Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

 

AUGUSTO GIL

 

Luar de Janeiro

LISBOA

 

1909

Edição da empreza d'A Lanterna — Escriptorios, rua das Gaveas, 45, 2.^o

Typ. do Commercio, rua da Oliveira, ao Carmo, 10, Lisboa

 

ÍNDICE

Prefácio

Dedicatória

Luar de Janeiro

Sextilhas a um menino Jesus de Évora

Balada da Neve

Toada para as mães acalentarem os filhos

O nosso lar

O que o fogo poupou dum poemeto queimado

Melodia confidencial

O passeio de Santo Antônio

Um grão de incenso

A máscara

In promptum pastoral

Meditações sobre temas do Eclesiastes

A canção das perdidas

Carta a um rapaz sentimental

Mãos frias coração quente

Noiva

De profundis clamavi ad te domine

Joaninha

Quando as andorinhas partiam

A parábola do púcaro d'água

 

Àqueles que virem, neste volume de líricas, uma reviravolta efetuada sobre a génese d'O Canto da Cigarra objetarei, com antecipada promessa de fácil prova, que os dois livros têm uma tão intima ligação como a existente entre os pontos extremos da curva de amplitude dum pêndulo.

Aos que me censurem pela circunstância de não ter logrado, na minha subalterna categoria de poeta menor, firmar-me numa posição de equilíbrio estável, pergunto, em tom humilde, quem é que neste confuso século de latente misticismo humanitário, de demolidora negação e de ansiedade conjuntamente aflitiva e cética, terá a coragem de dizer que o encontrou — já não quero como artista, porque a esse as influencias ambientes lhe comunicam entrecruzadas e descoordenadas vibrações — mas na própria e mais serena esfera do pensamento. Se algum de vós me retorquir com o eureca do antigo geômetra, ou é um sectário, ou um caturra, — ou um simples.

Sábio, como o de Siracusa, é que não é…

Adiante.

Novembro de (1)909.

O autor

De la musique encore et toujours

* * * * *

Que ton vers soit la bonne aventure

Éparse au vent crispé du matin

Qui va fleurant la menthe et le thym,

Et tout le reste est littérature.

Verlaine

Et c'est pourquoi ce livre-ci (qu'il était peut-être bon d'écrire) nous savons, toi et moi, à quels mysterieux balbutiements le réduirait le tête-à-tête — et tout ce que je n'ai pas dit, qu'il ne fallait pas dire. Et tu sais combien de pages menteuses devront, pour des motifs de faiblesse personnelle ou de nécessité invencible, accompagner la bonne page, celle que ce livre encore annonce et ordone — tu sais, tu comprends et tu pardonnes

Charles Morice.

 

A Coelho de Carvalho

Tout court, porque não há adjectivos que não empallideçam ante a claridade dos seus talentos.

 

Luar de janeiro,

Fria claridade

À luz dele foi talvez

Que primeiro

A boca dum português

Disse a palavra saudade…

Luar de platina,

Luar que alumia

Mas que não aquece,

Fotografia

De alegre menina

Que há muitos anos já… envelhecesse.

Luar de janeiro,

O gelo tornado

Luminosidade…

Rosa sem cheiro,

Amor passado

De que ficasse apenas a amizade…

Luar das nevadas,

Álgido e lindo,

Janelas fechadas,

Fechadas as portas

E ele fulgindo,

Límpido e lindo,

Como boquinhas de crianças mortas,

Na morte geladas

— E ainda sorrindo…

Luar de janeiro,

Luzente candeia

De quem não tem nada,

— Nem o calor dum braseiro,

Nem pão duro para a ceia,

Nem uma pobre morada…

Luar dos poetas e dos miseráveis,

Como se um laço estreito nos unisse,

São semelháveis

O nosso mau destino e o que tens…

De nós, da nossa dor, a turba — ri-se

— E a ti, sagrado ladram-te os cães!

[Figura: A linda imagem pertence ao arruinado Mosteiro do Calvário, de Évora, e constitui a única mas encantadora manifestação de arte desse pobríssimo convento. Foi doado às monjas que o ocupavam, por D. Izabel Juliana de Souza Coutinho, forçada noiva de José de Carvalho, filho do Marquês de Pombal. D. Izabel esteve enclausurada no Mosteiro do Calvário, por ordem do duro ministro, até se resolver a aceitar a mão do filho. Depois da morte do rei D. José, foi o matrimonio anulado, vindo D. Izabel a formar o tronco da casa Palmella pelo casamento com D. Alexandre de Souza. (Notas extraídas dum artigo do erudito antiquário eborense Sr. José Barata. In Serões, Junho de (1)907)

O menino Jesus será obra de Machado de Castro?]

 

SEXTILHAS A UM MENINO JESUS DE ÉVORA

A João Barreira

«Em Évora vi um menino…

…Que a dois anos não chegava

…Era de maravilhar»…

Garcia de Rezende. Miscelânea.

