Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Fabulário, de Coelho Neto


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

A felicidade

A cobra e o gaturamo

A árvore

O tempo

El-Rei Truão

Helianto

A flauta e o sabiá

O milagre

Frutos maduros

O relógio e o vegete

O Ribeiro

O príncipe de Lahos

A vaquinha branca

Comprador d’almas

O talismã

O pescador e as sereias

Alfeu

Sacrifício supremo

A piedade

Rosas, corações desfeitos

Lavradores

Gêmeos

O fauno

O perdão

Trenos da Madalena

As estações

A peregrina

As formigas

O sino

A estrela de Buddha

O trigo

Aventura das águias

A FELICIDADE

   Em volta do palácio, que era todo de fino e reflorido mármore, estendia-se, a perder de vista, o rumoroso acampamento.

   Gente de toda a casta, homens de todos os países: uns cobertos de cerdosas peles, outros seminus, com uma tanga ligeira em torno dos rins; ainda outros com albornozes longos, fotas recamadas de pedrarias, papuzes de couro florejado, armas à cinta, seguidos de muitas lanças; e eram reis, e eram príncipes. Sacerdotes com os seus ídolos; sábios com os seus papiros; poetas com as suas liras; mercadores com os seus escravos: guerreiros com os seus escudos e tímidos, agachados entre os carros, disputando um lugar aos camelos enxareilados e aos ginetes cobertos de telizes, mendigos maltrapilhos que se encolhiam com medo.

   Todos esperavam que se abrisse a enorme porta de bronze e aparecesse o gênio que devia, por inculca do Destino, buscar o afortunado a quem coubesse o palácio com as suas inúmeras riquezas.

   Todos contavam com a ventura e já se imaginavam o eleito da Fortuna quando, ao clangor de uma buzina, a porta abriu-se de par e na soleira assomou o gênio.

   Alto e gracioso mancebo, de um louro fulvo, de Sol, que mais fazia realçar a alvura do rosto, de beleza feminina e meiga. Túnica de cor celeste, com flores de ouro, cobria-lhe ondulantemente o corpo airoso. À mão trazia, à maneira de cetro, largo trifólio engastado em comprida haste, também de ouro.

   Os homens, tolhidos em maravilhado assombro, não tiravam os olhos do mancebo. Viram-no descer as escadas, seguir à sombra dos alamos, chegar ao acampamento e, indo, sem indecisão, por entre tendas de púrpura e tendas de linho, entrar num bosque onde um homem, enrolado em farrapos, roia, com voracidade, um osso disputado aos cães.

   O gênio deteve-se; e, então, acenando ao miserável com o trifólio, ajoelhou-se na terra sórdida e, veneradamente, o elegeu senhor do palácio e de toda a sua riqueza.

   Foi um desapontamento na turbamulta. Ninguém se conformava com a estranha escolha do Destino. Pois onde havia reis, príncipes, altos senhores, poetas, sábios que liam nas estrelas, sacerdotes que se comunicavam com os deuses, mercadores que possuíam frotas nos mares e minas no seio da terra, havia de ser um roto mendigo o favorito?...

   Logo se arrancaram as lendas, arreiaram-se os animais, jungiram-se os bois aos carros e, lentamente, começou o desfilar das caravanas.

   Ao limiar do palácio saíram a esperar o mendigo fâmulos e ancilas e, por entre colunas de coral e ouro, por baixo de abobada trêmula de iriados flabelos, pisando moles tapetes e ouvindo o fresco cantar das fontes, extasiadamente o miserável atravessou o peristilo, os corredores luminosos, os pátios enxadrezados e entrou na câmara, que ora toda de oloroso cedro com tauxias de ouro e prata e incrustações de pedras.

   O banho que o esperava rescendia e era todo de leite de flores.

   Refrescado, vestiram-no e rei algum carregou jamais sobre o corpo as riquezas com que o recobriram.

    Inclinou-se o mordomo e, por entre tangeres de flautas e de cítaras, o foi guiando à grande sala onde o esperava o banquete em lauta mesa, lampejante de baixelas e cristais e toda florida.

    Sentou-se o venturoso.

    Logo rompeu o concerto delicado de finas harpas, de flautas suaves e de vozes.

    Ao fim do repasto levaram-no a ver os jardins onde a Primavera não daria por falta de uma só das suas flores. Passaram aos pomares de toda a fruta, entraram ao bosque de frescos, assombrados e redolentes meandros, onde se desafiavam em gorjeios todos os passarinhos e os dóceis animais das silvas passeavam. Foram às cavalariças, onde estadeavam os mais formosos e robustos ginetes do deserto. Adiantaram-se os pastores a dar-lhe contas dos gordos rebanhos que guardavam.

    Por fim, fez o mordomo a volta da torre de pedra onde se empilhavam os tesouros e em torno da qual, silenciosamente, iam e vinham roldas e sobrerroldas de guerreiros possantes.

    De regresso ao palácio — já a rutila Vésper subia no horizonte, — o afortunado avistou na varanda, entre os inclinados ramos dos jasmineiros e das acácias que florescem de ouro, as lindas, esbeltas mulheres do seu gineceu que o esperavam, qual mais ansiosa do seu beijo, esmerando-se em seduzi-lo com lânguidos meneios e logo as chamou com o sôfrego desejo tanto tempo contido e, por toda a noite longa, enquanto soavam as músicas voluptuosas e os escansões serviam os vinhos em crateras e as bailadeiras faziam os mais difíceis e graciosos passos, gozou exaltadamente a delícia do amor.

    Recolhendo à câmara — já as cotovias ensaiavam o canto — viu o seu leito, de macia cocedra, forrado a seda, ladeado por dois grifos de olhos de carbúnculo.

    Deitou-se, mas o sono fugia-lhe. Lembrou-se, então, dos dias de fome, das noites de frio, das injúrias dos homens, do desprezo das mulheres.

    Insone levantou-se, abriu largamente uma das grandes janelas e, à pálida luz da manhã, que nascia, sentindo o aroma dos jardins, pareceu-lhe que, ao longe, muito longe havia um palácio maior e mais rico, com mais ouro, jardins mais vastos e mais floridos, pomares mais fartos, tesouros mais cheios, mulheres mais belas, guerreiros mais robustos, músicas mais concertadas, iguarias mais saborosas e vinhos mais antigos.

    Então, pendendo a cabeça, achou pequena a sua fortuna e, com inveja dos que haviam partido à aventura, invejando-o, pôs-se a murmurar pensativo: “Ainda, ha riquezas maiores!...”.

   E, a suspirar tais queixas, entre as púrpuras e os brocateis da câmara, veio encontrá-lo o sol, o sol que, ainda na véspera, o vira entre farrapos, disputando aos cães dos nômades, sobre o estravo dos camelos, um osso esburgado.

A COBRA E O GATURAMO

   O tempo era de grande esterilidade e os animais andavam esfomeados.

   Uma cobra, que se arrastara, todo o dia, ao sol, pelo areal abrasado, à procura de alguma coisa com que atendesse a fome que lhe roia as entranhas, perdida toda a esperança, enroscou-se em uma pedra e ali se deixou ficar à espera da morte.

   Iam-se-lhe fechando os olhos de fraqueza quando um passarinho pôs-se a cantar num ramo seco, lançando tão alegres vozes, que a cobra, que era matreira, logo percebeu que tinha de avir-se com um novato, porque passarinho velho não seria tão indiferente aos males que, em vez de procurar migalhas, andasse a rolar gorjeios em tempo tão infeliz.

   Assim, instruída pela experiência, imaginou uma traça astuta e, espichando o pescoço, pôs-se a gemer com altos guaiados:

— Ai de mim! que vou morrer sem alguém que me valha. Ai de mim!

Ouviu-a o gaturamo e, porque era curioso, voou do galho ao chão.

Pondo-se diante da cobra, interrogou-a:

— Que tendes, senhora cobra? Por que assim gemeis tão aflita?

— Ai de mim! Fui ali acima à fonte, achei água tão fresca e pus-me a beber tão sôfrega, que engoli um diamante do tamanho de uma noz. Tenho-o atravessado na garganta e morrerei se não encontrar pessoa de caridade que me queira tirar. Vale um reino a pedra, e eu a darei por prêmio a quem me fizer o benefício de arrancar-me da goela, onde se encravou.

    Tufou-se em arrufo pretencioso o enfatuado gaturamo e, pensando no tesouro que ali tinha ao alcance do bico, redarguiu à cobra:

    — São é pelo que vale o diamante, mas pelo alto apreço em que vos tenho que me ofereço para aliviar-vos. Abre a boca.

    Não se fez a cobra rogar e, tanto que sentiu entrar o passarinho, foi um trago.

    Então, saciada e rindo — como riem as cobras — enrodilhou-se de novo e adormeceu contente.

A ÁRVORE

   Ninguém sabia explicar como, em tão árido deserto, conseguira medrar a árvore propícia.

   Fora da sombra ameníssima da sua copa tudo era esterilidade adusta — areias amarelas, sem erva, sem sulco de riacho, esbraseando ao sol.

   Os viajantes respiravam aliviados quando, de longe, avistavam o vulto frondoso da árvore; os animais amiudavam os passos e, sob a densa e derramada folhagem, impenetrável aos raios caniculares, juntavam-se as caravanas e, como havia uma cisterna no diversório virente, todos bebiam a farta e renovavam a provisão os odres.

   A providência d'aquela árvore não era apreciada, mal lhe prestavam atenção os viajantes e muitos, por passatempo, escorchavam-lhe o tronco com as facas, detoravam-lhe os ramos ou acendiam fogueiras sobre as suas robustas raízes.

    Certo ancião, abrigando-se à sombra da árvore, descobriu que um mal roaz a consumia e logo, piedosamente, pôs-se a tratá-la com o desvelo carinhoso com que se dedicaria a um ser humano.

    Mofaram da sua paciência os homens da caravana e o velho, sem agastar-se, assim lhes falou:

    — Eides de mim porque pratico o bem; talvez venhais a arrepender-vos da vossa descuidosa ingratidão quando, de regresso, não achardes sombra que vos acolha. A árvore sucumbe, nada há mais a fazer-lhe.

Foram-se os caminbeiros. Certa tarde, a um rijo golpe de vento, a árvore, cuja folhagem amarelecera, rolou, com fragor, no solo.

   Vinha de volta a caravana e os homens antegozavam a delícia de um lento repouso à sombra, quando pasmaram do encontro: rumaria — folhas secas, ramos quebrados e o tronco desconforme meio coberto pelas areias.

   A cisterna ficara entulhada e a alfombra verde morrera ressequida.

   Foi então que os homens compreenderam o valor da árvore e a fortuna que haviam perdido.

   Pobre árvore! enquanto viveu foi sempre desprezada, sofrendo toda a sorte de maus tratos; morta, porém, deixando o vazio, eis todos lamentando a sombra agasalhadora que ela, sempre generosa, oferecia, as flores de perfume suave que se abriam nos seus ramos, os pássaros que neles se juntavam, alegrando a região com os seus cantos concertados, a água que parecia brotar das suas fundas raízes.

   Ainda hoje, os que trilham o deserto inóspito, mostrando um toro que aparece acima das areias, param e, tristemente, murmuram:

   — Era aqui que a grande árvore, coberta de flores e de passarinhos, abria às caravavas a sua sombra hospitaleira.

O TEMPO

    Querendo o príncipe oferecer ao templo uma imagem de Apolo digna do edifício grandioso que mandara construir para honrar a divindade esplêndida e levar, pelos séculos vindouros, a fama da sua grandeza, convocou os mais celebres estatuários do reino para uma conferência em palácio.

    Apresentaram-se três artistas, qual d'ele de maior nomeada.

    Disse-lhes o príncipe o que pretendia, ajuntando, com largueza, que não fazia questão de preço e que pedissem tudo quanto julgassem necessário à boa execução da obra d'arte, que devia ser bela e solidamente feita para que deslumbrasse e resistisse aos séculos.

    Senhor, disse o primeiro estatuário, dai-me ouro e eu vos trarei uma estátua tão bela que, no dia em que for instalada no templo, os homens da terra terão a ilusão de estar contemplando o próprio condutor do carro do sol.

    E o príncipe ordenou que se cumprisse a vontade do artista.

   — Senhor, disse o segundo estatuário — farei de prata o corpo, farei de ouro as vestes e cobri-las-ei de pedras preciosas. Será tão formosa a imagem que os deuses baixarão do Olimpo para contemplá-la, e, de pé, no altar do templo, dispensará a luz do sol e a claridade das lâmpadas porque os raios que despedir iluminarão gloriosamente o recinto.

   E o príncipe ordenou que fosse satisfeito o desejo do artista.

   Foi a vez do terceiro estatuário. Era um velho, de barbas brancas, tão longas que lhe chegavam à cinta. Caminhava lentamente e, curvando-se ante o príncipe, falou com respeito e modéstia:

   — Senhor, dai-me um bloco de mármore puro e tempo para que eu nele trabalhe e procurarei fazer o máximo que a um homem é dado fazer.

   Poram-se os três escultores com o que haviam pedido e, em todo o reino não se falou, durante meses, em outro assunto senão no concurso chamado “divino”.

   Ainda ia em meio o primeiro ano quando o artista que pedira ouro apareceu orgulhosamente na corte com o seu Apolo.

   Foi um acontecimento e não faltou quem louvasse a grande atividade do modelador.

   Descoberta a figura, pasmaram os assistentes. À imagem irradiava como o próprio sol. Mas um perito, adiantando-se à turba, pôs-se a mostrar defeitos que muito comprometiam o trabalho e outras vozes criticaram: uma a expressão, outra a atitude; esta notava a falta de majestade; aquela as desproporções.

   — Vale porque é de ouro, disse por fim o perito.

   E o príncipe, desgostoso, mandou fundir em moedas a estatua que fora destinada a adoração dos crentes.

   Pouco tempo depois anunciou-se o segundo estatuário.

   Ainda que o seu trabalho revelasse maior esmero não o acharam, todavia, digno de ocupar o solo em que devia ser erigida a imagem olímpica.

   — É bela e é rica, refulge, mas falta-lhe majestade! É uma linda figura humana e nós queremos um deus.

   E a estátua de prata e ouro, com recamos de pedrarias, ficou ornando uma das salas do palácio.

   Do terceiro estatuário não havia notícia e já corriam murmurações irônicas, boquejos de menoscabo: “Desistiu da empresa. Era velho demais para trabalho que exige inspiração viçosa. Anda, sem dúvida, a fazer figurinhas, como as de Tanagra, para vendê-las aos forasteiros”.

   Uma manhã, porém, com surpresa de todos, apareceu o velho em palácio com o seu “deus” envolto em panos de linho.

   Ainda que ninguém confiasse no seu trabalho, juntaram-se todos os cortesões em palácio, só por subserviência ao príncipe, e os serviçais descobriram a imagem. Houve um movimento de espanto.

   Maravilhados, embevecidos quedaram todos contemplando a figura olímpica, Apolo, o magnífico — que, de pé sobre nuvens, a cabeça aureolada de raio, o olhar sublime, parecia dominar serenamente os homens.

   — Este sim! Este é Apolo augusto! bradaram. Este é o deus solar, dominador da altura.

   Descendo do trono, o príncipe felicitou o artista e, depois de o haver engrandecido com palavras de louvor, perguntou:

   — A que deus pediste a graça de tão formosa inspiração?

   — Ao Tempo, senhor. Outros exigiram metais e pedras preciosas, a mim bastou o mármore puro. Para enriquecê-lo eu contava com o Tempo. Se, para uma curta viagem, são necessárias muitas horas como havemos de afrontar os séculos de afogadilho?

   A inspiração é a flor do gênio, mas não exijamos que ela dê fruto saboroso logo que desabroche. É preciso deixar que o Tempo faça o seu ofício. Se um deus me patrocinou foi a Paciência; se um demônio comprometeu a obra dos que me precederam, foi a Pressa. Senhor, os séculos são longos e quem se destina a atravessá-los deve ir devagar. Quereis saber como se consegue a Eternidade? com o Tempo.

EL-REI TRUÃO

   Que teria o bobo?

   De seu natural e ofício sempre alegre, dera em melancólico. Calado, mazorro, passava taciturno, medindo, a lentas passadas, os vastos salões reais, indiferente às chufas dos pajens, à mordacidade dos fidalgos e; com a palheta esquecida à ilharga, retorcendo a gorra, seguia, sem dar resposta alguma, ele, dantes tão pronto em réplicas dicazes, tão vivo em retrucar aos motejos perguntas com a jogralice venenosa.

   Ia-se cabisbaixo, moroso, e lá se ficava solitário, horas e horas, no eirado, d'olhos perdidos nos campos que, por além, se estendiam em fartura de searas e límpidas ondulações de ribeiras, em cujas ourelas rumorejavam casais e pasciam rebanhos.

    O rei, estranhando a repentina mudança no gênio do bufão, chamou-o à sua recamara e, afavelmente, o interrogou:

    — Que tens? Porque andas assim tristonho e sempre arredado de todos e de mim?

    — Senhor, se eu vos disser o motivo da minha tristeza maior ainda a tomareis com o vosso justo desprezo. É por um sonho de bufão.

    — Que sonho é?

    — Quisera ser rei, ainda que fosse apenas por uma hora. Trocar a minha gorra de orelhas d'asno pela coroa, a minha palheta pelo cetro, o meu saio pelo manto real. Quisera sentar-me no trono, ver toda a corte a meus pés, ouvir as lisonjas dos homens, escutar e sentir os suspiros das mulheres, atordoar-me com o troar das tubas, deslumbrar-me com o brilho dos trajos e as áscuas do aceiro das armas, governar, dominar, ser senhor.

    É um sonho de bobo. Se me emprestásseis, por uma hora, os vossos atributos eu me julgaria o mais feliz dos homens.

    — E acreditas que só com a coroa, o cetro e a púrpura consegues impor-te ao respeito da corte? Os atributos de um rei de sangue não são apenas os símbolos.

    — Enganais-vos, senhor: rei sem cetro, coroa e púrpura vale tanto como o vilico, menos que um bobo palatino. Na Terra é a ilusão que governa: tudo é aparência.

    — No primeiro momento.

    — Sempre, senhor.

    — Pois se é por tão pouco que tanto te avexas, escolhe a hora e nela serás rei e eu, para divertir-me, vestirei o teu saio, empunharei a palheta e me cobrirei com a tua gorra de orelhas d'asno e, ante o trono, como é do teu ofício, farei cabriolas e direi sandices.

    — Senhor, seja então hoje, à hora da audiência.

    — Seja, disse o rei, a sorrir, antegozando o espetáculo original.

    Já o nobre salão do palácio regurgitava: eram fidalgos venerandos com as samarras matizadas de ouro e recamadas de pedrarias; eram guerreiros acobertados de aço; eram sacerdotes em estamenhas; eram pajens em lemistes e em veludos; eram damas em riquíssimos vestidos e ainda burgueses e gente da ralé que levavam requestas ao monarca.

   Às portas, junto aos reposteiros armoriados, alabardeiros montavam guarda, e, ladeando o trono, quatro barbudos homens d'armas apoiavam- se em achas que reluziam.

   Ao clangor das trombetas agitou-se no salão a turba ansiosa e um murmúrio passou:

   “El-Rei!”

   Cada qual procurou, com esforço, chegar-se mais ao trono, desejoso de ser visto, com ambição servil de ser o primeiro a beijar a mão do príncipe, prostrar-se ante a sua majestade, ser atendido, sentir-lhe o poder.

   Ris que rompe o cortejo. Engelha-se e corre o reposteiro, entra a guarda real, com os montantes de prata e as rodelas floreadas de ouro; em seguida os pajens, depois os magnates e, entre eles, El-Rei.

   Tanto, porém, que apareceu com o manto de rasto, o cetro colado ao peito, a coroa um tanto inclinada a frente, pela atitude, pelo gesto, no corresponder ao respeito dos seus súditos, no subir os degraus do trono, em tudo, enfim, via-se-lhe o enleio canhestro.

   Atentaram, então, os vassalos e um, mais esperto, sussurrou na turba: “É o bobo!”.

   Os olhos fitaram-se agudos no monarena, franziram-se em sorrisos os rostos e todos, em voz que subia em grita e se desfazia em gargalhada, repetiram: “É o bobo!”.

    E os alabardeiros riam, riam os homens d’armas, riam donas e fidalgos, pajens e varletes, vilicos e burgueses, todos.

    E a gargalhada imensa estrondava abalando os muros do salão quando o arauto, avançando, impôs silêncio. Foi, então, uma rinchavelhada chocarreira:

    “É o bobo! El-Rei Truão! El-Rei Truão...”.

    Uns, com acenos, perguntavam pela palheta, outros pela gorra e as damas e os fidalgos torciam-se de riso.

    Debalde o arauto ameaçava a turba com os alabardeiros e com os homens d'armas, não havia contê-la, e o bobo, remexendo-se no trono, empalidecia de furor, e quanto mais se lhe acendia a cólera, mais crescia a assuada.

    Eis, porém, que, com alegre tinir de guizos, surge, disfarçado nos trajes do bufão, com a palheta em punho, a fazer visagens e momices, o próprio rei.

    Foi direito ao trono, zumbiu-se, rebolou-se no tapete ao som das gargalhadas e, quando maior era a balburdia, ergueu-se e, encarando de face a multidão, perguntou em tom faceto:

    — Que tal vos pareço assim!

    Na pergunta reconheceram todos a voz do Rei e logo, respeitosos, humilhados, prostraram-se. Cessou a galhofa e o silêncio dominou solene. Então o rei, acenando com a palheta, disse:

    — Ide-vos. Foi um capricho meu por um truão no trono e vestir-me com a sua pele. Ide-vos!

    Houve um escoar e a turba retirou-se.

    Quando se acharam sós, o rei e o bobo, disse o monarca ao bufão:

    — Deves estar contente: foste rei uma hora.

    — Ah! Senhor... mais bobo que nunca! Mais bobo que nunca! E despindo-se: Aqui tendes o que vos pertence, dai-me o que é meu e fique cada qual no seu destino. Podem os reis descer sem risco e onde quer que estejam sempre serão reis porque trazem consigo o prestígio. O bobo é que não pode subir porque, quanto mais se eleva, mais lhe aparece o ridículo. Em vós a gorra é apenas um capricho; em mim a coroa foi a burla e o que conseguistes com o aceno da palheta não pude eu alcançar com ameaças de morte.. E entanto... eu tinha todos os atributos.

    — Nem todos, disse o soberano: faltava-te o principal — a majestade de rei.

HELIANTO

   Despeitado com a glória do sol, que os homens adoravam sob o nome de Phebo-Hyperion, Hephaestos, o artificioso, resolveu suplantá-lo fazendo, em sua oficina subterrânea, um astro e tudo igual ao que, deslumbrantemente, percorria, de extremo a extremo, a altura elísia.

   Espalhou os seus cabiras e telchinos pelos veios das minas em busca de ouro e, quando viu a forja atupida de metal luzente, reuniu os ciclopes e, com os mais hábeis, pôs-se a modelar a imagem do astro.

   Lavraram, com esmero, o disco, a juntaram-lhe os raios.

   Hephaestos não esquecia um detalhe, não descurava a mais imperceptível minúcia e, apurando a arte em requintes de cuidado escrupuloso, depois de lento, insistente polir, espalhou a irradiação em torno do centro de ouro e, orgulhoso da sua fábrica, convocando Demeter e todas as divindades da terra à sua entranhada oficina, mostrou-lhes a nova criação da sua arte incomparável.

   Pasmaram os deuses do sublime trabalho do artífice magnífico e, em uníssono, bradaram:

   — É o próprio sol!

   E Demeter pronunciou-se:

   — Agora poderemos zombar de Apolo e do mesmo Zeus, condensador das nuvens. Quando os cúmulos tempestuosos aparecerem na altura e os nimbos escurecerem os campos, o sol da terra abrirá a sua claridade. Quando os flocos de neve baixarem sobre prados e montes, o sol da terra os fundirá de repente. Não haverá mais regelo e o meu corpo verde terá sempre o esplendor diurno porque, quando o plaustro de Phebo mergulhar no ocaso, o sol da terra refulgirá alumiando todos os lugares, desde o campo mais descoberto à mais recôndita devesa.

   E disse ainda Hephaestos orgulhoso:

   — E mais ainda farei, Deméter fecunda. O sol é um para todo o vasto universo — eu multiplicarei os sóis, cobrirei com eles a terra como as estrelas recairiam o céu. As montanhas, os campos, as colmas, os vales terão constelações de sóis. A beira de todo o córrego, ao longo dos grandes rios, em torno dos lagos límpidos brilharão sóis ardentes e os lavradores poderão colher o sol da terra como colhem o trigo e o linho levando-o para as cabanas.

   O que é necessário, Deméter, é que tu o faças sair a fluxo como fazes brotar a semente atirada no sulco do arado.

