noite, em véspera de viagem, quando o senhor carece de repouso. Chupou os beiços, afagou a barba, arregalou os olhos e, inopinadamente, todo caído para a frente, d’olhos desmedidamente abertos: — Sua tia escreveu-me... escreveu-me, não agora. Tenho a carta há mais de 15 dias. O doutor há de perdoar o meu silêncio tão longo, mas não quis entristecer a sua festa com uma notícia...

— Mamãe morreu! exclamou Jorge, pondo-se de pé, as mãos estendidas, os olhos rútilos, fitos no rosto do negociante. Ele ergueu-se também e, calmo, serenou-o:

— Não, doutor; não morreu. Mas, o senhor sabe: é uma senhora fraca, doente... tem um grande coração, um coração de santa. Desde que se foi o senhor seu pai, de quem fui grande amigo, nunca mais vi o sorriso nos lábios de D. Antonia — transformou-se... e eram visões, ás vezes ficava horas e horas a chorar falando nele... O senhor sabe. Ultimamente, porém, isolada na fazenda, as saudades apertaram. O senhor longe, a velhice, a tristeza daquele lugar... deu para sair: ir aos eitos, aos engenhos, aos pastos uma atividade pasmosa, pasmosa! como escreveu sua tia. De repente, nova mudança: começou a usar a roupa do finado, que conservou religiosamente. Punha o chapéu, vestia o casaco e ficava diante do espelho a olhar o marido. E como diz sua tia: “A olhar o marido”.

A princípio não passava disso; distraiam-na e ela deixava-se levar, ia à mesa, mas, de uns tempos a esta parte, entrou a rejeitar o alimento e definha, encerrada no quarto, a conversar com o esposo, a rir, a chorar, não atendendo a pessoa alguma, zangando-se quando a procuram, porque, diz ela, nem consentem que fique um instante a sós com o seu Jerônimo. É como diz a carta.

Jorge ouvia em angústia; as lágrimas desciam-lhe pelo rosto pálido em dois fios constantes e Fernando, comovido, a voz surda, continuou:

— Mas não há motivo para desespero, doutor. Não é uma louca, é uma maníaca, cura-se. Tenho visto casos muito mais sérios, e as pessoas andam por aí sâns. Não é para desesperar. Coitada! alma sensível... Isto de ter coração é um horror! Um horror! E sacudiu a mão diante dos olhos úmidos.

O galego arrastava malas pelo corredor, cantarolando. Jorge afastou-se, as mãos para as costas passeando ao longo da sala. Fernando seguia-o.

— Se vim hoje, creia que foi para obedecer à sua tia. Deve imaginar quanto me custou tomar esta resolução, mas assim é melhor, é melhor: o senhor não recebe o choque violento. Assim é melhor... já sabe, é até possível que, com a sua presença, tudo desapareça e a sua boa mãe volte ao estado normal. É quase certo. Não desespere, não desespere.

Jorge arrancava do peito suspiros profundos. Foi à janela, olhou a noite negra e voltou:

— E os médicos? Que dizem eles?

— Não sei, doutor. E Fernando, desabotoando o capote, tirou do bolso uma carta que entregou a Jorge:

— Aqui está.

O moço abriu nervosamente a carta e aproximou-se da luz. Súbito carregaram-se-lhe os olhos, tremeu e, agitando a folha de papel, a chorar, bradou alucinado:

— Mas ela está louca! positivamente louca! Minha mãe! E batendo na carta: Está aqui! Curvando-se, então, leu alto, por entre soluços: “Às vezes é difícil contê-la: debate-se, avança para o espelho, chamando o marido, aos gritos: que a querem matar! que a querem matar!” Passou a mão pela cabeça, cravou os olhos na carta e, baixinho, os lábios trêmulos: “Mamãe! Coitada de mamãe!” e atirou-se na rede soluçando. O correspondente limpava os olhos e, como o galego cantasse, bramiu, investindo para o corredor: — Homem, com todos os diabos! acaba com essa cantiga... Que história! E dirigiu-se para o moço que os soluços faziam estrebuchar na rede.

III

Magra, esguia, os cabelos encanecidos, os olhos dentro de profundas olheiras, ora extasiados, ora rútilos, febris, rolando em desvairamentos, D. Antonia caminhava pelos corredores, entre negras, seguida de D. Julia, como uma sonâmbula, num andar tímido de cega, levantando os pés devagar, pousando-os de leve, como a sondar o terreno. Nos dias de grande sol faziam-na sair à varanda ou levavam-na docemente pelo raminho da porteira, entre barrancas e ela ia, vagarosa e fraca, com o olhar ao longe, no rosto um sorriso místico de mártir.

Passavam-se semanas tranquilas, de mansidão e êxtase, mas, de tempos a tempos, a fúria reaparecia — eram gritos atrozes, escabujamentos, lágrimas. Levavam-na para o quarto de encerro, grande aposento sem moveis, apenas um leito amplo e negro, de altas colunas, onde a louca rolava abraçada com os travesseiros, soluçando, a bradar: — “Que a deixassem com o marido, que a deixassem! que a deixassem!” Quando recrudescia o acesso arrancava as farripas, cravava as unhas no rosto, rasgava as roupas, com ululos roucos. Escravas estiravam-se pelo chão em torno do leito, em vigília.

Quando Jorge apareceu D. Julia pasmou de vê-lo já homem, com grandes bigodes, o retrato do pai, sem a graça infantil, mas com uma soberba virilidade, forte e gracioso como um atleta. Longe de recebê-lo efusivamente, como no antigo tempo, aos beijos, esperou que o sobrinho lhe tomasse a fronte e a beijasse; retribuiu então pudicamente, mal encostando os lábios na testa do moço onde bailavam cachos. D. Antonia, nesse dia, amanhecera calma, gemendo com frio, atabafada, encolhida no leito. Jorge que, em caminho, interrogara o pajem, reservou-se com a tia.

Sentado, passeava os olhos pela sala que o grande sol iluminava, prestando-se ao exame comovido de D. Julia que o admirava, dissimulando sorrisos. Mas um grito vibrou; o moço, com um estremeção, voltou a cabeça e boquiaberto, num hiato de horror, fitou a tia:

— Não é ela, meu filho, descansa. É algum dos pequenos. Ela tem passado melhor ultimamente. Falaram, então, do começo dessa desgraça e Jorge relatou a cena que tivera com o correspondente na véspera de partir. E como viajara, cheio de cuidados, imaginando o tristíssimo espetáculo que teriam seus olhos quanto avistassem a mãe desgrenhada, a agadanhar-se em acessos de loucura. D. Julia ouvia meneando com a cabeça e, como o moço suspirasse, calando-se, convidou:

— Vamos vê-la, meu filho. Ele, porém, apesar da saudade e do desejo intenso de ver e de beijar a mãe, resistia procurando delongar o momento cruel, e já entristecido pelo silêncio fúnebre da casa, onde mal soavam os passos das escravas que iam e vinham em pontas de pés, continha o pranto que lhe subia aos olhos. Mas, como a tia insistisse, levantou-se e seguiu-a pelo corredor monástico, sombrio, onde crioulinhos nus dormiam deitados em esteiras.

As paredes úmidas tresandavam e eram frias como lapides e como Jorge passasse diante de um cubículo, um bacorinho assustado fugiu aos galões, grunhindo, atravessando a sala de jantar onde mucamas trabalhavam.

D. Antonia, sentada no leito, os cabelos amarrados no sinciput, lidava com panos quando escravos apareceram à porta.

Ouvindo falas levantou a cabeça, e como o filho assomasse à entrada, a louca foi entreabrindo os lábios, abandonando os trapos lentamente; as mãos crisparam-se-lhe, os olhos baços e frios foram, aos poucos, ganhando claridade como se lhes voltasse a primitiva luz. O moço avançava, mal contendo a emoção; D. Julia seguia-o. As escravas ficaram de pé, junto à parede nua, olhando, ora a mãe, ora o filho com curiosidade comovida, à espera de que a pobre louca reconhecesse quem tantas vezes chamara aos gritos. Jorge, entretanto, caminhava sem que ela demonstrasse reconhecê-lo. Parecia assustada diante daquele homem que avançava encarado nela. Repuxava maquinalmente as roupas para o colo, sem tirar os olhos do filho, temendo-o e a fisionomia foi-se-lhe transfigurando: rugas cavaram- se, os lábios agitavam-se em tremuras, e encolheu-se quando o moço ajoelhou-se junto ao leito procurando-lhe a mão para beijar.

— Então, mamãe? Não me conhece mais? Jorge, seu filho...? E mirava-a bem nos olhos como se procurasse descobrir-lhe nas pupilas um resto da luz meiga de outrora, luz que as lágrimas copiosas pareciam ter apagado para sempre. Mas D. Antonia, como se despertasse de um sonho, achando-o na vida real, perfeito e exato, inclinava-se fitando a vista, por sua vez, no filho, bem perto, como para convencer-se e os olhos extremosos encontravam-se: dois abrasados, dois outros úmidos e ternos.

Ele sorria, ela mirava-o duramente como cravando a vista no íntimo para achar o sonho, o bom sonho perdido que parecia revelar-se aos poucos. Por fim acenou à D. Julia, às escravas. Cercaram-na em silêncio e ela, baixinho, balbuciando, a apontar o filho, indagava:

— É Jorge? E as mulheres afirmavam. Ela insistia: É Jorge? Meu filho? Meu filho de muito longe, de lá? e estendeu a mão, num gesto lento, marcando a distância intérmina que ela sonhava, e de novo as mulheres afirmaram. Curvou- se mais, tomou nas suas as mãos ambas do filho, beijou-as, mirou-as como se as quisesse reconhecer, depois voltou-lhe a cabeça; examinou-o numa face, depois em outra, alisou-lhe os cabelos e, docemente, beijou-o sorrindo. Voltou-se para D. Julia, mostrou-o orgulhosa, derreando-lhe a cabeça para que todas vissem-lhe o rosto varomil; mostrou-o às negras: Meu filho! Jorge; e sempre sorria: Meu filho!... Era pequenino assim; e espalmou a mão no ar. Súbito, quase com a boca sobre os lábios dele, perguntou: E teu pai? teu pai? Ontem, quando partiste, ele estava aqui: e bateu no leito. Jorge olhava-a compadecido. Teu pai não tarda. Olha o chapéu dele... e apontou para o cabide. Não tarda. Vais vê-lo. Queres vê-lo? Espera... metendo, então, a mão no seio sacou um punhado de papeis, desenrolou-os e, mostrando ao filho uma gravura amarfanhada e rota... estás vendo? Teu pai, não é?...

Lesta, desceu da cama, os cabelos desenrolaram-se-lhe caindo-lhe pelas espáduas em ondas veneráveis e ela ia para sair quando as escravas tomaram-lhe a frente. Aflita, frenética repelia-as:

— Ah! ah! Que coisas! Deixem-me! Vem, meu filho... Parou e como se ainda tivesse dúvidas, perguntou: Não é meu filho? É, sim. Então! Vem, vem, vem! E, como Jorge avançasse, estacou com os olhos imensos, desvairados, a medi-lo dos pés à cabeça. Um sorriso irônico nasceu-lhe nos lábios que empalideciam, torcia as mãos, agitava a cabeça escancarando a boca agoniadamente. Súbito, num rápido movimento, arrancou um pedaço da renda do casaco e ria nervosamente, mostrando as gengivas vermelhas. As escravas encaminharam-se para junto dela, contiveram-na com meiguice; ela, porém, trincando os lábios, arremetia arquejando, debatendo-se ; e entrou a balbuciar. De repente, apertando a cabeça a mãos ambas, pôs-se a chamar o esposo, aos gritos: — Velho! Meu velho! Meu Jerônimo...!

Jorge, em soluços, foi arrancado do quarto pela tia que o consolava:

— Ah! meu filho, coitadinha! antes a morte!

E ele, soluçante:

— Antes, tia Julia. Antes a morte, coitada!

E os gritos repercutiam dolorosamente.

Num dia de Maio, tépido e translúcido, D. Antonia, que a fraqueza consumira, repousou na morte serenamente. A madrugada rósea e fresca nascia quando seus olhos foram perdendo o fulgor da loucura. O padre Joaquim que, entre as suas capelanias, preferia a da Mesopotâmia pela grande virtude das senhoras e pela abundância das merendas, chegara na véspera, na sua bestinha ruça, com o breviário, mas apesar dos rogos reiterados de D. Julia, negou-se a confessar a moribunda, compreendendo a impossibilidade de despertar a memória naquele espírito obscuro. Absolveu-a, certo de que o bom Deus havia de recebê-la na sua glória, porque alma mais pura não passara pela vida sempre acima das torpezas do mundo. Absolveu-a para que o Dr. Cancio tentasse os derradeiros recursos da ciência, posto que não lhe parecesse possível arrancar aquele corpo, já frio, às garras da morte. Encantou-se toda a noite e, estirado em fofa poltrona de couro, roncou beatamente, as mãos em cruz no ventre empanturrado, a boca escancelada. De quando em quando acordavam-no para uma colação e ele, rosnando, fungando, atirava-se às bandejas, perguntando baixinho às negras: “Se a boa senhora já havia descansado? ” E engorgitava e dormia.

O médico, como Jorge o interrogasse, assustado com a imobilidade da mãe, que nem um trêmito agitava — apenas os olhos rolavam aflitos, cheios de ânsias — sentenciou: “Que tudo estava acabado. Nada mais se podia fazer: ela estava inanida, a consumpção levava-a”. Ajoelhou-se então, tomou as mãos geladas da moribunda e cobriu-as de beijos.

A madrugada nascia, rósea e fresca, quando os olhos de D. Antonia foram perdendo o fulgor da loucura, tornando-se baços como se uma bruma os velasse. A ortopnéa progredia e o médico aconselhou que abrissem todas as janelas ao ar puro da manhã; tomou o pulso à louca e afastou-se vagarosamente, desanimado.

Houve, entretanto, uma grande esperança: voltavam os movimentos à enferma, as faces readquiriam a cor e ela entrou a jogar com a cabeça molemente, em balanço, sorrindo. Depois, como se alguma coisa lhe empanasse a vista, chegou as mãos aos olhos e, imaginariamente, tirava das pupilas as nuvens que lhe turvavam a claridade e jogava-as para os lados abandonadamente. Pestanejava, arquejava; os movimentos foram-se tornando brandos, por fim os braços caíram-lhe estendidos ao longo do corpo, pôs os olhos em alvo, cerrando a boca, contraindo a face.

D. Julia que se prevenira com velas e com o crucifixo, correu ao leito e, de joelhos, pousou sobre o peito magro da cunhada a imagem, esperando a agonia, mas a morte não havia conseguido ainda a vitória suprema e só ás 11 horas da manhã, à grande luz que entrava em jorros pelas janelas, ela expirou sem agonia, cerrando as pálpebras.

Padre Joaquim adiantou-se e abriu o breviário diante da morta. As negras ajoelharam-se persignando-se. Os círios crepitavam, o padre resmungava no silêncio funéreo com um zumbido monótono de besouro e fora, à luz vivida do meio dia, nas moitas que enfeitavam as terras fecundas, cantavam tristonhamente as pombas meigas.

   Jorge, de pé, os braços cruzados, olhava o cadáver e, terminada a cerimônia religiosa, deixaram-no só com a mãe para os eternos adeuses. Foram saindo lentamente e ele achou-se abandonado diante do corpo lívido e gelado, que a morte desfigurava.

Ajoelhou-se, e duas longas horas haviam corrido quando D. Julia foi arranca-lo à dolorosa agonia, anunciando-lhe, com um beijo, “que iam vestir a morta”. Ele limpou os olhos macerados, beijou os cabelos brancos, as pálpebras, as mãos hirtas da mãe e saiu por entre as negras que o miravam compadecidas com os olhos cheios de ternura e de pasmo. Fora, na varanda, padre Joaquim e o Dr. Cancio bramiam contra a infâmia de Macedo Prates, que se bandeara com os liberais. E um carro de bois saía do terreiro carregado de milho, rinchando estridentemente. O esquife saiu na manhã seguinte, sob o orvalho, ao ombro de escravos até o cemitério. Jorge acompanhou-o a pé; um pajem levava o cavalo para a volta e, entre casuarinas e rosas bravas descansou o corpo. Vieram dias amargos de tristeza e tédio nesse silencioso e silvestre retiro, entre matas e águas.

D. Julia definhava à sombra dos vetustos muros, que haviam presenciado toda a vida atormentada da família. Fazia-se beata passando horas e horas na capela ou a ouvir as palavras untuosas do padre Joaquim, sempre entourido, arrotando acepipes: boa caça, bom vinho, boas ervas e parábolas dos livros de religião. Jorge, de vez em vez, abalava para o Rio, a pretexto de estudar os progressos do século e voltava magro, com o fígado dolorido e uma carga de livros.

D. Julia, sentindo-se isolada, teve um dia a lembrança de visitar as terras natais, a sua aldeia, onde viviam sobrinhas à sombra de vinhedos. Jorge apontou-lhe as inconveniências da viagem — a travessia lenta, o trabalho de fazer-se amar, a luta com o duro inverno, ela que se afizera ao sol dos trópicos, sem nunca ter ouvido os uivos dos ventos carregados de nevasca e, principalmente, o abandono em que ele ficava, sem pai, sem mãe, sem amigos, naquelas solidões onde, raro em raro, um caminhante aparecia pedindo pousada por uma noite como no tempo hospitaleiro e antigo dos patriarcas.

Ela, em tanto, insistia queixando-se do Brasil, que sempre lhe fora ingrato e acusando saudades da Pátria donde o irmão a mandara vir, ainda criança, tirando-a às ondas louras e cheirosas dos trigos, às esfolhadas e às vindimas alegres. Tinha lá terras e parentes e não ficaria, como a irmã, dormindo eternamente em terra estranha. E, para fazer calar o sobrinho, ajuntava, com beatice, que havia prometido subir a escadaria do milagroso Bom Jesus, em promessa, quando adoecera dos olhos.

Em Março, para alcançar a primavera no campo natal, abraçou com lágrimas o sobrinho e seguiu, prometendo anunciar a volta logo que houvesse saciado os olhos de paisagem.

Jorge resolveu então deixar definitivamente a fazenda, vendê-la para nunca mais tornar àquelas terras fatais. Os lucros acumulados davam-lhe para viver em paz abastada no Rio ou peregrinando pelo mundo em viagens estudiosas. Decidia-se, principalmente para fugir à devassidão oriental a que o forçavam as mucamas que, uma vez recebidas reservadamente nos seus aposentos, tomavam-lhe todas as horas, não lhe permitindo um instante de concentração e silêncio.

Às vezes, ao alarido de vozes iradas nos compridos corredores acudia, intervindo em disputas obscenas entre escravas; e as histórias das suas noites desceram ao comentário das senzalas. Os negros sorriam e, protegidos pelas filhas que faziam parte do gineceu, caiam em madraçaria provocando ímpetos furiosos do administrador severo que, de vez em vez, para exemplo, mandava amarrar um deles à escada e assistia à surra, impassível como um inquisidor, surdo aos gritos, às preces, indiferente ao sangue que espirrava dos talhos do relho.

Apesar da rispidez e dos açoites a desmoralização e o desrespeito cresciam. O gado amanhecia preso, berrando e, às vezes, o sol ia alto no céu e ainda os campeiros dormiam, estafados dos caxambus nos terreiros das fazendas vizinhas.

Uma tarde, porém, como andassem a coroar o café, levantou-se no eito atroante vozeria, as enxadas cruzaram-se, houve sangue e o feitor negro, Antero, um colosso de maus bofes, sanguinário e vingativo, caiu morto com um profundo golpe no crânio. Houve castigos cruéis — negros foram aferrolhados ao tronco a pão e água; outros tiveram as costas lanhadas, gargalheiras e manilhas saíram das tulhas. Jorge revoltava-se com aquelas barbaridades, mas o administrador negou-se a perdoar os rebeldes.

— Que se não tratassem de opor um paradeiro aos desaforos daqueles cães seriam um dia forçados a batê-los a tiro, porque eram capazes de tudo.

Amofinado escreveu aos correspondentes para que anunciassem a Mesopotâmia: trezentos alqueires de terras, engenhos, paióis, gado e duzentos e cinquenta escravos. Meses depois, com grande espanto do mulherio e dos negros, um velho médico atravessava a porteira com a família para tomar conta da propriedade que adquirira.

Jorge retirou apenas alguns móveis: o grande Cristo da capela, um lustre de bronze, peça de grande valor, trazido do Porto pelo pai, e sem adeuses, sem saudades, partiu para o todo sempre desse vale merencório. Instalou-se no Rio, e, como pensasse em sair para o estrangeiro, deixou-se estar num hotel ocupando vastos aposentos, com um criado apenas.

IV

Ávido de novidades, à cata de sensações requintadas, precipitou-se na vida tumultuosa e estróina dos teatros e dos boudoirs, gastando e gozando com ostentação.

Experimentou todos os vícios, ganhando tédio, em pouco tempo, às távolas, aos bastidores e às mulheres. Apurou-se em elegâncias, frequentando salões onde a sua palavra ganhou celebridade pela doçura melancólica com que ele a emitia dando aos fatos mais simples, mais vulgares, o encanto, o interesse de uma narrativa. E se lhe gabavam as frases, de uma simplicidade rebuscada, encolhia-se em tímida modéstia atribuindo à benevolência galante das senhoras tais encômios: “Se ele tinha a dicção áspera de um serrano!...”

E sorria cofiando maciamente a barba fina.

Disputavam-no. Era o primeiro convidado para todas as festas, indispensável nas partidas campestres, nos piqueniques insulares. Quando aparecia no Lírico, esguio e correto na sua casaca, sempre florida com uma rosa rara, colos opulentos arfavam cheios de ânsias, olhos acendiam- se, faces ruborizavam-se.

De um sarau em casa de certo ministro inglês datava a sua primeira aventura galante.

Uma esplêndida loura, de Edimburgo, alva como as camélias, de olhos divinos, doces e pensativos, onde pareciam passar visões românticas, Emma Jekins.

Depois de uma valsa célere, arquejante, o colo farto ondulando como uma grande vaga forrada de espuma, ela deixara-se levar pelo seu braço às áleas frescas e olentes do jardim e ali, no rechego das ramas, à luz alta e tímida das estrelas, enquanto os violinos gemiam, languida, vencida, deixara-se beijar longamente, amorosamente, apertando com os seus braços nus, de uma frieza glacial, o busto amado de quem lhe furtava o primeiro beijo criminoso.

De então novos dias começaram; horas de amor num retirado e idílico chalezinho das Laranjeiras onde a escocesa, em assomos lúbricos, delirante e apaixonada, desnudava o lindo corpo branco e ávido de volúpias. Mas a sorte da política arredou-a, com o marido, para os gelos da Dinamarca e o coração solitário de Jorge ressentiu-se tanto desse desprendimento que, nos salões, as senhoras mal o viam chegar melancólico e grave, lamentavam-no com ironia ciumenta pela desventura de ter perdido a sua linda “flor de neve”.

Nem tão longas foram as penas de amor que atrofiassem o coração de Jorge.

Meses depois — ainda a alcova das Laranjeiras rescendia a skine, que era o perfume de Emma — e já o seu coração pulsava com violência por uma ingênua viúva, Laura Simas, de dezoito anos, loura e alva, o rosto lindo, tristemente enevoado pelo crepe que mais realce emprestava à alvura suave da cútis e à meiguice dos olhos, que ele, encantado, achava semelhantes a duas estrelas azuis brilhando dentro da noite negra.

Vira-a recatadamente em casa de uma família amiga, com uma criança nos braços, ainda chorosa e dolorida, falando do desastre que havia orfanado tão cedo a inocentinha. O esposo, engenheiro, adorava-a; vivia por ela e para ela, lutando, arriscando-se a tudo no intuito de ganhar larga fortuna que lhe pudesse garantir os dias futuros em abundância e luxo. Mas levado pela intrepidez, fazendo avançar por um viaduto mal seguro uma locomotiva de experiência, pagou com a vida a temeridade. Seu cadáver, encontrado em tassalhos, de mistura com as peças da máquina, num fervedouro do Paraíba, veio em carro fúnebre para o Rio e jazia entre ciprestes na encosta de uma rampa, no Caju.

Laura, com um ano apenas de casada, cobriu-se de luto, recolhendo-se solharia ao leito nupcial, fechada para o amor, toda para a filhinha, que lhe ficara como um anjo consolador para o seu coração amargurado. Meses correram sem que ela aparecesse, até que, a conselhos de parentes, resolveu sair para combater a palidez que ia ganhando na vida sedentária de clausura e de solidão, quase em matas, porque habitava um prédio próprio no Cosme Velho, ensombrado por velhas árvores, adormecido pelo murmúrio de uma fita d’agua límpida.

Jorge encontrou-a ainda atristurada e a sua melancolia impressionou-o. Ouvindo-a, achou alguma coisa de elegíaco na sua voz lenta, cheia de fadiga, como se lhe custasse arranca-la da tristeza. O olhar tinha uma santa bondade, e como parecia resignada sua alma juvenil, tão meiga na angustia, deixando acreditar que ela recebera o golpe sem revolta, curvando a cabeça à Vontade Suprema!

Amou-a.

Frequentava a casa amiga, onde ela era assídua e, se a não via, indagava, insistindo com astúcia para que a mandassem buscar, que a não deixassem isolada — podia vir a sofrer, apaixonada como era e tão cheia de reservas castas.

Tornaram-se íntimos, mais os ligava a criança que se lhe afeiçoara saltando-lhe nas pernas, babujando-lhe o rosto com a boquinha ávida e cor de rosa, cheirando a leite.

Foram caindo, pouco a pouco, as trevas fúnebres do luto e a sua beleza reaparecia num amanhecer para a vida, para o amor, como a natureza, ao partir da noite rociada, reaparece cantante e florida para a germinação. No oriente da sua boca os olhos voluptuosos de Jorge demoravam. Longo idílio em silêncio! Longo idílio calado, feito de olhares furtivos e de ambições contidas. Uma noite, como ela se resignasse a ocupar o piano, ele acompanhou-a para voltar as páginas da música e, por entre acordes de uma sonata triste, falou timidamente, como se receasse ofende-la na sua saudade, dizendo-lhe quanto sofria com a indiferença do seu coração fechado. Ela empalideceu e seus olhos lindos pararam em êxtase apaixonado fitos nos dele. A sonata morreu em fugitivos trêmulos, e como a ama aparecesse com a pequena que esperneava, ela passeou olhares mostrando-lhe, com um raio meigo da pupila azul, a filha, como um embargo ao amor que ele lhe oferecia, a filha do morto, a alma, por assim dizer, do que partira. Ele, entanto, comovido, tomando a criança nos braços, baixinho, mais com a ternura do olhar do que com as palavras, disse: “Será minha também...” e como beijasse a pequenita, ela com as faces incendidas, baixou os olhos castos sobre o marfim do teclado, passeando os dedos distraidamente, sonambulicamente.

Dias depois, em todo bairro, falava-se do casamento afortunado da viúva Simas e Jorge, em azafama, cuidava dos papeis, corria aos estofadores escolhendo móveis e panos raros para o aconchegado ninho de amor, onde, em breve, arrulharia a meiga e cândida viúva. E casaram.

V

A cerimônia, em capela particular, não teve pompa: poucos carros. Laura, por um sentimento de delicado pudor, para não dar margem aos comentários da maledicência, exigira núpcias modestas.

Não houve banquete; apenas algumas senhoras e cavalheiros de alta estima saudaram os noivos em convívio íntimo. Às onze da noite, já a cidade dormia, partiram em carro fechado para o retiro nupcial que ele forrara de pellets moles e ornara de móveis antigos, na praia de Botafogo. Correram meses de amor fremente: mal se apartavam, sempre enlaçados, olhos nos olhos, lábios nos lábios; nem sentiam a passagem das horas rápidas e entre eles a pequena crescia gárrula e traquinas, entrecortando os colóquios amáveis com os seus tartareios ingênuos.

Mas amortecendo pela fadiga a ânsia lubrica, foram desaparecendo os disfarces e a intimidade estreita pôs em claro o fictício: os caracteres acentuaram-se. Laura, como derreada, amolecia em sestas prolongadas, indiferente à filha que caminhava pela casa, os bracinhos abertos, tartamuda e trôpega. Sempre amuada, melancólica, queixosa, procurava a solidão para evitar encontros com os criados, com os quais andava em rusgas constantes, despedindo-os, posto que, em dias de garrulice, tomasse-os para confidentes contando-lhes sonhos que tivera, interrogando-os sobre os vizinhos intimamente, como de igual para igual. Às vezes, porém, frenesis súbitos sacudiam-na toda em choques de ira: chorava, recolhia-se aos seus aposentos e, se o marido subia a procura-la, recebia-o mal, deixando-o sem resposta, reclinada no divã, o rosto na palma da mão, balouçando nervosamente a perna, o olhar errante, cheio de cismas, fulgurando em ódio.

Leituras despertaram-lhe ideais líricas. Impressionável, delicada, parecia sofrer e amar com os seus poetas, transportando-se espiritualmente aos lugares que eles descreviam: lagos d’águas alvadias prateadas pelo luar; castelos em cúspides de rochas donde fugiam arpejos brandos de sonatas; balcões enflorados de rosas e de madressilvas; e com os olhos úmidos, ébria do eflúvio que se desprendia dos versos apaixonados, sentava-se à escrivaninha de pau-rosa compondo estrofes banais de rimas frágeis sobre estrelas e flores. Traduzia Musset, imaginava romances, dramas nos quais pudesse recapitular transes de sua vida. Deixava-se surpreender pelo marido e amarfanhava o papel quando fingia percebê-lo, não tanto que ele não pudesse ler os seus escritos, e de olhos baixos, brincando com a pena, desculpava-se: “Que sonhara aquilo”.

Jorge, a princípio, aplaudia acorçoando, com palavras encomiásticas, a sua Musa delicada; por fim deu em passar indiferente, se a via debruçada sobre o papel, a fronte nas mãos, como em meditação.

Por isso, talvez, a lira foi esquecida; os livros dormiam fechados nas estantes. Dedicou-se ao canto com afã: romanças langorosamente gorjeadas ao piano, arias de operas, barcarolas sentimentais. Compôs, procurando imitar a dolência apaixonada de Chopin, e um dia, farta de isolamento, agarrou-se ao marido lembrando-lhe a vantagem de abrirem os salões de quando em quando, mesmo para que ela tivesse uma preocupação que a levantasse daquela indolência inerte em que vivia. Jorge cedeu, e Laura, esplendidamente decotada, rutila de joias, com a graça senhoril de uma solariega, surgiu no esplendor da sala, assistida pelos galanteios, seguida pela inveja cruel que os olhos femininos mal podiam disfarçar ao verem-na triunfando. Ele carteava o voltarete enquanto a mulher, em airoso caminhar, passava de grupo em grupo, esparzindo frases de espírito, comentando fatos antes que os acordes do piano fizessem calar os murmurinhos para que se ouvisse o pianista clássico ou a voz modulada de uma amadora celebre.

Começaram, porém, as vozes da inveja denunciando escândalos de Laura com um sextanista, Miguel de Pina, que a cortejava com exageros de galanteria, procurando-a, de preferência, para as valsas ou debruçando-se ao piano, embevecido e terno, quando ela executava. Jorge, sem dar ouvidos a comentários, olhava apaixonadamente a esposa quando ela passava, nos braços do estudante, célere, languida, girando como uma willis de lenda, até que um dia, como procurasse na escrivaninha certo papel que confiara à mulher, achou uma linda folha de velino apertando um cravo murcho, onde o doutorando, com uma letra miúda e fina, em frases inçadas de preciosismos, descrevia a tormenta de amor que o vitimava, roubando-lhe o sono e a tranquilidade, tornando-o indiferente aos livros porque, através de tudo, nas aulas, nos anfiteatros, diante dos leitos de morte, no hospital, tinha-a sempre ante os olhos perturbadoramente. E rematava com um rosário de versos alambicados, comparando-a à amada de Petrarca, mais formosa, ainda assim, do que a formosa madona. Jorge sopitou a fúria do ciúme. Dobrou vagarosamente a carta e guardou-a na gavetinha onde a encontrara e, como se quisesse ler na fisionomia da esposa a denúncia do crime torpe, entrou na alcova lentamente para surpreendê-la. Laura dormia, um braço estirado no travesseiro, os cabelos soltos em vagas de ouro alastrando as rendas. Seu corpo olímpico acusava-se em relevos sensuais, sob as colchas. A boca aberta, rosas nas faces brancas, os cibos longos, curvos, aconchegados, o colo alto e forte, arfando docemente. Jorge quedou contemplando-a e, por todo castigo, curvou-se, afastou-lhe carinhosamente os cabelos da fronte e beijou-a. Mas no seu coração entrara o gérmen acúleo dos zelos. Passava longas horas solitário, pensando, imaginando a mulher toda em ânsias loucas, nua, entregando- se impudicamente nos braços do doutorando. Via-a, ouvia-a, sentindo a dor pungente dessa ingratidão e dessa desonra e, para afugentar a visão cruel, erguia-se, passeava brincando com a pequena Sara, que vivia refugiada nas saias de Bá, a velha negra estéril, ama de Laura, ama de Sara, escrava ainda, posto que a menina vivesse a pedir para ela a carta de liberdade, rejeitando ofertas de presentes que lhe fazia Jorge, insistente, pertinaz, chorosa: “Quero a carta de Bá! Quero a carta de Bá!” E a negra, com lágrimas, tomava-a ao colo, beijava-a. Sara fugia à mãe e, se Jorge chamava-a, estendia-lhe os braços, ávida de carinhos, com tremores e sustos quando sentia os passos de Laura, que a repelia a pretexto de que a criança cheirava a gorduras por não deixar as negras, vivendo como uma escrava, sempre encafuada na cozinha. Jorge afagava-a, beijava-a, distraia-se com ela.

Um dia, entrando em casa, ouviu gritos agudíssimos, vozeria, lamentos. Precipitou-se. Na sala de jantar Bá, a velha negra, ajoelhada, a fronte escorrendo sangue, segurava um ferro de engomar que Laura puxava bradando: que o deixasse. Sarita, os bracinhos passados pelo pescoço da ama, batia os pés, sapateando, o rosto molhado de lágrimas, as mãozinhas manchadas de sangue, revoltada contra a mãe: “Má! Má! Deixa Bá! Não lhe batas! Não lhe batas! Tem pena dela!” Criados intervinham e todos ficaram imóveis, pasmados, quando Jorge surgiu à porta. Avançou interrogando, o sobrolho franzido. Laura, longe de responder, acesa em ira, bradava:

— Que aquela negra não lhe ficava mais uma hora em casa! Vendesse-a. Não, que não havia de ter ali outra senhora. Isso não! Vendesse-a! Vendesse-a! Mas Sarita, em soluços, pedia:

— Não! Não! Não, mamãe... Bá, não! Bá, não, mamãe. Não, paizinho! E atracando-se às pernas de Jorge, os olhinhos lacrimosos: Bá, não, paisinho! sim? E a negra, limpando a fronte com o avental, mal articulou palavras de defesa:

— Ela mesma não sabia porque se zangara nhau Laura a ponto de lhe atirar com um ferro à cabeça. Não sabia. E como Laura investisse, os punhos fechados, irada, gritando: “Que se calasse! Que se calasse! ” Jorge tomou-a delicadamente pelo braço observando em segredo:

— Que olhasse, ao menos, os criados que ali estavam testemunhando aquela cena ridícula. E, para acalma-la, comprometeu-se a vender a negra, certo de que, horas depois, tudo estaria sanado e Laura, sempre versátil, andaria com presentes e abraços, confidencias e promessas, procurando readquirir as boas graças da escrava.

Efetivamente, na manhã seguinte Laura, ainda no leito, fez subir a ama e chorosa, arrependida, limpando os olhos, pediu-lhe perdão do que fizera, levando tudo à conta dos seus nervos irritadiços: — Ela bem conhecia o seu coração. Não dormira com remorso da brutalidade que cometera, do desrespeito porque, enfim, Bá era a sua verdadeira mãe, que a outra ela mal conhecera.

A negra, sensível, recordou as longas vigílias que fizera com ela pequenina ao colo, passeando de um para outro lado, a cantarolar para adormecê-la. E toda a sua infanda, os prazeres e infortúnios da sua vida até aquele dia; e sentida custou a perdoar-lhe, não tanto pela maldade de a haver ferido, principalmente pelas palavras duras que lhe havia atirado na sala, à vista dos criados, porque não se importava que ela ralhasse, mesmo que lhe batesse, mas não diante dos outros que lhe perdiam o respeito.

Sarita, rancorosa, fugia aos carinhos maternais, resmungando, repelindo Laura com safanões atrevidos quando ela a procurava; mas lentamente a calma foi voltando à casa.

Jorge, como se o ciúme acendesse maior ardência no seu coração, sentia-se, a mais e mais, apaixonado pela mulher, não espiritualmente, sensualmente, amando-a pela carne, pela carne moça que reçumava volúpia, carne que outros olhos cobiçavam e que ele somente possuía para todas as horas, sua sempre, sempre cativa dos seus braços. Procurava-a e, meigo, seduzia-a para o jardim onde ficavam em colóquios, como dois namorados, longas e esquecidas horas, trocando beijos, fantasiando o futuro.

Laura, porém, entediada com a felicidade doméstica, monótona, feita sempre com as mesmas frases, entre as mesmas paredes, sonhava lúbricos enleios e, nos braços do marido, languida, o seu pensamento adulterava o amor: recebia os beijos friamente, sem os antigos frêmitos que lhe afloravam a epiderme, sem o alucinado delírio que lhe regelava a carne. Deu em sair, a pretexto de provar vestidos, de tratar os dentes. Recolhia-se tarde, mole, impertinente, exausta, encerrando-se para que lhe não falassem, para que a não vissem. Exigia toaletes, joias, queixando-se da pobreza de seus vestidos, que até a envergonhavam quando saía à rua. Contas apareceram; caixeiros de fornecedores encontravam- se no portão, aos dois, aos três por dia e, como Jorge procurasse, por meios brandos, persuadi-la de que as despesas iam-se tornando excessivas, Laura lamentou o engenheiro, pobre, em verdade, lias franco, satisfazendo-lhe todos os caprichos, incapaz de vexa-la com insinuações. Por fim, já extenuada, deixava-se estar no leito gemendo com enxaquecas e exigia médicos, lastimando-se da vida que levava: quase sempre na cama e abandonada de todos, que pareciam evitá-la como se a vissem lazara. Jorge dobrava de solicitude.

Longas noites, sentado à sua cabeceira niodorrava, acordando em sobressalto ao mínimo movimento da mulher para indagar “se sentia alguma coisa”. Tomava-lhe o pulso, buscava-lhe o termômetro e ela, com gemidos de rola saudosa, paciente, compassiva, pedia-lhe: “Que se fosse deitar; ele não podia perder noites, era fraco. Onde se fosse deitar; deixasse-a; se precisasse chamava-o.”

Ele negava-se, permanecendo até o amanhecer a seu lado, acompanhando-lhe o sono que, às vezes, durava até tarde, tranquilo e brando como o de uma criança.

Os médicos revezavam-se. Sempre que um novo clínico aparecia Laura, discorrendo prolixamente, com abundância de termos técnicos, colhidos a esmo em leituras truncadas e em palestras, expunha a sua moléstia com uma presunção científica que, muitas vezes, fazia sorrir o médico e ao marido dizia, depois da consulta, com um pequenino ar de surpresa — que o doutor pasmara da sua erudição médica, perguntando-lhe, ao sair — “se a colega havia cursado academias.” Eram, porém, de pouca duração os entusiasmos, aborrecia o médico porque a refutara; chamava-o de “atrasado, de imbecil, de retrogrado; que vivia ainda aferrado aos velhos sistemas, desconhecendo inteiramente os progressos da ciência”.

Jorge deixava-a falar cedendo, sem relutância, às imposições até que um dia, como se sentisse de repente invadida por um grande frio, atirando-se-lhe aos braços, soluçando: “Que a não deixasse morrer; que a levasse à Europa onde viviam os mestres da ciência,” ele, complacente, apiedado, tranquilizou-a, prometendo satisfazê-la, e já se falava na viagem, com grande repugnância de Bá, que tinha horror ao mar, quando, uma tarde, entrando inesperadamente na alcova, Jorge viu o seu leito maculado por um dos amigos mais íntimos, Jerônimo Treves, contemporâneo de Academia, considerado, em casa, como da família.

Estacou à porta, hirto, a tremer. Encheram-se-lhe os olhos d’agua e só um grito escapou-se lhe da boca escancarada: “Laura!” E caiu como fulminado. Toda uma semana esteve em febre delirante, entre a vida e a morte, com raras intermitências de lucidez. Bá e Sarita não o abandonavam, e quando a calma lhe foi Voltando corria os olhos tristes e fundos pelas pessoas presentes, como se procurasse alguém que ali faltava.

Fugiam de pronunciar diante dele o nome de Laura, os médicos haviam proibido toda referência. Uma noite, porém, já em convalescença, ele chamou para perto do leito a menina, que o não deixava, e afogando-lhe a cabecinha loura, perguntou baixinho pela mãe. Sara estremeceu, mirou-o espantada e os olhinhos meigos foram-se lhe enchendo de lágrimas; baixou a cabeça a soluçar e atirou-se lhe aos braços amimando-o, como se quisesse demonstrar que ela ali ficara para compensa-lo da ingratidão da mãe.

Laura partiu na mesma noite levando as joias, mandando apenas, no dia seguinte, buscar as suas bagagens. Jorge, resignado, passeava pela casa martirizando-se com visitas aos aposentos desertos da mulher, onde ficara o aroma dos seus cosméticos e dos seus perfumes como uma saudade voluptuosa.

Meses depois, em uma carta escrita de Paris, Laura pedia-lhe perdão do crime, atribuindo-o à moléstia que a dominava, “essa implacável nevrose que ele bem conhecia”, e acusava Jerônimo Treves que, “saciado, deixara-a abandonada, na miséria, entre estranhos, em uma cidade sem misericórdia.” Falava das noites sem agasalho em pleno inverno gelado, na solidão e, mais do que tudo, no remorso que a minava, arrastando-a fatalmente à morte se ele não se resolvesse a perdoa-la. Era uma louca, ele que a encarcerasse numa casa de saúde que ela ainda o bendiria, mas que a não deixasse morrer antes de ter ouvido dos seus lábios a palavra de perdão, antes de ter beijado a filha”.

Jorge, apesar dos conselhos dos amigos, bem que não amasse a mulher, como jurava, escreveu mandando-lhe ordens para que voltasse; e uma noite, trabalhava no seu gabinete, quando lhe anunciaram duas senhoras. Levantou-se para recebê-las, antes, porém, de chegar à porta, um grito agudo fê-lo estremecer e, quase no mesmo instante, como se tivesse irrompido da sombra, Laura caiu-lhe aos pés, ajoelhada, beijando-lhe as mãos, molhando-as de lágrimas, e suspendendo o véu “pediu-lhe que a olhasse, que visse pela devastação do seu rosto envelhecido quanto havia sofrido, quanto havia chorado.” Levantou-a com bondade, conduziu-a ao gabinete, convidando igualmente a senhora que a acompanhava. Sentaram-se e ele, depois de ouvi-la, não a recriminou, evitando generosamente tocar no fato que os havia desligado, mas como Laura pedisse para ver a filha, Jorge, mal disfarçando a emoção, disse-lhe baixinho: “Mais tarde, minha senhora... Quero poupar-lhe uma agonia...” Ela arquejou: “E Bá?” Jorge, sem dizer palavra, levantou-se e saiu ao corredor. Pouco depois a velha negra entrava, soluçando, os braços abertos e, como visse o rosto desfigurado de Laura, prorrompeu num grande choro:

— Minha filha... Ah! Meu Deus! Coitada de nhanhan! E as duas abraçadas soluçaram...

Quando a negra saiu, houve um grande silêncio comovido. Laura interrompeu-o para pedir a Jorge “que a protegesse, que a não deixasse ao abandono, era um cadáver digno de dó...” E tossia abafando a boca com um lenço. Ele estendeu-lhe a mão sem uma palavra, mas com os olhos cheios de misericórdia. E conduziu-a à porta.

Do jardim, como ela levantasse os olhos, viu uma janela iluminada:

— É ali que ela dorme? E como o esposo afirmasse, pôs-se a atirar beijos, caminhando sempre com o rosto voltado para não perder de vista as persianas que coavam a claridade.

A tuberculose prostrou-a, apesar dos cuidados de Jorge, que se desvelava nessa obra de piedade.” Já na agonia implorava a presença da filha, “queria vê-la para que ela lhe perdoasse.” Sarita a instâncias do padrasto, acompanhou-o até junto do leito da enferma, e, apesar da enérgica vontade, entrando no quarto em que Laura jazia inerte, apenas com um resto de luz nos olhos febris, pálida, os cabelos branqueando, os ossos à flor da pele, não pode dominar o coração e a moribunda sorriu, vendo os olhos da filha, já adolescente e formosa, marejados de lágrimas. Branda, fraca, tomou-lhe uma das mãos, chegou-a aos lábios secos e volveu os olhos súplices fitando-a com enternecimento.

Sara caiu de joelhos comovida e, como entrassem com duas velas no quarto, Jorge ajoelhou-se também trêmulo, pálido, tomando uma das mãos alvas da mulher que expirava sorrindo.

De então, esquecendo o mundo, dedicou-se exclusivamente à educação de Sara, vendo-a crescer em graça e em inteligência, linda e meiga: menina, flor púbere, mulher, sempre sob o desvelo dos seus olhos, sempre sob a tutela amorosa de Bá, que, às vezes, olhando-a, desatava a chorar, calando o segredo do seu pranto, que só baixinho, murmurava: “Está ficando o retrato da nhanhan”.

SEGUNDA PARTE

I

Bá, que chegara de manhã, com Inocêncio, para esperar as andorinhas, ouvindo rodar de carro, saiu à varanda em mangas de camisa, com uma toalha cruzada no busto à maneira de chalé e vendo, através do gradil pintado de fresco, uma caleche que rutilava, bradou pelo copeiro numa ânsia como se o chamasse a socorro.

Antes, porém, que o rapaz acudisse ao clamor aflito já um homem escancarara o portão diante de duas senhoras, uma das quais atravessou o jardim a correr por entre os canteiros nus que ressecavam ao sol.

Era alta, esbelta, torneada em curvas rígidas, como marmóreas, denunciando uma carne sadia e moça.

Amplo chapéu de palha, de abas largas, em toldo, florido de rosas entremeadas de avenças, ensombrava lhe o rosto alvo e redondo. Os olhos azuis eram grandes e úmidos, d’uma doçura de águas refletindo céus crepusculares, em contraste com a boca vermelha, dum corte ondulado, sensual e altiva, entreaberta na respiração cansada, deixando ver os dentes alvos, unidos, postos com a perfeita ordem duma cravação em joia.

Lesta, arqueando os braços em lira, tirou o chapéu e a cabeça fulgurou num esplendor d’ouro fulvo.

Sentia-se lhe a pele quente e mádida e as faces ardiam-lhe em rosas vivas. Deixou-se cair amolecidamente no banco da varanda, estirando os braços no recosto, a cabeça encostada à parede, olhos extáticos, num delíquio languido:

—Ó! Bá... que calor!

— Coitada de minha filha! Lamentou a negra com enternecimento, quase de cócoras, olhando-a num enlevo maternal, os braços estendidos, como se a quisesse tomar ao colo. Logo ergueu-se, porém, ao trepidar de passos no cascalho. Era miss Kate, a professora, uma irlandesa esguia, de rosto comprido, ossudo, alvo, sardento, como de leite polvilhado a canela, com a impassibilidade de máscara. Pisava firme e forte, olhando através das lentes rutilas dos óculos redondos, de grossos aros de prata. Trazia ao colo, apertada ao seio, entre os braços másculos, uma cadelinha de raça.

Mamoaselle, como lhe chamava Bá, chegando à varanda, voltou-se para olhar a paisagem fronteira — Os montes da Tijuca ao fundo e na falda campos rasos de ervas viçosas, onde mangueiras imensas, compactas, abriam oásis de sombra.

A cadelinha, mal libertou-se dos braços de Mamoaselle, saiu trefega, tilintando os guizos da coleira, a farejar os cantos, mantendo a cabeça por entre as grades da balaustrada aos latidos alegres.

— Coitada de Mamoaselle... E Diana? veio direitinho?

A velha negra cirandava, contente, vendo todos os seus em casa, e, agachando-se, sem poder sopitar uma expansão jocunda, espalmou as mãos nas coxas, dizendo a sorrir, feliz:

— Agora sim, nhanhan... Agora estamos no que é da gente. Ia continuar, mas uma voz interrompeu-a:

— Estás alegre, Bá. Era o homem. Alto, magro, nervoso, a tez morena de moçárabe. O rosto profundamente sulcado, como a buril, tinha uma expressão de energia serena. Os olhos fundos eram tristes e rebrilhavam.

Os cabelos brancos rareavam devassando a fronte; fartos bigodes grisalhos escondiam-lhe a boca. O andar era altivo e lento como o de um soldado em ronda.

— Não sente calor, paizinho?! Acho isto aqui mais quente do que o Catete.

Olhou-a com um sorriso:

— Mais quente?!... Caminhou ao longo da varanda, as mãos para as costas, a cabeça alta, respirando a brisa impregnada do aroma alpestre. E miss Kate? A irlandesa lançou os olhos à montanha e voltando-se:

— Lindo, majestoso!

— E fresco...

— Fresco, sim. E dirigindo-se à Sarita: Muito fresco! muito!

Esticou o pescoço girando a cabeça como para deixar entrada franca à aragem até o seu colo seco.

— Pois eu acho horroroso! Concluiu Sarita levantando-se.

A casa estava ainda em desordem: móveis amontoados, panos dispersos. Tresandava a terebintina.

A mesa de jantar, de canela escura, estava em parte coberta de cristais; em uma das porcas desembaraçada alvejava a toalha.

No chão grandes cestos de louça, volumes embrulhados em jornais; o soalho todo coberto de palha e, encostado a um ângulo da sala, o grande relógio tinha os ponteiros adormecidos sobre as onze horas. O guarda-pratas vazio, os trinchadores apinhados de pacotes; galerias de carvalho amontoadas, vasos, tapetes e, sobre todo esse caos de mudança, o sol, que entrava por seis amplas janelas, alastrava cintilações das taças enfileiradas entre vasos da China e faianças portuguesas. Canários assustadiços saltavam nos poleiros das gaiolas chilreando. A cadelinha inspecionava a casa, ia e vinha, desaparecia, voltava, de focinho baixo, farejando os cantos, os móveis como se os reconhecesse.

Bá desculpou-se do desarranjo com a atenuante da idade — já não tinha forças, mal podia com as pernas e Inocêncio era um estabanado, um quebra-tudo. O moleque encantoara-se no vão de uma janela e olhava, ora a negra, ora a ama, com um riso alvar, torcendo um guardanapo. Santa e Miss Kate sentaram-se. Bá, solicita, indagou: Se não tinham fome, era tempo...