Num convento solitário

De Évora, cidade clara,

Claro celeiro de pão,

Existe uma imagem rara

Obra dum imaginário

Dos tempos que já lá vão…

É um menino Jesus,

De bochechinha brunida

Cor de maçã camoesa,

Mas no seu rosto transluz

Uma expressão dolorida

Que enche a gente de tristeza…

De tantíssimas imagens

Nenhuma vi que mais prenda,

Que maior ternura expanda,

Com suas calças de renda,

Seu vestido de ramagens,

— E coroa posta à banda…

Gordo, nédio, bem trajado,

Deveria ser feliz,

Deveria estar sorrindo;

Mas o seu olhar magoado,

Tão magoado, tão lindo,

Que não o é, bem n'o diz…

Se não fosse por ser Deus

E o seu poder infinito

Ter sempre que o demonstrar,

Cá na terra e lá nos céus,

Estenderia o beicito

— E desatava a chorar!…

Corre o tempo descuidado,

Passa uma hora, outra hora,

Atrás desta outras se vão

E, quem o vê, encantado,

Sem se poder ir embora

Numa perpetua atração…

Eu entrei com sol a pino.

Pouco depois da chegada

(Pouco a mim me pareceu)

Deixei de ver o Menino…

Não era a vista cansada,

— Foi a noite que desceu…

Mesmo assim lá ficaria

Absorto em muda prece

De quem mal sabe rezar,

Se o sacristão não viesse,

Com rodas de Senhoria,

Dizer-me que ia fechar…

Pudesse tê-lo trazido

E não fosse eu rico, apenas

De fantasias, de esp'ranças,

Punha-o num nicho florido

Por sobre as camas pequenas

Dum hospital de crianças…

Dum hospital modelar

Sustentado por meus bens,

Entre olaias e roseiras,

Cheio de sol, cheio de ar,

E em que as boas enfermeiras

— Seriam as próprias mães…

A mais ampla enfermaria

Desse escolhido local

De bondade e sofrimento

— Era o fundo natural

Da funda melancolia

Do Menino do convento…

 

BALADA DA NEVE

Il pleure dans mon coeur

Comme il pleut sur la ville.

Verlaine

A Vicente Arnoso

Batem leve, levemente

Como quem chama por mim…

Será chuva? Será gente?

Gente não é certamente

E a chuva não bate assim…

É talvez a ventania;

Mas há pouco, há poucochinho,

Nem uma agulha bulia

Na quieta melancolia

Dos pinheiros do caminho…

Quem bate assim levemente

Com tão estranha leveza

Que mal se ouve, mal se sente?…

Não é chuva, nem é gente,

Nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía

Do azul cinzento do céu

Branca e leve, branca e fria…

— há quanto tempo a não via!

E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.

Pôs tudo da cor do linho.

Passa gente e quando passa

Os passos imprime e traça

Na brancura do caminho…

Fico olhando esses sinais

Da pobre gente que avança

E noto, por entre os mais,

Os traços miniaturais

Duns pezitos de criança…

E descalcinhos, doridos…

A neve deixa inda vê-los

Primeiro bem definidos,

— Depois em sulcos compridos,

Porque não podia erguê-los!…

Que quem já é pecador

Sofra tormentos, enfim!

Mas as crianças, Senhor,

Porque lhes dais tanta dor?!…

Porque padecem assim?!…

E uma infinita tristeza

Uma funda turbação

Entra em mim, fica em mim presa.

Cai neve na natureza…

— E cai no meu coração.

 

TOADA PARA AS MÃES ACALENTAREM OS FILHOS

A Berta Cayolla Gil Vianna, minha sobrinha

Oh Desgraça! vai-te embora,

Que esta linda criancinha

Andou no meu ventre e agora

Trago-a nos braços. É minha!…

Do berço, segue-me os passos;

Onde eu vou, seus olhos vão…

E quando a aperto nos braços

— Abraço o meu coração.

Quando o seu choro receio,

Embalo-a, faço que aceite

A alegria do meu seio

Na brancura do meu leite…

E quando assim não descansa,

Que tristezas me consomem!

— Mas antes chore em criança

Que depois, quando for homem…

Se ao dá-lo ao mundo sofri

Tormentos, ânsias mortais,

Desgraça, vai-te daqui,

O que pretendes tu mais?!

Bate as asas, mas ao voares,

Não me apagues esta estrela.

Se alguém daqui precisares,

— Aqui me tens, em vez dela!

Tocam às ave-marias.

Foi-se o sol. Não vem a lua.

Luzinha que me alumias,

Que sorte será a tua?…

Riquezas tenhas tão grandes,

E tal bondade também,

Que ao redor donde tu andes

Não fique pobre ninguém.

Que a todos chegue a ventura:

Toda a boca tenha pão,

Toda a nudez cobertura,

Toda a dor, consolação…

Mas se o oiro é mau caminho,

— Antes tu venhas a ser

O pobre mais pobrezinho

De quantos pobres houver.

Iremos por esses montes

Altos e azuis, como os céus…

Que onde há frutos e onde há fontes,

— Está a mesa de Deus!

E, quando a neve cair

E as seivas adormecerem,

Iremos então pedir…

(Aceitar o que nos derem!)

Andaremos à mercê

Dos gênios bons, e dos falsos,

Léguas e léguas a pé,

Rotinhos, magros, descalços…

E onde houver urzes e tojos,

Pedras que rasgam a pele,

Porei o corpo de rojos

— Passarás por cima dele!