   Mas um velho cabira, que ouvira em silêncio, adiantou-se e disse:

   — Hephaestos, senhor das minas, dominador do fogo oculto, se pretendes fazer um sol que possa competir com Phebo-Hyperion, não basta que imites a forma do astro, é necessário que lhe dês a luz, eterna como a do sol, e essa não a farás, de certo, com o fogo que flameja na terra e que uma gota d'agua combate. Assim, para que faças um sol, terás de procurar obter a essência da lua divina, imperecível e inalterável, que é o esplendor dos dias, — Tomá-la-ei ao próprio sol, disse Hephaestos, desde que achas que o lume terreal é efêmero. Faça Deméter aparecer à flor da terra o sol de ouro que eu o acenderei nos próprios raios do sol divino, como se acende a lenha à chama da fogueira.

   — Farei o que pedes, disse Deméter; e cumpriu a palavra.

   Com os primeiros calores da primavera, quando as brisas corriam perfumadas e começavam os ares a enxamear-se de borboletas, viram os pastores árcades brotar da terra um arbusto novo.

   Cercaram-no com interesse examinando-o e maior foi neles o espanto quando deram com a sua flor. Levantou-se, entre todos, uma grita jocunda:

   — É um sol! É um sol...!

   — Talvez algum nimbo que tivesse ficado do estio e, criado na terra, como o grão de trigo, viesse agora em flor.

   — Que lindo enfeite! gabaram as mulheres.

   E, em torno da haste em que oscilava a flor radiosa, puseram-se a bailar em círculo os árcades contentes.

   Hephaestos, apenas se cumpriu a promessa de Deméter, pôs-se a guiar a flor inclinando-a para o sol afim de que recebesse em cheio a luz do astro e nela eternamente se inflamasse.

   Mal se acairelava o oriente de rubro volvia a flor o seio para o esplendor. Surgia o sol, a flor fitava-o e seguia-o na sua derrota céus em fora até que, ao canto vesperal das cigarras, o astro descaía no horizonte.

   Que lhe ficava do sol? o amortecimento.

    Crestava-se debalde a flor mísera e, à noite, ao contrário do que Hephaestos esperava, perdia-se na trova como as outras flores. Mais lume despedia o pirilampo erradio, mais lume espalhava o pântano selvagem.

    Exaltou-se o deus subterrâneo acusando os ciclopes de imperitos e já pensava em descer à oficina profunda para vingar-se dos artificies da incude, quando um súbito clarão desfez as trevas noturnas e Phebo fulgido apareceu junto da flor pendida.

    — Hephaestos, não lances a culpa aos que a não têm. Quiseste cobrir a terra de sóis e trabalhaste no ouro com esmero admirável. Não há dúvida que a obra é digna do teu gênio, o que, porém, não lhe podes dar é o esplendor que me cerca.

    Conseguisse imitar a forma, mas a essência, que é a luz, essa só a poderia dar o grande Zeus.

    Nem tudo pode o martelo sobre a incude e o ouro só brilha ao contato da luz.

    Sóis d’ouro podem fazer, e lindos! os teus ciclopes habilidosos; astros só os cria o poder de Zeus.

    Deméter saiu em teu auxílio, está a terra coberta de heliantos e quem os vê dentro da noite? Entanto um raio só da minha claridade basta para alumiar um campo vasto. És fogo, senhor do fogo, contenta-te com a tua natureza e com o teu prestigio, não queiras ser astro.

   Disse e, como as cotovias, voando dos trigais anunciavam a madrugada, remontou ligeiro aos céus para tomar o governo da esplêndida quadriga.

   Hephaestos, porém, não se dando por vencido, insistiu no seu propósito de tornar a flor igual ao sol inflamando-a na luz do astro diurno e, desde os tempos mais remotos até hoje, mal amanhece e incendeia-se o céu, ei-lo a voltar a flor para o disco fulgente, a acompanhá-lo até o perder de vista.

   E a flor... sempre apagada e a crestar-se na luz, morre como as mariposas.

   Hephaestos, porque hás de sujeitar a flor a tamanho ridículo entre as flores?

   Helianto... pobre de ti! E quantos ha com a tua pretensão e com o teu destino entre os homens — sois na vaidade o menos que vagalumes.

A FLAUTA E O SABIÁ

   Em rico estojo de veludo, pousado sobre uma mesa deixarão, jazia uma flauta de prata.

   Justamente por cima da mesa, em riquíssima gaiola, suspensa do teto, morava um sabiá.

   Estando a sala em silêncio e descendo um raio de sol sobre a gaiola, eis que o sabiá, contente, modula uma volata.

   Logo a flauta escarninha põe-se a casquinar no estojo, como a zombar do módulo cantor silvestre.

   — De que te ris? indaga o pássaro.

   E a flauta, em resposta:

   — Ora esta! Pois tens coragem de lançar tais guinchos diante de mim?

   — E tu quem és? ainda que mal pergunte.

   — Quem sou! Bem se vê que és um selvagem. Sou a flauta. Meu inventor, Marsias, lutou com Apolo e venceu-o, por isso o deus, despeitado, imolou-o. Lê os clássicos.

    — Muito prazer em conhecer. Eu sou um mísero sabiá da mata. Pobre de mim! fui criado por Deus muito antes das invenções. Mas deixemos o que lá foi. Dize-me: que fazes tu?

    — Eu canto.

    — O ofício rendo pouco. Eu que o diga, que não faço outra coisa. Deixarei, todavia, de cantar — e antes nunca houvesse aberto o bico porque, talvez, sendo mudo, me não houvessem escravizado — se, ouvindo a tua voz, convencer-me de que és superior a mim. Canta! Que eu aprecie o teu gorjeio e farei como for de justiça.

    — Que eu cante...?!

    — Pois não te parece justo o meu pedido?

    — Eu canto para regalo dos reis nos paços, a minha voz acompanha os hinos sagrados nas igrejas. Ao ritmo dos meus delicados trilos bailam as damas, guiam-se as endeixas das serenatas de amor, ao luar. O meu canto é a harmoniosa Inspiração dos gênios da rapsódia sentimental do povo.

    — Pois venha de lá esse primor. Aqui estou para ouvi-lo e para proclamar-te, sem inveja, a rainha do canto.

    — Isso agora não é possível.

    — Não é possível! Por quê?

    — Não está cá o artista.

    — Que artista?

    — O meu senhor, de cujos lábios sai o sopro que transformo em melodia. Sem ele nada posso lazer.

    — Ah! é assim...?

    — Pois como há de ser?

    — Então, minha amiga — modéstia à parte — viram os sabiás! Vivam os sabiás e todos os pássaros dos bosques, que cantam quando lhes apraz, tirando do próprio peito o alento com que fazem a melodia.

    Assim, da tua vanglória há muitos que se ufanam. Nada valem se os não socorre o favor de alguém; não se movem se os não amparam, não cantam se lhes não dão sopro, não sobem se os não empurram.

    O sabiá voa e canta — vai à altura, porque tem asa; gorjeia, porque tem voz. E sucede sempre serem os que vivem do prestígio alheio os que mais alegam triunfos.

    Flautas, flautas... Cantas nos paços e nas catedrais. Pois vem d'aí a um dueto comigo.

    E, ironicamente, a toda a voz, pôs-se o sabiá cantar e a flauta de prata no estojo de veludo... moita! Faltava- lhe o sopro.

O MILAGRE

   Indo um homem à floresta lenhar, descobriu na broca de um tronco um ídolo grosseiro e logo, acendido em zelo devoto, tomou-o nos braços e regressou contente à vila.

   Rapidamente espalhou-se pelo lugarejo a notícia do achado e não faltaram presságios felizes, atribuindo o aparecimento da imagem a intuitos de mercês com que Deus queria premiar as gentes.

   Na tarde do mesmo dia, que foi de alegre alvoroço, encheu-se a cabana do lenhador, onde o “santo”, entre luzes e flores, sobre uma mesa forrada de linho alvo, avultava como um toro apenas falquejado.

   Choveram esmolas, multiplicaram-se promessas e, como eram indistintas as feições do ídolo, cada qual o apelidou conforme a sua devoção, e foi assim que o santo teve vários nomes, prevalecendo, porém, o de “Senhor aparecido”.

    A nova propalou-se às povoações vizinhas. Começaram as romarias e, com elas — porque a cabana não podia comportar a turba de devotos — veio a ideia de levantar-se uma capela, onde a imagem tivesse agasalho digno e todos a pudessem contemplar à vontade, pedindo-lhe o que pretendessem.

    Não faltaram materiais nem obreiros e, pouco a pouco, ao som de cânticos, foram subindo os muros da capela.

    Contavam-se os enfermos por centenas, vindos de várias partes — cegos, febrentos, lázaros e paralíticos, todos pedindo a cura e fazendo promessas generosas.

    O santo, sempre entre flores e luzes, parecia indiferente aos rogos dos infelizes.

    Uma manhã, porém, certa velha que chegara sem andar, entrevada, pode deixar o estrame em que jazia e, por seu pé, sem auxílio, dirigiu-se, entoando louvores, à cabana do lenhador, prostrando-se ante o santo a proclamar e a agradecer o milagre.

    Tanto bastou para que se divulgasse, com maravilhosos detalhes, a notícia da cura espantosa.

   Cresceu a fé entre os enfermos, debalde, porém, rezaram e prometiam, nunca mais houve quem saísse do seu grabato, vendo, se era cego; ouvindo, se era surdo; caminhando, se era entrevado; livre da febre ou sem dores.

   Queixavam-se os miserandos, mas sempre havia quem lhes respondesse “que a razão estava em eles não terem fé” e com isso os desgraçados resignavam-se, sempre louvando o santo, cuja fama crescia.

   Com a afluência dos devotos, o povoado desenvolvia-se; o seu comércio, que era mesquinho, tornou-se considerável, e à volta da capela, ergueram-se tendas de trabalho: o oleiro apolegando o barro, o ferreiro malhando à bigorna, o carpinteiro acepilhando a taboa, o imaginário esculpindo cópias do “santo” que os devotos traziam ao pescoço, a rendeira com a sua almofada de crivo e, como sempre chegavam famílias, iam os pedreiros edificando e as oficinas todas laboravam.

   Apesar de não se ter realizado outro milagre depois do desentrave da velha, a romaria não cessava e se alguém, por desânimo, mostrava-se descrente, logo lhe citavam o caso da paralítica, descreviam os seus passos, diziam como chegara à cabana, que fizera, e ainda mostravam os castiçais de prata que ela mandara ao santo com um quadro em que estava miudamente referido o milagre sublime.

   E assim, os mesmos que regressavam aos lares sem melhoras, faziam o louvor do santo “que curara a velha de uma paralisia de longos anos”.

   Outra cura não fez a imagem do busque que da cabana, passou ao altar-mor da capela, mas só com haver andado uma entrevada — benefício para o qual, talvez, não concorrera — ganhou tão grande faina, que se alguém, nas terras de longe, aludia à sua bondade, logo em coro se murmurava, em tom maravilhado:

   — “Não há santo mais milagroso!” E lá vinha a referência à paralítica.

   Para milhares de desiludidos só havia aquele consolo, e esse bastava para manter a crença o prestigiar o santo.

   Como esse ídolo da floresta — a que se atribuiu milagre — quantos há de carne e osso que são potentados por terem tido a sorte de achar uma velha entrevada e de fé... que se levantou do estrame e proclamou a sua virtude.

   Ídolos e homens... tudo está em criarem fama.

FRUTOS MADUROS

   Todas as manhãs, depois de, atentamente, examinar as vitualhas que entravam para as cozinhas reais, o médico do paço descia ao pomar, e, vagaroso, abordoado a um bastão, entre fâmulos que levavam alcofas, ia de uma a outra árvore, indicando as frutas que deviam ser colhidas.

   Examinava-as, cheirava-as, apalpava-as e só permitia a apanha das que lhe pareciam bem maduras, tão moles que, ao mais leve toque, logo se amolgassem.

Debalde lhe fazem ver que, assim passadas, perdiam toda a beleza e todo o perfume: nem ornavam a mesa, nem convidavam o apetite.

São as que convém ao rei, retrucava o médico.

O encarregado do horto levava-o a ver os pessegueiros carregados de frutos pubescentes, carnudos e corados, cujo aroma rescendia; mostrava-lhe os figos reçumando calda, à volta dos quais era um alegre giro-girar de abelhas; vergava, para que ele os visse de perto, os galhos fartos das laranjeiras e dos limoeiros. Entrando sob as latadas apontava-lhe os cachos piramidais ou, agachando-se nos canteiros, apartava as folhagens expondo os morangos cor de sangue; e o médico sempre a acenar com a cabeça branca:

   “Que não! Não estavam como convinha. Para que não fizessem mal era necessário mais sol, mais sol e mais orvalho”.

   E os fâmulos colhiam.

   Às vezes, a fruta, de tão madura, esborrachava-se-lhes entre os dedos; outras eram tão chochas, tão engrouviadas que eles atreviam-se a falar:

   — Vede, senhor; reparai. Não é para a mesa de um rei. Dir-se-á que a apanhamos no chão.

   — Está como convém, afirmava o velho médico.

   E lá ia, sem atentar nas árvores que o atraíam com a beleza e com o aroma dos pomos sazonados.

   Uma tarde, sentando-se o rei à mesa e apetecendo-lhe comer figos, pediu-os ao copeiro.

   A corbelha em que vieram acamados era de filigrana de ouro, eram, porém, tão feios os berjaçotes que o rei os repeliu de si, com repugnância.

   Os pêssegos não lhe agradaram, tão pouco as uvas que já se encarquilhavam em passas, e tudo mais que da copa lhe traziam em covilhetes preciosos e em condessas era devolvido.

   Irritou-se o monarca e, atribuindo a culpa ao pomareiro, mandou chamá-lo e, tanto que o viu presente, rompeu em palavras agastadas:

   — Para quem guardas tu as boas frutas para que só me mandes as que rejeitam os passarinhos?

   — Senhor, a culpa não é minha, senão do médico de V. M. que é quem as escolhe nas árvores. Por mais que eu lhe diga que o fruto devo ser apanhado em tempo — nem tão verde que trave, nem tão maduro que se engelhe, — ele reponta e vai ordenando o que entende. Não me posso insurgir contra quem sabe. Ele é o zelador da saúde preciosa de V. M. e ainda que eu, por muito lidar com frutos, conheça os melhores e saiba quando estão em vez de ser colhidos, calo-me. Frutos não faltam e lindos no pomar, mas que há de responder um pomareiro ao médico d'El-Rei?

   Chamado o médico, que já se havia recolhido à sua câmara, esperou-se longamente que se levantasse e viesse, sempre abordoado, arrastando os passos perros ao longo dos corredores.

   Ciente do que se tratava, logo entrincheirou-se na prática, alegando o muito que vira e o muito que aprendera em livros.

   — Nada, meu amigo, tornou o rei. Deixemos em paz os livros — todos eles espremidos não chegam a dar duas verdades. Frutos, querem-se de vista e sabor. Nada de figos murchos.

   — A prudência, real senhor...

   — Conheço-a: é uma senhora que não apaga a lanterna e ainda em pleno dia trá-la acesa porque podo alguma nuvem obscurecer o sol. Dão-na por irmã da sabedoria, essa filha da velhice, no dizer dos velhos. Eu sei. É vezo servirem aos reis tudo que o Tempo estragou — frutos velhos e homens decrépitos; uns, porque perderam a acidez; outros, porque adquiriram experiência.

   Assim o que vem à mesa é o repúdio dos passarinhos e o que fala no conselho é a caducidade. Os bons frutos e as inteligências viçosas vegetam no pomar e no mundo até que as gelhas e as rugas os recomendem. Nada, já que os reis são escravos da tradição que, ao menos, os frutos sejam frescos e se o reino não pode crescer com os lanços dos bons espíritos que o paladar do rei não se prive do agradável sabor.

   Fique cada qual no que entende — o médico, de guarda à saúde e o pomareiro no pomar.

O RELÓGIO E O VEGETE

   Sabia certo filósofo da vaidade de um seu amigo que, sendo septuagenário, procurava, a todo o transe, fazer-se passar por moço.

   Pintava-se e, só para este artifício, tinha uma enorme bateria de frascos. Os cosméticos eram às dúzias e, no toucador, os bastões rolavam às pilhas e eram potes de pomadas, caixas de polvilhos, ferros, escovas, limas e tesouras.

   Todos os dentes postiços lembravam as imagens funerais com que, sobre os túmulos, se recordam os finados e o busto, que corcovava, era mantido a prumo pelas lâminas de aço de um colete.

   Certa manhã, procurando-o o filósofo, achou-o atarefado em remoçar-se. Afundou na primeira poltrona com um livro e, enquanto o velho reparava os estragos da velhice, fingiu-se interessado na leitura.

   Um momento saiu o pachola e logo o sábio, pé ante pé, foi ao grande relógio, cujos ponteiros marcavam o meio-dia, e parou-o,

   Reapareceu o velho sarapintado e ajeitado em quarentão, teso e liso, os cabelos e a barba de azeviche, mas os olhos... ai! deles, já vasquejavam no fundo escavado das orbitas.

   Saíram para o almoço.

   À mesa a palestra foi longa: o velho falou de amores, referindo galantes aventuras; o filósofo sorria, gabando-lhe a fortuna.

   Subia o calor — não só do sol como dos vinhos e licores, que foram vários e copiosos.

   Passaram ao terraço e, tão doce era o ar em tal recreio, tão cômodo era o recosto mole das poltronas, tão capitoso era o perfume do jardim, que ali se ficaram os dois discreteando suavemente, com cabeceios de sono que os faziam mesurar de quando em quando.

   Lenta vinha vindo a tarde e o velho, que não desonrava os fingimentos, tornou à câmara a refazer, com unguentos o cosméticos, o que o suor comprometera.

   Ao entrar, porém, consultando o relógio, pasmou de o ver parado.

— Parado o relógio!

— Parei-o eu, disse serenamente o filósofo.

—Tu! Com que fim?!

— Desejando tornar mais longo o nosso convívio, não quis que os ponteiros ganissem do meio-dia.

   Dobrou-se o velho a rir do que lhe parecia grande necessidade.

   — Temos um novo Josué! Julgas, então, que, parando o relógio, deténs a marcha das horas?

   — Não rias, porque foi contigo que aprendi tal lição.

   — Comigo!

   — Sim, contigo. Infelizmente, porém, estou convencido do meu erro e praza a Deus que o mesmo fie aconteça. Parando o relógio ao meio-dia nem por isso consegui evitar que as sombras da noite viessem sobre nós. Elas aí estão, e pesadas, apesar do estratagema.

   Mira-te agora ao espelho, tu. Não fazes em ti o mesmo que fiz ao relógio?

   Olhando os ponteiros dá-se logo pela inércia da máquina, porque ninguém se engana com o tempo. Assim, quem te vir, ainda que te besuntes com todos os óleos da terra e tinjas os cabelos com todos os preparados químicos, não se iludirá com a fraude. Queres fixar a mocidade como eu quis reter o tempo, parando o relógio, que lá está imóvel no zênite sem que, por isso, refuja ao negror da noite que já o vai cercando.

   O Tempo é como o sol, meu amigo: ninguém o esconde, não há rebuços que o encubram. É meio-dia no relógio e já por aí andam a trissar morcegos. Assim tu — fazes-te moço, escondes a verdade e ela ressalta flagrante em todo o teu corpo.

   Vamos lá, meu amigo, não nos queiramos iludir opondo tropeços ao que não para. Podes enterrar um raio de sol? foi este um sonho que Averrhóes tentou inutilmente. Deixa-te de artifícios — lava-te e aparece como és — enquanto eu vou acertar o relógio, pondo-lhe os ponteiros sobre as horas que são.

O RIBEIRO

   No princípio, querendo o Senhor estabelecer a ordem perfeita e firmar a harmonia entre as criaturas para que, a todo o tempo, não lhe chegassem queixas de oprimidos ou de descontentes, descia à terra de quando em quando, e, ainda que tudo lhe parecesse bem, dissimulando em humildade a sua onipotência, escondia-se na folha da árvore, na pena do pássaro, na pétala da flor, na gota d'agua, na estriga, no grão de areia, na centelha do lume, no espírito do homem, no coração do animal e escutava, na intimidade, o que pensavam ou diziam? e se achava razão na queixa corrigia; se ouvia louvores exultava.

   O pássaro bem dizia-o porque Ele lhe dera a asa e o canto; a flor agradecia-lhe o perfume, a árvore a folhagem, a serra o arvoredo, o rochedo a fonte e o musgo, a caverna a sombra e o silêncio, a mina os filões de ouro, o homem o pensamento, a fera a liberdade e o mar não se cangava de desdobrar os vagalhões admirando-lhes as rendas brancas de espuma que se espalhavam nos areais.

   A terra era imensa alegria. Todas as vozes, ainda as mais humildes, como a das formigas que carreavam achegas e a das abelhas que recolhiam o mel, eram de agradecimento a Deus. O próprio cardo hediondo mostrava-se ufano da flor que se abria nos seus galhos aleijados.

   E Deus parecia contente com o que fizera e, retomando a forma divina, envolvendo-se na aureola prefulgente, já se dispunha a regressar ao céu quando ouviu o murmúrio lamentoso que subia de um ribeiro.

   Aproximou-se da margem, toda vestida de verdura florente e, inclinando-se sobre as águas passageiras, reteve-as perguntando-lhes porque se queixavam.

   — Senhor, disse o ribeiro, a tudo destes liberdade: os pássaros voam por onde querem — se lhes apraz a montanha, batem asas, lá vão; se está em flor o bosque, ao bosque se dirigem. Passam as águias e as levadiças: são livres, têm toda a terra e todo o espaço; o homem erra à vontade por todas as devesas, os animais percorrem as florestas, atravessam as campinas e os desertos, elegem a moradia que lhes convém; a estrela brilha no céu e fulge nas águas; a terra levanta-se em poeira e vai criar ilhas nas rochas do largo oceano e as vagas do mar, se desejam o sol, chegam-se às praias tépidas e doiradas, quando querem o repouso recolhem-se nos extremos do mundo e dormem congeladas. Eu só não tenho o direito de deixar esta prisão estreita, nem de retroceder, o que fazem os pequeninos peixes que nascem no meu seio, mais livres do que eu porque podem ir e vir, zombando da correnteza.

   Sou um cativo. Quisera poder insinuar-me nos bosques, repousar um minuto à sombra das árvores, correr as areias claras do deserto, rolar pelas ribanceiras alfombradas, ser livre, enfim.

   — É quanto queres?

   — É tudo, Senhor.

   — Assim seja. E logo, desfazendo as ribanceiras que continham as águas do ribeiro, deixou-as o Senhor livres.

   Precipites, com murmúrio alegre, correram pelos campos, invadiram a floresta, alastraram o deserto, meteram-se pelas furnas.

Mas a floresta reteve as que lhe chegaram e, juntando-as em lago, matou-as formando com as míseras, dantes tão límpidas e vivazes, o tenebroso e taciturno pântano.

   O deserto de areias quentes, mal sentiu as águas erradias, logo as devorou, sôfrego. As furnas, cheias de pedras, em declives escabrosos, precipitaram-nas de queda em queda.

   De todos os lados, então, subiram lamentos doridos: no pântano, as vozes das águas agonizantes que se sentiam abafar pelas folhas mortas, pelos ramos secos, escabujando, não sobre o saibro claro em que, dantes, haviam corrido, mas sobre um pútrido lençol de lodo; no deserto, gritos das águas que sucumbiam devoradas pela sede eterna dos areais ressequidos; nas furnas o longo, angustioso gemido das águas arrojadas de pedrouço em pedrouço.

   Foi, então, que o ribeiro arrependido clamou em desespero:

   — Fazei-me, Senhor, voltar ao leito antigo, dai-me a doce prisão das minhas formosas margens. Que fui eu pedir, insensato que sou! Pobres das minhas águas! Dai-me, de novo, o antigo leito com as suas margens orladas de verdura; fazei-me tornar à minha prisão e que as minhas ondas continuem a brincar com as libélulas e com as borboletas.

   Ó o túmulo negro, o pântano triste...! Como me iludiu a floresta! Ó o deserto pérfido e os antros traidores! Juntai as águas dispersas que sofrem por minha culpa, que elas tornem ao leito enxuto. Fazei-me, de novo, o ribeiro de outr’ora.

   E disse o Senhor:

   — Foste o único descontente. Entre tantos rios e ribeiros só tu reclamaste contra a minha ordem pedindo liberdade. Dei-te. Eras límpido, tinhas beleza e tinhas frescura e todas as tuas águas corriam juntas, em alegre bando, por entre as sombras cheirosas. Quiseste entrar na floresta, como o homem — lá estás em pântano; quiseste percorrer o deserto como os leões, as areias devoram-te; quiseste voar como o pássaro, o sol absorve-te; quiseste descer a montanha, os penhascais precipitam-te e, querendo ser tudo nem ribeiro és mais, porque a água que te resta é uma lágrima escassa que desaparecerá no estio, com o ardor do sol.

   E, sem mais dizer, subiu o Senhor ao céu e lá ficou na campina o raso fio d'agua, resto do ribeiro ambicioso, cujos membros jaziam dispersos: — na floresta rebalsados em pântano, torvelinhando em cachoes nas furnas, no deserto em lençol úmido que mal chegava para a sede voraz das areias adustas.

   Desde então nunca mais as coisas se queixaram: serviu a todas de exemplo o caso do ribeiro descontente.