Já almoçamos, disse o homem que, de olhos altos, admirava o estuque do teto, os medalhões das paredes e, de quando em quando, debruçando-se a uma das janelas, atirava o olhar ao longe, campo afora, ou pelo dorso nemoroso das montanhas, em cujos matos as folhas claras das embaúbas punham manchas de prata, e contemplava com um regalo íntimo de misantropo que encontrasse, afim, o silêncio, a solidão ideal. Estalaram palmas.

— Devem ser os homens. O moleque saiu à varanda com um ranger áspero de sapatos novos.

— Dr. Jorge Soares?

— É aqui mesmo. Entrem.

À porta da sala apinharam-se quatro homens robustos. Mal deram com as senhoras: Sarita e Miss Kate que repousavam, acaloradas, descobriram-se como se houvessem avistado santas e, com respeito, através das barbas ruivas, selvagens, um deles, espadaúdo e grosso, a pele das mãos gretada e áspera, sussurrou: “Boas tardes!” E os outros, em surdo uníssono, acompanharam-no. O doutor recebeu-os com o relógio na mão:

— Para as dez da manhã, meus senhores...

— Viemos um poucochinho tarde, viemos, sim, senhor: mas vossoria há de nos desculpar; tivemos uns móveis a embarcar. E, noutra voz cheia de convicção: Mas há tempo, senhor doutor... Pode estar descançado que antes das cinco está tudo pronto.

— Pois vejam isso...

Que vossoria que a gente comece cá por baixo ou pelos dormitórios?

Pelos dormitórios, naturalmente. E voltando-se: Não achas melhor, Sarita?

Para mim é indiferente, respondeu a moça com frieza, sem levantar os olhos.

Pelos dormitórios, disse o doutor aos homens.

Recuaram os quatro para junto do banco, na varanda; despiram os casacos, desembrulharam pacotes de onde rolaram ferros e entraram pela sala em grupo compacto, com olhares para a direita e para a esquerda, mirando tudo, calculando o trabalho.

— Vai com os senhores lá a cima, Inocêncio; ordenou o doutor.

O moleque tomou a frente e, pelo corredor, depois pela escada em caracol, que levava aos aposentos superiores, soaram passos fortes.

O doutor aproximou-se de Sarita e, alisando carinhosamente os cabelos finos que, em penugem, douravam-lhe a nuca marmórea, indagou: “Se estava triste, que tinha?” A moça desviou a cabeça em amuo, revoltada contra a precipitação da mudança.

Podiam ter feito tudo com calma, sem aquele incômodo de passar um dia inteiro abafada em sedas, entre montes de palha e lotes de porcelanas. Pareciam ciganos. Era sempre assim por causa da maldita mania das pressas, a azafama atabalhoada, o atropelo impaciente. Bem que a podiam ter deixado em casa da Nicota, com Miss Kate, mas não! Sempre as teimas: Vamos! Vamos! Vamos! Um calor daqueles e ela de luvas, a aborrecer-se, suando que já não podia mais.

Em cima atroaram pancadas e Sarita revoltou-se: Podia lá com aquilo! Um cheiro de tinta que atordoava e aquele barulho... E depois era ela a imprudente, a teimosa. Arrancou d’escorcho as luvas e, cravando o cotovelo na mesa, encostou o rosto na palma da mão, deixando os olhos errarem pelas paredes. Fora, num flamboyant florido de púrpura, uma cigarra estridula cantou. O doutor, muito brando, sorria para Miss Kate sem ousar interromper a torrente impetuosa do mau humor da moça. Acenava com a cabeça branca e nobre como a dizer: “Deixa-la! que fale!” A irlandesa, porém, interveio com a ascendência da sua palavra atormentada pelos rr, cortada de haustos:

— Que não se aborrecesse: em pouco estariam descansadas e no conforto. Eram sempre assim as mudanças. Mas como arrastassem móveis em cima, Sarita irrompeu nervosa:

— Até já estava com dor de cabeça. Uns brutos! Parecia que estavam quebrando tudo.

Bá, atraída pela discussão, adiantou-se humilde, temendo uma revolta da moça. Deixou- se estar à distância, encostada ao umbral da porta do corredor, a mão no rosto, ouvindo. Sorria, mas à última explosão de Sarita, não se dominou e docemente, com a voz lamurienta, pediu:

— Não se zangue, nhanhan...

— Ai vem Bá! Você também é outra das pressas. Não hei de zangar-me.

Está bom, está bom... disse a velha negra, dando uma volta e partiu para a cozinha arrastando as chinelas, a resmungar contra a ingratidão, recordando o “muito que aturara da moça desde o berço até aquela idade para aquilo. Tudo era Bá...! Não havia de aborrecê-la muito, mas, quando morresse, então sim haviam de arrepender-se, de ter saudade. Então sim... Oh! Bá... Seria tarde!” Miss perdeu a sua gravidade ouvindo a negra chorosa, e Sarita sorriu irresistivelmente. A borrasca cedeu com uma derradeira acusação à ama:

— Ah! também! Tão entrometida !

— Furiasinha! Disse-lhe meigamente o doutor. Furiasinha!

— Furiasinha...! Você é sempre assim, paizinho.

— Pois sim, pois sim; mas, se não tivesses vindo, se tivesses ficado em casa da Nicota tínhamos, amanhã ou depois, cena pior a pretexto de que eu não soubera arranjar teu quarto ou o de Miss Kate ou mesmo o meu. Assim estás aqui e tu mesma dirás como queres a tua cama: ao centro ou encostada à parede e os teus móveis de toilette. Darás o plano do teu gabinete, o lugar da estante, o lugar da escrivaninha, o canto para o divã; porás em ordem os teus bibelôs, as tuas tapeçarias. E sorrindo: até farás com que eu consiga ter um escritório de gosto, ajudando-me a compor os troféus d’armas e a dispor as telas e os bronzes.

Miss Kate ouvia calada e, de vez em quando, seus olhos enternecidos, abrumados em nostalgia, erguiam-se para o rosto moreno do doutor, mas logo os baixava tímida, velando-os castamente, sob os cílios louros. E ele, em mudez, contemplava enlevado, como num êxtase de amor, os lindos fios de cabelos que esvoaçavam sobre a cabeça dourada de Sarita, donde subia um suave aroma. Por fim disse:

— Estás aborrecida? Tens razão, minha filha. Mas, se é só porque te sentes mal nesse vestido, porque não o despes? Tens ai a tua roupa Recolhe-te a um desses quartos e põe-te à vontade. Queres?

— Não.

— E a senhora, Miss Kate?

— Oh! não! Estou bem; espero.

A professora levantou-se, correu os olhos pela sala e saiu cá porta da varanda, cuidadosa, preocupada, espiando debaixo da mesa, pelos cantos.

— Que é?

— Diana...

— Deve andar por ai; e o doutor, castanholando, pôs-se a chamar:—'Diana! Diana! e Miss também, empertigada, com os olhos no corredor, chamava: Diana! E a cadelinha surgiu dentre as sanefas das galerias, rebolindo-se, de rastro e esticando-se nas pernas, pôs-se a latir. Miss agachou-se, tomou-a ao colo alisando-lhe o pelo.

Sarita, no entanto, deixara-se ficar molemente sentada, d'olhos parados, lábios entreabertos, como num êxtase. Mamoaselle e o doutor debalde convidavam-na a sair, gabando a frescura suave da tarde, a beleza do céu e dos montes que se avistavam como num fundo de cenário; ela resistia amuada:

— Deixassem-na. Estava farta de pitoresco; queria descanso. O seu pensamento errava pela solidão da antiga casa abandonada e nua. Via-a na tristeza silente em que a deixara: as salas imensas, reboantes; os quartos enormes, mais claros depois que os homens despojaram-nos despindo as paredes, arrancando as cortinas, e a sua câmara, no alto, com duas janelas: uma para o mar, de onde ela olhava, cá radiante luz, o lento, sereno deslizar dos barcos que entravam, saiam, velas colhidas ou abertas ao vento para as travessias longas e arriscadas do oceano. Outras vezes em um imenso transatlântico, mugindo, desfraldando fumo, ou as pequeninas pirogas mergulhando e subindo na onda como troncos perdidos levados ao sabor da corrente.

Da outra janela eram quintais, pátios de estalagens tomados pelos coradouros, telhados corridos do casario, onde à tarde baixavam casais de pombos arrulhando.

E as suas banquetas de margaridas, os seus craveiros, os seus bogaris, a linda e viçosa moita de violetas, quem lhes iria abeberar as raízes e refrescar as folhas à tardinha, depois da soalheira calcinante que racha e tosta a terra fecunda e queima os tenros renovos e as pétalas macias?

Certos pregões habituais zumbiam-lhe aos ouvidos, vindo de muito longe, do fundo misterioso das reminiscências queridas. E os arrepios ao pisar a areia fofa e molhada da praia, avançando para a vaga humilde que lhe beijava os pés; os mergulhos, a voluptuosa flutuação nas águas inquietas, hirta, de costas, as mãos em cruz no peito, os olhos cerrados, como adormecida, levada para o além infinito dos mares. E os passeios á tarde com as Miranda e as Moretti, Heloisa Moretti, entre todas, loura e ardente, sempre risonha, muito engraçada e picante nos comentários maliciosos. Heloisa, que a levava ao longo do cais do Flamengo, sussurrando-lhe aos ouvidos a história triunfal das suas noites nos salões do Clube, na frisa do Lírico quando, atraídos pela brancura das suas espáduas virgens, os moços seguiam-na submissos como a matilha bravia seguia pelos montes Diana, a deusa selvagem.

E conhecia a história de todos aqueles rapazes das pensões vizinhas, sabia-lhes os nomes e esfiava miudamente a biografia de todos: se eram ricos, que academia cursavam, se tinham amantes, onde costumavam passar as primeiras noites dos meses em orgia regalada e devassa, com estouros de champanhe e beijos chuchurreados entre árvores num hotel campestre, onde havia como um eterno rito noturno de luxúria.

Mesmo de um certo Gomes Taveira, macambúzio e fechado, cheio de circunspecta moralidade, ar de pedagogo, com grandes barbas donde pareciam escorrer sentenças, sabia as partidas devassas com a Ermelinda, uma mulatinha da casa do conselheiro Brites, que ia todas as noites, rescendendo a óleos, dar trela aos rapazes do Clube de Regatas.

Heloisa! Heloisa! Resvalava para o romantismo das noites de luar, quando, estirada no divã cor de malva da sua câmara forrada de pelegos moles, ouvia a guitarra de unir jardineiro acompanhando fados sentimentais; mas ergueu-se com um profundo suspiro, passou as mãos pelos olhos como para dissipar a visão e chamou a ama.

— Vem comigo, Bá. Estou que não posso. Lançou um olhar entediado á sala e seguiu pelo corredor vagarosa e triste. Miss Kate acompanhara o doutor ao jardim, cheia de ternura pelas plantas novas: mudas de rosas, craveiros. Lia papeletas fincadas na terra fofa como pequeninas placas de um cemitério floral, prestes a rebentar os túmulos em ressurreições de aroma.

Havia um canteiro para as violetas junto ao muro, em sombra fresca: outro para as begônias raras, para os amores perfeitos, para os myosotis, e ao centro do jardim, num tanque de cimento, amontoavam-se pedras limosas por entre as quais a água branca fuia, enchendo a piscina, onde peixinhos circulavam abrindo e fechando as barbatanas róseas.

Mamoaselle, enamorada, expandia-se sobre a frescura do sitio, sobre a lindeza da vista. Diana ia e vinha, ganindo, espojando-se na terra aos rebolos. Mamoaselle acocorava-se diante dos canteiros e, de vez em vez, espetando a terra, exclamava radiante:

— Olhe! Olhe, doutor! Já vem... Era uma moitasinha de flores miúdas, atarracadas, que brotava da terra. O doutor propôs uma vista d’olhos à horta e a professora ergueu-se, sacudindo as mãos. E subiram pela ala central coberta de cascalho escuro, com dois renques de tinas, onde verdejavam enfezadas palmeirinhas e moitas de tinhorões. Ao fundo corria uma cerca de pinho, pintada a duas cores, com uma cancela abrindo para a horta, onde os canteiros vazios, em linhas paralelas, esperavam a semente. O galinheiro — casa e pátio; o banheiro, num chalezinho de venezianas verdes, depois uma sebe fechando o bosque denso onde, por amor da natureza silvestre, o doutor não permitira que entrasse o machado, respeitando a velhice das árvores que dormiam tranquilamente, na grande paz afável dessa tarde morna e azul; apenas o encinho penteara a relva amaciando leitos para as preguiçosas sestas de verão.

Miss Kate sentiu-se atraída pela solidão da- aquelas sombras tranquilas, daquelas balsas de religioso silêncio onde o sol estilava a luz em nimbos, como folhas de ouro entre folhas verdes.

A paz do arvoredo denso era apenas interrompida pelo fluir da água de um córrego que derivava num fundo pedregoso, entre barrancas muradas por bambuais. Voltou-se risonha e confessou a sua ânsia insofrível de repousar um momento nesse retiro, sentir a umidade do solo, o cheiro acre das resinas, fazer um ramo de parasitas. Diana roçava-se por ela festejando-a.

O doutor, para satisfazê-la, passou ao estreito caminho da “mata” e ofereceu-lhe a mão para que ela saltasse um tronco que ali estava tombado, ela, porém, ágil e intrépida, rejeitou o auxílio.

— Ah! Não, doutor! Ergueu a saia sorrindo, passou as pernas esgalgadas e, de olhos altos, embebida na grandeza das copas das primeiras árvores, engrolou louvores à América tão rica na terra, tão formosa nos mares e nos céus. Corria pelas árvores o arrepio da brisa crepuscular e os grilos, na erva, anunciando a noite, começavam a cantar trepidamente. As folhas secas estalavam sob os passos. O doutor seguia, mas diante de um grande tronco direito, sem ramos, roliço como uma coluna. deteve-se e foi derreando a cabeça para poder olhar a altíssima folhagem do colosso. Por fim voltou-se para falar à professora. Não a descobriu, ficara atrás; chamou-a e, de longe, dentre os matos, Miss Kate respondeu cerimoniosamente:

— Senhor doutor!? Mas noutra voz, infantilmente, comovidamente: Senhor doutor! Senhor doutor! Venha ver... aqui! Venha!

O doutor encaminhou-se guiado pela voz, com erva até os joelhos, e foi encontrar Miss Kate com um corimbo de glicinas, extasiada diante de uma teia de aranha tecida entre os galhos de duas árvores.

— Que linda! Parece de ouro! E mostrava a aranha que ia e vinha atarefada e rápida, correndo sobre os fios tênues. Deixaram, por fim, esse meandro intrincado e úmido e foram pela picada até uma clareira circular, o tabernáculo do bosque onde viviam as velhas árvores. A dois passos o córrego fugia. Em volta do tronco colossal de uma mangueira corria um grosseiro banco de taboas já escalavradas pelos anos; o solo era todo um tapete de relva. Ao rumor dos passos um casal de rolas bateu azas rufiando. Diana latiu arremetendo e Mamoaselle, curiosa, indagou: — Pombas ?!

— Rolas, Miss.

— Ah! Rolas...! E seus olhos azuis, sempre aguados, buscaram devassar o céu por onde fugiam as aves. Sentaram-se os dois. Diana acolheu-se às saias de Mamoaselle e, ouvindo o sussurrar do córrego e o ramalhar do arvoredo, concordaram ambos: “Que a chácara era de uma incomparável beleza!” Calaram-se admirando, mas o doutor lastimou:

— É pena que não haja um pomar. Mamoaselle, porém, cerrando os olhos, sorriu e, pondo-se de pé, exclamou estendendo o seu longo braço para as árvores e para o bosque como se o quisesse abençoar.

— Ah! Doutor! Para que mais do que isto...?

   E com soberano desprezo pelos frutos, pelos pomares, concluiu:

— Isto sim, isto é belo! E foram-se lhe os olhos das raízes das arvores às franças altaneiras. Quando recolheram a tarde empalidecia; cigarras chiavam no bosque e nos jardins vizinhos. Os montes, de um azul forte, recortavam-se nitidamente como embutidos no céu. As esponjeiras, salpicadas de flores, rescendiam perfumando a aragem. Na varanda, um dos homens, já vestido, atulhava o cachimbo de fumo, mas vendo o doutor adiantou-se risonho, anunciando: “Que a casa estava pronta. Tinham apenas deixado para o dia seguinte os reposteiros e as cortinas; e acrescentou que tudo ficara ao gosto da senhora que andara com eles, a explicar”.

Efetivamente a sala oferecia um aspecto repousado e agradável de ordem e conforto luxuoso. Híspido capacho de cerda forrava o patim guarnecido de duas tinas de carvalho esculpidas em acantos, e o olhar alegrava-se com a frescura das paredes, d’um tom de malva, onde ressaiam, com solenidade, os móveis nobres.

Entre as étageres o guarda-pratas com as baixelas resplandecentes, os estojos dos preciosos aparelhos japoneses, o “centro” e as grandes fruteiras de prata, era como uma tabuleta de ourivesaria. Em frente, num pequeno armário Renascença, de grandes lavores e tauxias de bronze e prata fosca, os cristais fulguravam em brilhos policrômicos.

A mesa estirada pousava sobre um encerado inglês e no centro, subindo dum cachepot da China, uma palmeira abria os leques verdes. Pelas paredes, telas viçosas de Estevão Silva, pastels de Gensollen e uma paisagem ardente de Parreiras; pratos raros e a um canto, num pedestal de faiança das Caldas, uma ampola antiga — sentado no bojo, entre urzes, um pastorinho soprando distraído a flauta rústica e nos ressaltos e chanfras, pelas asas folhudas, nos bordos ourelados de ervas, por todo o vaso, espalhados carneiros adormecidos ou de pé, e em baixo, vigilante, d’orelhas fitas, o cão.

Um grande prato italiano: a quadriga de Phaetonte rolando dos céus abrasada, em pedaços, ficava por cima de uma das étageres e sobre a outra uma travessa de prata, obra antiga, de séculos, representava, em minucioso relevo, o banquete de Trimalchion no momento terrível da entrada de Ajax partindo a duros golpes de espada o vitelo cozido e, a um canto, estas palavras do Satyricon, que fechavam a explicação da cena:

"Secutn-s cst Ajax, strictoque gladio, tanquam...)

O mais os anos haviam consumido. No canto oposto ao da ânfora uma cegonha de bronze, uma pata encolhida, meditava por baixo de uma cantoneira onde Sileno, de mármore, nu e quase a cair, perdendo o sendal de parras que lhe encobria o ventre, emborcava com avidez o cântaro do amo. E pequeninos goturnios pompeianos, vasos do tempo clássico, figuras pantafaçudas de bonzos acocorados.

O relógio, isolado, movia a pendula lentamente.

À noite, alumiavam a sala quatro bicos de gás e ao centro do teto, descendo de uma rosácea do estuque, um grande e magnífico lustre de bronze, relíquia venerável e rara que o doutor guardava como uma recordação duradoura da Mesopotâmia.

Passaram ao vestíbulo, pequena sala abrindo para a varanda que cercava todo esse pavimento da casa com um largo alpendre de ardósias suspenso sobre colunas de ferro galvanizado. A mobília sóbria, conventual, era toda de couro negro com pregaria de prata. Guarneciam as paredes gravuras inglesas de assuntos clássicos em molduras de carvalho fosco ramilhetadas de ouro, e duas telas de um palmo: a partida aventureira de D. Quixote à luz fresca e dourada da manhã e a morte serena do herói no catre doméstico, os olhos fitos na couraça e na lança tantas vezes enristada em favor dos simples. A um canto o porta-chapéus de ferro bronzeado.

Uma pequena porta levava ao salão. O soalho, de miúdos mosaicos de madeira, reluzia e os passos deslizavam por ele como sobre a neve dos lagos congelados. O teto admirável era em grandes almofadas de estuque cheias de pássaros e de cupidinhos nus, que pareciam debater-se presos nos intrincados rendilhamentos. A luz e o ar entravam por oito portas altas — quatro à frente, duas em cada uma das faces laterais. Os móveis, como os dispusera Sarita, faziam à maneira de pequenas ilhas de luxo e de paz confortável e macia.

Para um lado, um terno de estofo escarlate com fios de ouro: o divã, as poltronas e, ao centro, sobre o alto tapete fofo, pequenino e rotundo, o puff, onde um nelumbo desabrochava sobre águas d’ouro, no fundo carmezi da seda.

Dum lado e d’outro as vitrinas de caprichosos feitios, ao gosto japonês, enleiadas de dragões, com as suas prateleiras carregadas de figurinhas de Saxe, de potiches do Japão e da Índia; antiguidades trazidas das lavas frias de Pompeia ou dos sarcófagos milenares das múmias faraônicas, camafeus preciosos, ágatas, sílex, recordando as primeiras lutas da humanidade, ou uma simples pedra trazida de um piquenique alegre nas montanhas, na qual Sarita inscrevera uma data.

Ao fundo do salão, sob o grande espelho veneziano, no qual o pincel de um artista traçara toda a cena medieval do embarque de Marino Faliero para as núpcias com o Adriático, um precioso e raro grupo de ébano trabalhado a buril com finos embutidos de bronze: sofá de alto respaldo com delicados entalhes e caneluras, cadeiras abaciais e, adormecendo os passos, estirava-se entre os móveis, ao peso de uma mesa de marqueterie, a pele de um tigre real.

Na outra face a feição era a de um interior moçarabe, a forma das cadeiras, o assento de madeira escura, em recortes, o respaldar como uma grande lira, um vasto sofá todo embutido de pequeninas placas de marfim, mesmo um grande móvel, forte como um cofre, tinha a forma rebuscada e difícil de um portal de mesquita, das que os árabes deixaram pelas terras de Espanha quando fugiram para as suas areias do deserto, perdendo Granada, que as lágrimas fracas de Boabdil regaram.      

Acima do sofá moçárabe havia peanhas douradas e cantoneiras e um busto de infante, de mármore imaculado, rindo, a cabecinha meio encoberta pelas franjas de um chalé do Tonkin. Um Perseu de bronze e um psyllo de pé, meio inclinado, a soprar a flauta eletrizante para uma cobra capelo que erguia a cabeça ouvindo entorpecida.

Colunas de ébano ocupavam os quatro ângulos e os quadros, encostados às paredes, repousavam sobre panos. Na sala contígua, para a qual passava-se por uma larga porta ogival, um Erard alongava-se, fechado. Estantes carregadas de álbuns e a um canto, em discreta e sonolenta penumbra, uma otomana de seda entre cadeiras douradas.

Forrando o soalho um só tapete, onde desabrochavam profusamente rosas e chrysanthemas.

O doutor esteve algum tempo olhando, por fim confessou que Sarita fizera prodígios e Mamoaselle arregalava os olhos acenando afirmativamente.

Anoitecia. Inocêncio apareceu para fechar as portas, mas estacou ouvindo falas na saleta do piano e, como o doutor entrasse no salão perguntando pela moça, respondeu:

— Que estava lá em cima com tia Bá e o cozinheiro arranjando os quartos.

Mamoaselle, risonha, propôs uma surpresa — irem devagarinho espiar Sarita nos seus arranjos; mas soaram passos na escada e gargalhadas vibrantes.

— Ela ai vem, Miss... E, gentilmente, afastando-se, deixou passar a irlandesa que saiu com palavras de elogio. Inocêncio foi fechar as portas.

Sarita, num leve e fresco vestido de cassa, encontrando-os no vestíbulo acusou-os de curiosidade:

— Já tinham ido espiar... mas ria satisfeita, alisando os finos cabelos das têmporas. E suspirou: “Estou estrompada!” O doutor e Miss entraram a gabar-lhe o gênio ativo e ela, risonha:

— Está tudo pronto. Só falta pregar os quadros e arranjar o pavimento térreo: o seu gabinete, paizinho. E impondo: Não quero que você toque em um móvel, em uma arma; eu mesma vou arranjar tudo — os livros. Os quadros, a panóplia, procurar a luz para a sua mesa de trabalho, eu e Miss Kate... Não é, Miss? nós duas. A irlandesa afirmou ajuntando: Com muito gosto!

Sarita deixou-se cair no sofá de couro e o doutor sentou-se a seu lado. Miss, contemplativa, saiu à varanda para olhar o céu, onde as últimas luzes da tarde esmaeciam. Uma claridade súbita alastrou o soalho lustroso e o doutor, encostando a cabeça ao braço que Sarita estendera ao longo do respaldar, indagou como num sonho:

— Então vão aformosear o ninho da velhice?

— Sim, amanhã mesmo, bem cedo. E há de ver como fica com um interior confortável e de gosto.

— Para conforto basta-me uma caverna onde haja um poucochinho d’agua e um raio de sol que alumie as páginas de um livro, disse num tom de tristeza, d’olhos semicerrados.

— Ora! não queira tomar ares de monge. Nem tão velho está você assim, paizinho. E continuou balançando os pés, bamboleando o corpo: Há de ter flores todas as manhãs; e, com um momo, o dedinho erguido em ameaça: Mas não é para desarranjar tudo, como é seu costume: um livro aqui, a toalha em cima da mesa, os jornais pelo chão. Há de zelar também, ouviu? Ele acenou com a cabeça e sorriu procurando-lhe a mão, que ela abandonava à sua ternura.

Mamoaselle, que se debruçara à varanda, embebida no grande silêncio crepuscular, perfilou-se e, como uma vedeta de astros, anunciou docemente a ascensão da lua. Inocêncio aparecendo à porta com um guardanapo no braço, disse timidamente, como para não interromper o êxtase dos três:

— Jantar.

II

No dia seguinte ao da instalação Jorge, em robe de chambre, estirado na chaise longue, os jornais sobre as pernas, na frescura exterior do pátio dos seus aposentos, sobre o jardim, aspirava o ar puro da manhã, olhando as montanhas azuis empoadas de bruma, onde o sol nascente punha grandes claros, quando Sarita apareceu trefega, contente, os cabelos soltos rorejantes d’agua fresca do banho. Sorriu surpreendido com “aquele madrugar” e, como a moça curvasse o busto gracioso tocando-lhe o rosto com os lábios frios, beijou-a também em ambas as faces, guardou-lhe as mãos interrogando-a sobre a estranheza daquele despertar matinal.

“Não dormira com o cheiro das tintas, passara a noite em claro pensando na casa, na disposição dos móveis”, respondeu Sarita; e perguntou por Miss Kate.

— Foi às borboletas; ela e Diana.

A moça deu, então, alguns passos, penetrando no grande salão de trabalho, acumulado de móveis. Uma grande mesa de mogno, estilo borgonhês, Ducerceau, estava empilhada de livros; sobre um pequeno console Renascença um grande relógio de bronze, com uma cena troiana, marcava horas antigas. Amplas cadeiras medievais, esculpidas, com altos respaldos de couro impresso, carregavam pilhas de enófilos, rimas de brochuras; nos raios das estantes pretas a coleção mineralógica: pirites, topázios, ágatas, cristais e turmalinas.

Quadros em pilhas, feixes d’armas: clamores, adagas, punhais, lanças altas do Oriente, largas espadas dos tempos feudais e toda uma armadura fulgurante, o corpo da panóplia, encostada a um angulo; e flechas indígenas, arcos, zarabatanas, colares de dentes, tangas com pingentes de coco em forma de campânulas, tangapemas, remos.

Em linha, ao longo das paredes, um renque de quadros: uma cópia da Visitação de Zeitblom, um Couraceiro de Meissonier, um Chaplain, um Lhermite; telas de Castagneto, de Bernardelli, de Belmiro, de Parreiras, e, destacando-se risonhamente dentre todos pelo fundo claro, de fugitivos tons de rosa, um pastel de Villares, o retrato de Sarita, a cabecinha apenas, afogada entre as plumas brancas de um grande chapéu Empire, porque o busto era uma nevoa de musselina e rendas.

Sarita, que mirava tudo atentamente, calculando efeitos, passou ao quarto contíguo, a grande câmara de repouso. As janelas tinham densas cortinas que coavam a luz, vertendo uma penumbra de paz e de sono no grande leito de colunas torsas, sobre as quais repousava o balquino, forrado de seda escura, onde esmorecia uma linda alegoria: a Noite, nua, de olhos cerrados com um sendal que era a Via Láctea, esparzindo pelo espaço estrelas e sonhos. Mas os carregadores tinham despejado a biblioteca pelo soalho: havia montes de volumes, alguns rotos, outros escancarados, amarelecidos, brochuras esparsas.

Sarita, lançando os olhos pela sala, não pôde conter o riso, pasmada de que o padrasto tivesse podido dormir naquele desarranjo, donde fugiam assanhadas baratas e traças. Jorge apareceu então, e, sorrindo, pediu-lhe o plano artístico que ela imaginara toda a noite, na insônia que a enfeitara com os roxos crescentes das olheiras. Mas Sarita olhava em torno, o vestido levemente suspenso nas pontas dos dedos, saltava por cima dos livros, espezinhava folhetos, sem dar atenção ao padrasto que a acompanhava com o olhar cheio de ternura, como nos tempos em que ela, menina ainda, rolava o arco por entre os canteiros do jardim, vermelha, arquejante, os cabelos soltos e rindo cristalinamente.

— Descanse, não se incomode com o meu plano, havemos de executá-lo. Miss prometeu-me auxílio. E passeando os olhos: Você era bem capaz de viver aqui toda a vida nesta desordem; não era?

— E que melhor, minha filha? um tapete de sabedoria. Olha... e tomou um volume ao acaso, era de Letourneau: uma escada de filosofia para alcançar o leito. Subiria pelos pensadores — um passo sobre Santo Agostinho, um passo sobre Descartes, outro sobre Leibnitz, sobre Hegel, sobre Stuart Mill, sobre Schopenhauer, sobre Spencer, de sorte que, quando chegasse ao lençol, já estaria roncando... Que melhor? Riram, mas Sarita repelia com o pé os grandes atlas, achando impossível que um homem pudesse pensar em tão atabalhoada desordem e Jorge, sempre a rir, insistiu defendendo-se:

— Que o mundo havia saído do cháos.

E voltaram ao salão. Sarita passeava olhando ora os móveis, ora as paredes, preocupada com a “estética.” Jorge propunha:

— A grande mesa ao centro, em plena luz, bafejada pela brisa cheirosa, e em cima um grande vaso onde sempre houvesse flores frescas. As estantes, em simetria, duas a duas, em cada parede e, entre elas, uma coluna com um bronze, um console, um cachepot com uma dracena. A panóplia ao fundo para que rutilasse ao sol; ao alto, as armas indígenas e os quadros dispostos com arte, menos a cabecinha, risonha, essa iria para um cavalete de ébano, para que ele sempre a tivesse ante os olhos.

Mas Sarita, franzindo o sobrolho, sacudiu a mão nervosamente para que ele não a interrompesse. Olhava e teve um ímpeto de cólera, bateu o pé, trincou os lábios, amuada:

— Tantas janelas! Nem se podia arranjar aquilo com gosto. Eram janelas por todos os lados.

Mas acalmando-se, ficou de pé no centro da sala, voltando a cabeça de um para outro lado. Jorge contemplava-a extasiado e por fim atreveu:

— Ai a mesa. Vai admiravelmente! E como ela concordasse:

— Que remédio! Se não há outro lugar, sorriu satisfeito, exigindo que ela confessasse que não era tão destituído de gosto como parecia, visto que ela aceitava a sua ideia. Juntos, então, caminhando ao longo das paredes, lentamente, foram marcando os lugares dos móveis e dos quadros: “Aqui isto... Ali, aquilo.” Passaram à câmara e concordaram que o grande leito devia ficar ao centro e não junto à parede, encravado num canto, onde mal se podia ver o especioso trabalho das suas colunas e do respaldo embutido de marfim e bronze. E como procurassem um lugar para o contador, que Jorge exigia na câmara, Inocêncio apareceu à porta anunciando os armadores que iam para arranjar as cortinas e os reposteiros e o mais que fosse preciso.

III

Suspenso o último quadro, arranjado o último bibelô, Sarita parecia encantada com a casa, já afeita à melancolia silente do arrabalde. Pela manhã, em leves cassas, um grande chapéu de palha à cabeça, descia com a palheta ou com um volume. Mamoaselle arrebatava-a para o “bosque” e, à sombra das árvores, os pés na relva úmida e macia, debuxando trechos de paisagem ou traduzindo poemas, interrompiam-se, às vezes, para acompanhar o caminhar tranquilo dos insetos que iam e vinham pisando levemente as folhas, rútilos ao sol, como geminas. Voltavam refeitas, alegres: Mamoaselle carregada de flores, gabando a grande vida das coisas, o silêncio sugestivo das matas, e da pujança dos velhos troncos partia imaginando a assombrosa majestade das selvas virgens que orlam os rios caudalosos do Norte, onde ainda subsiste a inocência das eras barbaras:

— Oh! Como deve ser imponente o Amazonas, o soberbo Amazonas, com as suas florestas, com os seus rios largos e profundos como os oceanos! E confessava que não hesitaria em trocar, por algum tempo, a vida confortável da cidade pela maravilhosa e surpreendente aventura de internar-se, com uma caravana matas a dentro, por esses sertões maninhos onde vivem índios bravos, onde ainda não foi a cruz salvar as almas pagãs e reconciliar essa humanidade selvagem com o mundo civilizado.

Sarita sorria contando à escocesa casos cruentos de tribos antropófagas: expedições inteiras que haviam caído varadas pelas flechas, em pleno bosque, cidades arrasadas e a dificuldade das travessias nos rios encachoeirados. E acrescentava lendas, rindo do pasmo da governante que, seduzida pelos perigos, parecia desejar com mais ânsia essa partida sonhada para o coração da floresta, onde o boré ainda ruge proclamando a guerra.

Depois do almoço saíam à varanda e caminhavam, como a bordo, de um para outro lado, ao comprido, discreteando: a escocesa a falar dos parques floridos de Londres, dos tristes invernos e da miséria das cidades europeias, sempre a gabar a terra abençoada da América, enaltecendo os prados viçosos e o céu azul que não borrifa de neve as franças verdes.

Sarita ouvia-a rindo das dificuldades de expressão, da linguagem promiscua que ela usava confundindo, no mesmo período, o inglês, o francês e o português, compenetrada e grave. E ao refrescar da tarde recolhiam-se à sala do piano e, até à hora da toalete, soavam acordes dolentes de Chopin, de Beethoven, de Schumann ou altivos trechos de Wagner.

Bá ouvia. Encostava-se ao umbral da porta e, enternecida, acompanhava as grandes composições, gabando-as sempre — e que: “Nhanhan tocava de fazer chorar...” Sarita amofinava-se com os comentários da ama. “Não gostava de ninguém ali à hora da lição. Não estava tocando para ouvirem.” A negra saia resmungando.

À noite faziam música e Mamoaselle gemia sentidamente “romanzas” italianas, derreada, os olhos em alvo, procurando traduzir a paixão.

Jorge, a princípio o maior entusiasta das grandes sombras afáveis e do fresco arroio da chácara, mal levava os passos até junto da cerca. Raramente saia em passeio pelo jardim, indagando do progresso das mudas, se todas haviam vingado; e o jardineiro forçava-o a grandes giros em torno dos canteiros, apontando-lhe rebentos, gabando a terra.

À primeira luz, depois do banho frio, estendia-se na comprida cadeira com um livro, à espera do café e dos jornais, ficando esquecidas horas entretido com a leitura ou com as recordações amargas do passado. Sucedia-lhe, não raro, demorar em uma página indefinido tempo; lia-a e, ao volta-la, surpreendia-se, tão alheio estava ao episódio que nela havia como se o não tivesse lido e recomeçava, combatendo essa espécie de amnésia com aturado esforço de atenção, para repelir o devaneio em que se perdia tão repetidamente, chegando à inconsciência absoluta.

Ele mesmo queixava-se:

— Às vezes não sei que leio. Volto páginas e páginas maquinalmente, e quando chego ao fim do capítulo acho-me vazio, ignorante completamente do assumpto. E’ a imaginação que me baralha o espírito. Se me concentro vem logo esse demônio do Passado perseguir-me.

A vida inerte concorria para esse afan incessante da imaginação, que nele vivia em constante exercício. De longe em longe escapava-se-lhe da pena um artigo, uma crônica, um estudo sobre o “antigo.” Enquanto compunha parecia-lhe tudo magnífico, perfeito na essência e na forma, nobres períodos, originalíssimo remate e sobretudo a pureza da linguagem castiça e enérgica; mal terminava, porém, lendo, entrava a descobrir defeitos, asperezas, incorreções, galicismos, e repelia, contra as opiniões de Sarita e de Mamoasellc, que sempre achavam os trabalhos “excelentes”.

Não os publicava; um apenas, que lhe foi arrancado das mãos por Cesário Pires, saiu na primeira página de um jornal. Tratava de Nero e outro diário referiu-se, no dia seguinte, ao pseudônimo Salvaterra com que Jorge assinara o artigo. Sua alma, amolgada pelo sofrimento, estava de todo esterilizada: sem ambições, sem amor, sem esperanças, o que ainda a fazia vibrar era Sarita com a meiguice dos seus carinhos, e quando Mamoaselle notava que “até o sorriso do doutor era triste...”ele explicava dolorosamente, sem desvelar a sua chaga: “É como o fogo fátuo, Miss: lume, mas de sepultura”.

Acessos de melancolia prostravam-no em profundas cismas estéreis. Encerrava-se fugindo aos olhos de todos, alienando-se da vida para ouvir, no silêncio, as pancadas do coração porque, só assim conseguia aliviar-se dessa estranha moléstia que ele chamava a sua “intermitência de loucura”.

Consciente da sua constituição de enfermo, classificava-se entre os tristes da grande família dos nevróticos, tinha a sua psicose evidente e dela falava em palestra com Cesário Pires friamente como se tratasse de outro. Sobre a melancolia, explicando todos os fenômenos, dizia:

— Pressinto a aproximação desse estado nervoso: posso anunciar o momento preciso da minha crise. Quando o demônio triste empolga-me experimento sensações morais, se assim ouso exprimir-me, tão extravagantes que, para dar ideia exata do que sinto, só recorrendo á analogia poderei conseguir fazer-me compreender: É como um empanturramento cibarico o que sinto no espírito: todas as minhas faculdades ficam constrangidas à pressão de uma ideia informe, complexa, confusa, embrionária, que se põe a rolar no meu cérebro como um alimento, que o estômago repugna, rola entre as paredes andadas, provocando náuseas. É exatamente a impressão que tenho quando caio nessa pesada inércia. Procuro expelir a ideia, evito-a, desvio, com esforço, o pensamento, mas tudo é baldado — a ideia impõe-se, cada vez maior, crescendo, inchando, por assim dizer, até que, abafando toda a vida espiritual, deixa-me sufocado sob o seu peso, num estado de imbecilidade e de abandono que vai além do cretinismo. Sinto a ausência d’alma e esse abandono é que me aflige. Fico só, sob o domínio da picuvre que me vai sugando todas as faculdades, e conservo-me nessa espécie de anestesia imbecil, longo tempo. Às vezes choro... por que? Se não penso, se não sinto, se não sofro! Uma lágrima desce-me dos olhos e cai sem que eu possa dizer a sua origem: de que saudade saiu, que agonia a derivou? Pouco a pouco a compressão vai desaparecendo — aspiro, sorvo ansiosamente o ar, como quem para de uma longa carreira, começo a ver e a sentir, ouço e então recomponho o tempo que passou e, francamente, chego a ter pena de mim. Mas, ainda assim, é preferível esse estado de inconsciência ao outro... E, calando-se, mergulhava em meditação até que Cesário Pires, sempre jovial, apesar do seu pessimismo negro, arrancava-o, com uma fanfarronada “à espessidão moral”.

— A tristeza era uma muralha que vinha abaixo com uma boa pilhéria, com uma boa sátira; bastava uma página de Rabelais para aluir toda essa cinta constritora da alma. Ele que tivesse sempre à mão, como um calmante, o seu Rabelais, ou esse volume de chalaça escancelada do imortal Tabarin. Ou então que voltasse os olhos para o mundo e contemplasse a grande imbecilidade humana — esse estrume que há de gerar a maravilhosa flor do futuro.

Sarita, se lhe constava que Jorge caíra com os seus blue devils, como dizia Mainoasclle, descia para exorciza-lo com a algazarra jucunda do seu bom humor.

Tomava-lhe as mãos, afagava-lhe a cabeça e ria, encostando o seu rosto macio e morno à face fria do padrasto, procurando descobrir em casos passionais a origem da melancolia, e ria mais alto, ria:

— Apaixonado! com tantos cabelos brancos... Quem seria a formosa dona que assim o trazia amofinado?

Ria e, insistindo com ele, arrastava-o para a sala do piano e, chamando a professora, atordoavam-no com as “novidades musicais”, cuja execução Sarita interrompia às vezes para rir do ar sisudo de Mamoaselle, que andava com os olhos do teclado para a pauta com tal ligeireza que os óculos saltavam-lhe no nariz adunco.

Bá intervinha também, discretamente, com os olhos sempre cheios de piedosa ternura, recordando as dores antigas, cuja lembrança era a causa da tristeza de “nhô-nhô.” E lastimava-o “Coitado!” ajuntando que “havia dias em que ela também ficava assim triste, só com vontade de chorar, quando se lembrava de Sinhazinha.” Sarita carregava o sobrolho, fazendo-lhe sinais para que se calasse. A negra estendia o beiço, sorria e ficava a olhar enternecidamente, em silêncio, extasiada nas graças de Sarita, rindo quando a moça, esticando-se no banco, fazia caretas à Mamoaselle, que voltava páginas de álbuns, procurando músicas.

IV

Cesário Pires era a “alma jovial” da casa. Assíduo, tinha o seu lugar à mesa e, como vivesse a pregar o celibato, Jorge, para tenta-lo, colocava-o sempre junto de Maimoaselle, a quem ele chamava: “o breve contra a luxúria”.

Homem de grandes estudos, vivia preocupado com a história e com a filosofia, fontes de todo saber e, a propósito de tudo, com grandes e arremessados gestos, fazia preleções defendendo caracteres, refutando teoristas e mostrando a niilidade de tudo: beleza, fortuna, força, tudo poeira, só o espírito subsiste através dos tempos como a alma imortal das gerações.

Quarenta anos, alto e forte, calvo, densa barba grisalha.

Adorava a mulher como um lindo encanto para os olhos. As crianças, apesar dos seus brados, cavalgavam-lhe as longas pernas e, descrevendo a marcha dos hunos selvagens, sobre o ocidente, ele sacudia-as, truculento, bramindo, interrompendo-se de vez em quando para beijar as faces bochechudas do petiz que o ouvia.

Mamoaselle achava-o admirável e mais cresceu o seu espanto quando, uma tarde, falando da vida serena e de estudo que levava, ele disse, que nas tábuas da sua cela jamais roçara fímbria de vestido, apenas uma saia de zuarte por lá aparecia, que era a de uma velha espanhola, já avó, que mudava a água das bilhas e lhe escovava a roupa... Era um puro.

Vivia no meio da civilização devassa como um monge nas covas da Thebaida enlevado em pensamentos, só com um vício — o fumo e esse, segundo os livros, não levava as almas à pena do inferno. Arrasassem os mundos, apagasse Deus o sol e deixasse-o com a sua cela, os seus livros e uma lâmpada que ele não daria pelo cataclismo.

Sarita respeitava-o, zangando-se, porém, quando ele, em assomos, quase a berrar, como se vociferasse indignado, pedia-a em casamento. Mamoaselle sorria. Jorge oferecia-se para padrinho e a donzela, amuada com a insistência, jurava que: “Preferia a morte a casar com um velho pelado”.

A pretexto de convalescer de uma grave enfermidade moral, o espiritismo, adquirida num lote de antigos livros arrematados no leilão de um misantropo, Cesário Pires aboletou-se nos aposentos de Jorge, estirando, diante do contador, um leito de campanha, onde curtia a insônia “desinfetando” o espírito com altas doses de racionalismo puro. Jorge insistia com ele para que se instalasse definitivamente, oferecia-lhe com modos independentes e sossegados, onde poderia meditar com calma a sua doutrina social, mas o “filósofo” recusava:

— Não podia viver muito tempo no mesmo sítio, à mesma sombra. Sentia necessidade de caminhar, de mudar. A vida sedentária dava-lhe tédio. E dizia: O mundo é como o grande leito de um rio, nós somos a água corrente, precisamos andar seguindo o grande curso que leva à vastidão, ao oceano, sob pena de ficarmos apodrecidos, estagnados como a vasa dos pântanos que os limos escurecem. Não admitia que um homem pudesse passar dois invernos ao calor do mesmo fogão.

Todas as manhãs deixava o leito com grandes ideias de trabalho, agitava-se dentro do robe de chambre, expunha os seus planos e saía para o jardim ruminando-os, analisando-os, joeirando-os; pedia tiras, fumo e paz, cravava os cotovelos na mesa e ficava mergulhado em meditação, procurando a grande frase com que devia abrir o capítulo. Erguia-se de repente, gesticulando, furioso: “Que não estava disposto; sentia-se bronco como uma rocha” e recomeçava os passeios.

Jorge ria e quando falava à Mamoaselle das excentricidades do “filósofo”, lamentava que um “homem daquela ordem fosse um estéril. Tanta seiva perdida!”

Nessa intimidade estudiosa os dois homens passavam os dias discutindo civilizações e ritos dos velhos tempos, comparando os contemporâneos de Platão, fortes e generosos, com os produtos enfezados do século ou iam para o bilhar, onde Cesário experimentava efeitos admiráveis, procurando aplicar às tacadas princípios infalíveis de matemáticas. Em cima, Sarita, prostrada de tédio, queixava-se da companhia insípida de Mamoaselle, sempre a citar preceitos de higiene, ginástica, passeios lentos, leituras sãs, boa carne sangrenta. “Ela também era moça, tinha amigas, não podia estar ali metida como uma monja, só a martelar no piano e a ler choradeiras de Moore. Podia sair com Mamoaselle...” Jorge pasmou daquelas palavras:

— Como se ele, algum dia, lhe tivesse proibido sair. Era natural o tédio de que ela se queixava. Ele mesmo não prendia Cesário Pires? Não retinha o filósofo para acompanha-lo? Que saísse, que convidasse as amigas, até ele lucraria com isso. E Bá, quando Sarita anunciou que ia à casa de Heloisa, instou com ela para que trouxesse a moça: “Tão engraçada! Tão alegre! Já estava com saudade dela, coitada!”.

E o rumor apareceu na casa quando as Moretti, com estridentes gargalhadas, entraram pelo portão encantadas, gabando a beleza do sítio, o viço das flores, a nobre elegância do prédio: um palácio!

Cesário refugiou-se entre as árvores, nervoso, irritado com a alegria daquelas raparigas, que deixavam gargalhadas por onde passavam. “Retumbantes senhoras!” E lamentava os desgraçados que tivessem de levar ao templo aquelas alacridades sarapintadas de sardas. Mamoaselle, que as achava impossíveis, desceu ao jardim com um volume e isolou-se enquanto Sarita mostrava a casa às moças que passavam casquinando, com olhares para todos os lados, curiosas, trefegas, sempre rindo.

Cesário, que já havia atravessado a cerca, voltou precipitado, esbaforido, para pedir a Jorge que não as deixasse entrar nos aposentos que ocupavam. Aqueles recantos de pensar ficariam de tal modo impregnados de barulho que eles nunca mais conseguiriam silêncio para o estudo e para o sono. Aquelas mulheres, de uma jocundidade bravia, infestavam tudo de alarido.

Sarita subiu com Heloisa e, enquanto as duas menores, confiadas à Bá, empanturravam-se à mesa, as duas, misteriosamente encerradas, confidenciavam, e para que descessem foi necessário que Bá batesse à porta do quarto, chamando-as em nome de Jorge que as esperava para ouvi-las ao piano.

Desceram risonhas, abraçadas, cochichando, e Heloisa, encontrando Jorge, recriminou-o, levando à conta da sua tirania a palidez de Sarita; e como ele protestasse, querendo saber o motivo daquela acusação, ela envolveu-o num olhar meigo e voluptuoso, chamando-lhe baixinho, mimosamente “Mau” e, como se lhe quisesse atirar aos olhos as palavras, avançava com a cabeça dizendo:

— Porque a prende; porque não a deixa sair quando sabe que nós, moças, temos necessidade de... ver... e de ser vistas... Só as freiras vivem emparedadas.

— Mas não é por minha culpa que Sarita não sai.

Heloísa voltou-se para a sua amiga e encarando-a:

— Então és tu que não me queres ver? És tu? Pois sim. Olhou-a muito e, de repente, num frenesi, tomou-lhe o rosto com ambas as mãos e beijou-a na boca balbuciando:

— Não creio. É ele que não te deixa sair, não é? E logo, franzindo o sobrolho, com um pequenino amuo:

— Ora, doutor, não me iluda: a culpa é sua. É o senhor mesmo que a prende. Jorge sorriu novamente, vexado, e Heloisa, avançando:

— Pois quero ver. Se o senhor não a quer presa, permita que ela venha passar o domingo comigo. Dorme hoje lá em casa e volta amanhã. Permita, se é capaz? E olhava-o a fito, como a desafia-lo.

— Se ela quiser, minha senhora... E falando à Sarita: Queres ir? A moça, apesar do olhar estranho do padrasto, balbuciou:

— Vou. E docemente, passando-lhe os dois braços pelo pescoço: Mas não te zangas?

— Zangar-se? Mas não tem razão. Zangar-se por quê? Exclamou Heloisa, e Jorge, contrafeito:

— Sim, zangar-me por quê? Vais com as tuas amigas.

Tanto bastou para que irrompessem estridulas gargalhadas e, como a tarde caía, Heloisa passou o braço pela cintura de Sarita e arrebatou-a para que se vestisse: “Podiam chegar ao Catete ainda com dia.” E subiram gárrulas.

Jorge recolheu-se aos seus aposentos, mal humorado, taciturno, e pôs-se a passear ao longo da sala vasta, torcendo nervosamente o bigode, os olhos no soalho. Sentia um estranho sentimento, misto de abandono e de despeito, amargura e ciúme. Pensava em Sarita com sofrimento, pressentindo a grande falta que lhe faria quando, ao anoitecer, na hora fresca, aromal e melancolia do crepúsculo, não a encontrasse a seu lado, não a sentisse, não lhe ouvisse o rumor dos passos. Trazia-a para os olhos e, caminhando, via-a como num fundo de névoa, sorrindo com os seus grandes olhos luminosos, achegando-se e diluindo-se levemente como dilui-se no ar um nimbo de fumo tênue. De quando em quando chegavam-lhe aos ouvidos, como em lufadas, os risos cristalinos das mocinhas. Irritava-se ainda mais como diante de uma insistente ironia e a sua fronte franzia-se, descarregava-se, acusando em ondas a procela do seu espírito. Cesário, que entrara sorrateiramente à cata de um livro, cuja leitura concordasse com o sítio em que se refugiara, que era um silvado no mais fundo do bosque, achou-o caminhando, a martirizar os bigodes, e estacou esgazeado:

— Que é isso? Que tens, homem? Buscas alguma ideia ou andas a estudar a mecânica dos passos?