Dorme, dorme, meu menino,

Foi-se o sol. Nasceu a lua.

Qual será o teu destino?

Que sorte será a tua?…

Se um crime tens de fazer,

Antes fique vago um trono,

Antes um palácio a arder,

— Do que uma enxada sem dono…

Se, porém, no teu destino,

Ha tão cruentos sinais,

Dorme, dorme, meu menino,

— Não tornes a acordar mais!

 

O NOSSO LAR

A Antônio Arroyo

«Sonhar a vida é apenas entretê-la.

Partamos dela para nós, senão

Lá vae o coração para uma estrela

E fica a gente sem o coração!»

GUEDES TEIXEIRA. Esperança Nossa

Quem vir — como eu os vejo — decorrer

Anos e anos duma vida rasa

Em miseráveis quartos de aluguer,

Frios no inverno e no estio em brasa,

— A um amor sonhado de mulher

Alia sempre o sonho duma casa…

O aspecto duma casa raro mente,

A cor, as linhas duma frontaria

Dão logo a perceber nitidamente,

Melhor do que um vizinho o contaria,

O gênio e a índole da gente

Que nela tem o lar, a moradia.

Vejam esses cottages tanto em moda

Entre os ingleses e os capitalistas,

Com grades no jardim, a toda a roda…

Impenetráveis às alheias vistas…

Não abrem nunca uma janela toda…

São mudos, graves, individualistas.

E aqueles caixotões de pedra e cal

Que surgem ao formar-se um bairro novo,

No constante engordar da Capital,

(O que eu, aliás, muito aprecio e louvo…)

— Não mostram bem, com o seu ar banal,

A falta de caráter deste povo?

Quando uma santa e pobre rapariga,

Em cujo olhar se abranda o meu sofrer

E a cujo coração o meu se liga,

Puder chegar a ser minha mulher,

Eu quero então que a nossa casa diga

Bondade e alegria de viver.

Terá um só andar. Grandes alturas

Causam vertigens, trazem ambições.

Os sonhos de riqueza e de aventuras

Enchem as almas de desilusões.

A f'licidade vem às criaturas

Da pacificação dos corações.

As portas sem degraus. Que sejam rentes

Da terra. Portas largas e rasgadas,

Convidativas, francas, atraentes;

Ao rés da terra, para as aleijadas

E os trôpegos velhinhos indigentes

Se não cansarem a subir escadas…

Amplas janelas para a natureza.

Que o sol na sua clara irradiação

Dissipe através delas a tristeza;

Amplas — e baixas. Quem precise pão,

E o vir da rua sobre a nossa mesa,

Que estenda o braço, que lhe lance a mão…

Ao lado um horto e um jardim fragrante,

Sem grades aguçadas para o céu.

A grade é agressiva, hostilizante,

E sempre a impressão cruel me deu

Dum dono que bradasse ao caminhante:

— Tudo isto aqui é meu, somente meu…

Sem gradeamento. Um murosito apenas

Revestido de rosas de toucar,

De ariolas, de glicínias, de verbenas.

Muro donde os que forem a passar

Vejam lilases, cravos, açucenas…

— E a paz, a doce paz do nosso lar.

 

O QUE O FOGO POUPOU DUM POEMETO QUEIMADO

Ao Cônego Manuel do Nascimento Simão

 

I

 

Escrevo em testamento este poema

Que ele tenha, na angustia com que o ligo,

O brilho rutilante duma gema

Achada nos farrapos dum mendigo…

Ao vesperal crepúsculo da vida

E sob o olhar da morte é que o componho;

Erguendo assim, por minha despedida,

O último escalão dum alto sonho.

Nesse degrau que dentre os soes dispersos

Há-de atingir a cúpula dos céus,

Direi ao mundo os derradeiros versos,

Porei o coração nas mãos de Deus!

E as mãos de Deus que os astros têm guiado

Como se leve pluma cada um fora,

Hão de o sentir pesar, solicitado

Pelo lugar da terra onde ela mora…

II

 

…Sei lá pintar!

Se eu soubesse pintar, era pintor.

Guedes Teixeira

Na mais alta cidade portuguesa

Nasceu, para abrandar meu fundo mal,

A mais santa, a mais cheia de pureza

Das moças deste lindo Portugal.

Os seus olhos são tristes e sugerem

Todo um passado de resignação.

São tristes, certamente por não verem

O rosto incomparável onde estão…

A voz é clara como as açucenas

E dolorida, cândida, modesta.

É dolorida, porque sente penas

De abandonar a sua boca honesta…

O riso, que é em nótulas delidas

Vibra em seus lábios tão rapidamente

Como um beijo de amor, às escondidas,

Na curva duma estrada em que vem gente…

A mão dela, uma vez, poisou na minha;

Pareceu-me ao sentir-lhe a comoção,

Que era o seu próprio coração que eu tinha

A palpitar dentro da minha mão…

Se passa, às tardes, e de traz caindo,

O sol abrasa os longes da paisagem,

A sombra que em sua frente vae seguindo

É a luz — a abrir-se, p'ra lhe dar passagem…

Se passa, acalma os corações magoados

Como outrora as parábolas de Cristo

Acalmavam a dor aos desgraçados.

