Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Banzo, de Coelho Neto


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

Banzo

Mau sangue

No rancho

Escrúpulo

Atração da terra

Traição

Casadinha

A Sílvio Bevilacqua

BANZO

I

A Antônio Lobo

Baixinho e seco, curvado em gancho, carapinha em maçarocas, ralas falripas de bigode amarelo de sarro, tufos de barba híspidos como parasitas, este era Sabino, o negro mais velho daquelas redondesas, desde a Barra até o Pati.

Em passo lerdo, com o urucungo e o cajado, um saco de couro a tiracolo, o pito nos beiços, corria tudo, descansando à sombra das árvores ou nos, ranchos e tejupares dos caminhos, quando não se sentava no meio dos campos, ao sol, entre o gado solto.

Aparecia nas vilas e nas cidades em tempo de festa e, como conhecia todos os sítios e fazendas, ia entrando às porteiras como em terra própria, falando a todos, sempre risonho.

O urucungo anunciava-o; saíam crianças a recebê-lo, davam-lhe comida, molambos. O saco ia bojando, e ele, numa alegria servil, bambaleava o corpo em dança de urso, com gatimonhas ridículas, picando as aspas da combuca, grato à bondade das crianças que se ajuntavam em círculo, rindo, batendo as palmas.

Às vezes ia para a estação esperar os trens. Cochilava no banco e, à chegada dos camboios, arrastava-se à beira dos carros, a mão estendida, jeremiando à sua miséria, e o que recolhia era para fumo e cachaça.

Não tinha casa. Casa para quê? O mato é grande. Mas o seu ponto predileto era na fazenda das Lages, à sombra de uma gameleira, num cômoro. Nas Lages fora escravo, ali vivera desde que chegara da África, passando de um senhor a outro, até “nhô Roberto” que ele carregara à “cacunda”, ensinara a andar a cavalo, levara ao colégio, vira casar, envelhecendo no trabalho, à sombra da casa.

“Nhô Roberto” era mau, enfezado, sempre de cara amarrada, gritando por tudo e “agarrado” como ele só.

Um dia, já depois da Lei, “nhô Roberto”, que andava nervoso, entrou na horta e achou-o sentado perto do rego, chupando uma laranja. Foi um tempo quente, não quis saber de desculpa — pô-lo fora. “Que fosse para o inferno! Estava livre, os canalhas que o sustentassem”.

Saiu sem rumo, andou muito tempo à toa, passou fome, bateu os dentes de frio, teve febre, pensou morrer; mas a gente acostumasse com tudo. Sempre achou caridade.

Um dia soube da morte de nhô Roberto (Nosso Senhor não dorme!) e, como a fazenda fosse comprada pelo coronel Chico Amaral, homem de bom coração, ele, que já andava com muita saudade daqueles fundões, botou o pé no caminho.

Achou tudo mudado: casas novas, de telha, máquinas, gente branca na roça... A gameleira lá estava, cada vez mais bonita.

Receberam-no bem — os conhecidos festejaram-no, mesmo o coronel Chico Amaral, espantado dele ainda estar vivo, mandou dar-lhe comida e presenteou-o com um capote velho que lhe chegava aos pés. Homem bom... Nosso Senhor há de ajudá-lo! Bom mesmo! Volta e meia lá estava: virava, mexia, levava tempos sem aparecer, mas um dia lá o encontravam debaixo da gameleira, cantarolando à beira de um foguinho de folhas secas, entre burundangas: latas velhas, pão duro, embrulhos de farinha, restos de comida, feixinhos de taquaras e uma garrafinha de cachaça.

Ali passava os dias e a gente da fazenda, de pena, mandava-lhe de comer e os que pasmavam, à tardinha, vendo-o encostado ao tronco, ofereciam-lhe um canto em casa para dormir. Ele ria agradecido e ficava sob galharia verde tocando e cantando, até que o sono o prostrava.

Às vezes, de manhã, quando o procuravam, havia desaparecido: “Tio Sabino já foi, coitado! Volta...” E voltava.

Quando lhe perguntavam quantos anos tinha encarquilhava o rosto amarfanhado, sumia os olhos em rugas, aproava o queixo ciciando um risinho frouxo e sacudia a cabeça branca num gesto abandonado que parecia atirá-la pelo tempo dentro.

Então revolvia as fundas reminiscências. Falava do rei D. João VI, dos “manatas” que vira na Corte, dos senhores que tivera, das lindas donas de antanho, de casas que haviam sido demolidas, de árvores mortas, ribeiros desaparecidos, matas devastadas, tudo que vira na correnteza da vida onde ficara, como aquelas pedras que lá estavam no Paraíba velho olhando o passar das águas.

Idade, sabia lá! No seu tempo - e corria um gesto que abarcava o horizonte - tudo aquilo era mato. Bicho assim! E apinhava os dedos. Casa, uma aqui, outra acolá! Cidade, era uma rua só com a igreja lá em cima. Mas então é que era festa! Semana Santa, S. João, Natal, Espírito Santo... Eh! Largo ficava da gente não poder andar — eram carros de bois, liteiras, cavalhada chibante arreiada de prata, cada mula que fazia gosto, escravatura limpa, tudo gente moça. Fazenda, não vê que era como agora! Mesa ficava posta, comida boa. Fartura era aí.

Cativeiro era brabo, isso... Ahn! Mas também, quando o senhor ganhava, negro tinha o seu gancho. Tempo bom! E, descrevendo, dramatizava pitorescamente os episódios imitando: a música: Tchumba! Tchumba! Tchumba! O esporar dos foguetes e o estrondar dos morteiros: Tró tó ró bum! O bimbalhar dos sinos: bem, de len den bem bum! O reboliço dos carros rinchando: cheeeem... hiiiiim... Os cavalos resfolgando: írrru! O rumorejo do povo: ááaah! Os pregões dos doceiros, dos leiloeiros de prendas, o batuque africano ao som dos tambores: prú cu lú! Prú cu tú!

A negrada, que o cercava atenta, ria dos recontos. Pediam-lhe minúcias, recordavam-lhe episódios, lendas, casos que a tradição conservava e ele, sentado no chão, estirando as pernas, com os pés a prumo, de solas chatas, encoscoradas como patas de paquiderme, narrava.

Trem de ferro... Isso era de ontem. Vira chegar a turma dos engenheiros, cada mocelão! Botas, chapéu largo, pagodistas como eles sós; e para andar no mato nem tatu podia com eles — furavam tudo. Depois os trabalhadores abrindo picadas, gente onça na enxada e no machado, cavando, fazendo caminho; morro não era nada para eles.

Vira estender os trilhos! Cruzar as pontes e o dinheiro naquele tempo andava à toa. As mulatas é que aproveitavam.

E um dia — êh! Dia grande! Gente na estrada fervia que nem procissão — o trem berrando numa fumaceira de coivara: Tchá! Tchá! Tchá, oooò! Ahn! Boi corria espantado, ficava olhando de longe, besta, cavalo rebentavam cabrestos disparando por esses matos, cachorro zunia: Cain! Cain! Cain! Nem que tivesse apanhado! Galinhas voavam que nem patos na lagoa quando um tiro estronda e o bicho passou rabeando, embandeirado, cheio de gente graúda: fazendeiros, generais, moças... Ahn! E foi-se embora! Muita gente rezou de medo.

Eu vi tudo de cima de uma barranca, o coração batendo assim: pú, pú, pú! Bonito rnesmo!

E o bicho passou danado, fervendo; a fumaça espocava da chaminé em cachimbada grande. Eh! E trouxe tudo! Trouxe cidades e foi deixando por ai, trouxe maquinismos, gente branca...

Parecia coisa de encanto. A gente deixava de ir uns poucos de meses num lugar e quando aparecia lá ficava de boca aberta vendo tudo mudado: casas novas, negócios sortidos como os da Corte, igreja, circo de cavalinhos, botica e o mato, que é dele? Trem de ferro ia comendo tudo, tal e qual como na terra brava depois do roçado quando a plantação brota.

O mal era o fogo. Bastava uma Faíscazinha da máquina para levar um canavial. E era uma campanha! A gente toda fazendo aceiros e o fogo lambendo, cada labareda que fazia medo.

Muita gente nem queria ver o trem de ferro, quando mais entrar nele. Nhá Joaninha Junqueira, do Palmeiral, moça prendada, que tocava e cantava, essa nunca quis saber do bicho. Quando teve de ir à Corte, para a operação, quem disse! Foi e voltou de carro de bois. Povo custou a acostumar-se.

Depois os padres diziam que eram o trem que trazia as febres e os pecados, e então é que foi medo mesmo.

“E no tempo da guerra?” perguntavam.

Eh! Mato comeu gente... Eu estive vai, não vai... Barnabé ficou lá, Braz ficou lá, um bandão deles. Desse tempo só Venâncio mina, coitado! Está nos Quatis, cego de todo. Não sabe nada, pergunta só. Lei grande já apanhou ele sem vista, para quê? Tinha senhor, vivia na fazenda... E agora? Está lá morrendo no escuro, come hoje, amanhã não come, conforme Deus quer. Liberdade... Pois sim... Gente anda morrendo à toa, urubu é que gosta.

II

Tudo mudara para Sabino. A terra, outrora rica, frondosa de matas, estava toda nua, escalvada, mostrando lanhos de pedra, lombos de rochas, grotas sem água. Num ponto e noutro tocos assinalavam derrubadas, lanços de morros ofereciam o aspecto lúgubre de borralhos enegrecidos de loiros carbonizados. Nas plantações vasqueiras raro uma árvore copava — era tudo ralo, tolhiço: um fim de vida.

O Paraíba, dantes caudaloso, barulhando nas pedras em cachões borbulhantes, às vezes crescendo tanto que transbordava alagando extensamente as margens de onde os moradores fugiam abandonando as casas - ali estava secando.

Barcos carregados iam e vinham e agora as leves pirogas, se os canoeiros não eram destros, iam batendo nos cabeços, roçando nas coroas de areia, tão raso corria o rio, escuro, em lameiro grosso, como todo ele feito das barrancas esboroadas, que fossem rolando derretidas para o mar.

O próprio céu descorado esmaecia, cada vez mais pálido.

Sabino sentia a morte da natureza: tudo estava acabando.

Em certa fazenda, que tivera fama pelo esplendor da sua capela, seguindo uma trilha entre culturas novas, parou relanceando o olhar compadecido. Reconhecia o sítio, mas notava mudanças, falta de alguma coisa.

De repente lembrou-se de uma árvore grande que ali houvera e, de olhos parados, como que a viu levantar-se esgalhada, folhuda, espalhando sombra larga. E era um mundo de gente embaixo: carreiros, crioulas com os filhos de mama, rapaziada da roça, tudo junto enquanto o sol amolecia languidamente as ervas, estralava na estrada, quente que nem fogo, e lá longe, no campo, o monjolo balia.

O cafezal, de um verde escuro, reluzia no alto, tão cerrado que não se via um vulto de negro, nem sinal de palhoça — e lá estava o serro seco, agreste, com o sapezal amarelento cobrindo-o como uma grenha de velhice.

Entrava nas capoeiras, direito a um rumo: desiludia-se.

A fonte... Isso foi uma tristeza! Era bem no mato, escondida. O seu gosto, em moço, era ficar ali, à fresca, tomar o seu banho ouvindo os pássaros, à espera de alguém que aparecia sempre de sopetão, assustada, pedindo pressa, com medo de ser apanhada, desde, porém, que se lhe atirava nos braços esquecia tudo. Eh! Corpo de rapariga!

Com a lembrança o sangue estuava-lhe nas veias gastas, o coração batia-lhe com força, um fluido de volúpia eletrizava-lhe os nervos. O silêncio era doce, a sombra era fresca: só a água fazia um leve ruído e as lavadeiras voavam por entre os juncos. E a fonte? Dela apenas restavam pedras secas, a areia atorroada e o ervaçal.

E ele pensava no Paraíba, coitado! Que ia morrendo à míngua porque as fontes morriam por toda a parte. Quando chovia, sim, o pobre apanhava um fartão de água, como esmola do céu. Estava acabando!

O próprio cemitério desaparecera — era uma mataria brava! Para achar uma cova — e estava cheio — seria preciso roçar aquilo tudo.

Em certa ocasião, metendo afoitamente pelo caminho funéreo, achou uma cruz de pau. Levantou-a, beijou-a devotamente e, querendo fincá-la, de novo, na terra, partiu-se de podre.

Então, para evitar que fosse profanada, desfez o símbolo e guardou os pedaços no saco para queimá-los quando fizesse fogo. “Cruz de Nosso Senhor não se deixa atirada, e cruz de cemitério então!” E, olhando a terra embravecida em maninho, comentou: “Quanta gente! Isso aqui está que nem paiol.”

Tortulhos expluíam nos troncos numa estranha florescência de putrilagem, joás amarelos espalhavam-se como contas de ouro. Tresandava a humidade.

Caminhando no mato alto e emaranhado, dentro da sombra fria, resvalava em caldeirões. “Isso é cova de tatu. Tatu anda aqui: comeu e ficou”.

De quando em quando um arrulho dorido passava no silêncio. Que tristeza! E tudo era assim.

Nas Lages é que ele sentia mais a devastação do tempo: a casa fora reformada, os caminhos mudados, plantações novas, maquinismos. A bem dizer a mesma terra era outra, do tempo antigo só ele e a árvore do cômoro, a gameleira, lá em cima.

Os animais não pareciam o que eram: uns loiros grandes, lustrosos, quase sem chifres, lerdos, pesados, sentindo-se nos pastos, sem préstimo, morrendo à toa; cavalos que não aguentavam uma tirada, frouxos, aguando logo, carneiros muito gordos, mas feios. Qual!

E, os bichinhos do mato? Até eles. Pois então cigarras e passarinhos do seu tempo cantavam daquele modo? A gente entrava na mata e ficava tonta — era uma alegria nas árvores, tudo voando. Marrecas, isso era um nunca acabar à beira da água e agora? É o caburé de noite e de dia o anum e o urubu tocaiando lá de cima.

Nem sapo! Bacurau, quem vê mais? A gente estava, à noite, sentada no terreiro, olhando a lua, e o bacurau vinha vindo, pula daqui, pula dali, mansinho. E agora? Acabou.

Fruta, quem se importava com isso? Mato estava cheio, era só apanhar. Hoje tudo tem dono. É cerca de arame por aí fora; um limão custa dinheiro. Folha de laranjeira para remédio, mato, um punhadinho: um tostão.

E lastimava as crianças, nascidas tarde, numa era mesquinha e de melancolia, com o mundo velho, desconsolado e vazio. Atribuía todos os males da terra e a tristeza do céu ao colono branco. Odiava-o. Se avistava algum na estrada, desviava-se, deixava-o passar e voltava-se seguindo-o com o olhar até perdê-lo de vista.

Era o usurpador que entrara apoderando-se de tudo, destruindo o que eles haviam feito, matando a terra, espalhando a tristeza. Gente amaldiçoada! Não podia admitir que um branco entrasse no cafezal de enxada, carpisse, colhesse, rodasse café no terreiro e jungisse bois ao carro e atrelasse mulas ao trole, morasse em palhoças, dançasse nas eiras, rezasse na capela, moesse cana, plantasse mandioca.

Não compreendia que um italiano, como seu Amati, que ele conhecera esfrangalhado, sem vintém, chegasse a ser dono de fazenda.

Não, a terra era deles que a desbravaram e plantaram para os senhores. E os brancos abriam negócios, compravam sítios, montavam oficinas, até governavam como seu Barbosa, um ilhéu, que mandava num mundo de gente no tempo das eleições.

E os negros morriam de fome nos caminhos, não tinham onde morar, ninguém os queria, eram perseguidos. A própria terra era-lhes ingrata, mas estava morrendo, estava acabando. Era a sua vingança. Quando o Paraíba secasse — e não demorava muito — queria ver.

Sentava-se nos barrancos e ficava olhando os horizontes largos, esquecido de tudo, sem sentir o sol. Picava o urucungo cantarolando. Por fim levantava-se.

Hesitava um momento pensando no rumo e metia pelo primeiro atalho, ao acaso, desse onde desse.

Se tinha alguma coisa, comia, senão era o mesmo, punha-se a caminho vagarosamente, resmungando, cantarolando.

Onde anoitecia, ficava. Escolhia um canto abrigado, estendia-se no chão e, até chegar o sono, olhava o céu. E as estrelas pareciam-lhe mais tristes, quase apagadas, como luzes que vasquejam num fim de vigília, e a lua sem brilho, alumiando baça.