Jorge encolheu os ombros, caminhou, mas, já no extremo da sala, encostado a uma estante, voltou-se cruzando violentamente os braços:

— Que há de ser? Essas meninas...

— As tais? Que te fizeram? E Cesário encarou-o com uma grande mobilidade de fisionomia, cheio de esgares; depois, num salto repentino, olhos esbugalhados, ficou quase de cócoras, um dedo hirto mostrando o soalho:

— Elas estiveram aqui!?

E, erguendo-se molemente, meneando a cabeça, pronunciou com lástima:

— Ah! Bem me pareceu ao entrar... Bem me pareceu! Já não há sisudez nestes muros honestos.

Recolheu-se, mas logo investindo irado:

— E porque recebeste essa horda aqui dentro?

Que há de ser de nós? À noite, quando fecharmos as portas, hás de ouvir estilhaços de gargalhadas trilarem como gritos em todos os cantos: nas estantes, nos quadros, na mesa, nos lençóis, nos teus bigodes, dentro de ti, dentro de mim. Vai ser o diabo! Vai ser o diabo...

Jorge mal conteve o riso diante da figura estranha de Cesário, que coçava desesperadamente a calva com todos os dedos recurvados em garra, girando num pequeno círculo, a rosnar contra a profanação irreparável daquele tabernáculo de ciência e de meditação, mas negou:

— Aqui não entraram.

— Então?

— É que me levam Sarita. Convidaram-na para passar o domingo com elas e lá vão todas.

— E deixas?

— Que hei de fazer? Sarita é que ainda me não compreende. Fiz o que pude para que ela percebesse a minha má vontade, mas... evitou os meus olhos e já está lá em cima, com a outra, vestindo-se.

— Mas, que diabo! Também as relações não são tão íntimas assim. Fosse comigo...

— Ora, que havias de fazer?

— Que havia de fazer? Agachou-se com as mãos espalmadas nas coxas: Eu? Dizia-lhes na cara: Não e não! E depois? Uma família de casos excepcionais, desde a mulher, espécie de odre de óculos, até esse idiota melômano, o tal Cosme, sempre a arranhar coisas no violino...

— Mesmo quanto à moralidade, bem sabes que as Moretti não têm a reputação imaculada, e essa moça...

— É famosa! E Cesário assobiou tocando castanholas, o braço muito alto. Famosa, meu amigo. Nunca lhe acompanhei os passos, mas, muita vez, caminhando para tua casa, encontrei-a a falar com pelintrotes. Não é relação para a menina, não é. Queres que te dê um conselho? Adoece. Já que não tens coragem para fazer as coisas francamente, busca meios falsos: adoece, deita-te e fica a meu cuidado o resto. Vou lá ao grupo e brado a espalhar que estás com febre e vômitos. Que diabo! A moléstia pode vir de um momento para outro. Vamos, estende-te e toma ares de sofrimento. Mas numa inspiração: E a Cegonha?

— Não vai. Detesta as tais moças; creio até que nem lhes fala. Ah! Se ela fosse...

— Mas é um desaforo! E consentes? Que diabo fazes da energia, homem?

Miravam-se os dois quando Bá apareceu à porta anunciando que “as meninas já iam.”

Jorge deu algumas voltas rápidas, arranjou papéis sobre a mesa, tomou um charuto, trincou-o, e como Cesário desaparecesse pela porta da câmara, chamou-o.

— Não, não, disse de dentro o “filósofo”: reservo a noite de hoje para grandes estudos. Tenho uma excelente ideia que começa a germinar, não quero sujeitar esse rebento intelectual à saraivada jucunda. Vai tu e desculpa-me com a menina. Olha, podes dizer-lhe que estou no bosque colhendo coisas... Vai... Vai! e calou-se. Na câmara houve um grande rumor de livros que rolavam justamente quando Heloisa e Sarita apareceram à porta.

Jorge saiu a recebê-las, compondo uma fisionomia jovial e satisfeita e, como visse Sarita num pesado costume de pano escuro, estranhou tanta severidade “imprópria de tão linda tarde.” A moça, porém, desculpou-se com o frio. “Iam chegar à cidade à noite.” Houve um curto silêncio. Heloisa ajeitava o véu no chignon e Jorge, aproveitando a sua distração, lançou à Sarita um duro olhar, cheio de recriminações, meneando levemente com a cabeça; a moça baixou os olhos e, girando com um pé no tacão da botina, a brincar com a sombrinha, sorriu corada. Mas Heloisa, ainda com os braços erguidos, ajustando a gaze, acudiu: “Que deviam ir seguindo para o portão onde estava o jardineiro á espera do bonde.” Jorge adiantou-se e, baixinho, fez uma pergunta à Sarita que, sem levantar os olhos, abandonou-lhe nas mãos a carteirinha. Jorge arredou-se a pretexto de procurar o gorro na câmara para acompanhá-las ao portão. Bá irrompeu tagarelando:

“Que não agarrassem nhan-nhan.

Que era só por um dia, vissem bem! ”E Sarita recomendou-lhe:       “Que não se esquecesse de mandar Inocêncio, muito cedo, levar-lhe os vestidos, porque não havia de passear com aquela roupa.” A negra tranquilizou-a e, toda cuidados, ajoelhou-se para sacudir-lhe a barra do vestido.

O jardineiro, do portão, anunciou o bonde. Foi um alvoroço. “Paizinho, aí vem o bonde! Aí vem o bonde, doutor! Adeus! Adeus!” Jorge saiu da câmara a correr e, mal o viram, as moças precipitaram-se para o jardim. Sarita esperou-o, e recebendo a carteirinha, levantou levemente o véu e beijou-o:

— Então posso ir buscar-te amanhã, não é assim?

— Amanhã.

Bá seguia à frente com as Moretti e, à distância, os dois caminhavam juntos, de olhos baixos, mudos, por entre as rosas abertas, que tremiam nas hastes, acariciadas pela brisa da tarde.

Jorge, descobrindo um lindo botão de púrpura, torceu-lhe o caule à pressa, e, arrancando-o, ofereceu-o à Sarita. Ia pelos canteiros em procura de outros, quando o tilintar do bonde, já próximo, pôs em alvoroço as moças: “Adeus, doutor!” e falavam todas ao mesmo tempo, estendendo as mãos: “Então, até amanhã!” E Heloisa adiantando-se, sempre a sorrir: “Fique descansado. Teremos todos os cuidados com ela. Vai dormir comigo”.

Jorge teve um sorriso contrafeito e curvou-se apertando a mão que a moça lhe estendia: “Adeus, Bá!” bradaram todas, e a velha negra ia de uma para outra, agachando-se para abraça-las pela cinta. O bonde apareceu e o jardineiro, que saíra à rua, levantou o braço, acenando para que parasse. Jorge levou-as a embarcar e, quando Heloisa impeliu Sarita para o estribo, ele perguntou de novo, com tristeza:

— Então até amanhã à tarde, não?

— Sim, até amanhã, paizinho.

Jorge recolheu-se e andou rondando merencoriamente por entre os canteiros, parando de momento a momento diante de algum arbusto à olhar, a mirar, visivelmente distraído, o espírito longe. Por fim seguiu em procura de Cesário para desabafar com ele, mas Mamoaselle, que passeava ao longo da varanda, chamou-o:

— Senhor doutor...

Ele levantou os olhos e vendo-a:

— Oh! Miss. Boa tarde! E Miss Kate, debruçando-se à balaustrada, indagou:

— Se as senhoras já haviam seguido?

— Sim, Miss: seguiram... E por que não foi, Miss?

— Eu!

— Sim...?

— Oh! fez a escocesa como diante de uma proposta indecorosa. Sou muito esquisita, doutor. As moças aborrecem com razão a minha companhia. Prefiro estar aqui com os meus livros. Acho muito melhor a paz deste lugar. Demais essas moças tratam-me com muita cerimônia, todas as suas palavras são segredos para os meus ouvidos porque não as ouço — perto de mim não falam, transmitem de ouvido a ouvido o que pensam. Para que embaraça-las com a minha companhia? Miss Sara garantiu-me estar de volta amanhã... Não lhe disse a mesma coisa?

— Sim, Miss, amanhã. Vou eu mesmo busca-la.

— Então? E, depois de uma pausa curta, a escocesa ajuntou com malícia: Mesmo o doutor não está muito satisfeito com o furto que lhe acabam de fazer?

— Francamente, Miss, não me agrada a companhia dessas moças para Sarita: são desembaraçadas de mais, não lhe parece? A escocesa acenou afirmativamente, arregalando muito os olhos.

— Muito desembaraço... E riu mostrando os dentes, grandes como favas.

— Enfim... fez ele resignado, encolhendo os ombros, como é por um dia só...

— Sim, por um dia... Jorge caminhou alguns passos e, já quase à porta dos seus aposentos, levantou os olhos de novo para a varanda:

— Não desce, Miss? Está linda a tarde e há rosas admiráveis.

— Sim, doutor; vou dar o meu passeio pelo jardim. E, deixando no banco o volume que tinha na mão, chamou a cadelinha: “Diana! Diana!” e desceu com ela, lentamente.

V

Cesário, caído sobre um grande atlas, aberto em cima da mesa, passeava o longo e nodoso dedo pela carta, resmoneando. Ergueu a cabeça sentindo os passos de Jorge.

— Estamos independentes, hein? Foram-se as gárrulas? Pois, meu amigo, grandes e verdadeiras foram as palavras que eu aqui te disse: tenho os ouvidos atordoados ainda e atenta bem a ver se não escutas, de quando em quando, o eco abominável das gargalhadas daquela gente. Não sentes? São de assombrar, palavra! Nós precisamos recitar aqui dentro a Oração de Demosthenes ou alguma coisa de Cícero para purificar o ambiente. Dize-me: tens alguma carta do mundo antigo? Ando aqui a fazer o roteiro dos arianos, preciso disso para a minha obra e não encontro nesta carta sórdida senão coisas de ontem, discriminações pulhas de lugarejos vis, sem história, sem tradição, sem passado — colônias inglesas, terras esterilizadas pela cobiça e pela crueza dos homens e dos tais sítios nem menção. Vê se descobres por aí no teu cabedal alguma coisa. Se não tens dize de uma vez para que eu desça. É possível que encontre na Biblioteca o que preciso. Ainda assim prefiro que procures porque, como é coisa preciosa e útil, de certo não será fácil achar nas estantes da Alexandria indígena.

E curvou-se de novo, mas, sempre passeando o dedo pela carta, interpelou o amigo: E a Cegonha, hein? Não foi; já a vi, pensativa e murcha ali na varanda, a buscar sonhos no céu com os óculos radiantes. Mulher forte, hein?

— Detesta as Moretti: julga-as como eu...

— Ah! moralidade tem ela, isso tem. É mulher para exemplo. Deviam cita-la num Tesouro das meninas como modelo de altas virtudes, a fealdade inclusive, que é a maior das virtudes, porque repele o inimigo. Mas dize, como há de ser? E o meu roteiro?

— Que queres, não tenho livro que te sirva.

— Diabo! E eu que tencionava começar hoje a minha obra. É verdade: e se eu começasse pelo segundo capítulo? Há exemplos... Eu, que aqui estou, nasci por um braço... Há quem tenha nascido pelos pés, o Cosme por exemplo, deve ter nascido assim. Hein? Que dizes? Se eu começasse pelo segundo capítulo? E erguendo-se: Mas fala, homem... Estás mais triste do que a escocesa. Fala e trata de acender o gás ou de fazer com que o acendam, porque já não vejo nada na Ásia: tudo é sombra. Escuta: e o Mommsen? Tens aí o Mommsen?

A sala clareou subitamente, de um jato, e, em contraste com a luz forte do gás, os últimos lampejos do crepúsculo, no jardim, como que ainda mais amorteceram. Cesário passou a mão pela calva ebúrnea e, espreguiçando-se, bocejou estrondosamente:

— Diabo! estou com uma famosa courbature. Dobrou-se para trás, as mãos nos rins e, firmando-se, estendeu o braço para a chama loura do gás: Bem andou Jeová criando a luz antes de mais nada. Entanto há sua grande obra alguma coisa anterior ao Fiat... a avareza, por exemplo... que dizes? Essa claridade entra-nos pelos olhos e vai até o mais fundo do cérebro como o sol atravessando os vidros de uma claraboia. E ainda ha luz lá fora.

Lançou o olhar ao exterior e, voltando-se:

— Dize, que tal achas o pensamento que um dia procurei apertar em um soneto — e avançando com grandes gestos dramáticos, foi até a porta e levantou os olhos para o céu de opala: Ouve lá, não está em metro ainda. Digo-te a coisa como a recebi do gênio. A cena do soneto simples, tristonha: um crepúsculo. Eu digo então: Expira o sol! E atirou o braço esticado para o teto: Expira o sol... e Deus! ... arma no céu um cata- falco: a noite, trazendo para cirial do morto o plenilúnio... Que te parece? indagou e, fitando-o com grandes olhos: Mas que tens, homem? Estou aqui a falar-te como Apuleu aos bárbaros. Que tens? Jorge caminhava ao longo da sala, as mãos para as costas, parando, de instante a instante, para ouvir o “filósofo”. Que tens?

— Estou aborrecido, contrariado.

— Com a saída da menina? Não te preocupes. Descansa. Não lhe pegam os vícios das outras. Lembra-te da Marina do mestre. Onde é que Péricles a encontra? Num alcouce infame e retira-a pura, como se retira o lótus d’agua pútrida. Não te preocupes. Vamos cuidar de atravessar estas horas de sombra a rir. Queres que te diga? Se algum dia eu procriasse meus filhos haviam de conhecer tudo — filhos e filhas, tudo! A menina é sisuda, e, quando ela chegar, entrega-a á Cegonha para um grande banho moral.

Não te preocupes. Anda dai. Olha a tarde, a linda tarde que vai lá fora. Aposto que a Cegonha anda a gozá-la. Vem dai. E voltando- se de golpe: Afinal nem julgaste o meu pensamento. Que tal?

Jorge encostou-se à mesa e, brincando com a espátula de marfim, enfezado, deixando cair lentamente as palavras, disse:

— Nada me irrita tanto como essa amizade de Sara. Tenho insistido com ela para que vá, pouco a pouco, evitando tais relações... mas qual! É pior. Não a contrário, bem sabes; faço-lhe todas as vontades, basta, porém, que eu demonstre que não me agrada isto ou aquilo para que ela insista caprichosamente. E se me oponho, são maus modos, choros, não quer comer. Afinal parece que devo merecer dela alguma coisa.

— Mas vem cá, não te aflijas, isso não tem valor. Não consintas mais, aí tens. É dizer francamente, na cara, quando elas aqui tornarem com convites: Não! Não! E não! És pai, estás no teu direito. E passando-lhe um braço pelo ombro: Mas vem cá e sê franco: Tu o que sentes é falta da menina, e é natural: criaste-a. Mas meu amigo, isso é bom em parte para que te vás acostumando, porque, afinal, ela não há de ficar solteira toda a vida. E quando casar?

Houve uma pausa. Jorge afastou-se da mesa e, passando a mão pelo rosto, ficou de pé no meio da sala, a olhar a panóplia que rebrilhava à luz. Voltou-se por fim e, como em plangência, disse:

— Ah! Bem, quando casar! ... Mas vê-la em companhia de tal gente!? Enfureceu-se: E não sei que mais hei de fazer para que essas senhoras compreendam que não as tolero: evito-as, pouco lhes falo quando as encontro. Ainda hoje, viste? Passaram aqui o dia e eu deixei-me estar a ler. Não sei mais que hei de fazer. E caminhando, a brandir o braço: Não as aturo, fazem-me mal. No Catete, enquanto lá estivemos, nunca as visitei e elas não me saíam de casa perturbando o meu trabalho e a minha paz. Deves lembrar-te?

Cesário sentara-se num pliant e acompanhava com o olhar os passos do amigo. De repente, frenético, estrincando os dedos das mãos, bramiu:

— Pois, meu caro, com tal gente nada de eufemismo: não compreendem? É dizer-lhes a coisa francamente. Forcejou nos dois braços e, escorregando pelo linho, levantou-se pachorrento: É dizer-lhes francamente.

Inocêncio apareceu à porta e, antes que falasse, Jorge despediu-o com um gesto: Já vamos; e para Cesário:

— É o que ainda faço, palavra de honra. Demais é até incrível o que elas fazem com essa senhora...

— Com a Cegonha? Qual! ela não dá por isso: é fria, não tem nervos. O que ela quer é que a deixem em paz. Pensas que se zanga? Ora!... E travando-lhe do braço berrou-lhe ao ouvido: Não tem nervos! E noutro tom: Vamos jantar... Vamos, e pelo jardim, porque a escocesa deve andar por lá extasiada, e assim, depois de nos deliciarmos com um pouco de sublime, vamos preparados para mirar-lhe os ângulos da cara macerada. À porta Cesário estacou subitamente, apontando para o jardim: Olha, que te dizia eu? Olha lá... não vês a sombra esguia da Miss? Que te dizia eu? E, ganhando o jardim, o “filósofo” levantou os braços para o céu límpido: Mas admira! Admira! Ha lá céus que se comparem a este? e luares...? Qual Nápoles, qual nada! Céu é isto! E como a escocesa viesse perto, Cesário saudou-a: Good evening, Miss...! E ela, de longe, com um risinho, correspondeu: Good evening!

Mamoaselle tomou a frente e subiu as escadas, rija, ereta como um autômato. Cesário, de braço com o amigo, sussurrava:

— Olha bem... Vai ali um admirável tipo étnico. Dize se por esta mulher um Spencer não reconstituiria a raça dessa grande mina de John Buli, como os naturalistas, com um osso, reconstroem o arcabouço de uma das bestas colossais das eras pródigas, anteriores ao banho universal. Mas olha bem. Ela vai ali para o jantar com a mesma serenidade iria com que os homens rijos do seu país vão para os gelos ignotos ou para os altos sertões da Núbia.

Miss chegara à varanda e, voltando-se, lançou os olhos ao céu:

— Esplendida noite!

— Admirável, Miss! E, já no alto, as mãos nos flancos, o olhar erguido:

— Lembra-se, Miss? as lindas frases do idílio entre Lourenço e a filha do Judeu, no Mercador de Veneza? quando, olhando o luar, entram à recordar noites de amores?...

— Sim, sim... e Mamoaselle risonha, inflando as bochechas, com uma voz máscula e cadente, recitou:

The moon shines bright: in such a night as this...

Mas Cesário interrompeu-a delirante:

— Isso! isso! Grande memória, Miss! É fenomenal! Estupenda memória! E, como em monólogo:— The moon shines bright... Exatamente. Mas é admirável! Jorge recostara-se à balaustrada. Miss, de olhos altos, contemplava o luar e Cesário, em pequenos passeios, as mãos para as costas, repetia baixinho: The moon shiucs... Súbito, porém, como parasse diante da porta da sala iluminada, lembrou: E o jantar? Estamos aqui em hipnose e a sopa esfriando. E, entrando, não se conteve:Mas que memória

Miss! Mamoaselle sorria.

Folhagens e flores em grandes vasos alegravam a mesa arranjada caprichosamente, como para um festim, debaixo do grande lustre, o “alampadário” como dizia o filósofo que, de vez em vez, em assomos de entusiasmo, lamentava ter nascido em tempos tão vis, sem arte, sem bravura, sem cavalheirismo e, gesticulando para o bronze, saudava-o como um representante da arte pura, antes da invasão do mercantilismo na estética.

Jorge e Cesário ocuparam cadeiras ao lado de Mamoaselle que se sentara à cabeceira.

O copeiro serviu a sopa e, à primeira colherada, Cesário formulou as bases de uma futura alimentação reconstituinte e breve, tendo por base a peptona. E explicou:

— O homem é um animal superior, o primeiro na escala zoológica, deve distinguir-se dos ínfimos no que há de mais material no mundo: a mastigação. É horrível. Os dentes são apenas ossos ornamentais. Foram, a princípio, armas de defesa, porque tenho certeza de que ainda havemos de chegar à prova de que, antes da pedra lascada, o instrumento de que fez uso o primitivo foi o dente — as lutas eram corpo a corpo, dente por dente. O homem, por uma lei fatal de imitação, começou a seguir o exemplo do beluino: a rasgar a carniça com a dentuça, e nós ainda hoje procedemos como os maiores e como os ursos das cavernas. Miss, sempre extasiada, admirando as palavras sonoras do “sábio”, sorria com enlevo demorando as colheradas e, para que Cesário continuasse o jantar, foi necessário que Jorge interviesse:

— Não comes, Cesário? Vê se concilias a palestra com a sopa que já deve estar fria.

Cesário baixou a cabeça, sorveu a sopa em silêncio e houve uma grande pausa. O copeiro retirou os pratos e Cesário, esfregando a boca com o guardanapo, fez sentir a ausência de Sarita:

— Se ela aqui estivesse já nos tínhamos travado em alguma discussão. Faz falta. Mamoaselle correu com os olhos rapidamente de um a outro. Jorge tamborilava com um garfo. O “filósofo”, observando que as suas palavras não achavam echo, enquanto lhe serviam o peixe lamentou:

— E dizer que isto é irmão de Afrodite...

E partindo o pão: Sou um resistente, o que me vale é o estomago, nele é que reside a minha força e o equilíbrio do meu bom humor. Queres saber, homem de ceticismo e tédio, queres saber por que te vêm chegando as rugas e por que estás com a formosa cabeça mais alva do que a Jung-Frau? É porque maltratas o órgão. Jorge negou:

— Não, meu amigo, não queiras levar à conta da minha dispepsia o que é obra exclusiva do tempo, porque, afinal, com quarenta e seis anos, que queres? É natural que as rugas apareçam e que os cabelos alvejem. Mamoaselle atribuía a calvície ao clima:

— Na Europa são considerados no vigor dos anos os homens que aqui passam por velhos. E sorrindo: O senhor julga-se, então, um velho, doutor?

— Então, Miss...? Que sou eu?

— Ah! És a decrepitude, meu amigo, a decrepitude regelada e trêmula. E repelindo o talher, levando as mãos à cabeça:

— E eu! E eu então? Eu que nem um fio de cabelo tenho na cabeça, porque as farripas que ainda me restam estão na zona do pescoço, como vês... e puxou as mechas com fúria. Entretanto nem um fio branco, olha: nem um fio branco e vou para os cinquenta... se viessem chegavam a tempo. E, voltando-se para Mamoaselle: Miss, conheci um rapaz, vinte anos, pois tinha a cabeça inteiramente branca, uma pasta de algodão. E com desprezo: Não quer dizer nada — a velhice é o desalento interior, isto é que é; isto de cabelos brancos, história, homem. Tens energia como poucos rapazes, és um forte, pensas, tens ideias exatas sobre o Belo e ainda não caíste em beatice; refutas com independência o dogma, discutes a hipótese de Jesus... que mais provas queres de juventude e força? Velhos, velhos caducos são esses idiotas que por aí andam sem noção de nada. Esses sim, são os velhos: têm cabelos brancos por dentro, são como as terras estéreis onde nasce o sapê. Que diabo! Entre uma floresta milenar e um campo novo de erva brava ninguém hesita.

O copeiro caminhava com uma grande terrina quando retiniu a campainha do telefone.

Estendendo os braços, pousou a terrina no centro da mesa correndo logo ao aparelho. Instantaneamente voltaram-se todos para o corredor e, pelas afirmativas do criado: “Sim, senhora... Sim, senhora...” Mamoaselle concluiu:

— É Miss quem fala. E, como o copeiro voltasse. Jorge perguntou:

— Quem é?

— É D. Sara. Está pedindo a roupa.

— Já lhe mandaram?

— Já, sim, senhor. O jardineiro foi indagorinha levar.

O jantar foi rápido e só Cesário falou ferindo pontos de ciência, gabando os pratos e os vinhos. Mamoaselle, recolhida, respondeu apenas a uma pergunta do “filósofo” relativa à questão da Irlanda, aplaudindo Gladstone, o apóstolo venerando da liberdade de Erin.

O café foi sendo na varanda, ao luar. Cesário, empanturrado, passeava de um lado para outro, digerindo. Jorge, em um dos bancos, fumava, d’olhos no céu, melancólico. Miss deixara-se ficar na sala, embalando-se em uma cadeira, a olhar as travessuras de Diana que saltava com uma bola de papel, abocanhando-a, correndo assanhada e trefega, a rosnar. Bá, arrastando cansados passos, fechava os armários discutindo com os criados e, no grande silêncio diáfano do luar vibravam silvos de locomotivas.

— Ora aí tens a vida, disse Cesário. O dia de hoje, se houvesse ponto na eternidade, devia ser marcado com a nota de falta para nós ambos, porque afinal não aproveitamos um só minuto em obra de espírito. Um dia inteiramente perdido. Primeiro a beleza radiante da manhã que inutilizou todas as minhas forças cerebrais, porque sou um desgraçado incapaz de conceber diante do maravilhoso — fico extasiado e o meu êxtase é assim como uma beatitude besta. Linda manhã! E, por uma reminiscência estranha, caminhando, as mãos nos bolsos, recitou baixinho: — The moon shines bright... mas logo, abandonando o poeta, repetiu: Linda manhã...! Depois a famosa invasão de mulheres. E, estacando, o ar preocupado: Ó Jorge, não te parece que o mundo seria admirável se não houvesse o sexo? Há a objeção tola dos que defendem a criadora, mas, que diabo! Seríamos nós mesmos os encarregados de tudo, de combinação com a Terra, a mãe venerável. Nada de mulheres —- a procriação assim. Ouve e vê se não vai um quinau atirado à Onisciência. E com grandes gestos, em pleno luar, falou: Nós seriamos como as árvores, autóctones, filhos da Terra. À proporção que fossemos envelhecendo, em vez dessa era ignóbil dos cabelos brancos, as nossas cabeças ficariam cobertas de sementes que o grande sol fecundaria como fecunda as outras sementes das rosas e dos baobás. Então sacudiríamos a guedelha e a Terra encarregar-se-ia da criação dos epígonos que, com a primavera, sairiam das moitas dizendo papai, mamãe e beijando a poeira maternal como fez o romano.

Seríamos senhores absolutos e guerras não ensanguentariam o planeta nem seriam necessárias formas de governo, porque estou convencido de que todos esses arranjos da civilização foram provocados por inspiração feminina. Que diabo! Houve uma ilha só de mulheres: Lemnos, e resistiu; porque não será o mundo só dos homens? Se o Criador não fosse tão orgulhoso emendaria a sua obra eliminando Eva, não te parece? Jorge falou baixinho como se não quisesse interromper o silêncio da noite:

— Sim... mas não haveria o afetivo. O homem é egoísta, essencialmente egoísta — sufoca todos os sentimentos em favor do seu “eu”. É a mulher quem o faz amoroso, meigo, resignado, emprestando-lhe ternura, piedade e crença.

— Egoísta! Egoísta, o homem! Bradou Cesário. Ó paladino amável! Em que é que somos egoístas, nós que declinamos de tudo em favor da mulher? Em que é que somos egoístas?

— Em tudo, Cesário; afirmou Jorge pachorentamente.

— Pelo amor de Deus... E que diabo é o ciúme na mulher senão a explosão violenta do egoísmo da carne? E que é o amor da mãe senão uma prova de egoísmo espiritual, a posse absoluta, eterna da criatura que ela, a princípio, atrai e subjuga junto ao colo, depois nos braços, mais tarde com afagos quando vai sentindo o despontar do instinto de independência e finalmente na lágrima comovedora quando compreende que uma força mais poderosa arrebata-lhe o escravo do coração? Que é a benção senão uma prova do eterno cativeiro do filho? Egoísta o homem... em que? História! Jorge ergueu-se com lentidão e, debruçando-se à balaustrada, sussurrou:

— Bem sei: detestas o feminino porque nunca achaste agasalho em dois braços! E riu. O filósofo avançou impetuoso:

— Estás enganado! Tenho sabido fugir à perfídia. Conheço o perigo e evito-o. Estás enganado. Apesar de toda a minha austeridade, já achei uma audaciosa dama que pediu a minha presença em certo lugar misterioso, lá para as bandas do Jardim, garantindo-me estar perdida por mim, só porque me ouvira uma noite, em casa de não sei quem, discutir um episódio da Revolução francesa com um bacharel.

— E tu?

— Eu? Eu não frequento caramancheis, à noite; prefiro a robustez dos meus pulmões a todos os beijos das Circes que por aí andam. Demais achei desaforada a proposta — a mulher não queria o homem, não se apaixonara pelo homem, senão pelas palavras do homem. Assim pois, em vez de levar para lá o meu corpo, mandei-lhe de presente uma história de França, onde ela podia achar, e com a fulguração do estilo, tudo quanto eu repetira combatendo o jurista que cortejava uma dama à custa dos heróis da campanha santa.

Não fui e a senhora, para os que têm olhos para o amor, passa por ser uma das maravilhas do grande mundo. Não sou um despeitado, como pensas — sou um homem de programa. E também não aborreço a mulher como criatura, não, é a linda plástica. Um corpo de mulher bem feito e esbelto encanta, não há dúvida, mas deixem-na ficar como ornamento, levam toda essa graça divina para um pedestal e serei o primeiro entre os admiradores; mas como esposa é que não, isso não, porque com o seu espírito fútil vai a pouco e pouco eliminando a energia do homem, conseguindo, as mais das vezes, torna-lo escravo dos seus nervos e dos seus sorrisos. Esposa é que não! Olha para a história e vê quantas calamidades devidas ao belo feminino. Qual! o homem deve ser independente em absoluto. Acordes vieram interromper a facúndia do filósofo: Que é isso, Jorge?

— Chopin.

— É a Cegonha. Detestável mulher, mas grande artista. Grande artista! Fossem todas como ela: espírito, espírito... e então sim. Porque afinal essa pobre Miss não tem outra coisa senão espírito, não te parece? Na ressurreição da carne essa admirável mulher bradará contra a injustiça de Deus, porque não poderá aparecer na vida, à falta de matéria prima. Mas um grande espírito! incontestavelmente. Um grande espírito! E o noturno sentimental vibrava docemente no silêncio da noite de luar. Súbito Cesário levantou-se:

— Ficas aí? Eu desço, vou traçar o plano do livro. Sinto-me bem disposto e impelido ao trabalho. Vens?

— Não, fico ainda. Esta fresco aqui.

— Então até logo. E recitando: The moom shines bright... foi descendo lentamente a escada.

VI

Só, em face da noite radiante, brandamente embalado pelos sons do piano, Jorge foi, aos poucos, cedendo ao influxo sugestivo do ambiente, sentindo-se invadido pela melancolia que parecia descer do céu na luz aérea do luar.

Como se todas as suas forças vitais caíssem em letargo gradativamente, em amortecimentos sucessivos, crescentes, perdia a sensação do corpo e, espírito somente, pairava acima da matéria inerte que o êxtase prostrara. Os olhos, fitos no céu, turbavam-se de vez em quando como se uma nuvem densa os empanasse rasgando-se, por momentos, para deixar aparecer a amplidão estrelada. Os sons do piano enfraqueciam como se os levasse, em rumo oposto, a brisa da noite balsâmica; por vezes, porém, vibravam nítidos.

Mas o desprendimento foi-se fazendo a mais e mais e, no enlevo, alheio a tudo que tinha em torno, insensível à vida que o cercava, Jorge ficou inteiramente esquecido, num arroubo de sonho. Era a tortura tremenda, a melancolia que o prostrava na inconsciência, nesse estado de sofrimento passivo, à falta absoluta de energia para combatê-lo.

O negro vácuo do cérebro foi, aos poucos, enchendo-se de aparições indecisas, indistintas, que ele via introvertidamente como se olhasse para o seu íntimo. Ideias, porém, apareceram, fatos completos e a memória começou a exumar o dia, com todas as particularidades, com todos os incidentes ocorridos e, como se o movimento das horas passadas, horas que haviam morrido com o sol, revivesse dentro dele, começou a ver e a ouvir tudo que vira e ouvira nesse dia de tédio e de lazer indolente: pessoas e coisas moviam-se lhe no cérebro como em uma arena e ressoavam vozes e risos, todo o rumor alegre com que as Moretti haviam enchido a casa. Mas, dominando todas as vozes, a de Sarita vibrava com intensidade.

E, como cá repulsa violenta de uma força misteriosa, tudo mais foi-se desvanecendo, ficando só, dona absoluta do espírito, enchendo-o com a fulgurante e viçosa beleza do seu corpo, com a melodia languida e cheia de caricia da sua voz, com a claridade altiva dos seus olhos, com a púrpura úmida da sua boca, Sarita viva no sonho, viva e perfeita, que ele via, ora longe, como se estivesse no céu, caminhando pela estrada diáfana da Via Láctea, ora perto como se estivesse encostada à balaustrada, olhando-o, falando-lhe, ou que ele sentia tão aconchegada como se o houvesse penetrado e estivesse debruçada aos seus olhos como uma sonhadora no balcão de um solar antigo, sob os corimbos em flor da ogiva gótica. De visão em visão transportou-se à casa das Moretti e via-a, despreocupada e feliz entre as amigas, mirada pelos olhos voluptuosos e impudicos que a desnudavam tirando, pelas linhas admiráveis do seu contorno esbelto, a sua plástica maravilhosa, rija e forte como a polpa de um fruto verde.

E, numa rápida precipitação de cenas, sem transição, viu-a na alcova, junto ao leito de Heloisa, estreito, nublado pela bruma do cortinado, de pé, despindo lentamente as roupas, com um vagar supliciante, deixando transparecer uma nesga de carne, cobrindo-a logo, num movimento, escrupuloso de pudor virginal, encolhendo-se, os braços juntos, apertados ao colo, como num arrepio de frio. Por fim, resoluta, desfazendo os laços e deixando as roupas caírem-lhe aos pés como a folhagem viçosa de uma árvore cujos galhos o lenhador vai decepando... e, quase nua, mais linda, alucinadoramente linda, na alvura da camisa que lhe denunciava o corpo, linda como a manhã resplandecendo através da névoa sutil. Viu-a deitar-se e com ela, aconchegando-se lhe ao corpo juvenil e tépido, carne contra carne, Heloísa amparando-lhe a cabeça no braço alvo e forte, a esplendida cabeça, encantadora no desalinho dos cabelos derramados pela alvura dos travesseiros como ondas de um mar dourado beijando as areias alvíssimas das dunas.

Viu-a ... mas uma nuvem obscureceu lhe o olhar e todo ele vibrou num assomo de repugnância e de cólera. Teve um ímpeto, pôs-se de pé com violência, sorvendo a plenos pulmões o ar puro, passando a mão pelos olhos como para limpá-los da visão incestuosa.

E, como se despertasse, ouviu clara e distintamente sons do piano, tinir de cristais, vozes de criados e encaminhou-se para a porta.

O copeiro retirava os vasos para prateleiras junto às janelas, para que a folhagem recebesse o orvalho revivescente. Jorge chamou-o, pediu água.

O combate travava-se intimamente; a visão reaparecia d’ímpeto, inopinada, ele repelia-a atordoando-se com outras ideias que rebuscava, insistia em fatos como para tomar todo o pensamento, afim de que nele não mais entrasse essa alucinação sucuba e a sua fisionomia demudada contraia-se angustiadamente como nas andas de uma agonia. O copeiro apareceu com o copo em uma pequena salva. Jorge tomou-o e bebeu avidamente, a grandes tragos. E entrou para a sala seguindo o copeiro, como atraído por ele, por uma necessidade de companhia; deu volta à mesa, vagarosamente, cabisbaixo, enfiando os dedos pelos cabelos e, quase em inconsciência, foi direito ao salão. Parou apoiando-se a uma cadeira, ouvindo o piano; mas Sarita obsediava-o.

Mamoaselle, ouvindo-lhe os passos, perguntou sem deixar o teclado:

— Quem é?

— Eu, Miss. E, satisfeito por ter ouvido a voz da professora, com a mesma alegria que experimentaria um encarcerado ouvindo, do fundo da masmorra lôbrega, a voz de uma pessoa querida que lhe anunciasse a liberdade, adiantou- se até á saleta onde a escocesa acendera um bico de gás apenas e, com os braços sobre o piano, disse:

— Estava lá fora ouvindo, Miss.

— Ah! fez Mamoaselle com um relâmpago dos óculos, mas baixou a cabeça, continuando o noturno.

Jorge sentiu que a visão ameaçava reaparecer e já lhe ia surgindo ante os olhos, sentada ao lado da professora, ela, Sarita, bela como ele a vira na indecisão da alcova imaginaria.

Afastou-se lentamente pelo corredor ganhando de novo a varanda onde Bá, de pé, encostada ao umbral da porta, o rosto inclinado na palma da mão, olhava o céu distraída:

— Estás admirando a noite, Bá? A negra suspirosa, sempre com o olhar perdido, respondeu cheia de saudade:

— Estava pensando em Nhanhan... Faz tanta falta, coitada!

Sem responder, Jorge desceu a escada, encaminhando-se para os seus aposentos. Cesário, num fofo robe de chambre, os pés em chinelas, percorria o salão a grandes passos. Mal o viu entrar voltou-se:

— Oh!... Sabes, creio que desta vez consigo. Tenho o período inicial, os primeiros compassos do meu prelúdio, e sobre as notas que possuo dentro em poucos dias terei construído todo o capítulo da marcha dos arianos. Quero trabalhar bem para dar uma coisa digna, uma página monumental, à maneira do velho Flaubert, com abundância de acessórios: os grandes carros rangendo, os chorais solenes de toda uma raça mobilizada — os homens cobertos de peles cerdosas, armados como para uma guerra; as mulheres cantando no fundo dos carros pesados, coroadas de flores nunca vistas, os olhos extasiados na contemplação dos céus vastos e dos volumosos rios. Que dizes? Achas que devo ficar no estilo sóbrio, empregando mais ciência do que imagens, ou entendes, como eu, que não devo sopitar o gênio? Atiro-me, que dizes? Mesmo porque não sei lidar com a frase seca dos didáticos. Gosto de ouvir a música dos períodos e não admito em arte a toilette preta: voos largos, voos largos, o colorido, o som, não achas?

Jorge estendera-se no pliant:

— Sim, penso como tu, e principalmente porque acredito que, sem imaginação, não conseguirás uma linha.

— Uma linha!? uma palavra! Então achas que devo optar pelo grandioso?

— Certamente.

— Não imaginas como me fazem bem essas palavras. Confesso-te que estava hesitante porque, se há animal que me apavore neste mundo, é o crítico. Não imaginas! Creio que desapareceria da face da terra se um homem falasse mal de um só período meu... Se falasse de dois matava-o! Agora sim, vou atirar-me ao trabalho com fúria. Se acordares cedo amanhã, chama-me... Não vou agora para a mesa, porque estou com o cérebro fatigado... e não há como a manhã para as grandes ideias. Chama-me cedo, bem cedo: às cinco.

Houve um curto silêncio. Cesário caminhava de um para outro lado; o robe de chambre abria-se de vez em quando escancarando as abas como duas asas enormes de morcego. Jorge, passando os braços por trás da cabeça, recostou-se.

— Estou vendo tudo! Exclamou Cesário de olhos baixos. Estou vendo tudo, olho a grande multidão ariana do alto da minha imaginação como Moysés, de cima do monte Nebo, olhava o seu povo de Chanaan, ao longe. Chanaan é a glória, é o sucesso. Vejo tudo! E estacando, o ar preocupado: Homem, é verdade... e eu que vejo tudo quanto penso! Não será isto uma moléstia? É estranho. A imaginação é o olhar do espírito, que dizes? Acho estranho... Dá-se isto contigo?

— Sempre! Ainda há pouco estive a ver Santa.

— Ora, tu és um saudoso. Tens essa enfermidade terrível. E toma cuidado! Olha que não há nada pior para um coração do que a saudade. Parece-me um chacal, porque não fazes outra coisa senão desenterrar cadáveres no coração para cevar-te neles. Toma cuidado! Que diabo de preocupação, deixa a menina! Diverte-se. Queres que ela desterre a mocidade nesta tristeza? Porque, afinal, dizendo a verdade, isto não deve ser nada agradável para uma criança cujo coração começa a pulsar. Para nós é magnífico, para nós e para a Cegonha, que já desesperou de encontrar um coração que compreenda o seu, mas para ela... Tem paciência. Deixa-a espairecer. Pareces um noivo, que diabo! Nem tanto. Vamos cuidar de letras. Vem daí ajudar-me a conduzir o meu rebanho. Convido-te para meu colaborador, dá-me o braço e vamos entrar, como dois bons amigos, na Posteridade. Queres pensar?

— Não. Estou a cair de sono. Vou dormir.

— Dormir... a esta hora!? Ó homem, vai amanhã ao consultório do teu médico para que ele te examine. Dormir? E que hás de fazer da manhã, desgraçado? Não penses nisso. Vamos, esquece o sono. Vou ler-te uma boa página.

Que queres: filosofia ou uma tragédia? Escolhe: Schopenhauer ou as Coephoras. Tenho Eschylo e o pessimista à mão.

— Vou deitar-me. Estou mole, aborrecido... tédio. Vou deitar-me. Levantou-se estendendo os braços num longo espreguiçamento e, como se encaminhasse morosamente para a câmara, Cesário, que o acompanhava com o olhar piedoso, lastimou-o:

— Pobre homem! dormir às dez e meia da noite... E alteando a voz: Ó desgraçado! E não tens medo da insônia matinal? Mas, vendo-o desaparecer, encaminhou-se para a porta e fechou-a, fechou as janelas e atirou-se ao pliant com um estrondoso bocejo. Cruzou as mãos no ventre e imóvel, os olhos fixos, ficou a pensar, mas cerrando os pálpebras lentamente, adormeceu roncando com estridor na sala vasta e silenciosa.

VII

   A luz de um bico de gás, coando-se através de um globo verde, espalhava uma penumbra dormente na câmara, onde avultava o grande leito, alto e severo como um cadafalso. Jorge, recostado em uma almofada, fumava, soprando baforadas distraídas, sempre obsediado pela ideia tenaz que lhe girava no cérebro como uma mosca voando em receptáculo hermeticamente fechado, a zumbir aflita, indo e vindo, ansiosa de liberdade. Cesário roncava ruidosamente na sala próxima, espalhando pelo interior sossegado o rumor regular de um sono tranquilo e fora, à lua pálida, os grilos trilavam adormecedoramente.

A imaginação torturava-o com a evocação da carne virgem de Sarita. Intimamente, no mesmo campo de ação, ideias contrárias debatiam-se e, como se vozes se pronunciassem no seu coração, ele como que ouvia a renhida disputa da dualidade que nele havia — a sedução pecadora trazendo-lhe não só a voz, languida, de moroso ritmo, que era em Sarita um dos atrativos mais fortes, mas a claridade dos seus olhos, toda a viçosa carnação do seu corpo, o seu andar gracioso e brando, ela toda, ora apertada nas vestes que lhe compunham as formas admiráveis, ora nua, como uma visão olímpica, uma das súcubas tentadoras das que dantes, nos tempos ferventes do ascetismo santo, apareciam aos solitários, seduzindo-os para o pecado, como Ammonaria, a escrava.

Mas a outra voz pura bradava, em assomos de zelo, como um profeta imaculado combatendo crimes — e dizia: “E horrível! Pois eu que a tive pequenina nos braços, eu que lhe ensinei as primeiras palavras, eu que a vim trazendo pela mão até essa idade, não permitindo que lhe tocasse a inocência a mais pequenina mácula; eu que a considero minha filha, minha verdadeira filha, hei de pensar criminosamente sobre a sua pureza, manchando-a, ao menos diante dos meus olhos, que já não a podem fitar com a ternura antiga, porque ficam abrasados de volúpia, mal a avistam? Eu que a recebi da mãe como um penhor confiado à minha honra, sou o primeiro a prostituí-la em sucubatos incompatíveis...? Meu Deus!” Mas a voz interior calava-se, vencida pela ascensão lúbrica da visão formosa. Sarita reaparecia, pairando como uma bruma, girando no ar ou baixando docemente, docemente...

Irresistivelmente levantou os olhos: a alegoria da Noite, formosa e nua, começou a mover-se no baldaquino, a princípio branda, em contorções de espasmo, a pouco e pouco, como se se libertasse do céu de seda, animada, viva, palpitante, crescia, crescia. O seu colo rijo ondulava, descerravam-se lhe, os lábios em sorriso, iluminavam-se- lhe os olhos e, numa túnica atalica, feita com os próprios cabelos, descia como uma pluma que vem baixando lentamente dos ares, oscilando com as correntes da brisa, já roçando a terra, súbito ascendendo, oscilando em negaças, como a brincar.

Mas não era a Noite, era Sarita, era ela que se encarnava na pintura decorativa para seduzi-lo, para arrasta-lo à profanação nefanda, era ela que descia languida, com os braços abertos como uma cruz branca de mármore impoluto, caindo para um sacrifício novo.

Jorge rolava no leito, as mãos na cabeça, ofegando. Sentia-se cansado e, quando a visão desfazia-se, ficava-lhe um grande vácuo no cérebro como se lhe houvessem arrancado toda a massa pensante. Prostrado então, inerte, olhos fechados, repousava até que de novo, criando-se na escuridade a visão sedutora, recomeçava o suplício, silencioso, latente. “Oh! Meu Deus! É atroz!” E passou a mão pela fronte abrasada, tinha os lábios secos, os olhos em fogo; o suor umedecia lhe o corpo e da sala próxima, só, no apavorante silêncio vinha, de espaço a espaço, o ronco de Cesário que adormecera profundamente.

Nervoso, de uma impressionabilidade infantil, Jorge prestava ouvidos aos mínimos rumores, escutando o farfalhar das árvores fora, ao luar, crepitações vagas, frêmitos, por fim já o ressonar de Cesário impressionava-o. Sentou-se no leito, os olhos dilatados e, medroso, apavorado, parecia distinguir passos no jardim, impulsos de mãos nas portas, vozes sussurradas, silvos ao longe.

Atirou as pernas para fora do leito e ergueu- se, caminhando descalço para a sala. O “filósofo” dormia, a cabeça tombada, a boca aberta, um dos braços molemente pendido para o chão. Jorge hesitou em acordá-lo, mas sentia necessidade de companhia, a solidão aterrava-o, trazia-lhe visões. Foi de manso até junto do pliant em que se estendera o amigo, e, tocando-lhe no ombro, chamou-o: Cesário! Cesário! O filósofo despertou súbito, d’olhos muito abertos, cheios d’espanto, perguntando arvoado:

— Que é? Que é? E, como o visse pálido, no desalinho em que se levantara, interrogou-o: Que é? Tens alguma coisa? Estás com uma cara! Que é isso?...

— Insônia... Não posso dormir. Não sei que sinto. Estou ficando pior do que uma mulher. Queres que te diga — até medo tenho... — Estás descalço, homem...? E o filósofo levantou-se, deu luz ao gás e, enrolando um cigarro:

— Pois eu estirei-me ali para continuar a minha concepção e já ia conduzindo os arianos pelos vales férteis quando o sono atirou-me o golpe fatal. Decididamente somos escravos da matéria—não há resistência possível quando o animal entende que há de empacar nessa pasmaceira de não sei quantas horas de inércia. Dormi bem desde as 11. E que horas são, sabes?

— Duas, pelo menos.

— Já é hoje.

Jorge alisava os cabelos nervosamente e encostou-se à mesa, cabisbaixo, as pernas cruzadas.

— Estás sentindo alguma coisa?

— Não estou bom. Não sei que tenho. É um horror!

— Mas, afinal, que sentes? Parece-me um Argan, sempre a pensar em moléstias, sempre preocupado com as palpitações do coração e com os fosfatos, a pedir digitalina e anise. Andas com esse órgão sempre pelos consultórios e com a urea em constante fervura nos laboratórios químicos. Queres o meu diagnostico? Tu o que tens é cisma, é essa mania da enfermidade que os modernos classificam entre as terríveis fobias. Alija essas ideias e come, bebe e dorme regaladamente para que não enlouqueças agarrado ao pulso, com um termômetro Casella debaixo do braço.

— É justamente no que eu penso, disse Jorge soturnamente, com o olhar extático, bamboleando a perna. Não vejo outra explicação para o estado de eterna visão em que ando senão que estou na fronteira da Loucura. E frenético, a fronte carregada, os braços cruzados: Noite e dia, noite e dia, as mesmas sombras sempre, sempre a mesma ideia, absorvendo-me, inutilizando-me. Não posso pensar, porque todo o meu cérebro está ocupado por uma ideia incoercível. Vivo assistindo à representação dolorosa de uma tragédia torpe dentro de mim mesmo. Sou espectador e ator. Combato, evito... mas tudo é baldado, sou vítima da minha imaginação ou de não sei que. Imagina tu o sofrimento de um homem que sente dentro de si vivendo, agindo, outro homem de sentimentos opostos, torpe, lúbrico, que sei! Parece-me, às vezes, que me borrifam a alma de lama. Não sei que é!... Há ocasiões em que tenho vontade de sair para a noite, caminhar até cair estafado para aliviar-me desse suplício atroz. Não sei que é... Passou a mão pela fronte e começou a passear, nervoso,, arrepelando os cabelos.

— Mas em que pensas? Que ideia é essa? Indagou Cesário, caminhando para a câmara.

— Sei lá! Disse Jorge com um gesto de ira. Sei lá! O “filósofo” reapareceu atirando ao chão um par de chinelas:

— Olha, calça. Estás aí com os pés na friagem. E, calmo, enrolando um cigarro, tranquilizou. Isso é natural no teu estado: estás nervoso, insone, o cérebro ressente-se; vê se dormes. Andei também assim muito tempo, sei o que isso é. Mas curei-me com esforço: atiro-me ao exercício, fatigo-me e, à noite, quando derreio, meu amigo, mal tenho tempo para estirar as pernas, porque logo o sono beneficiador fecha-me as pálpebras começando na minha goela, mais sonora que um órgão, isso que tu chamas “o estrondo do meu sono.” Tu és um sedentário, vives invernando, nem se quer procuras a boa sombra das tuas árvores. Passas aqui os dias entre livros, a mudar de cadeiras, numa vida de fakir. Não serve, o corpo quer movimento, exercícios. Vamos amanhã cedo às árvores; à tarde, outro passeio às árvores e hás de ver que a ideia foge espavorida do teu espírito, enxotada pelo sono. Eu durmo e, quando a insônia ronda as minhas pálpebras, se tenho à mão qualquer livro de arte primitiva, vou às páginas, se não atiro-me aos grandes problemas finais: Deus, a imortalidade d’alma e creio que nunca os resolvi, porque sempre fico em meio da lucubração. Qual loucura! E Cesário deixou-se aprofundar molemente no pliant, esticando as pernas.

Um galo cantou. E como Jorge bocejasse:

— Então? Corre ao leito, corre. Já não há Sortilégios no ar da noite, nem pesadelos em volta das camas: o galo santo cantou. Vai! E que o bom Deus vele à tua cabeceira. Jorge submisso, ia seguindo, mas voltou-se:

— Porque não te vens deitar na tua cama?

