Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Epístola de Manoel Mendes Fogaça, de José Agostinho de Macedo


Obra de referência:

Projeto Gutenberg - http://www.gutenberg.org/cache/epub/27544/pg27544-images.html.

 EPISTOLA

DE
MANOEL MENDES FOGAÇA.
 
DIRIGIDA DE LISBOA A UM AMIGO DA SUA TERRA, EM QUE LHE REFERE COMO DE REPENTE SE FEZ POETA, E LHE CONTA AS PROEZAS DE UM RAFEIRO.
 
 
 
 
 
 

LISBOA:

Na Impressão de João Nunes Esteves

Anno. 1822.

EPÍSTOLA.

Por certo, Amigo, que benzer te deves

De me observares súbito Poeta!

Em proza de lá vim, e escrevo em verso!

De perfeita saúde um corpo goza,

E é do contagio súbito assaltado.

Se entre doentes de malignas vive.

Nunca grassou na Imperial Lisboa

Maior contagião de infindos Vates:

É tinha que se apega, e se propaga,

Como se estende no Levante a peste.

Entro em um Botequim, são Vates todos;

Eu bebo também ponche, e fico Vate.

Se vou para a Comedia, ouço Elogios,

E quando volto pela rua grito:

— Honra, Pátria, Virtude, ó Tejo, ó Douro.

Brilhai na escuridão; que azeite falta. —

Vem num Jornal o invento do Antimônio,

E a maneira subtil de, cães, e burros

Mortos, tornar em branco Espermacete;

Lá vem versos também, tais e quejandos:

"O homem é fungo, e gérmen de monturo."

Eu li co'os olhos meus esta sentença;

Deus pague ao seu autor, quem quer que seja,

O completo elogio à raça humana!

Onde todos são Vates sou Poeta:

Tudo novo aqui é, tudo é prodígio:

Eu já cansado de lidar co'os homens,

De observar sem proveito os seus costumes,

Por um capricho, que esquecera a Jacques,

Ando observando a Cáfila infinita

De matilhas de cães, que pejam tudo,

A quem Lagarde fez sangrenta guerra:

Pragmática Sanção de Canicídio

Aqui duplicou, fugiram todos

Do terrível Calígula pelado,

Depois que as Águias rapinantes foram

Ás mãos dos fortes Lusos derrabadas,

E a Falange infernal de trapo e fome

Fatiota entrouxou, que não trouxera.

Das ermas grutas dos alpestres montes

Veio surdindo afouta a canzoada,

Que fugira ligeira ao calvo Nero,

Quase toda esgalgada, e sem cabelo,

Consumida da pútrida rabuje,

Mas bem depressa em lamaçais nojentos

E às nunca, e nunca solitárias portas

De altas casas de pasto, e consciência,

A pança se lhe encheu cresceu-lhe o pelo,

E airada vida se levou nas ruas.

Uivam, retoiçam, saltam, ladram, mordem,

E vão correndo atrás, dos que chouteiam,

E co'o sentido talvez no arenque esguio,

Que em picado lá vai metido em massa

Dos que um só molho tem, guisados muitos;

Progênie ilustre donde vem meu sangue,

Donde eu saíra involuntária empada,

De boa criação, gordura, e polpa;

Farto como um vilão, rapaz travesso,

A quem nunca falhou pedrada, e soco.

Não me pejo da raça, e se escolhera,

Antes de feito no materno alvergue,

Fora meu Pai um rico toucinheiro

De tez purpúrea, e dorso acanastrado,

Material, mas honrado, e de palavra,

A quem não rejeitasse um Senhorio

Seguro Abonador d'águas furtadas,

E que à primeira voz de Pátria, e Trono,

Pagasse de contado o Quinto, ou Terço,

Que a um ladrão Francês não desse um palmo

De linguiça, ou de chouriço moiro;

E que pronto com a ripa, ou co'a espingarda

No terreiro ao Domingo aparecesse.

Perdoa, amigo, a digressão de um Vate,

Que julga que a virtude é só nobreza,

Como o bom Juvenal disse aos Romanos.

De meus versos assumpto, aos Cães eu torno;

Quase todos conheço pela pinta,

Filósofo Canino, eu ter quisera

O bom Cão de Diógenes profundo.

Mas entre a imensa Caniçada toda

Um Rafeiro conheço alambazado,

Ao qual vi suceder grande aventura.

Não é dos Cães vadios, e ociosos,

Nem podengo atrelado, ou perdigueiro,

Que leva c’um chicote, e fica enxuto,

E aos pés do dono humilde se alaparda.

Entre os Cães é demócrata soberbo;

Vive longe da Corte em arrabalde;

Nunca teve Senhor, trabalha, e vive.