Dantes, isso sim, o luar era uma beleza — tudo aquilo branqueava, claro como dia; o rio ficava como de prata, a gente via longe e era uma pagodeira de violas; nos tempos de festa, samba, cateretê, batuque, baile na casa dos senhores e a negrada contente, solta pelos caminhos; cada crioula que fazia gosto. Agora era a sanfona do italiano, uma coisa enjoada, que nem dava jeito.

Acendia o cachimbo e fumando, recordava os dias extintos, a felicidade do cativeiro, o bom tempo. Cochilava acordando, a instantes, sarapantado. Noite comprida!

Quando começava a clarear levantava-se. Os pássaros cantavam alegres. Na pureza do azul alumiava-se a madrugada. Fazia frio. E ele sabia pelo frescor da relva esmaltada de orvalho diamantino, ia andando e, avistando um fumo leve, guiava-se por ele. Sentindo a vida, o despertar alegre, vozes de crianças, tinir de louça, o bom cheiro quente do café coando, a fome apertava com ele; parava à cancela ou à porta, sapateava dedilhando nervosamente o urucungo e, numa voz que chorava um canto melancólico, anunciava-se à esmola com ânsia de supliciado.

III

Foi na estação que ele soube que o coronel Chico Amaral mandara por abaixo a gameleira do cômoro.

Estava sentado no banco, à espera do trem, quando lhe deram a notícia.

Quis levantar-se, não pode, bambo das pernas, com os olhos manando lágrimas, a garganta arrochada.

O pajem das Lages descreveu a “maldade”. A árvore custara a cair. Gente boa no machado, rapaziada direita, levara toda a manhã batendo e a árvore dura, teimosa... Nem nada! Os passarinhos voavam em volta, assustados, numa gritaria que atordoava, povo assim para ver a bichona! Um trabalho! Suaram!

Lá para o meio dia, lanhada, escorrendo sumo, começou a estalar. Fazia pena! A gente fugiu de perto, abriu campo, e começou o puxa-puxa: um cabo grosso, mais de vinte homens. Qual! A bicha balançava, ringia, mas nada de cair.

Meteram o machado de novo até que seu Mamede gritou. Foi uma debandada e a gameleira bambeou, mais um sacalão do cabo e, com um estouro, virou caindo, e o chão estremeceu com o baque. Tomou o cômoro, tudo ficou coberto com a mataria. Grande mesmo! Todo o mundo teve pena. E por quê? Cisma de nhá Donga. Só porque um raio caiu lá em cima e o Dr. Barbosa disse que fora por causa da árvore, a moça começou a pedir, a pedir e seu coronel Chico mandou meter o machado. Fazia dó. Os passarinhos andaram tontos, chorando no ar, ora aqui, ora ali, arranjando casa. Abelhas... Êh! Até parecia praga e aquilo lá em cima ficou desamparado, triste, vazio... Até parecia que tinha morrido gente.

Sabino ouvira calado, de olhos no pajem. Acendeu o cachimbo, baixou a cabeça e, descaindo o corpo, com os braços abandonados, ficou imóvel.

Um trem chegou. Passageiros saltaram, os pobres correram à esmola atrolando, gemendo, uma moeda caiu-lhe aos pés, atirada de longe e ele na mesma atitude.

Outros trens e nada: o velho não tinha forças nas pernas, não podia consigo.

À tardinha, quando começaram a fechar o armazém e acenderam a agência, levantou-se a custo e saiu. Pela linha, da estação às Lages, era menos de légua, de um lado, o rio, do outro lado, além da cerca, lavouras, o brejal do Mosqueiro, sempre aberto em lírios, o sítio do Fabiano, o canavial de seu Amati, a vendinha do Esteves, num alto, e as Lages.

Foi indo, devagarinho, parando a espaços para descansar à beira dos bueiros ou nas rampas da estrada.

A lua subia grande e clara, redonda e os trilhos alumiavam como dois regos de água. Lá em baixo o rio tremeluzia. Os sapos faziam um vozeiro de agouro. Ninguém!

Às vezes, na distância, um cão ladrava.

À frente, rente da terra, uma luz vermelha olhava solitária. Por entre os matos aqui, ali cortava a sombra uma nesga de claridade.

Sempre que via uma árvore alta, com a fronde luzindo ao luar, o negro parava contemplativo e, maquinalmente, picava o urucungo. O som triste como que o despertava: então gemia, meneava a cabeça e, levantando os olhos, fitava o céu estrelado.

Noite linda! A voz do rio era como uma prece na solidão.

Perto da turma, para que não o vissem na linha, desceu a barranca agarrando-se às ervas, arrimando-se ao cajado e foi beirando o rio merencório. Às vezes um peixe saltava batendo de estalo na água. Corujas voavam surdamente e na sombra da espessura acendiam-se vagalumes.

Passada a casa da turma tornou à estrada, atravessou cautelosamente o pontilhão.

Pareceu-lhe ouvir o estridor longínquo de um comboio. Parou à escuta, levantando a cabeça serenamente, sem medo. Adiante, num corte, era tudo escuro; atrás, nada, não descia trem àquela hora. Era o rio roncando. Foi-se.

Reconhecendo o viçoso canavial do Amati parou: era como um mar dourado e marulhava ao vento. Na colina, entre eucaliptos, alvejava a morada, tão branca como a própria lua.

Era um dos donos da terra. Quem diria! Começara na estrada, trabalhando de picareta. Desaparecera uns tempos, voltara, anos depois, com um macho carregado de fazendas e quinquilharias. Batera aquilo tudo, até Valença, e um dia, com a morte de seu Mariano, indo à praça o sítio, quem havia de aparecer para comprá-lo? O italiano.

Seu Carlos da botica garantia que ele arranjara a vida passando notas falsas. O caso é que comprou a terra e lá estava: tinha engenho a vapor, uma boiada limpa, cafezal novo e prédios na cidade. No seu tempo andava rolo, descalço, carregando ferramentas, comendo em marmitas, dormindo ao relento, pior que escravo. E estava ali! Ficou olhando. Era assim ... Sorte de cada um.

Adiante, a venda do Esteves, outro. Ainda estava aberta, tinha luz. Era o ponto dos colonos, jogo fervia lá dentro até de manhãzinha. Às vezes saíam brigas, facadas, tiros. Mas seu Esteves era homem, zangado ninguém podia com a vida dele. Quando via a coisa mal parada, entrava, apartava os parceiros, botava tudo para fora e fechava a porta.

Só um espanhol quis pegar com ele, mas o português não deu tempo: zuniu o cacete e o outro tombou na estrada, com garrucha e tudo, quase morto.

Estava rico, só em compras de café aos colonos fazia um negocião e ainda emprestava dinheiro e no jogo era uma vassoura.

No tempo de Manezinho aquilo não era nada, um ranchinho à toa, do sapé, com uma pipa de cachaça, umas garrafas de cerveja, uma barrica de bolachas e latas de sardinhas. Lá estava: negócio grande. Mas Manezinho era mulato, não tinha sorte. Português chegou, mudou tudo.

Quando passou o córrego pelas alpondras, o coração bateu-lhe de esbarro. Estava nas Lajes. Entrou muito de passo, espreitando.

A fazenda dormia na alvura do luar.

Em baixo, em renque, os paióis, a casa das máquinas: a um lado o moinho. Em cima, na extrema da alameda de palmeiras, a casa senhorial vasta, estendida em janelas, com um largo portão sobre a varanda coberta de trepadeiras.

Os terreiros branqueavam como areais e funda, obscura, luzindo em reflexos metálicos, a mata ainda fazia ressair mais claro o casario silente.

O negro subiu a rampa devagarinho, aos bocados, parando para respirar: sentia o peito oprimido, uma angústia no coração como se lhe apertassem.

Um vulto de animal passou lentamente na estrada desaparecendo na sombra. Os sapos faziam na horta um estrupido azoinante e no meio do caminho que levava ao pomar uma poça reluzia como um pedaço de céu com estrelas.

No silêncio pairava um férvido ruído, um som vago, retininte como o que se escuta nas conchas ... O rio, ao longe, murmurava.

Sabino olhava — era toda a sua vida, toda! Instantaneamente um bando de figuras lépidas revoluteou na sombra. Lá no fundo surgia a casa antiga, senzalas por ali fora, o engenho, o curral no outeiro — foi um momento, tudo sumiu no luar.

Era o passado que subia do tempo numa evocação da saudade. Caminhou.

Um cão saiu debaixo, de uma carreta, acuou à distância, rosnando. O negro intimou-o e o animal agachando-se a dar à cauda, veio, de rojo, festejá-lo, seguiu-o um instante, mas retrocedeu ladrando. Foi indo. As pernas tremiam-lhe, a cabeça enchia-se-lhe como de fumo, aturdida, sombras empanavam-lhe os olhos.

Quando enfrentou com a casa grande era tão doce o aroma do jardim que esteve um instante encostado à cerca, gozando-o. Ali mesmo — mas não era assim — costumava ficar até tarde, os olhos na porta da cozinha, à espera de Maria Rosa. Quantos anos! Tempo voa! Mas parecia que fora ontem, a modo que ainda sentia o cheiro do corpo.

Olhava: tudo em silêncio. No seu tempo, não vê! Àquela hora a rapaziada andava furando os matos, uns atrás de mulheres, outros capiangando e quem não levava a sua rapariga ia encolhido pelas bibocas com sacos de café para a venda.

Onde estava essa gente toda? Na terra, com o mato em cima.

A água correndo por um canal passava por ele com um murmúrio leve.

Dali ao cômoro era um instante, caminho bom. Mas estava cansado. Sentou-se numa pedra e ficou banzando.

Quanta coisa! Reviu tudo como num sonho, gozando a morte. Por fim levantou-se.

Os galos cantavam, uma cigarra chiou na ilusão do luar.

Quando chegou a cima a árvore caída parecia amortalhada em luz: as folhas avultavam em monte, o tronco estendia-se como uma coluna enorme.

O negro ficou estatelado, olhando, com lágrimas silenciosas. Teve um arquejo, tomou o urucungo a mãos ambas, estendeu os braços como se oferecesse o instrumento à morta. Um som partiu, lúgubre. Não pôde mais: amoleceu nas pernas, caiu entre as folhas, de bruços.

De manhã, quando a gente subiu para talhar a árvore e limpar o cômoro, Mamede, que ia à frente, interrompeu a algazarra alegre dos companheiros com uma exclamação espavorida:

—Uai! Cruz! Correram todos curiosos:

—Que é? Que é? E o capataz, que recuara, mostrou um vulto entre as folhas murchas.

—A modo que é tio Sabino... Aproximaram-se, examinaram.

—É mesmo... Era o negro — deitado entre as folhas da árvore, com o urucungo no peito, os olhos ainda abertos, morto.

MAU SANGUE

Foi um reboliço, um leva-leva entre os caboclos arranchados sob o alpendre do negócio, quando Chico Redomão, saltando do pangaré, esbaforido, alagado em suor, com a cabeça ardendo da soalheira brava, disse, atirando uma relhada a um dos grossos moirões de cabiúna:

— Hoje o dia começou mal. Estou arranjado!

— Mode quê? Perguntaram.

—Topei com o diabo do Penador. Houve alvoroço e a caboclada, em tumulto, apinhando-se em volta do peão, indagou alarmada:

— Onde, homem de Deus?

— Debaixo do umbuzeiro, dormindo. E o danado do tinhoso junto dele, rente.

— E você, criatura?

— Uai! Fechei o corpo com o sinal da cruz, juntei o pangaré nos quartos e passei de largo numa arrancada doida. Ele vem vindo por aí.

— É que já fez coisa. Capitão Libânio, o do negócio, perguntou lá do fundo, no seu vozeirão que estrondava:

— Que é, gente?

— É o Penador que vem tocado.

— Quem?

— O Penador.

—Tá louco! Exclamou Libânio com tom sarcástico. Por aqui mesmo é que ele não passa.

— Espera um instantinho...

— Garanto que ele aqui não passa. E inflamou-se, saiu ao alpendre, de olhos esbugalhados, arregaçando as mangas da camisa de riscadinho. Era um homenzarrão alto e grosso, guedelhudo, de olhos sanguíneos e sempre chispando áscuas de fúria; cara larga, balofa, cor de tijolo, marcada em piques e laivos de varíola. Reluzia de suor e, num ritus que lhe arrebitava o lábio superior, os dentes apareciam grandes e amarelos. Fechou os punhos e, altaneiro entre os caboclos, arquejando de ódio, esbravejou:

— Se aquele mofino é homem, se tem coragem no peito que bote o pé aqui na minha porta. Diabos me levem se eu não estourar ele em um tiro.

— Coisa ruim! Resmungou, com um muxoxo rascante, um rapazola macilento, que passava e repassava a faca alisando sobre a coxa compridas palhas de milho. Um velho, de melenas arrepiadas, bolsa de couro, ao flanco, que cachimbava a um canto, adiantou-se arrastando as alpercatas e, batendo com o cachimbo na palma da mão calosa, perguntou em tom sossegado:

— Vosmecê também tem queixa desse infeliz, seu capitão? Libânio voltou-se de ímpeto e, carregando o cenho, os olhos a fagulharem, crispado e rouco, com as veias túrgidas latejando, depois de encarar no velho, atirou um murro ao peito, bramindo:

— Eu!? E avançou um passo. Se eu tenho queixa desse caipora? E quem não tem? Terra que esse maldito pisa nem benção de santo salva: fonte em que ele bota a boca, seca. Uma cabrocha esgrouviada rebolou nos molambos em que jazia e murmurou surdamente, de olhos perdidos, sem tirar o cachimbo dos beiços:

— Passarinho tá cantando, ele passa, passarinho cala a boca, bate as asas, cai do ramo, morto.

— É verdade! Afirmaram em tom soturno. E Libânio continuou:

— Quem não se queixa dessa alma danada? Ahn! Aprumou-se, deu um sacão às calças, puxando-as ao ventre impado, estendeu os grossos braços cabeludos e, de cabeça alta, carranca fechada, esteve um momento a grunhir, roxo de cólera. Súbito, de arremetida, rompeu a turba, pulou na estrada fulgurante e, ao sol, alisando o braço, sacolejando o corpo desconforme, exclamou rancoroso, travando as palavras entre os dentes que rilhavam:

— Juro por esta luz que está me alumiando que se aquele excomungado tiver o arrojo de chegar aqui não dá mais um passo para diante... Não dá! Afirmou com uma patada à terra dura e seca de onde subiu uma poeira fina. E rugiu: Tão certo como ser hoje segunda feira das almas, como ele! Como com a minha comedeira de dois canos que está lá dentro. Que venha, se é capaz! Se eu tenho queixa ...! E boa! Aos bufos tornou ao alpendre de vagar, remoendo a fúria, e, fitando o olhar sinistro no velho imperturbável, insistiu: Tenho queixa, sim. Tenho, como todo o mundo!

— Mas queixa de que, seu capitão? Libânio ficou um momento como aturdido, em verdadeiro espanto! Por fim, atirando os braços, deu as costas ao interlocutor:

— Ora! E, violento, afogueado: Você parece que nasceu ontem, pai. Quem sabe!? Já viram? Parece que nasceu ontem.

— Estou rondando os setenta, capitão.

— E não conhece o Penador?

— Só de ouvir nomear.

— Ah! Só de ouvir nomear? Pois tudo que diz dele é verdade. A cabrocha resmoneou macambúzia:

— E muita coisa não se conta porque não se sabe. Roça seca da manhã pra noite, foi o sol, o sol é que leva a culpa. Animal morre no campo, é peste. Qual peste, qual nada! Quem quiser procure os passos do Penador e há de achar. Criança está no colo da mãe brincando, de repente revira os olhos, estremece e, antes de receber a benção, morre. Doença... E doença anda assim? E o sangue do Penador. Até a sombra desse maldito faz mal.

— Está ouvindo? Regougou Libânio. O velho acenou de cabeça, sempre a sorrir, incrédulo. Libânio irritado, como ofendido na honra, bradou aos caboclos: É verdade ou não é, gente?

— Uai! Verdade pura.

— Olhe, Redomão sabe toda a história desse diabo. Pergunte. Todos os olhos voltaram-se para o peão, que saía do negócio conferindo um troco.

— Redomão!

— Que é lá, gente!

— Vem contar a história do Penador.

— Uai! Então ainda é preciso contar isso? Quem não sabe? E o peão, alentado e airoso curiboca, riscando a terra com a larga rosela da chilena, adiantou-se vagarosamente, risonho. Parou, relanceou um olhar alegre em volta, perguntando em tom chocarreiro:

— Quem é aí que não conhece a história do Penador?