O PRÍNCIPE DE LAHOS

   Quando lhe disseram que o físico pedira, além da condução, uma guarda de fortes cavaleiros que lhe garantissem a vida nos andurriais assolados pelos bandidos e tantas moedas de ouro quantos fossem os dias que passasse no castelo, ergueu-se no leito o ríspido suserano bramindo, a apontar a arca em que guardava o tesouro:

   — Dali não sai moeda para tão refalsado vilão! O que lamento é não ter forças para montar o meu ginete e empunhar uma lança, porque havia de mostrar-lhe como costumo responder a afrontas da ralé. Dali não sai moeda.

   — Disse e caiu no leito prostrado e gemendo.

   Foi tamanho o furor, tão violento o arranque, tão despejados os movimentos do ancião que se lhe abriram as feridas do peito e o sajague jorrou a golfos.

   Solícita e ligeira, a filha acudiu a tempo de estancar a copiosa hemorragia e; com palavras meigas e sossegadas, serenou o ânimo do pai contendo-lhe as abafas e os protestos fureutes da avareza e, para distraí-lo, à falta de menestrel ou jogral que lhe cantasse, ao som da rota, um lais ou uma cantilena, tomando o fuso, a fiar, improvisou o romance do Príncipe de Lalios.

   “Logo que subiu ao trono o príncipe galhardo, o cavaleiro mais aposto e a melhor lança do reino, ordenou se fizessem grandes obras militares ao longo da fronteira, se dotasse a esquadra de navios possantes, se alistassem no exército os mancebos das principais famílias. Queria os jovens e de boa sombra, armados com esplendor para que todos que os vissem ficassem deslumbrados. Assim foi feito.

   Restauraram-se as muralhas, armaram-se galés altivas, escolheram-se os esbeltos infantes e os mais gentis cavaleiros.

   O que maravilhava, porém, não era a espessura das muralhas, não era o porte dos navios, nem era? Tão pouco, o número da soldadesca, mas o fausto que em tudo se notava.

As muralhas eram pintadas como paredes de paços, as mãos andavam sempre empavesadas, como em festa, com a companha vestida de linho alvo, vergando remos que eram de sândalo; os infantes, mais pareciam donzéis de paço, vestidos de púrpura com arcos que trescalavam, escudos que eram baixelas, lanças com espiculos de prata e que direi dos cavaleiros? se os telizes eram de trama de ouro, podeis imaginar como seria o mais.

   Toda essa ostentação era apenas para a vista: nem as muralhas ofereciam resistência porque as pedras, mal assentadas, rolariam ao primeiro embate abrindo brechas ao inimigo, nem os infantes meneavam as armas e os cavaleiros só em torneios galantes escaramuçavam.

   O príncipe contentava-se com possuir exércitos e uma esquadra numerosa. Que lhe importava a imperícia do soldado e a inexperiência da maruja? Lá estavam os vistosos esquadrões e no molhe, velas abertas, a esquadra arfando.

   Sucedeu que um monarca ambicioso, cujo reino confinava com o de Lahos, resolveu levantar-se em armas contra o príncipe garrido e, estendendo em campo o seu valente exército e soltando nos mares a sua aguerrida frota, impôs-se com arrogância.

    Foi então que um aio falou ao príncipe:

    — Senhor, é tempo de fazerdes sair a vossa gente. Guarnecei as muralhas, confiai o comando da tropa a um general arguto, entregai a um hábil capitão a esquadra e facilmente fareis recuar o ousado que nos ameaça com afronta.

    — Que! exclamou o príncipe. Queres que exponha os meus infantes, que tanta vista fazem com os seus saios de púrpura, as suas cnemidas de prata, os seus escudos de aço brunido e as suas lanças tauxiadas, à gente rude e salaz que aí vem? Hei de lançar ginetes preciosos e cavaleiros que levam no corpo tesouros era pedrarias contra uma horda de maltrapilhos? Achas que navios laminados a prata, abrindo velas de linho, foram feitos para abordar xavecos? Não! E deixou-se estar.

    Chegou às muralhas a chusma bravia e logo foi iniciado o assalto.

    No mar as galeras ricas sofreram o abalroo da frota inimiga e, uma a uma, foram soçobrando. Corrêa o aio a palácio.

    O príncipe admirava a sua gente de guerra que manobrava ao sol, num campo fechado. As ascumas cintilavam, os cocares dos elmos eram de todas as cores e os cavalos, cabeando airosamente ao meneio dos cavaleiros, faziam rebrilhar os jaezes e as armas. Estrondavam os instrumentos, refulgia o aceiro. Que lindo!

   — Senhor, tornou o áulico alarmado, enquanto vos extasiais no lustro da vossa gente o inimigo vareja os muros da cidade. Já se ouve o vozeio confuso, as tubas roucas ressoam, tinem armas nas ruas. Era pouco estarão convosco. Fazei sair a vossa gente. Que, ao menos, se defenda a vossa residência e o trono.

   Não deu resposta o príncipe. Expor à morte aquele brilhante exército... E deixou-se estar contemplando o garboe o luzimento dos infantes e dos cavaleiros.

   Um tumulto assustou-se: era tarde. Quando se lembrou de bradar aos seus guerreiros, mãos brutas arrastaram-no e, manietado, cativo, lá foi o príncipe de Lahos.

   Calou-se a donzela.

   Soergueu-se o enfermo e, fitando os olhos na filha, que baixara a cabeça loura e retomara a meada e o fuso, bradou:

   — Por Deus! e os guerreiros?

   — Os guerreiros...?  

— Sim. Porque não saíram em defesa do seu soberano?

   — Porque ele não os tinha para batalhas, mas para simples encanto dos olhos.

   — Essa agora! Guerreiros querem-se na luta, não são histriões para divertimento de cortes. De que lhe serviu exército tão numeroso e tão rico se acabou em tamanha miséria às mãos dos brutos?

   — Lastimai-o, senhor: tinha mais amor às armas resplandecentes do que à pátria e à própria vida. Não tendes vós ali na arca moedas sem conta, barras de ouro e de prata, pedrarias e baixelas? Não nutris nas vastas campinas tantos ginetes aderençados? Não dispondes de cavaleiros fieis ao vosso com mando? Entanto, a Morte ronda o castelo e, em breve, estará convosco, porque vos negais a ceder ao pedido do físico.

   Moedas amealhadas são economias que devem sair ao reclamo da necessidade. A formiga, no inverno, alimenta-se com o que recolheu no estio. Vale mais que um reino a vossa vida e, se sucumbirdes, ainda que vos forrem de ouro o túmulo e o incrustem de gemas, não deixareis de apodrecer como o animal que morre na charneca.

   Quem fica debruçado a contemplar tesouros esquece todos os deveres. A avareza é um crime. Se o príncipe houvesse atendido à voz do aio ainda seria rei e não estaria a gemer no fundo de um ergástulo, carregado de ferros.

   — Que venha o físico! bradou o príncipe. Manda-lhe a condução e os cavaleiros e que lhe digam que, além das moedas do ajuste, terá ainda um vaso de ouro cheio de besantes no dia em que eu puder vestir a couraça e brandir a facha d’armas. Exércitos querem-se em campo.

   — E moedas em giro, quando é preciso, disse a donzela. E, levantando-se para transmitir as ordens de seu pai, suspirou: Tivesse o príncipe ouvido as palavras do aio e ainda hoje seria rei do lindo país de Lahos.

   — E onde fica esse país? indagou o velho interessado.

   — Onde fica? Só os poetas o sabem, meu senhor, os poetas que tudo conhecem, porque a imaginação os leva a toda a parte. Hei de perguntar a um menestrel.

   Disse e, sorrindo, saiu a transmitir as ordens necessárias para que fossem buscar o físico à montanha.

A VAQUINHA BRANCA

    Por aqueles agros, fosse de verão, fosse de inverno, tivessem as árvores a sua verde opulência ou forrasse-as a neve; cantassem de ramo a ramo calhandras e pintassilgos ou apenas enregelados pardais piassem, lá ia, ao romper d'alva, caminho do monte, com a velha sainha de saragoça e sócios nos pequeninos pés, a pastorinha Eudália.

    Órfã, fora recolhida por má gente que, sem pena da sua idade frágil, mandava-a ao monte, com o gado, dando-lhe uma migalha de pão, e ai! dela se murmurava queixa.

    “Faz frio!...”

    “Eh! lorpa, bradavam-lhe, quem sabe se te havemos de engordar à beira do lume, como uma princesa? Não estão lá fora as árvores, que são também criaturas de Deus? Ou levas o gado ao monte ou sanes duma vez desta casa, que aqui ninguém te viu nascer”.

   E a coitada partia.

   No tempo das flores era até um gozo aquele andar matinal por veigas virentes, no som das águas levadias que pareciam brincar nos seixos. Ai! dela, porém, quando o vento entrava a esfuziar gelado, levantando em remoinho as folhas mortas.

   Ainda assim cantava a pobrezinha, e, com as faces coradas, parecia haver agasalhado no corpo a primavera, saindo-lhe a voz dos passarinhos nos cantos que desferia, abrolhando-lhe as rosas vermelhas no rosto lindo, crescendo-lhe o trigo maduro nos cabelos d’oiro, correndo as águas ligeiras em pranto dos seus olhos claros.

   Falando às ovelhas magras lá ia, por atalhos fragueiros, tiritando, a descobrir restos d'ervas que servissem de pasto ao seu rebanho.

   Entre as ovelhas, por ser linda e mansa, andava uma vaquinha branca, que era o desvelo da pastora. Mirrasse todo o pascigo ficando o terreno desnudo, como arrasado por fogo, sempre para a vaquinha havia um molho de feno.

   Mal começava o outono melancólico, quando toda a gente da aldeia ia ao monte apanhar acendalhas e ramos para o lume, Eudália, descendo pelas veredas ásperas, à hora do crepúsculo, trazia feixes de feno e, como lhe perguntassem se fazia logo com tal palhada, respondia sorrindo:

   — Tenha eu o catre bem fofo e caía a neve que cair, sopre o vento que soprar, dormirei quentinha.

   No rigor do inverno, se alguém entrasse no palheiro em que dormia a pastora, acharia a vaquinha ruminando sobre o feno e a pequenita aconchegada e ela e, até o fim das neves, o leito de Eudália alimentava o animal que, com o calor do seu corpo branco, aquecia a sua amiga. Assim as duas atravessavam o inverno — a vaquinha farta, Eudália agasalhada.

   A primavera entrara com o sol e as flores e toda a alegria festival dos passarinhos. Os sinos soavam na pureza do ar azul e toda a gente aldeã, com os seus trajos melhores, acudia à festa enchendo o adro onde se haviam instalado, em tendas, bufanheiros com sortimentos que deslumbravam — saias de pano fino, corpetes d'alamares, arrecadas e cordões d'ouro, rendas e sapatinhos tão êxitos que parecia incrível que fossem feitos para ser calçados.

   “Talvez sejam para amêndoas“, dizia a pastorinha.

   Quanta sedução! E os bufarinheiros apregoavam os preços e cada arca que abriam deixava o povo verdadeiramente maravilhado.

   Eudália atravessara a feira com o seu rebanho e, ainda que os olhos a levassem para, as tendas ricas, lá foi tristonhamente a caminho do monte.

   Uma manhã, remendando, com paciência, a sainha de saragoça e lembrando-se do que vira no adro, a pastorinha suspirou:

   — Ai de mim! São tão felizes os que lá andam em baixo! Ainda que não comprem, sempre é um consolo olhar aquelas lindas coisas que os bufarinheiros trazem nos seus ceirões e malas. Pobre de mim! nem posso parar onde cantam para que não riam da minha esfarrapada miséria os moços e as moças que pavoneiam tantas galas. Escondendo o rosto com as mãos, rompeu a mísera em sentido pranto.

   — Não te aflijas, disse-lhe uma voz ali perto.

   Levantando sobressaltadamente a cabeça, à procura da pessoa que falara em tal ermo, onde não aparecia vivalma, viu Eudália a vaquinha que deixara de pastar e, imóvel, fitava-a com os olhos cheios de bondade. Bateu-lhe o coração e, pálida de medo, ia fugir quando a vaquinha docemente tomou:

   — Não te assustes. Amiga melhor não tens do que eu, que te falo por graça de Deus. Muito tens sofrido, sendo digna de melhor sorte, porque és boa e os teus pensamentos são puros. És nova e, ainda que formosa como nenhuma, queres enfeitar-te. É justo. Não chores: aqui estou eu para valer-te. Toma o teu tarro, ordenha-me e verás o leite, saído de corpo virgem, mudar-se em luzentes moedas de prata. Leva-as e gasta-as como entenderes, e, sempre que tiveres necessidade de dinheiro, faze o que te disse e logo serás servida com abundância. Lembra-te, porém, do inverno e do feno que me sustenta nesse tempo de esterilidade. Dentro da maior ventura cumpre ter sempre presentes na memória os dias adversos.

   A pastorinha não se decidia a mover-se e foi necessário que a vaquinha repetisse a ordem e até a impusesse para que ela tomasse o tarro e, acocorando-se, começasse a mungi-la.

   Que leite claro e como rebrilhava à luz! O tarro pesava tanto que ela o depôs no chão e o leite sempre a jorrar. Quando a espuma transbordou a vaquinha disse:

Despeja-o agora, toma as moedas, vai à feira e compra o que quiseres. Faze-te bela e sê feliz. Não te esqueças, porém, de mim. Aqui fico á tua espera. Poderás ser rica como a mais rica se não te descuidares do feno que me deve nutrir no inverno e, quanto mais me fortaleceres, tanto maior será a soma que de mim poderás tirar.

   Tímida, a princípio, Eudália, levantou o tarro, que pesava; por fim despejou-o e centenas de moedas rolaram tilintando.

   Um tesouro! Deus do céu! Um tesouro. Encheu um saco e, rindo, cantando desceu o monte a correr. Foi direita à feira e, de tenda em tenda, comprou de tudo, gastando até à última moeda.

   E que linda ficou com uma saia bordada, corpete de alamares, sapatinhos de veludo, arrecadas e cordão d'oiro!

   Os da aldeia pasmaram quando a viram atirar moedas às mancheias ao balcão dos bufarinheiros e a gente que a havia agasalhado, a princípio com arrogância, com brandura depois, interrogou-a sobre a origem daquela fortuna, mas como Eudália guardasse o seu segredo força lhe foi pagar as ovelhas e a vaquinha branca, sendo despedida, por impura, da companhia dos que se diziam seus únicos protetores.

   Riu-se a pastora e, sem ouvir as vozes que lhe lançavam de ingrata e perdida, meteu-se airosamente nas danças e não houve moça mais requestada do que ela, que até os orgulhosos filhos dos rendeiros foram tirá-la para as quadrilhas.

   Quando, noite alta, regressou à montanha, a vaquinha, que ruminava deitada sobre feno fresco, perguntou-lhe:

   — Então, como te correu o dia?

   — Feliz! Feliz! Como te agradeço, minha vaquinha branca, toda a alegria que experimentei. Diverti-me como nunca e estou bela como as princesas dos contos. Vi-me a um grande espelho, mais claro do que as fontes, e achei os meus olhos encantadores. Como são azuis! E esta saia? e este corpete? e estes sapatinhos? e estas joias? E, atirando os braços ao pescoço da vaquinha branca, pôs-se a beijá-la, contento.

   Todas as manhãs, cedinho, lá ia com o tarro à teta da vaquinha branca e as moedas que tirava mal lhe chegavam para os desperdícios.

   Não perdia festas: viam-na em toda a parte.

   Corriam versões diversas sobre a fortuna de Eudália. Uns diziam que era pactuada com o demônio, outros que se perdera desonestamente; ela folgava alheia a tudo. Tinha a mina que lhe não faltava com as moedas, que lhe importava o mais?

   E o estio ardeu esplêndido, entrou o outono e começaram a cair as folhas amarelas. Quando Eudália descia para as festas encontrava gente nos matos recolhendo, à pressa, galhos e ramos secos para a provisão do inverno.

   Veia a neve, murcharam os campos.

   Uma manhã de grande frio, como Eudália passara a noite pensando em rima capa que vira e em certa propriedade que resolvera adquirir, farta, com vinha e trigo, pascigo e águas, onde a sua fortuna medraria em milhões, saltou do leito de folhas, corada e formosa, e saiu à procura da vaquinha branca.

   Chamou-a, debalde! Os caminhos estavam vidrados de neve refletindo sinistramente o esqueleto das árvores, não corria arroio, não cantava pássaro — voz, só a triste do vento uivando pelos algares. E a vaquinha branca?

   A pastora buscou-a em todo o bosque sem folhas e, depois de longo e fatigante caminhar, deu com a perdida que agonizava nas profundezas do um abismo pedregoso.

   Precipitou-se chorando e, ao chegar junto da que a fizera venturosa, tomando-lhe a cabeça nos braços, chamou-a sentidamente. Abriu a vaquinha os olhos vasquejantes e, reconhecendo a pastora, disse-lhe:

   — Imprevidente, esqueceste o meu feno. Apesar das minhas constantes recomendações, não te lembraste do inverno. Ele aí está, rigoroso e em a miséria e eu morro à míngua e comigo. Ir teu descuido, vai-se a tua fortuna. Se houvesses sido prudente, tecia, hoje agasalho e fartura, serias rendeira, dona de terras e de searas e eu viveria longos anos enchendo o teu tarro de moedas. Os prazeres desvairaram-te — tudo esqueceste nos bailes o nos folguedos das feiras e agora, pobre e sem amigos, ficas no monte solitária — sem pão, sem lar, com a lembrança apenas dos prazeres que gozaste. Foste imprudente, Eudália. Disse e expirou. Pobre pastora!

   Uma tarde, cansada de chorar e faminta, descia o monte para esmolar um pão, quando a neve a envolveu sepultando-a em frio.

SEGUNDA PARTE

COMPRADOR D’ALMAS

   A caverna da Morte ficava no fundo da floresta lúgubre, entre árvores cujo tronco, d'um amarelo tabido, tressuava ichor infeccionando o ar com o fétido nauseante.

   Pântanos sucediam-se coalhados de balseiros sobre os quais enxameavam lúcidas moscas.

   Pelas raízes, que se retorciam acima do lodo, emergindo do extenso nateiro, coleavam vermes repugnantes deixando um rastro víscido que alumiava.

   De galho a galho esvoaçavam tontas, batendo surdamente as asas negras, aves trágicas e eram trissos, crocitos, chirrios respondendo aos coaxos soturnos que subiam das águas estagnadas.

   A luz do sol não conseguia atravessai a fronde compacta do arvoredo que, às lutadas do vento frio, produzia um soído merencório entristecendo ainda mais o espantoso degredo.

   Sombras iam e vinham, qual mais sinistra e, por onde passaram, infundiam terror; os próprios arbustos enfezados vergaram estarrecidos e se alguma roçava por eles logo se lhes mirrava a folhagem e morriam. Só as moscas e os átomos letais seguiam-nas em legiões e, das altas francas, as aves agoureiras saudaram com as suas vozes pressagas as serviçais lemuricas.

   A Morte fazia o seu repasto no fundo da caverna. Diante d'ela empilhava-se um acervo de cadáveres nos quais se ia cevando o monstro, quando soaram pancadas rijas à entrada, junto à lura em que jazia o Sono, poiteiro da triste residência.

   Deitado sobre papoulas dormia pesadamente e, certo, não se teria levantado se o visitante não o houvesse sacudido com violência.

— Eh! amigo, é assim que fazes o teu serviço?

     Pôs-se o Sono de pó estremunhado, esfregando os olhos mal abertos e, encarando o importuno, perguntou com enfado:

   — Que queres?

   — Venho a negócio e com pressa. Vai lá dizer à tua rainha. Avia-te.

   — Quem és?

   — Quem sou? Fita os olhos em mim e logo saberás o que perguntas.

   — Um diabo.

   — És mais esperto do que um esquilo, amiguinho. Isso mesmo: um diabo, embaixador de Satã. Vai e não te demores.

   Foi-se o Sono de vagar, bocejando. Parava com preguiça, encostava-se às paredes, a cochilar, cocando a cabeça, arrepelando a grenha, aborrecido.

   Sentou-se o diabo em um tronco de mancenilha e ficou entretido com as troças que faziam os pequeninos sonhos a um pesadelo casmurro que resmungava a um canto.

   Mal o Sono tornou, logo deitando-se no seu leito de papoulas, levantou-se o diabo:

   — Então?

   — Pode entrar, disse o porteiro, acomodando-se.

   Põe-se o diabo, não sem resmungar contra a falta de asseio e a desordem que ia notando na caverna atulhada de ossos, encharcada em sânie e tresandando de atordoar. Dando com a Morte, que se adiantara para recebê-lo, saudou-a em nome do Príncipe das Trevas.

   — Bem-vindo sejas ao meu antro, disse o trasgo oferecendo-lhe um esoabelo feito de ossos, e logo subiu ao seu trono que era uma pirâmide de crâneos.

   — Estou às tuas ordens. Fala.

   — Pois é verdade, disse o diabo relanceando a vista pela caverna. Venho aqui propor-te um negócio. É ele o seguinte: Resolveu meu amo e senhor corrigir a obra de Deus compondo uma Humanidade como convém ao mundo.

   A morte sorriu mostrando os dentes amarelos.

   — Sorris? Guarda a tua ironia para mais tarde e ouve. O corpo humano é barro, qualquer oleiro caprichoso pode fazer uma obra prima no gênero e lá no mundo há estatuários mais peritos do que o Criador do Homem.

   Hás de concordar que Eva não valia a Vênus de Milo e Adão, posto ao lado do Apolo, faria tristíssima figura. Corpos fará meu amo e senhor quantos quiser, belos ou hediondos; o que ele nunca poderá fazer é... a alma. É justamente por tal motivo que aqui venho com uma proposta. Deves ter nesta furna muitas almas!

   — Tenho.

   — Vende-mas.

   — Vendê-las!

   — Sim, impõe o teu preço.

   — Quanto me dás por elas?

   — Quanto pedires.

   — Peço-te Desespero e Medo.

   — Desespero e Medo?

   — Sim. O Desespero e o Medo fazem tanto (senão mais) como os males que andam a meu serviço. Recebo aqui diariamente grande quantidade de mortos que não trazem o selo da minha legião: ver uns do suicídio, outros do terror. Eis porque proponho dar-te as almas que quiseres a troco do Desespero e do Medo.

   — Pois seja. Terás o que pedes. Vamos lá agora vê as almas.

   Seguiram por uma galeria calçada a ossos, alumada por fogos fátuos, e foi o diabo explicando:

   — O Príncipe das Trevas, meu amo e senhor, pretende dar ao mundo uma Humanidade ativa, sem preconceitos fúteis, independente e audaz. O sentimento é um entrave embaraçoso, a honra é uma preocupação banal. Ousadia, violência, aventura, eis a vida. É preciso espremer toda a ternura do coração, substituí-la pelo egoísmo.

   A Morte parou e, mostrando as paredes lívidas, onde luziam números marcando divisões, disse:

   — É aqui o meu depósito. Temos, em primeiro lugar, almas de crianças. O diabo fez uma careta. Almas de adolescentes, almas de virgens imaculadas. Pôs-se o diabo a assobiar. Parece que não te agradam?

   — Queres franqueza? Essas coisas são magníficas para poetas líricos. Não tens outra seção?

   — Tenho várias. Sem irmos muito longe aqui mesmo ao lado está a das almas dos mártires.

   — Pulhas! rosnou, com desprezo, o comprador. São velharias sem cotação. Meu Príncipe não é colecionador de antigualhas.

   — Adiante é a das almas dos justos.

   — Hum! almas de justos... Imagino o que nelas vai de bolor. Conheço-as! São como essas mulheres que, por não acharem noivos, dedicam-se a animais: gatos, periquitos, cães... ou à maledicência. Vamos adiante. Quero almas enérgicas.

   — Perversas, queres dizer...

   — Por Belzebu! é isso! Perversas, cruéis, ativas em suma. A crueldade é uma força, como a paciência é uma covardia. Mais vale o bote traiçoeiro do tigre do que o rebaixamento do cão.

   — Pois seja como queres. Acompanha-me.

   Meteram-se por uma galeria tenebrosa onde zoava o voo dos morcegos. Chegando a um pátio sórdido viu o diabo um monte lobrego de escorias que fervilhavam como vermina. Deteve-se intrigado e, depois de olhar, perguntou:

   — Isto que é?

   — Lixo, imundície.

   — Imundície!

   — Sim; almas de hipócritas e de aduladores.

   Deu o diabo um salto:

   Hein? Como dizes? Almas de hipócritas e de aduladores?

   — Sim.

  — Mas atrás disso ando eu, minha amiga. Fico com todo o monte e peço-te que me reserves quantas d'essas aparecerem por cá. Almas de hipócritas e de aduladores... Mas não quer o meu Príncipe outra coisa. O hipócrita é de cera — amolda-se a tudo; o adulador é de aço — flexível, mas resistente: dobra-se, mas quando se apruma traz o golpe no gurae. O hipócrita é como o punhal: uma lâmina assassina e agastada em uma cruz. O adulador é o arco que, quanto mais se curva, mais força imprime à flecha que despede, enfeitada de vistosas e macias penas de lisonja. Que achado! Almas de hipócritas e de aduladores! Com elas vai o meu Príncipe criar a legião formidável que ha de senhorear o mundo. Aqui tens o teu preço: o Desespero e o Medo.

