Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

GOMES LEAL

 

 

 

 

A

MORTE DO ATLETA
 
 
 
 
 
 

PORTO

TYP. DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA

Rua da Cancella Velha, 62

1883

A

ADOLFO COELHO

A MORTE DO ATLETA

Ó heróis! ó heróis! atletas estrangeiros! viajantes que andais à busca de uma flor misteriosa e ideal, enérgicos mineiros, sublimes corações que só sonhais de amor, vós talvez morrereis da morte dos guerreiros um dia, ao pôr do sol, como este gladiador.

Vós talvez morrereis longe da pátria um dia, longe do amigo céu que vistes à nascença, longe do parreiral, da árvore sombria, longe dos laranjais sob que se ama e pensa, sob uma rocha nua, ou numa praia fria, longe do vosso deus, longe da vossa crença.

E então erguendo as mãos, como num sonho ardente, como um vencido, e olhando o Egoísmo, a Ingratidão, sentindo-vos morrer, inevitavelmente, lembrando a vossa aldeia, a infância, a multidão, talvez vos confesseis, amarguradamente, que não achastes nunca, oh! nunca, um coração!

Feliz inda contudo o espírito-poeta! que neste desabar dum mundo egoísta e mole, tendo perdido o Amor, a pérola secreta, os astros dos seu céu, e um peito que o console, poder inda expirar, assim como um atleta, — aos pés do seu Ideal, voltado para o sol.

Era uma vez um rijo e enérgico atleta, forte como os heróis, frio como as espadas. Ninguém em Roma tinha a barba assim tão preta, músculos mais viris, pernas mais bem talhadas. Ninguém tinha esse olhar firme como a lanceta, estranho como a luz das pedras lapidadas.

As matronas fiéis e as belas virgens brancas sentiam perturbar as suas noites puras, recordando o seu talho, o busto, as fortes ancas, seu perfil excedendo as gregas esculturas, e os seus braços viris, fortes como alavancas, belos para apertar a linha das cinturas.

Ninguém amava o sol e as noites rutilantes, a erva, o mar, a luz, como este saltimbanco! Ninguém tinha também túnicas mais brilhantes, mais braceletes de oiro e o olhar dum firme franco! Os peitos virginais batiam soluçantes ante o seu busto altivo e o seu pescoço branco.

Vestais e cortesãos, virgem ou messalina, sentiam, como as mais, as rijas atrações da energia do sangue e a força masculina dos seus músculos de aço e rígidos tendões, ao vê-lo calmo, em pé, e trémula a narina, doirado, seminu, calcando os histriões.

Decerto as mais fiéis matronas recatadas, filhas, irmãs do edil, cônsul, ou senador, sentiam perpassar, nas noites desmanchadas, o império do perfil do estranho gladiador. Mas ele tinha erguido, em rochas escarpadas, — sagrado como um templo, o seu arisco amor!

Porém, por sua vez, o herói da Roma esquiva, glória dos histriões, destro no cesto e lança, que havia preso a loba, a Roma, essa lasciva dos bordéis de Suburra, e preso pela trança, amava uma mulher de mármore, uma altiva, amava sem remédio, amava sem esperança.

Era Lívia o seu nome; e nunca as galerias austeras e imortais manchou dos seus avós. Jamais o Amor lhe fez velar noites sombrias e, erguendo as mãos, chorar, sobre o seu leito, a sós. — Polos! há corações mais gelados que vós. — Estatuas! não sois só as belas coisas frias.

Embalde erguia as mãos, magras de um sonho ardente, pelas noites febris, para o solene céu. Em vão ele exibia um facto resplendente, vencendo os histriões, heróis do poviléu. Em vão, na via Appia, ia através da gente, seguindo-a, como ao vento o pó dum mausoléu.

Em vão ia passar as noites nas orgias dos bordéis de Suburra, às luzes amarelas. Em vão ia, ao luar, à brisa das maresias, sobre as águas do Tibre errar nas noites belas. Em vão trepava, à noite, às altas penedias, pálido, a fronte em febre, ao frio das estrelas.

Em vão fez que lhe desse o trágico Tibério o bracelete de oiro e o anel de cavaleiro. Em vão fugiu, correu todo o romano império, a Gália, a Síria, o Egito, e o Oriente inteiro, e na Judeia viu ao Cristo magro e sério, ao sol-posto, expirar, em cima dum madeiro.

Em vão correu a Líbia, as praias estrangeiras, viu outros novos céus, outros estranhos mares, as rosas de Sarão, as verdes laranjeiras, as florestas da Gália, a areia dos palmares, e os profetas Judeus, debaixo das palmeiras, magros, com largo gesto, erguendo as mãos aos ares.

Em vão ele viu Chipre, a bela ilha amena, as Gregas sensuais, brancas, dominadoras, as belezas de Cós, as tentações do Sena, as Judias fatais, as do Ebro tentadoras, e em cima dum rochedo, à tarde, a Magdalena, chorosa, ao pé da cruz, rojando as tranças louras.

Em vão! Nunca a esqueceu! — Nem perto do inimigo, nem junto dos leões, na paz, nos morticínios, na areia do deserto, ou sob o teto amigo, entre as danças gentis dos batalhões virgíneos! Nem no vinho de Cós! nem no falerno antigo! Nem debaixo da hera e mirto dos triclínios!

Quando chegou de Roma às portas imortais sentiu seu forte amor mais jovem renascer. E o Amor que busca a glória, as palmas triunfais para as lançar aos pés pequenos de mulher, acendeu-lhe de novo as atrações fatais do Circo! o Circo imenso!… a glória de vencer.