— Este camarada, explicou Libânio, mostrando o velho, sempre impassível. Redomão casquinou um risinho. Jogou o corpo numa guinada e, de cabeça baixa, enrolando o cigarro, falou ao velho:

— Ainda que mal pergunte: Vosmecê não é daqui?

— Não sou.

— Está se vendo.

— Estou aqui de passagem. Vou pra Bom Jesus.

— Vai no bom tempo. Acendeu o cigarro e, sentando-se no poial, o curiboca começou: Pois então escute lá a história do Penador e depois, se achar do que rir, ria à sua vontade.

Os caboclos atropelaram-se aos empurrões, formando roda, uns de cócoras, firmados nas pontas dos pés, outros estirados de flanco, o busto soerguido sobre o cotovelo. O velho encostou-se a um dos esteios, sempre fumando, com um riso escarninho estampado no rosto.

Longe rinchava um carro de bois com estridente e monótono soído; anuns piavam nas moitas próximas e, ao sol cáustico, que fazia rebrilhar a estrada, moscas esvoaçavam tontas. Redomão pôs-se a falar:

— Ali assim, por detrás daquele cerrinho, é o sítio de nhô Barreiros, o Frutal. Vosmecê conhece? O velho afirmou:

— Hen-hen!

—Terra que vale ouro! Pois foi ali mesmo que começou a trabalhar o mau sangue do Penador. O dono daquele sítio era um moço bom como ele só, nhô Pires, casado com a moça mais bonita destas paragens, nhá Lina Cabelo era ali! Nunca vi igual nem nunca mais hei de ver. E tanto tinha de bonita como de boa. Foi um choro de fazer pena por esses ranchos quando ela morreu, coitada! A cabrocha acrescentou em tom plangente:

— Ainda hoje se chora.

— Ainda hoje! E os caboclos confirmaram em acenos compadecidos.

— Nhô Pires — era ele, a mulher e um filhinho, louro que nem inglês — querendo aproveitar a terra, foi à vila Velha e ajustou camaradas: gente destorcida pro serviço. Penador veio no bando. O nome dele é Serafim. Moço, boa cara, boas maneiras e vivo na enxada que era um gosto. Foi logo ganhando a estima dos patrões e merecia, isso merecia. Não havia outro como ele para roçar um mato, para cavar um aceiro, para derrubar uma árvore. Braço valente! Nhô Pires não cabia em si de contente. Vosmecê lembra, capitão? Só falava do sítio, da sua gente, das plantações, da colheita e já pensava em comprar mais terras para emendar com as dele, quando, uma manhã, nhá Lina acordou gemendo e gemido foi esse que, de tardinha, seu vigário estava entrando no sítio com o Santíssimo e, no abrir da lua, a alma da moça subia para o céu, com os anjos. O que foi essa morte nem eu sei contar. A casa ficou fechada e nhô Pires, escaveirado, chorava que nem criança. Saía de noite pelos caminhos, ia beirar o cemitério e a gente ouvia o choro dele, triste, triste de cortar o coração mais duro. Nem bem havia passado de um mês quando o pequeno caiu com febre.

— Eh! Sangue, rosnaram com terror. Redomão olhou em volta e prosseguiu:

— Nhô Pires fez tudo: mandou longe buscar um doutor, mas qual! A criança ia acabando devagarinho. Que remédio?! Penador estava no sítio cavando e, de noite, com pena, ia ficar com nhô Pires perto do curumim. Lá foi! Que dor! Minha Mãe do céu. Nhô Pires, coitado! ... Enfim... Ficou só e o Penador na terra, trabalhando e o sangue do Penador fazendo ingratidão. Nhô Pires não podia adivinhar. O tempo correu levando a tristeza e o moço, coitado! Entrou no trabalho com a sua gente. Era desde o amanhecer até as Ave Marias um malhar de ferro numa toada, todo o mundo vergando a espinha, suando no duro e a terra... Pra trás! Nhô Pires semeava, o sol matava a semente: tornava a semear, a chuva varria tudo. Vosmecê já viu a terra adoecer? Pois adoece que nem gente. O Frutal ficou em petição de miséria. A vida de nhô Pires desandava, desandava mesmo e tanto ele sofreu, tanto perdeu que, uma manhã, sem fazer conta do prejuízo, vendeu o sítio a nhô Barreiros. Foi depois do negócio que nhá Malvina - Deus lhe fale na alma! — disse a razão da desgraça. Nhá Malvina conhecia gente de mau sangue pelo azedume do suor e foi ponto passar uma vez perto do Penador para ver que ele era dos tais. O mal estava feito. Nhô Pires montou a cavalo e desapareceu e, até hoje, ninguém sabe dele. Nhô Barreiros tomou conta do sítio, despediu o Penador e, sem despesa maior, em pouco tempo botou aquilo que nem um brinco. Penador ganhou o mundo, trabalhando onde topava que fazer. Mas era ponto pôr a mão numa coisa, fosse o que fosse, era aquela certeza. Serviu nas obras da ponte nova e aconteceu o que aconteceu. Entrou de campeiro no Monte Alegre e deu uma peste no gado que foi mesmo um despropósito. Ganhou fama! Hoje não há quem não conheça o Penador, ninguém quer saber dele, nem de graça. A gente tem pena, mas que há de fazer? Se ele, de noite, com fome, entra numa roça e furta uma espiga de milho, o milharal amanhece praguejado. Libânio adiantou-se e, estendendo o braço na direção do cerro, disse:

— Olhe, ali havia uma fonte, a água melhor deste lugar, o danado bebeu... Que é dela? Ficaram as pedras por muito favor. Pior que raio!

— E como vive essa criatura? Perguntou o velho.

— Sei lá! exclamou Libânio, com ódio. A cabrocha explicou, sempre amazorrada.

— É o cachorro.

— Que cachorro?

— Um tinhoso que anda sempre com ele. É ele que dá tudo.

— O cachorro?

— Cachorro... O diabo é que é. O velho sorriu.

— Vosmecê não acredita? Bradou Redomão. Pois olhe, ele está pertinho daqui, debaixo do umbuzeiro. Se vosmecê quer ver sua vida virar de uma vez vá ter com ele, lá.

Nesse momento uma voz de criança, bradou na estrada: “Olha o Penador!” Outras vozes cresceram: “Mofino! Penador!” Os caboclos levantaram-se em alvoroço, alarmados; saltaram à estrada. O velho seguiu-os. Libânio correu ao negócio e voltou empunhando uma garrucha de dois canos.

O sol ardia. As árvores imóveis, muito lustrosas, cintilavam. Dos capins amolecidos subia um cheiro quente de silvas queimadas e a estrada amarela, poenta, estendia-se direita por entre o macegal.

Um homem esfarrapado, descalço, barba farta e inculta, um velho chapéu de palha enterrado na cabeça, com um cão no rastro, vinha vindo lentamente, vergado como a um grande peso. Por vezes cambaleava e a sua sombra tremia ao sol. O velho olhava, com a mão em pala, e a cabrocha, que tirara um rosário do seio, repassava as cortas murmurando exorcismos.

— É ele!

— É!

Houve um silêncio de hesitação. O homem avançava numa nuvem de poeira, fina e luminosa como um halo. De instante a instante parava, virando, revirando a cabeça como à procura de alguma coisa. O cão metia-se nos matos, farejando, saia à estrada, sempre de focinho baixo, em farisco aqui, ali. De repente Libânio adiantou-se com arrogância, empunhando a garrucha engatilhada:

— Volta! Volta pra trás, Penador, senão vai bala!

— Volta, desgraçado; intimaram os caboclos. O homem estacou, esteve a olhar, sem o mais leve movimento, hirto ao sol.

— Volta! Não teima, insistiu Libânio. Ele fez um gesto e, rebuscando o saco que trazia às costas, puxou-o à frente, tirou uma cuia, tomou-a a mãos ambas, acenou com ela à boca, derreando a cabeça em menção de beber e, com toda a força que lhe restava, rouquejou:

— Água!

— Vai beber no inferno, seu sangue ruim! Respondeu o capitão. O velho murmurou comovido:

— Isso é falta de caridade, gente.

— Uai! Chasqueou Redomão, vosmecê está com pena? A pois... Porque não vai lá? O velho deu de ombros e, enchendo o cachimbo, tornou vagarosamente ao alpendre resmungando.

— Ah! Você não volta? Rugiu Libânio.

Um tiro atroou, rolou no silêncio do descampado. O velho precipitou-se na estrada espavorido e ainda pôde ver o infeliz que fugia a correr, com o saco a saltar-lhe às costas, sempre seguido do cão. E os caboclos riam as gargalhadas sapateando no pó.

— Este foi só mode assustar, disse Libânio, mas se ele teimasse o outro ia mesmo, duro. Pra longe, sangue danado!

Regressaram todos ao alpendre e o velho, em resposta à troça que lhe fizeram, engrolou meio desapontado:

— Eu não digo que não acredite, mas uma sede de água não se nega a ninguém, um inimigo que seja.

— Uai! E vosmecê não estava aí? Como não foi levar?

— Não vê! Exclamou um da roda. Falar é uma coisa. Esse é dos tais que empurram a gente pro fogo e ficam agachados no mato mordendo cartuchos. O velho meneou com a cabeça sorrindo e, acendendo o cachimbo, recolheu-se, de novo, ao seu canto, atirou-lhe ao poial. Redomão, sempre alegre, atirou-lhe uma palmada ao ombro.

— É assim mesmo, compadre! Deixa lá! Seguro morreu de velho. De tolo é que você não tem nada. E, ajustando ao queixo a barbela do chapéu, saiu do alpendre. Bom, gente, a prosa está boa, mas o serviço está me chamando. Até amanhã!

Foi ao telheiro, puxou o pangaré pelo cabresto, montou-o de um salto e picando-o rijo, sacudiu o braço num adeus geral. O cavalo arrancou em galope arrojado.

Uma nuvem de poeira levantou-se na estrada, houve um desabrido ladrar de cães e, de novo, o silêncio caiu na reverberação entorpecida e estuante do sol.

NO RANCHO

I

A Medeiros e Albuquerque

O solo, de areia fofa e adulta, com a macega arrepiada e seca, tinha o aspecto misérrimo de uma vasta esturrada ipueira. Lanhos fendiam a terra friável, de uma cor dessorada, esbarrondando-se esfarelada ao cauto pisar das mulas.

De longe em longe, à maneira de marcos colossais, avultavam negros penhascos com erva em tufos pelos rebordos ou rompendo das luras em vibrissas híspidas.

Altos mandacarus retorciam-se angustiados, espalmando avidamente as línguas brônzeas e, em torno, em viço hostil, eriçavam aspas os gravatás ressequidos.

Por vezes, abrupto, o terreno fugia, resvalava em rampa, quebrava-se em escalões sob a ervagem espinhenta e os animais ladeavam moutas douradas e navalhantes, esmaltadas das “gemas de ovo” dos joás, sentindo debaixo das patas o vácuo dos caldeirões, o cavado das grotas.

Para um lado, em muralha ameiada de arestas agudas, eram os alcantis de pedra nua e, assoalhando aridamente a planície calcinada, alvos lençois de areia, dunas pojadas, de um brilho vítreo, micante que deslumbrava.

Sentia-se uma adustão de rescaldo subir em fluido trêmulo do vagueiro deserto. O ar morno, rútilo, abafava.

A espaços, um coqueiro derreava-se, com as palmas esfarrapadas, algumas já mortas, pendidas, esperneando ao longo do caule como enormes centopeias.

Anuns reluzentes abalavam em voo mole, cansado, piando; pousavam em ramos frágeis equilibrando-se oscilantemente. E a tropa, zurnida pelo sol, seguia em chouto, sacolejando os surrões no rastro da Faísca, a mula dianteira, que batia os cascos, espalhando areia, sacudindo airosamente os guizos da cabeçada, com o chocalho a cascavelar o ritmo da marcha.

Eram oito animais de cargueiro, rijos, de piso firme, vaqueanos naquele rumo. Desfilavam seguros através da planície árida, rasa, sem nesga de sombra nem úmida frescura de água.

Dos hirsutos capins penugentos gafanhotos espirravam em enxames voejando com estralejo ríspido. Lagartos esfuziavam metendo-se pelas taliscas e, no silêncio fulgurante e tórpido, sentia-se, por vezes, um hausto abrasado como o ofego ansioso da terra nos paroxismos da fecundação.

O céu, de um cerúleo polido de esmalte, reluzia, vasto, impassível, sem nuvem: e longe, em redente azul, como envolta em fumo diáfano, a serra, alta e frondosa, fechava o horizonte.

A Faísca pimponeava arrastando o comboio no seu garbo e, lustrosos, os surrões de sal ringiam dessorando, aos vascolejos nos flancos das alimárias, cujas patas ferradas, por vezes, tiniam em pedras.

Soeiro, o velho sitiante, dono da tropa, alentado caboclo, já grisalho, com o seu peitoral de couro, chapéu cabano de abas abatidas, rifle às costas, deixava-se levar ao passo piçado do pangaré, taciturno, o relho a prumo na coxa, os olhos semicerrados em sonolência.

Os comboieiros, um negro e um caboclo acobreado, estugavam os animais, galopando ora a um flanco, ora a outro, aos atritos; e, à frente, quase emparelhado com a Faísca, Jão, filho de Soeiro, rapazote de doze anos reforçados, com um chapeirão de carnaúba e vestia sertaneja, bolsa e faca, trefegava no lombo do macho, bambeando as pernas, a atirar relhadas a esmo espantando as muriçocas.

Haviam deixado a vila ao romper da alva e, depois do almoço e uma sesta preguiçosa à sombra de um umbu, lá iam de batida, estirão fora porque Soeiro, amolentado, com a cabeça a estalar e as pernas frouxas, doridas nas juntas, ansiava pela casa, forçando a viagem para poderem chegar na tarde do dia seguinte.

Iam feitos ao rancho d'Água santa, além da serra, nos bravios da outra banda: e de lá, pela doce sombra da estrada, toda entre árvores, por vezes limpidamente cortada por um ribeiro sereno, sairiam de madrugada, ao rumoroso acordar das pombas.

Ao fim da garganta escabrosa, entre barrancas escalavradas em escaras de granito; por um solo áspero onde o passo dos animais estralava sobre a crosta de lajes Faiscantes, apareceram árvores de larga fronde. Mas o que pôs em alvoroço a companhia foi a mouta de buritis anunciadores da água.

Era uma ponta viçosa de mata. Homens e animais resfolegaram antegozando a delícia de um pequeno descanso naquele refúgio.

O terreno subia em aclive, duro e seco, mal vestido de ervagens entanguidas. Bandos de jandaias passavam chalrando na direção do arvoredo e as mulas, na pressa ávida da sede, romperam a trote, apesar das vozes dos comboieiros que receavam pelos surrões.

Mas a Faísca, afogueada, desatendia aos gritos. Foi necessário correr, largar as montadas no encalço da tropa que, com um frouxo, ressoante rebater das cangalhas, arrancava a galope amotinado, direito ao mato, cheio do chirrio estridente das cigarras.

A Faísca enveredou esmagando as ervas, com os surrões aos esbarros pelos troncos e, em fila, seguiram-na as outras mulas; e os comboieiros; varejando o cerrado, arremeteram em desapoderada corrida.

Jão conseguiu tomar a frente à récua e, hirto nos estribos, aos berros, atirava relhadas contendo os animais que se juntaram em bolo, refugando.

O ar fino, cheiroso, do interior sombrio foi um refresco reparador para todos. Sentia-se o aroma picante, das resinas e o cheiro úmido dos aguaçais lodosos.

Borboletas voavam por entre os ramos e, de espaço a espaço, insinuando-se pelos escassilhos das franças, um raio de sol descia a terra, abrindo-se em disco luminoso nos balseiros de folhas ou rebrilhando trêmulo nas marnotas enxameadas de moscas reluzentes.

O comboio penetrava a passo. Por vezes um grosso cipó em redouça forçava os cavaleiros a curvarem-se sobre os animais ou era um tronco, atravessado na trilha, coberto de tortulhos como um cadáver a rebentar em podridão.

Um soído perene zunia no silêncio augusto. Teias de aranhas oscilavam abertas entre os galhos e os insetos fugiam-lhes ainda que, não raro, desviando-se, em vivo golpe, de asas, da que se lhes antolhava diante, esbarrassem em outra, escondida na sombra, onde ficavam cativos. E zumbiam vibrando desesperadamente as asas, em esforços de se arrancarem à cilada; e a aranha, ao centro, impassível, quedava encolhida, certa da segurança da presa.