   Assim dizendo, deu o diabo à Morte um chavelho doirado; e explicou: Neste escrínio encontrarás duas ampolas de cristal; abre-as e o seu conteúdo, espalhando-se no mundo, irá infiltrando nas almas os males que desejas. E agora, amiga, entrega-me o teu lixo, a tua imundície preciosa, o teu monte de estéreo.

   E rinchavelhou afagando a pera fulgurante que era uma chama de círio invertida. Que achado! Como vai rejubilar o Príncipe das Trevas! Como vão trabalhar com interesse os oleiros do Abismo! Hipocrisia e adulação... que mais é preciso pra vencer na vida? Adeus, amiga. Reserva-me quantas dessas almas receberes.

   E, batendo com o pé, que era de bode, abriu-se o solo e por ele sumiu-se triunfante, trepado no monte d'almas que a Morte considerava mais vis que as dos assassinos, dos falsários e dos ladrões.

O TALISMÃ

   Em escusa e sórdida viela, tremedal nauseante entre arruinados casebres, na baiuca mais acaçapada e tão velha que os muros fendidos abriam-se em largas brechas por onde, ao cair da noite, saiam, aos trissos, revoas de morcegos, em companhia de escaveirada bruxa, vivia velho mouro; tido por feiticeiro por ser muito sabido em curas e profundamente versado na ciência dos augúrios.

   Os seus filtros operavam como se fossem o próprio elixir da vida, cuja fórmula os alquimistas procuravam.

   Enfermo à cuja cabeceira se sentasse, ainda que houvesse sido desenganado por todos os físicos da cidade, logo readquiria o espírito e sarava. Horóscopo que tirasse consultando os astros cumpria-se com a precisão cora que o sol faz o seu curso no céu.

   Era tão celebrado o poder do homem mágico que os cristãos, sempre acirrados contra os marrados da sua laia, gente aleivosa e má, aparceirada com o demônio, indigna do ar e da luz, temiam-no e respeitavam-no e os fidalgos de maior entono, depois do toque de correr, quando as ruas escuras ficavam a discrição dos volteiros temidos, cuidadosamente embuçados, renteando os muros eriçados de ervas, onde piavam corujas lúgubres, iam pela viela em passos ligeiros e, com o punho da espada, batiam rijamente à porta do muro desaparecendo de repelão nas trevas do corredor.

   Uns, dados a amores, iam buscar amavios; outros, achacados, iam a remédios. Ainda os havia crentes que confiavam nos grandes livros cabalísticos nos quais o mouro decifrava presságios sempre venturosos: anúncios de riquezas e honrarias, vitórias em expedições, sorte em amores, tal fosse o consultante: namorado, ambicioso ou cavaleiro.

   Um dia correu a cidade a notícia de uma grande e maravilhosa descoberta do mouro — que ele conseguira compor, com o prestígio de um signo, um talismã de ventura. Quem o possuísse, teria o que desejasse.

   Senhor de terras, vexia a sua lavoura medrar com abundância, multiplicar-se o armentio, reenxamearem-se as colmeias abandonadas, reviçarem os vageiros. Fontes, desde muito estancadas, borbotoariam aos golfões; árvores sem ceira brotariam de novo.

   Pastores descobririam minas, mesteirais achariam tesouros, guerreiros teriam os melhores despojos, enfermos ficariam sãos e só com uma volta de canto e um trêmulo nos alaúdes os namorados veriam aparecer na adufa o rosto amado, logo ouviriam ranger de quícios e um braço branco, estendendo-se na sombra, recebê-los-ia à porta guiando-os através de corredores silentes à câmara tão ardentemente desejada.

   Com tal notícia foi imenso o alvoroço entre os homens e todos afluíram à baiuca do mouro e as escancelas de veludo, as bolsas de couro despejavam moedas na banca do descobridor do talismã da ventura.

   A viela, dantes sossegada e deserta, mais silenciosa que almocovar maldito, onde nem aves cantam, encheu-se de gente; fidalgos e vilões, burgueses e campônios, todos aldrabando à porta do mouro, desaparecendo, com pressa ansiosa, na sombra fria do corredor.

   A todos o homem mágico, em cujos lábios pairava irônico sorriso, entregando o talismã da ventura, repetia as mesmas palavras:

   — Tendes na mão a chave de toda a fortuna e tudo obtereis, dentro em um ano, se não cederdes à curiosidade. No breve que vos entrego encerrei misterioso segredo. Tive a sua revelação em uma noite de Agosto, à hora em que nos vales e nos desfiladeiros os espíritos bailam à luz funérea do luar.

   Para que se realize o prodígio é necessário que conserveis o breve tal como vô-lo entrego, sem vos preocupardes com o que nele existe. Se tal cumprirdes vereis mudar-se a vossa sorte. Tereis na riquezas maiores, todos os amores; não haverá bravura que prevaleça contra vós e ainda que as pestes assolem a terra, dizimando os seus habitantes, passareis refratários a todo o mal, sem que o próprio Anjo sinistro possa alcançar-vos com o seu flagelo.

   Onde os outros virem arca e arro descobrireis ouro e gemas. A sorte está em vossas mãos. Se abrirdes, porém, o breve, o talismã imediatamente perderá toda a virtude. Assim, é preciso que observeis a condição do mistério. Se tal fizerdes, voltai dentro de um ano à casa do vosso servo, que muito se alegrará em ver-vos, ouvindo da vossa boca a confirmação do que lhe foi dito pelo gênio quando lhe comunicou os sete arcanos do talismã que levais.

   Foram-se os vários homens contentes, jurando que nunca procurariam ver o que havia nas suas nôminas, tanto, porém, que deixaram a viela, logo, em todos, começou a curiosidade a pruir: “Que será? Sete arcanos!” E apalpavam, cheiravam, viravam, reviravam entre os dedos o breve de couro. “Que haveria ali dentro?”

   Alguns afirmavam haver sentido estranho, deliciosíssimo perfume; outros garantiam ter percebido movimentos, como de animal. “É uma pedra, talvez da lua”; dizia este. “É uma esquirola de osso”; asseverava aquele. Um: — “É frio, mais frio que a neve”. Outro: —“Abrasa que nem fogo vivo”. E discutindo, com as mais desencontradas opiniões, lá iam.

   Sós, na baiuca: o mouro e a bruxa, puseram-se a contar as moedas. Ao fim, disse a mulher, que conhecia o segredo do talismã:

   — Que pensas fazer agora? É prudente que, quanto antes, passemos a lugar seguro, porque os homens, ao fim do tempo, vendo que nada obtêm do talismã, darão pelo embuste e... ai! de nós.

   Mas o mouro, que era atilado, ajuntando, uma a uma, as moedas luzentes, retorquiu com serenidade:

   — E esperas que voltem? Bem mostras que não conheces a alma humana. Nem um só aqui tomará, porque a condição que impus será a minha garantia. Dei o prazo de um ano e estou em afirmar que, antes da noite, todos os breves estarão abertos, expondo os seixos que encerram. Satisfeita a curiosidade, ficarão os homens arrependidos, mas será tarde e cumprir-se-á o que eu disse: o talismã perderá a sua virtude. Descansa — nem um só tornará.

   O homem, por curiosidade, desceria ao fundo do inferno, se lhe descobrisse o caminho, ainda que todo ele fosse assoalhado de pez ardente. Não te dê cuidado o amanhã.

   Efetivamente o prazo escoou sem que um só dos possuidores do talismã aparecesse.

O PESCADOR E AS SEREIAS

   Reunidas em conselho sobre as sirtes, onde o mar quebrava desfeito em branca e fervente espuma, comentavam as sereias a indiferença do pescador. E dizia a mais velha, uma das que cantaram a Ulisses:

   — Sem dúvida algum deus o protege. Outros mais atilados, navegadores dos mares largos, que têm visto as grandes belezas do mundo e têm gozado os seus múltiplos encantos, esquecendo o governo dos navios pelas canções com que os atraímos, aqui têm vindo naufragar. Quantas galeras jazem no fundo do pélago e naus de alto bordo e veleiros de guerra! Para que o pescador, que diariamente cruza estes mares, passe sem voltar o rosto ao nosso apelo é preciso que um poderoso deus o guie e o aconselhe contra nós. Sendo assim é melhor desistirmos de perdê-lo.

    Concordaram todas com a mais Velha e já se dispunham a afundar, esquecendo o pescador, quando a mais nova, erguendo-se das espumas, nua e deslumbrante na refulgência dos cabelos que a iluminavam, disse:

    — Sou capaz de atrair o pescador e aposto tantas pérolas quantos são os fios dos meus cabelos.

    — Envelheceremos e contá-los, se perderes; disse uma das filhas do mar.

    Foi aceita a proposta e ficou decidido que a encantadora esperasse sozinha nas sirtes, dando-se-lhe a harpa de coral mais sonora do abismo. Assim foi.

    Caía a tarde em desmaio, estrelava-se o céu pálido, o mar começava a lampejar em faulhas.

    Um barco — a vela bojada, o pescador ao leme, — aparecem roçando a vaga.

    Travou a sereia da harpa e, ao som das cordas, desferiu a voz. Alciones que esvoaçavam bateram lestas as asas largas e vieram pousar nas sirtes, as ondas calaiam o eu marulho, o mar cobriu-se de estrelas, a lua, redonda e branca como um escudo de prata, boiou nas águas. Dir-se-ia que os próprios astros haviam baixado do céu seduzidos pela voz deliciosa.

    Entanto o barco singrava com o favor do vento e o pescador, ao leme, derreado sobre os cotovelos, d'olhos perdidos, lá ia.

    Passou e rastreando tão de perto o perigo que a raareta do seu barco rolou e desfez-se nas sirtes.

    Revoltou-se a sereia e, vendo-o longe, despeitada, rebentou, frenética, as cordas da harpa rojando-a ao mar.

    Afluíram à tona todas as sereias e, rindo em galhofa, logo reclamaram o preço da aposta.

    — Tens que trabalhar! disseram.

    — Levarás toda a vida a procurar tantas pérolas quantos são os fios dos teus cabelos.

    — E talvez não bastem as pérolas todas do mar.

    Riam quando um feio tritão, emergindo das águas, coroado de limo, coberto de escamas de prata, disse:

    — Revoltai-vos contra a indiferença do pescador que não veio pelo vosso canto. Os que perecem nos abrolhos chegam trazidos pela sedução dos vossos cantares. Aquele, porém, não cairá em ciladas.

    — Será, porventura, surdo!? gracejou uma das cavaleiras da vaga.

    — Por enquanto... é como se fosse.

   Logo, lançando mão do búzio que trazia à bandoleira, encheu-o no mar até as bordas e, oferecendo-o a uma das sereias, disse:

   — Toma nas tuas pequeninas mãos algumas gotas d'agua e põe-nas aqui.

   Obedeceu a intimada, mas toda a água transbordou:

   — Nem uma gota ficou, tudo que era demais esvaiu-se. Assim como se deu com a água e o búzio, dá-se com o vosso canto, sereias, e o moço pescador. Naquele coração, cheio do amor da noiva, não cabem outros encantos. Cantai! E cantareis em vão. Haveis de vê-lo passar, como hoje passou — sentado ao leme, os olhos ao longe, vendo, através da névoa da distância, a ilha em que vive aquela que o seduz. Não desanimeis, porém; tende paciência e fiai-vos no tempo. Assim como, se deixardes este búzio exposto ao sol, em breve toda esta água que o enche terá desaparecido evaporada, podendo vós enchê-lo, porque o achareis vazio, assim também, um mês depois das bodas do pescador, cantai e vê-lo-eis dirigir o barco em rumo às sirtes.

   Com tais palavras despediu-se o tritão mergulhando de chofre.

   E as sereias ficaram trebelhando e rindo sobre as espumas vivas que o luar prateava.

ALFEU

   O rio Alfeu, príncipe das águas do Peloponeso, atravessando a Arcádia arvense e a Elida divina, lança-se no mar Jônio.

   Por vezes some da superfície do solo correndo em álveo subterrâneo, mas adiante relui escachoando, recava o leito e prossegue no curso murmuroso, ao sol, retratando o arvoredo que sobre ele pende e abeberando os rebanhos soltos nas pasturas ribeirinhas.

   Por tão pouco não o teriam celebrado em carmes, que são eternos, os poetas da antiguidade, mas a razão do seu renome é das que merecem altíssonos louvores, ao som conjunto das liras e das flautas.

   Alfeu vivia sem cuidado, entretido com o suave governo das suas águas obedientes.

   Era um nume aposto, de feição graciosa e porto esbelto.

   Os cabelos, em cachos, eram d'ouro; os olhos, de azul celeste; a tez, mais branca do que os alvos pórfiros.

   Quando, no estuar do verão, as cigarras buscavam o arvoredo nascido à beira das suas águas e, entre a folhagem, desferiam o canto, Alfeu acompanhava-as com a lira e não só os egipans dos bosques, ligeiros nos seus pés caprinos, como as ninfas mimosas e ainda pastores e zagalas corriam a ouvi-lo e em queda atitude, escondidos nas moitas, ficavam deliciados gozando o concerto airoso.

   Náiades desciam as ribanceiras e nuas, formosíssimas, entregavam-se-lhe lascivas. Ele tinha-as nos braços, recebia-lhes os beijos, sorria- lhes às lágrimas de ciúme, tanto, porém, que uma ave preludiava, de improviso, travando do instrumento, punha-se a tangê-lo acompanhando o pássaro melodioso.

   Tinham-no as deusas por indiferente e muitas apartaram-se despeitadas dos sítios que as águas de Alfeu molhavam.

    Um dia, porém — andava Flora a despertar as sementeiras — Aretusa, da Achaia, ninfa de deslumbrante formosura, trilhando as devesas da floresta, à caça, perdeu o carreiro conhecido e abalsou-se no mais denso da espessura.

    Era estio; o sol ardia em fogo. As folhas das árvores luziam crepitando e a terra queimava como o rescaldo das fogueiras.

    Ia a ninfa apartando arbustos languidos, a arquejar de fadiga e de calor quando ouviu o murmurejo d'agua. Amiudou os passos leves por sobre a alfombra agradável e, contente, achou-se à margem do rio cristalino, tão límpido que se lhe viam os seixos no fundo das areias brancas e os peixes nadando tão serenos, uns doirados, outros em espadanas de prata, que os olhos acompanhavam-nos nas evoluções ariscas, nos arremesso, nos saltos lampejantes; viam-nos um a um espalmando as barbatanas ou em cardumes, miúdos, fervilhando à volta das finas raízes ondulantes das algas e dos nenúfares.

    Aretusa desceu ao rio, mirou-se vaidosa na água que se aquietara em remanso, tão liso como um espelho polido, sentiu-lhe o frescor, primeiro com o pequenino pé, logo fugido, e rindo, despiu-se pendurando as vestes nos ramos floridos. Depois, cruzando os braços ao colo, escondendo os mimosos seios, ficou indecisa, sentindo um voluptuoso arrepio como de beijos que lhe corressem ligeiramente o corpo.

   Resoluta estendeu rijamente os braços, juntando as mãos em talhadeira e arrojou-se d'alto, mergulhando.

   Sentiu Alfeu o perfume da carne virgem e logo, sobressaltado, emergiu do seu palácio de cristal radioso e, enquanto a ninfa vogava galgou precipite o barranco e, escondendo-se entre os juncos, ficou à espreita.

   O corpo da donzela subiu a frol do rio, branco, como feito de espuma, com os cabelos espalhados sobre o colo e sobre o ventre como se o sol a houvesse acompanhado.

   Ora nadava às braçadas, perdendo-se entre as açucenas, ora afundava e os peixinhos aligeiravam-se fugindo; ou, trepando a uma pedra, balançando-se um momento, meneando com os braços e, soltando um grito, precipitava-se e lá ia, partindo as águas, tomar pé em uma ilhota ou rodopiava, trebelhava, deixando-se levar ao som da corrente.

   Alfeu, que não tirava os olhos de Aretusa, inflamou-se em paixão. Um ardor novo, nunca dantes sentido, impeliu-o para a ninfa.

   Lançou-se à água e, rápido, alcançou a hóspede formosa.

   Enlaçou-a, prendeu-a nos braços, ia beijá-la, mas a donzela escapou-se-lhe ligeira, em gritos assustados.

   Lesta, chegou à margem, foi-se ribanceira acima, e, sem pensar na nudez em que se achava, deitou a correr fugindo ao ransor ousado.

   Corria o Zéfiro mal lhe acompanhava os passos e, seguindo-a, com ânsia, lá ia o namorado e, pôs ele, em cachoes convulsos e atropeladas ondas espumantes, o rio, alagando campos e convales, circunvagando cerros, encharcando pascigos, assolando pomares.

   Entrou a ninfa em uma caverna, cujo labirinto descia pela terra a dentro; seguiu-a Alfeu e, com ele, sepultaram-se as águas fragorosas. Adiante reapareceram à luz.

   Aretusa chegara à praia, ante o mar imenso, sem uma vela, apenas com as alciones volti-vagas. Voltou-se a ninfa e viu ao longe Alfem.

   Então, intrepidamente, meteu-se ao mar. Deu-lhe a vaga no ventre, chegou-lhe ao seio, subiu-lhe a garganta, Estirou-se, pôs-se a nadar e, graças à Dictina, a casta irmã de Apolo, abordou à ilha de Ortigia, perto de Siracusa, e ali Diana, para defendê-la, tocou-a de leve.

   Metrificou-se-lhe o corpo, mudaram-se-lhe os cabelos em canas sussurrantes, os olhos tornaram-se em lírios roxos, os dentes em seixos claros o de todo o seu corpo, como do rocha marmórea, a água jorrou em fonte.

    Alfeu chegou à beira do mar Jônio. Ia a ninfa tão longe!

    — Deixá-la ir, perdê-la... não era de apaixonado. Que importava a fúria do mar roleiro? O empolar das vagas não era mais violento do que o seu desejo.

    Não se ateve ao receio e, arrojado, rompendo a levadia, abriu, no salso campo, caminho às ondas fluviais do seu cortejo. E lá foi o rio, mar fora, atrás da ninfa fugitiva.

    Debalde o marouço atropelava o temerário. Se eram abismos, por eles afundava; se eram muralhas, indômito escalava-as e lá ia e com ele as águas cursando o mar que as não domava.

    E chegaram à Ortigia, deus e vassalas munidas, e logo a ilha sossegada atroou a voz apelativa: “Aretusa! Aretusa!”.

    O bosque ecoou em som retumbante e no bosque chorava a fonte nova.

    Achou-a Alfeu e, reconhecendo na pedra o corpo da sua amada e no murmúrio a sua voz, cercou a fonte com as suas águas e ali ficaram os namorados confundindo os queixumes à sombra do arvoredo em flor. Aretusa! Aretusa!

E foi assim que o rio Alfeu abriu caminho através do mar Jônio, levando as suas ondas doces por entre os vagalhões amargos e tumultuosos.

    Sorris. Histórias do paganismo, dizes. Maior vitória que a de Alfeu pode contar quem conseguiu vencer a indiferença.

    Vencer o mar, que é isso comparado à empresa audaciosa de afrontas um coração de gelo?

Se os poetas cantaram Alfeu com tanto estro, maior som tirariam dos seus versos se soubessem a história de um coração... que tu conheces.

SACRIFÍCIO SUPREMO

   Na agreste choça, de grossos, escabrosos muros de marcenaria, levantados, pedra a pedra, pelas suas mãos débeis, colmada pela densa e florida ramagem de roseiras bravas e madressilvas, vivia, em constante e acerba penitência, a nobre dama Lucília, viúva de Fábio Lentulo que, por amizade e favor de Tibério, enriquecera no governo de farta e prospera província.

   Depois da morte do esposo, muito moça, quase menina, com um filho nos braços, encerrou-se a viúva no seu palácio, um dos mais suntuosos da Via Sagrada, e a sua liteira, que precursores negros ansiavam aos brados, e uma guarda liburnia acompanhava, nunca mais apareceu na cidade, que se agitava curiosa da beleza e do fausto da deslumbrante patrícia.

   Só depois de dezoito anos de silêncio abriram-se, de par em par, as portas do palácio à passagem airosa de Lúcio Lentulo, o filho tão amado, que o morto deixara infante ao colo da linda esposa.

   Desde que o mancebo apareceu espalhando, a mãos prodigas, as riquezas que a mãe, com economia avara, conseguira multiplicar, cercaram-no os parasitas elegantes e as mais formosas concubinas disputaram-no, atraindo-o aos seus jardins onde o recebiam, languidamente reclinadas sob velarios de púrpura, entre escravas mias que, ao som de flautas, bailavam, desfolhando rosas.

   O mancebo, que era frágil, pouco tempo resistiu à libertinagem e, uma noite, ao emborcar uma cratera em que espumava o vinho alegre da Compania, empalideceu, tombou nos braços dos amigos, golfando sangue e a orgia serenou em presença da morte.

   Lucília chorou longamente a sua desventura até que, a conselho de um dos nazarenos, que andavam a pregar a nova religião, distribuindo em largas esmolas a sua imensa e inútil fortuna, uma noite, descalça e miseravelmente vestida, partiu da cidade sem deixar vestígio do seu trânsito.

   No eremitério do monte vivia vida misérrima: as roupas caíram-lhe apodrecidas, cresceram-lhe mais bastos os cabelos louros e a sua virtude era tão pura que, quando subia à fonte, com a bilha fechava os olhos para não ver a sua imagem no espelho das águas, receando incorrer em vaidade.

   As aves amenizavam a sua solidão e as corças, noite alta, entravam docemente na choça e deitavam-se junto da solitária lambendo-lhe as mãos meigas, sempre solícitas em pensar as feridas que os espinhos abriam no corpo dos animais de Deus.

   Uma tarde, estando Lucília em oração — havia dois dias que não levava à boca alimento algum — apareceu-lhe um anjo ofertando-lhe manjares que pareciam feitos de flores, tão bem cheiravam embalsamando a floresta.

   Lucília aceitou o presente do enviado do Senhor e, de joelhos, devotamente, como se recebesse a hóstia, fartou-se d'aquela celestial delícia, sentindo-se logo refeita e tão robusta como se nunca houvesse sofrido miséria.

   Foi nessa tarde, tão cheia do favor divino, que ela sofreu o seu tormento maior. Dizendo-lhe o anjo que o Senhor recebia com prazer todas as mortificações, respondeu a solitária:

   — Ainda é pouco o que faço para a ventura que me está reservada. Espero a morte com ânsia porque só ela me levará à companhia do meu saudoso filho que, há tanto tempo, me chama do Paraíso. Deves conhecê-lo, disse Lucília ao anjo. E o anjo, baixando os olhos, murmurou:

    — Não o conheço.

    — Não estará ele no Paraíso? Lúcio Lentulo, meu filho?

    — Não está.

    — Tão meigo, tão dócil, tão afetuoso... Terá, por acaso, parado no Purgatório? E o anjo, sem levantar os olhos, fez um gesto negativo. Onde então?

    — Teu filho morreu em pecado e os que assim morrem ficam, para todo o sempre, privados da graça do Deus.

    — No inferno! Lúcio Lentulo, o meu pequenino Lúcio! Meu filho! bradou a mísera. E eu? sua mãe? Como hei de vê-lo? Como lhe poderei mitigar o sofrimento? Se fundir o coração em lágrimas, se redobrar as penitencias passando todas as noites que me restam em claro, jejuando enquanto o corpo permitir, abstendo-me do sol, arrastando-me, de joelhos, pelas pedras agudas dos caminhos, apertando, ainda mais, os nós do cilicio, pastando como os animais, expondo-me à neve, inventando suplícios nunca experimentados, não merecerei o perdão de Deus para meu filho?

   O anjo baixou os olhos e o silêncio pesou entre os dois. Por fim a penitente interrogou:

— E qual é o caminho que conduz ao inferno? — O mal: o vício e o crime.

   Fitaram-se longamente. Depois o anjo despediu-se desaparecendo nas nuvens altas. Recolhendo à choça e atirando-se ao chão, de bruços, a solitária passou a noite a pensar, sem lágrimas. De quando em quando repetia surdamente as palavras do anjo: — O mal: o vício e o crime. E no caminho da Bem-aventurança, por onde sigo, nunca o encontrarei. Ai de mim!

   Ao amanhecer, levantando-se das pedras em que dormia, na choça, descobriu, a um canto, sobre folhas secas, uma corça que amamentava o filho.

   Arremeteu de salto e, arrancando o animalzinho à ternura materna, estrangulou-o com furor.

   Saiu ao bosque e, trepando às árvores, destruía os ninhos, escorchava os troncos, arrancava os arbustos, amaldiçoava o sol e chapinhava nos regos para toldar as águas.

   Correu à fonte e, afastando os cabelos que toda a vestiam, mirou-se com deslumbramento, palpando a carne que a miséria não conseguira deformar e teve um riso de triunfo. Em torno d'ela esvoaçavam os pássaros piando, a corça balava ao longe lambendo o cadáver do filho, as árvores sangravam e os arbustos, desarraigados, enlanguesciam. Esteve um momento a contemplar sua destruição. Súbito, arrojou-se da montanha, com os longos cabelos soltos, voando ao vento, a prenderem-se nos ramos, em fios d'ouro que rutilavam ao sol.