De focinho é sombrio, e lombos largos;

Nunca o rabo meteu por entre as pernas

Encolhido de medo, ou dependência;

Encha-lhe a pança embora um burro morto,

Não faz festa co'o rabo à mesa alheia;

Pede à terra o sustento, e nunca aos homens;

Que é mais brando um calhau que um peito humano

No conceito do Cão, vive consigo.

Se o monte caça tem trabalha e come,

E nunca quis coleira no pescoço

Por motrecos de pão, e ossos pelados.

Não sei porque capricho ou fantasia

Estes tempos atrás deixou seu pouso;

Deu-lhe em correr as ruas de Lisboa,

Por onde andara despejado e livre;

Que até ladrou nas barbas de Lagarde,

Afrontando sem medo os ribeirinhos,

As pás, os negros, e a canalha toda,

Executora do fatal Decreto,

Que mandara dar morte aos cães honrados,

Que não queriam ter donos estranhos.

Veio pois a Lisboa o grão Rafeiro,

De lés a lés encheu co'o corpo as ruas;

Sempre de orelha fita, e rabo alçado,

Tão senhor do terreno, e tão soberbo,

Como um Sultão dos Cães, por entre os Gozos.

Não sei, amigo, se danado vinha;

Veio ao menos de estomago danado;

Por aqui, por além, fareja e marcha.

De vez em quando lhe alvejava o dente

Agudo, lizo, penetrante, e duro;

Que vir parece a morte ali sentada.

Olhando de través rondava tudo,

E de olho vivo os Gozos espreitava.

Qual hábil General que, antes que invista

A falange inimiga, a reconhece,

Mede o terreno, e posições escolhe,

E onde acha fraco intrépido acomete;

Desta arte o Grão Rafeiro espreita, e gira

As ruas todas, e a matilha observa,

Antes que ao grande assalto estenda as unhas,

E os formidáveis dentes arreganhe.

Eu andei atrás dele, que a contados

Passos as ruas passeava ufano:

O intento penetrei, que era dar cabo

De Cães vadios, raça ladradora.

Ele só na Campanha, ele era tudo,

Era reserva, exército, e bagagem;

Tanto fiava o Cão nos próprios dentes!

Eu lhe vi, e ainda tremo, à vez primeira

Arrufar-se-lhe o rabo, arder-lhe os olhos,

Arrefegar os proeminentes beiços,

E mostrar, que terror! toda a dentuça!

Lançando estavam sobre a dura terra

Um pomposo Edifício alguns Pedreiros:

Eram oras de almoço, e repousavam

Tasquinhando pães quentes com manteiga;

Empadas de Pedreiro assim chamadas;

Em roda deles meneando o rabo

Gozos, talvez que seus, co'a frente imóvel

Estavam muitos na migalha atentos.

Parou não sei porque bravo Rafeiro:

Qual o Brigue Britano quando avista

Um Corsário Francês que infesta os mares,

Sem dizer — a água-vai —, ergue as vermelhas

Portinholas fatais, dispara, e vence;

Tal o Rafeiro se arremessa e morde,

E o grão tropel dos Gozos esfarracha.

Uns vão ganindo, sem levar orelhas,

Uns expiram de todo, outros perneiam,

De balde a turba dos Pedreiros todos

Vem correndo co'a trolha, e camartelo,

Um co'a régua acudiu, e outro co'o prumo,

Vem c' um coche de cal o Mestre impando.

Um Servente acudiu c'uma alavanca;

Sobre montões de gozos desmembrados

O Grão Rafeiro está, e espera as Hostes.

Deu um latido horríssono, e num ponto

Trolhas, Pedreiros, Prumos, Camartelos,

Regoas, Compassos, co'os Diabos foram.

Viva (em torno lhe grita o rapazio)

Viva o grão Cão, flagelo dos Pedreiros.

Que piores que os Cães danados mordem,

Mamão grandes jornais, trabalhão nada;

E fazem casarões sem alicerces

Onde enterrada fica a pobre gente,

Viva o grão Cão triunfador dos Gozos,

Que ladram sempre, e as gentes inquietam;

Foi este ensaio da primeira guerra.

Sem o passo apressar caminha altivo;

Busca nova aventura, e logo a encontra;

Não lhe louvei a ação, posto que justa.

Deu co'o pobre de um Cão já cocho, e cego,

Lazarento, mirrado, horrendo, e feio,

Mas ladrador continuo, e se podia,

‘Té pelo tacto os dentes empolgava:

Pôs-lhe em cima uma pata, e ficou morto,

E à corja canical serviu de exemplo.