Iam os comboieiros vagarosamente quando a Faísca, que se desviara para uma estrada estacou de orelhas tesas, olhando a fito. O resto da tropa esbarrou espantado, como um muro que, subitamente, se houvesse erguido. Alguma coisa assustara os animais, detendo-os.

Efetivamente, por entre os ramos, subia um fumo lento e azul brilhando em gaze revolta ao atravessar um raio de sol.

Jão, espalmando a mão na garupa do macho, voltou-se para Soeiro:

— A mode que tem gente na beira d’água.

— Mió! Disse o sitiante com indiferença.

A água defluía com um brando murmúrio por baixo das ervas, espelhando, aqui, ali, em abertas, até sair livre num rego e discorrer cristalina sobre um negro fundo de todo em que se desgrenhavam raízes capilares.

Insetos finos, ágeis, resvalavam na superfície lisa da corrente investindo a um e a outro lado e negros bobos, em forma de cravo, rabeavam cardumes chafurdando na vasa ao perceberem os intrusos.

Os animais, atolando-se lascivamente no lameiro, baixaram o focinho e puseram-se a sorver sôfregos, agitando a cauda, com que zurziam os moscardos. Roncos e borborigmos saíam-lhes do ventre, e, por instantes, rolou soturno, reboante na quietação silvestre o grugrulejo sedento da récua a desalterar-se.

Os cavaleiros apearam e Jão, que se metera afoitamente ao mato, quedou junto a um penhasco, olhando. Os comboieiros seguiram-lhe as pegadas; só o sitiante conservou-se montado, as mãos juntas, pousadas no pescoço do animal, afrouxando as rédeas para que ele bebesse.

Matutava distraído, a olhar os altos fechados em rama espessa por entre a qual, com o bolir da aragem, apareciam bocadinhos de céu dando a impressão de flores azuis abertas lá em cima, ao sol.

Japis chasqueavam e rendeiras davam estalos repenicados como estrilos de bilros.

A um aceno de Jão os comboieiros avançaram à sorrelfa, cautelosos, e o rapazola mostrou-lhes à beira da pequena lagoa, junto à nascente, um grande velho magro, com os ombros em ressalto giboso e espalhada à farta pelo peito, sobre os remendos de um casacão sovado, a barba longa e amarela como estriga de milho.

Curvado sobre um fogo de gravetos, que as taiobas protegiam do vento, assava, na ponta da faca, um lassalho de carne. O seu bordão, encostado a uma árvore, era alto e terminava em gancho como o dos santos. Um saco de lona pendia de um ramo, e, numa pedra, jazia o largo chapéu de feltro. Os comboieiros olhavam e foi Jão que interrompeu o silêncio pasmado cochichando:

— Não é gente daqui, não.

— Não é! Afirmou o negro. Tem jeito de alemão. Oia bem. Até parece, mal comparando; o Judeu Errante. Aquilo é barba de criatura batizada?! Oia só. Qui é qui ocê diz, Job? O outro, encolhendo os ombros, exclamou:

— Eu sei! Jão perguntou ao negro:

— Ocê tem coragem de falar, Tarquino?

— Eu? Que é que eu tenho com esse bicho? Eu, não! Seja quem for, não é da minha conta. E deu volta. O caboclo seguiu-o. Jão ainda ficou a olhar, boquiaberto. Mas o velho Soeiro, ao ter notícia do encontro, quis ver o homem e, apeando a custo, prendeu as rédeas do pangaré a um galho e caminhou chapinhando no todo flácido.

Ao estralejo da folhagem o velho voltou a cabeça bíblica e, dando com o sitiante, carregou o sobrolho encarando-o imóvel, com o naco de carne a rechinar ao lume.

Os ossos do rosto saltavam-lhe sob a pele crestada; a fronte, alta, escampada e lisa, tinha um brilho ebúrneo; a barba espalhava-se-lhe no peito e os cabelos brancos, em falripas, esvoaçavam à viração.

Os olhos pequenos, agudos, de um azul metálico, luziam no fundo das órbitas sob a espessa macega das sobrancelhas, e recurvo, afiado em gume, o nariz avultava-lhe no rosto, hostil como um bico de abutre.

Não fez menção de erguer-se, mantendo-se impassível, Soeiro saudou-o:

— Deus lhe dê boa tarde. O homem permaneceu imóvel, sereno, de olhos fitos. Os comboieiros agruparam-se em volta do sitiante e o negro sussurrou:

— A mode qui não intende. E, em tom pressago, ajuntou: Quem sabe!

— O quê? Perguntou Soeiro, impressionado.

— Uai! A gente no mundo topa di tudo. Não deixe qui ele anda pur aí penando?

— Quem, criatura?

—Antonce mecê não sabe? E baixando a voz: o Judeu Errante. Oie bem nesse homem. Onde é que já se viu gente assim? E o negro afastou-se persignando-se.

Soeiro não desfitava os olhos do velho:

— Ainda que mal pergunte: vosmecê é daqui? O homem relanceou o grupo com um olhar atrevido, mas levando o pedaço de carne ao lume pôs-se a virá-lo na ponta da taca, cerrando os olhos a fumaça que subia dos gravetos.

— Pode ser estrangeiro, disse o negro.

— Donde?

— Sei lá! O outro também é. É lá dessa terra danada onde mataram Nos’Sinhô. Oie, seu capitão, ansim com’ansim seja quem fô, o mió é a gente não se fiá. Bamo tocando! Quem topa no mundo com esse véio perde a sorte, nunca mais levanta a cabeça. T’esconjuro! Bam’embora!

O caboclo foi o primeiro a retroceder cabisbaixo, enrolando pensativamente o cigarro.

Jão seguiu-o, tirou o macho pela rédea, montou sem dizer palavra e abriu a marcha. Os comboieiros tocaram os animais. Soeiro quis insistir com o velho. “Talvez estivesse perdido...” Mas o negro bradou:

— Bamo, seu capitão. Mamparriando ansim, nós não cheguemo hoje n’Água Santa. E modi quê...

E Soeiro, não obtendo resposta alguma do solitário, montou o pangaré e já o chocalho da Faísca tilintava longe quando ele rilhou a esporas o cavalo, que arrancou num galão esparrimando lama e foi-se patejando no terreno mole.

Saíram ao sol e, na segurança do ar livre, à luz plena, enquanto os animais refeitos trolavam no macegal, aqui, ali, acogulado em cupins, foram os comboieiros comentando o encontro.

— O bicho é feio que é danado!

— Que barba!

— E ocê arreparô nos óio? Jão, que ia à frente, virou o macho, fê-lo subir a um ressalto para dar caminho à tropa no trilho estreito, entre barrancos, e esperou os companheiros. A Faísca passou num tira-tira firme e logo a récua em chouto socado. Quando os comboieiros chegaram Jão deu de esporas ao macho e emparelhou com eles.

— A mode que ocê também não simpatizou có véio, heim Jãozinho? O rapazola deu de ombros. E ocê, Job? O caboclo pinchou uma cusparada e, endireitando-se no lombinho, disse:

— Queira Deus! Ocês não se alembra do caso de majó Rufino, do Engenho da Cariman?

— Eu ouvi contá, disse Jão e, tocando o macho para a ilharga do caboclo, pediu: Mas conta. Ocê foi de lá, não foi?

— Fui vaqueiro, por minha desgraça.

— E antonce?

— Majó Rufino era homem de valia e acabô como acabô. Seu capitão deve se alembrar.

Soeiro acenou de cabeça afirmando. E o caboclo narrou no silêncio atento: Uma noite, com trovoada brava, no alumiá de um relampo, apareceu um véio no copiá pedindo pouso. Não dixe quem era nem de onde vinha. Majó Rufino, que não acreditava nessas cosa, abriu a porta e arrecebeu o pilingrino. Dixe que quando ele pôs o pé na sala a luz do lampião tremeu, as viga todas estralaram e uma criança pagã, que tava dormindo numa esteira, acordô, sentô sozinha e chorou. Majó Rufino nem cumu coisa... O veío não se deitou na rede nem tocô no prato de comida: andô toda a noite no quarto, bangu, bangu, de cá pra lá, de lá pra cá, falando só. De manhãzinha saiu e bateu pé sem deixá rastro. Foi a desgraça que entrou naquela casa. Sem que nem pruquê, que o ano não foi de seca, o canaviá deu em murchá e mirrô da noite pró dia, o gado caía no campo bambo das perna, ca língua pendurada, e morria. Nhá Clodina, muié forte que fazia gosto, teve uma dô e morreu sem dá tempo pra nada, um raio pôs fogo no paió até que majó Rufino, que já andava meio avuado, deu em dizê barbaridade contra Nós’Sinhô, querendo quebrá os santos da capela, metê o machado no artá. Uma noite desapareceu e, até hoje, ninguém sabe dele. Diz que anda com Judeu Errante. Verdade ou mentira, o causo é que isso tudo aconteceu. O Engenho tá lá, terra boa, mió não há e ninguém qué. Não é verdade; seu capitão? Soeiro afirmou. Gado que pasta naqueles campo morre de empache; fruta daquelas aves nem passarinho come.

— E ocê viu o véio, Job?

— Eu, não; graças a Deus! Tava na maiada. Quem me contô foi Firmiana, mãe do Tilo seleiro. Calaram-se.

A luz crua do sol cintilava nas pedras, o caminho crepitava, árido, sob o passo dos animais. Da sombra de um umbu, solitário nós paramos alvacentos, um bando de pombas abalou com estridor de asas demandando os alcantis ourelados de mato palhiço.

Pegões de vento adusto revolviam a poeira levantando turbilhões que percorriam o agro em espiras torvelinhantes levando de envolta folhas secas. Nuvens cresciam lumidas acumulando-se na barra do céu empanado de nevoaça; e o calor abafava, enervava.

O silêncio era de morte na fulguração implacável. Longe em longe, em queixume, um pio de ave soava. Os animais reluziam suor, abanando as orelhas, de cabeça baixa, olhos semicerrados, destilando em chouto mole.

— Súbito: Ó gente! Bradou Soeiro, sustando o pangaré, a mode que nós bamo errado. O negro reteve a mula e, tirando o pito da boca, retrucou:

— Uai! Antonce vosmecê não conhece o Pedregá, seu capitão? Nós tamo no Pedregá. Daqui a um nadinha é a Lagoa d’Anta e começa o caminho bom, por meio dos cajueiros. É rindo: Havia de tê graça, gente véia perde rumo. Mas o sitiante insistiu:

— E aquela mata acolá?

— Mata? Ah pois aquilo não é o Buritisá? Vosmecê tá esquecido? Sem responder, o sitiante tocou o pangaré e o negro atirou a mula pelo areal balofo no rastro do comboio, que ia longe levantando uma poeirada de ouro.

Soeiro gemia entalando a cabeça nas mãos, as rédeas esquecidas no pescoço do animal. Sentia como um capacete de ferro apuado que lhe fosse apertando a cabeça, esmagando-a, varando-a, e uma sede abrasada fazia-o recorrer, de instante a instante, à borracha, mas a água grossa, morna, salobra, causava-lhe repugnância.

Cuspinhava enjoado e lá ia à discrição do cavalo, ardendo em febre, queimado pela soalheira, tonto, a bambear como ébrio, sem consciência do caminho que seguia.

Nuvens densas, escuras, subiam atropeladas no céu de cobalto, assediando o sol. Uma nesga alcançou-o e logo larga sombra rapidamente correu, alastrou a planície arenosa. Era a tormenta improvisa, o assalto traiçoeiro da tempestade estival. Os raios do sol, escapando-se do soçobro, refrangiam em feixe sobre as colinas que haviam ficado atrás; e à frente era o negrume tempestuoso Surdos rumores retumbavam. O caboclo bradou:

— Aperta, gente! Água véia tá ai, não tarda não. Siricora tá cantando.

— O mió é a gente tocá pro Buritisá, disse o negro. Tá li memu e a gente fica no rancho de Pajeú.

— No rancho de Pajeú! Exclamou Jão num arremesso de espanto.

— Ocê tem medo, Jãozinho? Bobage! Deus dê vida e saúde a quem já drumiu ali uma noite sozinho, no tempo das inteição quando houve a queima do coroné Fernande.

—Ocê?

— Uai! Garrucha véia queria comê eu... Eu só e Deus. E não vi senão bacurau e de voz só a do cururu no brejo. O lugar é bom e Pajeú fez um rancho p’ráguentá tempo. Antes ali no gazaiado do que dibaxo de chuva por este estirão mardito. Oie! E apontou com o relho o arvoredo, na baixada. Voltando-se, então, no lombilho, encheu a voz e falou a Soeiro distanciado: Capitão, o mió é a gente tocá pro rancho de Pajeú, antes de caí o tempo.

Soeiro não respondeu e com a cabeça tombada, ansiando e gemendo, à distância, parecia cochilar no lombo do pangaré que acompanhava passivamente o comboio.

— Toca! Ordenou o negro, e o caboclo, esporeando a mula, bradou a Jão:

—Toca pro Buritisá.

Rija lufada levantou uma poeira densa e o rapazola, tomando a dianteira, estalou a taca. A Faísca amiudou o passo puxando a tropa. E trágico, a um clarão lívido, ribombou o estampido do primeiro trovão.

II

O Buritizal era uma explosão de verdura.

Depois da imensa, rasa e desolada planície, amarelenta ou branca sob o areal calcinado, queimando e reluzindo ao sol, avultava improvisa aquela mata soberba como a expansão violenta do húmus recalcado, o rebojo impetuoso da seiva abafada sob o solo tórrido, impermeável daqueles paramos, afluindo em viço sobrenatural, dando à paisagem pletórica a grandeza desconforme de um paraíso no limite de um inferno.

Era um luxuriante, aceitoso oásis extremando-se da inclemente lhanura, com as fontes em borbulhos escachoantes, fios ligeiros e cristalinos da água serpeando, abafeiras traidoras sob ervaçais, troncos monstruosos, palmeiras esbeltas, feitos em rendas delicadas, mimosas, avencas e tramas aéreas de cipoais que parasitas enfeitavam como floridas cestas, oscilando de leve ao sopro da aragem.

A terra mole, pastosa e negra, reçumava em apojadura perene como um peito turgido que dessorasse alagadoramente escoando, aos golfos, as sobras revessadas pelas raízes fartas.

As veredas desapareciam da noite para o dia ao pulular fantástico das ervas. Em torno da raiz ressaltada de um tronco rebentavam renovos, enfolhavam-se, eram, em breve, outras árvores.

Os ramos vergavam e altas, densas, as frondes, unidas espessamente, pareciam a copa de uma só árvore prodigiosa onde se juntavam, com um chalreio, um grasnido atroadores e silvos, guinchos, pios: aves, saguis, macacos e, sem descontinuar, choviam, em estalidante saraivada, frutos, coquilhos, galhos secos, cascas de árvores como se os animais se divertissem esbulhando a floresta que os agasalhava e nutria.

Uma lagoa escura espraiava-se adormecidamente, larga e quieta, em sombra lúgubre. Em torno, pelas margens resvaladias, eram ervas intonsas, flores bizarras, árvores pendidas, ramos arriados com as folhas imersas, apodrecendo na água velada e subindo eretas da marnota, dentre folhas em patena ou em discos de bordos revirados, ninfas lânguidas abriam corolas magníficas de finas pétalas transparentes, embalsamando venenosamente o ar.

E a vida do vasto rebalso era animada pelo voo enxameado das moscas luzentes, das lavadiscas que esfuziavam, dos mangangás que zuniam, dos grandes besouros que passavam de arremesso e, não raro, o pium inflectia num bote de frecha, levando no ferrão o vírus que inflama e abre a carne em ferida.

Cotias ariscas atravessavam as abertas aos pinchos, sentavam-se levando a comida à boca com as patas, olhando desconfiadas e, ao mais sutil bulício, metiam-se sob a folhagem. Siricoras cantavam à beira da água.

Por vezes, com forte bater de asas, o mutum remontava de um cerrado às franças altaneiras.

Triste, fúnebre, a espaços o uru gemia na espessura e, longe, a araponga metálica rangia limando o canto até ressoar, de ímpeto, em golpe de malho que repercutia tinindo.

A sombra era fria, um ar de caverna circulava e, como fechando o interior com selos misteriosos, aranhas estendiam as teias em todos os pontos — entre os galhos altos, nas redes dos cipós, no caule dos arbustos, na erva rasteira que reluzia úmida.

Era à entrada dessa opulência bruta, cercada de mato agressivo, que se acaçapava, como a esconder-se, a choça chamada — o rancho de Pajeú.