   — Agora o vício! exclamou.

   Na planície estava acampada a decima legião de Avitus, constituída de soldados amolecidos depravados na volúpia da Ânsia. Lucília parou no alto de uma penha, a um tiro de flecha do acampamento e, com voz atroadora, bradou:

   — Lúcio, meu pequenino e sempre amado filho, parto a abrandar com as minhas lágrimas a dor imensa das tuas feridas eternas.

   E, como os rudes soldados, atraídos pela voz trágica, corressem a cercar a penha, a miseranda, abrindo largamente os braços, afastou os longos cabelos louros e, em pleno sol, soberba sobre o pedestal agreste, expôs o seu corpo esbelto, nu como o de Vênus na vaga, maravilhosamente branco, maravilhosamente belo.

A PIEDADE

   O último vestígio humano — uma choça paupérrima — ficara na orla da floresta que haviam deixado ao romper d'alva quando Ananda, que se dirigia a um palmar, à cuja sombra cantava uma fonte, enveredando por sinuosa trilha, reteve subitamente os passos e pálido, d'olhos fitos no juncal cerrado e alto, que asseivajava a paisagem, conteve a sôfrega respiração.

   Surdos frêmitos, soltos a quando e quando, anunciaram ao servo fiel do príncipe de Kapilavastu a presença de um tigre que sofria.

   Então, recuando passo a passo, sem tocar em ramo, sem pisar em folha seca para evitar o ruído, chegou à clareira em que ficara, cercado de Pombos e de borboletas, afagando uma gazela, o Mestre perfeito.

   O sol alcatifava de ouro o terreno alfombrado e pelos ramos enfestoados de parasitas os pássaros cantavam festejando o missionário meigo que atendia, com o mesmo desvelo, ao sofrimento de um homem, à dor incompreendida de um inseto ou à sede de uma raiz que as areias tórridas consumiam.

   Vendo-o Ananda tão tranquilo entre os animais que a sua caridade atraíra, calou a notícia alarmante, mas Buddha, como se adivinhasse o que, tão de improviso, o afugentara do palmar, interrogou-o:

   — Que tens, Ananda? Vens pálido, trazes nos olhos vestígios de espanto. Não foi, de certo, o bengali que te fez recuar em tamanho alvoroço, nem foi, tão pouco, a fonte que te afrontou com as suas águas para que tornes assim tão demudado. Que viste?

   — Senhor, disse Ananda — e a voz tremia-lhe — à beira da fonte, entre os juncos, está uma fera a gemer. Ia eu descendo a rampa, já o meu corpo aparecia refletido n’água, quando ouvi o lamento doloroso do animal oculto. Foi por proteção dos bodhisattvas que me pude livrar de tão pérfido encontro. Vim a correr, não tanto para escapar ao carniceiro hóspede do sítio, como para acautelar-vos contra a sua ferocidade. Que vale a vida mísera de um escravo? É a vossa que me dá cuidado, porque nela reside a esperança dos homens e dela depende a conversão do mundo.

   — E dizes que o animal geme?

   — Geme e escabuja em ânsia. Em torno os juncos abatem-se e estalam com o estortegar agoniado do grande corpo.

   Levantou-se Buddha e, sem dizer palavra, despedindo a gazela, as aves e as borboletas, tomou o caminho por onde regressara Ananda e, apesar das insinuações medrosas do servo humilde, que teimava em dissuadi-lo de tão arriscada surpresa, foi-se tranquilamente e, em passos graves, mas seguros, penetrou no palmar e logo ouviu o soturno, prolongado gemer, parecendo o ecoar de caverna profunda.

   Ananda, vendo-o seguir resoluto, tirou da cinta o punhal e, ainda que não contasse vencer, com arma tão frágil, inimigo tão poderoso, queria enfrentá-lo, dando-se-lhe por pasto, antes que ver seu príncipe e senhor ferido.

   E Buddha caminhava.

   As ervas abriram-se por si mesmas dando-lhe passagem e ele foi indo por entre as muralhas verdes, guiando-se pela voz dorida do animal.

   Ao ruído dos seus passos a fera calou-se, como à espreita, Ananda ainda insistiu.

   — Senhor, lembrai-vos da missão que tendes. Não vos deveis expor em lance tão arriscado. A felicidade de todas as criaturas depende da vossa palavra.

   — E não ouves gemer um animal, Ananda?

   — E que é a dor de um animal comparada à dor humana?

   — É a mesma dor. Tanto sofre o que fala como o que apenas acusa o sofrimento pelo gemido ou lágrima. O que vem em missão de amor não tem eleitos. Se um homem armado e enfurecido contra mim, na investida que fizer, de punho erguido e lâmina apontada ao meu coração, tropeçar e cair ferindo-se, o meu dever é pensar-lhe a ferida, levá-lo em braços ao seu lar e permanecer à sua cabeceira até que de todo sare. A piedade não é um presente entre amigos, é um amor sem condição e que não espera resposta. E, suavemente, murmurou: “A minha força é a caridade, a minha túnica é a paciência... maitri é a suprema virtude”. Ananda, só o homem elege afeições — o bodhisattva não tem preferidos. A Luz foi criada para o mundo. Ninguém diz — o meu sol.

   As águas são passageiras que percorrem a terra espalhando esmolas com as duas mãos, tanto há de fartura em uma beira de rio como em outra e as águas não perguntara o nome nem pedem os títulos d'aquele que as procura — dão-se ao príncipe e ao animal, fartam o terrão e ascendem à nuvem. O rio não volta ao moinho para exigir salário, nem regressa ao campo, no outono, a reclamar o dízimo — faz o bem e prossegue. Entre dois sóis há a noite como um esquecimento.

   Assim falando, Buddha chegou ao lugar em que a fera jazia.

   Era um monstruoso tigre negro, de pelo luzidio. Estava deitado de flanco, numa poça de sangue, com uma flecha através do corpo. A cauda flagelava o solo, vergastava os juncos e, de vez em quando, abrindo a boca desmedida, o animal deixava escapar um gemido.

   Sentindo a presença do missionário, em esforço supremo, pôs-se a fera de pé. Buddha aproximou-se apartando os juncos e, chegando-se ao beluíno, arrancou-lhe a flecha das carnes e logo o sangue estancou e ao contato da mão divina cicatrizou-se a ferida.

   O sol, entrando em ninhos pelos escassilhos das folhas, estampou-se na pele negra do animal que ficou mosqueado de ouro.

   Ananda olhava em êxtase vendo o monstro submisso rastejar humilde e grato aos pés do príncipe abnegado, lamber-lhe as mãos, fitá-lo com suave ternura nos olhos fulgurantes. E quando, livre da flecha dolorosa, ponde caminhar, Buddha acenou mostrando-lhe a, floresta e o tigre, d'um salto, deixou o juneal, partiu, aos galões, rugindo.

   Foi-se, desapareceu no palmar, manchado de sol e, longe, fremiu alegremente como agradecendo a piedade do peregrino.

   E Buddha, feliz por haver combatido um sofrimento, saiu. A estrada cheia de perfume e sonora do canto suave dos bengolis.

   Então, mostrando no longe o Himalaia, que recebia o sol agonizante nas suas neves doiradas, disse apenas:

   — Adiante!

   — Senhor, lamentou Ananda, que pena tenho de não haver quem conte este ato tão generoso da vossa misericórdia.

   — Ananda, assim como o sol ficou em manchas de ouro no corpo do animal curado, assim os atos de caridade gravam-se na memória dos deuses.

   Quem propala o que faz e alardeia os benefícios não os pratica por amor do próximo, mas por vaidade e, longe de ser virtuoso, é fátuo que se engrandece à custa do sofrimento, fazendo-se aclamar pela gratidão, A moeda da esmola deve ser como o sol — que alumia e desaparece. E dize: já viste a mão que nos dá essa moeda de ouro? Adiante, Ananda, e goza o perfume da tarde que é também uma misericórdia e contempla, com alegria, as estrelas que nascem. O que dá um mendrugo ao faminto sai logo a apregoar o seu ato e nós não sabemos quem nos dá o ar, a luz, a água, a flor e todas as maravilhas que temos por nossas. Como somos imperfeitos e mesquinhos e como é grande a vaidade!

   Os kokilas gazilavam nos ramos e as sombras quietas da noite baixavam sobre os peregrinos.

ELEGIA

   O clarão funéreo da lua dava à paisagem imóvel o aspecto lapidar de imensa cidade, toda de mármore, morta. Rígidas, hirtas: árvores laivadas d'alvo reluzira e toda a extensão que os olhos alcançavam era alvadia e quieta como esculpida em pedra.

   O ar da noite recendia aromas: e, por entre as fraudes adormecidas, faiscavam lampiros.

   Silêncio de câmara mortuária.

   O rio largo, glacial, espelhava a lua nas águas lisas, turvas em negror de luto nas proximidades das margens, sob os pendidos ranuos desolados.

   Ia eu descendo a rampa resvaladia quando ouvi rumor de vozes partindo d'um cerrado.

   Curioso do mistério — Quem, a horas tais, afrontaria o feio, à beira deserta d’aquelas águas lúgubres? — avancei em passos silenciosos.

   Evitando os ramos enredados, aproximei-me tanto quanto me foi possível e, debruçando-me à borda da ribanceira, sobre a grota de onde subia o sussurro das vozes vi, ao primeiro relanço d'olhos um grupo de corpos nus como estátuas perdidas entre a folhagem escura.

   Atentando, porém, na visão reconheci duas mulheres e jovens. Dava-lhes o luar em cheio no rosto acendendo-lhes áscuas nos olhos, pondo-lhes esplendores nos cabelos soltos, despejados em ondas por sobre os ombros até à cinta.

   A beleza d'uma reproduzia-se traço a traço nas feições da outra.

   Abraçadas conversavam com meiguice:

   — Serás amanhã onda marinha, dizia uma; e a outra suspirava. Irás por entre ribas verdejantes, ao longo de campos, através de arvoredos até a costa deserta e bravia que o mar solapa e nele entrarás como a folha que se desprende do ramo e perde-se no rebalso da floresta. O destino leva-te como o vento assopra a nuvem.

   — E o mar?

   — É imenso, não se lhe vê o fim. É como o céu.

   As suas praias são brancas, planas ou acidentadas em dunas altas, rasas ou eriçadas de rochas, beirando cidades tumultuosas ou chegadas a escarpas inhospitas, só acessíveis às aves oceânicas. As suas águas amargas não balouçam lírios, sulcam-nas pesados navios de ferro.

    As libélulas que as afloram têm asas para resistir às tormentas, são as gaivota; as suas narcejas chamam-se albatrozes. A superfície é inquieta — os temporais afrontam-na, mas o abismo é sereno. Nele acharás o silêncio e a companhia dos seres que nunca viram o sol nem se acostaram à orilha de terra em flor. Lá viverás em grutas de coral, pisando o nácar em que se geram as pérolas; acompanharás a lenta construção das ilhas por arquitetos tão pequeninos que cem d'eles viveriam num estame de flor; e andarás na claridade lívida que irradiam os corpos dos oceanides.

    — Em que tempo viveste nesse mundo merencório?

    — Não sei. Ainda cortavam a vaga naves de proas curvas que seguiam ao som dos ventos oferecendo à monção velas amplas de púrpura. Os marinheiros navegavam alumiados pelas estrelas. O mundo era velho, havia ruínas e os homens relembravam, com saudade, os encantos e a felicidade dos séculos chamados de ouro. Mas o mar é invariável como a Eternidade. Hás de achá-lo como o deixei. Um dia, inesperadamente, tomaras aonde estamos: aos rios, à sombra dos bosques. Subirás ao céu, como eu subi, regressarás à terra em chuva ou em orvalho.

   — Regressarei!

   — Tudo regressa à origem: a vida é um círculo.

   — E as águas do mar são claras e transparentes como as das fontes silvestres?

   — As águas do mar são verdes ou são azuis. Verdes, porque recebem o tributo dos bosques; azuis, porque também nelas se despejam os mananciais do céu.

   A floresta despacha-lhes tudo quanto deflui das fontes e o mar reveste a cor das balsas, como que se cobre de verdura, torna-se de esmeralda e florido de espumas, tão brancas como as açucenas! É campina sem árvore. Forra-se de azul, todo selagem, agradecido ao céu, que o nutre e as espumas são flocos de nuvens rolando por ele ao sabor do vento. Assim o mar é o espelho do céu e da terra.

   Turva-se o mar na tormenta e, como a cólera demuda, vão-se-lhe as cores suaves, enruga-se-lhe a face e toda a beleza desaparece. A fúria decompõe-no e o que antes ostentava o viço da mocidade aparenta a feição de um velho desvairado, com os cabelos brancos revoltos, a arremeter com a terra, rugindo sob o flagelo dos ventos e dos raios. Mas a bonança depressa refaz-lhe a juventude. Nasce o sol e redoura-o, reaparece nas águas o azul, lembrança do céu, ou o verde, saudade da terra.

   O mar é o símbolo do tempo, variável na aparência, que é a superfície, mas imutável na essência, que é o abismo. O dia em que se vive é mais tumultuoso do que todos os séculos decorridos. Ouve-se o inseto que esvoaça em torno de nós e das guerras antigas, das catástrofes de outrora, das convulsões do mundo, que resta? O silêncio. O que se afoga deixa apenas bolhas d'ar. O abismo é o vazio e o Tempo é um abismo mais fundo do que o oceano. E, assim como os rios alimentam o pélago, os séculos correm para o Tempo, o mar infinito da Eternidade, no qual todo o orgulho humano referve um momento e morre, como as efêmeras espumas.

   Vai, o mar reclama-te, és gota d'agua, segue o teu destino. Hás de voltar um dia à terra maternal.

   — Quando?

   — Pergunta à nuvem. A folha que morre apodrece e torna em seiva ao tronco, a ser folha? Pergunta à árvore. Hás de tornar ao bosque em chuva, em orvalho, talvez em lágrima, trazida em um coração.

   Abraçaram-se e eu vi um corpo mergulhar nas águas. Outro ficou na ribanceira, imóvel. E o rio entrou a chorar no silêncio.

   Tudo regressa, disse a náiade; só as minhas ilusões não tornam. E que bem me fariam agora no tumulto dos cuidados que me aflige! Talvez regressem em lágrimas, como afirmou a náiade que eu vi à beira rio e que era a imagem da minh’alma melancólica, junto à corrente saudosa do pranto, despedindo a última ilusão que se foi para o mar alto ser gota d’agua no oceano, perder-se na imensidade.

   Meus pobres sonhos! Que nuvem os sorverá no oceano para fazer com ele a Poesia que eu não fiz?

ROSAS, CORAÇÕES DESFEITOS

   Foi com a entrada luminosa de Hermes, ainda cheirando a silvas redolentes, porque subira da terra onde andara a vagar, que se acendeu no coração impetuoso de Zeus o desejo forte do rever a terra em flor, as águas que escachoam nas rochas, os largos praianos dos mares glaucos, os visos frondosos dos montes acima dos quais adejam as águias impotentes.

   Horas alegres bordavam a tela azul com fios d'ouro tirados do novelo do sol; outras, pálidas, d'olhos melancólicos, vestidas de negras túnicas funéreas, coroadas de mirto e papoulas, recenavam estrelas para que fulgissem na treva com luz viva e o Olimpo, nessa tarde de maravilhoso encanto, clara e suave como os olhares macios de Afrodite, rejubilava festivamente.

    A própria Hera, sempre taciturna no seu ciúme divino, cantava dobando a lã translucida das nuvens estivais.

    Eis que Zeus, de repente, se levanta, acena à águia cujo olhar fuzila e, assentando-se-lhe no dorso, instiga-a.

    Pasmam os deuses; um momento detêm-se as Horas e o animal soergue-se, arranca, abre as asas largas e arremessa-se nos ares fulgurantes.

    Desce vertiginosamente como os titãs rebeldes quando rolaram sob as catapultuosas penhas sotopostas.

    Zeus tem ânsia de rever a terra, os homens, os rebanhos; deseja avistar as águas e as verduras, as furnas sombrias e sempre gementes e as clareiras onde o sol retouça.

    Já os oceanos brilham como sóis e os lagos lampejam como estrelas, cresce o esplendor entre sombras que parecem nuvens e são serras altas e são prados longos e são vales fundos.

    A terra aparece d'uma só cor sombria, alarga-se dilatadamente em alfombra azul, lisa, sã, sem um relevo de colina, mas logo avultam os acidentes redondos, as pomas dos outeiros de fina relva; movem-se lentos rebanhos e homens. Já se acentuam as linhas, rendilham-se as frondes, ondulam os trigais dourados, aves voam cantando, sobe o fresco aroma dos feaos e das searas e o balido dos anões geme. É a terra.

   A águia fogo e os olhos claros de Zeus mal distinguem a mansão efêmera dos homens o as suas belezas transitórias que a Morte espreita cobiçosa. Em toda a parte há flores e risos: são danças cíclicas nos prados, partenias à volta dos templos, entre cedros; amores à beira d'agua. Em tudo a alegria, a alegria, ilusão da tristeza.

   Mas longe, à flor dos mares, branca e muda, uma ilha aparece.

   Toda branca e lisa é como larga lápide nos mares. A águia, guiada pelo deus, paira um momento sobre a desolada paragem de onde não sobem aromas nem rumores.

   É tudo funéreo: brancas as praias de areal sem dunas, branco o interior apagado da ilha.

   Nem arvoredo nem ervas, tudo desolação e silêncio e vultos merencórios seguindo as trilhas brancas, como lêmures cimérios, levando de raso, no lento e tristonho andar, as longas túnicas, tão alvas como o areal estéril. Zeus medita um momento e, fazendo baixar a águia sobre um roçado alvadio, salta em terra, desce à planície, torna-se invisível e espreita a gente melancólica que vai e vem, sem falar, sem sorrir, em passos morosos e surdos.   

A sua onisciência logo adivinha a causa de tão estranha tristeza e, lesto, retomando a águia, remonta. Entra no olimpo irritado. É a hora quieta em que se recolhem as púrpuras da tarde e se estendem no espaço as alcatifas da noite oculadas de estrelas.

   Atravessando impetuosamente o vestíbulo fulgurante, Zeus brada o nome de Eros.

   As brancas pombas de Afrodite, já agasalhadas no columbario, esvoaçam espavoridas ante a cólera estrondosa do acumulador de nuvens; os deuses afastam-se medrosos e, pálida e lânguida, a deusa, filha da espuma egina, temendo pelo filho, precipita-se embrulhando os pequeninos pés na fimbria da túnica diáfana, luminosa e volátil, como feita do bruma e sol, a receber o Pai, já se lhe rojando ante os joelhos, linda com o pranto, em fios, a descer-lhe dos olhos verdes, cheios de espanto e medo.

   Eros, que se adestra asseteando estrelas, ouvindo a voz tonitruante, adianta-se a correr, com a aljava a bater-lhe o dorso, o arco pendente à ilharga e, avistando o Todo Poderoso, retém os ligeiros passos. E Zeus, fitando nele os olhos flamejantes, ergue-o encolerizado sobre a tristeza da ilha que encontrara, branca e muda, dizendo:

   — Todos quantos nela vivem são como sombras que penam. As mulheres são lindas, os mancebos são fortes, e cruzam-se indiferentes. Porque os deixaste em tal abandono?

   — Senhor, é fácil reparar o crime do esquecimento. Hoje mesmo, com o favor da noite, farei o que devo.

   — E antes do raiar do dia quero ter a prova do que fizeste.

   — Tereis a prova, Senhor, antes que as estrelas murchem ao sol. E Eros baixa aladamente do olimpo.

   O galo vigilante de Ares desfere o seu primeiro canto, ainda sanem Horas tenebrosas levando bojudas urnas de orvalho, quando Eros reaparece no Olimpo e, posto que Zeus repouse adormecido, quer dar conta do seu trabalho e, ante o solo divino, fala com palavras aladas.

   — Zeus potente, dominador do Etlier... Aclara-se esplendidamente o Olimpo com a refulgência do olhar do esposo de Hera que desperta à voz do infante.

   — Que me trazes por prova do que fizeste?

   — Nada, Senhor, senão o desejo de que vos certifiqueis, com os vossos olhos, do resultado da minha empresa. Era a ilha branca e estéril e é hoje verde alfombra, colmada de formosos bosques odoríferos. Era o presídio do silêncio e nela agora o murmúrio das palavras e o sussurro dos beijos são tão perenes como o fragor das águas nas penhas geradoras. Nos seis caminhos balsâmicos não mais se cruzam figuras solitárias, senão pares abraçados e não ha moita de onde não saia, por entre o chilreio d'aves que se ameigam, palavras trêmulas de bocas de namorados. Das flechas que levei na aljava nem uma só errou o alvo, e, de extremo a extremo da ilha, fui acordando para o amor a gente merencória. O sangue gotejava na areia e as flechas por lá ficaram crescendo em floresta acolhedora e de aroma.

   Mas Zeus, sempre desconfiado, ordena a Hermes que baixe à ilha, e percorra, trazendo-lhe uma prova do êxito da missão do infante.

   E Hermes desce alipede sobre a ilha. Tudo vê e, tentando contar os pares que se sucedem nos meandros amáveis do arvoredo, descobre, a tremer na haste, que era uma flecha aculea, flor purpurina e nova para os seus olhos divinos. Demora-se a vê-la, maravilhado, e como procure lembrar-se da sua origem — ele que conhecia a origem de todas as flores — eis que ouve uma voz, a voz de Herta, a terra maternal:

   — Esta flor, cor de púrpura, de pétalas cordeais — é a rosa: nasceu das gotas de sangue que lentejaram as flechas de Eros vitorioso. Conta-lhes as pétalas e terás o numero dos corações feridos que se buscam e não se deixam nesta ilha florida, dantes areal onde nem o cardo vingava.

   E Hermes, tomando a flor, regressa ao Olimpo repetindo a Zeus as palavras de Herta e descrevendo-lhe o que vira.

   Zeus, então, afagando a imensa e espalhada barba, mais rebrilhante do que a Via Láctea, põe-se a aspirar o aroma da flor, contente por saber que deixara de existir na terra o triste degredo d'almas, onde corações moços se cruzavam com a indiferença com que duas folhas mortas descem na correnteza fria e trêmula de uma ribeira apressada.

LAVRADORES

   Encontraram-se em caminho e, como o sol abrasava, acolheram-se os dois à sombra da mesma árvore, cuja ramagem frondosa formava verde cúpula sobre a serena fonte. Velhinhos, ambos levavam ferros de lavoura e, sentando-se na alfombra, ficaram ouvindo o suave murmúrio d'agua e o chilro dos passarinhos que voavam de ramo a ramo. E disse um deles:

   — Bom vai o tempo para a sementeira. A terra está úmida e sente-se-lhe a seiva.

   O arado desliza fácil e, nos sucos que deixa, medra com vigor a semente. Vamos ter a compensação da miséria do ano passado, ano estéril de fome e de tristeza. Levo a taleiga cheia e o que vai ao meu ombro, em fardo quase insensível, voltará do campo acogulando carros.

— Que levas para semeadura? — Linho e pão. E tu? O outro sorriu sem responder. Que terras lavras?

   — Eu? terras eternas em que rebenta a flor, quer o sol seja ardente, quer as chuvas alaguem, nunca uma só das minhas sementes deixou de vir a flux. Sou um homem feliz, as minhas terras são bentas.

   — Quanto colhes no outono?

   — Tenho abegão para tal serviço. Não sei quanto produzem as sementeiras que planto. Afirmo, porém, que são sempre fartas as colheitas do meu campo. A ti falta, às vezes, o sol; outras vezes é a chuva que não vem e ora vês o talhão esturrado, ora o encontras em alagadiço. Para os meus ha sempre luz e há sempre rega: chamas de círios e fios de lágrimas. Os meus canteiros são lindos e a flor que deles sobe é a mais bela que Deus criou, nem há d'outras no Paraíso.

   — E dá fruto?

   — Sim, dá fruto.

   Nesse tempo ouviu-se o rinchar do um carro e o velho, que falava da fertilidade da terra, soergueu-se dizendo:

   — É o carro da minha herdade. São meus filhos que vão para a lavoura.

   E disse o outro:

   — Eu semeio e não me preocupo com o que fica na terra. A flor sobe e sobe tanto que é lá em cima, no céu, que exala o perfume. Deus colhe-a, extrai-lhe a essência e espalha-a pelo mundo.

   — E o fruto?

   — O fruto é o alimento melhor dos homens.

   — Melhor que o pão?

   — Melhor que o pão, porque é eterno. O trigo dá a farinha e morre; o fruto da minha sementeira não o devoram vermes, não o bicam passarinhos, as chuvas não o apodrecem, não o engelham os sóis. A flor chama-se Bondade; o fruto chama-se Exemplo.

   Olha em volta de ti e hás de ver a flor e o fruto das minhas plantações.

   O velho relanceou o olhar em torno. Mas um rumor que se aproximava levou-lhe a atenção para a estrada: Era um grupo de crianças, de branco, que passava conduzindo um pequenino esquife coberto de rosas.