Acalma os corações?! Não… não é isto.

As estrofes de amor, a quem o sinta,

Dão um trabalho cheio de tormento;

O tenebroso liquido da tinta

Apaga, rouba a cor ao sentimento.

Quis celebrar dum modo original

As finas graças do seu corpo. Errei-as.

Oh Forma! És como um fato de hospital.

Palavras! Sois a nevoa das ideias…

 

MELODIA CONFIDENCIAL

(De Albert Samain)

 
A L.C.

     Num andamento

     Discreto, lento,

Mal se ouve o pêndulo lavrado e antigo.

     Vamos vogando

     No lago brando

E sem limites do silencio amigo…

     O último e cavo

     Acorde do cravo

Ficou vibrando exclamativamente.

     E, em espiral

     Ascensional,

Cingiu-nos num abraço enlanguescente.

     Na alcatifa macia

     Entrou na agonia

Uma rosa sedenta e abandonada,

     E a ambos nos invade

     A mística vontade

De entrar na morte, no não ser, no nada…

     Com seu dossel vermelho

     Forrado de oiro velho,

Que evoca velhas eras de esplendor,

     O leito pesado,

     Como um deus concentrado,

Remembra obscuramente o nosso amor…

     Na atmosfera morna

     O teu corpo entorna

Um perfume subtil, sensual, complexo,

     Aroma inapagável,

     Filtro informulável

Gerado à chama clara do teu sexo.

     Teus olhos silentes

     E transparentes

Têm, no fundo, verdes melancólicos,

     E as brasas do fogão,

     Já quase extintas, dão

Clarões hipnotizantes e simbólicos…

     Amemo-nos assim

     Com um amor sem fim,

Verdadeiro na carne e nas ideias;

     P'los dedos enlaçados

     Sejamos penetrados

De amor, até às mais miudinhas veias.

     Em êxtases intensos

     Quedemo-nos suspensos

Por sobre a terra irônica e brutal

     Sem nada saber,

     Sem nada ver,

— Numa vida isolada e musical…

     Não fales. Não?

     Ou se o fizer's, então

Que seja devagar, muito baixinho,

     Numa toada, leve

     Como o hálito breve

Duns lábios de anjo numa pel' de arminho…

 

O PASSEIO DE SANTO ANTÔNIO

A Columbano

La fleur des traditions nationales est flétrie. Mais libre à tous de puiser, dans l'herbier cosmopolite des légendes, les admirables prétextes à fiction qu'il recèle.

(Litterature à Tout à L'Heure.)

Saíra Santo Antônio do convento,

A dar o seu passeio costumado

E a decorar, num tom rezado e lento,

Um cândido sermão sobre o pecado.

Andando, andando sempre, repetia

O divino sermão piedoso e brando,

E nem notou que a tarde esmorecia,

Que vinha a noite plácida baixando…

E andando, andando, viu-se num outeiro,

Com árvores e casas espalhadas,

Que ficava distante do mosteiro

Uma légua das fartas, das puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe,

E fraco por haver andado tanto,

Sentou-se a descansar o bom do monge,

Com a resignação de quem é santo…

O luar, um luar claríssimo nasceu.

Num raio dessa linda claridade

O Menino Jesus baixou do céu,

Pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica d'água murmurante

Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais.

Os rouxinóis ouviam-se distante.

O luar, mais alto, iluminava mais.

De braço dado, para a fonte, vinha

Um par de noivos todo satisfeito.

Ella trazia ao ombro a cantarinha,

Ele trazia… o coração no peito.

Sem suspeitarem de que alguém os visse,

Trocaram beijos ao luar tranquilo.

O menino, porém, ouviu e disse:

— Oh Frei Antônio, o que foi aquilo?…

O santo, erguendo a manga de burel

Para tapar o noivo e a namorada,

Mentiu numa voz doce como o mel:

— Não sei que fosse. Eu cá não ouvi nada…

Uma risada límpida, sonora,

Vibrou com timbres de oiro no caminho.

— Ouviste, Frei Antônio? Ouviste agora?

— Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho…

— Tu não estás com a cabeça boa…

Um passarinho a cantar assim!…

E o pobre Santo Antônio de Lisboa

Calou-se embaraçado, mas por fim,

Corado como as vestes dos cardeais,

Achou esta saída redentora:

— Se o Menino Jesus pregunta mais,

…Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!

Voltando-lhe a carinha contra a luz

E contra aquele amor sem casamento,

Pegou-lhe ao colo e acrescentou: Jesus,

São horas…

     — E abalaram p'ro convento.

 

UM GRÃO DE INCENSO

A Lourenço Cayolla

Entraste com ar cansado

Numa igreja fria e triste.

Ajoelhei-me ao teu lado

— E nem ao menos me viste…

Ficaste a rezar ali,

Naquela imensa tristeza.

Rezei também, mas a ti,

— Que aos anjos também se reza…

Ficaste a rezar até

Manhã dentro, manhã alta.

Como é que tens tanta fé

— E a caridade te falta?…

 

A MÁSCARA

A Santos Tavares

Por acaso, parou na minha frente,

De loup e dominó de seda negra,

Uma mulher de olhar resplandecente

E mento breve de figura grega.

