Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico

Vulcano e Minerva, de Lacerda Coutinho 


Edição de base:
Biblioteca Nacional – setor de obras digitalizadas

Colhida Vênus no subtil enredo

que o cioso marido lhe tecera,

(e com ela o amante), exposta ao riso

do Olimpo inteiro – subjugada e nua,

deixa irritada o Céu; foge à aborrida

morada conjugal; e à fiel Chipre,

ao templo do seu culto se recolhe.

No lar deserto, rala-se Vulcano

de tédio e de saudade. É muda a estancia

onde estrugiam brincos, travessuras

do pequeno Cupido. O leito, há pouco,

trono das graças, sólio da beleza,

é agora ermo e frio; e, ao apartar-se,

a consorte cruel levou consigo,

(ó cúmulo de males !) por acinte,

do lar amigo as hóspedes constantes,

as três Graças irmãs: Talia, a meiga,

a risonha Eufrosina e a ardente Aglaia,

com quem o coxo Deus, muito a seu salvo,

da freqüente viuvez se consolava.

O labor mesmo, em que se comprazia
o divino ferreiro, é-lhe enojoso.
Não mais, aos golpes do pesado malho
sobre a bigorna, estrondam as cavernas
do flamívomo Etna; extinta a forja,
há folga na oficina; já o Cíclope
fecha, roncando, o olho solitário;
rojados aos montões criam ferrugem
obras d’arte. armamento, e os próprios raios
por Jove Onipotente encomendado

Sobre o engenho mais rude ah! quanto podem

penas de Amor, encantos da Beleza!

Correm meses. Um dia que, assentado

da ferraria à porta, ao fim da tarde,

cabisbaixo relembra os tempos idos

de amor e de ventura; os atrativos,

os donaires sem-par da esposa ausente;

ao retratar na mente embevecida

o bem que já fruiu, que lhe pertence,

e de que, tanto há, se vê privado,

sente-se presa de voraz desejo;

fundo suspiro arranca; anseia e chora.

Eis senão quando, pelo ar tranqüilo

brando arruído, qual retintim d’armas,

que baixa à terra, esperta-lhe os sentido

Alçando a vista, em nuvem d’ouro e púrpura

divisa envolta a armígera Minerva,

que, breve, o solo pisa e se aproxima.

Da virgem Deusa o corpo bem talhado,

as feições nobres, o sereno aspecto,

a severa beleza que, em litígio,

balançara a vitória à própria Vênus,

e mais que tudo o crítico momento,

em que lhe assoma à vista, produziram

no ferreiro imortal impressão viva.

Saudando o coxo Deus, com um sorriso

modesto e doce, Palas lhe encarrega,

para as polir, as armas temerosas,

que longo e assíduo trato mareara.

A forte lança, a Égide terrível,      
entrega-lhe primeiro. Ao despojar-se
do argênteo morriam, eis se despenha
em catadupas d’ouro a cabeleira
até ali represada, e se lhe espalha
pelos ombros em ondas reluzentes,
basta e longa a invejar-lh’a o mesmo Apolo.
A tal aspecto, atônito, enlevado,
vertiginoso, o Olímpico ferreiro
deixa as armas cair em que pegara.
Cobra o tino, porém, e, já forjando

secreto plano, a comoção domina.

Desprevenida embora, a Deusa hesita
em despir a couraça cinzelada
que o peito lhe protege. De manhoso,
nada aconselha e até finge arredar-se

o coxo Deus. Minerva, decidida,

põe logo mãos à obra, e o peito d’aço

junta-se enfim ao mais. A leve túnica,

que, ora só, veste o busto da donzela,

mal lhe disfarça a elástica dureza,

a forma globular, o bico ereto

do seio virginal. Não mais existe

Palas, a forte. A ínclita guerreira

no vulcâneo arsenal, co’as férreas armas,

cruéis ornatos da beldade impróprios,      

jaz sepultada. Em seu lugar, eis surge,

meiga e modesta, a grata divindade

do trabalho e da paz, Minerva, a virgem

de glaucos olhos, de cabelos louros,

enrubescida de pudor, compondo,

com solícita mão, as tênues roupas,

o trajo feminil que só lhe assenta,

mas que, indiscreto, às vistas cobiçosas

revela formas de perfeição rara.

Como, emboscada, a fera espreita a presa,

prestes a dar-lhe o traiçoeiro bote,

– de um canto escuro o pérfido Vulcano,

o desquitado, o mísero faminto

de lascivo prazer, crava em Minerva

o olhar candente, corno a devorá-la.

Imprevidente, a Deusa concertava,

alçando os braços, as madeixas soltas,

que enrola e prende à nuca em laço de ouro.

Não perde o ensejo o filho do Tonante,

que herdara o pai, se não na majestade,

no másculo vigor, nos apetites:

investe de surpresa a incauta virgem;

lança-lhe à cinta os braços musculosos;

aperta-a contra si; beija-lhe sôfrego

o colo, a nuca, a espádua e tudo quanto
a boca sequiosa alcançar pode.

Indecisa a princípio, – já tomada

de indignação, a impávida Minerva
opõe ao tredo ataque a resistência
da virtude e pudor; mas lamentando       
achar-se inerme no apertado lance,
na luta desigual. Posto claudique
o aleijado Vulcano, a desvantagem
assaz compensa co’a hercúlea força,
co’o venéreo apetite que redobra
ao tatear nuas carnes palpitantes,

no entrelaçar de membros já despidos     

das vestes, rotas na porfiada luta.

Sente Minerva enfim minguar-lhe o alento...

Subitâneo torpor lhe invade os nervos...

Por vez primeira sente-se, em combate,

lânguida, frouxa, como quebrantada:

também por vez primeira, inupta e virgem,

sofre, inexperta, o masculino assalto.

Deusa embora, – é mulher. No extremo apuro,

derreia o tronco, retesando os membros,

e, n’um supremo esforço reunindo

quanto vigor lhe resta, inda repulsa

o inflamado varão; mas, vacilante,

perde o equilíbrio e cai desamparada!...

Da venérea tensão nos paroxismos,

torvo, arquejante, lança-se Vulcano

à bela esmorecida, e, estrebuchando

em convulsão medonha, desfalece.

Consegue então a Deusa subtrair-se

ao peso que a oprime, repelindo

o hirto corpo do hediondo nume.

Ao erguer-se do chão, a vista aparta

do brutal ofensor inda prostrado.

Triste, humilhada, as vestes em farrapos

procura recompor; mas encontrando

nas alvas coxas, no polido ventre,

torpes vestígios do recente insulto,

treme enojada... Às partes poluídas

rápida enxuga o humor crasso e viscoso,

n’um pedaço arrancado à própria roupa

que ao solo arroja com profundo asco.

Ala-se, após, aos céus, onde, entre nuvens

esconde a mágoa, a confusão, o opróbrio.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

Apoio
CNPq / CAPES
UFSC / PRPG