— Homem, tens razão. Tenho pernas demais para esta cadeira. Vou. E, levantando-se, passou com o amigo à câmara silente.

O “filósofo” arranjou o seu leito e alongou-se, os braços por baixo da cabeça, à maneira de travesseiros, as pernas encolhidas. Jorge rondava, sem ânimo de deitar-se, receando o leito como um condenado receia o cadafalso; mas como Cesário insistisse que se deitasse, que se pusesse à disposição do sono, que tomasse atitude de vítima, pronta a receber o golpe, sentou-se à beira do leito, como se o experimentasse e, lentamente, foi-se deixando cair, recostando-se à grande almofada, a cabeça firme, o olhar rutilo e fixo. Esteve assim, mas o “filósofo” começou a bufar e um ronco engasgado grugrulejou no silêncio.

Jorge voltou a cabeça num movimento rápido, impulsivo, prestou atenção; os olhos foram-se lhe para o baldaquino onde a figura da Noite mal aparecia como uma mancha, percorreu toda a câmara com um grande olhar desvairado e ergueu-se, pé ante pé, sobre o pelego; foi até o bico do gás e fechou-o.

— Que é isso, homem? Porque fechaste o gás? Indagou Cesário, que acordara subitamente com a inopinada treva.

— A claridade não me deixa dormir.

— Pois olha, eu, no escuro, tenho uma estranha sensação de asfixia; parece que a treva abafa-me, fico sem ar, sufocado e oprimido. Mas a sombra foi-se aos poucos esbatendo; a claridade da sala difundia-se febrilmente, chegando até à câmara num dilúculo suave.

Jorge deitou-se então, puxando as cobertas até o queixo, e quedou encolhido, olhos abertos, espiando na meia escuridão. Mas nimbos começaram a fugir-lhe das pupilas, aureolas flâmines que se destacavam e desapareciam como absorvidas pela sombra, depois fagulhas como as que saltam nas crepitações das fogueiras. Cerrou os olhos apertando fortemente as pálpebras, mas as aureolas saíam-lhe com mais força, em maior cópia e, pequeninas, distendiam-se, disfendiam-se como os círculos concêntricos que se abrem à flor das águas. Cesário roncava a mais e mais. Galos cantavam longe e perto, por fim de todos os poleiros partiram cocoricós estridentes. Era a madrugada.

Jorge, já moído, resolveu levantar-se. Sacudiu os lençóis e, furioso, atirou-se para fora do leito, procurando no móvel de cabeceira a caixa de fósforos. Tateava e, como um volume caísse no chão com um estalo seco, Cesário acordou de novo, sôfrego:

— Que é? Que é isso? Não dormes, homem?

— Qual dormir! Vou andar por aí. Sei lá

Que é isto! Vou andar. Procurou com as mãos as chinelas debaixo da cama e, como as não achasse, saiu descalço, indo à sala procurar fósforos. O “filósofo”, quando o viu entrar com a luz, espreguiçou-se.

— Horrível coisa, hein?

— Horrível! Começou a vestir-se taciturno, frenético.

— Mas vais andar lá fora? Olha que está frio. Podes apanhar alguma...

— Qual! Que diabo fico fazendo aqui dentro? Ali ao menos refresco a cabeça que me parece querer estourar. Não sei que é isto. Cesário mirava-o com pena, alisando a barba que se lhe derramava pelo peito.

— Deixa aquecer mais e mete-te num copioso banho frio. Isso é nervoso. Bocejou e voltou-se de flanco. Jorge, atando os cordões do jupon que enfiara, caminhou lentamente para a sala e abriu a porta que deitava para o jardim.

O dia bruxuleava, um vento frio, picante, soprava; as montanhas, alvas de névoa, pareciam adormecidas. No céu ainda palpitavam estrelas e a lua pequenina não tinha o lindo fulgor, parecia exausta da vigília, modorrando dentro da neblina da manhã.

Carroças de capim passavam com um forte rumor de rodas solavancantes e bois mugiam.

Jorge arrastou para a porta o pliant e estendeu-se nele, diante do céu fosco, exposto à aragem fria, como à espera da luz. E com os olhos no alto pensava na visão impura, criticando intimamente a infame aberração do seu espírito, evocando, como para purificar a alma, a infanda de Sarita — as noites meigas que passara com ela ao colo, sentindo em torno do pescoço o elo dos seus dois bracinhos e no rosto a caricia dos seus cabelos louros, a dedicação incomparável da criança quando, abandonado pela mulher, sentiu a grande dor que vem das ingratidões e o inconsolável suplício do silêncio ao vermos vazio um lugar outrora ocupado por alguém que nos possuía inteiro, em cujo coração esvaziávamos tristezas, queixas e confidências, cujos olhos eram o oriente de onde nos vinha a luz, cuja boca, transbordante de beijos, esparzia sobre os nossos desalentos as palavras balsâmicas da esperança e pedia por nós e chamava-nos e acariciava-nos com os termos que só o amor inventa e ameniza.

Mais tarde, o desabrochamento gradativo da mulher, a indecisão da puberdade surgindo dia a dia, lenta e graciosa, demonstrando-se nas curvas do corpo, no brilho dos olhos, na tonalidade da voz, no amaneirado da compostura, na graça feminina, recatada e pudica, quando a criança começa a moderar as corridas deixando em paz a borboleta, esquecendo a boneca despenteada e nua para frisar um cacho, para brunir uma unha ou simplesmente para pensar. E a ternura com que ela o recebia sempre e sobretudo a inocência, a confiança com que o beijava. Toda essa reconstrução do passado concorria para tornar ainda mais negro o pensamento ignóbil, que o não deixava, perseguindo-o com a insistência pertinaz de um remorso.

Leves tintas radiantes, estrias de sangue, mosqueavam o céu empavesando-o garridamente. A névoa esgarçava-se e a lua, a mais e mais pálida, ia sumindo. Pombos passavam no ar puríssimo e leve e na rua homens de trabalho seguiam, falando alto, rindo. Clareava. Jorge sentia as pálpebras pesadas, uma sensação de fadiga em todo o corpo e no espírito. Foi cerrando os olhos molemente, num torpor de narcótico, e adormeceu. Ia alta a manhã quando Cesário apareceu à porta, pasmando de ver o amigo adormecido em pleno sol, como um sáurio friorento. O jardineiro passava o alfanje pelo gramado, cantando e Miss Kate, na varanda, lia levantando os olhos de vez em quando para ver Diana, aos saltos, ganindo aflita, à caça d’uma borboleta.

Cesário, dando com os olhos na escocesa, como estava em mangas de camisa, recuou pudico, compondo a abertura para que não lhe aparecesse o peito cabeludo e bradou:

— Jorge! Êh! parsi. Êh! Jorge abriu os olhos e fechou-os deslumbrado pelo grande sol. Levanta-te, homem! Olha que a Cegonha está a contemplar da altura o teu tíbia felpudo.

Jorge levantou-se estonteado e, apertando o jupon, recolheu-se.

— Que horas são?

— Oito. Como diabo conseguiste dormir aí como uma planta, ao sol...?

— Felizmente! Não me foi possível conciliar o sono na cama. Não sei que tinha. Felizmente dormi aqui um pouco. Mas estou como se tivesse viajado léguas: derreado, palavra de honra, derreado!

— Descansa um pouco e vamos ao banho frio, que ficas reconstituído. Não há como uma boa ducha, esta é a verdade. Não há como uma boa ducha. E o “filósofo” pôs-se a passear ao longo da sala esfregando as mãos. Jorge passou à câmara e de dentro perguntou:

— Sais hoje, Cesário?

— Não! Ao domingo as minhas solas não se maculam na lama macerada pelo flor-ao-peito. E como Jorge aparecesse com uma toalha ao ombro, Cesário estendeu o braço para a mesa e solene, com os olhos brilhantes: Vou tentar... Está um dia esplendido, hein? Quero fazer o grande sacrifício de o dar inteiro à história, à civilização, ao livro. E, vendo Jorge encaminhar-se para a porta, precipitou-se: Espera, homem, deixa ao menos que eu vista um casaco e apanhe o meu paninho. Espera. E com as grandes pernas, em três passos, ganhou a câmara comum.

Saíram para o banho. Diante do chalezinho, apesar das instâncias de Jorge, Cesário negou-se a entrar primeiro, a pretexto de que ainda não recebera a benção higiênica das árvores, e afastou-se, as mãos para as costas, a toalha ao ombro, indo até à cerca onde começava o bosque. Voltou, sem mesmo levantar os olhos para as árvores e, diante do galinheiro, deteve-se olhando as aves; um grande peru caminhava empanturrado, a cauda aberta, bufando. Cesário pôs-se a assobiar e o peru grugrulhou desmanchando-se, a andar tonto dum lado e doutro. O “filósofo” dobrava as gargalhadas, e mal o peru começava a enfunar-se, assobiava para ouvir o grugrulho.

Estava tão entretido que foi preciso que Jorge o chamasse da porta do banheiro:

— Ó Cesário!

— Aí vou! Assobiou ainda uma vez, rindo mal a ave, espichando o pescoço rubro, respondeu.

— Ah! Meu amigo! Se ainda não viste a imagem do fanfarrão, do traga-mouros, vai ali assim ao poleiro admirar aquele peru. É um pobre diabo que até das galinhas chocas apanha bicadas, mas vai ver que orgulho! E entrou para o chalé rindo e grugrulhando.

Jorge, retemperado, sentia um grande alívio; demais, a ideia da volta de Sarita na tarde desse dia, punha-o de bom humor. Para evitar os olhos de Mamoaselle, entrou por uma porta baixa que levava ao gabinete de toilette e, cerrando-a, despiu o jupon, atirando-o abandonado a um canto. Abriu um dos gavetões procurando a roupa branca, e em grande azafama, enfiou as ceroulas, vestiu a camisa de meia e diante do espelho, vertendo num copo verde gotas de dentifrício, mirou-se. Olheiras fundas cercavam-lhe os olhos, os ossos apontavam-lhe à flor da pele, como se a quisessem estalar e, apesar da cor fictícia ganha na frescura do banho, a palidez voltava.

— Estou magro... murmurou, e com um ricto levou a escova à boca, começando a fricção.

Cesário apareceu purpúreo, tiritante, e olhando-se no grande espelho do guarda-casacas, a esfregar a calva, chamou o amigo:

Olha, meu velho... E mostrando-lhe as barbas gotejantes: dize... não pareço um rio da mitologia? Mas esfregava-se com fúria “para a reação” e cansado lembrou o café: Se tomássemos uma xícara, que dizes? Jorge, com as bochechas infladas, indo e vindo, acenou afirmativamente. O filósofo correu a calcar sobre um botão elétrico para chamar o criado.

— Excedente água! Mas fria a valer. Saí roxo como um petiz que nasce. Fria a valer!... E arrepelava as farripas com a toalha, alisava a barba, limpava os olhos, atafulhava os dedos nos ouvidos. Falaram fora.

— Café, Inocêncio, e já!... O “filósofo” ainda acrescentou:

— Bem quente, Inocêncio. Jorge escancarou o guarda-casacas e tirou calças, coletes, casacos. Cesário, sempre a esfregar-se, acudiu:

— Vais sair com tudo isso?

— Não, quero umas calças. Não estão aqui. Achou-as por fim: Ah! E encostando-se à parede enfiou-as.

— Palavra, eu não seria capaz de manter tanta cachemira. Acho que o homem deve ser como os animais que só têm uma pele. Para que tudo isso? Quem aproveita? O alfaiate. Jorge passou à câmara e Cesário, diante do espelho, escancelava a boca, esticava o pescoço, examinando-se: Diabo! Eu marco os anos com os dentes. Estou ficando com a boca despovoada de autóctones e convenço-me que não há remédio senão recorrer ao imigrante. É uma desgraça! Poucos e em que estado!

— Olha o café, Cesário! O “filósofo” passou à câmara.

O almoço correu alegre e Cesário, para fazer rir, interpretou um sonho de Mamoaselle, que se vira em um campo vasto, coberto de flores, mas sem uma árvore, chato, monótono e verde.

O “filósofo” garantiu que iam começar dias prósperos para a professora. Sendo o verde a cor da esperança, é sempre de bom augúrio nos sonhos. A ausência de árvores significa que sombra alguma toldará a felicidade que os espíritos da noite anunciaram. Felicidade tão grande. Miss, como esse campo vasto que viu. Riram. Cesário, apesar do imenso desejo de lançar as bases da sua obra, deixou-se arrebatar por Mamoaselle para o gabinete do piano e fez o chilo gabando Beethoven e Chopin, esse grande elegíaco; Jorge, porém, chamou-o convidando-o para uma volta pela cidade. O “filósofo”, diante da escocesa, fez um neônio: Sentia deixar aquele ambiente artístico para ir meter-se na lama infecta das ruas. Mas como Jorge dissesse:

— Fica... arremeteu:

— Não, vou contigo. E para Mamoaselle: A noite, Miss. À noite cá estarei para o maravilhoso Beethoven. Miss sorriu graciosa, correndo de leve o teclado e os dois desceram.

— Que diabo vais fazer tão cedo à cidade, com este sol?

— Buscar Sarita.

— Mas não disseste que pretendias busca-la à noite?

— Não; à tarde. E, numa volta brusca: Homem, parece-me que estás com vontade de ficar com a professora...?

— Eu? Ensandeceste, homem!? Não posso com a música por atacado. Um bom trecho arrebata-me, uma opera adormece-me. Estás doido!... Um dia inteiro plantado junto ao piano! Diante da mesa, como Jorge tomasse o chapéu, Cesário demorou-se contemplativo, os olhos na resma de papel: Palavra de honra! Não sei quando começarei esta coisa. E eu que a todos vou dizendo que estou nos últimos capítulos. Um Braz, aí de um jornal, quis anunciar a obra, detive-o em tempo.

E Jorge, tomando a bengala:

— Mas eu já li qualquer coisa sobre a tua História da civilização. Já li...

— Sim, leste uma pequena notícia. Dei-a eu mesmo para comprometer-me com o público. Foi na Gazeta, em janeiro. Creio até que lá se dizia: que já entrara para o prelo. Essa é minha. Saíram.

Na cidade Cesário tomou o grande ar austero, o passo grave de íbis pensador; mas no Paschoal, como caíssem em pleno grupo de políticos, o “filósofo” desmantelou-se esbravejando contra o governo, trazendo velhas tiranias para confronto com os atos ignóbeis dos contemporâneos e, com o copo de cerveja a tremer-lhe nas mãos, anunciou futuros dias de sangue, de excídio e de miséria, concordando, por fim, com a necessidade das medidas enérgicas, sem as quais não há respeito nem moral nas sociedades, e esbaforido levantou-se para acompanhar o amigo à casa das Moretti.

Durante a viagem altercou com um homem que se lhe sentara sobre a aba da sobrecasaca, mas diante do mar toda a irá dissipou-se.

— Olha agora, Jorge, e ver se a grande luz não é mais linda sobre as águas do que nas montanhas e nas matas. Deus fez o sol imenso para a imensidade dos mares. Mas olhando o homem de esguelha, procurava a aba da sobrecasaca.

As Moretti receberam-nos com lastima: Tão cedo! Mas Sarita, depois do beijo meigo, subiu para arranjar-se, confessando que já estava com saudade. As pequenas faziam sala e quando a velha Moretti apareceu, com os seus bandós brancos, cheia de queixas — porque Jorge havia esquecido a sua casa — as pequenas, trefegas, saíram. Cesário, casmurro, examinava as paredes, examinava os tapetes cofiando a barba, e como a velha o interrogasse sobre o livro:

— Quase pronto, minha senhora. Quais pronto.

— Deve-lhe ter dado muito trabalho, snr. Cesário...?

— Muito, minha senhora. Muito... E o “filósofo” sentia-se disposto a contar toda a história do seu esforçado labor, quando Sarita apareceu abraçada com Heloisa. Os dois homens puseram-se de pé.

— Deixe-a ficar mais um dia, doutor. Iremos leva-la amanhã, pediu Heloisa. Mas Sarita, que compreendia o padrasto, relanceou à amiga um olhar severo:

— Não, preciso estar em casa, disse. Beijaram-na muito, acompanharam-na à porta.

Jorge desanuviou-se, exultava e tudo parecia-lhe mais belo — o céu, o mar harmonioso, as ruas e, acompanhando Sarita, brincava com a bengala, a sorrir à felicidade íntima.

Como parassem à espera do bonde, Cesário interrogou-o: Viste, pelas paredes, as glórias do finado Moretti? É louro que farte. É por isso, talvez, que as pequenas são tão loureiras. Jorge encarou o filósofo indignado:

— Ó! Cesário...

— Deixa passar, não foi de propósito: saiu- me como um arrevesso. Irra! Olha que enjoa...!

VIII

Quando Bá entrou na câmara com a bandeja do café Sarita ainda dormia, encolhida, a face repousada nas mãos postas, como se houvesse adormecido a rezar. A camisola entreaberta desvendava-lhe o colo branco e túmido. O pescoço, roliço como um trecho de coluna, tinha torçais dourados de cabelos finos aflorando-o, e farta, dum louro quente, a trança estirava-se no travesseiro, em ondas. Um raio de sol, insinuando-se por uma frincha da janela, cheio de um pólen vivo, inflectia em diagonal sobre o pelego onde as sandálias, juntas, aconchegadas, como duas pequeninas barcas em ajoujo, esperavam os pezinhos passageiros. Sobre um divã as roupas amontoavam-se em desordem; o colete aberto jazia sobre o tapete; as saias, no chão, faziam como uma grande flor, meio desabrochada. Morno e suave perfume errava docemente no ar.

A negra afastou o cortinado e ficou algum tempo cheia de enamorada ternura, contemplando os relevos do corpo que os lençóis cobriam desenhando todas as curvas. Baixou-se e, inclinando a cabeça, espiou como se desconfiasse daquela inércia mansa, mas convenceu-se de que efetivamente dormia. Então baixinho, a medo, com pena de interromper o sono calmo, chamou-a: “Nhanhan!” E ficou um momento à espera. Insistiu: “Nhanhan! Nhanhan!” E como a chorar: “São onze horas! Acorda, nhanhan!” Sarita descerrou os lindos olhos, mas logo os fechou, e esticando os braços, estrincando os dedos, voltou- se para o lado oposto, mastigando, uma perna encolhida, outra esticada, em oblíqua, o pé nu, rosado e fino, quase fora do leito. A negra teimou: “Nhanhan... são onze horas. Acorda! Olha o café!”

— Deixa, Bá! Que aborrecimento! Mas a negra, descansando a bandeja na mesinha de cabeceira, choramingou:

— Eu tenho que fazer, nhanhan. Olha o café que esfria. São onze horas...

— Ah! Bá! Não quero café... Leva isso daqui! Você também! Parece que tem inveja quando vê a gente sossegada. Não quero café! Estou com sono...

— São onze horas.

Sarita soltou um muchocho, voltou-se rolando na cama. e encarando a negra que sorria, disse frenética, sentando-se:

— Você, Bá! Que coisa! Como não dorme, não deixa ninguém dormir. Enrolou a trança no sinciput, cravou um pente contendo a massa opulenta dos cabelos e, estremunhada, olhos semicerrados, indagou: Que horas são?

— Onze horas, nhanhan. Pois eu não disse?

— É mentira; e abotoando a camisola, queixosa: Quase não dormi. Passei a noite toda a rolar na cama.

— Vosmecê não dormiu? fez a negra com ironia.

— Não dormi mesmo. Não sei que é que tanto estala nesta casa. Parecia que estavam forçando as janelas.

— Ah! nhanhan, é o vento. Tanto medo também ! Medo de que! Quem é que vem aqui?

— Pois sim! Estendeu as mãos, a negra passou-lhe a bandeja e Sarita pousou-a entre as pernas cruzadas, começando a sorver o café lentamente, a pequenos goles. A negra, incomodada com o desarranjo do quarto, pôs-se a ajuntar a roupa; por fim baixou o ferrolho de uma das janelas abrindo um dos lados.

O sol entrou num jato violento iluminando a câmara, forrada de verde, fazendo cintilar o dourado dos pequenitos moveis de luxo que ornavam o dormitório. Sarita, cerrando os olhos, revoltou-se:   

— Oh! Bá! Que mania! E passando-lhe a bandeja, indignada, atirou-se de novo à cama, puxando os lençóis até o queixo: Pois agora, por desaforo, não me levanto. Não me levanto, quero ver. A negra, amuada, tomou a bandeja e arrastava os passos para a porta, quando Sarita chamou-a: Bá! Miss já está de pé?

— Quem? Mamoaselle. Ainda era escuro e já estava lá embaixo com os livros.

— Mentirosa!

— Mentirosa... Vosmecê pensa que todo o mundo tem preguiça como vosmecê? Então isso são horas de alguém estar na cama? Onze horas... E depois de mirá-la, com a voz lacrimosa: Levanta, nhanhan... que coisa! Sarita, para enfeza-la, meneou com a cabeça no travesseiro e pausadamente, em tom de mofa:

— Não, tia Bá...

— Pois então fique. Bem me importa. Vosmecê é quem perde; há de ver como fica velha depressa. Pensa que isso faz bem à saúde? Dia alto e uma menina criança metida na cama... Até Deus castiga; é mesmo. Depois começa a dizer que está doente, esse calor é que põe a cabeça branca. Vosmecê há de ver como num pouco fica com a cara cheia de pés de galinha. Não quer levantar? Melhor! Eu é que não posso ficar aqui o dia todo. O serviço está lá em baixo chamando por mim...

Ia saindo quando Sarita chamou-a de novo:

— Vem cá, negra velha! Bá mostrou apenas o rosto na porta entreaberta: Então... você teve muitas saudades de mim?

— Não tive, não.

— Nem eu! disse Sarita abandonadamente.

— Ah! vosmecê fala brincando. Eu sei mesmo que vosmecê nem pensa em Bá... Eu, sim, é que fico aqui como uma tola quando vosmecê sai. Mas deixa estar, eu hei de aprender à minha custa. Pensa que não acredito? Ora! vosmecê é assim mesmo! E esticou o beiço desconsolada. Mas deixa estar: Bá não há de durar toda a vida. Quero ver quem é que há de ter com vosmecê a paciência que eu tenho. Nem tudo o dinheiro paga, nhanhan! Pensa que há de achar outra Bá, tola como eu? Pois sim! E, mostrando o busto, tocou de leve os ombros com a mão livre: — pra cá, mais pra cá!

Sarita olhava-a sorrindo e, como fizesse uma careta, a negra calou-se, olhando-a carrancuda, com um grande beiço. Mas aos momos da menina não se conteve, desatou a rir e, entrando de novo, pediu lamurienta:

— Levanta, nhanhan. São onze horas. Chega de cama. Vosmecê sabe que eu tenho de estar lá em baixo, porque Inocêncio não sabe fazer nada. Levanta! E como Sarita meneasse de novo com a cabeça, a negra pousou a bandeja e avançou para a cama, os dedos aduncados em garras: — Ah! Não levanta? Não levanta? Pois espera... Mas Sarita encolheu-se enrolando-se nos lençóis e, sentindo os dedos da negra no flanco, começou a gritar, nervosa, torcendo-se às gargalhadas:

— Não, Bá! Não, Bá! Eu levanto-me. Espera!

A negra percorria-lhe o corpo com os dedos e ela contorcia-se rindo até que, sacudindo os lençóis, saltou do leito, corada e linda, ameaçando a ama com um travesseiro.

Mediam-se como adversárias: Sarita sempre em atitude hostil, o travesseiro pronto para atira-lo sobre a negra, caso ela investisse. Bá, porém, vendo-a de pé, observou com acrimônia:

— Vosmecê levanta da cama quente e põe os pés no chão, nhanhan! Não se emenda... depois começa aí a gemer. Tomou as sandálias e, debruçando-se sobre a cama desfeita, passou-as à Sarita: Toma, nhanhan; calça. Vosmecê sabe que não pode apanhar friagem. Depois Bá é que tem que ver. Sarita, atirando o travesseiro à cama, deixou a estreita passagem em que se refugiara e, correndo um leve reposteiro que velava a porta do gabinete de vestir, chamou a ama: — Vem cá, Bá!

Era uma sala vasta. Duas janelas altas abrindo sobre o jardim iluminavam e arejavam o interior ainda em penumbra. Os passos emudeciam no tapete de grandes ramagens que forrava o soalho. Quando a negra abriu as janelas o sol invadiu o aposento flamejando no grande psyché de páu rosa.

Cesário, que chamava ao leito de Sarita “o mar Jônio, donde todas as manhãs, num constante renascimento, Venus saía dentre as espumas das rendas”, referia-se, com entusiasmo, ao gabinete de toilette, onde ela o introduziu depois dos últimos arranjos, para ouvir a sua opinião. O “filósofo”, sempre indiferente à vaidade e às coisas vãs do mundo, não se conteve, mal pisou a pele de raposa que se esparrimava no limiar da porta. Lançou um grande olhar do soalho ao estuque rendilhado do teto e, seguidamente, correndo todos os móveis do lavatório, vasto como um altar, até o guarda-vestidos, em três corpos, “grande bastante para conter as três mil saias dessa ignóbil Isabel inglesa”, do divã de seda carmesim, que Sarita bordara, copiando, de uma gravura antiga, o episódio idílico da noite de Verona, aos quadros de assuntos meigos, até aos Saxes minúsculos: fidalgas dos tempos graciosos, erguidas na ponta afilada dos pezinhos, as saias tomadas nos dedos, risonhas, em mesura galante como a dançarem o passo brando e fugitivo do minuete; pajens, pastorinhos, zagaias entre ovelhas; bronzes claros de Bizâncio, placas ebúrneas e, sobretudo, destacando-se das paredes claras, um grande cruzeiro de ébano, onde empalidecia um maravilhoso Cristo medieval como o concebiam os trágicos artistas da grande era da Agonia: o peito reentrante, cavado, desenhando a ossada curva, o rosto magro, contraído num espasmo de suprema aflição, a barba longa, pastosa, os cabelos rolando pela fronte, pelas têmporas, os dedos crispados, a boca em hiato, os olhos imensamente abertos, voltados para o céu onde pareciam buscar o grande alívio da Morte.

Um esplendido porta-joias, um genuflexório, estilo de Boulle e, ao centro, a secretária pequena, sobre a qual um busto magistral da Mater Dolorosa tinha duas lágrimas na face lívida e gelada. Cesário gabou sem reservas o retiro, levando a curiosidade a ponto de tocar nos frascos, nas caixinhas que havia sobre a pedra rósea do lavatório e nas prateleiras do psyché; declarando, por fim, que não se espantava de que fosse sempre tão formosa quem sabia daquele atelier de beleza.

E, diante do alto espelho, falou, nessa memorável manhã de exame à casa: “A mulher tem obrigação de ser bela para que possa aparecer no mundo; a sua força consiste na graça. A mulher deve domar a sua carne para conserva-la sempre jovem e viçosa à imitação do que fez Ninon, a sempre moça, dona do corpo sobre o qual os anos passaram como passam os sóis sobre os gelos da Jung-Frau.

Sarita, de pé junto à pequenina secretária, mirou-se inteira no espelho do psyché e, aproximando-se, começou a examinar-se detalhadamente, alisando as faces, voltando-se de flanco, curiosa, entretida, com uma travessura de olhos incansável:

— Que dizes, Bá? sou bem feita, não achas? A negra esticou o beiço:

— Não sei que parece: de camisola diante do espelho! Isso é feio, nhanhan. E, lamuriando:

Anda, nhanhan, eu tenho que fazer... Mas Sarita sentia prazer em ver-se assim refletida como um cisne magna; extasiava-se. Descia a minuciosas analises faceiras, arrebitando os lábios para ver os dentes pequeninos, alvos, intactos, repuxando as pálpebras, derreando a cabeça para admirar o pescoço. Tocou a face sobre os molares, tocou os ombros procurando as clavículas com dois dedos, abriu a camisola para examinar o colo, andando com os olhos dum a outro lado e franzindo a fronte:

— Estou emagrecendo, não achas?

— Que emagrecendo, nada! Então vosmecê está magra com umas cadeiras assim? É melhor ficar de uma vez como a mulher do seu Sampaio, que não passa naquela porta.

— Cruzes! Antes uma boa morte. Que horror! Aquilo até parece moléstia, hein, Bá?

— Coitada! Deixa ela. E a negra jeremiou de novo, impaciente: Mas anda, nhanhan. Eu tenho que fazer. Vai tomar seu banho.

— Espera, negra! Tu estás com inveja, fala a verdade. E, apertando com ambas as mãos a cinta, pôs-se a mirar-se como se estivesse espartilhada.

— Mas olha bem, Bá... vê... não estou magra?

— Ah! Deixa de luxo...

Sarita, porém, que parecia estudar atitudes, voltou-se de repente e, sem tirar as mãos da cinta, arrepanhando a camisola nos quadris, a cabeça erguida com altivez, começou a passear pelo quarto majestosamente, como uma rainha: — Hein, Bá... que dizes? Não sou elegante? Fala! E, cantarolando, entrou a voltear sozinha, numa valsa rápida, os braços estendidos para a ama, que se agachava rindo. A camisa, inflada, parecia um balão e o espelho refletia as pernas admiráveis de Sarita, que ora se juntavam, ora se apartavam nos passos sutis e rápidos da valsa. Por fim, cansada, atirou-se no divã, os braços abertos no respaldo em concha, o colo arfando: Ah! Bá! Há quanto tempo não danço! Estou-me sentindo pesada... Decididamente paizinho precisa levar-me a um baile.

— Pra que? Que é que vosmecê tem que fazer nos bailes? O seu baile é aqui em casa.

E Sarita, numa voz cheia, atirando os braços:

— Preciso ver os rapazes...

A negra fez um momo:

— Nhanhan também parece que não pensa em outra coisa. Isso até não é bonito na boca de vosmecê. Vosmecê não tem nada que fazer nos bailes. Nhonhô faz muito bem. E, como a negra continuasse a resmungar, Sarita interpelou-a:

— Ó Bá, se eu casar tu vais comigo?

— Eu! Fez a negra curvando-se e batendo em cheio no peito. Eu! Para seu marido me enxotar de casa? Eu, não! Estou muito bem onde estou. Deus me livre! E, noutro tom, irônica: Uê! Vosmecê não diz que Bá é um caco, pra que é que está perguntando se ela vai com vosmecê? E resoluta: Eu, não! Fico com nhonhô. Ele sim, ele é que me estima. Que é que vosmecê dá à Bá? Nem um trapo. Até um vestido velho que eu peço, vosmecê acha que é porque sou pedinchona, que quero tudo pra mim. E porque tá... tá e porque té... té... Eu, não! Vosmecê há de achar. Olha, negras não faltam. Seu marido que se arranje.

Sarita ouvia tranquilamente bambaleando a perna, a cabeça descaída sobre o respaldo do divã. Quando a negra terminou, levantou-se molemente e curvando-se, as mãos nos quadris, disse com preguiça, depois de um bocejo:

— Pois sim, negra... mas vai arranjar meu banho. E de novo, diante do espelho, cantarolando baixinho a ária da cega da Gioconda, mirava-se enrolando no chignon a trança de ouro.

A negra demorou-se ainda um momento, por fim, correndo o reposteiro, desapareceu resmungando.

Diante do espelho, enlevada na própria beleza, Sarita começou uma cena de garridice como uma atriz que estudasse uma personagem para apresentá-la perfeita nas mais ligeiras minuciosidades.

Olhava serena e, repentinamente, carregando o sobrolho, fingia uma grande cólera e logo sorria, os lábios unidos; descerrava-os para que aparecessem na límpida e brilhante brancura de jaspe todos os dentes: falava para ver as diferentes modificações da sua fisionomia e, por fim, intimamente convencida da sua beleza, disse baixinho como se se dirigisse à própria imagem; “Não, mas eu sou bonita.” E, calada, começou um estudo comparativo, pondo o seu corpo em confronto com o de Heloísa, que ela conhecia todo porque, por vezes, o surpreendera, durante o sono da amiga, quase inteiramente nu sobre os linhos, como essas mulheres orientais tratadas pelos pintores, que fazem as suas sestas de amor estiradas molemente em tapetes de Smirma, dormindo, com o ambar do narghilé ainda perto dos lábios; e achava-se mais graciosa e mais linda.

Desabotoou a camisola e os seios, rijos, fortes, tinham a perfeição dos mármores antigos; arregaçou as mangas e, esticando os braços admirou-os, sorrindo, numa alegria triunfadora e sem malícia, apenas levada pela sedução da faceirice, colocando uma perna sobre um puff, apertou as carnes, sentindo-as rijas como as das estátuas, a de Diana, por exemplo, que num canto do jardim, à sombra de um sabugueiro, parecia chamar o seu bando de ninfas, excitando-as para as temerárias corridas pelo lombo das serras, atrás dos gamos e dos javalis.

Mas um estranho pensamento atravessou-lhe o espírito — e se alguém a surpreendesse ali, naquela quase nudez, a mirar-se? Se alguém penetrasse sorrateiramente ficando a espia-la por trás do reposteiro, numa curiosidade indecorosa como a dos velhos bíblicos? E nomes, imagens de homens conhecidos passaram-lhe pela memória: rapazes com quem dançara, outros apenas entrevistos num bonde, na rua do Ouvidor, e principalmente Cosme Moietti, com a sua barbinha rala, os olhinhos miúdos e impertinentes, magrinho, enfezadinho, mirando-a com a gana de uma fera que prepara o bote.

Voltou-se rápida, descendo a camisola, e com os olhos cheios de espanto, avançou para o reposteiro, espiando de um lado e doutro, o coração aos pulos. Não havia ninguém; tranquilizou-se, tornando lentamente para o divã onde se deixou cair.

Uma voz meiga, de uma suavidade elegiaca, começou a cantar perto. Sarita, espalmando a mão, bateu na parede; do outro lado responderam com pancadas surdas e Bá apareceu à porta do gabinete:

— Ó Bá! Como disseste que Miss já havia descido se ela ainda está no quarto...? Agora mesmo bateu na parede. A negra ficou a encara-la.

— Está no quarto... Então vosmecê não sabe... que ela faz assim sempre? Está lendo, mas já andou lá em baixo. E noutro tom: Vamos, nhanhan, seu banho está pronto e anda que o almoço já vai para a mesa.

— Vamos... E tu vens esfregar-me as costas, sim, Bá?

— Anda, nhanhan. E a negra foi ao grande lavatório, tomou a saboneteira e uma esponja. Sarita passou à câmara. Quando a ama apareceu já ela laçava os atadores do jupon.

— Vamos, Bá.

Saíram para o corredor, e como Sarita passasse diante da porta do quarto de Miss Kate, bateu de leve:

— Bom dia, Miss.

— Bom dia! E a porta abriu-se. A governante apareceu risonha e ia falar quando Bá interveio:

— Mamoaselle, vosmecê já não esteve lá em baixo ?

— Sim, já... por quê?

— É que nhanhan não acredita no que eu digo.

— Ora, Bá! fez um momo e afagando a mão delgada da professora: Então? E Miss no mesmo tom, correspondendo às carícias:

— Então? Agora é que se vai banhar?

— Agora... sorriu e despediu-se. Até já!

A negra tomara a frente e já tinha aberta a porta do banheiro esperando Sarita.

— Anda, nhanhan... Sarita foi a correr e entrou para o quarto de banho. Um grande banheira de mármore fumegava, já a meio d’agua. A menina, para tomar a temperatura, mergulhou dois dedos e logo fechou as torneiras:

— Vamos, Bá!

Despiu o jupon. A negra, de costas, como para não lhe ver o corpo nu, fingia arranjar a toalha e a saboneteira e só quando ouviu o murmulho d’agua onde Sarita penetrara, voltou-se. A menina encolhia-se, atirando mancheias d’agua aos ombros, o cabelo repuxado à nuca. Com o frêmito d’água o seu corpo parecia tremer no fundo da banheira, tão alvo como o mármore. A negra ajoelhou-se e, tomando a esponja, começou a esfregar-lhe as costas levemente, maciamente.

— Olha o cabelo, Bá...

— Deixa estar, nhanhan. Não precisa recomendar tanto.

— Não precisa... Eu sei... Se já estou sentindo água no pescoço.

— Está bom, nhanhan... E a negra começou a ensaboar-lhe as espáduas.

Flocos de espuma alvíssima desprendiam-se e caíam n’agua flutuando como ninfas. Sarita esfregava o ventre, as pernas, mas sentindo cócegas começou a bambalear-se rindo:

— Não, Bá! Oh! Esfrega direito...

— Ah, nhanhan! Tanto luxo também... Eu estou fazendo cócegas? E passeava a esponja ao longo do dorso, mergulhando o braço.

Por fim ergueu-se. Sarita, porém, em voluptuosa inércia, gozava o banho tépido esticando e encolhendo as pernas, até que a negra impaciente choramingou:

— Anda, nhanhan... Isso faz mal. Deu-lhe as costas abrindo o jupon e Sarita, encolhida, os biaços cruzados, saiu friorenta e risonha, estendendo os braços para as mangas que a ama lhe apresentava.

— Que frio, Bá!

— Frio que, nhanhan!

E começou a fricciona-la. Depois, ajustando a gola e entregando-lhe os atilhos, abriu a porta do quarto.

— Vamos, nhanhan... E agora é vosmecê não começar com faceirice diante do espelho, porque o almoço já vai para a mesa. E Sarita saiu encolhida atravessando o corredor a tiritar de frio.

IX

Quando Sarita apareceu na sala de jantar, Jorge, que passeava ao longo da varanda, foi-lhe ao encontro, mal ouviu a sua voz fresca, de um timbre cristalino e meigo. Pelo corpo gracioso cabia-lhe folgado um leve vestido Império ajustado à cinta por uma longa fita, cujas pontas quase lhe tocavam os pés. Tinha o ar infantil nesse trajo de baby e o padrasto mirava-a, sorrindo, enlevado na graça que toda ela esparzia quando a calva rutila de Cesário iluminou a porta. Beijavam-se justamente e o “filósofo”, abrindo os braços como se os quisesse abençoar, saudou a moça que respondia às queixas de Jorge baixinho, risonha, com uma ponta de vexame pudico.

— Ora graças! Folgo de a ver, restituindo o sono e o apetite a mestre penseroso que me não deixou pregar olho anteontem... E com um forte shake-hands: Então: que novas nos dá desse admirável Cosme que ontem não quis trazer o violino à sala? E que boas notícias há sobre moços e moças de beira-mar? Conte-nos...

Mamoaselle, num passo sereno de religiosa, apareceu no corredor com a cadelinha. Sentaram-se à mesa onde Inocêncio começava a pousar os pratos. Sarita, desdobrando o guardanapo, encolheu os ombros, risonha e Cesário, servindo-se de kirsch. “o álcool precursor”, chamou o testemunho de Miss Kate:

— Disse eu, Miss, que se ela não voltasse tão cedo arriscava-se a encontrar o nosso homem morto de tristeza. Miss, com um sorriso frio, acenou afirmativamente andando com os olhos claros de Cesário para Sarita. Jorge adiantou:

— Tu também, Cesário. Apesar da aparente indiferença andavas aborrecido. E dirigindo-se à Mamoaselle: Porque a verdade é que nós três fazemos um trio magnífico de silêncio.

— Menos eu! Bradou Cesário. Ainda quando estou só arranjo um interlocutor imaginário para conversar. Menos eu. Jorge continuou sem desconcertar-se:

— Miss encerra-se com os seus livros; eu, por outro lado, a folhear antigualhas, Cesário a procurar a frase inicial da sua obra. Imagina, minha filha... E riram. O “filósofo”, com a boca cheia, protestou:

— Perdão, mais de uma vez chamei-te para o terreno da discussão, proporcionando-te ensejo de seres útil à tua pátria e ao mundo, colaborando na História. Fugias. Buscavas a solidão. Mesmo Mamoaselle, Miss, emendou, mesmo Miss prestava-se gentilmente a desanuviar o teu espírito com os divinos acordes. E tu? Era só: porque fez mal, e porque não devia ir, e porque não gosto de tal gente, e porque a casa fica como se nela houvesse morrido alguém, que sei!

— Então era eu a causa dessa tristeza? Indagou Sarita com um sorriso ingênuo.

— Só! Afirmou Cesário. Só a menina. Está aí a Bá para dizer a verdade. O copeiro servia sorrindo e Jorge, entre vexado e contente, com uma grande voz:

— Ora, Cesário! Se eu fazia silêncio, tu não perdoavas as Moretti com a tua sátira.

— Critica, disse o filósofo, critica; porque, francamente, acho aquilo uma nichée incomparável, começando no Cosme e acabando nos recheios de Heloisa que consegue dar ao corpo a forma de um violão. Critica! E não é de hoje que me atiro contra aquela gente: desde a serenata de Schubert esganiçada pelo violino até os coleios da pequena, que tanto se estorce e desengonça dentro do colete, que faz a gente pensar em uma víbora a querer fugir pelo gargalo estreito de um frasco. Não é de hoje que as crítico. Riram todos. Mamoaselle levou o guardanapo à boca e estrebuchava, com os olhos cintilantes. Sarita interveio:

— O senhor é implacável!

— Não há tal: sei apenas ver, digo a verdade. E com o talher erguido, o sobrolho carregado: Ó menina! Pois então aquela senhora julga que alguém lhe toma a sério as cadeiras? Houve uma explosão de gargalhadas e o “filósofo”, sempre com os olhos cravados em Sarita, parecia desafia-la a dizer a verdade e foi preciso que Jorge, sacudido pelo riso, batesse-lhe no braço: “Vamos ao almoço, Cesário”; para que ele baixasse o talher. E Mamoaselle, com os olhos úmidos, duas grandes rosas nas faces, desviou a palestra, falando baixinho à Sarita da Dama macabra de Saint Saêns, que lá estava na estante do piano para que a estudassem: Jorge, porém, ouvindo as palavras da professora, acudiu: “Que estudassem, e mais outras peças a quatro mãos, porque pretendia receber alguns amigos no dia dos anos da filhinha”.

Cesário devorava resmungando e, como os três fechassem a conversa sobre a festa planejada, entabulou uma discussão com Inocêncio a propósito de um cão que andara à noite pelo jardim a uivar como um demônio, recomendando ao moleque que nunca mais esquecesse o portão aberto; e espetava azeitonas rolando-as na boca desdentada como se lhe queimassem a língua.

Ao fim do almoço, na frescura da varanda clara, ao sol, os dois homens digeriam pacatamente, ouvindo os pássaros que chilreavam no saibro ou entre a folhagem viçosa quando o “filósofo”, voltando os olhos para o amigo, viu-o lívido, ansiando, a cabeça meio tombada sobre o ombro, os olhos amortecidos, a boca entreaberta. Levantou-se num salto e, agarrando-o pelos ombros, sacudiu-o:

— Eh! Jorge!... Jorge! Que é isso? Jorge balançava-se molemente, flacidamente entre as mãos fortes do “filósofo” como um corpo morto. Cesário pôs-se a chamar: Inocêncio!... Inocêncio!... Mas o amigo parecia recobrar alento; os olhos readquiriam o brilho, voltava- lhe a cor ao rosto, e pouco a pouco, a cabeça foi-se-lhe firmando até que respirou aliviado, impondo a mão ao peito, sem desviar os olhos do “filósofo” que o sustinha sempre pelos ombros, acompanhando-lhe, aterrado, todos os movimentos da fisionomia.

— Ah! Cesário...

— Mas que é isso, homem! Exclamou o “filósofo” pasmado. Que é isso? E, com um sorriso contrafeito: Deste agora para colapsos femininos?

— Não sei que é; atribuo ao estômago: dispepsia. Há dias tive uma dessas coisas, na chácara, justamente depois do almoço: caí e magoei-me. Procurou ver na mão direita o estigma: havia efetivamente uma pequena escoriação, perto do punho: mostrou-a a Cesário: Vês? Mas foi coisa passageira; agora, outra vez.

— E por que não disseste?

— Não valia a pena. E implorando com o olhar, cheio ainda de uma languidez mórbida: Mas não digas nada. Isso é uma coisa à toa... questão de estômago. Vou amanhã a um médico.

— Devias ir já. Porque amanhã, se temos um dia magnífico para um passeio? Vamos hoje. Essas coisas combatidas de pronto não têm consequências, mas, adiadas tomam-nos conta do corpo, meu amigo, e adeus.

— Ora! Suspirou Jorge, limpando a fronte úmida e gelada. Não morrerei disto. É estomago, tenho certeza.

— Pois sim, seja o que for, o que é indispensável é que vás a um médico, nada de charlatães que se ponham a dizer coisas para dar valor à consulta. Vamos, levanta-te. Sentes alguma coisa nas pernas?

— Dormência... e começou a esfregar as coxas lentamente. Por fim ergueu-se pelo braço de Cesário e caminhou encostando-se à balaustrada: Que brincadeira!

— Brincadeira, hein!? Pois sim... mas amanhã vamos ver isso. Nada de síncopes; essas moléstias começam, às vezes, por uma insignificância e, quando a gente pensa que é uma leve indisposição, entra-nos pela casa dentro a certidão de óbito. Fortes acordes soaram no interior da casa e Jorge, voltando-se para o lado do salão:

— Olha Sarita...

— Sarita e a Cegonha, repetiu o “filósofo”, sempre amparando o amigo ao seu braço forte. E, à límpida claridade morna, os dois ficaram calados, os olhos ao longe, ouvindo os compassos trágicos da Dança macabra.

X

Grandes dias de calma decorreram. Miss Kate e Sarita, em longos estudos de piano, passavam horas encerradas na saleta, folheando álbuns, recapitulando spartitos. Cesário, numa grande febre de trabalho, compulsava compêndios, tomava notas, recitava períodos, indo e vindo, a calva nua, ora em casa, ora pelo jardim nas frescas manhãs ou nos tépidos crepúsculos propícios à concentração. Jorge, porém, calado, pensativo, olhos perdidos em cismas, fumava estirado preguiçosamente.

Debalde o “filósofo” lidava com ele procurando arrancar-lhe palavras — mal balbuciava, trincando logo o charuto, o sobrolho carregado. Uma noite, porém, recolhendo-se aos seus aposentos em companhia de Cesário, Jorge, num ímpeto violento, enfiando as mãos pelos cabelos, atirou-se ao sofá andando, os olhos cheio de um estranho fulgor.

— Que tens? Jorge lançou um olhar relampejante a Cesário e, sem dizer palavra, levantou- se, começando a passear pela sala, as mãos para as costas, taciturno, como se sopitasse uma explosão de cólera. Cesário acompanhava-o com o olhar cheio de espanto e ele, vendo o ar estranho do amigo, parou encarando-o. Olharam-se longamente e os olhos de Jorge, de abrasados que estavam, foram-se tornando úmidos e duas lágrimas compridas correram-lhe rápidas pela face gelada.

— Mas que é isso!? Estás chorando, homem?! Que tens? Que tens? Dize! Implorava Cesário comovido. Andas a ocultar-me qualquer coisa! Estou desconfiado de que aquele idiota do médico disse-te alguma asneira. Jorge enxugou lentamente as lágrimas e, com a voz trêmula, os olhos cheios de sofrimento:

— É horrível, meu velho! É horrível! Há ocasiões em que parece que vou perdendo a razão. Sinto-me vazio, atordoado; penso na loucura. Não sei que é. Um horror! Um horror!... Foi até o fundo da sala e, voltando, diante do “filósofo”, continuou: Queres ouvir-me? Queres ver como tenho a alma? Ouve: Conheceste Laura, minha mulher? Lembras-te bem da sua fisionomia?

— Sim, como se a tivesse aqui.

— Sabes que (e com vergonha o digo), apesar das minhas palavras de misericórdia, o que, em verdade, me prendia a essa mulher era um amor físico: um amor brutal, indigno de homem. Bem pouco amei-a com a alma, amava-a com o corpo e o que me ficou foi uma grande saudade física, se me permites a expressão, uma sensação egoísta, a mesma que nos retranse quando deixamos os lençóis tépidos numa manhã de grande frio. Eu sentia falta do perfume que ela usava, dela toda, mas não por uma necessidade espiritual, por uma necessidade física. O apelo quem o fazia era a minha carne e ainda quando ela definhava, já em ossos, pálida, os olhos brilhantes de febre, eu sentia um grande prazer sensual se, ao ajudá-la a voltar-se na cama, meus dedos roçavam pelo seu corpo esquelético. Não a amava, dirás, nunca a amei; entanto, Cesário, toda a minha tortura presente vem ainda dessa mulher que foi a minha companheira de amor brutal somente, porque nunca senti no coração o verdadeiro impulso da paixão. Morta, sinto que reaparece, vejo-a de novo, toda a minha carne alvoroça-se, sinto-me impelido para uma torpeza de que nunca serei capaz, sou vítima de uma sucuba encarnada, não sei que é... Imagina uma visão que achasse corpo e que nele se metesse para melhor perseguir-te, fazendo-se amar, seguindo-te a toda parte, impondo-se ao teu delírio, forçando os teus sentidos... Imagina, Cesário.

Há ocasiões em que me convenço da existência dos espectros. Não sei bem explicar-te o que sinto, ou antes: tenho vergonha de dizer-te por que há pensamentos que são como chagas — devem andar escondidos. Não sei... Ao mesmo tempo tenho vontade de abrir-me contigo, de dizer-te tudo, tudo! sem omissão de uma palavra, de um fato, para que venhas em meu socorro, porque se me não acodem enlouqueço...

— Mas que é? Sê franco. És um feixe de nervos. Sê franco. É a lembrança de tua mulher que assim te traz alucinado? Mas, vem cá, homem de Deus: com calma tudo se faz. Não te ponhas aí a dizer coisas... Vamos, em suma — que é que sentes? Jorge encarou-o de novo e as lágrimas brotaram mais abundantes, a quatro e quatro, e os soluços sacudiram-no. Cesário avançou e, obrigando-o a sentar-se junto à mesa, começou a afaga-lo como se consolasse uma criança: Então! Então, meu velho... Porque não és franco comigo? Que tens? Dize, dize. Bem sabes que não me fica segredo amargo no coração sem que dele não participes. Então? sê franco. Que tens?

E o “filósofo”, sentindo as convulsões do amigo que os soluços sacudiam, levantou a cabeça e sorveu o ar num grande hausto e nos seus olhos luminosos duas lágrimas brilharam.

Jorge, por fim, enxugando o pranto, afastou- se recomeçando os passeios ao longo da sala, mas como o “filósofo” insistisse em que fosse franco, em que lhe dissesse a verdade inteira sobre esse sofrimento estranho que o possuía todo, levantou para o amigo os olhos torturados e, com a voz abafada e surda, irrompeu num arranco:

— Pois sim! Foi cerrar a porta que abria para o jardim e voltou resoluto. Vais ouvir-me, não como amigo, como confessor porque o que te vou dizer é o resultado de uma cruel enfermidade moral. Eu podia rebuscar frases que velassem o horror da narração, mas não quero: vou fazer uma exposição clara do que sinto, para que julgues do estado de minh’alma e avalies o meu tormento.