   — Um enterro.

   — Enterro!

   — Sim, enterro de um anjo.

   — Ainda bem, é a minha sementeira que passa. A sombra está deliciosa e a voz dos passarinhos mais afinada que nunca, mas a obrigação reclama-me. Eu sabia que tinha hoje uma roseira a plantar, deixei a cova pronta e lá vou ao serviço.

— Uma roseira?

   — E que são crianças mortas senão plantas de flor? A roseira não dá mais que a rosa; a criança é apenas inocência. Os frutos são próprios das árvores de vida longa, são os benefícios de que gozamos nós outros: o linho tecido em pano, a farinha amassada em pão, o forno que cose a broa, a casa que nos abriga, o carro que vai ao campo, a azenha, a nora, o jugo, o ferro do arado, que é tudo isso? frutos da minha lavoura. Outros vieram depois, mais perfeitos, com a enxertia das raças, com o amanho mais cuidadoso do progresso e são as ciências que multiplicam os bens humanos. Tu és lavrador...

— E tu?

   — Coveiro, lavrador também. Meu campo chama- se Eternidade, o meu outono é a Vida. Vai-te ao trigo e ao Unho, eu vou ao enterro. O cemitério é a minha leira. Uma voz desferiu no bosque vizinho:

O amor é um bem que tortura

É o espinho d'uma flor;

Quem ama só tem ventura.

Quando sofre pelo amor.

   Olharam-se os dois velhos e o lavrador de trigo e linho perguntou:

   — Quem cantará?

   — Que importa a pessoa? é o Amor. Essa voz que nos chega penetra a terra, chega às covas, acorda a vida no seio da morte, como o calor do sol atravessa a superfície do solo e faz estalar a semente que espalhas, tirando dela o renovo que se faz árvore. O que chamamos Amor chama-se, lá em cima, Fecundidade — é o apelo eterno à Vida. Como entendes de lavouras eu entendo de cemitérios e assim como falas, de colheitas fartas, eu posso falar da Eternidade.

   E adeus, vai ao teu trigo e ao teu linho, que eu vou agasalhar na terra a roseirinha mimosa.

   Sementes e cadáveres... tudo germes. Coveiros somos ambos.

   Adeus!

GÊMEOS

   O vento gemia com angústia humana e o arvoredo, maltratado do inverno, debatia-se em convulsões de desespero, despedindo as últimas, amarelecidas folhas dos galhos que se retorciam. Cães uivavam e, a espaços, golfadas d'agua batiam nos vidros com o estrondo das despejadas cachoeiras precipitando-se arrojadamente dos altos, escarpados fraguedos.

   Não passava sombra d'homem na estrada e o estalajadeiro, achegado ao lume, esfregava as mãos grossas arrancando do peito suspiros cavernosos.

  Quem se atreveria a afrontar os caminhos com tal noite? Tão assoladas haviam ficado as estradas que a diligência estava em atraso de três dias, naturalmente porque não pudera vencer os andurais e ficara, talvez, atolada em lameiro.

   Por vezes o vento, investindo com a porta, fazia-a tremer nos gonzos, como abalada por pulso robusto de viador ansioso. O homem voltava a cabeça, esperava um momento que se repetisse o apelo, mas o vento já por longe andava e eram as árvores que lhe sofriam os embates.

   O estalajadeiro, inteiriçado de frio, deixava-se ficar encorajado como se uma esperança o prendesse àquela esfarripada cadeira em que, desde o sóbrio jantar, jazia assonorentado e combalido de tristeza, com pensamentos que lhe punham o coração em sobressalto.

   Não fizesse ele para o fisco o os serviçais impiedosos da justiça d'El-Rei, patrono do povo, entrariam cancelo a dentro e, desde a vinha que, no viço do outono, colmava a varanda alegre com a sua folhagem, por entre a qual pendiam os roxos cachos piramidais, até as figueiras do fundo do pomar e a casa, e os móveis, os pombos que arruinavam nos pombais, as abelhas que enxameavam os cortiços, os gordos cevados que refocilavam na pocilga, tudo, ai d'ele! lhe seria violentamente sequestrado para que o Rei, senhor das gentes, não ficasse sem as duas moedas que lhe eram devidas.

   O pobre suspirava e, de cada vez que o vento levantava lá fora a sua grande voz de sofrimento ou as bátegas da chuva ressoavam nos vidros, o desespero fazia-o clamar com blasfêmia contra o bom Deus que o abandonara aos esbirros, o bom Deus que, podendo amainar aquele vento e secar aquele céu, enchendo-o de lumes d'astros, mais acirrava a tormenta.

   Assim pensava o bom homem quando ouviu pancadas à porta e vozes bradando: “Abri! Abri!” Levantou-se de repelão e, de salto, achou-se junto ao postigo, Descerrou-o e logo os seus olhos descobriram, ao livor d'um relâmpago, um vulto que se atabafava, retransido, em grande capa.

   Tirou ligeiramente a tranca e, com uma lufada, que fez crescer a chama no fogão e levou da parede velha encardida gravura heroica, na qual estava figurada desigual batalha entre anjos aéreos e demônios terrestres, o vulto arrojou-se na sala lúgubre e logo, atirando a capa, mostraram-se dois jovens, lindos ambos: um, alvo e louro, d'olhos azuis, risonhos, os cabelos em anéis graciosos rolando-lhe pelos ombros de talhe feminino; outro moreno, severo, d'olhos negros e faiscantes como brasas.

   Eram tão semelhantes no todo, de proporções tão iguais que, à primeira vista, logo os davam por irmãos.

   O estalajadeiro ficou um momento imóvel, maravilhado com a beleza e o donaire dos mancebos que vinham da noite agreste com o ar tranquilo de quem chegasse, contente, de tépido luar de estio.

   — Dá-nos vinho quente adoçado a mel e serve-nos algo que trazemos fome velha, E avia-te! Que remos deitar-nos cedo porque, antes da madrugada, faça o tempo que fizer, havemos de estar em marcha para a cidade.

   O estalajadeiro não se fez repetir a recomendação. Lesto, alegre, rebuscando no velho armário, achou um quarto de anho, salpicão, queijo, nozes, ovos frescos e uma broa de milho cosida naquele dia.

   Ceia maravilhosa! O vinho era excelente e duas vezes o bom homem levou o cântaro ao torno e duas vezes os hóspedes louvaram a cepa que estilara tão saboroso néctar.

   Fartaram-se e, regalados, abeirando-se do fogo, ali ficaram juntos, aconchegados, as finas mãos estendidas para o lume que o estalajadeiro avivara com dois toros de lenha seca.

   — Boa fortuna nestes paramos? indagou o mancebo louro.

   — Ai de mim...! boa fortuna...! Estou em vésperas de perder o que tenho dos meus avós: — o lar em que nasci, que é este, cercado d'arvores generosas, plantadas pelos bons velhinhos que Deus tem na sua graça. Com este inverno quem se atreve a meter-se a caminho por estes sítios fragueiros e de tão más notícias? Só pastores por aqui aparecem, comem um naco de carne, tomam um gole de vinho a troco de uma moeda de cobre e partem. Que é isso para quem há de entrar com duas moedas de ouro para a bolsa dos cobradores que andam em visita aos casais e estalagens? Ai! de mim...!

   — Não te queixes, homem, que não ha razão para lamentos. Gemidos bastam os do vento. Somos a tua fortuna. Bendiz a tormenta que aqui nos trouxe. Por nós virão ao teu casebre príncipes e hás de ver-te tão atormentado com hóspedes noturnos, que os amaldiçoarás do teu leito quando, noite alta, ouvires bater à porta e vozes bradarem frenéticas contra a lentidão dos teus passos. Não te lamentes mais. Dá-nos vinho e prepara-nos um leito em que havemos de repousar até à madrugada.

   Voltou-se o estalajadeiro intrigado com a recomendação.

   — Um leito, dissestes?... Pois um só quereis, sendo dois?

   — Um só. Nunca nos separamos. Nascemos juntos e juntos sempre andamos, porque um sem outro seria tão impossível como haver vida em corpo privado d'alma.

   — Bem, bem. Seja como ordenais. Sendo assim ireis dormir no quarto melhor da casa, que é o que dá sobre os campos. Lindo quarto! Ali nasci eu. Antes, porém, como o regedor exige que tenhamos um livro de registro para que nele tomemos os nomes dos viandantes, peço-vos que nele assineis enquanto vou dar uma vista d'olhos no quarto, lindo quarto! onde dormireis como no Paraíso. Na primavera é um gozo — respira-se o aroma dos fenos e os rouxinóis cantam no beirai da janela até o nascer do sol. É um gozo!

   E foi-se escada acima. Pronto que foi o aposento, chegando ao patamar, o estalajadeiro falou aos mancebos:

   — Vinde! O leito espera-vos. Acendi um bom lume e o quarto está tépido como um seio.

   E os mancebos subiram abraçados: um cantando, o outro sempre taciturno.

   Desceu o bom homem e encontrando sobre a mesa duas moedas do ouro, pasmou da generosidade e radiante:

   — São príncipes, de certo, exclamou. Talvez — há tanto d'isso! — namorados. O d'olhos azuis tem ar de donzela... Que importa! Bem lhes saiba o sono. E, guardando as moedas no bolso, disse: O cobrador é que vai ficar aturdido quando eu lhe responder à arrogância com estas lindas moedas de ouro.

   Só, então, a curiosidade de saber quem eram os dois jovens, tão lindos! que lá estavam no lindo quarto, juntos no mesmo leito, fê-lo recorrer ao livro em que eles haviam deixado as assinaturas e, com espanto, leu estes dois nomes:

   — Amor.

   — Ciúme.

O FAUNO

   Nascido na Veiga, entre outeiros de relva aveludada e claros, sonoros fios d'agua, criado no meio de ovelhas brancas, em companhia de pastores e zagalas, adorando o sol de ouro puro e as estrelas rutilas de prata, fazendo canções à lua, contando queixas de amor às fontes vivas, era feliz o pastorinho.

   Só pensava em Aleina e no seu rebanho, dando-se por venturoso se a pastora lhe sorria, correndo ao templo rústico com ofertas aos deuses se ouvia balar um novo anho.

   À noitinha, em tempo de luar, deixava as folhas cheirosas do seu leito pastrano e, à porta da cabaninha, contemplando o céu, ouvia o rouxinol.

   Que lindos os seus pensamentos!

   Um dia, alongando-se no caminho, penetrou a floresta, guiado pelas borboletas, e, no recesso sombrio em que se apinhavam as árvores mais velhas, ficou ouvindo o sereno murmúrio das águas apenas nascidas.

   Gozava aquele tartareio das fontes, berços das ribeiras, quando descobriu um fauno que ia e vinha d'arvore a árvore, tocando ligeiramente as flores desabrochadas.

   Empalideceu receoso, quis esconder-se às vistas do deus silvestre, mas a figura do fauno — cornífero, capripede, veludo — fê-lo rir e, como o morador e protetor da selva não se perturbasse com a sua presença, o pastorinho adiantou-se.

   — Que fazes, fauno? perguntou.

   Voltou-se o deus e, fitando no pastor os grandes olhos profundos, respondeu:

   — Caso as flores, pastor. Sou eu quem leva recados de uma a outra corola. É verdade que a brisa e as abelhas auxiliam-me, mas sou eu quem lhes diz onde há flores púberes, flores que podem celebrar noivado. Sou eu que, à noite, pelo clarão nupcial da lua, visito os ramos sentindo o perfume! É pelo perfume que chego a conhecer a puberdade dessas donzelas cativas que nem por viverem presas às hastes em que nasceram deixam de se entender com os seus namorados, não fossem elas femininas!  

O pastorinho desatou a rir e o fauno, encostando-se a um velho e rugoso tronco, suspirou:

   — Eis! Se conhecesses, como eu, os segredos da natureza, não ririas, por certo. Dizes cá, pastorinho: queres ser sábio como um deus?

   — Sim, quero. A que preço? Dou-te a ovelha mais gorda do meu rebanho e uma taleiga nova que ainda não serviu.

   — Guarda a tua ovelha e a taleiga. Dar-te-ei toda a ciência dos deuses se me quiseres ceder as tuas ilusões. Troquemos as nossas almas: levarás, com a minha, a eternidade e a sabedoria. Eviterno e onisciente, que fortuna! pastor! Eu ficarei com as ilusões da tua e sujeito à vida efêmera que as almas humanas vivem no corpo em que transitam.

   Conhecerás todos os segredos da terra, todos os mistérios do céu; verás tão claro no futuro como no presente e a tua mocidade será perpetua como a cor azul do eliseo e a cor verde do mar. Queres?

   — Sim, quero, disse o pastor contente.

   — Vem comigo. Habito uma caverna a dois passos d'aqui e no tempo que baste a uma abelha para sugar o mel de um nectário farei a troca das almas. Levarás a riqueza e eu ficarei com as ilusões que valem menos que o fumo que sobe da lenha verde.

   Pôs-se a rir, de contente, o pastorinho e, rindo, acompanhou o fauno à caverna.

   Era uma furna sombria, merencória e humilde: parecia que ali se agasalhava o inverno. Contínua, com triste som, uma gota d'agua pingava e os passos, ainda os mais leves, retumbavam no côncavo rochoso com um soturno ressoo longo e amedrontador. E disse o fauno:

   — Senta-te, vou fazer lume.

   E, puxando folhas secas, fez fogo e, em volta da chama, sentaram-se os dois.

   Pôs-se o fauno a murmurar palavras encantadas e os olhos do pastorinho logo se fecharam, pendendo-lhe a cabeça loura e, dormindo, quedou no leito de ramos.

   Então o deus silvestre, colando a sua boca à do pastor, sorveu-lhe a alma cheia de ilusões e transmitiu-lhe, com a eternidade, o seu espírito onisciente.

   Logo despertou o pastorinho e, olhando, um momento, em torno, ergueu-se e, tristonhamente, partiu. Ficou o fauno a fitar o lume alegre, pôs-se a cantar contente e, levantando-se num pincho, entrou a bailar em redor da fogueira.

   E assim cantava o que fora imortal:

   “Estrelas são gotas de luar. Ó cântaro da lua, cheio de leite, que desastrada zagala andou contigo aos boléos para que assim derramasses tanto leite na eira?

Bem hajas, zagala — não fosses tu e não haveria estrelas. A luz do sol é sangue, a luz da lua é leite”. E cantava ainda:

   “Quão lindo é o olhar da virgem! Há mais profundeza e mistério nos olhos da mulher do que nos abismos do mar. Pode o mergulhador descer à pesca da perola, nos penetrais mais íntimos das águas... quem é capaz de descobrir o segredo dos olhos verdes, abismos de sedução onde cantam sereias?

   Um beijo é um germe, é o pólen que vai de lábio a lábio. O amor... que importa a morte?!”.

   Assim cantava o fauno e ria perseguindo, a correr, as borboletas e toda a brenha parecia rir com o alegre fauno. Mas, de vez em vez, gritos rolantes atroavam.

   — Fauno do bosque, dá-me as minhas ilusões, toma a tua alma com a eternidade, a onisciência e todo o seu poder divino. Restitui-me as ilusões que me roubaste. Conhecer toda a verdade é viver no vazio, é ver o fim de todo o Bem, o fim de todo o Amor; é jazer, vivo, num sepulcro porque o nada é a expressão da vida. E as minhas ilusões eram o azul desse vazio, o horizonte feliz desse infinito lúgubre. Dá-me as ilusões, toma a tua alma.

   E o fauno, ouvindo o pastor, abalsava-se, fugindo, a cantar, pelo bosque verde:

   “Há mais profundeza e mistério nos olhos da mulher do que nos abismos do mar”.

   E o pastorinho? Pobre pastor deserdado! E vós, que andais pelos bosques, não vos fieis em faunos.

O PERDÃO

   Judas, depois da prisão do Mestre, receando a vingança dos apóstolos, saiu apressadamente para o campo.

   Chegando à margem da torrente do Cedron, em ponto em que lhe pareceu mais fácil a travessia, colheu a túnica e saltou à primeira pedra.

   Logo as águas retiveram-se, como se as represasse comporta e, embora sempre descessem em rebelados cachões, borbulhando, espumejando com fragor que se ouvia à distância, nem uma gota molhou os pés do maldito, que, tolhido de assombro, viu-as crescerem em muralha que rutilava ao luar como o cimo do Carmelo.

   Tremendo, passou à outra margem, e tanto que pôs pé em terra, traz ele desabaram, com estrondo, as águas, recontinuando a sua corrida fluente pelas pedras, com o branco referver constante das espumas. Diante dele, silenciosamente, as ervas apartavam-se e, se sucedia a sua túnica aflorar um arbusto, logo as folhas muravam, como as da sensitiva e os galhos pendiam mortos.

   As pedras fugiam ante os seus passos; víboras assustadas evitavam-no; os próprios escorpiões, dando por ele, rapidamente sumiam-se nas luras.

   Ao luzir da alvorada ia ele, com sede, por uma campina florida e, ouvindo cantar uma fonte, entre os eloendros, demandou-a com avidez.

   Era um recanto aprazível. Alto, frondoso sicômoro espalhava os seus ramos largos assombrando as águas e, não longe, uma figueira silvestre estava coalhada de pombos que arruinavam contentes sentindo a madrugada.

   Judas inclinou-se sobre a fonte e, de joelhos na margem, tomando uma mancheia, ia-a levando à boca sedenta quando, instantaneamente, viu avermelhar-se a água, engrossar, tornar-se tépida como o sangue.

   Deixou-a cair e, insistindo, viu, com assombro, reproduzir-se o milagre.

   Era a vingança da natureza.

   Sem animo de renovar a experiência deixou-se ficar à beira d'agua e ali saiu-lhe o sol, não em luz, mas em manchas rubras — onde um raio o tocava ficava a macula como de uma ferida.

   Um passarinho pôs-se a cantar de ramo em ramo e a sua voz tinia metálica com o som de moedas caindo em lajes.

   Se o réprobo baixava os olhos à água via, no fundo, não a própria imagem refletida, mas o retrato de Jesus — era o Mestre que o contemplava sem ódio, antes com pena. Se levantava a vista para o céu toda a cena do Horto repetia-se nas nuvens que se conformavam em homens, em árvores, reconstruindo o cenário e o episódio da negregada perfídia.

   E, mais que as visões, o que lhe causava horror era a voz íntima que não calava, a voz que lhe repetia no coração todas as meigas palavras de Jesus, lembrava-lhe a sua piedade, recordava-lhe a sua doçura e a ele acusava de ignomínia.

   Como fugir a tão insistente e inevitável perseguição? Ninguém se livra da sua sombra como se não liberta da consciência.

   Não eram homens armados que o seguiam — era a sua própria alma que o condenava e eram as criações da terra que o repeliam.

   Levantou-se para fugir. O mundo era vasto. Iria às praias de onde partiam para os países longínquos os grandes barcos; tomaria um deles, passaria além e, em cidades desconhecidas, com as moedas que levava na bolsa, faria vida próspera de tranquilidade e gozo e depressa esqueceria o transe d'aquela noite, no monte.

   Lembrou-se, então, de contar o seu tesouro.

   Trinta moedas com a efigie de César. Trinta moedas!

   Correu os cordões da bolsa, despejou-a na terra e, tomando a primeira moeda, sentiu-a desfazer-se como se fosse de neve e, gota a gota, diluir-se-lhe entre os dedos. Tomou a segunda e viu-a fundir-se em sangue, ia a tomar a terceira, mas o terror conteve-o.

   Apressadamente, guardando as restantes, deixou que uma escapasse e caísse em uma cova. Logo a terra fendeu-se e houve uma crepitação como de sarmento ao fogo e um espinheiro repontou, cresceu, emaranhou-se e, com tanto viço, que o apóstolo ficou enleado por ele e, para fugir, teve de entregar a túnica em farrapos aos aguilhões agudos que lhe rasgavam as carnes.

   Já o coração batia-lhe em Sobressalto e o espírito se lhe turbava de medo.

   Sentia-se só no mundo e a sede cada vez mais intensa.

   Tornou à fonte — negaram-se-lhe as águas, não mais mudando-se em sangue, mas transformando-se em lodo fétido.

   Um fruto parecia chamá-lo de um ramo do qual pendia maduro e tão sumarento que, em torno dele, esvoaçava, zumbindo, um enxame de abelhas. Foi-se a ele, tomou-o com ânsia, mordeu-o e a boca encheu-se-lhe de cinza amarga.

   Desesperado, lançou-se fora daquele sítio e, correndo, ouvia o tinido das moedas na bolsa, lembrando-lhe a traição.

   Justamente passava à beira de uma furna de onde lhe pareceu que saíam gemidos.

   Entrou. A um raio de sol, que descia por uma brecha, viu uma mulher miserável, que jazia em velho estrame, com um pequenito ao colo, acalentando-o.

   Dando pelo réprobo não teve palavra — fitou nele os olhos e mostrou-lhe, num gesto, o filho que arquejava, sem força, sequer, para soltar um gemido.

   Judas ficou de pé, olhando aquela miséria e comoveu-se. Então, arrancando da cinta a bolsa da traição, atirou-a à desgraçada que, ao som das moedas e deslumbrada quando as viu luzindo, não conteve a alegria.

   Lançou-se ao apóstolo para beijar-lhe os pés, evitou-o o réprobo pedindo-lhe apenas uma sede d'agua.

   Foi a mulher a um canto, tomou a uma e, inclinando-a, ofereceu-a ao homem que lhe salvara o filho.

   Judas provou e, sentindo a frescura e o gosto d'agua, bebeu a largos sorvos; sofregamente; depois, saciado, sem que a mulher lhe falasse, só porque nele tinha os olhos fitos, cheios de gratidão, pôs-se a dizer, arrepelando os cabelos:

   — Sim, fui eu. Vendi-o aos sacerdotes do Sanhedrin. Flagelaram-no, crucificaram-no. Eu o vi no monte das caveiras. Aos pés da cruz Maria soluçava. Fui eu! Fui eu! Por que me olhas! Guarda o teu filho, esconde-o, esconde-o bem. Fui eu!

   Espantada e tendo-o por louco, a mísera retraiu-se no fundo da caverna, com o filho muito apertado ao colo magro.

   Judas olhava em volta, esgazeado, e vendo, a um canto, uma corda de linho, apanhou-a deitando a correr com ela como um perseguido.

   À tarde, indo a mulher à fonte com a urna ao ombro e contente por haver deixado o filho farto e dormindo em esteira nova, sobre linhos alvos, viu o corpo hirto de um homem pendente de um dos galhos da grande figueira, tendo, sobre cada ombro, um negro corvo pousado.

   Atentando nas feições decompostas do morto reconheceu o caridoso hóspede que lhe dera a bolsa de moedas.

   Então ajoelhou-se e, em oração fervorosa, pediu ao Senhor pelo infeliz.

   Ainda não havia concluído a sua prece quando as aves sinistras levantaram voo soltando um grito lúgubre e uma voz soou docemente nos ares, dizendo:

   — Deus recompensa todas as misericórdias.

   Então estalou a corda, o corpo bateu em terra e a mulher viu esvair-se do cadáver uma forma fluída e luminosa que dois anjos acolheram nos braços e com ela foram subindo, subindo e perderam-se nos ares.

TRENOS DA MADALENA

   Quando Maria Madalena apareceu entre os apóstolos, os lindos cabelos soltos, os olhos resplandecentes, rosas vivas nas faces, trêmula, com lágrimas molhando-lhe o sorriso, como duas correntes límpidas em florido campo cheio de sol, contiveram-se todos em silêncio, sentindo que a formosa apaixonada trazia novas alegres do túmulo adorado.

   Ainda que não falasse, o seu contentamento expandia-se-lhe nas feições, dava-se nos gestos, subia de toda ela como o perfume a exalar-se de uma flor.

   Cansada da corrida em que chegara, amparou-se a uma coluna e, depois de respirar, erguendo os olhos maravilhosos, disse:

   — O túmulo do meu Senhor é como um vaso, com asas lindas, de luz, que são dois anjos. Lá os vi silenciosos e, como me inclinasse sobre o abismo da morte, achei apenas o perfume do corpo embalsamado, como fica no alabastro quando se lhe despeja a essência.

   Lá está somente o resíduo funéreo: a mortalha e as ligaduras. O corpo desapareceu. Glória ao meu amor divino!

   Nem tão depressa vem a flux o grão de trigo semeado, ainda que o reguem copiosas chuvas e o aqueçam ardentes raios do sol.

   A sementeira divina rebentou ao terceiro dia e já a sua flor trescala e já o seu fruto alimenta.

   Celebremos as nossas lágrimas, mais fertilizantes que as chuvas. Celebremos a nossa Fé, mais ardente que o sol.

   O túmulo do meu Senhor é um deserto florido.

   Quando eu caminhava, coberta pelo véu da noite, como uma viúva, toda de negro, o meu coração ia alvoroçado sentindo, talvez, o milagre como as andorinhas sentem na brisa gelada os primeiros eflúvios da primavera.

   As flores falavam-me com as suas bocas cheirosas, as águas diziam-me, através do seu canto, o que minh'alma sentia.

   Cheguei. Os soldados que guardavam o sepulcro jaziam por terra, como feridos do raio e eu vi pelos caminhos mádidos as palmilhas luminosas que marcavam os passos do meu Senhor.