Tomei-lhe as mãos esguias entre as minhas…

E os seus olhos doirados reluziram

Como os punhais ao sol, quando se tiram,

Aguçados e frios, das bainhas.

— Máscara, quem és tu?

— E tu quem és?…

— Um homem que te viu e te deseja…

E um riso vago, de desdém talvez,

Floriu na sua boca de cereja.

Ergui-lhe as mãos ascéticas. Beijei-as.

Em vibrações entrecortadas, secas,

Tiniam taças irisadas, cheias.

E uma frase de amor, toda em colcheias,

Vibrava nas arcadas das rebecas.

Levei-a para o vão duma janela.

— Máscara, quem és tu?

— Para que insistes?…

Outro riso subiu da boca dela

Aos olhos enigmáticos e tristes.

E descobriu a face. No capuz

Emoldurou-se um rosto lindo e sério.

Que diferente porém do que eu supus!

A gente nunca deve entrar com luz

Nos divinos recantos do mistério…

 

IN PROMPTUM PASTORAL

A Amadeu de Freitas

«Muito vence quem se vence

Muito diz quem não diz tudo,

Porque a um discreto pertence

A tempo fazer-se mudo.»

(Copla do Infante D. Luiz.)

Sob este céu criador

De manhã virgiliana,

Apetece ser pastor

E tocar frauta de cana;

Não, pastor de autos de amor,

De éclogas frias e velhas,

Mas verdadeiro pastor

De verdadeiras ovelhas…

Não conhecer o talento

Nem nada do que se ensina.

Esta dor do entendimento

É pior do que se imagina…

Guiar o meu coração

Num ingênuo cristianismo.

Esta civilização

É cheia de pessimismo…

Comer pão negro, pão duro,

Beber o leite das pearas.

Pão de centeio é escuro,

— Mas põe as almas às claras…

Amar alguma pastora

Com palavras e com obras.

Estas senhoras de agora

São mais falsas do que as cobras…

E ver criar com carinho,

Com cuidados infinitos,

À companheira, um filhinho…

E às ovelhas, borreguitos…

 

MEDITAÇÕES SOBRE TEMAS DO ECLESIASTES

 

I

 

A Celestino Steffanina

Vaidade de vaidades, disse o Eclesiastes: vaidade de vaidades, e tudo vaidade.

(Capit. I, v. 1).

Semeador de iniquidades,

Porque é que mandas sobre os teus iguais?!

O mando o que é? Vaidade de vaidades,

Fumo que ao desfazer-se engrossa mais…

Oh minha vista o que é que foi que viste

Cá neste mundo impiedoso e rudo?

Que só a vaidade existe — Em todos nós, e em tudo!…

II

A Israel Anahory

Todas as coisas são difíceis; o homem não as pode explicar com palavras. Os olhos não se fartam de ver nem o ouvido se enche de escutar.

(Capit. I, v. 8).

Palavras são palavras… Nada dizem.

Teias de aranha que jamais impedem

Que as ideias se escapem e deslizem…

Néscios os homens são quando procedem

Como quem a verdade sempre traja

E nunca dela se encontrou despido…

Difícil é… o que mais simples haja

— Quanto mais o que for mais escondido!…

Para que uma verdade vá julgar,

Para que um sentimento vá sentir,

Olhos: não vos canseis nunca de olhar

E vós, ouvidos, não deixeis de ouvir.

     Mas por fim

     Nem assim…

O mais profundo pensamento

É sempre insubsistente e aéreo,

Por que a todo o momento

— Se perde no mistério…

III

 

A José Barbosa

Que é o que foi? É o mesmo que há-de ser. Que é o que se fez? É o mesmo que o que se há-de fazer.

Que é o que foi?

— O mesmo que há-de ser…

A vida é como o passo igual dum boi

Que vem dos campos ao anoitecer;

Com o seu lento e resignado aspeito,

Andou um passo, e logo um outro dá.

     Tudo quanto foi feito

     De novo se fará

IV

 

A Ladislau Patrício

Os olhos do sábio estão na sua cabeça: o insensato anda em trevas: e aprendi que era uma e mesma a morte dum e doutro.

(Capit. II, v. 14)

O sábio tem os olhos da razão

Além desses que tu na fronte levas,

Oh néscio que sem guia e sem bordão

Vais pela vida a caminhar nas trevas…

     (E daí? E depois?

     Se surge um incidente,

     Fere indistintamente

Ou ambos eles, ou qualquer dos dois…)

V

A Adelaide Gil, minha irmã

Todas as coisas caminham a um lugar: de terra foram feitas e em terra se hão de tornar do mesmo modo.

(Capit. III, v. 3).

Mas o que é, afinal, a perfeição?

Como é que tudo, oh sábios, evolui

Se as coisas todas caminhando vão

Para um igual e único lugar,

     Se o pó que as constitui

     Em pó se há-de tornar?

VI

 

A Eduardo Graça

Todas as coisas têm seu tempo e todas elas passam debaixo do céu segundo o termo que a cada uma foi prescrito.

(Capit. III, v. 2).

Sossega, coração atribulado,

De toda a dor se apaga todo o traço.