Sentaram-se, e Jorge, pausadamente, como se lhe custasse emitir as palavras, começou baixinho: Desde que me morreu Laura nunca mais, e tu bem sabes, outra mulher viveu à minha sombra: esqueci pouco a pouco todos os prazeres e concentrei-me vivendo exclusivamente para a pequena que me ficou como um legado dessa mulher que levou para a morte toda a minha alegria porque, desde que voltei do cemitério onde fui deixar o meu suplício, nunca mais conheci a felicidade, e nos sulcos do sorriso a dor semeou. Fechei-me. És o único dos meus amigos, os outros, ou porque ressentiram-se de minha mudança, ou porque quiseram fugir ao contagio da melancolia, esqueceram-me.

Sarita bastava para ocupar o meu pensamento. A mãe deixou-a mocinha, e logo que o seu destino começou a correr sob a minha responsabilidade, cerquei-a dos mais solícitos cuidados, velando até pelos seus sonhos, adivinhando-lhe os pensamentos, procurando-lhe todas as alegrias, todos os prazeres numa atmosfera tranquila e honesta. Miss, que a tem acompanhado, tu bem conheces; os carinhos de Bá suprem vantajosamente os cuidados maternos, de sorte que nada lhe tem faltado até hoje e ela cresceu feliz e virtuosa, sem um dissabor, sem uma contrariedade. É hoje uma mulher, uma linda mulher que fará a felicidade do homem mais exigente. Levantou-se visivelmente transformado, torcendo as mãos, os olhos fuzilantes.

— Então!? Fez Cesário.

— Então!... repetiu Jorge maquinalmente, e como se apanhasse o fio da narração, continuou baixando a voz: Ah! Cesário... E de repente: Lembras-te bem de Laura?

— Perfeitamente.

— Então dize... E caminhando para o fundo da sala onde estava pousado o cavalete com o retrato de Sarita: Dize francamente, não é ela que aqui está? Dize?

O “filósofo” parecia arrepiado. Levantou- se como impelido por uma mola e, com os olhos cravados no retrato, empalidecia. Jorge insistiu:

— Dize, Cesário... dize.

— Sim, tem traços... mas não acho que se pareça tanto assim. E de repente: Mas porque isso?

Jorge, sempre ao lado do cavalete, voltou os olhos para Cesário e fitou-o, sem uma palavra.

— Mas... porque isso? Tornou o “filósofo”. Vendo, porém, a expressão enternecida da fisionomia do amigo, escancarou a boca desmedidamente, como para soltar um grito, mas levando ambas as mãos ao rosto pôs-se a dizer: É horrível! É horrível! Atordoado, ia e vinha tomando e deixando objetos sobre a mesa.

Jorge tremia, mas dominando-se, avançou para

Cesário. As palavras caiam-lhe em borbotões dos lábios:

— É a minha loucura, aí tens. É a minha loucura. Não posso mais olhar Sarita sem lembrar-me de Laura e essa lembrança macula, por assim dizer, a virgem, e humilha-me. Se a vejo não me limito a achar a semelhança nas linhas do rosto, meu espírito doente desce a minudências torpes — despe-a para procurar nas formas do seu corpo a ressurreição da carne amada. A sua voz lembra-me a voz da outra, os seus mínimos gestos despertam-me recordações. Fujo de entrar nos seus aposentos com receio de cair fulminado com o cheiro capitoso das essências que a outra usava e que ela usa. Evito encontrar-me a sós com ela, não porque duvide de mim, resta-me ainda um pouco de razão, para não acordar no espírito a ideia torpe, para não dar ensejo ao outro “eu” que vive dentro em mim mortificando-me, sugerindo-me vilezas, contra as quais é inútil a revolta da minha dignidade, porque ele é mais forte do que tudo. Nessa noite de indomável insônia foi grande o meu suplício. Era ela que me vitimava, ela! Sarita, surgindo diante de mim, ora na luz, ora na sombra, falando-me, fazendo ninho junto a meu corpo como uma jovem esposa que se agasalha amorosamente ao flanco do marido. Era ela, Cesário. Eu via-a, sentia-a. É torpe, pois não é?

Cesário, num arranco, exclamou:

— É horrível!

— E mais ainda, Cesário. Ha ocasiões em que me sinto de tal modo vencido pela sedução que receio por mim, saio bruscamente como um louco, fugindo. Acordado, parece-me que sonho; sonhando, tenho a sensação do real e não sei se já me não vão falhando as faculdades. A verdade é que uma noite, quando dei por mim, estava em meio da escada, a caminho da alcova de minha filha, sem pensar, levado por uma força estranha que me arrebatava, porque eu nem mudava os passos; ia como aereamente para o crime. E ela, inocente, concorre mais e mais para agravar esse delírio, atraindo-me, acariciando-me. Que hei de fazer, Cesário? Que hei de fazer, dize! Dize agora que conheces tudo! Dize! Não é amor, bem sei; amor não é possível: um pai não pode amar a filha que criou, um velho... sim! Que sou eu senão um velho? Um velho não pode desejar o corpo virgem e puro de uma criança, nem eu desejo, não sou eu, é um espírito que vive dentro em mim, impelindo-me ao crime. Mas, enfim, já que conheces a minha moléstia horrível dize, dize: que hei de fazer?

O “filósofo” sentou-se à mesa e, tomando da espátula, começou a tamborilar na pasta aberta e, calmo, pausadamente, falou sem levantar os olhos:

— Se outro fosses, se eu te não conhecesse, dir-te-ia: mata-te ou foge; digo-te simplesmente — cura-te. Esse pensamento é tão negro que só pode ser germinado em um cérebro que vai caindo em noite. A alma é como a vaga do oceano — repele a podridão, e, para que o lodo se forme a ponto de fecundar atrocidades torpes, como essa alucinação que tens na alma, é necessário que todas as faculdades tenham caído em inércia, que estejam rebalsadas e mortas. Não vejo outra coisa a aconselhar-te senão que procures um médico. Outro homem que me fizesse confidência tão triste como a que acabas de fazer, não a terminaria, de certo, para os meus ouvidos, porque eu saberia evitar em tempo o nojo do remate; mas tu, não. Fizeste bem em buscar-me; conheço-te e posso julgar do teu sofrimento, mas curá-lo, não. Acho que deves procurar um médico. Que diabo! Quando uma chaga se vai dilatando em nossa carne damo-nos pressa em subir as escadas do cirurgião para que ele nos limpe do vurmo e nos alivie das dores; porque não havemos de procurá-lo quando o câncer nos rói o espírito? Não tens outra coisa a fazer senão buscar um médico, acho eu, e isolar-te. É necessário que fujas ao ambiente mórbido, como quem foge à margem pestilenta de um pântano. Evita, ainda com sacrifício, vê-la, ouvi-la, senti-la; esquece-a e convence-te, para teu bem, de que não estás apaixonado, mas sim enfermo, gravemente enfermo. Isso bem me parecia. Tu não tens a vida tranquila de um homem equilibrado — essa inércia, esse relaxamento físico e moral, porque não te moves, não lês, são sintomas claros de uma moléstia que te vai minando. Pensas, talvez, que não tenho observado os teus êxtases? Pensas que não tenho ouvido os teus monólogos? Acompanho-te, muito de perto, sabia que estavas doente, mas não te julgava tão grave como, em verdade, estás. E o que te digo é que deves procurar um médico, quanto antes, sem perda de tempo, para que não caias em poder desse mal nojento. Cura-te. Calou-se, continuando a tamborilar com a espátula. Subitamente, porém, erguendo a cabeça: Mas desde quando sentes isso...? Como foi?

— Não sei, não sei. Isso se foi gerando dentro em mim sem que eu sentisse. A princípio, quando ela procurava-me, muitas vezes para adormecer com a cabeça repousada sobre o meu ombro, eu experimentava uma sensação tranquila, paternal; sentia-me afagado, acompanhado, vendo-a junto a mim, amparada pelo meu braço, vigiada pelo meu olhar; mas (creio que nasceu nessa hora fatal a minha obsessão) uma noite, como lhe doesse a cabeça, Sarita recostou-se a meu peito e adormeceu, enquanto eu passeava os dedos pelos seus cabelos. O perfume que subia das suas tranças começou a evocar dentro em mim o passado — reconheci-o, era o de uma loção antiga que Laura usava e cujo aroma ficara, por assim dizer, dentro em mim, conservando a múmia dessa mulher que eu trago comigo, que hei de trazer sempre! Baixei os olhos, vi a linda cabeça de Sarita junto ao meu coração e lembrei-me dos felizes tempos do meu amor, quando, noivos, ficávamos esquecidos, de preferência nos ermos, e ela ia aos poucos fechando as pálpebras e adormecia por fim, enlaçando-me com os seus braços. Foi assim, foi assim nessa noite fatal, que comecei a reconstituir a morta na que eu tinha junto ao peito, vendo nas linhas doces da fisionomia da virgem os mesmos traços da outra, e tão alucinado fiquei que me convenci de que não era outra senão Laura, ela mesma, que ressurgira para uma tentação, e beijei-a... Sarita despertou e seus olhos cheios de sono pareceram-me alumiados por uma indizível claridade. Vou explicar-te porque julgo datar dessa noite o que chamas uma enfermidade. Quantas vezes beijo Sarita durante o dia? Sempre que a encontro, sempre que a acaricio, sempre que a vejo; entanto só tenho memória desse beijo rápido que lhe dei no rosto gelado quando a tive adormecida ao colo. Posso mesmo dizer que guardo o sabor, que ouço ainda o leve ruído, que tenho nos lábios a impressão macia da face. Esse beijo dura, e os outros? Porque não me impressionam?... Não sei, a verdade é que desde então comecei a sentir-me modificado, atraído pela criança, não como antigamente, pela ternura, mas por outro sentimento, pelo mesmo sentimento que fez com que eu, devorado pela ânsia ardente, levasse à alcova nupcial a minha esposa.

— É horrível! É horrível! murmurava Cesário, os olhos baixos, alisando a barba. É horrível!

— E agora, o meu suplício aumenta porque começo a sentir uma espécie de pudor que me condena. Parece que todos leem nos meus olhos os meus pensamentos, vejo sorrisos maus em todos os lábios, adivinho palavras pensadas, sinto que toda gente aponta-me como um torpe e não me atrevo a fitar os que me cercam; sinto-me vexado, fujo. Miss, principalmente, não imaginas como a receio; chego a detesta-la: parece-me sempre que ela me fala com ironia, noto constantemente que seus olhos seguem os meus movimentos com a curiosidade de quem espreita um crime. Já não posso vê-la: detesto-a....! E tenho medo ao mesmo tempo. Bá, essa mesma, coitada! apavora-me! Parece que também vive a espiar-me, a ouvir o que digo dentro em mim quando o meu delírio começa. E, à noite, quanto me atormenta a ideia do sonho! Penso sempre que, a sonhar, conto a minha alucinação, acordo sobressaltado e já tens visto com que precipitação risco fósforos e olho em torno, assustado, atônito; é que cuido sempre que há gente no meu quarto para escutar o que digo... Ah! Cesário, um criminoso deve sofrer com o segredo do seu crime como eu sofro com o meu delírio. E dizes que eu vá a um médico... Queres então que eu confie a outrem esse horror? Queres que eu mostre o pântano de minh’alma onde vive essa miragem lúbrica? Queres que eu fale da minha vergonha, dize...!

Cesário, que folheava maquinalmente um grosso volume, fechou-o com estrepito e, enfiando as mãos no bolso das calças, perfilou-se diante de Jorge, apertando os olhos:

— Filho, essa é a minha opinião. Acho que és um caso típico de degenerescência. Não sou médico, mas tenho lido e, ou esses bouquins não passam de fardos de mentiras ou tu estás com uma terrível moléstia d’alma: tens a tua psicose. E não te espantes, isso é hoje comum. Segundo a ciência todo homem de espírito é um doente. Tens imaginação? És um louco; tens faculdades inventivas? És um louco; pensas? Corre para a célula de um hospício; investigas? Mete-te em uma camisola de força. Só há um homem são — é o imbecil; esse é equilibrado. Aqui onde me vês estou cheio de estigmas mentais, porque, lendo os mestres, fui encontrar-me descrito nas páginas que eles aturadamente compuseram. Sou um degenerado, tu és outro. A minha moléstia, por enquanto, não me deu impulsos perversos — leva-me a ler velharias e a rebuscar origens de homens e de coisas; sou um inofensivo, por isso, em vez de andar pelos consultórios, ando pelas bibliotecas, abeberando a mania. Tu, não: deves ir ao clínico, porque, em verdade, o teu mal é terrível. Que diabo? Tens algum louco na família? Jorge estremeceu e começou a pestanejar; tremiam-lhe os lábios e todo ele entrou a tremer, a tiritar, como num grande frio. Levou ambas as mãos às têmporas, depois aos olhos, apertando-os, tonto, cambaleando, estendeu um braço como para buscar apoio, mas vacilou e caiu por terra inerte, os braços abertos.

XI

Cesário, que avançara, não teve tempo de ampara-lo e, quando o viu estendido, agarrou-o pelo tronco abraçando-o e, esforçando-se para levanta-lo, escancarava as pernas; por fim conseguiu ergue-lo e, dobrando de esforço, a murmurar: “Ó senhor! isto afinal é serio...”, levou-o meio arrastado até à cadeira, conseguindo deitá-lo.

— Jorge! Jorge! Mas este homem está bem doente... isto é serio...! Jorge! Agitava-o, tomava-lhe o pulso e ele mal respirava, empalidecendo a mais e mais. Cesário correu ao tímpano e premindo-o, atarantado, voltou para junto do amigo, chamando-o de novo: Jorge! Jorge! Ó senhor! Jorge! O copeiro apareceu à porta. Chama a Bá, depressa! E continuou procurando despertar o amigo: Jorge! Então que é isso? Tomava-lhe o pulso seguidamente, arranjava-o mais a cômodo na cadeira e, como a cabeça oscilasse, susteve-a.

Ouvindo passos, voltou-se: era a negra que entrava arranjando a trunfa e da porta, como o visse a lidar com o amigo, indagou assustada:

— Que é, nhô Cesário? Que é que aconteceu? E precipitou os passos. Diante de Jorge, vendo-o pálido, imóvel, desatou a chorar: Ah! Nhonhô! Que é que ele tem, nhô Cesário? Ah! Minha Nossa Senhora!

— Espera, Bá! Espera... não faças bulha, isto passa. Não quero que a menina saiba. Vamos, ajuda-me primeiro a leva-lo à cama, isto é que é necessário... Vamos...! E o “filósofo” azafamado, agachou-se para tirar as botinas ao enfermo, mas erguendo-se logo: Espera, Bá... Corre lá em cima e manda o copeiro chamar um médico qualquer. E, como a negra fosse saindo: Olha, mas recomenda-lhe segredo: que não diga nada à menina. Anda depressa e vamos ver se o deitamos.

A negra saiu aflita e Cesário começou a despi-lo desabotoando-lhe o colete, as calças, precipitadamente, a tremer. Isto, afinal de contas, já não é uma coisinha... Ora vejam! São síncopes sobre síncopes e fica que parece um cadáver...! Mirou o rosto do desfalecido e, como vê nele percebesse alguma contração que denunciasse a volta dos sentidos, pôs-se a chamá-lo: Jorge! Jorge! Demorou-se a olha-lo, mas desanimado, sacudiu o braço num gesto de desespero: Qual!

A negra reapareceu:

— Já foi, nhô Cesário.

— Vamos, Bá. O melhor é deitarmo-lo. Aqui nem ele está à vontade, nem mesmo o médico pode examina-lo! Vamos: segura-lhe os pés, vê lá... Vamos! E os dois, lentamente, foram carregando o enfermo para a cama, repousando-o no leito, sobre as cobertas lisas. Cesário correu a acender o gás, enquanto Bá arranjava os travesseiros.

— Coitado de nhonhô! Mas que foi isso, nhô Cesário?

— Não sei, Bá; não sei. E Cesário, com um lenço encharcado em perfume, adiantou-se para o leito, tomando na mão a cabeça do amigo, chegando-lhe o lenço ao nariz para que aspirasse. Bá, receiando pela morte, aconselhou por entre lágrimas — que era melhor chamar nhanhan. E impondo carinhosamente a mão sobre a fronte pálida do enfermo:

— Nhonhô está tão frio...

— Qual o quê! Que é que nhanhan vem aqui fazer? Vem chorar e não é com choro que o havemos de pôr bom. Nada de mulheres. Vamos tratar de alivia-lo das roupas. Puxou as calças atirando-as à Bá e, aflito, sem desviar os olhos do rosto de Jorge, passou a mão por baixo da camisa, começando a esfregar-lhe o peito. Vamos, Bá... esfrega-lhe os pés. O que é preciso é calor. A negra correu solicita e, tomando quase ao colo um dos pés de Jorge, esfregando-o, balbuciou:

— Mas nhonhô nunca teve isso... é a primeira vez.

— Qual primeira vez! Eu é que não tenho querido dizer. Há dias quase rebentou a cabeça de encontro às grades da varanda. Ele é que é teimoso, vive a dizer que é estomago, sem querer procurar um médico. Hoje então foi de repente: estávamos a conversar e não sei mesmo a que propósito eu perguntei-lhe se tinha algum parente louco... Começou a empalidecer, a tremer e caiu redondamente sem dar-me tempo de ampara-lo. A negra avançou para o meio da câmara soluçando:

— Ah! Nhô Cesário... Ah! Nhô Cesário... foi isso! O “filósofo” voltou-se e vendo os olhos assombrados da ama, que o recriminava comovidamente: Ah! Nhô Cesário... indagou:

— E que tem? Que tem isso...?

— Ah! Nhô Cesário... foi isso mesmo que matou nhonhô... foi isso mesmo, nhô Cesário.

— Isso, que? Insistiu o “filósofo”.

— Essa pergunta que vosmecê fez. Foi isso, nhô Cesário.

Os olhos do bom homem abriram-se desmedidamente e fitaram a negra que soluçava com o rosto nas mãos. Avançou por fim e, tomando-a por um pulso, interrogou-a:

— Por que, Bá... Então algum dos parentes...?

— A mãe dele, nhô Cesário...

— Acabou louca...?! Interrogou o “filósofo” quase num grito.

— Foi, sim, senhor! Cesário cruzou os braços e, voltando-se para Jorge, fitou-o enternecido e as lágrimas saltaram-lhe dos olhos em grandes jorros abundantes.

A negra ia e vinha, sem uma ideia, soluçando, e Cesário, como atordoado por uma forte bordoada, parecia alheio a tudo, esquecido inteiramente de Jorge que continuava regelado e hirto como um cadáver, mas inopinadamente, voltando-se, avançou para o leito, com a voz trêmula, ressentida, começou a falar com precipitação como para atordoar-se.

— Enfim! mas que culpa tenho eu? Sim? Que culpa tenho eu? Podia lá adivinhar?! Mas nada lucramos com isso, o essencial agora é chamá-lo à vida. Nada de perder tempo. E esse médico? Que diabo! Com certeza o copeiro foi por aí fazendo estação em todas as vendas. Ó Bá! Vê se me arranjas um pouco de mostarda. Vamos aplicar-lhe um sinapismo, porque isso está me parecendo uma congestão. Manda à farmácia. E a negra, como se não atinasse com a porta, começou a andar pela câmara doidamente, às tontas, resmungando:

— Eu vou mesmo, nhô Cesário. Eu vou mesmo.

— Então vai e vê se encontras esse maldito copeiro por aí, porque afinal...

A negra saiu a correr e Cesário ia para junto do leito quando ela reapareceu:

— Nhô Cesário... Aí tem farinha de mostarda. É para fazer sinapismos?

— Sim, Bá, mas avia-te. Estamos aqui a perder tempo com risco para a vida do pobre homem. A negra desapareceu e Cesário, sentando-se à beira da cama, tomou ao colo os pés de Jorge e começou a esfrega-los na palma com força: Que horror! Só a mim! Mas que diabo! Eu não adivinho! Ora esta! Pobre rapaz! Isso, entretanto, não é de hoje, sim, não é de hoje. Anda preocupado com essa saudade voluptuosa, o sistema nervoso agitado, predisposto e com esse choque... Isso sim. Que culpa tenho eu? Podia lá adivinhar. Que lhe disse eu, há dias? Sim, que lhe disse eu? É moléstia. Palavras tais passavam pelo espírito do “filósofo” que redobrava de esforço esfregando os pés gelados do amigo, mas sentindo-os sempre frios, correu a procurar lãs, revolvendo todos os cantos, escancarando moveis: Nem um cobertor, nem uma manta. Achou por fim uma pesada capa espanhola, correu com ela para o leito atirando-a sobre os pés do enfermo, embrulhando-os, aninhando-os; e foi de novo ao pulso. As pulsações enfraqueciam sensivelmente, o calor desaparecia do corpo, a vida mal se acusava e parecia ir aos poucos fugindo, sem que um último lampejo acendesse as pupilas paradas do moribundo para um derradeiro olhar de despedida. Cesário, sem desesperar, temia entretanto e, ansioso pelo médico, saiu à sala justamente na ocasião em que a ama reaparecia com um prato:

— Está aqui, nhô Cesário. Ele não está melhor?

— Ainda não! Isso não vai assim. E panos, Bá? Vai arranjar panos, insistiu o “filósofo” tomando o prato das mãos da ama. A negra correu à câmara e, lançando um piedoso olhar ao leito onde o enfermo mantinha a mesma atitude rígida, passou ao gabinete de vestir, d’onde, sem grande demora, saiu rasgando tiras:

— Vamos, Bá... Vamos.

Os dois, então, sobre a grande mesa de trabalho, começaram a arranjar os sinapismos; a ama sempre lastimando, Cesário a falar:

— Não é nada, Bá. Eu tenho visto horrores... isto não tem valor; maior é o susto. A menina ainda não desconfiou?

— Não, senhor.

— Nem é conveniente que saiba. Se ainda nos pudesse auxiliar de algum modo, bem; mas vem para aqui chorar e então é que não arranjamos nada. Assim é melhor. Levantou os olhos para a porta:

— Nada de médico. Com certeza o copeiro anda por aí de pagode com outros. Isso é uma cáfila!

Tomou as pastas do sinapismo:

— Vamos com isto; há de melhorar por força. E enquanto espera-se o médico vamos tentando. Se não lhe fizer bem, mal também não lhe fará. Seguiram para a câmara.

— Segura-lhe os pés que eu aplico a mostarda. A negra obedeceu e Cesário, aplicando o revulsivo, passando as ligaduras, trêmulo, quase sem as poder atar, dizia:

— Palavra... mas com tal violência nunca vi. Foi fulminado... Fulminado. Conversávamos e de repente... — e como tivesse as mãos ocupadas sacudiu com a cabeça num movimento louco: Nunca vi assim.

— Quem sabe se não está morto?! Suspirou a negra.

— Qual morto, Bá! Pois não vês que respira...? Mas como se lhe ocorressem suspeitas pousou a mão sobre o peito de Jorge para sentir o coração e animado:

— Bem vivo! Isto é um instante. Agora com os sinapismos vais ver como tudo desaparece. E embrulhou-lhe os pés na pesada capa. O diabo é o médico; já podia estar aqui. Bem, agora vai para cima senão a menina desconfia e adeus! Vai. A negra, porém, negou-se garantindo que Sarita estava na sala jogando com Mamoaselle. Sim, mas pode chamar-te e se não te acha lá em cima desce. Não, Bá, acho melhor que vás; eu fico com ele; vai descansada. E continuava a arranjar a capa de modo a aquecer os pés gelados do enfermo. Mas a campainha do portão tiniu com força, os dois voltaram-se ao mesmo tempo:

— Está ai o médico. Vai recebê-lo, Bá; vai depressa que ele pode subir e se a menina o vê... Anda! E impelia a negra. Bá precipitou-se levando os pés de rasto numa corridinha cansada e chegava à porta justamente quando o médico aparecia seguido do copeiro.

— Faça o favor de entrar. Cesário adiantou-se:

— Entre, doutor.

Era um velho alto, robusto, de espessas barbas brancas. O “filósofo”, tomando-lhe o chapéu, segredou para que a ama não ouvisse:

— É um caso de apoplexia, creio eu. O médico mirou-o. Venha ver. Há quase meia hora que está desacordado. O médico desabotoava o sobretudo e Cesário, apressado, ansioso por ouvi-lo, passou-lhe um braço pelos ombros: Venha, doutor. Parece um cadáver. E penetraram a câmara. Bá, pé ante pé, contendo os soluços, foi encostar-se à porta para ouvir as palavras do médico, balbuciando baixinho, com enternecimento:

— Coitado de nhonhô! Meu pobre sinhô!

O médico, caminhando lentamente, relanceou um olhar curioso pela câmara. Cesário precedia-o chamando-o com os olhos cheios de aflição e, quando o viu parar diante do leito, numa atitude grave e recolhida, começou a historiar precipitadamente, em sussurro, o acidente:

— Estávamos conversando ali na sala. Foi de repente: caiu fulminado. Trouxemo-lo para aqui, eu e a ama e, até agora, está como vê. E como o médico tomasse o pulso ao enfermo, “filósofo” imitou-o: Está gelado... E explicou: Lembrei-me de aplicar um sinapismo nos pés. Que acha o doutor? Em ocasiões como esta lança-se mão de tudo...

O médico parecia surdo, mas como Cesário insistisse em querer saber se andara bem, meneou com a cabeça dizendo em tom benevolente:

— Não faz mal. Esfregou as mãos e, encarando-o, afirmou: Pois é justamente o que o senhor pensa.

— Apoplexia!?

— Pois não; claramente manifestada. Voltou-se para os pés do leito: Está ainda com os sinapismos?

— Ainda.

— É conveniente deixar. Ergueu-se: Vamos fazer a receita. E foi saindo. Atravessava a porta quando a negra, que se mantivera quase colada à parede, ouvindo com uma atenção ansiosa, perguntou timidamente, as mãos postas, em voz humilde e trêmula:

Ele está muito doente, nhonhô? Não escapa ?!

O médico, que não dera por ela, voltou-se e, olhando-a em face, carregou o sobrolho:

— Esta mal, está; e caminhava; mas a negra, quase de rasto, seguia-o:

— Mas não escapa, nhonhô?

— Espera, Bá; tem paciência. Há de ficar bom; interveio Cesário repelindo-a delicadamente e ali ficou estatelada olhando a câmara, silenciosa e fúnebre como se a morte já a houvesse penetrado. O médico sentou-se à mesa e Cesário, abrindo a pasta atochada, rebuscava uma folha de papel quando o médico, puxando uma tira, declarou “que aquilo mesmo servia” e procurava com os dedos uma caneta. Mas Cesario, que percebera na tira linhas escritas em letra miúda, a lápis, arrancou da pasta uma folha de almaço, estendeu-a diante do médico, salvando o rascunho. Afastou-se e, no meio da sala, com a tira muito chegada aos olhos, procurou decifrar o escrito. Eram notas sobre antigas eras, nomes de instrumentos, expressões exóticas e um começo de paisagem serena, fresca de orvalho, ao sol nascente que alourava outeiros. Dobrou a tira, meteu-a no bolso e caminhou para a mesa.

O médico meditava com a fronte na mão, a pena parada sobre o papel. Cesário alisou as barbas, nervoso, deu uma volta, olhando em torno, apalpando-se como se procurasse alguma coisa ; por fim dirigiu-se para a câmara.

Bá ajoelhara-se junto da cama e chorava. Logo que sentiu o “filósofo” voltou-se angustiada, de mãos postas, numa atitude de desesperança e de suplica:

— Nhô Cesário, ele morre! Não escapa! É melhor chamar nhanhan.

— Ora, Bá! Que vem ela cá fazer? Atrapalhar mais. Qual morre! Isso é um ataque; passa.

Foi até a porta, lançou um olhar ao salão e, vendo o médico na mesma atitude meditativa, coçou a cabeça, frenético: E ainda por cima trazem um pedaço de zebra que nem formular sabe. Um homem a morrer e o estafermo a esperar a inspiração de Esculápio. Onde diabo terá o moleque afuroado essa alimária?! Tornou à porta e, alongando o olhar, demorou-se à espreita, resmungando arreliado: Ora isto! E não lhe sai uma droga. Atirou os braços num gesto de abandono desesperado: Isto nem alveitar é... Nem para burros! Ora vejam! E, cruzando os braços, caminhou para junto da cama e ficou contemplando o corpo inerte do amigo: Morre. Assim há de morrer... Mas, assaltado pelo conselho que ouvira, falou à ama: Vê os sinapismos, Bá. E se essa veneranda cavalgadura continua empacada, vou eu mesmo buscar um médico. E, d’olhos no teto: Uma hora para escrever três linhas...!

Passos soaram no salão e Cesário precipitou-se ao encontro do médico que experimentava na unha a lâmina de uma lanceta.

— Vai sangra-lo, doutor?

— Um golpe na mediana cefálica... Depois um drástico. A negra, descobrindo a lanceta, que reluzia, levou as mãos à cabeça. O médico abeirou-se do leito e Cesário descobriu o braço ao enfermo, sempre imóvel. O médico alisou-o como em afago e, lentamente, premindo-o, engorgitando a veia, apontou a lanceta. Bá voltou o rosto aterrada e Cesário, d’olhos muito abertos, contendo a respiração, dominava-se, quando o sangue esguichou. O “filósofo” estremeceu e o médico, desviando-se, ficou algum tempo a olhar, retirando-se depois vagarosamente, limpando o ferro.

— Não estanca o sangue, doutor?

— Não é necessário. Agora o clister, depois um drástico. Vamos ver.

Cesário repousou no travesseiro o braço de Jorge. O sangue coagulava-se em placa na cisura e em reticulas pelo braço; a toalha estava toda manchada. Quando Cesário saiu à sala, o médico, de mãos para as costas, examinava atentamente o aposento, passeando os olhos pelas paredes, pelos cantos, com uma curiosidade fria. Cesário abordou-o:

— Doutor, mas não lhe parece mau sintoma essa insensibilidade...?

— Não, é natural! Disse, voltando-se lentamente.

O copeiro apareceu à porta e Cesário investiu com a receita:

— Vai depressa, a correr. E ao voltar, como visse o médico parado diante do cavalete onde repousava o retrato de Sarita, não se conteve: Um médico! Com um doente grave... francamente! Resmungou, e ia para falar quando ouviu chamarem Bá, aos gritos. Torceu as mãos e, quase a correr, passando por diante do médico desatinadamente, entrou na câmara:

— Olha, Bá, a menina chama-te. Vai! Mas vê lá, limpa os olhos. Não lhe apareças chorando. Vai depressa, anda.

A negra, porém, insistiu:

— Nhô Cesário, nhonhô está muito mal, tanto sangue! É melhor dizer a nhanhan. É melhor que ela saiba, nhô Cesário. E, fitando-o com os olhos molhados, esperava a resposta.

Cesário hesitou algum tempo; resignando-se, por fim, bradou com grandes gestos:

— Queres dizer, dize! Eu sempre quero ver o que ela vem aqui fazer. Queres dizer, dize de uma vez...! Pouco me importa! E saiu acompanhando a negra que caminhava arrastando passos apressados como se, desesperada da salvação de Jorge, quisesse que Sarita ainda o encontrasse com vida para a despedida final.

O médico, ao ver Cesário, sorriu com bonhomia e, estendendo um braço para o cavalete, indagou:

— É sua filha?

— Não senhor. Preocupado com o doente coçava a cabeça frenético, cruzava, descruzava os braços, sungava as calças aos repelões, medindo a sala a largas passadas. Súbito, irritado com a impassibilidade do médico, plantou-se-lhe à frente, carrancudo: Mas afinal, doutor... é preciso ver. Ele está mal, quase sem pulso, frio, inerte. O médico fez um gesto vago, despreocupado e, sentando-se no pliant, acendeu tranquilamente um cigarro.

— Já mandou à farmácia?

— Sim, senhor.

— Então esperemos. E não tenha receio, é assim mesmo.

— É que... Eu sei lá...! Passos precipitaram-se à porta e Sarita entrou alucinadamente, seguida de Miss. Cesário precipitou-se-lhe ao encontro: Não é nada. menina. Está aqui o doutor. Foi uma síncope, já está melhor. E o médico, que se levantara, confirmou:

— Não se assuste, minha senhora. Já o mediquei. Está bem. Não convém perturbá-lo.

— Mas não posso vê-lo, doutor?

— Por enquanto, não... Sarita abriu olhos enormes e, como se quisesse esvurmar o segredo em que se fechavam os dois homens, fitava-os percucientemente. Por fim irrompeu em decisão voluntariosa:

— Não, doutor, tenha paciência: hei de vê-lo. Cesário interveio:

— Ora, menina... Logo, porém, abrandando-se: Pode vê-lo... O Doutor fala porque entende que ele precisa de repouso. Pode vê-lo... Disse e precipitou-se para a câmara, atirou a toalha sobre o braço nu do enfermo, tomou-lhe o pulso, depois, mais animado, chamou-a: Pode entrar. Sarita avançou como impelida e, mal atravessou a porta, rompeu aos soluços.

Diante do corpo rígido do padrasto desfez-se-lhe toda a energia e as lágrimas rolaram-lhe dos olhos em grossos fios. Miss, que se adiantara em pontas de pés, ficou diante do leito a olhar, tranquila e, como visse a desolação de Sarita, acudiu para consola-la, passando-lhe o braço pelos ombros, atraindo-a com meiguice, animando-a, encorajando-a, a pedir o testemunho do médico. Mas foi Cesário quem a arredou de junto do leito e, como chegasse com ela à sala, deu de face com o copeiro que esperava, junto à mesa, com um embrulho nas mãos.

— Vai lá dentro, homem. Entra!

— Ele está morto, senhor Cesário! Diga a verdade, pelo amor de Deus! Para que há de iludir-me!

— Qual morto! Não vê a menina que é um ataque? Então nunca viu um ataque? Deixe-se disso, não chore...

— Então deixe-me ficar junto dele. Que tem que eu fique lá?

— Não, agora não é conveniente; o médico precisa estar à vontade. Fique aqui, eu estou também aqui. Não há perigo, descanse; não há perigo. Sabe que não costumo mentir.

— Mas o senhor não queria que me chamassem.

— Não queria, não queria... para não incomodá-la. Isto já podia estar acabado se aqui estivesse outro médico, mas com este animal que descobriram não sei onde... Um homem que, em vez de ficar junto do enfermo, põe-se aqui na sala a olhar quadros e armas e a fumar!...

Vendo, porém, o médico à porta, de mangas arregaçadas, voltou-se:

— Quer alguma coisa, doutor?

— Sim, a ama? onde está a ama?... Cesário saiu para o jardim a correr, bradando:

—Bá! Bá!

— Já vai! Gritaram de fora. Miss lembrou-se do tímpano e o médico, imperturbável, animou Sarita: “Que descansasse. Não havia risco.”

E, como desaparecesse, Sarita, sempre incrédula, chamou a professora:

— Ah! Miss! Pelo amor de Deus, pergunte a senhora. Eu sei que eles não me dizem a verdade. Pergunte a senhora, pergunte! Cesário reapareceu e, logo em seguida a ama, a correr, com um jarro, espantada, a voz trêmula, consolando e chorando:

— Não chora, nhanhan. Deus é grande! Não chora! Quase ajoelhou-se diante da menina, mas como Cesário a impelisse para a câmara, partiu no seu passinho trêmulo. Miss então, para tranquilizar Sarita, dirigiu-se a Cesário e afastaram-se.

O “filósofo”, caminhando em direção à porta, gesticulava, parando de instante a instante a olhar com grandes olhos, os braços abertos em cruz.

A moça não perdia um só dos seus movimentos, procurando interpreta-los e, quando a escocesa serenamente caminhou para ela, intimou-a:

— Então, Miss! Pelo amor de Deus! Eu sei que ele está perdido. E a Cesário: Porque não manda chamar outro médico? Esse parece que não entende nada; tão mole! Mande chamar outro. Mas Bá apareceu à porta, sorrindo, contente:

— Ah! nhanhan, graças a Deus!... Nhonho está voltando a si. Ah! Minha Nossa Senhora! Cesário atirou-se para a câmara recomendando a Miss que ficasse junto de Sarita.

O enfermo reabria os olhos lentamente, movendo-se no leito manchado de sangue e, quando o médico, adiantando-se, dirigiu-lhe a palavra, tremeram-lhe os lábios, os olhos rolaram com agonia dentro das orbitas e sons indistintos, surdos, fugiram-lhe da boca flácida. Cesário lançou um olhar de inteligência ao médico:

— É natural. É a afasia que sobrevém à perturbação provocada pelo insulto.

— Então, doutor, acha que essa moléstia terá ainda duração?

— Naturalmente. Ele está com a paralisia de todo o lado direito. É fácil de observar...

E, adiantando-se, tomou o braço direito de Jorge e estendeu-o perpendicularmente ao corpo, sobre o leito. Cesário esperava, com ânsia, que o enfermo fizesse um movimento: o médico, porém, convencido, afirmava “que não retiraria o braço daquela posição” e foi ele mesmo quem o recolheu, estendendo-o de novo ao longo do corpo imóvel do enfermo que olhava com uma infinita melancolia nos olhos.

Bá, encostada ao respaldo do leito, não arredava os olhos do amo, e como o médico dissesse que Sarita podia entrar, saiu suspirando para chamar a menina. Cesário abandonou a câmara, apreensivo, condoído, e foi-se para o jardim. A noite ia muito alta, estrelada; o silêncio era apenas interrompido, de longe em longe, pelo trilar dos grilos na erva.

O “filósofo” começou a passear por entre os canteiros em solilóquio desesperado:

— Ai tem o final de uma vida: a imbecilidade. A imbecilidade e a prisão dentro do próprio corpo. Um homem algemado pelos próprios nervos. Ai tem a vida. E tudo isso porque?... O médico apareceu à porta do salão e a sua silhueta destacava-se na claridade. Cesário adiantou-se apressado, quase a correr.

O salão estava deserto; as senhoras haviam passado à câmara para fazer companhia ao enfermo e o “filósofo”, aproveitando o ensejo, quis ouvir do médico a sentença terrível que devia ferir para todo o sempre o pobre amigo.

— Doutor, com sinceridade, acha que o podemos salvar?

— Não garanto. As exceções são raras, raríssimas; em todo caso é possível a vitória sobre a morte, mas os estigmas ficam.

— A imbecilidade, a hemiplegia? ...

— Sim. Demais, creio que estamos diante de um caso de amolecimento cerebral. Todos esses colapsos de que me falou o senhor, essa inércia, essa vontade morta, essa memória indecisa, são sintomas claros. A cura será, quando muito, do corpo, porque o espírito há de ficar ressentido do choque. Não viu a dificuldade de expressão com que lutava quando lhe dirigi a palavra? Parecia ter consciência nítida de tudo, mas os termos fugiam-lhe, embaraçavam-se lhe na língua. Ainda assim, na minha clínica, tenho tido casos milagrosos de cura quase completa. Vamos tratar de combater a moléstia na sua sede e, mais tarde, lentamente, iremos restabelecendo as funções, acordando células entorpecidas. Por enquanto o que importa é a vida.

O “filósofo” ouvia sem ousar uma palavra, aterrado, sucumbido. Tinha os olhos brilhantes e os dedos trêmulos perdiam-se lhe na grande barba que lhe caía abundante sobre o peito. Por fim atreveu-se, quase a chorar:

— Demais, doutor, a mãe desse pobre amigo acabou louca...

O médico levantou os olhos cheios de espanto e ia falar quando Sarita apareceu, os cabelos em desordem, a fisionomia demudada:

— Doutor... doutor! Que tem paizinho? Não me reconhece, evita-me; não me responde. Que tem ele, doutor? ...

— Nada, minha senhora; nada de perigo. Está num estado de inconsciência, como um homem que rolasse de um andaime e batesse com o crânio na calçada. Comoção. É mesmo conveniente que a não reconheça. Por enquanto não me assusta o seu estado, mas pode sobrevir algum acidente grave e, para o evitarmos, vamos andar com prudência. Acho melhor que V. Ex.a volte aos seus aposentos, mesmo porque carece de descanso e amanhã verá que seu pai não a desconhece. É prudente deixá-lo agora em absoluta tranquilidade. A própria ama podia sair do quarto.

— Pois não... concordou Cesário. Que faz ela? Está ali a chorar e a lastimar-se. É melhor que saia.

E caminhou para a câmara. Jorge, com a entrada de Cesário, abriu de novo os olhos. O “filósofo” não se conteve: depois de o contemplar carinhosamente, aproximou-se do leito:

— Então, velho, que foi isso? O enfermo fez um leve movimento com o braço esquerdo, batendo com as pálpebras e grugulho fugiram-lhe da boca: Bem, mas não fales. Nada de falar, descansa. Vê se dormes, sim? Vê se dormes... E baixinho, à Bá e à Miss: Vamos agora despi-lo... e... Mas não prosseguiu, porque as duas mulheres, compreendendo, saíram em pontas de pés, deixando o “filósofo” na câmara, em face do enfermo, os braços cruzados, contemplando-o.

A noite correu tranquila. O médico estirou-se na chaise-longue, o colete aberto, as pernas estendidas e roncou, porque Cesário não o deixou sair, esperando sempre um novo assalto da moléstia e, de mãos para as costas, pôs-se a passear ao longo dos aposentos, parando de vez em vez diante do leito para olhar o enfermo. Já não o afligia a ideia da morte.

Varrera-se-lhe do espírito o grande terror, mas as palavras do médico perseguiam-no: “... os estigmas ficam” e torturava-o a certeza de que aquele lúcido espírito caíra em trevas mais densas do que as da ignorância. Ia e vinha sem poder aceitar a sentença cruel, procurando sempre uma objeção; parecia-lhe impossível que aquilo se desse, tão impossível, tão absurdo como uma metamorfose como as de que falam os clássicos, narrando os prodígios das feiticeiras antigas. Monologava, sacudia gestos. Passando diante do médico que dormia tranquilamente, tinha ímpetos de despertá-lo para o interrogar de novo, mas agitava-se em ira, coçava a cabeça e prosseguia, frenético, desesperado, duvidando da ciência e dos sábios.

Já começavam a aparecer nuvens cor de rosa; a noite morria e Cesário, sempre a ruminar a mesma ideia, caminhava. Mas a fadiga venceu-o. Parou junto à mesa e, remexendo em tiras esparsas, encontrou uma grande folha de papel, onde havia, em letras enormes, o título: História da civilização. Fitou os olhos muito tempo nas duas palavras escritas pelo seu punho, olhando-as sem vê-las. Por fim, repelindo o papel, exclamou desesperado:

— Antes a morte, palavra de honra! Antes a morte! E foi para a porta olhar a madrugada que ensanguentava o céu.

TERCEIRA PARTE

I

As portas e as janelas do salão, abertas de par em par, deixavam entrar o sol de um dia magnífico, alegrando o interior no qual passara um longo mês taciturno. Em face de uma das janelas, estirado numa chaise-longue, um braço ao colo, os olhos tristemente esmaecidos, o rosto contraído num ligeiro ritos, Jorge passava as horas mais quentes do dia entre Cesário e Sarita, que levara para o salão o seu bastidor e as suas talagarças.

Magro, cadavérico, os olhos fundos, cercados de olheiras denegridas, ficava como em letargo, encolhido, a ouvir as conversas dos que o cercavam abrindo, de vez em quando, os olhos, onde parecia haver uma eterna visão macabra que os espantava. Andava com eles de um rosto para outro, fixava-os em um ponto e, lentamente, de novo, as pálpebras caiam.

Quando falava, as palavras saiam-lhe frouxas, moles, numa emissão balofa; às vezes era o termo que lhe faltava, como se o tivesse perdido de memória. Sarita e Cesário acudiam, lembrando coisas, dizendo nomes, mostrando objetos até que o enfermo acenava com a cabeça aflitamente, com um sorriso no rosto deformado. Às vezes, estendendo o braço para Sarita, procurava-a afetuosamente; a menina aproximava-se e Jorge, afagando-a, começava a grugulhar, sorrindo para os seus lindos olhos azuis, sorrindo para Cesário que o contemplava enternecidamente.

Como o médico insistisse na necessidade dos exercícios até que pudessem começar com as aplicações de eletricidade, pela manhã e à tarde, faziam-no sair em curtos passeios pelo jardim, às vezes até à orla do “bosque”, onde ele parava, lançando às árvores um grande olhar cheio de melancolia. Caminhava apoiado a Cesário, uma perna mole, bamba, quase de rasto, um braço flácido, bambeando ao flanco.

Era o “filósofo” quem lidava com ele para levanta-lo da cama, para deita-lo, para vesti-lo. Jorge, assim que o perdia de vista, afligia-se e, nos primeiros dias, Cesário mal podia arredar-se da alcova porque o enfermo entrava em agitação, ansioso, lançando olhares de ódio a todos que o cercavam. Pouco a pouco, porém, melhorando, essa obstinação foi desaparecendo e parecia distrair-se mais com a presença de Sarita do que com o amigo que o não deixava, ora propondo-lhe leituras, ora expandindo-se sobre o seu famoso livro sem que ele mostrasse interesse, porque, não raro, no correr dos discursos do “filósofo” adormecia e Cesário caminhava para a mesa abrindo grandes volumes, enquanto Sarita ia pela trama bordando.

Miss descia para indagar das melhoras do enfermo, olhava-o algum tempo e sentava-se com um livro, esquecendo-se na leitura longas horas. Entanto as melhoras acusavam-se ainda que demoradamente. Uma manhã, ao deixar a cama, Cesário viu, com espanto, Jorge firmar-se sobre a perna direita e, como se faz às crianças que ensaiam passos, começou a lidar com ele para que tentasse andar: “Vem daí! Um esforço; não tenhas medo. Caminha.” E estendia-lhe os braços, aos recuansos. Jorge, porém, não conseguiu levantar o pé do soalho, como se o tivesse pregado às taboas e, redobrando de esforços, vacilou, teria caído de encontro ao leito se Cesário não acudisse a tempo.

— Vai indo! Vai indo! Agora com um pouco de eletricidade é um instante. E então? Dentro em breve estás andando como eu; a questão é não ter medo. Vamos.

A vida física despertava, mas o cérebro permanecia em torpor.

A memória estava obscura, negava-se a todo apelo. Não raro pedia um objeto por outro; pronunciava termos estranhos que Cesário buscava decifrar, seguindo-lhe o olhar e cenas curiosas desenvolviam-se no salão entre os dois homens: o “filósofo” a mostrar objetos, o enfermo a resmonear agitando a cabeça negativamente. Pouco a pouco, porém, Cesário foi-se afazendo às expressões, às algaravias de Jorge, entendendo-o quase sempre, com grande espanto de Sarita e de Miss.

Os passeios foram-se tornando mais longos, e, uma manhã, seguiram todos, acompanhando o enfermo, a caminho do bosque.

O solo, acamado de folhas, farfalhava; uma brisa suave e cheirosa passava por entre os ramos onde cantavam pássaros, e a água do córrego punha no silêncio do arvoredo uma nota de melancolia.

Jorge aspirava a plenos pulmões o bom ar dos matos, e, de quando em quando, como se cansasse, encostava-se aos grossos troncos, deixando os olhos errarem pela folhagem das copas altas. Sarita e Miss procuravam distraí-lo, apanhando flores nas moitas, parasitas nos galhos, e ele recebia-as, cheirava-as e agradecia sorrindo.

Cesário levava-o até o banco e, sentando-o, entrava a falar à escocesa da selva da primeira idade, donde haviam partido as grandes levas humanas carregadas de deuses, levando aos ombros os seus altares e estabelecendo bases de impérios e de reinos. Jorge distraia-se com as árvores; apanhava folhas, apontava casais de borboletas que passavam no ar, amorosamente e, como já lhe acudissem palavras, exprimia-se com lentidão, esforçando-se para pronunciar com clareza.

Ouviam-no mostrando interesse, cercavam-no e o “filósofo” interpretava lhe o pensamento quando as senhoras custavam a penetrá-lo. “Está falando das mangueiras. Das mangueiras, Miss...” E Jorge acenava afirmativamente, satisfeito. Demoravam-se até que o copeiro, descobrindo-os, chamava-os para o almoço.

Uma manhã, como a ama penetrasse a câmara de Sarita, achou-a de pé, caminhando de um para outro lado, d’olhos no chão, pensativa.

— Que é isso, nhanhan?! Indagou a negra com espanto; a menina, porém, em vez de responder à interrogação, perguntou pela professora.

— Está lá em baixo. Vosmecê tem alguma coisa?

— Nada, Bá. Vai chamá-la. Preciso conversar com ela.

A negra mirou-a surpreendida e, com um momo, saiu puxando a porta. Sarita passou ao gabinete de toilette e, diante do espelho, maquinalmente, pôs-se a alisar os cabelos, d’olhos perdidos.

— Pode-se entrar?

— Entre, Miss.

A escocesa entrou, sempre firme, a mão estendida, risonha.

— Que tem?

Sarita atirou-se para uma otomana e, sem preocupação da toilette matinal, a camisola com que se levantara, agarrou um dos joelhos e balançando-se:

— Ah! Miss... tenho uma confissão de certa gravidade a fazer-lhe... e quero a sua opinião sincera e franca, a sua opinião de amiga.

Miss sentou-se, deixando na pequena escrivaninha o livro que trazia.

— Então que é? Tão séria é assim a confissão? E mostrando todos os dentes: Trata-se de um casamento?

Sarita baixou os olhos sorrindo e disse:

— Quase!

— Oh! Fez a escocesa arregalando os olhos.

— É exato, Miss: trata-se do meu casamento. Escreveram-me ontem: um moço, nosso vizinho, médico. E estendendo o braço: Mora aqui à direita.

A escocesa conservava o sorriso nos lábios, os olhos fitos no rosto de Sarita. Por fim perguntou:

— Mas como foi isso?

— Não sei, Miss. É sempre difícil dizer como essas coisas começam. Ele passa por aqui todas as tardes. Começou a cumprimentar-me e um dia falou-me. E Sarita sorriu corando. Miss olhava inquisidoramente. Ontem, continuou Sarita, enviou-me uma carta pelo Inocêncio, consultando-me, e termina dizendo que espera a minha resposta para fazer o pedido a paizinho. Miss baixou, por sua vez, os olhos e Sarita, calada, mirava-a; por fim perguntou: Que acha?... Paizinho, no estado em que está, não pode responder, nem eu tenho coragem de tocar em tal assunto, quando ele, coitado! Está ainda tão mal. Que acha? Dê-me um conselho. Miss mordeu o beiço e respondeu tímida:

— Francamente, não sei que lhe hei de responder. Por que não consulta o senhor Cesário? Eu acho que a senhora deve falar, porque está em idade de pensar no seu futuro, e, desde que o seu coração não é indiferente à proposta que lhe fazem, despreza-la não me parece justo. Por outro lado há a moléstia do senhor e, como disse, não lhe fica bem fazer tal proposta agora; entretanto, sendo feita pelo senhor Cesário, é natural. Por que não conversa com ele? Sarita sorriu vexada:

— Tenho vergonha. Não sei que parece ir agora falar disso ao senhor Cesário. Não! Compreende que não hei de dizer que recebi uma carta... Bem sei como ele é, começa logo a murmurar contra os namoros, a dizer que faço, que aconteço... Agitou a cabeça: Não! E levantou-se resoluta: Ora! Tem muito tempo! Se quiser esperar que espere... Não hei de ficar solteira por isso. Falar ao senhor Cesário não, isso não!