Qual da triste figura o Paladino

Que da Mancha saiu, e imitam muitos,

Que ia abatendo altíssimos Gigantes,

Ou moinhos de vento, ou carneiradas:

Tal o grão Cão marchava em busca deles.

Encontra o Cão de um Grego (que a par dele,

Com o lencinho amarrado na cabeça

Volvia n'alma furtos e mentiras,

Costumado encampar gato por lebre,

E extrato de alfarroba em vez de vinho,)

Co'o Grego Cão de fila investe ousado:

Começa a produzir compridos dentes

(Inútil produção) tortos e padres:

Qual um menino foi na mão das bruxas,

De uma dentada só ficou deitado,

Nem mais se levantou. Eis corre um Galgo,

Que o cachorro do Grego acompanhava,

Esguio, magro, estítico, mirrado,

Pontiagudo o focinho, e longe-víbruo;

Quinque-dentadas as gengivas tinha:

Co'os olhos distendidos ao Rafeiro,

O quis acometer; o grão Molosso

Lhe submeteu a tromba, e adeus ó Galgo;

Foi fazer companhia ao Cão de Pócris

Que além de corno está da argêntea Lua:

Desgraçado Mastim, teu fado escuro

Nas unhas te foi pôr do grão Rafeiro,

E nunca mais de ti memoria houve!

Debalde tinhas tão compridas pernas,

Nunca mais te verei dar um passeio!

De nobre sangue de suor banhado,

De ataque a passo entrou pelo Rocio,

Onde grupos de Cães tem fixo assento.

Viu no meio um magote uivando sempre

Com latidos agudos, que parecem

Ou Poetas de outeiro, ou de Elogio:

Pois entre todos o toitiço erguiam,

Um de cor amarela, outro sombria,

E de focinho tanto esburacado,

Que uma carga de chumbo, ou de metralha

Parece que levou, caído o beiço,

E de rabo comprido, e rabo antigo,

Tantas postas de lama o pelo cobrem,

Que só na tromba tem forma de Dogue,

O mais é crusta de monturo e lodo,

De noite atento à suja caldeirada,

Prestes corre onde cai, fareja um osso.

Ambos tem presunção de olfato agudo,

Mas são entre outros Cães de instinto rombo.

Apenas o Rafeiro avista a corja,

Qual em ninhada dos implumes pintos

Cai carniceiro voador Milhafre,

Que duma unhada a todos espatifa;

Assim como dum danado, o Cão tremendo

Se foi lançar aos sórdidos sabujos:

Tais dentadas lhes deu que os dois ficaram

Pernas ao ar por toda a sua vida.

Um deles quis grunhir, levou nas ventas

Tão profundo gilvaz, que ali num charco

Ficou, já sem alentos, patinhando.

A grã turba dos Cães deserta toda,

Ficou limpo o Rocio, até ficaram

Limpos os Botequins de entulho eterno,

A cuja porta os gozos almejando,

Os restos da torrada esperam sempre.

Não cansa o Campeão, pregou dois berros,

E alguns Cães felpudinhos de Senhoras,

Que atrás delas vão sempre, ou elas deles,

E que dão dentadinha e mijão tudo,

Tão cortados de medo ali ficarão,

Tão cozidos no chão que o grão Rafeiro

Não quis ser um Leão com tais ovelhas.

Passou de louros e troféus cercado,

E ao monte foi de Santa Catharina,

Seis matilhas de Cães, magros, sarnentos,

Já comidos da fome e da velhice,

Eternos ali viu num soalheiro:

Uns sebentos papeis lambendo estavam,

Enfeitiçados na fatal lambujem;

Sustentam-se com ela e dela vivem.

Abrem de vez em quando enormes bocas

Para a boca da Barra, e sempre esperam

Uma batata de encobertas Ilhas,

Ou Cavallo marinho, em que se cevem.

O que estes Cães aguardam, aguardaram

Os Avós destes Cães, nada aparece;

Mas aparece o intrépido Rafeiro.

Ora agora o vereis! todos num feixe,

De uma dentada, esborrachados ficam.

Não me parece um Cão, parece um Demo,

Todo sanha, e furor, vingança, e morte.

Derreados de lombo alguns fugirão

Com a perna no ar; e uivando atroam

Toda a Cidade imensa, o Reino inteiro.

De toda a parte sórdidas matilhas

Acudirão de Cães: ladraram todas.

Das portarias dos Conventos rompem

Cães como toiros, gordos como nabos,

Cães de vida folgada, e dente agudo;

Com disformes latidos atroaram

Desde as margens do Tejo às do Tâmisa;

Onde um Feitiço, ou Talismã quisera

Fazer ao grão Rafeiro o Cão trifauce.

