Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico

Amimone, de Lacerda Coutinho


 

Illa quidem contra, quantum modo femina possit,

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Illa quidem pugnat; real quae superare puella, .... poterat?

Ovídio. Metamorfoses L. II, v. 434

Nas bastas selvas, de Argos dependentes,

vagando incerta, a jovem Amimone,

busca em vão dissipar secretas mágoas[1]

nas fadigas da caça. Arregaçado

traz o vestido, e ao alto da cabeça

presas em rolo tranças opulentas.

Subtil, furtivo o passo, o ouvido à escuta,

– sonda co’a vista os matagais cerrados.

Mais gentil de feições, mais graciosa

de talhe, mais apetecível

na forma escultural do torso e membros,

não é Diana, a deusa caçadora,

com quem de Danao a filha confundira

mortal que a visse agora.

Eis de improviso

Salta de escura balsa em que se acouta

corça veloz, e foge. Apressurada

a novel caçadora o dardo expede,

e o tiro malseguro, resvalando

pelo tronco do choupo, vai sumir-se

em altos ervaçais, onde encoberto

jaz a dormir um Sátiro mancebo.

Posto que amortecida, a seta esflora

co’a fina ponta o flanco guedelhudo

do Egipan, que um sobressalto acorda,

surge e descobre a híbrida figura,

nos trejeitos de dor convulsa e horrenda.

Ao divisar do semicapro monstro

a testa armada de torcidas pontas,

as feições rudes, os velosos membros,

pasma a donzela, atônita, aterrada;

prende-lhe o susto, a voz e o movimento.

Muito ao invés o Sátiro, enlevado

ante o aspecto e os dotes peregrinos

da formosa Danaide, se extasia,

cevando o olhar no feminil semblante,

nas alvas tetas; na cintura esbelta,

nas grossas coxas, nos quadris robustos,

em tudo, enfim, das perfeições e encantos

que o trajo em desalinho põe à mostra,

e que a lascívia natural lhe aumenta.

O rosto em brasa, as ventas dilatadas,

chispas nos olhos, numa boca enorme

arreganho bestial – o monstro avança

co’o itifálico ardor descomedido,

e as mãos estende, as unhas encurvando.

Ao perigo eminente, cobra alento

a pávida donzela: voz em grita,

tenta escapar à raiva luxuriosa

do Egipan que a segue desvairado.

Embalde o tenta; a veste flutuante,

que os espinhos das silvas dilaceram,

estova-lhe a carreira, desnudando

novos encantos qu’inda mais assanham

do Sátiro ralaz o orgasmo e  fúria.

Fraqueia em breve a mísera, anelante;

em breve sente um braço hirsuto e rijo

cingir-lhe o busto e um hálito abrasado

as madeixas à nuca arrepiar-lhe:

tropeça; cai... e Egipan sobre ela.

Resiste o mais que pode; invoca os Numes;

sucumbe enfim; e embora desmaiada

sente a dureza do brutal assalto

rasgar-lhe as carnes... Subjugando a presa,

o monstro ofega, e em voz balbuciante

traduz assomos de luxúria imensa.

Não logra saciá-la... Mão pujante,

irresistível, trava-lhe a guedelha,

ergue-o tremente e arroja-o a distância!

Fita o agressor o Sátiro assombrado;

fita-o e escapa e, célere corrida,

que o Deus do mar, o tétrico Netuno

(não o invocara em vão a aflita ninfa)

vai já sobre ele de tridente feito.

Compondo então o carregado senho,

o rei das águas volta cuidadoso

a socorrer a bela esmorecida.

Mas ao mirar-lhe as formas sedutoras,

os atrativos mil que descomposta

Amimone lhe of’rece, intenso fogo

lhe côa pelas veias que intumescem;

e inflama-lhe os sentidos. Debruçado

sobre a Danaide imóvel, brandamente,

com a carinhosa mão, mima-lhe os peitos,

O liso ventre, as coxas bem formadas;

Beija-lhe, após, de leve, a fronte, os lábios,

E olhos velados por compridos cílios.

Às carícias do Nume, entre os seus braços

recobra a ninfa o ser e o sentimento.

Como que cedendo à mística influência

de um poder sobre-humano, mal descerra

os olhos e o Divino vulto,

onde ressuma a íntima ternura,

encara embevecida, um rubor tênue

cora-lhe a face; inflora-lhe o sorriso

breves lábios de pérolas escrínio;

tremem-lhe os cílios na volúpia infinda

que todo o ser lhe inunda. Respondendo

aos transportes do Deus que ao seio a estreita,

e, num supremo gozo esvaecidas,

a humana e a diva essência se confundem...

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Por entre as ramas com que se abrigara,

o mesquinho Egipan espreita; e assiste,

excruciado de infernais torturas,

à voluptuosa cena. Delirante,

de indomável furor arrebatado, 

o rijo, ereto membro então agarra

com mão convulsa; e em hórridos esgares,

Enverga o olhar, soluça e desfalece...

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[1] Amimone, uma das cinqüenta Danaídes, desposou-se com Encélado, a quem deu a morte na primeira noite das núpcias, em observância do que seu pai lhe ordenara. À força de remorsos se retirou para as selvas, onde, ao disparar a seta contra uma corça, feriu um Sátiro, que a perseguiu, e de cujas mãos não pode escapar, sem embargo haver implorado Netuno, o qual deus, passado algum tempo, a metamorfoseou em fonte (Chomprée. Dicionário de Fábula). N. do A.

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