Pois quanto ao mundo vem, traz já marcado

O seu tempo e também o seu espaço

     E queira Deus, coração,

     Que esta hora de ansiedade

     E de pranto e de aflição

     — Nunca te cause saudade!…

 

A CANÇÃO DAS PERDIDAS

A Vianna da Motta

I

 

Quem por amor se perdeu

Não chore, não tenha pena.

Uma das santas do céu

— É Maria Magdalena…

II

 

Minha mãe foi o que eu sou.

Eu sou o que tantas são.

Que triste herança te dou,

Filha do meu coração!

III

 

Meu pai foi para o degredo

Era eu inda pequena.

Se não morresse tão cedo,

Morria agora — de pena…

IV

 

E há no mundo quem afronte

Uma mulher quando cai!

Nasce água limpa na fonte,

Quem a suja é quem lá vae…

V

 

Aquele que me roubou

A virtude de donzela

Se outra honra lhe não dou,

— É porque só tive aquela!…

VI

 

Nós temos o mesmo fado,

Oh fonte d'água cantante,

Quem te quer, para um bocado.

Quem não quer, passa adiante…

VII

 

O meu amor, por amá-lo,

Pôs-me o peito numa chaga:

Deu-me facadas. Deixá-lo.

Mas ao menos não me paga!

VIII

 

Nem toda a água do mar

Por estes olhos chorada

Daria bem a mostrar

O que eu sou de desgraçada!

IX

 

Como querem ver contente

Este país desgraçado,

Se dão só livros à gente

Nas escolas do pecado…

X

 

Dormia o meu coração

Cansado de fingimento.

Bateste-me, e vae então

Acordou nesse momento.

XI

 

Se aquilo que a gente sente,

Cá dentro, tivesse voz,

Muita gente… toda a gente

Teria pena de nós!

 

CARTA A UM RAPAZ SENTIMENTAL

«Um mover de olhos brando e piedoso

Sem ver de quê; um riso brando e honesto

Quase forçado; um doce e humilde gesto

De qualquer alegria duvidoso

* * * * *

Um encolhido ousar; uma brandura,

Um medo sem ter culpa; um ar sereno,

Um longo e obediente sofrimento.

* * * * *

Camões

Num quente e perturbante fim de tarde,

Cujo magnético e profundo enlevo

Ainda agora em mim crepita e arde,

Como se fosse a tarde em que te escrevo,

Ergui os olhos distraidamente,

A ver se já brilhava alguma estrela

No côncavo do céu opalescente

— E vi, numa varanda, os olhos dela…

Do episódio que acabo de contar-te

Tão simples, tão banal, que dá vontade,

Para lhe pôr um bocadinho de arte,

De lhe roubar um pouco de verdade,

Foi que este amor espiritual nasceu,

Nasceu, cresceu e se tornou eterno…

Repara, amigo, como olhando o céu

A gente, às vezes, pode achar o inferno.

Mas quem podia então adivinhá-lo?

O olhar dessa mulher era tão lindo

Que deslumbrado me fiquei a olhá-lo.

Descera a noite. A lua ia subindo…

Era lua cheia e, para mais, de agosto;

Dava em toda a varanda. Assim, eu via

As formas portuguesas do seu rosto

Nitidamente, como à luz do dia.

E cá dentro de mim senti nascer

A dúvida, a incerteza, a hesitação

Sobre o que mais desejaria ser:

Se o noivo dela, se o primeiro irmão…

Uma estrela cadente reluziu

Por sobre as torres da vizinha igreja,

Pensei comigo: Deus o decidiu:

É minha noiva que Ele quer que seja.

Não dizia ventura, mas desgraça,

A claridade do sinal aéreo.

(Na mesma direção da igreja, passa

A rua que vae dar ao cemitério…)

Porém, como querendo agradecer-me

A decisão que atribuíra a Deus,

Inclinou-se de leve para ver-me

E os doces olhos demorou nos meus.

Sob a caricia desse olhar cinzento,

Que ao abaixar-se parecia negro,

O coração que me batia lento,

Mudou o andamento para alegro.

Uma hora decorreu. Outras passaram.

Passaram, foram-se; e naquele enleio

Que tempo os nossos olhos conversaram!…

Estava a noite já em mais de meio.

Vinha dos montes uma brisa ardente.

O céu ganhara tons de azul cobalto.

O luar caía silenciosamente.

Na sombra, os rouxinóis cantavam alto.

Arrependidos, ou então, cansados

De se fitarem com demora em mim,

Os seus olhos piedosos e sagrados

Ao dialogo de amor puseram fim.

Desviara-os; e entre as pálpebras discretas,

Poisara-os nas mãos claras e pequenas,

Como se foram duas borboletas

Voando para duas açucenas.

Ergueu-se. O busto delicado e fino

Tinha os suaves, religiosos traços

Da Virgem num altar. Só o Menino

Faltava na doçura dos seus braços…

Num olhar impregnado de candura,

Disse-me adeus e recolheu. Depois…

A luminosa noite fez-se escura.

Calaram-se na sombra os rouxinóis.

Entrei em casa e quis dormir. Raiara

A madrugada sem que o conseguisse.

Quem um sonho tão límpido sonhara,

Inútil se tornava que dormisse…

Anos felizes neste amor gastei.