Miss ria francamente, vendo o embaraço de Sarita:

— Mas, venha cá... por que não fala? Receia que ele lhe diga alguma coisa? Sarita teve um assomo de orgulho:

— Ah! Não, por certo. Mas começa com aqueles risinhos... Não! Depois não me fica bem, com paizinho doente. Levantou-se e, diante do espelho, a alisar de novo os cabelos, o ar amuado, cantarolava. Miss, porém, ergueu-se e tomando da escrivaninha o livro:

— Façamos de outro modo... Sarita voltou-se repentinamente:

— Como?

— Eu encarrego-me de falar ao senhor Cesário...

— Miss?

— Sim.

— Com uma condição: não lhe dirá que recebi a carta...

— Por quê?

— Não quero!

— Pois sim: nada lhe direi sobre a carta. Deu uma volta pela câmara e ia sair quando Sarita chamou-a:

— Veja lá: nem uma palavra, senão zango-me.

— Já prometi. Sabe que cumpro o que prometo.

— Então vá. Olhe, e pode dizer quem é: o Dr. Mendes, mora aqui ao lado, um moreno. Ele conhece. Mas, pelo amor de Deus, olhe lá, Miss...! Não é por nada, mas é que ele começa com aquelas coisas que me aborrecem; não gosto. Sou até capaz de tomar ódio ao moço se começam com pilhérias.

— Descanse. E Miss, sorrindo, deixou a câmara, mas Sarita saiu ainda uma vez para recomendar-lhe o mais absoluto segredo sobre a carta.

A negra entrou para fazer a cama e, como a menina voltasse da porta, ela levantou a cabeça:

— Que é que vosmecê tem hoje, nhanhan? Não para!

— Ah! Bá! Queres que te diga uma coisa? A negra, que puxava o lençol, adiantou-se curiosa, tomando a frente à menina, os olhos brilhantes. Queres que te diga uma coisa?

— Que é, nhanhan? Fala de uma vez... Está aí só dizendo coisa à toa... Que é?

— Vou casar. A negra estremeceu e avançou como impelida:

— Nhanhan! Vai casar? Com quem? Aqui não vem moço nenhum...

— Adivinha...!

— É com aquele lá do Catete, aquele da rabeca? Ah! Nhanhan! Um homem tão esquisito!

— O Cosme!? Ó Bá! Pensas então que eu seria capaz de gostar de um homem que nem falar sabe? Deus me livre! E enfunada: É um rapagão! E tu o conheces!

— Eu?

— Tu, sim! Mora aqui bem perto. Olha: E, abrindo uma das janelas, estendeu o braço para o arvoredo que rebrilhava ao sol: Estás vendo aquela palmeira ali? A negra olhava piscando os olhos:

— Estou.

— Pois ele mora ali... A negra ficou ainda algum tempo à janela e disse por fim, triunfante:

— É aquele moço que passeia a cavalo... Filho da viúva?

— E então, Bá?

— Ah! Esse sim, nhanhan... E ele já pediu vosmecê?...

— Não. Vem pedir-me. A negra desatou a rir e voltou de novo à janela para olhar a palmeira que se espanejava ao sol.

II

Quando Cesário apareceu na sala de jantar conduzindo Jorge, Sarita precipitou-se para beijar o enfermo, evitando pudicamente os olhos do “filósofo” que pareciam procurá-la repreensivos, fulminantes de cólera. Miss saudou os dois homens respeitosamente e Sarita, pela maneira por que Cesário retribuiu o cumprimento, compreendeu que a professora ainda não lhe havia falado. Readiquirindo a calma sentou-se, sorrindo ao enfermo que acenava com a cabeça como em interrogativas. Cesário, diante dos pratos fumegantes, tornou-se expansivo, desenrugando a fronte:

— Vais deixando esse duro inverno, hein? Já te sentes outro, com franqueza. Jorge meneava com a cabeça e, como lhe servissem um prato,

tomou um garfo e, indeciso, ainda trêmulo, pôs-se a espetar a carne que se escapava, às vezes saltando sobre a toalha.

— Em começando com a eletricidade ficas pronto. E, com uma garfada erguida, quase à altura da boca: Palavra de honra, meu amigo, estiveste com o pé no outro lado. Palavra de honra! E Miss, confirmando:

— É exato: o doutor parecia um cadáver. Quando entrei no quarto fiquei convencida de que não se levantava mais.

— Ah! Exclamou o “filósofo”. Quando a senhora lá esteve já havia passado o perigo. Pergunte à Bá, Miss. Pergunte à Bá. Jorge baixava a cabeça e comia em silêncio levantando, de vez em vez, os olhos para Sarita, e, em uma das ocasiões, ainda tartamudo, falou-lhe “lamentando a vida que ela levava, ali encerrada: que saísse com a professora, que escrevesse às amigas, que fosse passar um dia com elas e, até se quisesse ir ao teatro com Miss, Cesário lhes faria companhia. Ele tinha Bá.” O “filósofo” com a boca cheia, aprovou:

— Pois não. Quando quiserem. Mas Sarita, com um momo:

— Estou muito bem. Que prazer posso achar em teatros e em festas com você doente, paizinho? Tem tempo. Havemos de ir todos juntos. O enfermo teve um sorriso triste.

— É natural que se divirta, menina; a sua idade exige. Não é pela moléstia que ele não vai, dantes mesmo, deve lembrar-se quanto era difícil arrastá-lo daqui para um passeio, para um teatro. Também... que surpresas podemos nós achar no mundo? O homem só tem um tempo de impressões, é a mocidade; o mais é recapitulação — é o mesmo fato sempre, a vida não se modifica: é sempre a mesma; vista uma vez, está vista. A menina, não: precisa viver, precisa agitar-se, a vida mede-se pelas emoções. Nós já as experimentamos todas. Eu prefiro passar a noite na minha cama, com um bom livro, a passa-la na célula de um camarote ou no pelourinho de uma cadeira a ouvir ganidos de tenores ou tiradas trágicas; entretanto fui apaixonado dessas coisas, paguei o meu tributo. Jorge acenava com a cabeça afirmando.

— Pois quando quiserem, estou pronto. É só dizerem.

Levantaram-se. Cesário conduziu Jorge para a varanda, onde ele costumava passar meia hora sentado, ao mormaço tépido, ouvindo os canários, olhando as roseiras em flor. Miss rondava o “filósofo” e, como ele entrasse na sala para

tomar um palito, disse-lhe algumas palavras. Sarita disfarçou cantarolando e seguiu para a sala, vendo que o “filósofo” oferecia uma cadeira à professora. O seu pequenino coração batia com força e toda ela tremia, sentia-se quente. Refugiou-se na saleta do piano e começou uma gavota dolente, enquanto tratavam do seu futuro e o enfermo cochilava à sesta na temperatura acalentadora de um meio dia de inverno, ao pleno ar. Passos soaram no corredor e Sarita teve ímpetos de fugir para esconder-se afim de evitar os olhos do “filósofo”, mal, porém, ergueu-se no banco do piano, deu de face com Cesário e com a escocesa. Sentou-se, baixando os olhos sobre o teclado e muda, trêmula, esperava que lhe falassem com o terror de quem vai ouvir uma sentença. Cesário também parecia hesitante, medroso, e foi a professora quem quebrou o silêncio chamando Sarita:

— Que é, Miss?

— Venha cá... Ela, porém, não deixava o seu reduto e encolhia-se; mas Cesário adiantou-se:

— Então, menina, então? Receia dizer-me a verdade? E, sentando-se junto dela, as mãos espalmadas nos joelhos: Vamos lá, diga-me tudo. Conte-me:

— Contar o que? Eu nada tenho para contar. Pergunte a Miss; disse de olhos baixos, passeando os dedos pelo teclado.

— Está bem, vejo que não tem confiança em mim.

— Não, tenho... mas que hei de contar? Fechou o piano e, sorrindo, levantou os olhos para o “filósofo”.

— Mas, afinal, vamos à verdade. A menina não me quer dizer o seu segredo, pois vamos lá, eu farei de confessor. E, em tom sisudo, dedilhando no piano, começou: É natural, minha filha; é natural e louvo-a muito pelos escrúpulos que tem. Bem que isso seja a sua felicidade, sei que o pobre homem sofrerá no dia em que a vir sair pelo braço do esposo... Mas, que se há de fazer? Os três olharam-se calados e o “filósofo” continuou: A menina sente-se atraída por esse moço; eu conheço-o, parece-me um cavalheiro e só agora é que sei que é médico. Sarita afirmou:

— E Chegou da Europa, onde esteve praticando.

— Ah! Então conhece-lhe a história...! Disse Cesário com malícia.

— Eu, não! Foi Inocêncio que disse. Eu, não! E, como visse um sorriso nos lábios de Cesário, levantou-se d’olhos úmidos, muito vermelha, quase a chorar: Está bom, já começam! Eu não quero nada. E desatou a chorar, indo esconder o rosto no colo da professora: Eu bem disse à senhora que não falasse.

— Mas venha cá, menina... Então que é isso? porque chora? Descanse. Eu comprometo-me a falar, eu mesmo direi a Jorge o que há, não se amofine por isso. Acho, entretanto, que o casamento não se deve efetuar já, é melhor esperarmos que ele melhore, mas descanse, descanse. Quanto ao moço, irei ter com ele. E a demora, em casos tais, é ainda um prazer, porque o melhor do casamento é o noivado.  Hoje mesmo falo a Jorge e tenho certeza de que, apesar do sacrifício de perdê-la, não criará embaraços à sua felicidade. Vamos, e não chore mais. Descanse e prepare-se para contar-me todo esse namoro misterioso. Sarita balbuciou como uma criança amuada:

— Não houve namoro...

— Ah! Bem sei, bem sei: não houve namoro... Pois sim, nem eu tenho que me intrometer em casos de coração. Mas não chore. Hoje mesmo decide-se o caso. E saiu lentamente da sala, cofiando a barba densa.

III

Foi encontrar o amigo numa paz preguiçosa, digerindo à sombra, os olhos cerrados, as mãos cruzadas no ventre, a cabeça derreada sobre a parede. Aproximou-se em pontas de pés, julgando-o adormecido, mas o enfermo, sentindo-o, abriu os olhos e fitou-o risonho:

— Boa sesta, hein? Jorge meneou com a cabeça negativamente, e com a sua voz balofa e difícil entrou a falar: “Não dormia. Estava ali gozando o ar macio da varanda e aquela magnífica paisagem de montanhas, tão azuis como o céu. Lindo dia!” O “filósofo” concordou, depois de lançar um olhar largo em torno:

— Admirável!

Borboletas e lavandiscas cruzavam-se numa dança flabilia, umas buscando as rosas vermelhas, indo outras roçar a superfície do pequenino lago, mirando-se no espelho d’agua. Um beija-flor, rufiando as asas, pairou no ar diante dos dois homens. Cesário mostrou-o a Jorge:

— Olha, se Bá estivesse aqui tínhamos já um augúrio. A ave circulou rapidamente e partiu d’arremesso. O enfermo ficou a olhar as altas montanhas, e, de vez em vez, maquinalmente, levantava um braço como para mostrar um ponto distante.

Caía do céu, na calentura da hora, uma grande paz comunicativa — era a sesta meridiana da natureza. O ar estava vazio; raro em raro um pombo passava em voo tranquilo, e andorinhas, saindo dentre as telhas, trissavam e recolhiam-se. Longe, num campo fronteiro, um grande carro seguia por entre árvores, atulhado de capim, ao passo moroso de um touro e sons longínquos de piano, passavam de vez em vez através da serenidade dormente.

Bá apareceu à porta da sala e, vendo os dois homens juntos, recuou antes que eles a vissem. Cesário caminhou ao longo da varanda, alisando a barba, sempre com os olhos no céu, de um brilho de porcelana antiga; por fim sentou-se ao lado de Jorge, espichando as pernas, as mãos espalmadas nas coxas magras:

— Pois é verdade, meu caro... e ficou a olhar os sapatos, num silêncio pensativo, os olhos fixos, a fronte sulcada. Pois é verdade... O enfermo voltou o rosto de repente e curioso:

— Não tens trabalhado...

Sem compreender, tão dificilmente se exprimira o enfermo, Cesário inclinou a cabeça, a fronte franzida:

— Hein? Jorge repetiu com esforço a pergunta: Ah! Sim... no livro? Quase nada. Tenho o meu plano e entendo que ninguém deve abalançar-se à execução de um trabalho como esse, todo de ciência, sem ter o subsídio completo. O armazenamento é que me está custando, porque já te disse que não pretendo vestir faustosamente os períodos, mesmo porque a obra moderna quer-se sóbria e nobre: nada de ouropéis, nada de lambreques — estilo formoso e simples como o dos antigos, não te parece? Afinal que diabo de figura faz uma das nossas complicadas construções diante de uma simples coluna jônica? Arte não é artifício... Penso assim, e os meus cabelos têm embranquecido nesta teimosa preocupação: a forma simples, severa e rija. Alguma coisa que tenha a majestosa impassibilidade de um mármore clássico. Eu que consiga isto e então saberei procurar depois o ornato — um simples ramo de hera, um ramo verde de murta, um pouco de sol. A questão é o bloco. Escrever como Tácito: limpidamente. Nada de chirinolas, hein? Não te parece? Estou lendo antigos para expurgar-me dos vícios da civilização nos grandes monumentos da palavra, escrita. E tu? Porque não lês?

Jorge fez um momo de enjoo.

—Pois olha: deixa lá falar o médico, a leitura há de fazer-te bem.

O enfermo, entediado, explicou: “Que não tinha memória, não podia fixar a atenção num assunto — distraía-se. Às vezes, conversando, respondia uma coisa por outra. Não podia ler, qual!” E acenou num gesto lento, abanando com a mão para o longínquo: “Partir... viajar... Logo que pudesse caminhar não queria saber de outra coisa. Uma grande viagem.” Cesário concordou:

— Por certo. Hás de lucrar muito... E caiu de novo em meditação balançando as pernas; mas levantando a cabeça, meio a sorrir:

— Ó Jorge... e se casasses a menina? Ficavas como um lindo amor. Podias entregar-te ao largo universo, ver terras e mares. Jorge olhou-o com espanto, os lábios trêmulos, como num grande acesso de ira:

— Casar Sarita... com dezoito anos? É muito cedo.

— Não acho. Ela está justamente na idade. Aparecendo um bom partido... Jorge voltou-se todo para o amigo, carrancudo:

— Sarita?!

— Pois então?

— Pensa em casar?...

— Naturalmente! Em que pensam as donzelas?

Jorge baixou os olhos e, como se discutisse mentalmente, pôs-se a balançar a cabeça, resmungando:

— Mas como? perguntou por fim encarando o “filósofo.”

— Não sei. A verdade é que há qualquer coisa com um vizinho, um médico recentemente chegado da Europa, filho de uma viúva. Deves conhecê-lo. Há alguma coisa, isso há e é melhor que esse rapaz entenda-se de uma vez contigo. É um homem de futuro, rico, de boa família, Mendes Loureiro. Conheces...? O pai foi banqueiro no tempo do Souto. E a menina, pelo que me disse a Cegonha, não lhe é indiferente. Assim pois, em vez de estarem essas duas criaturas trocando olhares por entre os ramos, é melhor que se entendam de uma vez. Não te parece?

Jorge encolheu os ombros resignado. Esteve um momento pensativo; por fim perguntou:

— E ele que é?

— Médico; pois não te disse?

— E já se falaram? Súbito, porém, levantando a voz, exclamou:

— Mas como foi, Cesário? Como foi isso?

— Não sei, meu velho. Ninguém sabe como os amores começam. Viram-se, aí tens; ele moço e bonito; ela formosa, que mais queres? Eu, nos teus casos, tratava disso; mesmo por ela. Afinal, bem sei que te não é fácil deixá-la, mas podes viver no casal. Que tem isso? Vives com eles, ajudando a fazer o ninho para os que hão de vir. Que tem isso? É difícil, bem sei, deixar partir uma criatura que se criou; mas meu amigo, esta é a lei da vida. Ela, coitadinha, não queria que eu te falasse, insistiu comigo para que não te dissesse nada, mas isso era pior. Esse segredo não me pertence. Pensa e resolve. Jorge parecia acabrunhado; o braço doente agitava-se de quando em quando, em frêmitos. Mudo, os olhos baixos, pensava, e Cesário receoso de que sobreviesse alguma crise, levantou-se: Está bem, não fiques agora aí a cogitar o dia todo. Vamos dar uma volta ao sol. E ofereceu-lhe o braço. O enfermo levantou-se dificilmente, gemendo e, apoiado ao “filósofo” foi descendo a escada para o jardim. Em baixo, a caminho da álea central, parou e, com esforço, num suspiro disse, sem tirar os olhos do chão:

— É muito cedo. É muito cedo... Noutro tom, porém: Demais, Cesário, eu não conheço esse moço.

— Sim... mas não penses nisso. Olha, vamos por aqui, vais ver que beleza de rosa! Não penses nisso... noivos não faltam. Achas que é cedo? Pois não se fala mais em tal e a menina não faz senão a tua vontade. Bem sabes como é dócil. Não falemos mais nisso. Vamos às nossas flores. Mas vê lá se podes caminhar, porque o tal solzinho de inverno abrasa deveras. Olha que já estou com a cabeça a arder. Vamos. E seguiram para um canto do jardim, um retiro ensombrado por uma moita de jasmineiros onde havia um banco.

Jorge ia sorumbático, fechado. Como o “filósofo” baixasse a cabeça para penetrar esse recesso íntimo, de muralhas frescas e verdes, de folhas e flores que exalavam docemente, o enfermo resistiu a pretexto da umidade que devia haver ali. Tortulhos brotavam junto ao banco de pedra que tinha na base uma orla de limo verde; mas Cesário atraia-o:

— Estavam ali como em um tabernáculo. Ninguém os descobriria; poderiam conspirar à vontade. Jorge cedeu e, lentamente, apoiando-se ao amigo, deixou-se cair no banco frio... Não tarda muito a cigarra e vamos ter aqui um pouco de Teócrito. Olha que lindeza!... Lança os olhos por aí fora, hein? Maio, grande mês!

Jorge tinha no espírito as palavras de Cesário sobre o casamento de Sarita; parecia-lhe impossível, não se conformava com a ideia de a deixar sair pelo braço de outro homem. Sabê-la de alguém, só, numa alcova, desnudando-se vagarosamente diante de um homem... Sabê-la nos braços de outro, aos beijos, corpo contra corpo, em enlace de amor... Não! Não...!

— Mas, Cesário, disse como se acordasse, ouve: porque não posso ser eu o marido de Sarita? Há tantos exemplos. Bem vês, estou uma ruína, preciso de alguém que vele junto a mim, que compreenda e traduza o meu pensamento, que seja o meu arrimo, uma mulher que tenha amor e caridade, que seja amparo e meiguice, alguma coisa entre filha e esposa. Por que há de ser d’outro e não minha, Sarita que eu criei desveladamente? Afinal, Cesário, esse escrúpulo seria natural se houvesse uma só gota de meu sangue nas suas veias, mas não temos outras afinidades senão as do coração — a mesma que eu tinha com Laura, minha mulher, nada mais. Então pelo fato de eu a ter visto criança, estou impossibilitado de desposá-la? É um absurdo, não te parece?

— Para mim, disse o “filósofo”, que o ouvira entre espantado e piedoso, o absurdo é que faz a maioria das leis dos homens: a própria civilização é um absurdo, mas tu não sais nu à rua, não te deitas na erva como fazem os bois, que respeitam os instintos, e um homem que corresse com a sua sede de amor para sacia-la na primeira praça, ao sol, diante do povo, como fazem impunemente os cães, seria corrido à pedra e a tiro. Entanto, o natural é aquilo que se vê nas bestas simples; nós usamos das hipocrisias pudicas, reservamo-nos, quer para a crença, quer para o amor. Não te parece que devíamos adorar o Senhor como os antigos, ao clarão do sol, num grande campo, junto d’agua clara, mais agradável e mais bela à vista do que essas pias sórdidas? E aí estão as igrejas e o culto é feito discretamente, quase em segredo. Absurdo, civilização.

O enfermo ouvia o “filósofo” com ar aparvalhado.

— Mas que é, Cesário, que é?

— É a verdade. Acho que não deves pensar nisso. Que diabo! O que alegas não destrói o incesto, penso eu. A paternidade é um acidente, não importa. A verdadeira paternidade é a que vem do longo contato; para uns o homem começa a ser pai junto do berço. E tu tomaste essa menina dos braços da mãe, ela mal falava. Foste o seu pai e ela assim considera-te. Que diabo! Repugna! Fez o “filósofo” com uma cara de nojo. Repugna! Ver a gente a seu lado a criança, porque essa é a verdade, há de ter sempre diante dos olhos a pequena que se te agarrava aos joelhos babujando-te o rosto com os beijos melosos. É fatal... e repugna, francamente: repugna! Demais há a grande desigualdade de anos — ela é uma criança cheia de vida, sangue forte e ardente a borbulhar nas veias, carne viçosa; tu vais para o declínio, enfermo... E involuntariamente, em um ímpeto, Cesário deixou escapar: É ridículo! Jorge olhou-o arvoado. É como te digo, para usar de franqueza: é ridículo. Vais fazer a infelicidade de uma criatura, digo-t’e eu, a infelicidade, porque essa moça... Homem, não sei. Não tenho nada com isso. Faze lá o que entenderes. Para mim é quase um crime. Que diabo! Levantou-se, foi até à entrada do caramanchel, a fronte franzida, cofiando a barba: Trata de ti, trata de ti, disse voltando-se.

— Mas ridículo por que? O “filósofo” encarou-o:

— Homem, é como se eu nada tivesse dito. Sim, porque em suma, és homem, não precisas de conselhos, nem os pediste. Eu acho ridículo, mas isso que monta? Repentinamente, porém, cruzando os braços. Mas não vês que é cômico! E riu às gargalhadas. Jorge teve um sorriso diante da jucunda expansão do “filósofo” como se a alegria do amigo se lhe houvesse comunicado à alma. Não vês que é cômico?! Deixa-te dessas coisas. Trata da saúde e põe-te a andar que já é tempo e a mocidade que busque a mocidade, os corações fortes que se juntem e olha lá a fábula das panelas. E riu estrondosamente da pilhéria. No fundo eu sei que tudo isso é ainda resultado do teu grande amor. Queres prendê-la para o sempre e então lanças mão desse meio extravagante... Mas, filho, eu já te disse que tudo se pode conciliar: casam-se os pequenos e ficam aqui contigo, debaixo do mesmo teto, então? Mas Jorge, d’olhos baixos, meneou com a cabeça negativamente:

— E por que? Palavra que não te compreendo. O enfermo recaiu na tristeza; fez um esforço para levantar-se:

— Queres sair?

— Não, deixa-me.

— Vamos ao nosso passeio. Jorge não respondia, os olhos sempre baixos. Cesário adiantou-se e percebeu soluços: Que! Estás chorando? Ora!... E docemente, delicadamente, sentando-se no banco, tomou-lhe a fronte na mão, atraiu-o amimando-o como se fora uma criança: Então... então? Que é isso? E o enfermo, com voz surda, por entre lágrimas:

— Tens razão, tens razão, Cesário! É mesmo um crime. Vamos, quero falar à Sarita, quero dar-lhe o meu consentimento. É natural, é moça, formosa. É natural. Vamos. Tens razão, Cesário; tens razão! E, soluçando, esforçava-se por levantar-se do banco.

— Espera, homem; deixa-te estar sentado. Onde queres ir? Essas coisas fazem-se com calma. Afinal, esse moço ainda não te falou; como é que vais consentir em um casamento quando nem mesmo conheces o noivo? Isso não. Vamos com calma. As lágrimas rolavam pela face do enfermo. Súbito, porém, levantando a cabeça, cravou os olhos num ponto do jardim.

— Que é aquilo, Cesário? O “filósofo”, seguindo-lhe o olhar e nada descobrindo, perguntou:

— Aquilo que?

— Nada! Não sei que tenho.

— Ora, que tens! Ficaste nervoso com essa história. Não te preocupes mais. Vem d’ai; vamos dar uma volta pelo jardim. E, oferecendo-lhe o braço, levantou-o e lentamente, saiu com ele do caramanchel. O sol ia alto e quente; cigarras chiavam. Os dois homens seguiam em silêncio. Como passassem diante da varanda, uma voz meiga chamou-os:

— É por gosto que estão apanhando essa soalheira! Jorge levantou a cabeça e deu com os olhos em Sarita que se debruçara à balaustrada sorrindo. Mirou-a enternecido: Pois você, paizinho, com um sol assim?

— É a vida, menina; deixe-o andar. O sol não lhe faz mal: é a vida... Jorge acenou chamando-a.     

— Quer falar comigo?

— Sim...

— Que vais fazer, homem? Que vais fazer? sussurrou o “filósofo” apertando-lhe o braço.

— Que tem? É melhor falar. Sarita desceu as escadas apressadamente, cantarolando, e diante de Jorge, sempre risonha, indagou de novo:

— Que quer, paizinho?

— Vamos conversar... E acenou como a pedir-lhe o braço. Sarita achegou-se e passou-lhe um braço pela cinta lançando ao “filósofo” um rápido olhar repreensivo. Cesário encolheu os ombros, amuado.

— Então? tem alguma coisa a dizer-me?

— Há tanto tempo que não conversamos! Não é justo que eu tenha saudades de ti?

— Mas eu estou sempre em casa... Por que não me chama? Cesário olhava para os lados fingindo-se distraído. E chegaram ao salão. Jorge estirou-se no pliant e o “filósofo”, a pretexto de ver umas “esquisitices”, saiu para o jardim.

Sarita ficou algum tempo diante do próprio retrato, mirando-o atentamente, enlevada.

— Ah! Se eu fosse assim?

— Senta-te aqui perto de mim, Sarita.

A menina arrastou uma cadeira para junto de Jorge e sentando-se:

— Então, que é que tem a dizer-me? E, tomando-lhe uma das mãos, começou a acaricia-la brandamente. O enfermo encarou-a.

— Tu é que tens novas a dar-me, não eu. Vamos, fala: que tens a dizer-me? Já sei que não mereço mais a tua confiança. Antigamente era eu o primeiro a saber os teus segredos... adoeci, já não valho nada para a filha ingrata. Sarita, que compreendera tudo, baixou os olhos e balbuciou:

— Mas... eu não tenho segredo algum, paizinho.

— Sim, sim... pensas que, por não poder mover-me, ignoro o que se passa nesta casa? O coração está sempre vigilante.

— Mas que sabe você?

— Queres que te diga?

— Quero.

— Sei que estás apaixonada.

— Apaixonada! Quem? Eu! Ora! E desatou a rir.

— Não rias. Sei que estás apaixonada... e que há alguém que pensa em pedir-me a tua mão.

— Foi o senhor Cesário quem lhe disse! exclamou Sarita.

— Não, não foi ele, respondeu Jorge com grande calma. Não foi Cesário.

— Foi, sim! Você é que não quer dizer. Ah! Também não guarda nada! Disse com um amuo. E baixinho, em voz trêmula: Eu não estou apaixonada. Que culpa tenho de que um moço goste de mim? Sim, que culpa tenho?! Se disse ao senhor Cesário foi para que ele me desse um conselho...

— Então preferes os conselhos de Cesário aos meus? Já não confias em mim?

— Não é não confiar, paizinho; mas eu sabia que se dissesse alguma coisa sobre isso você ficava triste; não quis...

— Triste?! Por que? Triste com a tua felicidade? Isso não, minha filha.

— Não, mas... Já uma vez você disse-me que havia de sentir muito quando eu saísse.

— E pensas em sair? Sair, porque? Não podes continuar a viver comigo?

— Posso...

— Então? Houve uma grande pausa. Cesário apareceu à porta com uma rosa, vermelho do sol, o rosto reluzente de suor.

— Olhem esta maravilha! E mostrava a flor em triunfo. Mas Sarita recebeu-o hostil:

— Para que foi o senhor falar a paizinho? Eu não lhe pedi tanto...? Cesário ficou algum tempo embaraçado, a fronte franzida:

— Ora, Jorge...

— Que tem?

— Que tem... Mas se eu te disse que havia jurado à menina, mais do que isso: que lhe havia dado a minha palavra de honra...? Francamente...

— Mas eu pedi tanto, senhor Cesário! suspirou Sarita.

— Pois não, pois não, não nego. E eu disse que havia de guardar segredo absoluto por enquanto; pois não. Mas... homem, não sei, menina. Isso precisa ter uma solução e foi melhor assim; foi melhor assim. Mais hoje, mais amanhã ele havia de saber — foi melhor assim. Jorge corroborou:

— Por certo... Demais uma filhinha meiga não deve ter segredos para seu pai quando sabe que ele a estima, não é verdade? Sarita balbuciou comovida:

— Isso é...

— Assim é melhor, insistiu Cesário, e agora é tratar disso para que esta casa tenha o que lhe falta — um petizote que ponha tudo isto em polvorosa.

Sarita ficou amuada com o gracejo do “filósofo” “Não gostava daquelas brincadeiras.” Mas Cesário insistiu.

— Pois, menina, é a verdade. O que falta a esta casa é justamente um petizote. A criança é um raio de sol junto da velhice. Casa sem crianças é lar sem lume. Nós já estamos tiritando, agachados na saudade, sem energia, sem esperança; precisamos aquecer a alma ao contato de um pequenito. Ser avô é reviver. É preciso que alguém nos anime. A velhice isolada é desesperadora. Olhe, até eu, que sou pior do que esse Timon misantropo, ofereço os braços para carregar o pequenote. Upa Upa! Hein? Que dizes? Avô! Ahn? Que dizes? E quero ver a tua energia quando Atila infante invadir os dominios da sabedoria esfarrapando filósofos e juristas. Hein, avô?! Riram por fim.

Sarita achava graça, não podia guardar seriedade diante de Cesário que espernegava como um aranhiço, virando um dicionário, atirando-o ao ar como se brincasse com uma criança. Vendo que as suas palavras produziam efeito, tornou-se mais loquaz, descrevendo toda a infanda do pimpolho que havia de espancar as nuvens de tristeza que pesavam sobre aquela casa. Jorge parecia resignado; afagava a mão de Sarita, olhava-a enternecido e, como Cesário pousasse o dicionário, disse:

— Pois não há dúvida, minha filha. Não há dúvida. Queres, não é? Sarita baixou os olhos sem responder, martirizando os dedos.

—Pois não há de querer, homem? O enfermo insistiu:

— Queres, não? E ela, tímida com voz quase imperceptível:

— Quero...

— Pois sim, suspirou Jorge deixando-lhe a mão. A menina voltou-se subitamente, os olhos amedrontados:

— Está zangado comigo?

— Zangado! Eu? Porque?

— Não quero que se zangue, paizinho; isso não.

— Não estou zangado, filha. Zangar-me, por quê? Vais para a felicidade, é o teu coração que te impele, deves segui-lo e eu sempre estarei contigo.

Houve uma grande pausa. Sarita levantou-se para que Jorge não lhe visse as lágrimas, foi até à porta e Cesário, com os olhos de um para outro, vendo-os comovidos, avançou de braços abertos:

— Antes assim, meu velho. Isto é que é! E apertou o enfermo nos braços. E agora, menina, o herói que se apresente. Não deve mais esconder-se no “maquis”, venha francamente para que esta casa entre em nova fase. Um noivado é sempre alegre. Mas Sarita saiu precipitada, soluçando, e os dois homens ficaram de novo sós: Jorge sempre pensativo, Cesário a passear ao longo do salão, ruminando palavras:

— Decididamente não dava para aquilo. Era melhor não o chamarem mais para conselhos porque, enfim, se dizia a verdade sempre achavam coisas para contrapor. Deixassem-no com os seus livros. Jorge chamou-o:

— Ouve, Cesário, não te zangues... Mas o “filósofo” irrompeu furioso:

— Pois não. Afinal, para que haviam de estar ali com histórias? Pois não era melhor que se entendessem de uma vez? Tinha alguma coisa a dizer, não queriam o casamento por isso ou por aquilo falassem logo, mas estarem de caras amarradas, lacrimejando como duas crianças era até ridículo. A culpa era dele, porque tinha a mania de deter-se em tudo; bem feito. Jorge procurava sorrir para atrair o “filósofo” que caminhava para o jardim enfezado.

Só, o enfermo cruzou as mãos sobre as pernas. Apesar de procurar o amigo com os olhos sentia-se bem nesse abandono; podia pensar à vontade. Cesário pigarreava fora e ele, num bem estar preguiçoso, deixou-se ir pelo sonho, não como antigamente, a fantasia jocunda em que se via feliz, amado, em paços de fausto antigo, rodeado de mulheres que vestiam como as odaliscas turcas, musselinas e sedas mais excitantes que a própria nudez. Via o futuro, o futuro angustioso que ia atravessar, desde que Sarita aparecesse com o véu de noiva, pronta para acompanhar o homem que a devia possuir. E penetrava com o casal a alcova esponsalícia, vendo todos os enleios enternecidos, vendo as carícias que se faziam, ouvindo os beijos que trocavam... tudo, tudo, esse tremendo suplício que lhe estava reservado e, como se fosse verdade quanto sonhava, teve um gesto violento como para repelir o pesadelo do coração.

— Apre! Mas por que não há de ser? por que não? Em que se funda Cesário para dizer que é quase um crime? Quem é capaz de amá-la como eu? Sim, por mais que esse moço a queira não há de amá-la tanto como eu... Isso não! Mas caiu numa prostração mental, ficou sem pensamento, o cérebro vazio, opaco. A carne vivia apenas incendida numa paixão erótica. O seu amor apresentava-se nitidamente, claramente, como um apetite bestial: sentia o cheiro da carne de Sarita, compunha-lhe todo o corpo num desnudamento vagaroso, da nuca aos artelhos; via-lhe a carne, de uma brancura de leite, a forma impecável do colo túrgido, os braços alvos, torneados como fustes de colunas, sentia-lhe o hálito. De repente, num despertar doloroso, cravava os olhos num ponto da sala, pensando que todo aquele conjunto de belezas, toda aquela carne moça e virgem ia torcer-se em espasmos de amor nos braços de outro homem e o sangue parecia transbordar-lhe do coração, sentia a cabeça atordoada e gemia como numa tortura. “Que tenho eu com o que se possa dizer? Sim, que tenho eu? Não é minha filha, é uma moça que criei. Porque tenho mais anos que ela, porque estou doente? Ora, outros com mais cabelos brancos e em piores condições têm feito casamentos assim. Que tem? Ora essa! Criei-a, é com o que lhe dão... criei-a... Ora!”

Cesário entrou justamente quando o enfermo, nervoso, atirava um murro a uma das braçadeiras do pliant. Vendo-o carrancudo não lhe dirigiu a palavra, e, encaminhando-se para a mesa, começou a revolver papeis, acumulando-os; procurava, remexia, resmungando. Por fim, voltando-se inopinadamente para o amigo:

— Não viste aqui um volume do Taine? um que eu estava lendo, um meu...?

— Não.

— Deixei-o aqui. Não faz mal, irá depois com as outras coisas.

— Irá para onde?

— Para onde? Para o hotel, comigo.

— Vais para o hotel? Perguntou Jorge espantado.

— Hoje mesmo. Já! Tenho lá um cômodo e... preciso trabalhar.

— Que vais fazer no hotel, Cesário? Tens alguma coisa...

— Se tenho alguma coisa... Achas pouco?...

Quem é que pode viver aqui com tanto choro!? São lágrimas desde a manhã até à noite e caras amarradas, maus modos. Eu, afinal, estou velho, não dou para isso. Que diabo! Não me consultem! E resoluto: Demais, eu não tenho nada com isto; que se estrangulem. Já não é pouco o que tenho a cuidar. És tu para um lado, a menina para outro, e eu que viva como uma espécie de caduceu. Afinal tens as tuas ideias e não quero que, mais cedo ou mais tarde, saias dizendo que aconteceu isso ou aquilo por minha causa, porque me meti com a tua vida. Nada! E, sempre arrumando, ajuntando as folhas de papel que andavam esparsas pela mesa: Sou só, em qualquer canto arranjo-me e, na minha idade, a paz de espírito é indispensável. Se posso viver tranquilo, porque hei de procurar aborrecer-me? Estimo-te muito e justamente por isso não quero ficar aqui. Para que havemos de andar com discussões por futilidades? Nada! A paz antes de tudo, acima de tudo. E, sacudindo a cabeça, atirando uma castanhola: Piro-me! Volto às minhas quatro paredes.

Jorge, com muita brandura, falou:

— Não tens razão. Que vais fazer? Então agora é que me queres deixar?

— Não te quero deixar! Bramiu. Não te quero deixar, mas deves compreender que também não posso estar aqui todos os dias a ouvir indiretas e a ver carrancas. Enfeza! Não tenho sangue de barata. Não querem? Pois não façam. A mim tanto se me dá que casem como não; pouco me importa. Eu nada sabia, para que me vieram pedir conselhos? Sim, para que me vieram pedir conselhos? agora é: porque o senhor Cesário é que tem culpa, porque se mete onde não é chamado... Eu bem ouço! Bem ouço! Faço-me de tolo quando quero. E assomado: Até a Cegonha! Até a Cegonha, essa grandíssima sonsa... estava, ainda há pouco, ali na varanda, a fazer cara de desconsolo. Já não sou criança nem estou disposto a servir de joguete a governantes, esta é a verdade. Vou-me embora! Ou quem sabe se essa Miss pensa que estou aqui por não ter onde descansar a carcaça? Está muito enganada!— Mas ninguém pensa isso, Cesário: todos conhecem-te, consideram-te...

Mas o “filósofo” arremeteu de novo:

— Está muito enganada! Não me faltam casas. Tenho ainda o necessário para um buraco onde possa repousar a cabeça. Que tal? Está muito enganada! Pensa que vivo escravizado à sopa da casa... Os teus próprios criados fazem-me caras. Esse moleque principalmente. Ontem disse-lhe que me passasse uma escova nas botinas e o mariola... nem caso! Pois agarro-o por uma orelha que o deixo a tinir. Não estou disposto!

— São desconfianças tuas, Cesário. Todos aqui querem-te muito. Estás em tua casa, bem sabes.

— Em minha casa, isso não! Em minha casa, não; se assim fosse já esse moleque tinha voado pela porta com as costas amassadas. Admito lá que um negrinho meta-se a engraçado comigo! Tinha voado!

— Mas não te zangues, despeço-o hoje mesmo. Não te zangues.

Cesário abrandava. Deixara os papéis sobre a mesa e passeava de um lado para outro, alisando a barba, quando Bá apareceu com a bandeja do café; tomou uma das xícaras, enquanto a negra, carinhosamente, oferecia outra a Jorge.

— Inocêncio está em cima, Bá?

— Está sim, senhor.

— Manda-o aqui.

— Que vais fazer ? Indagou Cesário.

— Despedi-lo. A ama olhava espantada e ousou perguntar se o pequeno havia feito alguma coisa.

— É um atrevidaço... rugiu o “filósofo”. É um atrevidaço! Mas não o despeças; deixa-o por minha conta. Eu mesmo hei de ensiná-lo. Dou-lhe tamanho pescoção que ele não sabe onde vai parar. Deixa-o por minha conta.

A calma restabeleceu-se e nessa noite Cesário declamou o primeiro capítulo da História, esvaziando toda a sua erudição vasta para dar uma amostra do que havia de ser essa grande obra de ciência e de estilo que ele meditava desde os vinte e cinco anos.

Era a sua esposa. Amava-a com estremecimento, dedicando-lhe toda a alma e toda a fidelidade do seu coração, virgem de outros amores. Os capítulos que ia concluindo mentalmente eram outros tantos filhos desse conúbio do espírito com a ciência, e ele costumava dizer, sempre que presumia ter completado as notas para um novo capítulo: “Tenho um novo rapaz!” E as bibliotecas eram as amas, onde os “petizes intelectuais” iam beber a vida e a força.

IV

Inesperadamente, uma noite, tinindo a campainha, Inocêncio interrompeu uma erudita declamação de Cesário apresentando a Jorge um cartão de Aurélio Barroso. O enfermo carregou o sobrolho, meditando, com o cartão diante dos olhos. Lembrando-se, porém, ordenou ao criado que fizesse entrar para os seus aposentos a pessoa e, instantes depois, um homenzarrão grisalho, de óculos, fez estrugir no limiar uma saudação alegre. Jorge apresentou-o a Cesário:

— Dr. Aurélio Barroso, meu amigo e declarou o nome e os méritos do “filósofo”.

Antigo condiscípulo de Jorge, deixara atirada a um canto, no canudo de lata, a carta de bacharel, preferindo negociar em café a tratar de causas nos tribunais, lidando com a gente das fazendas em vez de alistar-se no batalhão dos forenses. Era uma surpresa essa visita posto que, nos outros tempos, fosse um dos mais assíduos comensais da casa. Gordo e rubicundo, mal lembrava o estudante lépido que vivia a rimar líricas e a saltar muros, sempre comprometido em amores e em dívidas. Foi toda uma noite de recapitulações alegres — as bambochatas noturnas, a república da Moóca, os versos de Tiberio Gama, os folhetins políticos do Salustio, as monas do Cavadinho e a formosa Beatriz, que fora a musa de toda a geração do tempo, sabendo dispensar a todos o mesmo calor, o mesmo dengue, jurando fidelidade eterna em todos os travesseiros de estudantes.

Mas o motivo principal da visita de Aurélio Barroso era mais sério: ia tratar do casamento de Barita. O Dr. Mendes Loureiro encarregara-o de falar sobre o assunto, sabendo ser ele íntimo de Jorge, por não ousar apresentar-se na casa sem ter o consentimento do pai. E Barroso fez a biografia do pretendente vindo dos grandes avós, homens de reputado nome, conquistado em campos de guerra, diante d’armas mouras, nas terras de Portugal e outros, mais pacíficos, trabalhando honradamente a leira, acumulando fortunas. E por parte da mãe, os Menezes, estancieiros no sul, de uma intrépida raça de revolucionários. Mostrou, como num mapa, toda a riqueza do jovem médico: as terras de cultura e as apólices que tinha; aludiu as notas que alcançara na academia e á brilhante figura que fizera nos hospitais de França e da Alemanha. Por fim descreveu o futuro da menina com aquele moço de tantos dotes, tão cíocil, tão meigo que era como uma dama no trato íntimo.

Jorge ouvia-o, aprovando sempre e, como Barroso emudecesse, espalmando as mãos nas coxas, encarado nele à espera duma resposta, murmurou: “Que ia falar à Sarita. Não queria fazer um casamento contra a vontade dela. Ia falar e mandaria a resposta ao escritório logo que ouvisse a opinião da menina.” Mas Barroso, que ia informado, sorriu maliciosamente:

— Então estava tudo decidido porque os dois amavam-se, sabia ele. Nem o rapaz o encarregaria de tal comissão se não contasse com a menina. Não era tolo e, certo da vitória, prometeu para o próximo sábado a apresentação do noivo, para que aquilo ficasse decidido quanto antes, afim de que, em Setembro, pudesse partir para a Europa, deixando o afilhadinho em plena lua de mel. E entraram a falar dos anos que corriam. Estavam velhos, ele avô duas vezes. E, como Cesário o achasse ainda forte e jovem, com uma fisionomia de rapaz, disse-lhe estendendo um grande beiço. Que já ia para os cinquenta e seis, e batendo de leve no ombro de Jorge. E tu? Deves andar por aí ou estás mais longe?

— Cinquenta e sete.

Rejubilou.

E como ia alta a noite levantou-se, prometendo a visita para o próximo sábado.

Jorge deixou-se levar pelo “filósofo” para a câmara, molemente como uma criança vencida pelo sono. Do leito pediu ao amigo que desse toda luz ao gás a pretexto de que não podia conciliar o sono sem ler uma página e tomou de cima do velador uma brochura, abrindo ao acaso enquanto Cesário despia-se resmungando contra os mosquitos que trombeteavam pelo aposento.

— Isto aqui parece um pequeno Josaphat cheio de demônios que sopram fanfarras. Não sei d’onde vêm tantos mosquitos. Tenho de cobrir a cabeça para dormir. É um horror! Em robe de chambre deu as boas noites caminhando para o gabinete onde arranjara a “sua tenda”.

O enfermo, só, ouvindo, de espaço a espaço, uma praga do “filósofo” que lutava com os mosquitos, deixou cair o livro e, com os olhos no baldaquino, onde a figura da Noite tinha rebrilhos e fulgurações tocadas pela luz do gás, começou a recompor todo esse dia de luta para o seu coração.

Sentia-se abandonado, vítima de todos e de tudo. Os amigos revoltavam-se, outros vinham-lhe pela casa dentro como meirinhos arrancar-lhe o bem precioso e ela, longe de protestar, deixava-se levar pelos usurpadores. Ingrata! Ingrata! Ingrata!

O silêncio era completo; o “filósofo” adormecera. Jorge atirou para cima do velador o volume para entregar-se aos seus pensamentos. Tinha ideias desencontradas, reminiscências vagas que lhe apareciam. Pensando em Sarita, no seu casamento próximo, via-se transportado à Mesopotâmia, saltando muros ao apelo da negra que o levava, através da noite sossegada, às senzalas onde as mucamas esperavam-no palpitantes. Mas, subitamente, um grito agudo repercutia dentro dele; arregalava os olhos cheios de espanto, circulava o quarto com a vista assombrada e via passar, como uma fúria arrancada ao passado triste, a mãe, louca, desalinhada, os olhos injetados, brandindo os braços em acessos furiosos. E vinha-lhe então uma calma dolorosa. E se ele acabasse como ela? Se aquele mal se transmitisse ao seu espírito entenebrecendo-o, brutalizando-o?

A mãe começara junto de um cadáver e ele era junto da própria alma ferida que sentia a aproximação da loucura. Aquelas indecisões, aquelas inércias, a memória que lhe fugia como se lhe apagassem sempre os fatos da véspera como, para uma nova operação, apagam-se numa pedra os números escritos, as crises de tristeza, todo aquele indefinível estado d’alma não seria preparado para receber a loucura? Abriam-lhe um grande vácuo no cérebro como se lhe estivessem a fazer a cova para a alma. Era a loucura, a triste herança. Trouxera-a do ventre materno, sugara-a no leite vital, ganhara-a nos carinhos. O estigma vivia dentro dele adormecido, enroscado como uma víbora e agora distendia-se e ia aos poucos tomando conta do espírito, intoxicando-o com o seu veneno terrível.

A que estava morta penetrava-o, ele sentia a obsessão da finada, tinha-a no corpo, era como um possesso tomado pela alma materna e, pensando, sofria dolorosamente prevendo o fim triste que lhe estava reservado — a jaula, a célula e todo ele demudado, hirsuto, a bramir, confessando, na inconsciência, a sua paixão criminosa, porque tinha certeza de que, ainda louco, não esqueceria essa dominante, absorvente ideia amorosa, que o mantinha ainda, como uma parasita forte mantém um tronco carcomido e podre.

Mas esmaecendo esse pensamento sinistro. Sarita voltou a ocupar-lhe o espírito.

Entrou a compor o noivo, a imaginá-lo: um lindo rapaz novo e forte, belo como Apollo, afagando-a com o seu braço possante de homem sadio, beijando-a e recebendo na boca o seu beijo, o seu primeiro beijo de virgem, tímido, medroso e os dois unidos, num silêncio infinito, indo pelo grande amor, esquecidos do mundo, esquecidos da vida, como levados pela derivação branda de um rio de leite, enquanto ele, agarrado às grades da prisão de louco, bramia, vendo-os como dois anjos bem-aventurados que ganhavam a Altura feliz, espalhando beijos.

E Barroso, a contempla-los, gozando com a felicidade de ambos, aconselhando-os, felicitando-os. Essas estranhas ideias baralhavam-se — uma cena imaginada era subitamente interrompida por um episódio cômico que aparecia sem razão e confundia tudo. Agitava-se como para afugentar a visão pertinaz, mas debalde, porque o seu espírito era prodigo e criava-as continuamente, incessantemente em grandes lampejos de miragens que apareciam e desapareciam.

Cerrou os olhos, mas a claridade atravessava-lhe as pálpebras numa coloração vermelha como de sangue. Abria-os, fechava-os de novo, com força. Vinha-lhe o sono. Ia dormindo quando de repente, viu o Dr. Loureiro de pé, junto ao leito, armado como um facínora, ameaçando-o. Abriu d’ímpeto os olhos, espantado, pronto a gritar, mas a câmara estava deserta. Cesário roncava tranquilamente no gabinete.

— Ah! Meu Deus! suspirou passando a mão pelos olhos. Que horror! Isto é um suplício... Que horror! Afinal preciso resolver de uma vez a minha vida, isto não pode continuar assim: é um sofrimento atroz que se vai prolongando. É mesmo melhor que ela vá, é melhor. Longe, poderei esquecê-la facilmente. É melhor! Viver com ela, sentindo-a feliz ao lado de outro homem... Mas Sarita apareceu-lhe de novo criança, meiga nos seus oito anos quando, aterrada, a chorar de medo, saltava da cama em camisa e ia procurá-lo, dormindo com ele, agarrada ao seu peito, a cabecinha enterrada nos travesseiros, confiada e tranquila, certa de que ali não iriam persegui-la as sombras más. Via-a nesse tempo e porque não havia de ama-la como a amava então, com o sentimento de pai, antevendo o seu futuro — ela casada, carinhosa e meiga, cercada de anjinhos que viriam para os seus braços, para o seu leito, dormir com ele como a maman outrora? Porque não havia de amá-la assim? com esse amor sereno, todo espiritual em que entra apenas a alma? Cesário era um esquisito, mas tinha razão no que dizia. Era todo um passado de ternura que ele sonhava destruir num momento, atirando-se bestialmente àquele corpo que havia visto crescer e que trouxera do berço, pequenino, inocente até aquela idade. Havia, por certo, algum espírito mau que lhe inspirava ideais tais — era a Loucura, era a alma tenebrosa da finada que o penetrava arrastando-o de alucinação em alucinação, de torpeza em torpeza, para a absoluta inconsciência, para o desrespeito, para a falta de escrúpulos, para o crime. Sentia-se dominado por uma força perversa que o impelia às aberrações. Devia ser a alma da morta que tomava conta do seu espírito, e, num arrojo de crença infinita, como se, efetivamente, tivesse diante dos olhos a alma perseguidora, falou-lhe: “Ó minha mãe! Minha mãe! Que hei de fazer, minha mãe?!” Depois, calado, os olhos fitos, cheio de uma grande ternura de sofrimento, começou a chorar. E medroso, sentindo-se muito só na vastidão da câmara, silenciosa como um sepulcro, bradou pelo “filósofo”: Cesário! Cesário!