Mas mal no Circo entrou, depois de tantos anos, sentiu como um terror fatal, desconhecido. O arado das paixões, do Amor, dos desenganos, desbotaram-lhe a cor, tinham-no envelhecido. Com um terror de escravo ao pé dos seus tiranos, o gladiador sentiu-se incógnito e esquecido.

O primeiro que entrou foi um Gaulês membrudo, um louro montanhês, um rude reciário. Dum duro golpe só de amalgamar o escudo o gladiador lançou na arena o adversário. Todo o povo aplaudiu. Só Lívia, o lábio mudo, desfolhava uma flor, debaixo do velário.

O segundo era um negro e atlético selvagem com laivos de chacal no duro olhar sombrio, nostálgico da luz, das sombras, da paisagem, vasto como um deserto e fundo como um rio. Depois de uma feroz e insólita carnagem, sob os pés do Africano o gladiador caiu.

O gladiador caiu cheio de palidez da dor que lhe causou a espada de aço fino, e olhou a turba egoísta, essa que tanta vez o aplaudira feroz com um rugir leonino. Mas viu o Povo todo, em trágica mudez, — frio, o dedo no ar, fatal como o Destino[1].

O atleta encarou o povo novamente. Mas ninguém se mexeu. Não perdoou ninguém. Então o gladiador volveu o olhar ardente, o derradeiro olhar extático ao seu bem: mas viu, cheio de horror! inexoravelmente! Lívia o dedo fatal erguendo ao ar também.

Ninguém pode narrar o seu sorriso estranho.

Ninguém pode exprimir o seu estranho olhar.

O triste coração do Homem é tamanho

como um convulso céu, ou como um fundo mar.

 — Quem contará a dor do escravo no seu lenho?

 — Quem dirá o sorrir do herói que vão matar?

Decerto há de ser duro ao peito grande e forte sentir que a sua mágoa a nenhum peito arou, sentir que foi no mundo um náufrago que a Sorte sobre um rochedo nu e trágico arrojou, e ver erguendo as mãos, pedindo a sua morte, seu marmóreo ideal, o ídolo que amou.

O gladiador, então, ergueu-se de repente, e pálido, afrontando as turbas aturdidas, hirto, em frente de Lívia, o ídolo inclemente, estas frases soltou tristes e nunca ouvidas. Como através do horror de um sonho incoerente vibravam-lhe na voz notas desconhecidas:

«Saúda o Cesar — disse — o atleta moribundo, antes de abandonar o anfiteatro, o mundo, onde a flor do Ideal nunca viceja e medra. Eu pois que vou morrer, inevitavelmente, faço uma saudação estranha e dissidente: — Saúde, ó meu Amor! meu Ideal de pedra!»

Depois olhou o Sol. Em meio da carreira ele vinha imitando o olho dum dragão. — E, ah! então relembrou-lhe a sua vida inteira, sua dor, sua morte, a sua solidão, a sua história triste e vida aventureira, sem jamais encontrar no mundo um coração!

Lembrou-lhe tudo: a infância, e o sonho descuidado na sua aldeia, em Chio, ao pé das carvalheiras, o seu exilio em Roma, e o tempo torturado sob o jugo servil das turbas estrangeiras, depois — a Glória, o Circo, o seu amor frustrado, a música da selva, e o choro das ribeiras!

Porque não fora ele um rude marinheiro, lutando com o Mar, os Ventos, o Revés, sem recear da Plebe o grito carniceiro, nem temer o histrião calcando-o sob os pés, e, uma noite, morrer, por entre um nevoeiro, ou junto à loura amante, à lua das marés!?

Porque não fora ele um lavrador queimado, dessas almas viris, heroicas, e felizes, que conhecem somente o feno do seu prado, nunca viram o mar e os céus doutros países, e que enterram ao pé dum álamo copado, à boa luz do sol, debaixo das raízes!?

E de novo acudiu-lhe à triste mente cheia de saudades cruéis, de rápidas lembranças, aquela grande cruz no monte da Judeia, entre mulheres chorando e reluzentes lanças. — E, então, quis ser um herói, morrendo pela Ideia, e ouvindo uma mulher chorar de longas tranças.

Mas era um gladiador, um histrião somente, escória de plebeus, e filho dum liberto, do qual o Povo Rei olhava indiferente, sem mágoa a sua morte irremediável, perto, como o leão contempla as nuvens do Orienta, ou como a esfinge fita a areia do deserto!

Não viria ninguém de terras bem distantes como veio a Jesus José de Arimateia trazer o esquife novo, os cheiros penetrantes, e o nítido lençol de preciosa teia, nem feririam o ar gritos dilacerantes quando o seu corpo vil rolasse pela areia!

Não ouviria mais, pelos serões de outono, na tremula floresta o vento suspirar! E o seu corpo votado aos corvos e ao abandono não teria um bom campo, um monte ao pé do mar, aonde os manes seus saíssem do seu sono, ouvindo o rouxinol e o pescador cantar!

Tudo isto lhe acudiu negro e tumultuoso, rápido como um raio, ou sonho de mulher, doce como a visão dum bom país saudoso ao náufrago que vê a esperança falecer. Depois, com um sorriso extremo e doloroso, dispôs-se o gladiador, enfim, para morrer.

Um pranto lhe rolou, lento e desenganado, como o orvalho que cai em ressequida flor. Porém, quando, por fim, do tronco decepado a cabeça rolou aos pés do vencedor, o carmesim do sol tornava ensanguentado aquele pranto. — Assim morreu o gladiador.



[1]. Quando o povo romano erguia o dedo polegar, para o ar, no Circo, era sinal funesto de morte para o gladiador vencido.