O comboio caminhou vagaroso, Jão à frente, guiando a Faísca em direção à mata.

Obumbrava em crepúsculo. O céu alumiava-se aos sucessivos, trêmulos relâmpagos. Trovões rolavam, estrondavam em seco.

Longe, na deserta e funérea planície, raios zebravam o negror das nuvens. Pegões de vento levantavam turbilhões de poeira.

Mal chegados ao rancho os comboieiros apearam, descarregaram os animais, soltaram-nos no cercado e, recolhendo à palhoça, arrumavam os surrões quando ouviram as primeiras gotas de chuva bater, estralar nas folhas como pedradas e, logo em seguida, fragorosamente, despejou-se o aguaceiro.

O velho, indiferente a tudo, estendeu a manta no chão e deitou-se gemendo, com as mãos à cabeça, rolando desatinado, sem responder às perguntas que lhe faziam. O negro fez lume, aqueceu a paçoca, pôs a chaleira ao fogo. Soeiro rejeitou o alimento, gemendo, encolhendo as pernas doídas como se lhas houvessem marretado.

A noite veio vindo tenebrosa. Os sapos começaram a coaxar, ora soturno ou vibrante, ora em gargarejado soído. Os grilos estrilavam em rumorejo e, ao rijo lufar do vento, as frondes levantavam um rumor estrondoso como de cachoeiras precipitadas.

Tarquínio acendeu o pito e, de cócoras junto à fogueira, que laivava de rubro o palhiço da choça e ensanguentava os esteios fazendo dançar sinistras sombras desproporcionadas, lembrou o valente cangaceiro, terror daquelas paragens, Pajeú, que ali vivera homiziado, saindo, à noite, a assaltar comboios, dispersando-os só com a fama terrível do seu nome.

Tarquínio conhecia a vida do famanaz que tinha pacto com o demônio e contava-a em voz surda e pausada.

A lenha crepitava estrelejando faíscas. Por vezes, na cerca, um dos animais bufava e, amainando a tormenta, discos de luar desceram à terra, clarões pálidos escorreram pelos troncos, luziram nas poças da água e nas úmidas folhas e enxames de vagalumes romperam cintilando.

No recesso da brenha um som rouco reboou. Os animais estropearam na cerca, assustados.

— Oia onça...! Disse a medo o caboclo: e fez-se um silêncio de horror, todos atentos como à espera do novo rugido.

Soeiro sentou-se de golpe, as mãos nos joelhos, ansioso. Rolou olhos de espanto, pediu água em voz escassa e aflita. Jão acudiu com a borracha e só, então, sentiu o calor que abrasava o velho.

— A mode que ocê tá com febre, nhô pai. O velho não respondeu deixando-se cair nos arreios, gemendo. O rapazote comunicou aos companheiros o seu cuidado:

— Ocês conhece febre?

— Quem não conhece?

— Então vê se o véio não tem? O caboclo foi de vagar, passou a mão pela testa do velho, tomou-lhe o pulso, sentiu-lhe o ofego do peito e, recuando, acocorou-se junto à fogueira:

— Febrão! Tá queimando.

— Vá ver que a gente fica aqui amanhã mode ele... Disse o negro.

— Isso foi do só bravo de hoje. Eu também tô com dor de cabeça, e o rapazote, que falara, comprimiu as têmporas.

— Ahn! Fez o caboclo. Os companheiros fitaram nele os olhos sarapantados.

Ele puxou uma brasa para o cachimbo, calcou-a no fumo e, baforando uma fumaça, repetiu o arranque: Ahn!

— Que é? Perguntou Tarquínio.

— Deus queira! Deus queira! Foi o diabo que mandô a gente entrar naquela caatinga danada.

— O véio?!

— Ahn!

— Eu também já pensei nele. Jão, boquiaberto, com o rosto reluzindo a chama fulva, os cabelos arrepelados, olhava ora um, ora outro dos companheiros.

Rajadas de vento marulhavam na mata, vozes indefiníveis passavam na quietude. O luar clareava criando perspectivas estranhas – fundos de grutas, altares, vultos amortalhados.

O caboclo saiu à beira da trilha olhando a noite, as estrelas nítidas que apareciam pelos raros da folhagem escura.

As árvores como que se moviam torcendo-se em preguiçamentos voluptuosos, inclinando-se umas sobre as outras a combinarem traições e, outra vez, trágico, soturno, o rugido atroou, rolou mais longo.

Um dos animais resfolegou na cerca e todos, atropelados, arrojaram-se de encontro à estacada abalando-a.

— É a danada mêmo, disse o negro, juntando-se ao caboclo e, depois de atentar um instante, entrou, apanhou o rifle, saiu ao meio da trilha e detonou. Um grande eco, ribombou e houve um farfalho de folhas como em fuga precípite de patas. E o silêncio restabeleceu-se mais profundo.

Soeiro pôs-se a resmungar palavras vagas, tontas, incompreensíveis. Jão acercou-se dele. O velho agitava-se, encolhia, estirava as pernas, jogava os braços debatendo-se angustiado.

Sentou-se circunvagando o olhar, pôs-se de pé, aturdido, como estremunhado contraindo o rosto em caramunhas.

De repente, avançando, ordenou: Vamos, gente! Quis andar, mas oscilou, bambearam-lhe as pernas. Jão amparou-o nos braços, fez-o sentar-se junto à fogueira e, à luz, os comboieiros viram, com assombro, os olhos do velho enormes, esbugalhados e toda a cara sarapintada como apodrecida. O negro, escancelando a boca, mirava o patrão. De repente, atirando uma cotovelada, chamou a atenção do caboclo.

—Job; óia na cara do capitão. Olha bem. Não parece bixiga? O caboclo não respondeu, mas os olhos acenderam-se-lhe intensamente, alumiados para a visão sinistra. É bixiga! Segredou o negro recuando instintivamente e cuspinhou.

Soeiro descaiu, estendendo-se no chão, guardado pelo filho. Os comboieiros esgueiraram-se sussurrando, foram ficar ao tempo, longe da peste pútrida.

A noite foi lenta, apavorante com as mistificações do luar e os sussurros misteriosos da mata. Os comboieiros, ao relento, olhavam o lume que vermelhejava no rancho, e como o velho aquietasse adormecido. Jão saiu pé ante pé, procurando-os.

— Onde é que ocês tão?

— Aqui, disse o negro e o rapazote, guiado pela voz, encaminhou-se achando os dois sentados na raiz de uma árvore.

— Ocês me deixaram sozinho.

—A gente tava aqui. Calados acenderam os pitos e puseram-se a fumar. O rancho, com a fogueirinha acesa, lembrava um presépio. Os animais inquietos farejavam.

O frio da madrugada retransia como no inverno. Nos ramos altos boliam os pássaros madrugadores e o ar acinzentava-se peneirado de névoa rala que subia, ondulava como fumarada. A mata exalava fragrante.

Um chalrado rompeu o concerto das aves; estralaram bicos de tucanos e alegre, na glória vivida da manhã, luminosa e lavada, os pássaros preludiaram e começou o cântico de Laudes, o eterno e festivo louvor da natureza em que tudo entra, concorre ao coro — as águas, o vento, os ramos, as pequeninas folhas, o inseto, o pássaro, e todos os animais cada qual a sua maneira formando o uníssono magnífico que recebe o sol.

Jão, que fora diversas vezes espiar o velho, quando clareou, inclinando-se sobre ele, não conteve o horror:

— Gente! É bixiga! Óia! Os comboieiros, num impulso de curiosidade, chegaram à beira do velho e olharam estarrecidos. O rosto vultuoso, cianótico, empolado em vergões, era uma máscara hedionda. Os lábios túmidos, arroxeados davam à boca o aspecto de uma chaga esponjosa, as orelhas grossas eram as de um lázaro e os olhos, sob as pálpebras inchadas, sumiam num laivo de brilho baço. As pústulas lumuentes aglomeravam-se em núcleos e viam-se-lhe as mãos papulosas, o pescoço rubro, maculado de estigmas. Queimava como um braseiro e o peito, no ofego da respiração opressa, subia, descia fazendo ranger o couro do peitoral.

O horror estatelou o rapazola junto ao velho que parecia acabar na combustão da febre.

De joelhos, as mãos postas, os olhos cravados no pai, rezava devotamente fiado em Deus, só nele. Súbito, a uma ideia, pôs-se de pé, procurou os companheiros e, vendo-os fora, numa réstia de sol, juntos, amedrontados, correu, e, arrebatadamente, numa voz ríspida, silvante, disse aos arrancos, com lágrimas borboloando:

— Gente, ocês tão vendo? Foi o véio, o véio Judeu. Foi ele! E agora é a desgraça em cima de nós como no engenho da Cariman. A gente viu ele, teve perto dele, no ar que ele respirou, no caminho que ele pisou. A gente pegou mardição. Nossa Senhora me valha! Nossa Senhora me valha! E agarrando a cabeça a mãos ambas, curvado, pôs-se a andar, a girogirar clamando: “Nossa Senhora me valha, a nós todo! A nós todo!”

Os comboieiros, imóveis, com pena e terror, não acharam uma palavra de consolação, inertes, tolhidos, abobados.

Os animais resfolegavam na cerca, ansiosos pela ração da manhã e, em toda a mata, estrídula das vozes das cigarras, a vida acordava hílare.

Os comboieiros arraçoaram os animais e cuidaram do almoço aquecendo-o fora, à beira do rancho, a pretexto do fumo que podia incomodar o capitão.

Soeiro não dava acordo de si, denegrido, tumefato, com a respiração áspera e curta. Por vezes um rouquejo estrangulava-se-lhe na garganta.

Jão, que não se lhe tirava de ao pé, inclinava-se sobre ele de olhos muito abertos, pasmado da erupção violenta do mal. Ainda na véspera, posto que se queixasse de dores e moleza de corpo, ninguém o diria doente, senão molestado da viagem, e já trazia no sangue o veneno da peste que o apodrecia em vida.

Fio a fio as lágrimas corriam-lhe dos olhos. Os comboieiros chamavam-no, nem se voltava, ora de pé, ora de cócoras, enxotando as moscas que esvoaçavam ávidas em torno do moribundo. E pensava: Como havia de entrar em casa sem ele? Que diria à mãe velha, às irmãs? E onde o deixaria naquela mata, tão longe! Tão só!

Soprava uma aragem fresca e ele sentia-se como chegado a um fogo. Seria o calor da febre que ia consumindo o corpo do velho que se lhe comunicava em invisíveis labaredas? Tomou o pulso, premiu a cabeça, sentindo-a crescida e oca, azoinada, atroando rumores cavernosos. Fogachos abrasavam-lhe o rosto, inflamavam-lhe os olhos ardidos. Numa suspeita levantou-se dirigindo-se aos comboieiros:

— Gente, a mode que eu também tô cum febre. Vê aqui. Estendeu o pulso ao negro que o tomou em dois dedos, com mal disfarçada repugnância. Um momento fitaram-se. Tem? O negro hesitou; por fim disse:

— Ocê tá meio quente, Jãozinho.

— A cabeça tá me doendo e tô me sentido bambo das perna. Não vá eu tê apanhado a doença. Isso pega, Tarquínio?

— Uai! Qui nem visgo. Quando dá numa casa, varre. Mas não fica cismando.

— Mas não é bom abusá, aconselhou o caboclo. Assim com’ansim, seu capitão, coitado...! A agora é a gente se precatá. E o negro, sentencioso e grave:

— Isso foi o judeu! Bem qui eu disse. Seu capitão temo, tá ai.

Jão ficou um momento absorto, a olhar. O sol penetrava pelo crivo das frondes, palhetava o solo úmido, reluzia nas folhas, descia enviezadamente em faixas polvilhadas de átomos.

Os comboieiros esvaziaram as borrachas para renovarem a provisão da água na fonte próxima e foram indo de vagar, pelo mato denso, conversando baixinho, Jão ficou ao tempo, airado!

Grandes formigas cruzavam-se num trilhozinho carreando óvulos, migas de folhas; ele olhava-as como entretido, mas o pensamento estava longe, na casa. Via-a no doce sossego, alva diante do terreiro liso, com a criação a mariscar cacarejando e alegre, os pombos esvoaçando, os bácoros grunhindo e estendido, num amarelado de ouro, o canavial pegando com a várzea do arroz e funda, longínqua, a montanha crespa onde as guaribas roncavam anunciando as chuvas.

Um suspiro escapou-se-lhe do peito. Deu volta tornando ao rancho, agachou-se junto do velho contemplando-lhe, com piedosa ternura, o monstruoso rosto abostelado, sem feições e inerte.

A imobilidade do corpo impressionou-o. Pôs-se a chamar baixinho: “Nhô pai! Nhô pai!” Sacudiu-o pelos ombros sentindo-o flácido.

“Nhô pai!” Ergueu-se horrorizado sem, todavia, acreditar na morte e chamou-o, por fim em gritar: “Nhô pai!” Nada.

Houve um grasnar espalhafatoso no arvoredo, asas ruflaram e a vozeada das maitacas passou num estardalhaço. Voltou o silêncio e a voz solitária do uru melancólico gemeu monotonamente no fundo do bosque.

Jão caiu de joelhos, mãos postas, chorando: “Minha mãe do céu! Minha Nossa Senhora!” e, diante do corpo, sem sentir a orfandade, só pensava, como em um crime infame, no abandono em que o ia deixar naquela solidão, coitado!

A voz dos comboieiros tirou-o do estupor em que caíra. Saiu-lhes ao encontro, lavado em lágrimas, num descorçoamento de criança perdida, a soluçar, sem ânimo de dizer a verdade triste. Encostou-se a um tronco, inclinou a cabeça ao braço e ficou chorando.

— Que é, Jãozinho?

— Morreu! Nem a gente viu. Mas no rancho um grugrulejo lúgubre ressoou rascante. Precipitaram-se os três e viram o velho escancelando a boca, retesando-se, horrível na deformação túmida do rosto, com os grossos beiços batendo em palpitação convulsa até que, serenando, aquietou.

Um raio de sol, atravessando uma aberta da palha, punha-lhe nos cabelos brancos uma auréola como de santo.

Os comboieiros, imóveis, olhavam silenciosos. Jão, de joelhos, as mãos nos olhos, soluçava desesperado.

Repentina lufada espalhou a cinza da fogueira. O negro retrocedeu, saiu; o caboclo foi-lhe nos passos e, junto à árvore, ao sol, ficaram um momento calados.

— Ocê que sabe, disse por fim Tarquínio, Jãozinho tá ca bicha. Tá ardendo em febre e ca cara começando a pintá. E nós também, Job; nós também, si não foge... O caboclo, de cócoras sobre as pontas dos pés, picava fumo na palma da mão.

— E ocê que acha?

— Eu? Encararam-se. O pensamento era o mesmo, covarde e supersticioso no espírito de ambos, nenhum, porém, tinha coragem de o dizer. O negro pôs-se a andar entre duas árvores coçando arrepeladamente a carapinha. O caboclo atulhou o cachimbo, pegou lume e chupou a fumaça.

— A gente deve de tê caridade, não digo que não, murmurou o negro, mas num causo assim, morre atoa... Si ainda a gente pudesse dá remedo... Ocê não acha? O caboclo deu de ombros, indiferente. O mió é a gente saí. Vai de galope, chega im casa, conta a desgraça, pode trazê socorro. Aqui, que é que nós faz? Tenta a morte só.

— Ocê qué í?

— Ocê vai?

— Ocê indo...

— A pois...!

— E os animá?

— Os animá fica; a gente vorta. Indo escoteiro a gente vai mais depressa. Ocê não acha que é mió? O caboclo levantou a cabeça, ficou um momento olhando o rapazote sentado no fundo do rancho, imóvel junto ao cadáver do pai. Comoveu-se e meneou com a cabeça, desalentado e com pena. O negro, receando que ele se arrependesse, animou-o. Antonces? Bamos ou não? A gente toca e, de madrugada, no cantar do galo, tá batendo em casa.

— E Jãozinho?

— Jãozinho? ... O negro, então, teve a fraqueza cruel. Ocê não vê que ele tá cum febre, criatura? Ocê qué que ele vá por aí pesteando tudo? O caboclo carregou o cenho, fitou duramente o companheiro. Uai! Antonce que culpa tem os outro? A gente há di por aí cum pesteado espaiando a morte? Só ocê qué í, vamos, sinão... não.

Deu-lhe as costas de mau humor, e, tirando a faca da cinta, pôs-se a lanhar o tronco da árvore. O caboclo guaiou: Ai! Ai! E, lentamente, foi-se mato dentro, pensando.