Ver a guerra dos Cães contra um Rafeiro!

Ele só no terreiro, e a crespa grenha

Sacode um pouco, e o navalhado dente

No cachaço enterrou de um Cão roliço,

Era o Cão de um Pastor, trombudo e feio;

Nem sequer lhe ganiu, perneia, e morre.

Vem um Cão furibundo, a quem chanfana

Com seu dom gordurento, ali chamavam:

Quatro assaltos lhe deu, quais quatro Cartas

Ou Carteis de duelo, e o chama à morte:

A falange dos dentes arreganha

Com tanta fúria o intrépido Rafeiro

Que entre as pernas meteu o Gozo o rabo;

E lá se foi meter nas Salas onde

Ele só, mais ninguém, tem franca entrada.

Vai o disperso Exército fugindo

Sem voltar Caras à medonha tromba

Do triunfante, ou vencedor Rafeiro:

O cabelo levava em sangue envolto,

Sangue alheio, não seu; que esfarrachados

Ficarão para sempre os Cães, que esperam

Os que analisam, examinam, ladrão.

Dois podengos Filósofos ao longe

Se lhe põem a latir com mar em meio;

De lá veio uma pedra, e o Cão raivoso

Tanta força mostrou no ebúrneo dente,

Que a mesma pedra espedaçou de um golpe;

E por certo não sei se outro latido

Deles se há-de escutar = Eis que um sabujo

De lombo asselvajado, e catadura

Medonha e má, de proeminentes beiços,

Cão de uma preta, que de fava rica,

De dobrada, e tripas lhe enchia a pança,

Diante do Rafeiro se atravessa;

Co'o vasto corpanzil enche uma rua,

Ao duelo tremendo acode a preta;

Porém não foge ao desigual combate

O já danado, intrépido Rafeiro.

Acode o Cão do Jardineiro Alfeno,

Da Maga Adela o fraldiqueiro acode,

Preta, Cães, Hortelão, tudo um lambisco

Nas garras foi do Campeão famoso,

E uma Cadela, Zaragoza dita,

Brava qual Palafox, de uma dentada

Ganindo a deixa, e patinhando em lama;

Pasma de vê-lo extática Lisboa,

Tintos de sangue os olhos, e de espumas

Os cantos cheios, da rasgada boca.

Não cansado, mas de bravo encosta

As ancas à parede, e espera afouto,

Que inimigo maior se mostre em campo;

E tão sanhudo está, tão furibundo,

Que cuida a gente ao vê-lo, que do Inferno

A ver a luz saíra o Cão trifauce.

Eis lhe surde de um beco enlameado;

C'uma orelha rasgada o Cão do Grego

Manquejando de um pé, raivoso ainda;

Como esquecido da passada coça

O dente lhe arreganha, e alçando o rabo

Fez sinal de investir; e o grão Rafeiro

Deu dois passos de ataque, e no cachaço

Tão funda lhe enterrou toda a dentuça,

Que o miserando Cão, de olhos, e rabo

O sangue lhe esmichou; deu dois arrancos,

Na lama se estendeu; vinha com ele

Pequeno e ruivo Cão, magro, e sarnento

Qual de Alciato o Cão que ladra à Lua,

Assim ladrou de longe ao grão Rafeiro:

Este os olhos lhe vira, e com desprezo

Deixa ladrar o Gozo impertinente

Cão de Cabras, e tarro, e coice, e nada.

O Molosso trombudo um pouco ainda

Numa esquina parou, de rixa velha.

Um Cão gaguejador buscando andava,

Mui sabido, prudente, e reservado;

De Cães era Doutor, ladrava a tudo:

Foi ventura no Cão não vir à Rua,

Não achava quartel; que unhas e dentes

No coiro lhe empolgava o grão Rafeiro;

Se à Cidade tornar, dá cabo dele;

Que tanta raiva à Canzoada tinha,

Que até Cães enterrados esfalaxa;

Co'as patas vai cavar nas sepulturas;

Inda lá rói nos descarnados ossos,

E com todos os Cães tem guerra aberta.

Já quase fora da Cidade, chega

A um teso sobranceiro às ruas todas,

E dali revirou sanguíneos olhos;

Três latidos pregou, nenUm lhe surde,

Que os Cães sabendo do fatal destroço,

Entre as pernas metendo os rabos todos,

Nos imundos covis se alapardarão.

Por três horas ficou no campo de honra,

A poupa então virou, e alçando a perna,

Mijou na Cansoada; e ao pouso antigo,

De orelha fita, e alçando o rabo foi-se.