Que é! Que é?! Acudiu o amigo, aparecendo, quase no mesmo instante, à porta, o robe de chambre aberto, os olhos esgazeados: Que é? Que é? Que tens?

Jorge ansiava rolando os olhos, aflito; por fim suspirou:

— Ah! Imagina... vi minha mãe ali na porta, de pé, olhos enormes, muito branca... Instintivamente olhou para a porta onde o reposteiro caía pesado e sombrio.

— Sonhos, sonhos! Disse. Sonhaste. Vê se concilias o sono. Andas sempre a pensar em coisas extravagantes. Estou a ver que um dia apareces espírita. Também nada mais te falta. Dorme, deixa-te de visões. E bocejou com estrondo.

— Palavra de honra, Cesário; palavra de honra: vi.

— Pois sim, mas eu fico agora contigo; sempre quero ver se aparece alguma alma. E sentou-se aos pés da cama. Jorge, animado com a presença do amigo, tornou-se loquaz, confessando o terror secreto que, de vez em quando, o acometia: terror da loucura. Sentia que já não era o mesmo, tinha grandes lacunas, falhas sensíveis no cérebro, prostrações, ideias disparatadas. Quando pensava na mãe vinha-lhe a certeza tremenda de que havia de acabar como ela, nas mesmas contorções, na mesma inconsciência. Acreditava na hereditariedade e, consultando livros que tratavam conscienciosamente da loucura, achava todos os fenômenos que sentia descritos entre os primeiros sintomas da anarquia mental. Não tinha dúvidas sobre o seu destino. Os césares tinham, nas horas do triunfo, um homem que os seguia psalmodiando o memento: “Lembra-te que és mortal.” Ele tinha no coração uma voz que, a todo instante, lembrava-lhe a loucura. Tinha aquilo como um caso julgado. Esperava o momento com a calma com que um convicto espera a visita do carrasco. Que havia de fazer? Era um rebento de mandrágora, fatalmente, mais dia, menos dia, havia de produzir o veneno. Preferia a morte. Antes tivesse sucumbido à apoplexia — estaria em paz, na grande paz infindável, porque a vida já lhe pesava, tanto lhe custava arrastar o próprio corpo, que parecia agrilhoado pela paralisia. Tinha algemas fortes que o prendiam — eram as suas ideias, eram os seus movimentos. Demais, no dia em que a loucura inundasse o seu espírito, antes que perecesse todo aquele inferno que ele tinha no coração, muito havia de sofrer. E se lhe ficasse viva, dentro da noite da Loucura, uma só ideia? Que tormento! Que suplício... Antes a morte!

Cesário ouvia-o impassível, e como ele suspirasse cheio de desânimo, interveio:

—Tu o que tens é uma grande dose de fantasia. Fala, isso é bom. Mas que diabo tens a fazer nesses livros de medicina? Meu amigo, eu que aqui estou já sofri uma famosa hipertrofia do fígado, porque, à falta de leitura, quando andei pelas serras mineiras, atirei-me a uma patologia interna e descobri que tinha a tal moléstia. E não foi só essa — tive todas, todas, identifiquei-me com o compendio. Pois, meu caro, se não fechasse o livro em tempo, teria morrido de todas as moléstias e o meu certificado de óbito seria um índice. Queres saber qual é o pior bacilo? É a imaginação. Um médico que estudasse Argan faria mais do que todos esses que vivem a procurar infinitamente pequenos. Descubram a circunvolução cerebral onde reside a doida que faz os poetas e os heróis, extirpem-na e o mundo ganhará uma calma imperturbável. Convence-te disso — a imaginação é obra satânica. Deus não faria esse alucinante presente à sua criatura. A imaginação é que produz todas as miragens. Tenho ideia de consagrar no meu prólogo uma página forte à Imaginação, porque, em verdade, foi ela que fez a civilização dos mundos. A religião, Deus... Quem é Deus? A imaginação dos aterrados. Foi o pavor que criou a divindade. Assim tu... Estavas para aí sem sono, pensando em tua mãe, tiveste medo — o medo é criador — e viste-a... Ali? Ali na porta? Não, viste-a na própria retina. Acompanha o desenvolvimento científico, o desenvolvimento artístico: o primeiro astrônomo? Um pastor da Chaldéa; o primeiro artista? Um arquiteto de túmulos — os dois mistérios: a harmonia das esferas e o Além. És cerebrino. O que predomina em ti é a imaginação com prejuízo das outras forças cerebrais. Eu bem vejo, eu bem vejo. E olha que podes enlouquecer, não por antecedentes ou hereditariedade, mas por preocupação. Isso sim. Manda à fava Lombroso se não queres perder o juízo. E dorme. Vai ao homem do campo e pergunta-lhe pelos ascendentes, ele dirá que veio de uma mulher, sem entrar em análises de psicologia: se a mãe era uma histérica, se o pai era um matoide, e é feliz na ignorância. Nós, não. Como se não bastasse o cuidado que devemos ter com a nossa alma, ainda vamos desenterrar psicoses de avitos: que manias tinha o tataravô, como pensava a avó, que ideais dominavam o espírito do nosso pai, em que consistia a moléstia da maman e procuramos até nos padre-nossos que ela rezava junto do nosso berço a forma mística de uma degenerescência. É estopante, hás de convir. Olha, meu pai foi um valente soldado, distribuiu golpes tremendos, teve cicatrizes gloriosas; e eu? Vivo a pedir a paz e um livro; detesto as guerras, no entanto devo ter nas veias o sangue desse soldado. Qual hereditariedade, não penses nessas coisas! A vida não é assim tão alegre para que procuremos constantemente entristecê-la com imaginações. Dorme, e deixa lá a alma de tua mãe em paz. Jorge ouvia atento e, quando Cesário, cansado da loquacidade, deixou a cama, chamou-o como se receasse perdê-lo.

— Não vou, descansa. Fico aqui contigo. Estás como uma criança. Vê lá se queres que te conte uma história de fadas e de príncipes encantados. Dorme; não é cedo. Vai ganhando forças, porque o médico quer que comeces com a eletricidade agora no princípio do mês. E já é tempo para acabares de uma vez com essa história.

— É possível que seja como dizes, é bem possível que seja imaginação, mas a verdade é que muito me faz sofrer. Quando não é uma coisa é outra. Felizmente vamos decidir essa dificuldade...

— Que dificuldade?

— O casamento de Sarita.

— Ahn! Fez “o filósofo”.

— Ela quer, o rapaz está em condições de a fazer feliz, que se casem e eu vou por aí correr mundo em busca de saúde e de tranquilidade. Estou envelhecendo, sinto. Já me faltam forças. Calou-se, concentrou-se, os olhos imóveis, fulgurantes. Cesário distraíra-se, balançando a perna, os olhos na treva da sala, em frente. E o enfermo, extasiado, revia o seu sonho. Era Sarita. Agora, porém, não eram somente os olhos que participavam da visão, era todo o seu corpo. Sentia um bem-estar voluptuoso como se fosse mergulhando num banho tépido; frêmitos corriam-lhe a flor da pele, o sangue afluía-lhe em jatos ao cérebro, o pulso precipitava-se como num acesso de febre. E a miragem venusta molemente, ora nítida, quase palpável, ora fluida, ia e vinha eterizando-se como uma bruma que se dilui. Os olhos do enfermo dilatavam-se, tremiam-lhe os lábios, por fim as pálpebras caíram e um suspiro fugiu-lhe da garganta. Cesário voltou-se e vendo-o de olhos fechados, os braços abertos sobre os travesseiros, disse baixinho:

— Está dormindo...

— Não! Fez ele febrilmente, abrindo os olhos amortecidos. Não tenho sono. E, como receiando o olhar do amigo, num ímpeto de pudor, puxou os lençóis e voltou-se para a parede.

Cesário ergueu-se e caminhou para o salão, abriu uma das janelas. Uma luz baça penetrou.

As roseiras, vistas através da bruma matutina, pareciam apenas esboçadas muito de leve numa tela de gaze. O céu brancacento, baixo, ameaçava chuva e, para o lado das montanhas, tudo era branco como se por ali houvesse rolado a lã tosquiada a um grande e claro rebanho de ovelhas. E fluía no ar em fumo a névoa rala e transparente. Não havia horizontes — tudo guardava a cor da manhã fria e de chuva. Ouvia-se o farfalho das árvores distantes e o canto longínquo dos galos. Pássaros passavam como sombras através do nevoeiro denso e sentia-se o cheiro das magnólias que se fechavam pudicamente Cesário aspirou com volúpia o bom ar leve e fresco da manhã e deixou que penetrasse o salão para purificá-lo. À meia luz encaminhou-se para a mesa, revolveu papéis e, achando um livro, tomou-o e seguiu, em pontas de pés, até o quarto. A luz do gás parecia amortecida, de um tom pálido; o ar era morno e denso.

   Jorge dormia, a boca aberta, ressonando, mas subitamente estremeceu, abriu os olhos, espantado:

— Cesário!

— Então! Já me tomavas por uma alma, hein...! Sabes que horas são? Cinco. Olha! E, correndo o reposteiro, mostrou ao enfermo a luz nevoenta da manhã que entrava no salão. Vê se dormes.

— E tu?

— Já tenho a minha conta: dormindo quatro horas estou satisfeito. Vê se dormes. E apagou o gás seguindo para o salão com o volume entre os dedos.

V

Veio, por fim, o sábado; um dia lívido e tristonho, de grande frio. Para a tarde uma chuva fina de inverno começou a cair. As árvores, batidas pela ventania, ruflavam e as goteiras marcavam monotonamente, num tic-tac de pendula, um longo crepúsculo insípido e gelado. A casa, entanto, resplandecia como para uma festa. Bá acendera todos os bicos de gás e nas poças do jardim, na areia encharcada, a luz refletia-se. Na varanda, diante da porta principal da sala, o grande globo fosco espalhava uma claridade doce, cor de leite, pelas paredes, pelo ladrilho.

O jantar correu triste apesar das grandes tiradas de Cesário, que estava em um dos seus dias de bom humor. Fez a apologia do casamento como principal fator da sociedade e ingerindo, sempre a deduzir, entrou a atacar o celibato clerical, achando-o absurdo contra a higiene e contra a moral. Os padres, como depositários da doutrina, deviam ser os primeiros a dar o exemplo como faziam os patriarcas antigos. Abrahão, para seguir o preceito de Jehovah, vendo que Sara era uma estéril, queixou-se ao Senhor, que permitiu a poligamia consentindo-lhe que tomasse Agar. Moysés não vivia só. David, esse até abusou das concessões. Salomão... e pela Bíblia adiante todos os grandes ungidos do Senhor não bramiam solitários. Os levitas que levavam a arca eram chefes de família e os sacerdotes de todas as religiões tinham as suas mulheres. Só os padres cristãos vivem isolados, numa castidade impudica, pior do que as devassidões do turco, que mantém serralhos. Tolice! Afinal eles não seguem a imposição dura, até porque a carne é exigente — deixam-se arrebatar pelos Ímpetos do sangue, amam, pecam. A igreja sufoca não só o instinto como o sentimento. Não é só o ardor que é atormentado, também a ternura, porque não permitem ao sacerdote o filho. Esterilizam a monja. Para mim todas essas nevroses que perseguem a humanidade vieram dos mosteiros. São as alucinações histéricas dos frades e das freiras que sopitavam os impulsos amorosos por obediência à santa Ordem. Se Deus disse: “Crescei e multiplicai-vos!” Para que vem a Igreja esterilizar? Não compreendo. Para mim a Mulher toma o seu lugar no mundo quando se torna Mãe. Então sim. Nela o que eu mais admiro e mais respeito é a Mãe. Belezas... banalidades. Não admito que um homem viva oscilando entre olhos azuis e olhos negros... Só a Maternidade é grande.

Sarita, vergonhosa, evitava todos os olhares, Miss martirizava o guardanapo. Jorge ouvia calado.

— Tenho as minhas doutrinas, mas não as quero exibir aqui; mas, em suma: eu, que defendi o casamento, acho-o contrário à lei natural — o homem é polígamo. E o “filósofo” ia escandalizar o auditório com a exposição da sua doutrina quando Miss pediu licença para levantar-se. Sarita acompanhou-a. A professora ia ofendida com a dissertação, indigna de ser ouvida por uma senhora. Sarita, lindíssima na sua toilette de soirée, sorria à ama, que não se fartava de gaba-la enternecida, mirando-a dos pés à cabeça, ansiosa também, como ela, pela chegada do “moço”. Sarita efetivamente estava desassossegada, mal disfarçava a impaciência e, como Jorge voltasse os olhos para vê-la, adiantou-se com um momo, queixosa e triste, atribuindo à ausência das amigas, que convidara mas ouvindo acordes de piano, disse baixinho:

— Vou para onde está Miss Kate. Cesário, inclinando a cadeira, disse para enfeza-la:

— Está aflita, hein? Confesse. Descanse, ele não tarda. Nem que chova raios...

— Ah! Fez Sarita, amuada, fugindo para a sala.

— Uma mocetona, realmente! exclamou o “filósofo”. E há de ser feliz: tem o gênio dócil, é inteligente. Vai dar uma esplêndida esposa. Mas passando a mão pela fronte: Que diabo! Não é que estou atordoado...?! Pois olha, nem por isso bebi tanto. A velhice! A velhice... Vamos dar uma volta, apanhar um pouco de ar, que estou esbaforido. Jorge, sempre mudo, levantou-se e, pelo braço do “filósofo”, caminhou lentamente para a sala, onde as duas senhoras haviam atacado os primeiros compassos da Dança Macabra. Passava insistentemente um lenço pela fronte como se limpasse o suor. No salão o “filósofo” deixou-o no grande sofá medieval e, abrindo uma das janelas, recebeu no rosto o ar frio da noite chuvosa, tamborilando na vidraça para acompanhar o poema musical que Sarita e a governante executavam. Súbito, voltando-se, anunciou:

— Estão aí os homens! Houve uma parada instantânea, logo, porém, continuaram. Cesário voltou-se então para Jorge: Eles aí estão.

— Recebe-os... disse o enfermo do seu canto, e Cesário ia para a saleta quando viu Inocêncio, em farpeia nova, que chegava com uma grande rinchadeira de sapatos. A música ia morrendo no piano. As duas senhoras, esquecendo o teclado, passavam em revista a toilette e, como não tinham espelho, arranjavam-se reciprocamente: Miss cravando um grampo que fugia dos cabelos louros da discípula; Sarita compondo o laço da gargantilha da professora. O próprio “filósofo”, sempre indiferente às roupas, dava puxões à lapela da sobrecasaca, punha-se à vontade no alto colarinho. Espiava, e vendo os dois homens despirem os pardessus e aparecerem corretamente encasacados, teve um sorriso desdenhoso, mas adiantou-se para recebê-los muito firme, num passo cerimonioso e grave.

Barroso relanceou os olhos pela sala e pareceu estranhar a ausência de convidados, mas como Cesário fizesse uma grande mesura diante do companheiro, apresentou-o.

— Meu amigo, Dr. Loureiro. Dr. Cesário Alves.

Os dois homens trocaram um aperto de mão e

Barroso encaminhou-se para Jorge, e, como o visse esforçando-se para levantar-se, estendeu a mão:

— Deixa-te estar, deixa-te estar; e, sem grandes cerimônias, adiantando o protegido, apresentou-o. As senhoras, de pé, estenderam as mãos ao noivo, que sorria vexado, enquanto Barroso, antes de ferir o assunto da visita, anunciava a próxima chegada da companhia lírica.

Sarita, vermelha e trêmula, balbuciou algumas palavras e levantou-se seguida de Miss. Cesário seguiu-as para dizer no corredor — que não deviam deixar a sala; mas a menina, sem responder, atravessou rapidamente a passagem e desapareceu na sala de jantar.

Jorge, pálido, fitava o Dr. Loureiro, belo tipo de homem, em pleno viço, sadio e forte. Moreno, os cabelos encaracolavam-se graciosamente e um bucre caia-lhe ao meio da fronte rebelde e muito negro, reluzindo. Os grandes olhos tinham altivez e doçura, vertiam meiguice, eram dominadores e terríveis, mas a voz era afável, serena, de uma pausa preguiçosa e languida, e, sempre sorrindo, deixava entrever a linha certa dos dentes muito alvos sob a sombra dos bigodes negros.

Os três homens pareciam vexados. Barroso esfregava as mãos e o Dr. Loureiro passeava os olhos pela sala, admirando, como se quisesse guardar de memória minuciosamente todos os ornatos da casa em que ela vivia. Jorge, como para animar-se, chamou o “filósofo”:

— Porque não vens para cá? Estás aí apanhando frio.

— Não; estou bem. Barroso, então, inclinando-se sussurrou:

— Meu caro Soares, já sabes o motivo da nossa visita... e gaguejando, os olhos de um para outro: Aqui está o Dr. Loureiro e... como o meu encargo está terminado, ele que fale contigo... E para quebrar a austeridade, atirou a rir: Sim, ele é que é o candidato feliz. Jorge, sisudo, encarou o doutor e lentamente, dificilmente as palavras caíram-lhe dos lábios:

— Pois não, doutor. O meu amigo Barroso falou-me em seu nome. Não tenho objeção alguma... Não respondi imediatamente porque queria consultar a menina. Ela aceita-o e só desejo que sejam felizes, tanto quanto merecem. O doutor levantou-se, comovido, para beijar a mão do enfermo, mas, como o visse a chorar, recuou. Ele, entanto, sorriu.

— Não se incomode, meu amigo: sou um fraco. E deve compreender: essa menina tem sido a minha companheira, tomei-a no berço, é como minha filha. É o pranto da felicidade, disse através de um sorriso, com duas grandes lágrimas descendo-lhe pelo rosto. Receio apenas ter de acabar em solidão, isso é que me faz chorar, mas não se incomode. Faça-a feliz e as minhas lágrimas far-se-ão bênçãos. E estendeu a mão trêmula que o doutor apertou comovido.

— Cesário!

— Hein? Fez o “filósofo” da janela.

— Porque não vens para cá? Barroso adiantou:

— Estamos decididos, doutor. Cesário então, saindo do seu canto, veio majestosamente e estendeu a mão ao Dr. Loureiro:

— Parabéns, doutor. Parou um instante contemplando Jorge, e com a voz presa falou: E tu, meu velho... dá cá um abraço! O enfermo teve forças para levantar-se e, agarrando-se ao “filósofo” soluçava enquanto ele lhe dizia meigamente, contendo a emoção: Há de ser feliz, homem! Há de ser muito feliz. Barroso e o doutor, impressionados pelo grupo dos dois velhos que pareciam não se querer deixar, levantaram-se mudos, enternecidos. Cesário, por fim, conseguindo desprender-se dos braços de Jorge, disse como em uma grande alegria:

— Bem, agora vou também abraçar a linda noiva, se me permitem... E quero para mim a honra de apresentá-la ao seu futuro esposo. E foi-se pelo salão pigarreando, no seu grande passo bamboleado de pernalta.

Vieram licores à sala.

O dr. Loureiro falou então da moléstia de Jorge, aconselhando a eletricidade, e Barroso, sempre alegre, ajuntou que com o casamento entrava para a família um portador de saúde, e anunciou o restabelecimento completo do enfermo: “que ainda o havia de ver passeando pela casa a ninar os netos.” Mas Cesário reapareceu triunfante, dando o braço a Sarita que sorria tímida e já de longe, com os olhos no Dr. Loureiro, que se havia levantado para recebê-la.

O “filósofo” deixou-a diante de Jorge que a chamou enternecido, oferecendo-lhe um lugar no sofá, a seu lado. Barroso queria felicitá-la e ela recebeu os cumprimentos correspondendo com um sorriso discreto. Jorge disse-lhe então que era noiva e, passando-lhe um braço pelo ombro, pôs-se a afaga-la. Falava baixinho, amimando-a, e Sarita sentia a ânsia do seu coração, todo o sofrimento que ele padecia em segredo; as suas mãos estavam frias, de gelo, e a sua voz era trêmula e comovida. Por fim, impelindo-a docemente, aconselhou-a:

— Bem, vai agora conversar com teu noivo.

E, com uma alegria forçada: Trata de animar a noite, já que a chuva não permitiu que viessem as tuas amigas. Vai. Sarita obedeceu e o Dr. Loureiro, que a esperava, ofereceu-lhe uma cadeira e os olhos de Jorge cravaram-se em ambos. E quando Sarita, para responder a uma pergunta do noivo, ergueu os lindos olhos, o enfermo teve um estremecimento forte, as suas pupilas chamejaram e, como para interromper aquele colóquio idílico, chamou-a:

— Minha filha, porque Miss não vem tocar um pouco? Cesário ofereceu-se para ir buscar a professora e saiu do salão. Barroso começou a falar de política, lamentando a marcha que levavam os negócios públicos, augurando guerras, prevendo grandes desastres financeiros. Jorge mal respondia, os olhos sempre fitos nos dois jovens que pareciam extasiados um no outro, mudos de comoção feliz, falando apenas com os olhares que pareciam contar a história amorosa das longas vigílias apaixonadas. Por fim o “filósofo” apareceu. Miss acompanhava-o e viu direito ao sofá para cumprimentar o enfermo, dirigindo-se em seguida aos noivos, e, como Barroso lhe pedisse um pouco de Chopin, a escocesa teve um sorriso de aquiescência e encaminhou-se para o piano.

Cesário, a pretexto do vento gelado que entrava pela sala em grandes bufadas, fechou a janela, vindo sentar-se junto de Jorge, e à primeira lamentação de Barroso, que via um futuro de calamidades para o Brasil, irrompeu anunciando a grande revolução dos humildes.

— Não vinha longe o dia da desforra; a besta humana começava a rugir no eito, ameaçando com a sua força toda essa oligarquia rural, feita de carrascos e de sensuais. O Brasil não podia progredir enquanto não deixasse de ser um grande cárcere. Felizmente as represas estavam cedendo à força invasora; as grandes levas aí vinham transbordando das senzalas, com todos os seus sofrimentos acumulados, com todas as suas dores contidas para uma vindicta tremenda. Ai! daqueles que a onda encontrasse pelo caminho! A escravidão era humilhante para o Brasil. Não compreendia que ainda houvesse um povo que permitisse esses suplícios bárbaros que ensanguentavam as terras e contra os quais as leis nada faziam. E lembrou miudamente todos os episódios que conhecia das suas viagens pelo interior. Mães que eram despojadas dos filhos pequeninos, criancinhas abandonadas, nuas, chorando ao sol, como ovelhas perdidas. Escravos enfermos que caminhavam para os eitos perseguidos pelos feitores, outros que morriam torturados nos troncos, a honra das virgens ultrajada, todo o horror das coisas do cativeiro e mais que tudo: a ingratidão dos senhores contra o velho escravo e, comparando-os com o cartaginês Hamilcar, lembrou um episódio da Salammbô: Peiores que Hamilcar, esses senhores pagam a dívida das campanhas do escravo com o abandono e com o desprezo e os velhos exauridos que já não têm braços para o serviço, esses séculos de carne e de cabelos brancos, são lançados ao abandono, a um vale de agonia entre a fome e o frio, como os bárbaros defensores de Carthago.

São os valetudinários da terra, deviam, ao menos por gratidão, ter piedade deles. Mas não vem longe o dia da reivindicação. Aí estão os abolicionistas, como os profetas antigos, anunciando a próxima chegada dos vingadores. Esperemos por eles. Barroso, entretanto, sorria; não acreditava nessa vingança. “O negro está brutalizado. A canga amansa o touro, o suplício serviliza e enfraquece o homem. Demais, ainda dispondo da força, nada fariam à falta de um chefe que os dirigisse: se um homem se pusesse à frente, sim, então era bem possível que se operasse um movimento qualquer de represália, mas o negro não tinha iniciativa, estava habituado à obediência e contou que, estando em uma fazenda de S. Paulo, fora uma noite acordado por um dos filhos do fazendeiro, que lhe anunciava um levante de escravos, no quadrado. Eram mais de 200 homens validos, pois o fazendeiro só, armado de um relho, saltou entre eles e com um brado desfez a revolta. E no dia seguinte, em vez do incêndio e do saque, havia uns vinte negros no tronco, quatro dos quais morreram. E concluiu com segurança: “o negro não se revolta.”

— No Egito era assim, acudiu Cesário, o egípcio não tinha noção de autonomia — habituou-se a obedecer e não protestava contra o bastão do chefe; mas não foram poucas as revoluções, muito sangue correu para o Nilo. Espere por ela, espere por ela... Jorge ouvia a discussão dos dois homens, mas os seus olhos procuravam os noivos que arrulhavam. Sarita, mais íntima, já sorria francamente, e o Dr. Loureiro, radiante, falava sem ouvir as tiradas indignadas do “filósofo”, todo enlevado no seu amor.

Quando vieram chamar para o chá, Sarita quis conduzir Jorge e Cesário propôs que ele fosse levado pelos noivos. O enfermo não protestou e seguiu para a sala entre o Dr. Loureiro e a enteada. Bá esperava-os em caminho e, quando viu a moça, não pode conter as lágrimas:

— Coitada de minha filha!

— Coitada por que, Bá?! Então não queria que ela casasse, hein?

— Não, nhonhô, mas a gente não há de sentir...? Então eu não criei ela? E sem saber definir o seu sentimento a ama seguiu pelo corredor enxugando lágrimas.

VI

Nessa linda manhã de domingo, cheia de sol e de aroma Cesário, a pretexto de passarem uma boa hora em plena natureza, propôs o almoço no “bosque”, à sombra das velhas árvores, junto d’agua cantante. Seria uma surpresa alegre para o Dr. Loureiro e para a velha, a maman Loureiro que, aos domingos, deixava o seu canto de beatitude para vir acompanhar a futura nora contando-lhe, com grandes suspiros, os carinhos do finado e as gracinhas e agudezas de Sinhosinho, quando ainda caminhava agarrado aos móveis.

Sarita e Miss aplaudiram entusiasmadas e, juntando as suas palavras às do “filósofo”, trataram de convencer Jorge que se queixava das pernas, garantindo que não resistiria à caminhada.

Cesário ofereceu-se para levá-lo ao colo — e estendeu os largos braços magros. Mas quem o decidiu beijando-o, afagando-o, foi Sarita e, logo que o viu sorrindo, subiu a correr para prevenir a ama, afim de que fizesse transportar o necessário para o bosque, junto das mangueiras. Bá revoltou-se: “Que esquisitice! Podiam até apanhar um resfriado. E nhonhô, coitado!” Mas Sarita, sempre trefega, afirmou que aquilo até lhe faria bem. Loureiro já havia dito que ele devia andar, fazer exercícios.

A ama, sempre resmungando, foi, entretanto, despachando os criados, o jardineiro inclusive, que se prestou a levar no carrinho uma rima de coisas para a festa das senhoras.

O vinho seria conduzido pelos comensais, propôs Cesário tomando duas garrafas, enquanto Sarita despojava as roseiras para cobrir de pétalas a toalha que seria estendida sobre a grama.

Quando o Dr. Loureiro apareceu, num terno de flanela, largo chapéu de palha à cabeça, vagaroso, oferecendo o braço à “boa maman”, gorda e plácida, sempre exausta, houve uma exclamação. Sarita e o “filósofo” disputavam a honra de anunciar o que Cesário chamava uma “garden-party” e, enquanto a menina beijava as 349 bochechas moles de maman Loureiro, ele declamou :

— Vamos hoje... Mas Sarita, com os braços passados pelos ombros da futura sogra, voltou rapidamente o rosto para concluir: ...almoçar no bosque! E, franzindo o nariz, fez uma careta ao “filósofo”. A viúva Loureiro teve uma objeção: “Achava aquilo arriscado para o doente: a umidade, aquelas águas que ficavam das chuvas encharcando a terra.” Mas o doutor desfez o receio:

— Que não! Era uma ideia magnífica. Os passeios só lhe podiam fazer bem. E, enquanto Sarita conduzia a mãe, pôs-se a contar que na Europa os doentes procuram os jardins, os lugares de ar puro, ao contrário do que aqui se faz que, ao primeiro espirro, correm logo a fechar portas e janelas. Jorge sentia-se mal diante dos Loureiro. O médico enfadava-o com as suas constantes narrativas: descrições de hospitais que percorrera, casos clínicos que observara nas enfermarias, como trabalhavam os grandes mestres e repetia frases de Charcot, de Peter. A viúva, com as suas constantes lamúrias, com os seus arrebatamentos, com o seu nojo ao negro era verdadeiramente odiosa. Cesário achava-a ríspida. Sarita desculpava-a com a velhice e com a moléstia. Entanto, nessa manhã, com a alegria, comunicativa do sol, com o doce perfume das rosas, Jorge sentia-se bem disposto, e teve um sorriso para os Loureiro apesar do médico ter achado a sua fisionomia má. Desculpou-se com a noite mal dormida.

Cesário, antes da partida, fez circular o aperitivo, não tanto para acordar a fome como para evitar que a umidade fizesse mal aos doentes e o doutor fez uma preleção sobre o álcool importado, sempre nocivo pelos preparados corantes de que se serviam os destiladores.

Às dez e meia já era quente o sol. Sarita deu o sinal da partida tomando ao braço uma cestinha de vime onde iam duas garrafas, deitadas entre rosas. Cesário sobraçou a sua carga e, como o Dr. Loureiro fizesse questão de levar alguma coisa, Miss cedeu-lhe uma das cestinhas, onde Bá acondicionara um frasco de conservas e as uvas brancas.

Jorge, com um grande pau ferrado, à cabeça um chapéu de abas largas, abriu a marcha, acompanhado pela ama, que o não queria deixar, sempre receosa de que lhe faltassem as pernas. Maman Loureiro, com um amor egoísta, exigira um dos braços do filho como se o não quisesse ceder, senão em parte, à noiva, e a governante, isolada entre os grupos, ia de olhos baixos, num passo lento, como uma prisioneira.

As cigarras estridulas cantavam e o ar era constantemente cruzado por pássaros, que iam e vinham, ora muito alto, ora quase roçando a terra.

A alegria era grande e completa. O céu, todo azul, reluzia como setim; as montanhas, sem névoas, pareciam polvilhadas de ouro. Dobres alegres de sinos passavam como um apelo meigo da religião para que as almas contentes corressem aos templos agradecer ao Senhor aquela luz bendita que se espalhava pela terra generosamente.

Cesário, no seu panteísmo primitivo, saudava a natureza, a grande Mãe, forte e fecunda. Ao avistar as árvores levantou no ar as duas garrafas:

— A floresta! Ei-la! A grande floresta primitiva, a selva maternal! E como o Dr. Loureiro sorrisse, o “filósofo” quis explicar: Pois não... A tal história da achada de Pamir é uma lenda, está provado. Homens que por lá andaram garantem que as primeiras migrações humanas não podiam ter partido dali, simplesmente porque tal platô, que passou durante muito tempo por ter sido o berço da humanidade, nunca foi habitável. Os homens vieram do Balkach, da grande selva do Balkach... E isto mesmo pretendo sustentar na minha obra. E secamente: O doutor não foi à Ásia?

— Não. A minha viagem foi toda prática, Sr. Cesário.Mais tarde é possível que faça um passeio. E voltou os olhos para Sarita.

— Não deixe de ir à Ásia. Vá admirar esse Ganges amigo, e ao Egito, pois não, ao Egito. É uma obrigação de todo homem civilizado visitar o oriente. O oriente!... E como se quisesse mostrar ao sol as garrafas que levava, ergueu-as para o astro que subia rutilo. Haviam chegado à cerca e o jardineiro ainda passava o ancinho à entrada para afastar as folhas secas e os gravetos. As árvores, ramalhando, pareciam festeja-los e Cesário saudou-as de novo: — Salve, selva maternal! E, para alegrarem o “filósofo”, todos repetiram: Salve!

Havia ainda orvalho nas folhas. O solo úmido e macio afundava debaixo dos pés — eram poças que a velha folhagem acamada escondia insidiosamente. O cheiro acre do capim-gordura impregnava o bosque, mas sentia-se o hálito forte e sadio de todas aquelas árvores, de todas as pequenas plantas humildes que viviam de rasto, florescendo em tapete, forrando os trilhos com um estofo aveludado e fresco, onde a vida alegre e cantante dos insetos palpitava. As grandes árvores graves, de uma sobranceria austera, protegiam com as sombras imensas dos seus galhos os arbustos que cresciam em torno do tronco pujante como uma caravana abrigada sob um tendai.

O caminho era estreito, sinuoso, todo orlado de sensitivas que murchavam mal se lhes tocava; sobre ele derramavam-se os galhos faceiros das samambaias e os ramos flexíveis dos heliotropos pontilhados de florinhas miúdas que rescendiam.

Grande extensão de planície inculta estava es- trelada de boninas douradas e, de quando em quando, uma moita de joá bravo com os seus lindos frutos de coral e de ouro. De algumas árvores caía em filamentos o cipó-chumbo ou era a barba de velho emaranhada, que se enroscava nos galhos, formando grandes ninhos ou pendendo em filandras balançando-se molemente à brisa. Borboletas apareciam confiadas, voando de um canto para outro, com fulgurações de asas de safira ou de prata ou trêmulas, pairando acima de uma vergôntea onde pousavam unindo as asas, aquecendo-se a um raio de sol, e o trilar dos grilos ia num crescendo à proporção que o grupo penetrava devassando o interior tranquilo do bosque.

Já começavam a chegar o doce murmúrio da água e o rumorejo dos bambus que faziam uma abobada verde sobre a água serena. Em certos pontos a penumbra era densa, a passagem difícil — cipós cruzavam-se de uma árvore a outra e havia pelo chão cordoveias que embaraçavam os passos. Era necessário que o jardineiro avançasse com uma foice e cortasse, a grandes golpes, as enrediças silvestres. Maman Loureiro, com o vestido molhado de orvalho, ia de olhos no chão temendo as cobras “porque tinham deixado o mato crescer tanto que, de certo, por ali andavam bichos.” Ia cautelosamente pedindo aos noivos que a segurassem bem, tinha medo de escorregar, já estava com os pés encharcados. E lastimava não ter trazido as galochas: “aquilo era o mesmo que patinhar numa lagoa.”

Bá levava Jorge, escolhendo lugares para seus passos, recomendando que não se encostasse no mato por causa da umidade e o enfermo distraia-se com a preocupação de procurar caminho, ria dos sustos da ama que descobria tremedais em toda parte, sempre indignada com aquela ideia de almoçarem na umidade.

Miss, silenciosa, ia encantada com a partida. Para ela aquilo tomava proporções perigosas de uma excursão atrevida por selvas bravas e pérfidas dos sertões: eram pantanais vastíssimos, florestas intrincadas, de muitos séculos, à cuja sombra haviam dormido tribos guerreiras e o rumor constante da água longínqua sugeria-lhe a ideia de uma extensa paisagem nova, nunca vista, à beira de um grande rio profundo e largo como esses de que lhe falava Cesário nas descrições pitorescas da natureza opulenta do Brasil.

O “filósofo” seguia à frente, com o jardineiro. As solas dos seus sapatos carregavam grossas pastas de lama; tinha os ombros molhados, mas, entretido com o trabalho de decepar os ramos, não sentia os passos pesados: levantava as pernas dificilmente como se levasse cnemidas e apontava: “Olhe ali! Corte aquele galho que é uma cilada! Olhe acolá, sôr Januario.” E as folhas farfalhavam quando o jardineiro brandia a foice.

Mas um embaraço surgiu: era uma grande poça d’agua esverdeada, coberta de lodo, em meio do caminho. Dum lado e doutro, viçoso e verde, o capim crescia escondendo, sem dúvida, atoleiros. Cesário, que ia à frente, foi o primeiro a anunciar a “Lagoa Meotida”, ajuntando para animar “que haviam atirado sobre ela um tronco e a passagem ali estava e, para animar as senhoras, ia e vinha, equilibrando-se, os braços escancarados, as duas garrafas nas mãos. Miss, sempre amante de aventuras, rejeitou a mão que o “filósofo” lhe oferecia e atravessou serenamente, “”como a Spelterini sobre o Niagara”, disse ele batendo as palmas, com as garrafas debaixo do braço. Mas Jorge hesitou e o “filósofo” teve de abandonar a carga para ir buscá-lo a outra margem com a mão estendida e o enfermo, apoiando-se ao varapau, passou lentamente, os olhos sempre no tronco que oscilava. Maman Loureiro, olhando demoradamente, declarou que não queria cair naquele lameiro podre e amuou abandonando os braços dos noivos que instavam com ela, mostrando os que já haviam atravessado e que estavam na outra margem esperando.

— Venha, menina! Bradou Cesário estendendo o braço à Sarita. Venha para que a senhora veja que não há perigo! E Sarita passou, rindo, com gritinhos, num passo miúdo e trefego. Venha, doutor. Mas o Dr. Loureiro não quis deixar sozinha a boa maman que enfezava, ameaçando voltar. “Que aquilo até fazia febre! Que ideia! Almoçarem na lama. Não passava!” Foi preciso que o jardineiro arregaçasse as calças e entrasse n’agua atolando-se para que a viúva, sempre a resmungar, ousasse a travessia. E passou trêmula, aterrada, jurando nunca mais acompanhar aquelas extravagâncias de malucos. Bá afligiase querendo prestar auxilio à velha senhora, mas a “maman” repeliu-a com mau modo, dando-lhe com o lenço quando a negra, agachando-se, quis tirar-lhe da barra do vestido um graveto que ia de rasto seguro por um espinho: “Deixasse! Não gostava de incômodos com ela!” A ama levantou-se e lançou-lhe um olhar cheio de ódio, mas Sarita fez-lhe um sinal para que se contivesse e, querendo evitar uma discussão, acudiu risonha:

— Então? Não passou? É fácil... A questão é não ter medo. Cesário pôs-se a caminho e, já longe, anunciando belezas, chamava:

— Venham! Venham! Isto aqui está agora como o caminho de Brocelande. Entraram por uma estreitíssima passagem onde havia uma grande rocha toda forrada de musgo e, através da folhagem, viram o sol, que enchia de claridade um canto do bosque, onde grandes taiobas verdes derreavam languidamente as largas folhas. Já havia soqueiras de bambus murmurando e via-se, ao longe, o círculo das mangueiras numa grande luz quente e vivida. Cantavam. O “filósofo”, junto à rocha, alongava os olhos de um lado para outro, num êxtase:

— Ora, francamente! digam que não tive uma grande ideia! Ha lá salão que se compare a isto...

E o bom perfume das selvas, o cheiro do mato, hein? Então?

Maman Loureiro quis saber se era ali que iam almoçar, naquele buraco...

— Não, minha senhora: o salão é um pouco adiante. Mas já estamos na copa e temos aqui um pequeno lavabo para as senhoras que não quiserem descer a rampa até o riozinho amigo que lá vai em baixo, disse o “filósofo” e, dando volta, mostrou, entre fetos verdes, uma bacia cavada na pedra onde caía uma lágrima fina.

— Aqui têm: é uma linda fonte protegida por algum deus amável. E refrescando as mãos na agua cristalina: Também é o que me falta descobrir neste bosque: a ninfa; o mais conheço tudo.

Jorge sentia-se cansado, tremiam-lhe as pernas e maman Loureiro achou natural:

— Pois um homem fraco, doente, a fazer aquela caminhada e com tamanha humidade! Até se espantava de que não tivesse tido alguma coisa. Aquilo era bom para quem tinha saúde, esses mesmos não resistiam. E, sempre de mau humor, esquivava-se às instancias do “filósofo” que procurava mostrar os encantos do sitio, a beleza grandiosa daquele recesso tranquilo, onde os insetos tinham o seu mundo.

Miss, sempre recatada em silêncio, andava em explorações pelas moutas próximas, procurando ninhos, perseguindo borboletas, enquanto Bá, agachada junto à fonte murmurosa, as mãos aconcheadas, aparava a água fresca da rocha. Cesário tomou o braço do amigo e, sempre animando-o, a sorver com ruído o bom ar frio das sombrias devesas, gabava a ideia da sortida:

— Anda lá que isto empresta vigor à alma. Os olhos carecem d’expansões como esta para que a retina não fique em dieta de visão. Estar sempre a olhar as paredes, os lombos dos livros, é fastidioso. Deixa a velha bramir. Chegou ao período de ruminar, não pode estar calada. É famosa, palavra de honra! Iam devagar, sobre o tapete macio da erva molhada, donde saltavam grilos espavoridos. Jorge carregava o rosto, sorria, sem uma palavra, deixando-se levar pelo amigo, mas a referência ao mau humor de maman Loureiro arrancou-o ao silêncio obstinado.

— É impossível! Não posso estar perto dela, sinto-me mal, tenho ímpetos de a repelir com uma grosseria. Depois aquele apego ao filho.

— Ela é que parece a noiva... disse Cesário.

— Realmente. Palavra, vejo muito mal esse casamento, Cesário. O tal doutor é um efeminado, sem energia: treme diante das sobrancelhas maternas e Sarita, com o gênio que tem, não fará boa liga com essa mulher.

— Ora, depois de casados hão de tomar rumo. Estou certo de que o homenzinho não há de ficar agarrado às saias da velha a ninar o gato venerando. Demais, quando há amor, meu amigo, tudo se sacrifica. Deixa lá... Iam por uma ladeirinha. Jorge fincava o varapau no solo, arquejando e, quando chegaram ao alto o “filósofo” propôs uma pausa para descanso; e, como havia uma grande raiz à flor da terra, sentaram-se ouvindo os chilros alegres do passaredo e o chiar das cigarras que festejavam o sol entre a folhagem.

— Estás com outra cor, Jorge. Então? Já te sentes melhor, hein?

— De corpo. É uma ressurreição da carne; o espírito vai de mal a pior. Não durmo e de uns tempos a esta parte tenho sentido fenômenos estranhos que me preocupam. Às vezes, é uma sensação de vácuo no cérebro, outras vezes a aglomeração, um grande corpo opaco que enche a minha pobre cabeça. Mas o que mais me impressiona é uma singular alucinação agora frequente.

À noite, quando me deito, o quarto enche-se de rumores fantásticos. A princípio o ruído tem a sonoridade, o ritmo natural, pouco a pouco, porém, atroa, precipita-se vertiginosamente; tudo aumenta, redobra-se: as pancadas do meu coração multiplicam-se, as minhas pálpebras batem como azas de colibri em adejo, o som mais leve fragora espantosamente.

Sinto-me crescer. Se toco as minhas carnes retiro os dedos aterrado e fico vivendo dentro de um ambiente de vertigem, num meio de pavor que não te posso descrever. Às vezes levanto-me e os meus passos aterram-me, são os de um louco que fugisse em desabalada corrida sem destino, através da treva. Esbarro em um móvel e é como se toda a casa estalasse aluindo, um grande eco reboa enchendo o silêncio e parece-me, às vezes, ouvir o galope do meu sangue nas veias. Essa alucinação não é longa, mas no curto tempo que me domina não imaginas quanto sofro. Sobre a visão de corpos luminosos já falei ao médico, levou isso à conta do meu enfraquecimento. Não me preocupa também. Já estou, por assim dizer, habituado ao diorama.

Às vezes vou caminhando e de repente estaco diante de um globo de fogo. A primeira impressão é de surpresa, mas vem tão prontamente a calma que ninguém deu ainda pelas minhas paradas súbitas. Tenho um mundo fantástico que me diverte os olhos, mas essa outra alucinação aterra-me. Parece um desequilíbrio de todo o meu ser, a desorientação absoluta dos meus sentidos. E os médicos atribuem tudo à nevrose, deixam-me nesse estado de dúvida, que é o início de uma mania. Porque, afinal, eu estudo-me, analiso-me, e essa análise constante já se vai tornando preocupação. Procuro explicar todos os ruídos e, para alguns, busco uma origem no sobrenatural: o resultado é que estou ficando de uma covardia infantil e de uma crendice de fetichista.

Infelizmente tenho uma triste convicção, estou descendo a aba da montanha que leva ao abismo da loucura.

— Ora, homem! Isso é que é mania. Então por que tens visões concluis que hás de acabar louco?! Se assim fosse, meu amigo, o mundo seria um manicômio. Pensas que não tenho dessas coisas? Tenho-as, e constantemente. Eu sou o mais completo visionário. Vejo, como tu, os tais corpos luminosos: são os fogos fátuos da retina, vêm das visões mortas. Podes achar blague no que digo, mas eu cá penso assim. Não vou pedir explicações a doutores. Vejo vultos, ouço falas; já uma vez senti junto de mim, agarrado ao meu corpo, um outro corpo — era uma súcuba, diria um mago, qual súcuba! Não havia corpo, havia apenas delírio. Deixa-te de ideias fúnebres. Sabes de onde vem tudo isso? Do teu isolamento, do teu silêncio. Vives concentrado, e como todas as forças geradoras carecem de expansão tens dessas coisas. Apertas o espírito e os abortos rebentam. A hipocondria é um terrível demônio! Deixa-te de pensamentos. Encara a vida como ela é, aceita-a sem discussões íntimas. Isto é assim porque é, ai tens. A voz de maman Loureiro interrompeu o colóquio.

— Ai vem a velha; vamos andando. Também agora é só descer um pouco. Mas a viúva, sempre enfezada, praguejava, porque os espinheiros, derreados sobre o caminho, haviam-lhe arranhado a mão. “Que ao menos deviam ter arranjado aquilo.” A ama apareceu amuada, um grande beiço espichado, resmungando.

— Então, que é lá isso, Bá? A negra, sem responder a Cesário, dirigiu-se a Jorge.

— Eu venho pedir licença a nhonhô para voltar para casa. O enfermo mirou-a:

— Que tens, Bá? Estás cansada?

— Não, senhor, mas não posso mais acompanhar essa mulher. Não estou acostumada com desaforos. Ela entende que há de me dizer tudo e eu já estou aqui que não posso de raiva. Não quero que nhanhan depois fique zangada comigo.

— E quem há de servir-me, Bá? Deixa lá a velha; não estás aqui por ela; vem conosco. A negra, que levava a saia arregaçada mostrando as pernas magras, deixou-a cair e, como os dois homens continuassem o caminho, seguiu-os, mas a alguns passos, sempre amazorrada, disse: “que Sarita mandara pedir para esperarem, porque a senhora já tinha falado, eles haviam-na deixado em baixo.” Cesário, então, revoltou-se:

— Hein! pois ande?! Quer, talvez, que façamos uma cadeirinha para carregá-la? Que ande! Aqui vai um que precisa de cuidados e não se queixa. Não faltava mais nada. Vamos embora! Não se espera mais. Jorge, porém, que havia parado, interveio delicadamente:

— Não, esperemos, é uma senhora. Não quero que Sarita tenha razões de queixa. Não custa. Bá acrescentou:

— É mesmo, nhonhô. Eu também tenho aturado muita coisa por causa de nhanhan, que não tem culpa, coitada! Nem o moço: ele é bom. A velha é que é um diabo! Os dois homens riram da cólera da ama, que continuou: Um diabo! Nunca está contente, por um nada está ai botando a boca no mundo. Nunca vi! E concluiu: Qual! Nhanhã mesmo não vive muito tempo com essa bruxa. Um grito repercutiu no bosque; Cesário, juntando as mãos na boca, correspondeu.

— É a menina. Nuvens zoantes de mosquitos voavam em torno das cabeças dos três, que os sacudiam desesperadamente.

— Ainda mais! escolhemos o pior ponto de espera. Vamos descer. Estão ali em baixo as mangueiras, é um instante. Isto aqui está horrível com os mosquitos. Mas aproximavam-se vozes:

— Paizinho! Gritou Sarita d’entre as árvores e Jorge, sorrindo, respondeu:

— Sobe! E mamã Loureiro corada, as saias muito levantadas, deixando ver os pés inchados, foi a primeira a aparecer carrancuda, ofegando: em seguida Sarita, vermelha, com duas lindas rosas nas faces, rindo, e o doutor abarcando flores silvestres. O jardineiro era o último, foice ao ombro, calmo, forte, como um senhor dos bosques, familiar com todos aqueles desvãos, íntimo daqueles meandros, habituado a atravessar os caminhos rudes, cantando folgadamente, sem fadiga, sem surpresa, como um deus selvático amado das árvores, querido dos ninhos, para o qual os ramos tinham sempre um fruto, as vergônteas tinham sempre uma flor e as águas guardavam a frescura suave e reparadora.

Cesário, vendo aparecer a viúva, anunciou baixinho ao enfermo “uma tremenda explosão de cólera”; a velha, porém, pálida, contendo a ira, não descerrou os lábios e passou, fechada num mutismo de ódio, a cabeça baixa, ofegando. Sarita, bambaleando o corpo, extenuada, sorria, e o doutor, carregado de flores, já sem fôlego, afirmou que “a ascensão ao Monte Branco era mais suave do que a subida àquela altura, sobre o caminho lamacento como estava.” Mas Cesário, sempre jucundo, riu da fraqueza daqueles moços e, descendo, animou-os mostrando-lhes em baixo o “salão florestal”.

— Estamos em casa. Lá estão as mangueiras veneráveis.

Orlando o caminho estreito e sinuoso os bambus inclinavam-se formando uma abobada verde e múrmura; borboletas voavam de um para outro lado e havia um sussurro perene como d'água a correr através da sombra. O “filósofo”, sempre apaixonado da natureza, rompeu em exclamações:

— Que olhassem! aquilo era lindo! suntuoso! Miss ia sozinha à frente, abrindo a marcha; Bá em seguida, amuada, a resmungar contra mamã Loureiro. Inocêncio apareceu cantarolando e logo sumiu-se, a correr, metendo-se pelos matos.

Entre as altas mangueiras a mesa tosca resplandecia forrada pela toalha branca. O chão em torno, juncado de flores, era macio e crepitava sob os passos. Havia palha e papeis esparsos e sobre os bancos garrafas, latas, flores e frutas, todo o necessário para esse almoço de festa, ao ar livre, na comunhão das árvores. A um canto, em pitoresco meandro, o cozinheiro improvisava os fogões, reunindo pedras sobre as quais descansavam panelas e caçarolas lambidas pela chama alegre e estalidante da lenha verde. Sentaram-se. Os criados correram a limpar os bancos e Cesário, satisfeito, expansivo e gárrulo, propôs uma taça de champagne levantando uma das garrafas, mas todos opuseram-se, queriam repousar, estavam estafados.

O “filósofo” teve um olhar de piedade e de ironia para “aqueles tristes” e, voltando-se para Inocêncio:

— Vem daí comigo, rapaz. Apanha essas garrafas num cesto e vem comigo. Jorge acompanhava-o com os olhos e quando o perdeu de vista acenou à Sarita que passeava abanando-se com o lenço. A moça adiantou-se e, sentando-se junto dele, no banco, tomou-lhe uma das mãos. Mamã Loureiro, desesperada, dava expansão à cólera frenética, discutindo com o filho que a ouvia murcho, de olhos baixos, quebrando renovos dos arbustos. Jorge, como se o eflúvio das selvas penetrasse-o beneficentemente, sentia um bem-estar tranquilo, uma grande paz de coração. A luz dourava os ramos espalhando nimbos de claridade no solo como se uma árvore de ouro, num outono fantástico, fosse despindo-se da folhagem preciosa; e pássaros cantavam em festa. Sarita sentia a pressão delicada dos dedos do padrasto e lia-lhe nos olhos a melancolia; entanto o seu coração, irritado de amor, batia sôfrego, os olhos inquietos procuravam o Dr. Loureiro que se perdia entre as árvores acompanhando a viúva. Pássaros desciam dos ramos e vinham mariscar na terra; alguns mais ousados passeavam em cima da mesa gazeando entre os pratos. O cozinheiro cantava uma modinha nortista, enquanto Bá e o copeiro, agachados, iam tirando dos cestos garrafas e frutas. O bosque conservava a sua serenidade, parecia um santuário invadido onde os deuses impassíveis olhavam calmos o acampar de uma horda. O enfermo levantou os olhos para Sarita, atraiu-a docemente e beijou-a na fronte entre os cachos de cabelos que voavam:

— Então vais deixar-me, hein?