A serenidade do bosque contrastava com a flagrância da luz despejando-se em torrentes por todas as abertas, a enfeitar, a aquecer o interior verçudo onde as folhas douradas tremeluziam, bailando à leve respiração das áureas. O ziziar e o cicio das cigarras mantinham na brenha uma zoada estridente.

Na faina do cibo, do reparo dos ninhos, os pássaros mal piavam, voando de ramo em ramo. Borboletas desferiam em alor indeciso, hesitantes, como desorientadas no entrelaço da ramaria.

Os animais da tropa, inquietos na cerca, escouceavam, pinoteavam, aos bufidos.

Tarquínio, sentado na raiz da árvore, raspava a terra com a ponta da faca, interrompendo a desfilar laborioso das formigas, fazendo-as desviarem-se; em ímpeto de raiva súbita esmagava-as resmugando contra o companheiro; não se conformando com o destino de acabar como os patrões que lá estavam no rancho: um estirado, morto; outro sentado, todo encolhido, com a cabeça entre os joelhos, ardendo em febre.

Assobiaram no mato. Levantou-se de golpe, atento. Outro assobio varou o silêncio morno: era o caboclo que o chamava.

Sorriu contente, com a certeza de que ele, enfim, decidira partir, fugindo à morte que os rondava misteriosamente. E foi-se, a correr, na direção do apelo.

Rolas abalavam com estrepitoso bater de asas à passagem do negro, que bracejava nas ervas altas como um nadador entrando ao mar, com água pelo peito.

III

Jão, no silêncio de sono em que se aquietara a floresta, deu por falta dos comboieiros. Relanceou o olhar febricitado em torno: discos de sol amedalhavam o chão, reluziam nos surrões suados.

Rolas mariscavam em volta do rancho confiadas no quiete daquele abrigo sempre deserto e, além do voo surdo das aves, a instantes estalava um ramo, uma folha remoinhava, caía de leve.

Onde estariam eles? Catando frutos no mato, talvez banhando-se na fonte. Tomou o cachimbo, mas, ao desembainhar a faca para picar o fumo, desistiu com repugnância. O cheiro ácido do morto enjoou-o.

Levantou-se passando a manga do casaco pela boca e, indo e vindo no rancho, cabisbaixo, ruminava o pensamento torturante de afastar-se do pai, de o deixar na floresta abandonado sem que, ao menos uma vez, a sua gente lhe enfeitasse a sepultura e acendesse uma vela a sua cabeceira.

Essa ideia, porém, fê-lo deter-se: lembrou-se do enterro. Era tempo. Deviam começar antes da noite porque o corpo já estava com mau cheiro. Para que os animais, o tatupeba principalmente, não profanassem o cadáver, cobri-lo-iam de terra e de folhas fazendo pesar sobre elas as pedras que encontrassem. Pobre velho!

O sol devia estar a pino no céu. Chegou à beira do rancho, juntou as mãos à boca em porta-voz e brandou retumbantemente: “Eoooh!” A floresta ressoou profunda. – “Tarquínio! Job! Oooh! Gente! ...” Novamente, sinistro, crebro, aos latidos, o eco estrugiu cavo, rolando na espessidão. “Uai! ...”

Ficou à espera, olhando, atento. Por vezes parecia-lhe ouvir resposta de muito longe em alongado vozeio. Repetiu o aboiado: “Oooh!” e preocupado murmurou: “Mas onde se meteu essa gente!?” A cabeça estatalava-lhe em dores, as pernas afrouxavam-se-lhe e, quente, numa quebreira lassa, encostou-se a um dos esteios.

Pouco a pouco, em lenta invasão, tomou-lhe o espírito o pensamento da morte. Olhou, remirou as mãos, ora uma, ora outra, arregaçou as mangas do casaco e examinou os braços. Alargaram-se-lhe os olhos apavorados ao descobrirem nódoas na pele morena; tocou-as, premiu-as. O coração batia-lhe precípite; depressa, porém, voltou-lhe a calma repelindo a ideia sombria. Lançou um rápido olhar ao cadáver coalhado de moscas e saiu. Sentia sede.

Embrenhou-se vagarosamente seguindo a vereda batida, retorcida em coleios, úmida, sombreada até à fonte quase sumida na luxuriante vegetação da qual sobressaíam os buritis graciosos.

A água vinha do alto, derivava em fios saltando nas pedras, cristalina e ligeira, atoalhando as pomas lisas dos pedrouços, correndo sobre o limo aveludado até cair na bacia formando bolhas diáfanas, límpida, espelhando o arvoredo e deixando transparecer o fundo de areia e seixos brancos.

Jão agachou-se, tomou uma folha larga, curvou-a em calha e, encostando-a à pedra onde a água era mais abundante, canalizou-a à boca, bebendo a goles ávidos.

As ramas farfalharam. O rapazote voltou-se de golpe, sarapantado, procurando distinguir na penumbra fria, entre a folhagem verde-negra. O coração encheu-se-lhe, travou-se-lhe a garganta, os olhos, muito abertos, imobilizaram-se fitos.

A merencória paragem lembrou-lhe a lagoa da caatinga onde lhes aparecera o velho errante.

Sobressaltou-se pondo-se firme, à espreita, correndo o olhar assombrado pelo bosque. Adivinhava a presença funesta do amaldiçoado, sentia-o, experimentava o seu prestígio maligno. Ele devia andar perto, tocaiando-o e, um momento, demorando o olhar em um ponto, viu crescer uma sombra afeiçoando o tipo do penitente: um grande velho abordoado ao cajado, saco às costas, as barbas longas, amarelentas, soltas, o olhar carregado e sinistro, a fronte escampada e lisa, cor de marfim, luzindo. Arrepiou-se-lhe a pele, eriçaram-se-lhe os cabelos, um frio intenso gelou-o.

Foi instantânea a visão, mas o medo paralisou-o estarrecido, como enraizado, sem poder tirar-se daquele ponto, os olhos sempre fitos na densa espessura em que se lhe mostrara o trasgo.

Era ele, o judeu maligno, semeador da peste, arrasador dos campos. Lá ia com o grande saco de onde tirava, a mancheias, todas as calamidades, desde as pedras geladas que espalhava nas tempestades até as guerras.

À sua passagem as fontes estancavam, o arvoredo esmarria, o gado tombava descadeirado, fervilhavam bicheiras nas malhadas e, não raro, no cair de uma tarde azul, o céu escurecia, crepitava e uma nuvem de gafanhotos baixava sobre as roças talando-as, de ponta a ponta, nas horas breves de uma noite.

Era ele!

E Soeiro lá estava no rancho assinalando a sua passagem e, dentro em pouco, todo o sertão verde estaria em alvoroço com o gado levantando o choro triste em torno das cacimbas secas, lambendo sedentamente o orvalho nas folhas, os rios em ipueiras e a gente faminta clamando em preces, percorrendo os campos em procissões amerceadoras.

Tremia sem fôlego, crispado de medo, a ouvir o perene murmúrio da água que lhe soava trágico como um choro de angústia.

Arrancou-se, por fim, mas querendo fugir, logo se lhe emaranharam os pés nas enrediças das ervas; vacilou, foi de encontro a um coqueirinho novo e, com o impulso, vergando-o, choveram-lhe no rosto finíssimas gotas de água. Safou-se e, a correr, desatinado, sem atentar no caminho, meteu-se ao mato, abalsou-se, perdendo-se no labirinto espesso.

Voltou procurando a trilha. Eram só árvores, cada vez mais robustas e unidas, enleados em cipós vigorosos, alongando raízes avergoadas à flor da terra empastada de todo onde os pés chapinhavam.

Voos assustavam-no e, ao relaxar dos ramos que ele, na fuga, levava ante o peito, tornando à posição natural, vergastando as folhas, era como se um inimigo o perseguisse em fúria sanguinária, quebrando galhos, derrubando troncos. Não se atrevia a olhar para trás, certo de dar de rosto com a figura funesta do judeu maldito.

Por fim a trilha acalcanhada apareceu. Orientou-se, entrou por ela de arranque, correndo e já avistava o teclo do rancho quando uma estropeada o fez estacar.

A mata parecia vir abaixo arrasada; estrondo formidável crescia como à aproximação de uma catástrofe e súbito, aos saltos, um animal atravessou a trilha, outro, e um lote amontoado, atropelando-se, passou atravancadamente, apertando-se de encontro às árvores em desabrida carreira com um surdo estrupido nas ervas.

Apesar do terror no relance fugitivo, Jão reconheceu a Faísca. Era ela, a bestinha fiel, que lá ia espavorida e, pós ela, a récua desapoderada.

Quem teria soltado e espantado os animais? Quem, senão ele, o judeu? Num ápice chegou ao cercado, achou-o vazio, lançados por terra os travessões da tronqueira.

Ficou arvoado, tonto, encheram-se-lhe os olhos de água. Quis chamar, mas conteve-se transido de medo, certo de que só ele, o maligno, lhe responderia.

Os comboieiros... Com certeza ele os tinha sumido, talvez nas águas escuras ou em alguma grota, coitados! As lágrimas rebentaram-lhe por entre soluços, sentindo-se só e fraco, sob o prestígio do pesteador, com um cadáver por companhia. Pensou em fugir, mas como? Como aventurar-se sozinho, a pé, naquele deserto, já com a noite a cair?

Não conhecia os caminhos, era a primeira viagem que fazia e tinha a serra brava, a mata grande, fechada, onde as suçuaranas erravam e o caapora assombrava o viajante afoito. Se ainda passasse alguém, algum comboio...

Caminhou até à orla da floresta, olhou a imensa planura ao sol frouxo da tarde.

O ocaso flamejava numa fulguração deslumbrante de ouro e púrpura, e o sol, de um brilho de lâmina, reluzia trêmulo e para o outro lado a serra alta, azulada, embutida no céu violáceo, esfumava-se em névoa com o desenho rendilhado do seu arvoredo em fino retraço, ressaindo como bordado a matiz em tela de seda.

Não havia sulco de caminho, era a extensão vaga, desnorteada, profunda. “Nossa Senhora, valei-me!” invocou chorando e, lentamente, resignado, reentrou tornando ao rancho onde jazia o morto.

Ficou um momento parado, sem pensar, como desprendido de si. Olhou em torno e, vendo os surrões, caminhou pondo-se a examiná-los. Lá estavam também as mantas de pele, as cilhas de couro cru, os baixeiros, mas faltavam os de Job e de Tarquínio, e as suas borrachas e os seus rifles que eles haviam suspendido a uma das vigas.

Procurou-os e, pouco a pouco, gerando-se-lhe no espírito a suspeita da traição, sentiu-se ainda mais só, mais infeliz, perdido. A esperança, porém, justificou o desaparecimento dos evadidos:” Talvez houvessem saído em busca de alguma coisa...”

Não se conformava com a crueldade covarde do abandono e, longe de descorçoar ante as provas da fuga dos comboieiros, tirou delas razões de tranquilidade e desde então, atento aos rumores vagos da brenha, saía à beira do rancho se ouvia algum ruído contando ver os companheiros de volta — e achava sempre a mesma solidão.

E os animais? Esses sim, esses haviam arrancado achando o caminho livre, talvez por esquecimento dos comboieiros.

Sentou-se junto aos surrões, mole, dorido, a cabeça atordoada, em fogo, com uma sede que lhe ressequia e encoscorava a boca.

O tanto de carniça empestava o ambiente apesar da aragem fresca sempre reinante.

A floresta regozijava ao canto das aves que se recolhiam e o crepúsculo escurecia rápido. O som da água longínqua tornava-se distinto no silêncio e o barulho das frondes crescia soturnamente. Vozes tristes lançavam queixumes aqui, além e a espaços, a um vento mais forte, as árvores ramalhavam com escachoo. Os grilos acordaram guizalhando.

A noite evocava os seus comparsas para o mistério do amor que eterniza, em constante reviçamento, a selva, que se infiltra nos veios de pedra, que deflui na correnteza das águas, que percorre os troncos irradiando em seiva aos ramos mais delgados, que se espalha como prestígio dando a uma semente perdida em terra sáfara a força da vida, abrindo a flor no ramo, tirando da rocha a gota da água, fazendo rebentar na podridão dos madeiros mortos o tenro novedio, multiplicando os germens na terra e nas águas num pulular prodigioso e silencioso de encanto.

Era a irrigação seminal da natureza referta o grande filtro do amor universal operando na treva discreta a perpétua e admirável maravilha da reprodução.

Nimbos de luar caíram no solo em escamas de prata, as folhas luziam e aos voos baixos, às corridinhas, os curiangos saíam das moitas demandando a larga planura por onde a lua solitária no céu liso, como um imenso casulo de algodão aberto, estendia a sua claridade triste tornando o deserto como um alvo areal, infinito como o céu, sem fronteiras nem sombras.

Jão arquejava, com as mãos por baixo da cabeça, encostado a um surrão.

Na sua desventura sentia-se pequenino, frágil como no tempo de menino quando, no copiar do sítio, em noites como aquela, no aconchego da família, sentava-se na barra da saia da mãe, com a cabeça nos seus joelhos, sentindo-lhe os dedos meigos nos cabelos, ouvindo-lhe a voz lenta e carinhosa dizer as aventuras das histórias, o poder dos gênios e das fadas, a riqueza das cidades grandes, dos palácios reais onde se celebravam as bodas de princesas de cabelos de ouro com príncipes formosos e valentes, que haviam vencido dragões em cavernas amontoadas de ossos. E pensando, recordando, sentia lágrima descerem-lhe pela face e, com um olhar que via através do espaço, longe! Acompanhava o viver doméstico. Àquela hora a mãe e as irmãs, sentadas no copiar, contando com eles, já, talvez, preocupadas com a demora, caladas, atentas aos ruídos sutis da noite, voltavam-se, de quando em quando, para o caminho iluminado ou cirandavam preparando a ceia — coalhada fresca e alva de beijus de leite que se esfarelavam entre os dedos.

Os lábios tremiam-lhe numa palpitação comovida. E íntima, no peito, a voz da alma falava-lhe com humilde ternura: “Minha mãezinha do coração, que vai sê de mim?! Reza por mim, pede a Nossa Senhora que me sarve! E ocê, Nóca, minha irmã; e ocê também Tereza, pede; Pede, gente; pede a Nossa Senhora mod’eu.”

E, no relumbrar do sonho, parecia-lhe ver a cena suave – as mulheres correndo ao oratório, ajoelharem-se juntas, rogarem, de mãos postas, à pequenina imagem.

Farfalhejo de folhas, estrépito de galhos arrebataram-no do arroubo. Seriam eles, os comboieiros? Esticou o pescoço, franziu as pálpebras olhando agudamente, a fito.

O luar alvadio dava à floresta um aspecto funéreo e fantasmagórico — sombras bizarras oscilavam lentas, lampejos iterativos alumiavam profundidades; folhas levantavam-se do chão, pareciam vivas e rolavam no levar da aragem. A espaços, um rangido rascava irritante.

Um vulto esgueirou vagaroso, sorrateiro beirando o rancho. Jão estremeceu num arrepio; ressecou-se-lhe instantaneamente a boca, arderam-lhe os olhos esbraseados, o coração estacou para arremeter precípite, aos rebates. Encolheu-se tirilando, batendo os dentes, hirto, reconhecendo uma onça.

Quis levantar-se, tomar o rifle, ali pertinho, ao alcance da mão, encostado a um dos esteios, mas temendo avisar a fera, denunciar-se com o rumor, quedou.

As folhas secas crepitavam sob as patas macias do animal sutil e ele abafava sem ar, estrangulado, com as veias turgidas latejando, uma sensação de vazio no ventre que arfava.

O ruído trépido distanciou-se, perdeu-se, abrindo-se um silêncio pávido.

Súbito, porém, um baque ressoou no cerrado, paus estalaram, rolaram e um resfôlego longo bufou fremente.

Jão foi-se, aos poucos, soerguendo nas pernas trêmulas, que vergavam, apoiou-se em um dos surrões, estendeu molemente o braço e, apanhando o rifle pelo cano, mal pode trazê-lo a si.

O coração batia-lhe tão forte que todo o rancho e a floresta parecia-lhe estrondar com as pulsações desordenadas. As têmporas inchavam-lhe e, nos ouvidos azoados, era uma surdina fina, percuciente que os penetrava à maneira de uma verruma, terebrando-os até o cérebro.

A garganta seca, travada, a vista turva, a instantes fulminada por um fuzilar iriado, braços bambus, as pernas entorpecidas, Jão esmorecia. O olhar, aberto e assombrado, circunvagava espreitando em relances de agonia.