Vieram em seguida as horas más.

O que nelas sofri, o que passei,

Um dia, noutra carta, o saberás.

 

MÃOS FRIAS CORAÇÃO QUENTE

Dez da manhã. Vento da serra. Três graus negativos

Mãos frias, coração quente!

Quanta vez isto dizias

Com o teu ar sorridente,

Apertando-me as mãos frias…

Agora decerto o tenho

Num braseiro, num vulcão.

O frio é tanto, é tamanho

Que a pena cai-me da mão…

Q'ria dizer-te o que penso

E o que faço e premedito,

Mas posso lá ser extenso

Com este frio maldito!

Tu perdoas certamente,

Tu não te zangas, pois não?

Mãos frias, coração quente

— Lá diz o velho rifão…

NOIVA

A João da Silva

«Anda a dor dissimulada

Mas ela dará seu fruito.»

Crisfal

«Vai ser pedida. Casa qualquer dia.»

(Trecho duma carta)

Tive notícias hoje a teu respeito:

«Vae ser pedida. Casa qualquer dia».

E o coração tranquilo no meu peito

— Continuou a bater como batia…

Surpreso duma tal serenidade,

Todo eu, intimamente, me sondava:

Pois nem ciúme? Nem sequer saudade?!

— E nem ciúmes, nem saudade achava…

Saudades, não; que o teu amor antigo

Guardam-no as cinzas (neste coração)

Como em Pompeia aqueles grãos de trigo

Que após centenas de anos deram pão…

Saudades! Mas de quê?! Pois não sei eu

A lei antiga como o próprio mundo

De que o prazer mal chega, já morreu,

E só a dor nas almas cava fundo?

Causei-te longas horas de amargura,

Não consegues voltar a ser feliz;

A chaga que te abri não terá cura,

E se curar — lá fica a cicatriz.

À luz dum juramento que traíste

Tu hás de ver-me toda a vida pois.

Ergueste-o a Deus num dia amargo e triste

E Deus casou-nos esse dia, aos dois…

Ciúmes também não, por te venderes.

Desgraçadinha! Antes te houvesses dado;

Não descerias tanto entre as mulheres,

Seria mais humano o teu pecado.

Porém, embora a tua falta aponte,

P'ra mim és a que foste (ou que eu supus);

O sol desaparece no horizonte

— E a gente vê-o ainda a dar-nos luz…

Pode a desgraça erguer em frente a mim

Altas montanhas de elevados cumes.

O sol do amor doirá-las-á, e assim,

Vendo-o tão alto, não terei ciúmes.

Ciúmes! Ele é que há-de tê-los, quando,

Em claras noites de luar silente,

Ouvir vibrar alguma voz, cantando

Os versos que te fiz devotamente.

Versos para te ungirem os ouvidos

E os lábios de anêmica e de santa,

Tão pobres, tão ingênuos, tão sentidos,

Que o povo humilde os acolheu e os canta.

Então, se te olhar bem, logo adivinha…

Logo sombriamente se convence

De que a tua alma se fundiu na minha

— E apenas o teu corpo lhe pertence.

 

DE PROFUNDIS CLAMAVI AD TE DOMINE

A Leo

Ao charco mais escuso e mais imundo

Chega uma hora no correr do dia

Em que um raio de sol, claro e jucundo,

O visita, o alegra, o alumia;

Pois eu, nesta desgraça em que me afundo,

Nesta contínua e intérmina agonia,

Nem tenho uma hora só dessa alegria

Que chega às coisas ínfimas do mundo!…

Deus meu, acaso a roda do destino

A movimentam vossas mãos leais

Num aceno impulsivo e repentino,

Sem que na cega turbulência a domem?!

Senhor! Não é um seixo o que esmagais;

Olhai que é — o coração dum homem!…

 

JOANINHA

A Mayer Garção

Descanse de quando em quando…

Passar assim toda a tarde

Sempre bordando, bordando,

Sem que um momento desista,

Até faz pena! Não lhe arde

Nem se lhe perturba a vista?…

Descanse de quando em quando…

Erga os olhos do bordado

E veja quem vae passando.

O trabalho alegra a gente,

Mas assim, tão aturado,

— Não lhe faz bem certamente.

Erga a carinha tranquila,

Erga esse rosto tão lindo

E veja os moços da vila

A passarem por aqui,

Uns descendo, outros subindo,

— E todos de olhos em si…

Descanse de quando em quando

E veja se escolhe algum;

Já é tempo de ir pensando

Em casar. Não é assim?…

Se não lhe agrada nenhum,

— Diga se gosta de mim.

Desde os começos do outono

Que eu a trago no sentido,

Não como, não tenho sono,

Tudo me dá ralação?

Quer-me para seu marido?

— Diga que sim ou que não…

 

QUANDO AS ANDORINHAS PARTIAM…

A Cassiano Neves

Boca talhada em milagrosas linhas,

A luz aumenta com o seu falar.

Esta manhã um bando de andorinhas

Ia-se embora, atravessava o mar.