   E logo deixei fugir a voz da minha alegria: Ressuscitou! E, assim clamando, também despertava minh'alma, porque, ai de mim! eu vivo d’aquela vida e morreria d'aquela morte.

   Vi-o. Tomei-o, a princípio, pelo jardineiro do horto, tanto, porém, que me falou, logo lhe reconheci a voz e prostrei-me de joelhos, adorando-o.

   Se os beijos florescessem eu caminharia, de rastos, à sua frente, beijando a terra do seu trânsito para que ele só pisasse em lírios e não sentisse a poeira e as pedras ásperas dos caminhos.

   A morte transfigurou-o. Parece mais belo depois do enterro — está como as colinas ao amanhecer, quando o orvalho as refresca e todas as flores vivem e todos os passarinhos cantam.

   A morte foi para ele uma noite de sono.

   Onde o levarão os passos? O túmulo conservava-o: era a urna em que ele jazia. Lá eu poderia vê-lo e, sentada na lapide em que encontrei os anjos, ficaria de guarda ao seu sono, como a mãe que se prende junto ao berço do filho. Agora... como o poderei seguir?

   Nem consentiu que eu lhe tocasse porque já não é deste mundo.

   Puro espírito, é do céu, volta ao céu, deixa-me órfã. Sou eu que vou ficar enterrada no túmulo: morta-viva.

   Morta, porque, sem a sua companhia, serei um corpo sem alma; viva, porque sofrerei desfazendo-me em lágrimas.

   Para substituí-lo no túmulo vou despojar-me de toda a minha alegria.

   Volta ao Paraíso, regressa aos altos céus e eu ficarei como a terra sem sol e coberta de neve.

   A minha noite fria será sem fim, só a morte me trará a madrugada que abrirá o dia eterno da minha ventura.

   Porque o encontrei? Porque o ouvi? Meus olhos ficaram como duas pedras azuis nas quais se houvesse gravado a sua imagem. Meu coração é uma concha cheia da sua voz.

   Viverei eternamente a vê-lo e a ouvi-lo e, estendendo os braços, como o cego que táteis, só acharei o vazio. Ele torna aos céus.

   Ressuscitou! Estará em tudo, em toda a parte, porque é Deus, e eu serei a amante do mundo e de tudo que nele existe, por amor do meu amado.

   Espalharei meus beijos pela terra dando-os às flores e aos espinheiros, à rocha e ao rio, à gota d'agua e ao lume de sol, à árvore e à vaga, à erva do monte e ao clarão da lua, aos animais da terra e às aves do espaço, aos ventos e às tempestades, a tudo os darei porque em tudo estará o meu Senhor.

   Ai de mim! mas o seu rosto e as suas palavras, nunca mais verei nem ouvirei.

   Ressuscitou! E a sua glória é a minha soledade.

   Eu era a rosa do campo-santo que recebia a vida de uma sepultura. Revolveram-na, esvaziaram-na... Ai de mim!

   Os anjos cantam vitória, meu coração soluça. Vivo, mas tão longe! Remonta aos céus e deixa-me no mundo.

Eu era a arvorezinha nova, toda coberta de flores. Por que havia ele de abrasar-me deixando-me reduzida a cinzas? Por que não faz ele como o vento que leva a folha seca?

   Meu sol! Pudesse eu desfazer-me em pranto para que ele me sorvesse ao seu seio como faz o sol à água morta que ressuscita nas nuvens.

   Que será de mim? Eu era um espelho que só mostrava vida quando ele me aparecia. Agora reflito o fundo de um túmulo vazio onde só há escuridão.

   Ressuscitou! Ressuscitou! Vós outros mostrais alegria, vós, os seus apóstolos, porque vedes cumprida a sua doce promessa; eu choro porque o perco. Fica-me a sua religião, fica-me a sua palavra, mas foge-me o seu amor.

   Vós ides espalhar a sua doutrina; eu fico a lamentar a minha solidão. Vós o sabeis vivo, eu só o sei muito longe.

   Sois felizes... Ai de mim!

   Ide! dizei a todos que ressuscitou, que não está no túmulo. Cantai a vitória, é o vosso Mestre e eu ficarei a chorar a minha orfandade nas cavernas dos montes.

   Meu Deus! Meu Deus! meu amor...! Enches o céu e os tempos com a tua presença e com o teu nome.

   Deixaste o teu túmulo só com o perfume das essências que embalsamavam o teu corpo. Assim ficou o meu coração cheio de saudade.

   Ressuscitou! Ai de mim! ... O que ainda me consola é saber que ele está em toda a parte, em tudo: no ar, na luz, na gota d'agua, na pedra, na árvore, na flor, no pássaro, na fera, no oceano e no charco e assim, sendo piedoso, não excetuará apenas o coração de uma pobre mulher.

   Meu Deus! Jesus de Nazaré, meu amor perdido, que remontas aos céus deixando-me neste imenso vazio que é a terra, sem ti.

AS ESTAÇÕES

   O velho Cronos, estirado à beira do rio perene cujas águas, golfando límpidas e sonoras da urna abundante, correm em direção ao abismo, ora por entre arvoredo grácil, ora por vales tristes de pedregulho estéril; em férteis campinas ou em sáfaros areais, lisas, serenas, espelhadas ou atropelando-se, precipitando-se de rochas com escachoo, contemplava, sorrindo, o brinquedo das Horas, quando romperam do bosque os seus quatro filhos prediletos — a Primavera femínea e os três mancebos: Estio, Outono e Inverno.

   Vinham em disputada corrida, atroando a selva com vozerio raivoso e, mal chegaram ao sítio em que jazia o deus impassível, contiveram-se arquejando.

   E a donzela ofegante, com as faces floridas e os claros olhos resplandecendo, disse, por entre lágrimas, que lhe davam mais beleza ao rosto admirável:

   — Padre, dá-me outra sorte — funde-me nessa água, muda-me em pedra inerte, torna-me em ave, em bruma, em nuvem ou em astro, faze de mim o que quiseres, mas livra-me da companhia cruel d'estes irmãos que tanto me martirizam e humilham com doestos e ironias mais ferinos que dardos.

   E o Estio rubro, adiantando-se, com os cabelos alvos revoltados, os olhos lançando chispas, atravessou a distância que o separava de Cronos e, à sua passagem, as ervas pendiam lânguidas, secavam as nascentes dóceis, acolhiam-se palpitantes os pássaros aos ninhos. Inclinando-se ante o deus falou com palavras cálidas:

   — É melhor que a conserves a teu lado, Padre. Enquanto trabalhamos na terra para utilidade dos homens ela só cuida em garridice.

   — Vê os campos que ela atravessou, disse o Outono: só têm flores.

   E o lento e lívido Inverno acrescentou transidamente:

   — É inútil! Que valem flores!

   Cronos ouviu em silêncio, por fim, soerguendo-se em recúbito, depois de acenar às Horas para que não se detivessem, chamou a, Primavera tímida e, acolhendo-a carinhosamente, dirigiu-se ao Estio impetuoso:

   — Achas que a devo conservar em minha companhia, assim seja. Ide vós outros, fazei o que vos cabe. Mas que a vida não cesse. É preciso que haja pão e linho, frutos e novos rebanhos e o homem não lamente o destino na terra. Ide, guardá-la-ei comigo.

   E os três irmãos partiram: o Estio, o Outono e o Inverno.

   A Primavera ficou junto a Cronos sereno e, em torno d'ela, a terra rebentou em flores. As águas corriam perenes da urna — eram a imagem da Vida atraída pela Morte. As Horas bailavam cantando e sorrindo: na mão direita rosas, na sinistra a foice.

   Passaram dias.

   Súbito, uma manhã, abrumaram-se os ares, toldou-se o azul do céu de nuvens pardas, os ramos despiram-se das folhas e o Inverno, lívido e merencório, apareceu taciturno. Adiantando-se para a ribeira eterna logo se congelaram as águas.

   Instantes depois alumiou-se o céu broslando-se de púrpura, crepitaram as areias brancas, estalaram os ramos excíduos e um hálito de fogo abrasou o espaço — e o Estio apareceu ardendo. Sem ânimo de falar a Cronos quedou-se no penedio calcinando a rocha em que se assentou em silêncio.

   O Outono chegou por último.

   — A que vindes? perguntou o deus. E os três, a uma, exclamaram:

   — Padre, a terra está morta.

   — Aqueci-a, disse o Estio. Foi em vão.

   — Debalde a fecundei, disse o Outono.

   — Adormeci-a e morreu, disse o Inverno. E o Estio lamentou:

   — Não há um só novedio.

   — Não há seara, suspirou o Outono. E o Inverno concluiu:

   — Está morta.

   Cronos sorriu e, docemente, chamando a Primavera, disse-lhe:

   — Vai, filha; paira sobre a neve e funde-a com o teu hálito, acorda com as canções dos teus pássaros a terra que dorme regelada, dá-lhe a alegria da tua eterna mocidade e a graça que é o teu encanto e, quando assim houveres feito, volta.

   E foi-se a Primavera cantando.

   Logo um perfume suave encheu os ares tépidos, rebentaram renovos nos ramos desnudos, saíram dos ninhos galreando nuvens de pássaros vivazes, enxames de abelhas cruzaram-se zumbindo, desgelaram-se as águas, desanuviou-se o céu e a Primavera tornou carregada de rosas.

   — Vai agora, disse Cronos ao Estio: todas as flores já passaram da infância, estão em plena puberdade; cerca-as o cortejo nupcial dos insetos alados e as brisas que passam, enchendo-se de aroma, entoam docemente o epitalâmico amoroso. Elas esperam-te, és o noivo das corolas. Bendito seja o teu beijo doirado.

   E foi-se o Estio.

   E disse o deus ao Outono:

   — Agora tu, que és a força da seara, o amojo das espigas, o sumo dos pomos, a fibra dos linhos, o leite dos rebanhos, vai e completa a obra da fecundação com a substância, o sabor e a beleza. Que os homens te bendigam à hora da colheita e que os armentios saúdem a tua passagem com as suas vozes sonoras.

   E foi-se o Outono.

   Instantes depois disse o deus venerável:

   — Estão os paióis repletos, é hora de repouso. Agora tu, Inverno, vai, adormece a terra para que ela se refaça no sono.

   E foi-se o Inverno.

   Cumprida a missão tornaram os mancebos maravilhados do milagre, por haverem encontrado todas as facilidades nos prados e nos montes férteis da terra vasta que julgavam morta.

   — Tudo deveis àquela que tão ingratamente repelistes. Tínheis a flor por desprezível e a flor é a boca que recebe o beijo, é o ponto em que se encontram as almas: a alma que fecunda e a alma que gera.

   Sois a força, a reprodução e o repouso, nada, porém, se faz sem o amor, que é a essência da Fecundidade e a Primavera, vossa irmã e vossa precursora, é o amor que desperta, ao som do canto e enlanguesce com o aroma, a terra, noiva imortal que despe o véu branco e friíssimo e veste-se de verde e de ouro para a festa magnífica da Eternidade, que é a Vida. A Primavera é a adolescência, é a manhã suave, é o beijo, é vossa irmã, saudai-a.

   E o Estio iluminou-se, refloriu-se o Outono, mais alvo se fez o Inverno e assim os três irmãos fizeram as pazes com a linda irmã e, desde então nunca mais, por fortuna da terra e glória dos céus magníficos, houve rusga entre os quatro filhos de Cronos — a Primavera, o Estio, o Outono e o Inverno, renovadores do mundo e benfeitores do Homem.

A PEREGRINA

   Aldonso, o eremita, desde que se recolhera ao deserto, elegendo por morada a lapa mais áspera e mais fria, em terra sáfara, onde não medrava semente, todas as noites, vincava fundamente as carnes com as tiras laminadas das disciplinas e, sangrando por mil feridas, estendia-se nu na pedra gelada onde escabujava, aos urros, acordando o silêncio com gritos de arrependimento.

   Tinham-no todos os eremitas por santo e, quando passavam diante da sua furna inclinavam-se com humildade como se avistassem um santuário. E Aldonso, se percebia rumor de passos, brandia, com mais força, o tagante para que os caminheiros ouvissem os golpes e admirassem a sua devoção fervorosa.

   Acudiam peregrinos de todas as partes, para ver de perto o santo homem e beijavam os coágulos de sangue que manchavam as pedras e quando o viam, alto, embrulhado em cortiça, macilento e lívido, os cabelos longos, a barba intonsa, emaranhada de ervas, as unhas negras e retorcidas, prostravam-se em terra pedindo-lhe a benção, rogando-lhe intercedesse a Deus por eles, certos de que a oração de tão beato eremita seria atendida no céu.

   E Aldonso, no fundo tenebroso da lapa, cantava hinos ao ritmo das vergalhadas com que ia retalhando as carnes.

   Ora, na vizinhança, vivia um penitente alegre. Era homem de boa feição, meigo e de muita hospitalidade.

   Os dias passava-os na horta, semeando, podando, regando, e era um gosto ver-se-lhe a almoinha viçosa, com os talhões muito verdes e as árvores em flor ou em fruto.

   À noite, recolhendo-se, ajoelhava-se ante um crucifixo de pedra, fazia a sua oração e dormia, deitado em ramas secas que cheiravam.

  Aldonso, passando, uma tarde, pela choça e ouvindo o ermitão cantar, entrou e, chamando-o com severidade, disse-lhe:

   — Irmão, a vida que aqui levais escandaliza o eremitério. Em vez de orações cantais desde que amanhece até a hora sagrada de vésperas. Deixais a imagem pelas ervas e pelas flores, e, enquanto nossos irmãos sangram sob as disciplinas, e definham à força de abstinências, folgais e engordais porque a vossa mesa é farta e escolhida. Até afirmam — praza a Deus que haja nisto calúnia — que, certa noite, recebestes nesta cabana formosa mulher e só a despedistes na manhã seguinte. Humildemente o ermitão respondeu:

   — Não foi um caluniador quem tal vos disse, irmão. Efetivamente acolhi a mulher de que falais. Se era formosa, não sei. Era noite, chovia torrencialmente quando bateram à minha porta. Sem pedir nome, abri e, à luz da candeia, vi um vulto de mulher.

   Fiz lume para aquecê-la, dei-lhe o que tinha na uca e ofereci-lhe, para repouso, as ramas em que me deito. Quanto a mim juro-vos que passei a noite junto do crucifixo. Se foi pecado o que fiz, imponde-me a penitência e ou a cumprirei.

   — Fazei o que eu faço se quiserdes obter o perdão de Deus. E Aldonso mostrou-lhe as fundas feridas do corpo.

   Estavam os dois em tal prática quando bateram à porta. Correu o ermitão a ver quem era e pasmou de achar-se em presença de uma mulher que lhe disse:

   — Tomo à vossa hospitalidade, irmão, pedindo-vos agasalho por uma noite. É tarde, as feras uivam: nuvens negras acastelam-se.

   Hesitou o ermitão, mas os instantes pedidos da mulher venceram-no. Cruzando, então, os braços, baixando a cabeça afastou-se, deixando-a entrar.

   Irado ergueu-se impetuosamente Aldonso e, tomando o cajado que deixara a um canto, disse:

   — Ficai-vos, irmão. Não serei eu quem permaneça convosco, arriscando minh'alma em tamanha impureza!

   — Mas quereis que deixe uma pobre criatura de Deus exposta ao tempo, desamparada às feras?

   — E sabeis quem é?

   — Sei que é uma peregrina, irmão. A misericórdia não pede o nome dos que a procuram. Que direi ao Senhor, se Ele me arguir de cruel na hora da justiça, por não haver atendido aos rogos de uma infeliz?

   — Dir-lhe-ás que essa infeliz era uma impura.

   — E não foi à sombra da túnica de Cristo que se refugiou a adultera?

   — Sim, em público: não a recolheu ao seu lar.

   — Então o vosso receio é que eu sucumba à tentação da beleza?

   — Sim, irmão.

   — Nada temais — ando sempre com a consciência acordada. Os atos que pratico não são para o mundo, mas para Deus. Se é pecado ser bom... ai de mim! nunca me emendarei.

   E vendo que a mulher tremia, disse-lhe:

   — Tendes lume para aquecer-vos e ali sobre a mesa um resto de pão e alfaces; o cântaro está cheio. Comei e bebei. O leito é o mesmo em que dormistes da outra vez. E, humildemente, murmurou, cruzando os braços: Faça-se em mim segundo a vontade do Senhor. Assim como me ordena o coração, assim procedo.

   Acabava de falar quando uma claridade súbita iluminou a choça e, caindo os andrajos que mal cobriam o corpo da peregrina, alargaram-se-lhe dos ombros amplas asas resplandecentes, despejaram-se-lhe pelas espáduas bucres de cabelos louros, vestiu-a até os pés uma túnica mais fina que as névoas, brilharam seus olhos com vivo fulgor de estrelas e, caminhando para os eremitas em passos sonoros, disse a Aldonso que caíra sobre os joelhos, maravilhado:

   — A tua virtude é como o reflexo das árvores verdes nas águas límpidas — uma sombra. A tua penitência não passa de hipocrisia. Cobres-te de sangue como se vestem os príncipes de púrpura: por ostentação. Este que repreendes e condenas é um justo, votado à justiça e a Deus, não procede como tu que não te penitencias sem alarde de gritos e trazes as chagas em exposição.

   Negas agasalho à mulher com receio de ti mesmo, porque se a visses sem defesa, ao alcance da tua mão, talvez enfraquecesses e te precipitasses no crime.

   Este que me acolheu acolheria, com o mesmo carinho, um leproso

— e não receou incorrer em pecado de luxúria, porque é puro. Esta é a verdadeira piedade, o verdadeiro religioso é este. Quanto ao copioso sangue que espalhas quando te flagelas estrondosamente, não passa da terra e nela escurece em mancha e o canto meigo deste generoso eremita, canto que lhe sai d'alma, é ouvido no céu e foi por ele que vim a este ermo atroante dos teus guaiados.

   Não julgues que Deus se comove com as grandes penitências clamorosas — mais vale a seus olhos uma lágrima sincera. Cantando fez este eremita por sua alma o que não fizeste com todo o sangue derramado em tão longos anos. Deus não quer ostentações, quer sinceridade.

   Fez-se silêncio. Quando os eremitas saíram do assombro, a mulher havia desaparecido.

   Então ergueu-se Aldonso e, acabrunhado, chorando lágrimas amargas, saiu para a noite negra e o ermitão prostrou-se ante o Cristo de pedra agradecendo a visita que o anjo fizera ao seu humilde tugúrio e a suave lição de misericórdia com que confundira a vaidade.

AS FORMIGAS

   À sombra d'uma faia, no parque, enquanto o príncipe, que era um menino, corria perseguindo as borboletas, abriu o velho preceptor o seu Virgílio e esqueceu-se de tudo, enlevado na harmonia dos versos admiráveis.

   Os melros cantavam nos ramos, as libélulas esvoaçavam nos ares e ele não ouvia as vozes das aves nem dava pelos insetos: se levantava os olhos do livro era para repetir, com entusiasmo, um hexâmetro sonoro.

   Saiu, porém, o príncipe a interrompê-lo com um comentário pueril sobre as pequeninas formigas que tanto se afadigavam conduzindo uma folhinha seca; o disse:

   — Deus devia tê-las feito maiores. São tão pequeninas que cem d'elas não bastam para arrastar aquela folha que eu levanto da terra e atiro longe com um sopro.

    O preceptor, que não perdia ensejo de educar o seu imperial discípulo, aproveitando as lições e os exemplos da natureza, disse-lhe:

    — Lamenta V. A. que sejam tão pequeninas as formigas... Ah! meu príncipe, tudo é pequeno na vida: a união é que faz a grandeza. Que é a eternidade? um conjunto de minutos. Os minutos são as formigas do Tempo. São rápidos e a rapidez com que passam fá-los parecer pequeninos. São eles, entretanto, que, reunidos, formam as horas, as horas fazem os dias, os dias compõem as semanas, as semanas completam os meses, os meses perfazem os anos, e os anos, Alteza, são os elos dos séculos.

    Que é um grão de areia? terra; uma gota d'agua? oceano; uma centelha? chama; um grão de trigo? seara; uma formiguinha? Força.

    Quem dá atenção à passagem de um minuto? é uma respiração, um olhar, um sorriso, uma lágrima, um gemido; juntai, porém, muitos minutos e tereis a vida.

    Ali vai um rio a correr — as águas passam aceleradas, ninguém as olha. Que fazem elas na corrida? regam, refrescam, dessedentam, brilham, cantam e lá vão, mais ligeiras que os minutos.

   Quereis saber o valor de um minuto, disso que não sentis, como não avaliais a força da formiga? entrai do mergulho n’agua e tende-vos no fundo — todo o vosso organismo, antes que passe um minuto, estará protestando, a pedir o ar que lhe falta. Ora! o ar de um minuto, que é isso? direis. É a vida, Alteza.

   Vedes a formiguinha que vai e vem procurando migalhas na terra — se a encontra e pode carreá-la leva-a; se é superior à sua própria força, recorre à companheira que passa; outras chegam, ajuntam-se em chusma e ei-las fazendo com facilidade o trabalho que seria impossível a uma só.

   Se a formiga desanimasse nunca iria provisão ao formigueiro. Assim vós, meu Príncipe, pretendeis um conhecimento, ides ao livro que o contém e inclinais-vos sobre ele. No primeiro instante tudo vos parece obscuro; desanimais, aborreceis-vos. Se lançardes de vós o livro ficareis sempre em ignorância, mas se persistirdes, apelando para todas as forças do vosso engenho, pouco a pouco ireis removendo as dificuldades e chegareis ao caminho franco da certeza.

   Assim é em tudo na vida. O que pretende governar deve ver o trabalho da formiga, porque é um ensinamento. Não pôde o príncipe alhanar um embaraço só com o seu juízo, chama a conselho os homens de mais experiência e tino, ouve-os, delibera com eles e, juntos, facilmente arredam o que, no princípio, parecia imóvel. Tudo é proporcional na vida. Deus não fez o insuperável. O “Impossível” é uma expressão inventada pelos fracos.

   O que é para a formiga um carreto, voa com o sopro débil de uma criança; o que é para o homem empecilho as águas levam de roldão; onde não pode a força de um braço supre-a o instrumento e, se ainda o embargo se obstina, então o homem apela para o homem como a formiga reclama a companheira e, conjuntamente, afastam o pesado entrave.

   Se eu vos pudesse levar ao labirinto, que é o reino subterrâneo das formigas, veríeis a perfeita ordem que nele há, a disciplina que o compõe, a harmonia que o rege e se cá fora pudesse ser aplicada a lei que regula a sociedade dos insetos exemplares fácil vos seria governar o povo porque todos os homens dar-se-iam por felizes nos seus postos, não haveria inveja nem ambição, males que tanto malsinam as sociedades.

   Qual é a força da formiguinha? é pouca para um grão de açúcar, entretanto, a formiga pode mudar montanhas se o formigueiro se ajunta em esforço solidário.

   Que é uma gota de orvalho? um nada para o calor de um raio de sol, lançai-a ao mar, entrará na vaga concorrendo para o soçobro das maiores naus de guerra.

   Quereis ver a força da formiga, procurai-a no formigueiro, que é a união.

   Assim falou o preceptor. E, como passasse uma borboleta azul e o príncipe saísse a persegui-la, abriu, de novo, o seu Virgílio e continuou, delicadamente, a leitura interrompida.

O SINO

   Andava o santo bispo em visita pastoral percorrendo as freguesias da serra, as ermidas dos solitários, as pequeninas capelas das povoas de pastores quando, ao chegar a uma aldeia alegre e farta, com os campos viçosos cobertos de gado, os pomares carregados de frutos, os jardins em matiz redolente de flores, saiu-lhe ao encontro, na estrada, o vigário convidando-o a pernoitar no presbitério, entre jasmins, com uma fresca e pura fonte cantando ao lado.

   O santo bispo, que viajava escoteiro, como simples peregrino, aceitou o agasalho que lhe oferecia o sacerdote e, dando-lhe o braço, lá foram os dois, ambos velhinhos, já curvados, caminhando vagarosamente.

   Entrando no passal e sentindo o bom cheiro dos guisados, que vencia o dos jasmins, disse o bispo a sorrir:

   — Tendes cozinheira atenciosa, irmão, que nos manda a cancela, para receber-nos, o aroma agradarei da ceia. É um meio de fazer com que aligeiremos os passos.

   — E são horas, reverência. Estes caminhos agrestes fazem apetite e, como os casais distam léguas uns dos outros, de certo, depois do almoço da manhã, nada mais levasteia à boca e já o gado recolhe e brilham estrelas no céu de Deus.

   — Com efeito, irmão, depois do almoço em uma herdade, comi apenas alguns frutos silvestres e bebi à farta a boa água das fontes serranas; e foi só. Trago fome e honrarei a vossa mesa.

   Entraram. A casa recendia. A ceia foi servida com abundância e os dois santos, depois de renderem graças ao Senhor, amesendaram-se e foi da sopa e foi do assado e foi do vinho. Um fartão!

   Ao fim do opíparo repasto, sentando-se os dois à porta do presbitério, que o luar iluminava, gozando o perfume delicioso dos jasmins, pôs-se o bispo a falar das ovelhas d'aquele aprisco.