A quietação aterrava.

Uma sombra apareceu no luar, em frente ao rancho, logo em seguida a fera, agachada, quase de resvalo, em surdo caminhar atento.

Parou, esticou-se no chão varrendo as folhas com a cauda. Olhava embevecida; um surdo rugido trovejou-lhe no peito. Súbito, voluptuosamente, afocinhou as ervas.

De ímpeto, lesta, pôs-se de pé e, firmando-se nas patas traseiras, levantou-se, alta, enorme, apoiada ao esteio; curvou-se, retesou-se e, nervosa, pôs-se a raspar a madeira às unhadas. Ficou imóvel, de orelhas murchas, mas entrou a ondular em reboleios de volúpia, a agachar-se, a esticar-se em movimentos elásticos e a cauda flagelava as folhas, retorcia-se-lhe em coleios serpentinos.

Derreando a cabeça abriu escanceladamente a fauce em bocejo roncante e deixou-se cair sobre as patas mole, pousando sem ruído, como se o solo fosse uma alfombra fofa.

Esteve a olhar embevecida; por fim, em passo lento, leve, entrou no rancho e, arisca, desconfiada, pé ante pé, chegou ao cadáver.

Estacou corcoveada! Híspida, rugindo, com arrepelos do lombo fulvo; volteou o corpo farejando-o aos bufidos; avançou uma das patas sorrateiramente, tocou-o e, como se o sentisse bulir ou com ele brincasse, saltou de ímpeto a um lado.

Sentou-se, à distância, em guarda, de orelhas fitas. Lentamente foi levantando a cabeça, o pescoço reteso e pôs-se a fariscar aos ronquidos. Os olhos reluziam-lhe em brasas e Jão via-lhe a corpulência formidável, a monstruosa cabeça eriçada de cerdas.

Pôs-se de novo de pé, adiantou um passo. Nesse instante o pequeno, que apoiara o rifle em um surrão, fez um movimento. A fera sentiu-o e, rápida, voltou a cabeça e os olhos acesos coruscaram. Descaiu sobre as ancas, cabeça a prumo, atenta. Jão retraía-se como se procurasse desaparecer em si mesmo, sustinha a respiração revoltado contra o sangue cujo estuar parecia-lhe estrondoso, nem pestanejava. A fera decidiu-se e avançou, parando a um passo dos surrões.

Vagarosamente agachou-se sobre as patas estendidas e, um momento, manteve a atitude escultural, mas de golpe, encolhendo o lombo, a bufar, vergastando, varrendo a terra com a cauda, rugiu rouca e rastejando, resvalando como um réptil, o olhar em chispas, adiantou-se cauta. O pequeno susteve o fôlego, deglutindo em ânsia, de olhos marejados. Subiu-lhe um grilo à boca, a muito custo conteve-o; a alma retransida murmurava-lhe no coração: “Minha mãe! Minha mãezinha...!”

Uma explosão de lágrimas inundou-lhe o rosto. As veias túrgidas, ingurgitadas inchavam a mais e mais como se fossem estourar. Sem ar, todo o corpo travado em paralisia, os dedos duros, as narinas aflando, cerrava os dentes apertando as mandíbulas que trituravam e os cabelos cresciam-lhe espetados na cabeça como acúleos de ouriço.

A onça, segura da presa, magnetizava-a com os olhos relumbrantes.

Jão foi assestando a arma, pô-la em mira, mas quando quis dar ao gatilho sentiu os dedos presos, forcejou, já sem calma, trincando o beiço.

Súbito um clarão explodiu e o estrondo do tiro ribombou longamente no rancho, rolou pela floresta reproduzindo-se como em tiroteio.

Um miado forte, longo, agoniado, ressoou em hiato, foram, em seguida, arranques esmorecidos como se a fera estertorasse em arrocho de estrangulamento. O corpo, rojado longe, no salto supremo, escabujava entre as ervas, aos rebolos, ora de flanco, ora de borco.

Ainda soergue-se, arrastou-se, trambolhou adiante aos rouquejos, até imobilizar-se e calar.

Um grande vento passou estrupidando nos ramos, e Jão, sem ânimo de deixar a sua trincheira de surrões; olhava o monstro, lá fora, abatido, ao luar claro, e voltava os olhos para o corpo do pai, sob uma fila de luz, na sombra; e pôs-se a tremer ante os dois cadáveres.

Sentia um calor de brasido; a cabeça andava-lhe à roda, ânsias subiam-lhe ao peito. O espírito nublou-se-lhe em ideias confusas, rumores estranhos chegaram-lhe aos ouvidos — era toda a floresta que soltava os seus monstros. Lá vinham eles desembestados, palejando lerdos, galopando céleres, aos galões ágeis, de rastos, aos voos.

Jão ouvia a estropeada desabrida, cada vez mais próxima e já avistava os animais corpulentos, de aspectos sobrenaturais, investindo e desaparecendo dissolvidos no luar.

A visão tresvariava, como os demais sentidos. O que ele apalpava ou apenas tocava de passagem dava-lhe sensações estranhas de calor ou de frio, de aspereza ou mole, víscida, pastosa; o aroma silvestre cheirava-lhe a almiscar de alimárias, um acre fartum de fauna em cio; ante seus olhos lumes fátuos fagulhavam, coriscavam em sigmas e discos e ele tomava-os pela fosforescência iriada das pupilas cervais.

As árvores abalavam-se em via de ruírem, sacudindo farfalhosamente as frondes aos esbarros dos brutos; as ervas dobravam-se, estalejavam sob as patas velozes.

O pequeno ergueu-se transfigurado. Era outro. Impávido, os olhos alargados e rebrilhantes, desafiava a bestialidade hostil. Um calor intenso envolvia-o como se os surrões ardessem, sentia a pele empolar-se, despegar-se-lhe da carne num escorchamento de queimadura. Os beiços ardiam-lhe em carne viva; a língua era uma sola, áspera e dura.

Então, sem mais considerar, empunhando o rifle, deixou o seu refúgio. Bambeava nas pernas trouxas como se lhas houvessem desligado de um longo e apertado arrocho:

Oscilando, agarrou-se ao esteio do rancho, mas sentiu-o tão quente que o deixou. Nos olhos atormentava-o uma sensação de areia, batia as pálpebras e, com isso, mais se lhe irritava o prurido. Passou pelo cadáver do pai que exalava um cheiro morno, pútrido, nauseante. Saiu ao terreiro. Lá estava o corpo da onça estirado de flanco. Pareceu-lhe enorme e como de fogo, chamejando. Mais se lhe acendeu o calor, arfava. Levantou a cabeça de golpe e, como a lua aparecesse por um vão da ramagem, alva e redonda, reluzindo, encarou-a com ódio. Era a sua luz que o queimava e incendiava a floresta.

Refugiou-se no escuro de um moital, mas o calor seguiu-o, era ele que ardia e as folhas comburiam, as ervas eram cáusticos, os cipós deixavam uma sensação urticante, subiam flamas trêmulas da terra, o ar escaldava como se viesse de um forno.

Zoavam-lhe os ouvidos em estridor contínuo, a boca seca encoscorava-se-lhe e nas têmporas eram latejos, marteladas que o atordoavam.

Um relâmpago deslumbrou-o, outro seguiu-se-lhe, outro, outro em surdas e crebras explosões.

De novo o estrondo cresceu temeroso como se viesse da brenha. Jão estava encarado com a selva lembrando-se de uma história que ouvira em casa e, instantaneamente, numa volta do delírio, encarnou o herói da narrativa — Jãozinho da espada, que andava em aventuras através da floresta encantada, combatendo dragões de escamas de ferro e hálito de fogo, vencendo gigantes, talhando árvores colossais, fendendo rochedos com.a sua espada infrangível que cem homens não conseguiam levantar do chão.

E Joãozinho da espada era ele.

Cresceu a medir-se com o mistério, a afrontar-se com os poderes da selva, levado pelo delírio. Parou, levantou o rifle e fez fogo. O arvoredo atroou soturno, mas o seu corpo enfraquecido não resistiu ao recuo da arma — tombou em terra e, em súbita agonia, levou as mãos à cabeça apertando-a desesperadamente, a gemer, como se lha atravessassem com pregos e a fossem abrindo, lascando e triturando-lhe os miolos.

Atirou-se na relva aos ais! Rolando, rebolcando-se na frescura das folhas úmidas. Soergueu-se, mas as forças faltaram-lhe e recaiu mais agoniado, rangendo os dentes, recravando as unhas na terra, a arrancar punhados de ervas.

Um peso arriou-se-lhe no peito como se um tronco houvesse abatido sobre ele esmagando-o e a cabeça, num atordoamento doloroso, como que se lhe despegava do corpo. Mas a dor foi amortecendo, abrandando e cessou.

A pele crispava-se-lhe em tremuras e todo ele ardia esbraseado.

Abriu os olhos? um clarão queimou-os: tudo fulgurou em torno, mas, instantaneamente, a noite enegreceu, fez-se profunda e calada e um frio de neve roçou-lhe o corpo em ríspidos arrepios.

Estremeceu, um rouquejo escapou-se-lhe da boca.

O luar reluzia na folhagem espessa e, ao lento mover dos ramos, pelos raros das olhas, escorriam faixas de luz ao longo dos troncos, abriam-se livores no solo escuro. De repente, sibilantemente uma cigarra cantou, em sonho, talvez, e foi em toda a brenha tenebrosa uma alacridade juvenil de aurora.

ESCRÚPULO

Alcançando o alto da ladeira, Florindo resfolegou de rosto ao mar, vasto e liso, lampejando, lá em baixo, sem vela ou fumo, às últimas fulgurações do sol.

O céu empalidecia exangue e a linha da costa, desde a ponta de Santo Antônio até as barrancas alcantiladas de Porto Seguro, em recorte que se esbatia do verde escuro ao violete, ia esmaecendo sob a pulverização finíssima da névoa.

Na praia, onde o Aracacai, de águas rasas, abria-se em derramada barra, definindo para o mar, os coqueiros pareciam de bronze uns eretos com as palmas em plumas, outros descaídos, desgrenhados como se por eles houvesse passado a fúria de um ciclone.

As ondas rolavam na praia aos rebolos alastrando o areal de espumas frouxas e o soído estridente das cigarras crescia num desesperado apelo, saindo de todos os pontos, à medida que o crepúsculo baixava com a serenidade inflexível de uma sentença.

Bandos de jandaias, descrevendo figuras estranhas no ar, ora em filas, avançando de frente ou em linha estirada como uma fita a ondular ao vento, ou em círculo, à maneira de um rosário que fosse esparzindo preces pela altura, voavam em rumo ao mar; logo, porém, em graciosa evolução, retrocediam, sempre a chalrar, e perdiam-se nos longes da terra.

A caieira, num canto da praia, ainda fumegava; mar a dentro, a baixinha da Coroa Vermelha ensanguentava as águas, como um lápis de coral e em terra a cruz dos Capuchinhos abria os largos braços, solitária e sem Deus.

Florindo sentou-se à beira do mato, todo emaranhado na ervagem densa do melão de S. Caetano, e ali ficou a olhar distraidamente as pombas que ainda mariscavam, a ouvir um insistente, monótono ressoo, alguém a derrubar aderno ali por perto, àquele resto de sol macio.

A tarde esfriava; estrelas limpidamente surgiam no céu com um brilho puro, diamantino, que a sombra a mais e mais avivava.

O caboclo tomou o isqueiro, feriu lume e esteve um momento a olhar a mecha incendiada; por fim, tirando o cigarro de trás da orelha, acendeu-o e, esticando as pernas, com as mãos espalmadas nos joelhos, quedou pensando, a soprar de leve frouxas baforadas.

Subia gente do ribeiro da Fonte, mulheres, crianças, rolando barrilotes ou trazendo a cabeça latas e vasilhas de barro.

Saudavam-no, ele correspondia em resmungo, desleixado, e deixava-se estar inerte, brasando.

Mas uma voz fez o mover-se. Ergueu-se lesto, ficou à escuta. A voz era meiga e afinada, esparzindo nos ares doces uma queixa de amor.

Florindo sorriu e o seu rosto largo, cor de cobre, transfigurou-se. Avançou resoluto soprando longe a ponta de cigarro e, metendo-se por entre uns cajueiros que beiravam a trilha, cobertos da folhagem espessa da jarrinha, ali ficou à espreita.

A voz aproximava-se sempre meiga; por fim a dona assomou vagarosa ao alto da ladeira. Era uma moreninha cor de jambo, linda! O corpo fino, esbelto, ondulava voluptuosamente ao passo demorado; o rosto redondo, de linhas ainda infantis, vinha aberto num sorriso de enlevo e os olhos brandos, amortecidos e negros, como os cabelos, ceravam-se como em preguiça.

Descalça, com o vestido sungado, viam-se-lhe as pernas, até quase aos joelhos, carnudas, bem feitas e, como o casaco se lhe houvesse molhado apegando-se-lhe à carne o colo desenhava-se-lhe, como em nudez? os pequeninos peitos rijos apontados, aparecendo sob a transparência da chitinha úmida.

Devagarinho, entretida no canto, com o braço em curva airosa para manter a bilha, caminhava.

Florindo sorria espiando-a pelas abertas da trepadeira enlaçada nos ramos. Viu-a passar e lesto, sutil como a suçuarana, deixou, pé ante pé, o seu esconderijo e, rápido, num salto, lançando-lhe as mãos à bilha, tirou-lha da cabeça. A moreninha soltou um grito assustada e ia correr quando o caboclo, tomando-lhe o braço, fê-la voltar-se. Dando com ele a rir, fez um momo, estalou um muxoxo e, endireitando o busto, fitou nele os olhos apertadinhos, em gesto gracioso e repreensivo a um tempo.

— Eu logo vi! Ocê não tem modo não, Florindo?

— Bonita! Exclamou o caboclo num arremesso agachado do corpo ágil.

— Ah!

— Qui é qui ocê prometeu? Fala! Que foi? Ela baixou o rosto e pôs-se a torcer a ponta do casaco encharcado. E murmurou:

— Oia só isto... Oia como estou de água...

— Escuta.

— Que é?

— Uma coisa...

— Diz...

— Aqui, não. Tomou-lhe o braço, tirou-a a si e, afastando as ervas às braçadas, entrou com ela no matagal espesso. As cigarras iam calando o chirrio, mas os grilos na terra e os bem-te-vis nos ramos ainda continuavam o cântico vesperal.

Ouvia-se a voz merencória e soturna das ondas na praia.

O cheiro das ervas e da coirama embalsamava o ar.

No mato cerrado já a noite era escura, e Florindo levava a moreninha abraçada pela cinta, beijava-a, sentindo-lhe a pele úmida e fresca que lhe deixava nos lábios um sabor silvestre e daquele corpo flexível desprendia-se um fluido capitoso de mocidade que o estonteava.

Caminhavam pisando as folhas, apartando ramos verdes, quebrando galhos secos. Silenciosos lá iam por aqueles meandros, ela voltava-se às vezes e, dando com os olhos dele, estalava um muxoxo, apegava-se a um tronco, resistindo. Ele resmungava abrindo-lhe os dedos, um a um, e ela dengosa, remordendo os lábios, lânguida, amolecida, deixava-se levar, brincando com as flores ou repuxando raminhos tenros.

Súbito, porém, uma badalada vibrou. A morena estacou, cabeça a fito, atenta. Outra badalada, outra e, em seguida, sonoramente, repiques alegres.

O coração da morena bateu forte. De ímpeto refulgiu ao caboclo escapando-se-lhe do braço e, frente a frente, posto que mal se vissem no escuro, encararam-se e ela, de busto a prumo, fez um aceno negativo com a cabeça e, ajuntando o gesto à palavra, arquejou:

— Não! E deu volta.

— Que é que tem, tola?

— Não, Florindo. Nossa Senhora é minha madrinha. Ocê não tá ouvindo o sino?

—Antonce?

—Tá chamando pro Mês de Maria. É a festa de minha madrinha. Não! Nem é bom pensá nisso. Deus me livre. E, sem voltar-se quase a correr, saltando os matos, a repuxar a saia que se prendia nos joás, fugia, sempre a ouvir os repiques do sino, cada vez mais vivos, chamando a gente daqueles cobes para o Mês de Maria.

Florindo, também supersticioso, não teve de resistir; mas quando chegaram aos cajueiros ele agarrou-a, tirou-a de novo a si e, em voz cálida, que tremia, concordando com o seu escrúpulo, pediu-lhe:

— Oia, ocê tem razão... Mas... E depois da reza? Depois da reza ocê vem?