— Deixar? Porque, paizinho?... Eu não.

— Não hás de ir com o teu marido?

— Sim, mas ele concordou comigo. Passaremos os primeiros tempos com você... mais tarde então...

— Mais tarde?...

— Se ele quiser, aventurou Sarita... E sorrindo:

— Não foi você mesmo que disse que eu devia fazer tudo quanto ele quisesse? Que devia obedecer sem discutir?

— Sim...

— Então? Eu com a mãe dele não moro; os nossos gênios não se combinam: é muito impertinente, esquisita, cheia de manias e para que hei de procurar o mal quando posso evitá-lo? Morar com ela, não; isso já disse a Loureiro e depois, ainda que nos separemos, você sabe que hei de sempre estar a seu lado. Não sou ingrata!

— Não, não és... Entanto, Sarita, o meu desejo era outro bem diferente: eu não queria apartar-me de ti, nunca! Queria que vivesses sempre comigo. É o meu único consolo, quem mais tenho eu no mundo? Cesário... Cesário é um nômade; amanhã, a pretexto de qualquer coisa, sai e deixa-me só e eu estou como as crianças às quais é indispensável o carinho da mulher. E partes justamente quando vem chegando o crepúsculo. Como vai ser triste a minha noite! Pensei muito, aguilhoado pelo meu egoísmo, pensei muito, mas tive quem discutisse e combatesse os meus pensamentos. Sempre que expunha uma ideia tinha certeza de a ver contrariada. Cesário não me permite mais a vida — acha-me inutilizado e, como querendo precipitar a queda da ruína, concorre para esse desastre arrancando o que ainda a sustentava. Se ele não se tivesse metido insidiosamente no meu segredo, mostrando-me o horror que viu no fundo, eu iria com ele, confiado e tranquilo, até o teu coração e talvez não tivesse agora a alma tão triste como tenho. Mas Cesário veio com os seus argumentos, disse-me coisas tais que tive receio de falar a verdade, de dizer o meu sentimento, de contar a minha agonia e hoje, arrependido, vejo que só consegui aumentar o sofrimento porque, cada dia que passa aproximando-te daquele homem, distancia-te, afasta-te de mim e, isolado, sentindo-me em abandono, começo a ter a impressão estranha de um banido, entregue à solidão e ao desespero, sem uma alma piedosa para fraternizar com a sua e abrandar-lhe o tormento.

Sarita quis interrompê-lo; ele, porém, deteve-a:

— Espera. O que te vou dizer agora é uma história que a mim mesmo repito constantemente nas minhas vigílias tormentosas. Talvez te revoltes como Cesário, mas não quero nem posso guardar, por mais tempo, esse segredo torturante e, se parecer-te estranho, perdoa-me, não me queiras mal nem abuses da minha indiscrição tornando-me ridículo aos olhos de outrem. Escuta. Desde que começaste a tua vida de moça, deixando esquecida a criança, desde que passaste da infantilidade à juventude, teu rosto começou a refletir o meu passado. Comecei a olhar-te como a sombra de um túmulo, vendo nas tuas feições todas as linhas, todos os traços de alguém que fora, para mim, um sofrimento feliz: tua mãe. A morta revivia e o meu amor por ti sofreu, ressentindo-se dessa transição da beleza — a criança ia morrendo vencida pela mulher até que de todo a menina desapareceu, ficando em seu lugar o espectro, que eras tu. Não sei como explicar-te o que sentia sempre que me aparecias como a visão de um tempo longínquo e de dores. Às vezes ficava demoradas horas contemplando-te e não eras tu quem eu via, era ela, tua mãe: quando falavas, quando sorrias, quando repousavas a cabeça sobre o meu ombro adormecendo. Meus beijos também perderam a castidade, mas não te maculavam — era como se eu beijasse uma imagem da morta. Desapareceste inteiramente cedendo o lugar à tua mãe. Bem sei que tudo isso pode ser levado à conta de um desequilíbrio mental, de uma grande moléstia d’alma, mas ouve, ouve sempre.

A princípio resisti empregando todas as forças da minha razão, toda a energia da minha vontade; mas a obsessão nasceu. Já não era somente em tua presença que eu sentia a tentação tremenda do teu rosto, longe de ti, diante do teu retrato, quando te ouvia os passos, quando te ouvia a voz. Foste, desde então, a preocupação única do meu espírito e essa moléstia, essa estranha moléstia, degenerou em amor, Sarita...

A moça empalidecia guardando uma imperturbável imobilidade, os olhos baixos, mas à confissão de Jorge estremeceu toda e, num movimento vivo, ergueu a cabeça e encarou-o. O enfermo, porém, como se não tivesse percebido o ímpeto da pupila, continuou no mesmo tom de narrativa, expondo a sua tortura.

— Amei-te... e não me vexo de o dizer a ti mesma, não me vexo porque não era a menina criada em meus braços, a minha filha que eu amava, era a outra, a que fora, a morta. E, se eu te dissesse, Sarita, todos os meus penares, as ânsias das minhas noites não dormidas, as angústias das minhas evocações, talvez me lastimasses. Cesário, que me tem acompanhado com tanta solicitude e com tão desvelado carinho, pode contar-te o que tenho sofrido. Mas, pensando, imaginei tudo quanto se vai realizando à medida que os dias correm: o teu casamento, o meu abandono. Foi então que imaginei guardar-te comigo para sempre, prendendo-te à minha vida para que me acompanhasses como uma ilusão acompanha um espírito doente. E quis casar-me contigo.

Novo estremecimento agitou a moça e seus olhos, cheios de assombro, faiscaram. A confissão surpreendia-a, sufocando-se no coração o pudor. O que a dominava era o medo: sentia-se como empolgada por uma mão forte e refugia ao homem, aterrada, com a respiração curta como se lhe faltasse o ar. Jorge, de uma lividez cadavérica, prosseguia, falando como se lesse num livro.

— Não era um novo amor que me impelia, mas a ideia de uma nova existência ao lado de quem vivi friamente, mais como amigo do que como esposo; era uma reintegração no passado, uma extravagante volta ao tempo extinto. Possuir-te não me preocupava, eu queria a outra, de que te não lembras. Só então levantou os olhos para a enteada e as suas pupilas fulguravam, um sorriso franzia-lhe todo o rosto: Não te lembras. Era linda, tua mãe! E eu não a amava. Foi necessário que o túmulo tomasse-a para que eu sentisse que no meu coração vivia o amor por ela, mas tão oculto que até então eu não dera por ele. Cesário, à força de interrogar-me, conseguiu saber o motivo dos meus desesperos e das minhas vigílias: disse-lhe tudo e ele, longe de procurar aliviar-me, veio com umas longas palavras mostrar a hediondez do meu pensamento. Hediondez, vê bem... mas em quê? Pois não fui eu o marido de Laura, não foi ela minha mulher? Que culpa tenho eu do seu regresso ao mundo? Que mal havia em casares comigo?

— Eu, paizinho? Exclamou Sarita em voz trêmula, já agitada pelo choro. Pois não sou sua filha, paizinho? Ah! Isso nem se pensa...

E desatou em pranto, abafando o rosto com as mãos. Jorge, agitado, como se tivesse reconhecido a sua falta e temesse torná-la pública, quis consolar Sarita atraindo-a; a moça, porém, repelia-o docemente, fugindo com o rosto quando sentia nas faces o calor do seu hálito.

— Mas ouve, minha filha. Não chores. Eu quis dizer-te a verdade, a verdade somente. Não queres que eu tenha franqueza contigo? Sou eu o primeiro a confessar que isso não passa de uma loucura, sim, de uma loucura, porque ninguém quer ver que estou perdendo a razão, ninguém! Não chores, tem piedade do meu sofrimento, nem tomes a sério as minhas palavras, não sei mais que digo. Só Cesário pode falar-te a verdade, ele que te conte as alucinações que tenho, as noites que passo. Que queres, minha filha? É a loucura. Nunca viste um louco? De vez em quando um relâmpago fulmina-me e fico assim, estonteado, incerto: é a tempestade sinistra que se anuncia. Não chores. E procurava atraí-la; as suas mãos trêmulas tateavam incertas o corpo virgem e Sarita encolhia-se, evitava-as, repelia-as com um mal contido nojo, até que se pôs de pé, os olhos vermelhos, o rosto macerado, e soluçando. Jorge, trêmulo, atônito. levantou-se também.

— Perdoa! Eu não sou mais do que um louco... Não sei que digo. As palavras saem-me involuntariamente. Achas possível que eu que te trouxe ao colo...? Não, minha filha, não: palavras vãs, palavras vãs. Vozes aproximavam-se. Jorge travou das mãos de Sarita e sussurrou: É Cesário; senta-te aqui, senta-te... e atraiu-a para o banco. A moça deixou-se levar sem resistência. Sentaram-se justamente quando o “filósofo”, purpúreo e suado, apareceu no caminho, arremangado, radiante:

— Decididamente vocês não têm gosto. O córrego está admirável com as águas novas que lhe deram as últimas chuvas, ronca e vem quase até à borda da barranca. É um rio, pode-se ali navegar. Lá deixei as garrafas num poço, a refrescarem. Mas vendo lágrimas nos olhos de Sarita, exclamou indignado: Que é isso? Chorando? Pois vieram de casa para isto? Ora, pelo amor de Deus! Jorge fazia-lhe sinais para que se calasse, mas Cesário, irritado, acusou-o:

— Que diabo! Tens a mania da tristeza. Não pode haver alegria junto de ti. O enfermo sorria afagando a enteada:

— Não, estávamos falando do casamento, só por que lhe disse que nos íamos apartar...

— Qual apartar! Apartar porquê? Vamos, menina; deixemo-nos de choro. Olhe, a sua professora lá está à beira d’água colhendo lírios; por que não vai ter com ela? Se começa a chorar vem por ai a viúva e desfaz-se em caudais lembrando o defunto. Nada de tristezas: e Bá, que chegava, vendo-a ainda a limpar os olhos, perguntou enternecida:

— Que é que tem, nhanhã?

— Nada, Bá; também tudo você quer saber...

— De certo, pois vosmecê está chorando à toa. Olha, o almoço já está pronto.

— Pois serve-o. E encaminhou-se vagarosamente para o lado do rio, brincando com um ramo de erva de S. João.

— Ah! Meu amigo, aquilo está lindo! Exclamou o “filósofo” e descendo as mangas, a cabeça levantada, a olhar as frondes douradas pelo sol: E que dia soberbo, hein?

— Maravilhoso! Inocêncio ia e vinha servindo a mesa e, quando Bá apareceu com uma terrina fumegante, Cesário esfregou as mãos:

— Já não é sem tempo. E saiu para chamar os Loureiro enquanto Inocêncio, a correr, entrava pelo caminho que levava ao córrego.

Ao almoço Cesário encarregou-se da palestra, notando uma grande frieza em todos, até nos noivos, que nem sequer sorriam. As árvores espalhavam folhas sobre a mesa e pássaros cantavam nos ramos, quase por cima da cabeça dos comensais. O “filósofo” chamava a atenção de todos para aquela alegria que os cercava, o bom humor da natureza amiga, e insistia em afirmar que “aquilo era bem melhor do que as tais salas abafadas.” Estava ali a grande verdura — não eram palmeirinhas enfezadas, araucárias raquíticas, apertadas em vasos japoneses, eram os grandes troncos, as copadas ramas e o passaredo cantava livre; ouvia-se o ruflo das asas dos que passavam de um para outro lado e as borboletas que voavam ao sol; tudo aquilo era de um encanto comunicativo. Mamã Loureiro fazia momos, achava melhor a sua sala de jantar; ao menos ali estava livre da umidade, “porque já começava a sentir os pés frios e uma pontinha de enxaqueca.” Jorge, de uma loquacidade estranha, deu para recordar os dias da sua infanda na liberdade dos campos, no pendor das colinas. O Dr. Loureiro descreveu a sua fazenda, na serra, lastimando não poder passar os dias na simplicidade rústica, acompanhando a faina alegre das colheitas, vendo o gado partir nas manhãs de névoa, chegar à tarde, em morosa fila, mugindo. Mamã Loureiro achava insípida a vida rústica, entre negros brutos, sempre a mesma coisa, num silêncio aborrecido. Quando ia à roça passava os dias a dormir ou na capela a ver uma coisa e outra. O filho, porém, como para lembrar-lhe, falou sorrindo dos diferentes encantos da vida de fazendeiro — o tempo da apanhação, a chegada dos negros da roça, dois a dois, a formatura no terreiro para salvarem, as ladainhas cantadas em coro, ao ar livre, o caxambu nas vésperas de festas, os sambas nas senzalas. Miss punha os olhos em alvo, ia afirmando com a cabeça, e, quando o doutor levou a garfada à boca, ela repetiu as descrições por ele feitas, dizendo, com saudade, que passara uns tempos em uma fazenda e vira tudo aquilo juntamente. Tinha até pequenas esqiuisses no seu álbum. Cesário, para contrariar mamã Loureiro, afirmou que não gostava de ir a fazendas porque não tinha coração para assistir às torturas a que submetiam os escravos.

— Se maltratassem um negro perto dele era capaz de perder a cabeça. Entanto a vida do interior seduzia-o. Havia ainda de ter um sitiozinho, porque o seu ideal era acabar descansadamente num canto ignorado, entre árvores. Havia de ter o seu gado, flores, uma horta para viver à maneira dos patriarcas. Mamã Loureiro fez-se carrancuda ao ouvir as palavras de piedade do “filósofo” que combatia, enternecido, a fúria dos homens brancos contra esses míseros africanos e, como a viúva resmungasse que os tais abolicionistas não passavam de uns especuladores, de uns ladrões, ele abriu os braços e, curvando a cabeça, confessou que pertencia a essa quadrilha nefanda, acrescentando que já havia acoitado em sua casa negros que se lhe tinham atirado aos pés, implorando misericórdia. E outros havia, disse. Infelizmente o número dos abolicionistas era maior do que o dos escravocratas, e rindo, com o copo em punho: “E havemos de vencer, minha senhora, ou não há Deus lá em cima! nem juízes cá em baixo!” A velha quis saber se ele possuíra escravos.

— Não, minha senhora. Meus pais deixaram-me um pecúlio pobre: alguns prédios e uma nesga de terra onde jamais caiu semente. Deixo-a ao sol e à chuva. E mamã Loureiro afirmou convicta:

— É por isso que o senhor toma o partido deles. O “filósofo” empalideceu e ia fulminar a velha com uma réplica tremenda, quando Sarita pediu que deixassem a discussão para o fim do almoço, porque a comida estava esfriando. Jorge, porém, com uma calma melancólica, entrou a contar uma cena de escravidão de que fora testemunha, pernoitando em uma fazenda paulista. “Uma mulatinha, suspeita de ser amante do senhor, fora submetida a um suplício bárbaro: nua, atada a um moirão, retalharam-lhe os peitos a navalha, lanharam-lhe as faces, as coxas, e, assim sangrando, passara a noite, uma noite gelada de junho, a gemer, cercada de cães que uivavam a ponto de o não deixarem dormir. Ao amanhecer, abrindo as janelas do seu quarto, que dava para o terreiro, vira a desgraçada — a cabeça tombada sobre o peito, hirta, molhada de orvalho. Estava morta.” Cesário, com esse documento, arremetem de novo:

— E então, minha senhora? É essa a caridade dos senhores de escravos que têm capelas, que rezam todas as noites à Virgem. É assim que eles compreendem a caridade!

— Mas se não tiverem energia que há de ser deles? Diga.

— Perdão, mas eu não sei de outro nome que melhor caiba a esses enérgicos senão o de assassinos. A velha encarou Cesário, lívida, mas, baixando a cabeça, teve um sorriso sardônico e perverso esfolando a costeleta nervosamente, a bufar. O Dr. Loureiro, alheando-se dos mais, voltou-se para Sarita e baixinho, o sorriso nos lábios, indagava dos motivos da tristeza súbita que a acometera. Jorge mirava-os e a moça tímida, cabisbaixa, ia distraidamente com o garfo do prato à boca, sem ousar levantar os olhos para o noivo.

O sol subia e a folhagem estremecia balouçada pela aragem cheirosa do bosque. Fartos, recostaram-se às cadeiras, enquanto os criados iam retirando os pratos, substituindo-os para a sobremesa. Veio, então, à palestra o casamento e foi mamã Loureiro quem lembrou aos noivos o dia desejado, que vinha perto, fazendo-lhes as observações da sua longa experiência.

— Agora é que vocês vão ver, dizia com familiaridade. Pensam que hão de estar sempre assim, como dois pombinhos? Pois sim; quando vierem os filhos é que eu hei de ver. Aproveitem, aproveitem, porque o melhor tempo é esse. Mais felizes do que eu que não tive noivado! Suspirou. E desafogando-se do guardanapo, contou que saíra do colégio para a igreja: era uma criança. Vira o marido umas duas vezes e respeitava-o, beijava-lhe a mão e, muito tempo ainda depois de casada, guardou por ele o respeito de sobrinha. “Ah! no seu tempo... não vê que os noivos tinham direito de conversar assim... Não vê”. E arrancou do grande peito um suspiro cavernoso.

Ia alto o sol no céu, caíra a aragem fresca da manhã e as árvores pareciam adormecidas à sesta. De quando em quando uma folha seca, desprendida do talo, vinha remoinhando e caía. Cigarras chiavam ao longe e na erva rasteira que alfombrava os recessos do bosque insetos trilavam. Uma cambaxirra galreava indo e vindo; às vezes pousava na terra, ao sol, e trefega, aos saltinhos, bicava mariscando, fugindo para os galhos altos. O torpor apoderava-se de todos; mamã Loureiro bocejava e Cesário ousou dizer “que era capaz de dormir uma boa hora estirado na erva, à sombra daquelas árvores.”

Jorge parecia distraído, o olhar fito num ponto escuro do bosque, quando o doutor lembrou a retirada, por prudência. “Ele, de certo, lucraria descansando um pouco” e, como se quisesse dar o exemplo, levantou-se. Mas Cesário protestou: “que não tinham vindo para comer somente; havia ali tantas maravilhas: o córrego que lá em baixo corria...” E Miss lembrou uma espécie de gruta de verdura que era uma beleza, onde havia sempre frescura e aroma. Mamã Loureiro obstinava-se em ficar, “estava farta de caminhadas”; Jorge, igualmente; deixando-se estar sentado, aprovou as palavras do “filósofo”: que deviam dar uma volta. Sarita, então, propôs uma pequena exploração às moitas próximas e convidou a governante e como o Dr. Loureiro se oferecesse para acompanha-las, seguiram os três pelo estreito caminho que levava ao córrego.

Cesário lentamente meteu-se por uma devesa e, resfolegando, estirou-se na erva, debaixo de uma alta mangueira, acompanhando a faina ativa de uma aranha dourada que ia e vinha, fiando a teia brilhante, e adormeceu, ressonando sonoramente. Mamã Loureiro e Jorge, enquanto os criados acondicionavam pratos e talheres nos cestos, entraram a falar do próximo casamento. Mamã Loureiro augurando uma sorte invejável à Sarita, porque ele era um coração de pomba, muito meigo, e ela havia de querer tanto à menina como a seu próprio filho. Haviam de viver como em um paraíso.

Jorge mal ouvia as palavras enternecidas da velha, olhava-a sem vê-la, o espírito muito longe, acompanhando esse par amoroso que ia por entre as árvores, protegido pela sombra discreta dos ramos. Viu-os parados como duas figuras marmóreas, embevecidos num êxtase de amor: ele a sentir de encontro ao peito o colo virgem da noiva, arfando, cheio de paixão, numa grande ânsia de desejos; ela com as faces aquecidas pelo hálito ardente do moço que a cingia amorosamente, atirando-lhe beijos desvairados à boca, aos olhos, aos cabelos... E a velha falava. Ia contando a vida submissa e meiga desse filho amado desde os tempos em que, pequenino, repousava a cabecinha loura no seu colo para dormir o primeiro sono até que se fizera homem, sempre a seu lado, obediente, sem jamais contraria-la, fosse no que fosse. Mas Jorge sentia-se a mais e mais perseguido pela visão terrível. As árvores farfalhavam e ele logo voltava os olhos como para surpreender, em flagrante realidade, o que o seu espírito criava, mas nada mais via senão as ramadas que se moviam lentamente, com langor voluptuoso.

Em torno era grande o silêncio, apenas cortado, de vez em vez, pelo tinir da louça que os criados arrumavam ou por alguma frase de mamã Loureiro relativa ao filho, e como Inocêncio passasse com um grande cesto à cabeça o enfermo perguntou pelo “filósofo.” “Que não vira,” respondeu o moleque; ele então levantou-se e, a pretexto de desentorpecer as pernas, propôs uma volta vagarosa e curta. A viúva negou-se, “que não devia abusar.” Jorge, porém, pondo-se de pé apoiado ao varapau, sorriu, garantindo que um passeio breve só lhe podia fazer bem; o próprio médico recomendara e, sem mais dizer, deixando a velha repoltreada, foi lentamente seguindo o caminho que haviam tomado os noivos. Mamã Loureiro, vendo-se só, ergueu-se também, sacudindo as saias e pôs-se a passear majestosamente ao longo da clareira, enquanto Bá ia ordenando a arrumação dos pratos e dos talheres. A negra, de cócoras, fazia-se surda às palavras da velha, levantando a voz quando falava ao copeiro, como para demonstrar que ali ela era senhora absoluta, que só ela ordenava; e, como a velha avançasse para dizer que não deviam ir os talheres no mesmo cesto em que iam os cristais, a ama resmungou:

— Que sabia muito bem o que estava fazendo. Tinham vindo assim, assim haviam de ir.

E atafulhava palhas, pedaços de jornais, guardanapos protegendo as taças e os cálices frágeis. Jorge, em tanto, ia seguindo, d’olhos no chão, procurando ver nas pegadas que haviam ficado pelo caminho o indício de que eles haviam seguido juntos... mas eram tantas, confundiam-se. Às vezes a trilha alargava-se, descobria-se toda ao sol e a luz dourava-a por inteiro, numa inundação ofuscante. Era a erva rasa, entanguida, murchando ao calor, sem a proteção de uma árvore; entanto pequeninas borboletas brancas, como se preferissem aos meandros sombrios aquela pequena clareira toda exposta à luz, cruzavam-se alegremente; havia florinhas miúdas, azuis, amarelas, e um bom cheiro de erva de S. João impregnava o ar.

O enfermo parecia buscar alguma coisa no próprio ar, um indício vago do que a sua imaginação criava. Em certos pontos o capim tenro estava amassado, curvado, como se alguém ali se houvesse deitado, e efetivamente as pegadas desviavam-se para aquele lado e desapareciam porque a erva ocultava-as; mas não, continuavam adiante, lá iam, e ele seguia-as.

Entanto já lhe chegava aos ouvidos o sussurro d’água, estava perto do córrego e eles então? Onde estariam? Parou um momento circulando com os olhos toda a redondeza, já sentia fadiga; mas pôs-se de novo a caminho. Impelia-o um misto de ódio e de curiosidade, queria surpreende-los e já não os imaginava abraçados, os lábios nos lábios, via-os em amor, entregues à fúria brutal da paixão, rolando na terra como os animais, frementes de gozo, num abandono cínico. O sangue afluía-lhe ao rosto, tremiam-lhe os lábios.

Tinha ímpetos de correr todos os cantos, examinando cuidadosamente, a ver se os descobria. Deviam estar ali, ocultos, escabujando em espasmos; mas onde? Onde? Ia sempre a olhar, transfigurado, sem sentir o cansaço, arrastando as pernas, sem mesmo procurar firmar-se ao varapau que levava. Havia gorjeios, chilros nas árvores, uma surdina de beijos, estalidos secos como de gravetos quebrados sob o peso de corpos e o murmúrio do córrego perene. E eles? Onde estariam? O caminho bifurcava-se — hesitou, e como em ambos houvesse trilha de passos, escolheu o que levava a um canto de sombras e, tomando-o, pareceu-lhe ouvir um segredar tímido, amoroso, à maneira de arrulho.

Prestou o ouvido, como quem procura distinguir, na treva da noite, o passo vago de um espectro. Os olhos, imensamente dilatados e fitos, espreitavam como se quisessem ver, em desalinho criminoso, ainda exaustos, afogueados, os dois amorosos. Mas uma grande borboleta apareceu voando lentamente, ora baixo, rente com os arbustos, aflorando as espiguilhas, ora alto, por entre os ramos. Foi seguindo, vagaroso, cheio de cuidados, para que não estalassem sob os seus pés os galhos ressequidos que havia pelo chão. Fincava o varapau firmando-se para mudar os passos e assim, evitando tocar nas ramarias para que não farfalhassem, com medo mesmo de que os insetos, que trilavam, se calassem acusando a sua presença, ia por diante procurando não interromper a vida dos pequenos seres nem quebrar o silêncio misterioso do recanto discreto. E assim chegou ao termo do caminho, defronte do córrego, entre cajueiros, e viu os três, sentados sobre pedras, na barranca, calados, olhando a água correr.

Sentiu como uma decepção, como se preferisse encontrá-los de rojo na terra bestialmente enlaçados, num delírio carnal como o dos negros que amam ferozmente, entre os cafezais dos eitos, ao sol. Via-os tranquilos e calados e entre eles Miss... Pensou em tornar pelo mesmo caminho, mas quase involuntariamente, um grito fugiu-lhe da garganta: “Ooh!” Os três voltaram-se surpreendidos e maior foi a surpresa quando o reconheceram. Sarita ergueu-se muito corada, mas foi o Dr. Loureiro quem avançou para buscá-lo, pasmando de o ver só.

— Oh! Doutor! Podia ter alguma coisa...

— Não, não... até me fez bem. Mas eu volto. Deixem-se estar. E, nervoso, estendia a mão para repelir o doutor que procurava auxiliá-lo. Sarita, porém, como o visse partir, gritou de longe, arrependida, compreendendo que ele se havia ressentido da sua frieza:

— Espera, paizinho. Vamos todos. E deitou a correr conseguindo alcançá-lo.

— Então...? Quer ir sozinho?

— Vou só... Vou só. E repelia o braço que a moça lhe oferecia, mas de repente, voltando- se: Olha, vem com ele. Dá-lhe o braço. E seguiu cravando com força o varapau na terra.

Quando chegaram às mangueiras Cesário ainda dormia, e Bá, sentada no banco, as mãos nas coxas, a cabeça encostada a um tronco, a boca aberta, cochilava. Mamã Loureiro partira guiada pelo copeiro e foi necessário que a ama fosse despertar o “filósofo” para que ele viesse oferecer o braço a Jorge que, banhado em suor, obstinava-se em querer ir sozinho, rejeitando o auxílio que lhe ofereciam o doutor, a enteada e a própria ama, o que fez com que a negra dissesse baixinho à Sarita:

— Isto foi alguma que vosmecê fez a nhonhô.

— Que foi que eu fiz, Bá!? Já vem você! Que foi que eu fiz?

VII

Jorge, desde essa manhã do almoço no bosque, entrou a manifestar estranhos desequilíbrios mentais. Caía, às vezes, em prostração, a cabeça pendida sobre o peito, babando, e, se lhe acudiam, repelia frenético, agitando os braços. Se falava era um araviado. Comia e bebia maquinalmente e, as mais das vezes, era Cesário quem lhe levava à boca a garfada ou o copo, sustendo-lhe a cabeça que abatia avidamente como a de uma criança gulosa.

O doutor Loureiro, sem ousar uma afirmativa, arriscava entanto “possibilidades de um novo insulto” contra a opinião do “filósofo” que via, infelizmente, que o “pobre amigo ia rolando para a imbecilidade.” Um grande ódio era, ainda assim, a derradeira fagulha de memória que restava naquele espírito quase todo em sombra. Jorge reconhecia à distância os passos do doutor Loureiro e, desde logo, entrava em agitação, grugrulhando irritado, e, se o médico aparecia-lhe, baixava a cabeça e ficava assim enquanto o sentia perto, resmungando, torcendo as mãos.

A viúva evitava visitá-lo a pretexto de não ter coragem para ver tamanha desgraça e Sarita, que passava os dias a chorar, só à noite descia para espiar o enfermo. Pedia informações a Cesário:

— Como vai ele?

— Acabando, filha; acabando. Isso agora vai assim até à morte.

Havia receio de que ele fizesse um desatino. As armas seduziam-no, as lâminas fascinavam-no. Uma manhã, como Cesário saísse um instante ao jardim, foi surpreendido pelo fragor de um móvel que caíra. Correu e encontrou Jorge ajoelhado diante do retrato de Sarita que rolara por terra, desprendido do cavalete, a raspá-lo furiosamente com o iatagã de bronze de cortar papel. Foi necessário grande esforço para arrancá-lo dali: rugia, ameaçava com os punhos fechados, a fisionomia decomposta.

Bá passava as noites em vigília, sentada ao lado do leito, o rosto nas mãos, arrancando profundos suspiros e, ao mínimo movimento do enfermo, levantava-se indo, às vezes, despertar Cesário e os dois, calados, acompanhavam as noites insones de Jorge, procurando interpretar as suas palavras difíceis. Constantemente chamando Cesário ou a ama, mostrava a figura da Noite no baldaquino e sorria extasiado; súbito, demudado, frenético, sentava-se na cama arrepelando os cabelos, sacudindo para longe as cobertas e Bá voltava o rosto, saía, se estava só, para chamar Cesário ou entregava o enfermo ao “filósofo” e condoída, a chorar, deixava o quarto, lastimando o amo, sem compreender os gritos de incubo que ele soltava trazendo, de vez em vez, o nome de Sarita. A paralisia ia cedendo; os movimentos tornavam-se lhe mais livres à proporção que a loucura acentuava-se.

O gás ardia noite e dia. Raro em raro um raio de sol insinuava-se por uma aberta da porta. Cesário receava qualquer movimento rebelde do enfermo e vigiava-o prestando atenção à mímica que fazia e aos termos vagos que tartareava. Às vezes, porém, como se o delírio se desvanecesse, acenava pedindo que lhe abrissem as janelas, num desejo de luz e ar e recebia o sol contente como uma criança a quem oferecessem um brinquedo, estirava as mãos como um transido que se achegasse ao lume. Pedia que o levassem ao jardim, saiam com ele. Parava de espaço a espaço porque, como se tudo fosse novidade, tinha surpresas a todos os momentos — diante de um botão, à sombra de um ramo, ouvindo o sussurro d’água, vendo uma borboleta e, envelhecido, magro, curvado, estendia os compridos braços, com as mãos ossudas, espalmadas, num gesto mole como se apalpasse o ar.

Nesses dias Sarita descia e passava horas com ele. À noite reuniam-se no salão de trabalho e mamã Loureiro achava sempre ensejo de lembrar o passeio ao bosque, atribuindo a recaída de Jorge àquela caminhada. Mas essas pausas eram curtas. Às vezes mesmo, em meio da conversa Cesário, notando nos olhos do enfermo a inquietação e o desvairamento, fazia sinal para que as visitas se retirassem e, um a um, saiam todos. Jorge chamava-os a rir, tentava levantar-se para segui-los, mas Cesário continha-o com meiguice. O frenesi agravava-se: rugia, ameaçador e terrível, e semanas passavam-se de suplício e de angústia para os enfermeiros.

Entrava o verão: dias e noites de fogo e mamã Loureiro gemia contrariada com aquela demora do casamento.

— Não podia mais com o calor; passava as noites em claro, sentada em uma cadeira diante da janela do seu quarto, a abanar-se. Queria ir para a fazenda tomar um pouco de ar. Não achava razoável o adiamento; se houvesse probabilidade de cura ainda bem, mas estava que nem falar podia... e com aquelas fúrias que eram até perigosas para quem vivia com ele. Podia, quando menos se esperasse, fazer alguma. Era até uma obra de caridade mandarem-no para o Hospício. Efetivamente os acessos tornavam-se mais frequentes — Jorge evitava o filósofo, com olhares desconfiados, rosnando. Uma manhã Cesário apareceu na varanda com uma equimose denegrida no rosto e queixando-se com pena do estado do pobre amigo:

— Não há remédio senão retirarmo-lo daqui. Deu agora para desconfiar de mim, repele-me, assanha-se todo quando me vê. Não podemos perdê-lo de vista um segundo. Sarita aventurou:

— Quem sabe se não é um bom sinal!?

— Bom sinal?! Pois sim... A minha opinião é que ele deve ir para o Hospício. Menina, aquilo é uma casa de caridade.

— Eu sei, senhor Cesário, mas a gente...

— A gente... a gente... É a minha opinião.

Quando descansava, caindo em calma, longe de o abandonarem, os enfermeiros redobravam os cuidados porque, uma noite, como o vissem adormecido, Cesário e a ama repousaram e, se não fosse a queda de uma cadeira no salão, talvez não restasse da casa mais que um monte de cinzas, porque o louco, conseguindo levantar-se sem bulha, fora à sala, pé ante pé e, amontoando jornais, lançara fogo e já as chamas subiam pelas franjas dos reposteiros quando, a fugir, Jorge derrubou a cadeira. Foi a ama a primeira a acordar e, ao clarão que vinha da sala, vendo o leito deserto, gritou por Cesário. O “filósofo” saltou da maca e, saindo à sala, acharam-se os dois diante do louco que arrancava páginas de livros, atirando-as às chamas. Foi uma luta tremenda — ele resistia com ferocidade de animal, ameaçando morder e dificilmente, enquanto a ama apagava as labaredas, Cesário conseguiu subjugá-lo levando-o quase ao colo para o quarto. Não era possível conservarem-no por mais tempo em casa. Sarita pediu ainda: “Tentassem...! Tinha tanta pena dele, coitado!” Mas o “filósofo” foi enérgico:

— Também tinha pena e muita... Era amigo de velhos tempos, mas que fazer? Lá, ao menos, havia o recurso da ciência e ali? somente o risco e o doloroso espetáculo permanente. Não admitia que houvesse melhor coração que o seu, mas a razão apontava-lhe aquele caminho... O Dr. Loureiro concordou fazendo uma pequena preleção sobre o caso, descrevendo a marcha da moléstia, dando como termo a demência. Estava no período exaltado da perseguição que ia degenerando em novo delírio.

— E depois...?

— Um novo Nabucodonosor, concluiu. Cesário abriu os olhos com espanto; duas lágrimas rolaram, e “o filósofo”, atirando os braços, saiu a grandes pernadas para a varanda bradando:

— Que estupidez! Porque diabo não vem a morte? Isto é uma estupidez! Já viram?! E de braços cruzados, sacudindo a cabeça, cravou os olhos no céu fulgurante.

— Pobre paizinho! Suspirou Sarita.

Dias depois a viúva, sempre azeda, insistiu no casamento.

Sarita horrorizava-se àquela ideia de casar sabendo que Jorge sofria; recusou e foi necessário que o “filósofo” interviesse: “Que não havia mais nada a esperar do infeliz.” Com franqueza, nada de ilusões: era um caso perdido e se ela havia de ficar sozinha, era melhor que casasse.

E o casamento foi marcado para o meado do mês; fariam tudo em casa, sem festa. Bá, quando teve notícia da resolução que haviam tomado relativamente ao enfermo, soluçando, agarrou-se a Cesário para perguntar:

— Se não podia acompanhar nhonhô? Quem havia de cuidar dele! Essa gente não tem paciência... concluiu lavada em lágrimas.

— Não, Bá; não podes ir com ele, mas descansa: nada lhe há de faltar. Quando quiseres visitá-lo iremos juntos.

— E ele não fica bom, nhô Cesário?

— Sim, com o tempo; isso vai devagar.

— Coitado de nhonhô!... E a velha negra, à noite, depois do serviço, sentada a um canto, soluçava, a pensar nos dias que vinham, no apartamento de todos: Miss Kate que se despedira apesar das instâncias de Sarita e do Dr. Loureiro: Sarita que ia para o todo sempre e ele, Jorge, que trazia Cesário azafamado pondo em ordem papéis, consultando médicos, preparando a entrada nessa casa lúgubre, cujo nome bastava para arrancar suspiros do mais íntimo do seu coração dolorido.

Ia deixar a família para recomeçar, na velhice, uma vida nova de trabalhos e de miséria. Saía sem nada, apenas com a sua carta, sem ter, no dia seguinte, um canto para descansar o pobre corpo, vergado pelos anos e pelos grandes sofrimentos; mas, apesar de tudo, preferia a incerteza do amanhã a ter de viver sob as ordens da velha.

— E para onde vais, Bá? Perguntava Sarita.

— Por aí, nhanhã; Deus é grande! Ainda tenho forças. Não vê que estou para ouvir desaforos dessa mulher?! Vosmecê bem sabe como eu sempre fui tratada. Não quero, nhanhã. Vosmecê tem obrigação, vai acompanhar seu marido. Deus há de ter pena de mim. Nunca fiz mal a ninguém! E desatava a chorar, limpando as lágrimas com o avental. E sem poder explicar a sua ternura que se dividia entre o enfermo e a menina, como se antevisse o mesmo futuro infeliz para ambos, suspirava:

— Coitada de minha filha!...

À noite descia para “fazer quarto”, sentava-se no tapete junto ao leito do enfermo e ficava recapitulando todo o passado feliz que escoara tão rápido.

As lágrimas escorriam-lhe por entre os dedos, pelos pulsos, constantes e grossas. Cesário, quando via o enfermo descansado, ia ao salão arranjar “as suas coisas” e, de cócoras diante das estantes, folheava livros vindo, de quando em quando, à porta do quarto espiar.

Na manhã em que Jorge devia ser transferido para o Hospício, linda manhã de sol, todos acordaram cedo. Sarita, apesar da oposição de Cesário, pedia para ficar na varanda para o ver passar. O “filósofo” coçou a cabeça frenético:

— Não acho conveniente, menina; tenha paciência. Para que havemos de provocar uma crise perigosa? Não acho conveniente.

— Que mal faz?

— Eu é que sei; deixe-me cá.

Às onze horas, quando chegaram os dois enfermeiros do Hospício, Cesário levou-os aos aposentos do amigo, onde a ama e o copeiro faziam guarda. Jorge ia e vinha pela câmara molemente, de olhos baixos, puxando da barba longos e imaginários fios que enrolava entre os dedos magros. Por vezes levantava a cabeça e fitava os olhos no baldaquino. Cesário dirigiu-lhe a palavra com naturalidade, como nos velhos tempos felizes:

— Vamos dar uma volta, meu velho? Os enfermeiros esperavam à porta.

Que é da roupa, Bá?

— Não é a preta, nhonhô?

— Qualquer...

— Está tudo em cima da cama.

— Bom. E dirigindo-se aos enfermeiros: Vamos? Os homens adiantaram-se e Jorge, sempre passivo, deixou-se vestir, sacudindo, às vezes, coisas que lhe passavam ante os olhos vagos. O casaco fazia grandes dobras no seu corpo emagrecido e os cabelos compridos, quase totalmente brancos, rolavam-lhe pelos ombros escondendo a gola. A ama não tirava os olhos dele e, quando os enfermeiros travaram do braço do enfermo para conduzi-lo, a negra, com um grande soluço, atirou-se de rojo procurando beijar-lhe a mão pálida e fria:

— Ah! Nhonhô!... Meu senhor! Coitado de meu senhor!...

Cesário afastou-a com desusada energia. A negra lançou-lhe um olhar angustioso, juntou as mãos, inclinou a cabeça grisalha, pediu surdamente, ansiando.

— Não, Bá... O “filósofo” mal pôde pronunciar tais palavras, levava os olhos rasos d’água e a sua grande barba tremia sacudida pelo andado ofego.

Aberta a porta o sol entrou em jato pela sala iluminando o grupo dos homens e a negra que os seguia soluçando. Jorge levava os olhos enlevados e sorria ao seu sonho, indiferente aos que o cercavam, embebido na visão estranha que o precedia distanciando-se pelo além, invisível para os demais, só atingida pela sua pupila. Ia quase suspenso nos braços fortes dos homens que o levavam, os pés mal tocando o solo, descaído, mole, a cabeça enterrada nos ombros. Os cabelos longos, emaranhados, a barba imensa, davam-lhe uma expressão selvagem; as pomas de rosto salientes tinham um leve rosado que contrastava com a palidez marmórea da fronte alta e sulcada de rugas.

Quando saíram ao jardim, como se um lampejo de reminiscência tivesse passado, em relâmpago, pelo seu espírito entenebrecido, teve um hiato de espanto, vagando com os olhos rapidamente de um lado para outro; agitou-se e um rouquejo fugiu-lhe do peito. Os rosais estavam carregados e na lisura dos canteiros gramados borboletas espaireciam ao sol. Margaridas pintalgavam a folhagem verdoenga e havia um renque de amores perfeitos variegados orlando um dos canteiros. A areia crepitava sob os passos demorados dos homens e, como o sol caísse de chapa, Bá precipitou-se, abrindo um guarda-sol para proteger a cabeça nua do louco que sorria extasiado, acenando como se se despedisse. Quando passaram diante da varanda deserta um grito agudo partiu; voltaram-se todos, menos o louco, e a ama trêmula avançou para Cesário:

— É nhanhã, coitada...

— Vai! Vai ter com ela.

— A velha está lá em cima.

A negra não se queria apartar do “senhor”; havia de acompanhá-lo até o carro. O jardineiro, como diante de um morto, descobriu-se respeitosamente à aproximação do grupo e Inocêncio, à sombra de um flamboyant, olhava espantado e medroso. Quando chegaram à porta Cesário, que não se lembrara de mandar abrir a portinhola do carro por um dos criados, precipitou-se. O louco teve então um acesso como se compreendesse o horror do seu destino. Firmou-se nos pés e, aos safanões, rugindo, procurava libertar-se dos homens que o levavam. Capineiros que passavam detiveram- se olhando compadecidos. Jorge fez-se mole, deixou-se cair, mas os dois homens sustentaram-no e, como o impelissem para o carro, a ama avançou implorando:

— Ah! Gente! Tem pena dele, coitado! Cesário interveio:

— Devagar, ele vai bem... Mas o louco, num movimento rápido, safando-se, ficou de pé, com os olhos imensamente abertos, fitos extaticamente na verde e luminosa paisagem. Os enfermeiros tomaram-no delicadamente e Cesário, muito brando, falando-lhe ao ouvido, animava-o.

— Então? Vamos! Vamos! Sou eu... Ele encarou o “filósofo”; depois, lançando de novo os olhos ao campo, estendeu o braço:

— Olha lá!... e foi descrevendo um meio arco de círculo, mostrando a viçosa planície e as montanhas, sorrindo; e com a mão espalmada bateu no peito magro.

— Sim, sim... dizia o “filósofo” e o louco, absorvido, deixava-se levar até que os enfermeiros, levantando-o sem dificuldade, meteram-no no carro.

Cesário, sem chapéu, atarantado, correu para o lado oposto e entrou. As portinholas bateram e o carro partiu. A negra ficou ainda algum tempo ao portão a olhar, e, como perdesse de vista o carro, voltou pela álea central que refulgia ao sol.

Sarita repousava em um pliant, a cabeça sobre o colo de mamã Loureiro que lhe falava meigamente enquanto o doutor, passeando ao longo da sala, trincava o charuto. Mal deu com os olhos na ama desatou em soluços:

— Ah! Bá! Coitado de paizinho! Como ele está! A negra ajoelhou-se junto da menina e rompeu num grande choro, pedindo a morte. Mamã Loureiro procurava acalmá-las e o doutor garantiu que “não era um caso perdido. Podia ficar bom em pouco tempo, tivessem paciência”. Mas a negra redobrava o pranto. “Sabia que nunca mais havia de vê-lo, o seu coração dizia-lhe.” E todo o dia correu em lágrimas, e à noite, com a volta de Cesário, quiseram todos saber “como chegara Jorge, se não lutara muito, se ganhara calma, se o haviam recebido bem?”

E o “filósofo”, para consolar, dava esperanças.

— Aquilo podia ser uma crise; tivessem calma. Chegara bem e estava perfeitamente alojado. E como Bá aparecesse, recomendou-lhe as suas canastras. Ia para Minas, fazer vida de asceta numa cidadezinha pacata. Mas Sarita pediu que ficasse até a chegada de sua tia que fora chamada por telegrama; mesmo porque já o havia escolhido para padrinho, nem ele podia deixa-la só naquela casa triste. Cesário acedeu. Bá, à hora de recolher, quando Sarita, do leito, relembrando a desgraça, disse que não podia mais com aquela casa que imediatamente depois do casamento partiam todos para a fazenda, resmungou:

— Todos, não: Nhanhã e seu marido...

— E tu?

— Eu me arranjo. Não pense em mim; cuide de vosmecê; eu me arranjo. Sarita encarou-a.

— Então não vais comigo? A negra abanou com a cabeça:

— Não, senhora.

— Com quem ficas então?

— Fico aqui mesmo na cidade, perto de nhonhô. Vosmecê vai com seu marido, vai ser feliz e eu não quero que, mais dia, menos dia, saia alguma coisa por minha causa. Não, senhora. Eu aturo tudo, nhanhã, mas não aturo pouco caso nem afronta; isso não. Sou negra, sim, mas vosmecê me conhece. Não posso com essa mulher. Já tive o meu tempo de cativeiro. Um dia vosmecê há de ter notícia de Bá. Tenho muita casa para onde ir. Nhanhã não precisa de mim, mesmo eu já não me sinto com vida para muito tempo. Deus é grande! suspirou com os olhos enlevados.

— Olha lá, Bá! Se não vieres comigo eu nunca mais quero saber de ti...

— Não precisa dizer, nhanhã... Eu sei que há de ser assim mesmo. A sorte da gente está lá em cima. Havia de ser assim, paciência...

— Vê lá, Bá!

— É assim mesmo, nhanhã...

VIII

Bá, de pé desde as cinco horas, arranjava a casa em companhia de Inocêncio que cantarolava, sentindo-se em liberdade, sem a presença dos amos. Sarita, para espairecer, fora passar o dia com a viúva, o “filósofo” descera para a cidade à cata dum livro, o molecote estava apenas com a negra paciente e carinhosa, que o tratava com meiguice de mãe, posto que, às vezes, o ameaçasse investindo com ele. A ama, porém, os olhos pisados de chorar, varria a casa, parando, às vezes, firmada à vassoura, meditativa e triste, os olhos ao longe, seguindo a visão do passado. No quarto de Sarita, impregnado das essências capitosas da sua toilette, demorou-se e, a cada objeto que encontrava, apanhando as roupas que a moça despira diante do leito desfeito, os soluços atropelavam-na angustiadamente: “Coitada de nhanhã! Coitada de nhanhã!”. Varrendo pedaços de papel encontrou uma madeixa loura voando como uma pluma na poeira do soalho; apanhou-a, beijou-a muito, guardando-a preciosamente como uma relíquia.

A casa deserta reboava; mas a agonia foi grande quando a negra desceu aos antigos aposentos de Jorge. A balbúrdia em que estavam os móveis: livros esparsos, folhas de papel pelos cantos, destroços do cavalete, armas caídas e o grande relógio parado, como se também por ele houvesse passado o mesmo vento de desgraça que aluíra toda a vida daquela casa, dantes tão festiva. Tudo recordava à ama um episódio do velho tempo — a cadeira em que o senhor costumava repousar, a sua grande mesa de trabalho, os seus quadros, os seus bibelôs, e na câmara o leito amplo e vazio, com o enxergão de arame rebrilhando. A vassoura ia levando a poeira, onde as suas lágrimas caiam continuamente, mas num canto, uma larga folha de papel resistia à vassoura como se estivesse colada ao soalho.

A negra, abaixando-se, apanhou-a; estava escrita: em grandes letras de um talho nobre havia um título majestoso: — História da Civilização.     

Habituada ao respeito pelos escritos levou para a mesa a larga folha de papel e lá a deixou debaixo de uma pesada cabeça de númida, de bronze.

— É de nhonhô, com certeza, coitado! Pode ser que ele ainda queira. E lembrando-se dele, ainda preocupada com o trabalho do enfermo, pensou que melhor seria guardar a preciosa folha de papel em uma das gavetas, mas todas estavam fechadas; deixou-a na pasta entre outros papéis. Passou a arranjar os livros e, fazendo lugar em uma das estantes para um pesado volume de Ferrario, sentiu por trás alguma coisa macia e mole como algodão; puxou: era uma camisa de mulher, fina e rendada. A poeira dera-lhe uma cor encardida, ainda assim a negra reconheceu-a: “É de nhanhã!” e mirando-a, ficou-se a pensar: “como teria ido parar ali aquela peça de roupa?”

Outras preocupações, porém, outros cuidados desviaram-lhe a atenção. “Coitado de nhonhô!” E, de novo, as lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Sentou-se à porta, ao sol, olhando as montanhas azuis.

O jardim viçoso repontava em flores e o jardineiro, já esquecido das cenas que presenciara, passava o alfange pela grama cantarolando. Passarinhos mariscavam no saibro e a ama pôs-se a pensar nos dias que vinham.

Estava ali como uma abandonada — ia ficar só, esquecida e velha. Via a noite próxima, sem poder, entretanto, traçar o roteiro do seu destino. Era a miséria, a triste miséria que a esperava. Já lhe não sobravam forças para o trabalho e, mais do que tudo: como poderia resistir o seu pobre coração amoroso e fiel a tantos golpes sucessivos da fatalidade? A cabeça foi aos poucos descaindo e pendeu sobre o peito.

Fora sempre martirizada no coração: estéril, adotara na alma os pequenitos dos senhores e a fibra materna desenvolvera-se lhe nas longas vigílias junto aos berços, nos transes agoniados das moléstias das crianças quando, mais que as próprias mães, redobrando os cuidados, agarrava-se com o seu Deus misericordioso pedindo a salvação dos inocentes.

Mãe pelo amor, via-se então, na velhice, isolada, vindo do cativeiro sem nunca ter tido um carinho, com as carnes maceradas pelo trabalho e pela tortura. Nada, porém, a preocupava tanto como a ideia de que nunca mais o havia de ver: “Coitado de nhonhô!...” Suspirou e, estendendo os braços, voltando-os, esteve a mirá-los perdidamente e, como se ainda os sentisse fortes para o trabalho, levantou os olhos rasos d’água para o céu deixando escapar um suspiro:

— Deus é grande! E, cabisbaixa, arrastando os passos, entrou vagarosamente na casa silenciosa e deserta.

FIM