Chegou-lhes às alturas, pela aragem,

Um adeus suave que ela lhes dissera,

— E suspenderam todas a viagem,

Julgando que voltara a primavera…

 

A PARÁBOLA DO PÚCARO D'ÁGUA

Acreditaram os românticos que a arte residia principalmente na disformidade. Se através das próprias dores descessem às profundas realidades da vida, teriam observado que… o viver do povo encerra em si uma poesia sagrada. Senti-la e mostrá-la não é tarefa de maquinista; para tal, não é necessário juntar-lhe efeitos teatrais.

… O que é preciso é ter olhos para ver na sombra, na pequenez e na humildade, é um coração que auxilie a vista nestes recessos do lar, nestas sombras de Rembrandt.

MICHELET. O Povo

A Manuel Penteado

Buscava em algum assunto adrede

A versos que inculcassem novidade,

Quando uma intensa e irreprimível sede

Me fez voltar do sonho à realidade.

E pedi água (já se vê) que veio

Consoante é de uso cá por entre o povo

Num púcaro de barro ingênuo e feio,

Servindo-lhe de salva um prato covo.

Bebi o liquido dum trago só;

E dito o «Deus te pague» habitual,

Subi de novo a escada de Jacob

No heroico intuito de escalar o ideal…

Mas o idealismo é como a nevoa ondeante

Que os rios erguem pela madrugada;

O olhar distingue-a, quando está distante,

E da que nos rodeia — não vê nada…

De que serve afinal tentar a gente

Reter, dentro das mãos, fumo de palha,

Se aqui, aos nossos olhos, no existente,

Ha tanta coisa que os atraia e valha?…

A água vinda neste vaso frágil

Que um ignorado artista modelou

Num gesto — já mecanizado e ágil —

À força de imitar o que encontrou,

É um assunto cheio de beleza,

Cheio de claro e alto ensinamento.

Assim na branda fala portuguesa

O desse eu, como o tenho em pensamento!…

A água é como a esp'rança

Que a tudo se sujeita…

Onde quer que se deita

Lá fica humildemente acomodada,

Seja a concha da mão duma criança,

Ou a taça lendária da balada…

Tanto sacia

Num vaso tirreno dos da antiga Roma

(Que um só valia

O rútilo oiro de avaro banqueiro)

Como a que se toma

Na argila porosa,

Alegre trabalho dum simples oleiro…

E é

Até

Bem mais saborosa

No barro suarento

Deixado à janela,

Que num opulento

Copo lavrado

Que seja pertença de rica baixela

E sonho gentil, cinzel fantasista

Dalgum grande artista

Dos raros de agora, ou do tempo afastado…

Bichos humanos, feras em pé,

Sede bondosos como a água o é…

No luzente alcantil da magnitude,

Ou no áspero declive da pobreza,

Nunca cerreis o espírito à virtude,

Nunca fecheis os olhos à beleza.

Que todo o coração,

Desde o sábio de gênio ao cavador,

Seja o Cálix de paz e de perdão

Contendo a água límpida e lustral

Dum irmanado e perpetuo amor…

Água que limpe a mácula do mal

E mitigue a miséria, a ânsia, a mágoa

Desta cruenta e impiedosa guerra

Em que tantas criaturas se consomem.

     Nem só da água

     Que vem da terra

     Tem sede o homem…

Nasce uma fonte

Rumorejante

Na encosta dum monte;

E mal que do seio

Da terra brotou,

Logo o seu veio

Transparente

E diligente

Buscou e achou

Mais baixo lugar…

E sempre descendo,

E sempre a cantar,

Vae andando,

Galgando,

Vencendo,

(Ou tenta vencer…)

Folha, raiz, areia, o que tolher

A sua descida…

Ao brotar da dura frágua

— É uma lágrima d'água…

Mas esse humilde fiozinho,

Que um destino bom impele,

Encontra pelo caminho

Um outro que é como ele…

Reúnem-se, fundem-se os dois,

Prosseguem de companhia,

E fica dupla depois

A força que os leva e guia…

Junta-se aos dois um terceiro,

Outros confluindo vão,

E o regato é já ribeiro

E o ribeiro é rio então…

E nada agora o domina

Ao fiozinho da fonte.

Entre colina e colina,

Ou entre um monte e outro monte,

Caminha sem descansar,

Circula através do mundo

— Até à beira do mar

Omnipotente e profundo…

Da altura em que estejais (ou vos pareça;

A vaidade é uma amante enganadora)

Que o mais alto de vós se humilhe e desça

Como se humilde e pobre sempre fora…

E que os demais desçam também de todo

O orgulho e mando sobre escravas gentes

Até ao vale, de lágrimas e lodo

Onde a miséria brada e range os dentes.

E como as águas que se vão juntando

E juntas, e cantando, vão descendo,

Reuni o choro derramado, quando

Atravessardes esse vale horrendo.

E o atoleiro que se havia feito

No val’, dantesco, pútrido, sombrio,

Mudar-se-á no irrigante leito

Dum fertilizador e claro rio;

E o rio, andando, andando, há-de alargar

— Com biliões de lágrimas vertidas —

Num infinito e luminoso mar

De novas e amplas e cantantes vidas!

Outubro de 1909.

Acabado de imprimir aos trinta e um de dezembro de 1909 em Lisboa, na

Tipografia do Comércio, Rua da Oliveira, 10, ao Carmo.