   — Ah! reverência, exclamou o presbítero sentido, não fosse o pecado da mentira e isto seria um cantinho do céu, um seminário de pureza, mas as mulheres — oh! as mulheres! — mentem desde que acordam até que dormem. Ninguém se pode fiar no que dizem. Já lhes tenho descrito o inferno de mil modos. Falo-lhes dos horrores dos castigos, das penas eternas, do fogo, dos espetos, dos demônios, dos dragões que rabeiam nas chamas; até eu minto, reverência, para combater a mentira, e nada. Quando vêm ao confessionário é só mentira, mentira e mais mentira.

   — E que fazeis, irmão?

   — Peço a Deus que as corrija, que as não castigue com dureza, porque, infelizmente, estou convencido de que as pobre sinhás não têm força contra o pecado vil. E é pena, reverência, porque são puras e caridosas.

   Depois de pensar um instante levantou-se o bispo, dizendo:

   — Leva-me à forca do sino, irmão. Deus há de atender às minhas orações.

   — Que ides fazer?

   — Vou benzer o sino para que soe toda a vez que uma mulher mentir na aldeia.

   — Ai de mim! reverência... Como poderei concentrar-me na leitura piedosa e dormir um momento à sesta? Isso vai ser uma matinada de enlouquecer. Enfim... seja tudo pelo amor de Deus.

   — Amém! concordou o santo bispo.

   E dirigiram-se ao adro onde se erguia a forca.

   Ajoelharam-se os dois velhinhos e, depois de ferventes preces, lançou o bispo a benção. Ainda a mão não completara o gesto e já o sino badalava, bimbalhava em repique de alarme enchendo a noite de sons.

   Acudiram, em alvoroço, os da aldeia e, quando o bispo os viu juntos, explicou-lhes a razão d'aquele vivo rebate. E, como ameaçasse as mulheres com um castigo do céu, se persistissem na mentira, todas, com lágrimas de arrependimento, juraram, de joelhos, que nunca mais mentiriam e o bispo abençoou-as. Foram-se em silêncio e os dois velhinhos, contentes, agradeceram a Deus o milagre edificante.

   Entraram. Justamente iam recolhendo, cada qual a seu leito, quando o sino começou a repicar de novo.

   — Ouvi, reverência, bradou o presbítero. E o bispo:

   — A esta hora! Mas a quem mentirão elas?

   — A quem? Aos maridos, reverência: aos maridos. Lá estão todas a mentir, as infelizes.

   Súbito calou-se o sino. Ficou o bispo pensativo; por fim, falou, tranquilizando o sacerdote, que tanto receava pelas almas dos seus fieis:

   — Não vos preocupeis, irmão; tanto há de o sino bater que elas se hão de corrigir.

   — Deus atenda às palavras de vossa reverência. E deitaram-se.

   Cedo — saiam os rebanhos — despediu-se o bispo para prosseguir na sua viagem devota. Ainda havia estrelas no céu e luz de luar nos campos. Passavam junto da forca, no adro, quando o sino começou a badalar com fúria.

   — Pois já! exclamou o prelado.

   — Estão acordando, reverência, e isto agora vai pelo dia adiante até a hora do sono.

   — Hão de corrigir-se, afirmou convicto o santo bispo.

   — Assim queira o Senhor! murmurou o vigário.

   Um mês depois, regressando o bispo, ao chegar ao caminho que levava ao presbitério — era a hora melancólica de vésperas — deteve-se encantado com o suave murmúrio que faziam as águas rolando sobre seixos brancos, e, como avistasse, além das árvores, a ermida, lembrou-se do sino e murmurou satisfeito:

   — Bem dizia eu que se haviam de corrigir. O vigário deve estar contente e tranquilo com a sorte das suas ovelhas. A perseverança é tudo. Eu confiava, com razão, no rebate do sino!

   Mal o avistou, o vigário precipitou-se ao seu encontro zumbrido em reverências e, como se ajoelhasse, tiniram moedas na esportula que levava ao braço.

   — Felicito-vos pela riqueza, irmão, disse o bispo, a sorrir; e o vigário, compreendendo a alusão, fez um gesto de desalento e, estendendo o braço para o lado da ermida, mostrou a forca, dizendo:

   — Ando a pedir esmolas pra comprar novo sino.

   — Novo sino! exclamou pasmado o bispo. E o outro?

   — O outro?! O outro durou dois dias — e durou muito —, afirmo a vossa reverência, porque nesse tempo não cessou de bater um só minuto e parecia tangido por demônios. Um desespero! Por fim rebentou, fez-se em cacos. E quer vossa reverência o meu conselho? Acho melhor não dar ao novo a virtude do antigo, senão ficarei sem sino para chamar à missa e para anunciar o Senhor quando sair com o vigário.

   — Pois seja assim. E riu-se o bispo.

   — Eu só tenho pena das pobres almas! suspirou o vigário.

   — Ora, irmão... deixai-as! Mentiras de mulheres... o Senhor não as toma a sério. Deixai-as, deixai-as! E vamos ao que agora importa: Tendes ainda a mesma cozinheira?

— Sim, reverência, a mesma.

— Louvado seja o Senhor!

   E caminharam, por entre as sebes floridas, para o presbitério hospitaleiro.

A ESTRELA DE BUDDHA

   Espalhara-se em toda a Ásia, desde as ribeiras do mar salgado até às neves transparentes das montanhas altas, a palavra inspirada de Buddha. Quem a levara? os bodhisattvas que erram espiritualmente nos ares deixando cair nas almas a esperança consoladora.

   Todos os homens, do príncipe mais poderoso ao poleá mais vil, sabiam da promessa que o Edificador fizera e, com ânsia, o esperavam para acumular de presentes, fazendo jus ao prêmio que ele anunciara por intermédio dos gênios:

   “Precedido por uma estrela maravilhosa, que brilhará em pleno dia, Buddha entrará nas povoas nas cidades sob a figura modesta de um mendigo. Baterá a todas as portas. Aquele que o socorra na sua miséria de expiação verá a sua esmola multiplicar-se por milhares de milhões e eternizar-se estampada no céu, em memória da sua caridade e ainda gozará em vida a graça suave da misericórdia dos deuses”.

   Príncipes dominadores d'homens, sacerdotes, guerreiros, ricos proprietários, rendeiros que cultivavam geiras fertilíssimas, miseráveis que habitavam cabanas de adobe, todos puseram de parte o que possuíam de mais precioso para oferecer ao divino mendicante.

   Mas Buddha, que há nos corações, quando os espíritos entravam no eremitério e descreviam os grandes preparativos com que ele era esperado nas cidades e nos vilarejos, suspirava com desconsolação.

   — Senhor, disse-lhe, uma tarde, Ananda, seu servo: parece que vos não comove o procedimento dos homens, porque recebeis com tristeza as novas que vos trazem os gênios.

   — Ananda, respondeu o Mestre, despe a túnica de linho, cinge os rins com um sendal de esparto, põe à cabeça um velho turbante, toma um cajado e vai às cidades ricas e às aldeias humildes. Entra nos paços e pede, implora no vestíbulo dos templos, chora na eira dos lavradores, soluça e geme no limiar das cabanas e verás que não é a caridade que agita os corações, mas o interesse. Para comover os homens far-te-ei um mártir: as tuas carnes abrir-se-ão em feridas, a febre queimar-te-á o sangue, ficarás como um vi-me retorcido e a tua miséria será tamanha que os próprios animais das brenhas virão lamber-te as feridas. Vai e conhece os homens. Disse e, à última luz da tarde, abençoou e despediu o servo.

    Foi-se Ananda e, assim como lhe dissera o Mestre, assim se cumpriu. Logo ao deixar o eremitério toda a robustez sadia abandonou-o. Abriram-se-lhe em todo o corpo feridas sangrentas, encheram-se-lhe os olhos de sânie, entrevaram-se-lhe os membros e paralítico, mais retorcido do que uma velha cepa, caminho a, quase de rastos, gemendo e deixando ao longo das estradas largas manchas de sangue denegrido.

    À notícia do seu aparecimento era um alvoroço tumultuoso: os príncipes juntavam as suas dádivas, que valiam províncias, os lavradores faziam sair os seus carros cheios de viveres que alimentariam cidades.

    Subiam às torres os anunciadores a ver se descobriam a estrela de Buddha, mas como vissem apenas os astros conhecidos, desciam desenganados: “Não é o profeta. Não é” E os príncipes, os sacerdotes, os guerreiros, os proprietários os poleás repeliam, com asco, o desgraçado, mandavam escravos ameaçá-lo, açulavam cães contra ele e lá ia o mísero evitando as pedras com que o escorraçavam.

   E assim correu toda a imensa Ásia, roendo raízes amargas, bebendo nas ribeiras, dormindo em covas de feras, ferindo-se nas arestas do penedio e nos espinhos das ervas venenosas.

   Uma tarde, ao cair do sol, viu Ananda um colmado, mas tão exíguo, tão raso que mais parecia formigueiro, dos que avultam nas terras safaras.

   Um novelo de fumo subia-lhe do ápice; em torno cresciam cardos entre as pedras.

   A fome fê-lo avançar gemendo e, a dois passos da paupérrima guarida, implorou agasalho. Levantou-se uma esteira que defendia fragilmente a entrada e uma mulher apareceu, curvando-se, e, ao dar com o desventurado, teve tão grande pena de o ver sangrando, que desceu a recebê-lo e, quase em braços, o recolheu ao seu tugúrio, onde mal cabiam a esteira em que dormia o seu pequenino, uma arca e o lume alegre e recendente de folhas, que alumiava e aquecia o interior.

   Examinando-o e vendo-o chagado, tomou a boa mulher um pouco de balsamo e aplicou-o delicadamente sobre as feridas dando alívio imediato ao enfermo e, como o mísero tiritasse, fê-lo abeirar-se do lume.

   Mas o infeliz, que não comia desde a véspera, queixou-se de fome. Ela então suspirou:

   — Ai de mim! Não tenho migalha. O meu jantar foi uma tâmara verde. Que vos hei de dar? Relanceou o olhar em torno, chegou-se devagarinho à esteira em que dormia o filho, viu-o sossegado. Então ajoelhou-se, afastou os andrajos do colo, fez saltar um dos peitos túmidos de leite e, chegando-o à boca faminta do mendigo, disse com simplicidade: É tudo quanto vos posso oferecer.

   E Ananda sorveu a goles sôfregos aquele licor de misericórdia, e, saciado, abençoou-a:

   — Que Buddha realize em ti a promessa da sua bondade.

   — Buddha! exclamou a mulher. De quem falais?

   — Não sabeis? Pois é possível que haja na terra alguém que ignore o nome do Edificador da Verdade!

   — Quem é? perguntou a mulher ingenuamente.

   Revoltou-se Ananda com tão criminosa ignorância e já se levantava para deixar aquele covil impuro quando, num halo de estrelas, o próprio Buddha lhe apareceu, sorrindo: — Aí tens, Ananda. Vieste encontrar a caridade onde ainda não chegara o meu nome. Não a achaste nos paços, nos templos, nas granjas dos ricos nem nas cabanas dos que me adoram, mas no tugúrio da criatura simples, onde foste acolhido, agasalhado, aliviado e alimentado com o leite dos seus peitos maternos.

    Que esperava ela quando te recebeu? o prêmio da minha promessa? não, porque nem do meu nome tinha conhecimento. Não foi para me ser agradável nem por interesse de recompensa que praticou o bem, mas por amor, por piedade, porque é boa d'alma. Esta é a minha preferida e nela se há de cumprir a promessa que fiz.

    — Detende-vos, senhor! Não deis recompensa a quem nem sequer, o vosso nome sabe.

    — E honra-me. Vale mais a meus olhos com a sua ignorância do que todos os crentes, porque fez mais pela minha doutrina do que fizeram os príncipes poderosos, os sacerdotes, os guerreiros, os proprietários e os pobres que vivem a apregoar devoção com interesse nas minhas graças. Esta sim, esta é a Caridade desinteressada.

    A estrela de Buddha eras tu, Ananda, tu que representavas a pobreza e que precedias a minha recompensa. Os ambiciosos procuravam no céu o que andava de rastos na terra, buscavam o esplendor e não viam o sofrimento. A minha estrela eras tu.

   Disse e saindo — a noite enegrecia o campo e o deserto — abençoou as terras tornando-as férteis e logo houve aroma de flores, murmúrios d'agua e vozes de gados. Levantando, então, as mãos ao céu, implorou:

   — Deuses, realizai a promessa por mim feita no eremitério. Com leite dos seus peitos saciou a mulher a fome do meu discípulo, que as gotas do generoso alimento sejam multiplicadas por milhares de milhões para memória da caridade, sempre grata aos espíritos eliseos.

   E logo, através da noite, por entre as estrelas, desdobrou-se, estendeu-se no céu, com uma surdina harmoniosa, a mancha rutila e diáfana da Via Láctea.

O TRIGO

   Por todo o vasto Éden espalhou-se, maravilhado e risonho, o olhar do primeiro homem.

   Viu as florestas frondosas, em cujas franças rendilhadas esgarçava-se o nevoeiro da manhã; viu as campinas alegres pelas quais numerosos rebanhos se apraziam; viu os montes de encostas de veludo; viu os rios claros, largos, retorcidos em meandros, discorrendo por entre margens de ervaçais floridos e acenoso arvoredo; viu as fontes borbulhando em bosques aceitosos.

   Animais de várias espécies cruzavam-se pelos caminhos — leões de juba altiva, elefantes monstruosos, antílopes e corças, leopardos e gazelas e aves de plumagem branca onde penas variegadas junto a ribeiras tranquilas, vogando em insulas de flores, pousadas em ramos ou atravessando os ares, alegrando com o seu concerto o silêncio grandioso.

   Os frutos ofertavam-se nos galhos, as flores desfaziam-se das pétalas recamando a alfombra e esparzindo o aroma pelos ares.

   O homem, ainda incerto, ia e vinha, ora parando à beira das águas que o refletira, ora chegando à ourela dos bosques, saindo às várzeas, mudo, em êxtase contemplativo.

   Deus, que de longe o assistia com o seu olhar, achava-o perfeito, airoso e forte, digno de ser o senhor do mundo e de todas as criaturas.

   O sol ardia estivo e, de toda a terra exuberante, exalava-se um hausto cálido, respiração abrasada que amolecia e adormentava.

   As folhagens encolhiam-se, murchando; as flores pendiam lânguidas nos caules; os animais refugiavam-se nos bosques ou penetravam as furnas tenebrosas; as próprias águas desciam lentas, com preguiça, sob a irradiação cáustica da luz que refulgia tremulamente no azul diáfano.

   Deus errou em passos lentos pelas silenciosas veredas e toda a pedra que os seus pés tocavam fazia-se luminosa, com rebrilhos faiscantes e cores admiráveis. Era aqui um seixo que se ensanguentava em rubi, ali um calhão esverdeando-se em esmeralda, outro tomava colorido flavo ou roxo e, mirificamente, iam-se todos transformando e adquirindo cor, desde o tom lácteo da opala até o esplendor cerúleo da ametista; desde o límpido fulgir do diamante ao lampejo solar dos prazos amarelos.

   As areias faziam-se de ouro, rutilando, como haviam ficado no leito do córrego em que o Senhor, depois de haver plasmado o homem com o barro sanguíneo, lavou e refrescou as mãos benéficas.

   Foi-se o Criador encaminhando a um campo que ondulava e sussurrava à aragem e que era um trigal.

   Nele entrando, sem que as pombas e as calhandras se assustassem, a frescura convidou-o ao repouso.

   Deitou-se e os trigos fecharam-se suavemente formando ninho aromai e sombrio onde o sono foi agradável.

   Já as roxas nuvens anunciavam o crepúsculo quando, ao suave prelúdio dos rouxinóis, abriram-se os olhos divinos. Deus, que gozara a delícia do sono, ergueu-se. Então, mansamente, uma voz meiga elevou-se no campo louro:

   — Senhor, que vos não pareça de vaidoso a minha requesta, não é por orgulho que vos falo, senão porque me sinto por demais miserando na grandeza da vossa criação. Fizestes a árvore sobranceira dando-lhe o tronco, dando-lhe os ramos, vestindo-a de folhas, cobrindo-a de flores e ainda a carregais de frutos; as suas frondes altas topetam com as nuvens. Aos que não destes grandeza e força ornastes com a graça mimosa da flor; só eu, pobre de mim! fui esquecido por vós. Quando vos vi chegar para mim tive vexame de receber-vos, tão pobre sou! trigo mísero.

   Era o trigo que assim falava.

   Parou o Senhor a escutá-lo e, compadecido das suas palavras, estendeu a mão abençoando-o:

   — Agasalhaste o meu sono com a pobreza, trigo tenro e frágil, deste-me generoso abrigo e resguardaste-me do sol. Não fique memória na terra de uma ingratidão d'Aquele que mais a detesta e, para que o exemplo sirva e aproveite, abençoo-te e amercêo-te com a força e com a Graça.

   Fraco, darás o alimento essencial; mísero, encerrarás em ti o mistério divino. Serás o pão e serás a hóstia e assim, com a tua fraqueza, suplantarás a árvore mais vigorosa e com a tua humildade serás maior que o sol.

   No teu Seio desabrocharão as papoulas e, dentro em pouco, a flor virá anunciar-te a espiga e a espiga dará a farinha branca, que será força nos homens e sacrário da minha essência. Assim Deus, engrandecendo-os, responde à esmola dos pequeninos.

   Disse e, contente, mais com o que fizera ao trigo do que com a criação de todo o universo maravilhoso, ao clarear da lua, quando os rouxinóis cantavam, remontou ao céu entre anjos que foram, em coros, pelos ares claros, apregoando a sua onipotência e a sua misericórdia.

AVENTURA DAS ÁGUIAS

A Ex.ma Sra. D. Amália Bittencourt:

   Ao som das águas descia ondulando o camalote de aningas e, deitada entre flores, sobre macios flocos de algodão virgem, uma criança dormia.

   Morena, lisos cabelos negros, tão linda que as iaras vinham à tona do rio e, nadando em torno do berço flutuante, contemplavam-na maravilhadas.

   Uma águia potente, que rondava o espaço, lançando os olhos d'alto, avistou o estranho berço e nele descobriu a passageira. Colheu as asas e, deixando-se cair das nuvens em revoluteada espiral, como se rolasse ferida de morte, soltou um grito que repercutiu na vastidão.

   Logo as iaras mergulharam e o vulturino, abrindo subitamente as asas poderosas, librou-se, pairou sobre as aningas, o olhar agudo fito na criança que dormia.

   Pôs-se a esvoaçar em tomo do camalote e, compadecida da inocente que, com mais algumas horas, descendo ao sabor das águas tributarias, perder-se-ia no mar, remontou aligera e, no espaço, desferiu a voz atroadora que retumbou longa, estrondosamente e logo, de vários pontos, com fragor desabrido, surgiram águias e, à voz da que primeiro baixara, que era a rainha, cercaram o florido esquife, hábil e destramente entreteceram as folhas, enredaram ligeiras as úmidas raízes, fazendo do camalote uma rede intrincada e tomando-o, cada qual, por uma parte, ergueram-no e foram-no levando pelos ares fora em direção à cumeada azul de uma serra escarpada.

   Pousando serenas agasalharam em uma gruta a criança sempre adormecida. Então, reunindo a sua grei alada, disse soberanamente a rainha das águias:

Que adotava a pequenita, exigindo das súbditas robustas o juramento de que a protegeriam até que ela tivesse forças de viver sobre si mesma podendo, caso quisesse, regressar à planície.

   E as águias juraram pelo sol.

   Desde logo começou a solícita vigilância. Pôs-se, cada qual, em maior atividade para atender à pupila.

   Uma desceu às pasturas, arrebatou nas garras uma ovelha nédia, levando-a para a gruta para que amamentasse a criança; outra encarregou-se de recolher achegas; folhas de aroma e frouxeis de paina para forrar-lhe o leito.

   Ao amanhecer era ama estrepitosa ruflalhada em volta da moradia selvagem: eram as águias que espanavam com as asas o circuito da caverna e, constantemente, alerta, rondas circulavam nas imediações devassando as grotas e as veredas, os alcantis e os vales e ai! da fera que ousasse chegar a um tiro d'arco — saiam-lhe ao encontro, em furente investida, as formidáveis sentinelas e a bico e garras espostejavam-na.

   Sob tal proteção cresceu, linda, no homizio alpestre, a pequenita salva das águas. Amavam-na as aves régias e ela correspondia com amor que se manifestava em cuidados e carinhos.

   Às vezes, à tarde, ao vibrar de um grito doloroso, a virgem precipitava-se da gruta em comovido alvoroço para acolher uma águia ferida. Quase a recebia nos braços frágeis e com que pressa e ternura a aliviava da flecha que lhe atravessara o corpo e era, a bem dizer, com lágrimas que lhe curava a ferida.

   Velava como enfermeira e, quando o animal convalescente ia ganhando forças, com que alegria o acorçoava nos ensaios de voo Via-o lançar-se, ainda fraco, de um rochedo a outro, arrojar-se a uma volta larga, abrir as asas por fim em toda a envergadura e desaparecer nos ares luminosos.

    À volta, eram frutos e flores, caça, tudo quanto de mais belo e de mais saboroso possuíam as veigas e as florestas.

    Uma manhã a rainha das águias, que só pensava na felicidade da sua pupila, reuniu a legião voadora em torno do penhasco que lhe servia de trono, propondo uma ascensão ao sol.

    — Iremos juntas, disse, unidas para que as mais fortes possam prestar auxílio às mais fracas. A viagem é longa e arriscada, mas o sol deve ser lindo e de lá traremos tantas riquezas para a nossa filha que todos os tesouros dos reis da terra serão miséria comparados aos seus haveres.

    As águias aplaudiram estrondosamente; mas a virgem, tanto que soube do plano aventuroso, opôs-se com as suas lágrimas mais meigas.

    — As nossas asas são fortes, nada nos acontecerá; disse a rainha das águias.

    — Ai de mim! Mas como poderei viver sozinha nesta solidão? As feras, logo que souberem da vossa partida, virão profanar o meu asilo e quem me defenderá dos jaguares carniceiros?

    Disse, então, a rainha das águias:

    — Não temas. Para que as feras não se atrevam a chegar até aqui basta que cada uma de nós deixe uma pena das asas naquele tronco seco que fica à beira do abismo; e viverás tranquila como se contigo estivéssemos.

   — E se não voltardes? Se vos perderdes ou sucumbirdes nessas alturas ardentes onde vos leva a audácia, como poderei saber?

   — As nossas penas dirão. Enquanto estiverem hirtas, a prumo, saberás que estamos vivas, que vamos escalando as nuvens d'ouro, prosseguindo na viagem em demanda do sol; se as vires, porém, pendidas, dobrando-se sobre o tronco, chora-nos porque perecemos. E verás o tronco seco subir, esguio e esbelto como uma coluna, para que as feras, avistando, de longe, a nossa plumagem, não se animem a invadir os domínios d'aquelas que afrontam o sol.

   Assim falou a rainha das águias e, arrancando uma pena das asas, cravou-a no tronco seco. O mesmo fizeram as companheiras e, com um grasnido triunfante, alaram-se tumultuosamente subindo em nuvem negra.

   Estenderam-se em fila formando uma escada aérea, espalharam-se a granel, juntaram-se de novo diminuindo, esvaecendo até que não fizeram mais que um ponto no espaço. Súbito desapareceram.

   A virgem passou a noite no limiar da caverna, chorando.

   Mal acendeu-se a manhã correu à beira do abismo a examinar o tronco seco — lá estavam as penas birtas, a prumo, como flechas cravadas. Bateu as mãos contente e foram-se-lhe os olhos para o céu radioso como se ainda pudessem descobrir as águias que voavam em direção ao sol. “Já devem estar perto. Como são felizes!”.

   Três dias seguidos, mal os pássaros galreavam anunciando a luz d'alva, corria a ver as penas e achava-as perfeitas. “Ainda vivem. Lá vão!”.

   Na quarta manhã, porém, achou uma das penas curvada e logo se lhe arrasaram os olhos de água. Recolheu-se à caverna muda e triste pensando na infeliz que morrera e passou a noite em claro, a tiritar de medo, ouvindo as vozes roucas dos jaguares errantes.

   Ao amanhecer, ai dela! depararam-se-lhe todas as outras penas dobradas e, entre elas, como um sinal de morte, uma flecha fincada. E o tronco seco subia, liso e esbelto como uma coluna, passava as franças das árvores mais altas, como para mostrar às feias as penas das águias defendendo assim o refúgio da virgem solitária.

   Mas a mísera, compreendendo, por aquele prodígio que as suas protetoras haviam perecido, sentou-se no limiar da caverna e, depois de três dias e três noites de pranto continuado, adormeceu na morte... talvez para juntar-se às águias.

   Hirto, a prumo, o tronco altivo, balouçando ao vento a sua coma maravilhosa, mantinha as feras a distância. E assim fez-se a palmeira, a árvore de penas, que lembra, a quem a vê, a tristeza mortal da virgem solitária e a aventura das águias que remontaram ao sol.