— Não, Florindo. A gente tem de se casá... Pois não é mió?

—S. João ainda vem tão longe! Suspirou o caboclo escarapelando a grenha.

— Quá longe! Farta menos de um mês. E ocê qué sabe, Florindo? Não é a primeira vez que minha madrinha me sárva. Daquela feita, ocê não se alembra? Quem podia esperá dobre de sino? E ele não começou a tocá a Nosso Pai...?

— Pro véio Traíra...

— Antonce? Não, Florindo, minha madrinha não qué.

—Isso é luxo...

—Luxo! E ocê qué que eu pérca minha alma móde tolice, home? Isso não. Tudo tem seu tempo. Na hora sagrada não, isso não! E persignou-se. Iam saindo à estrada quando pertinho luziu uma lanterna trêmula. Recolheram precipitados e viram passar duas velhas seguidas de um cão.

— É nhá Rita, mais a rezadeira.

— É. E o caboclo sussurrou ao ouvido da morena: — Escuta... E depois da reza? Hoje à noite é de lua.

— Não... Não... Minha madrinha não qué.

— Ah! Fez o caboclo. Ocê também é muito aborrecida. E, como a morena, sem resposta, desse um passo para apanhar a bilha, ele avançou e, segurando-a pelos ombros, insofrido, pediu em voz plangente:

—Tá bom, um beijo só. Ela cedeu, entregou a boca e, longamente, ficaram naquele êxtase até que a moreninha, num safanão, repeliu-o sorvendo um longo hausto e apanhou a bilha tão estabanadamente que toda a água extravasou. O caboclo, parado, num abatimento tórpido, chamou-a:

— Geninha! Ela deitou a correr e de longe, na primeira alvura do luar que abria, emborcando a bilha, disse:

—Tá vendo? Tá vendo o qui ocê arranjou, seu diabo? Fazê a gente passá a noite inteira com sede. Coisa ruim! E deitou a correr por entre as sebes cheirosas, rindo como uma louca.

O sino repicava alegre e hirto, no meio da estrada, tremendo como de frio, ficou ao luar, planando, imóvel como um tronco.

ATRAÇÃO DA TERRA

No ilhéu áspero, árido, de um amarelo tábido, arrugado em pomas e alcantis, eriçado em cristas foraminosas, poído em furnas e socavas por onde arremetiam de ímpeto, aos estouros, grossos golfões de mar, prumo, tesa, mastreando um píncaro, avultava escalavrada a torre do farol. Como uma ostra apeava-se-lhe ao sopé a casa do faroleiro.

Em torno e acima do escolho revoavam gaivotas.

Aqui, ali, em pontos salteados, eruptos agaves ouriçavam espatas; ervas bravias, híspidas irrompiam dos lanhos.

Crustáceos fervilhavam nas orilhas do penedio entre algas cor de limo que boiavam esguedelhadas como enormes aracnídeos.

O oceano, infinito e túmido, rutilava deserto aflorado de espumas e os barcos, que surgiam nas extremas do horizonte, pareciam baixar do céu em voo sereno, singrando em doce deslize, no alor das névoas que fluíam ao sopro do vento brando.

Nos dias límpidos, sob o azul fúlgido, o ilhéu sobrenadava de ouro no faiscante rebrilho das águas, com uma orla de espuma férvida; aves esvoaçavam em bandos, investiam de alto à vaga, remontavam batendo as asas largas ou ficavam em repouso no balouço da onda preando o peixe que esfuziava rápido. Com os aguaceiros do inverno, no furor dos ventos, sob as vergastas das chuvas, o ilhéu retransia-se.

Os vagalhões assaltavam-no, subiam-lhe pelas encostas às grimpas rebentando estrondosamente em cachões de espuma, despejavam-se catadupejantes pelas rampas alagando os desvãos, chegando em frouxos lençois à casa e, por toda parte, o mar estrondava, o vento zunia, a chuva ruflava em bátegas e sentia-se em torno, além do adensado nevoeiro que isolava o escolho, a madria tronando, reboos de trovões, uivos do vento e, de longe em longe, uma gaivota, rompendo a borrasca, pousava num ermo e ficava a tremer, arrotada, oscilando ao vendaval.

Habitavam o ilhéu o faroleiro, a mulher e a filha e um ajudante, Bruno, antigo patrão de barco.

Os dois homens, unidos pela soledade, davam-se como irmãos e, ainda que taciturnos, de poucas falas, passavam os dias juntos — ora nas ribas concertando redes, afuroando o peixe nas madrigueiras, se não jogando sentados num escalão da rocha, quando não se metiam lá em cima, no lanternim, limpando, lubrificando o aparelho, reparando estragos do vento no tempo das águas.

A mulher, cabocla franzina e seca, de pele tanada como a dos homens, mourejava de manhãzinha à noite e, enquanto a panela fervia, com apetitoso cheiro de guisados praieiros: peixe e mariscos, de longe em longe um pouco de carne seca — curvada na tina que, ora um, ora outro homem enchia com água do algibe, lavava cantando modas da sua vila sertaneja, tão verde entre cheirosas balsas, fresca e murmurante de córregos, numa intimidade feliz de palhoças e ranchos, com laranjais em flor e roças louras de cana e milho. Acompanhava-lhe a voz guaiada o marulho monótono das ondas em quebrança. A alegria do degredo era a pequena Sara.

Nascida ali, ali criada, o seu mundo era o parcel. Percorrendo-o de extremo a extremo, descalça, cabelo ao vento, indiferente ao ímpeto das ondas, sempre molhada da cuspinhagem da ressaca, conhecia-lhe todos os desvios, desde as pontas mais íngremes até a grota onde o mar gorgolejava expluindo as detonações e os labirintos e canais profundos onde, sob uma névoa cerúlea e lúgubre, luziam balseiros de água fuzilando em lampejos argentinos ao fugitivo espadanar dos peixes.

Passava horas alapardada nessas criptas soturnas escarranchada em arestas, agarrada às aspas da rocha, gritando para ouvir o ressoo do eco que se prolongava e retumbava em rolos de som pelas anfracturas da lapa.

Conhecia os pendores, as escarpas lanhadas em escaleiras, preferidas dos lagartos, às vezes tão cheias deles que, à distância, com o remexer dos bichos, as rochas pareciam arfar, mover-se, sacudir o dorso ao sol.

A mãe prendia-a à casa dando-lhe serviços para tê-la sempre junto a si, receosa de algum desastre naqueles passos perigosos, e, ao explodir ressoante de vaga mais estrondosa, se a não via perto, lançava-se aflita a procurá-la, chamando-a aos gritos, correndo pelo espinhaço do penedio, resvalando aos abismos, debruçando-se das arribas até dar com ela onde estivesse.

Encontrava-a, umas vezes defendendo heroicamente o ninho das gaivotas: de pé num anfracto apedrejando a cascas de ostras, as gordas ratazanas que chiavam fugindo de roldão, lambuzadas no glúten dos ovos destruídos. Ou então numa chã, ante um remanso límpido de mar, tão raso, liso e transparente que se lhe via o fundo amarelento, a cevar peixes que se atropelavam engalfinhados, arremetendo ao lambisco.

O mar não tinha segredos para a pequena — pelo bolhar ou crispar da superfície sabia se eram levas de garoupas ou cardumes de sardinhas que passavam: roleava por um expluir de espumas a marcha dos tubarões, distinguia ao longe as águas-vivas.

Mas o seu prazer — e iam-se-lhe os olhos nele — era seguir as cabriolas dos bolos rolando ao largo em rebolcos lentos.

Se avistava uma vela ou vulto de paquete emaranhado em cabos, atufado em fumo, singrando na lisura lustrosa, caía em seisma recordando as conversas que ouvia em casa sobre a terra, a misteriosa terra grande e rica, cheia de cidades fartas, ondulada em montes encrespados de selvas, reluzindo em fios de riachos, estendida em campos vastos e verdes como o mar, coalhados de rebanhos tenros, com pastorinhos mimosos e bem vestidos como os dos cromos.

Sempre, porém, turbando a doce idealização das belezas da terra fértil, pensava na morte. Não a compreendia senão como um esqueleto armado de foice, rompendo das nuvens, direita aos homens, como as gaivotas quando colhem o voo e abatem na vaga sobre o peixe arisco. E tremia, encolhia-se arrepiada, relanceando em torno os olhos cheios de medo.

Mas a serenidade do céu e do oceano tranquilizavam-na e reentrava no doce sonho. Então pensava em Deus, no Deus das orações, cuja imagem sofredora lá estava, a parede, num quadro cercado de sempre-vivas; Deus, o criador de tudo, o Pai dos homens que navegam e das estrelas que brilham, dos peixes e das gaivotas, do sol e da lua, senhor do céu e do mar; Deus, que lá estava, entre luzes eternas, na igreja sonora, à sua espera para batizá-la, abençoá-la, tomá-la a si sob a sua mão direita.

Então desejava a terra com ânsia, sentia ímpetos de arrojar-se ao mar, nadando, seguir os navios através do réu de além, e entrar às cidades ao som dos sinos, por entre soldados e jardins floridos, grandes bois, fontes borbulhantes e príncipes vestidos de seda, com espadins de ouro e chapéus de plumas, como nas histórias.

Às vezes chorava frenética num grande ódio às águas e aquele céu que lhe encobria a terra desejada.

Bruno, quando lhe falava da “capital” estendia os braços para um ponto onde, à noite, as estrelas luziam mais abundantes, e dizia-lhe: “É ali!” E ela ficava olhando longamente, a fito, até que os olhos se lhe enchiam de sombras. Mas não compreendia e tomava por brincadeira o que lhe afirmava o pai da imensidade do mundo, correndo um largo gesto que circulava o âmbito do horizonte:

— Por toda a parte há terra, praias altas, de areias brancas com coqueirais em palmas e lá pra dentro cidades cheias de palácios, cheias de mercados, com carruagens rodando, pássaros, muita gente, músicas.

Não, a terra ficava, como dizia o Bruno, lá onde luziam as estrelas mais claras, alta, num monte azul, com árvores cheias de passarinhos.

E quando chegava ao ilhéu o barco das provisões, Sara exultava feliz. Ia a correr e a rir, escorregando nas lombas, saltando das cúspides até à cascalheira da orla e, em alvoroço, pulava à proa, ia pela bancada festejando, abraçando os tripulantes como para sentir o cheiro que eles traziam da terra e esquadrinhando, rebuscando nos vãos do barco como a buscar alguma coisa de lá e examinava, recolhia tudo — folhas, pedaços de jornais, cascas de frutas, seixos. E, enquanto os homens demoravam no ilhéu, não os deixava com perguntas e, quando partiam, subia ao lanternim do farol e, lá de cima, dominando o mar, ficava-se a contemplá-los; acenando-lhes com um pano até que a vela do barco, pequenina, confundia-se com as espumas que colunavam o oceano.

Uma tarde disse-lhe o pai afagando-lhe os cabelos salitrados:

— Quando fizeres dez anos, se Deus não mandar o contrário, irás conosco à terra batizar-te.

— Contanto que a morte não me veja, murmurou. A mãe rompeu de repelão:

— Ah! Tola! Ocê pensa que a morte anda na terra como a gente? ...

— Pois então?!

— Boba!

— Ela não sabe, coitada! Desculpou o pai. E a cabocla, supersticiosa, explicou:

— A Morte não se vê e está em toda a parte, tanto lá como aqui.

— Aqui, não.

— Graças a Deus! Bem disse o faroleiro.

E a pequena, depois de considerar:

— Mas então só quando eu fizer dez anos?

— Só.

— E ainda falta muito?

— Dois. Tens oito. Sara encostou-se ao umbral e, de cabeça baixa, ali ficou contida num pensamento.

O sol baixava enorme, de um fulgor metálico, reverberando ao rés das águas que relumbravam e o céu áureo, estriando a traços flabelares, chovia gloriosamente uma poeira de ouro. Vagas rolavam pesadas em ampolas coruscantes e todo o oceano reluzia picado em cintilações.

O disco astral tocou a linha do horizonte com um brilho fremente e o mar, sob o acaso ardido, inflamou-se rutilando.

Foi um deslumbramento rápido. Vagaroso, num descer de pluma, o sol mergulhou. Houve um êxtase; ondas brincaram e a claridade foi-se, aos pouco, apagando — aqui, cintilação candente. Por fim, esmaecendo a luz, o mar reluziu em lustro oleoso.

Levantou-se um vento fresco, abrolhavam nas águas frouxéis brancos, e, à luz meiga, aos bandos, vieram vindo as gaivotas e barulhavam entrando às furnas ou reunindo-se num alto, ficavam imóveis, ainda gozando o anoitecer. Fez-se escuro silêncio.

Súbito, num jato explosivo, o clarão do farol tremeluziu, largo e extenso, nas águas.

Bruno lá estava na vigília do primeiro quarto.

A família recolheu à casa. A candeia aclarou o interior aceiado.

O faroleiro sentou-se junto à mesa, acendeu o cachimbo e ficou-se a fumar, banzando. A cabocla ia e vinha nos arranjos domésticos— guardando a louça, dobrando peças de roupa. Sara meteu-se a um canto encolhida, o rosto na mão, a olhar a folhinha de parede, pregada em cromo bucólico, onde um moinho velejava alto, num cole, sobre um fundo risonho de céus azuis e campos louros “Estavam ali os dias, pensava a pequena. Tantos! Era dali que a mãe os tirava um a um, de manhãzinha, ainda escuro e, mal os despegava, logo o sol rompia das águas. E se ela furtasse alguns! Um, pelo menos! ...”

Relanceou o olhar em volta — os pais estavam distraídos. Levantou-se devagarinho e, de leve, foi destacando a folha, outra logo apareceu em baixo. Instintivamente inclinou a cabeça lançando os olhos para a porta, a ver se havia claridade de sol — a escuridão persistia. Sorria e, de ímpeto, arrancando a folha, amarfanhou-a, meteu-a no seio e, disfarçadamente, pé ante pé, caminhou direto à porta, saiu e, curvada, cosendo-se com a parede, amiudou os passos, lançou-se, por fim, a correr.

Enveredou por entre as penhas, trepou à escarpa caleada a luar e, por lombadas e arestas que pareciam de gesso, chegou à beira do mar prateado onde as espumas ferviam em brilhos. Tirou o papel do seio lançou-o às águas. O vento apanhou-o no ar, revolveu-o, levou-o. Sara não o viu cair.

Olhava, mas a voz da cabocla veio de longe, em grita: “Sara!” Voltou-se. A onda lenta preguiçava na rampa, envolvendo-lhe os pés em úmida carícia. “Sara!” Lindo, o luar palhetava as águas. E a luz do farol, como ia longe!

Quem seria o faroleiro lá em cima, na lua? Ah! Se fosse o pai... Que bom! Ali sim, perto, pertinho das estrelas... Poderia ir de uma a outra, correr na estrada de S. Tiago, brincar por ali fora. Que bom!

Um lume riscou os ares, apagou-se no mar; outro passou; além eram muitos voando. “Deus te guie!” balbuciou a pequena. E, longe, a voz aflita: “Sara!”

Fez-se de volta sem pressa, de olhos no céu, com a saíta espadanando ao vento e resvalava ao longo de uma fraga, apoiando-se às anfractuosidades, quando sentiu-se agarrada, sacudida aos safanões pela mãe, que rugia por entre dentes cerrados:

— Onde é que ocê foi, diabinho? Ocê não toma emenda? Eu já não disse que não te quero lá fora, de noite? Já pra dentro! Empurrou-a. A pequena tropeçou na soleira e, desamparada, rolou de borco aos pés do faroleiro, chorando. O homem levantou-se de golpe, estendendo o braço a defender a filha:

— Deixa ela, Maria! A cabocla, enfurecida, explodia ameaças, mostrando o tamanco que tirara do pé. Deixa ela! Insistiu o homem levantando a criança. E, sentando-se, acolheu-a, alisando-lhe os cabelos úmidos, afagando-lhe o peito ripado sob a camisa fria. “Olha só como ocê tá molhada! Tua mãe tem razão. Vai mudar essa roupa.” Mas a pequena agarrou-se-lhe mais ao pescoço, com medo. O mar à noite é perigoso, minha filha. Tua mãe tem razão. Ocê não vê a gente aqui com o farol aceso? Pra quê?

Pra que os navegantes vejam os perigos do mar. Qui é qui ocê foi fazer lá em baixo?

A pequena sussurrou:

— Fui botar o dia fora.

— Hein? Como é? Botar o dia fora?! Que dia?

— O dia dali, da folhinha.

— Pra quê? Ela tartamudeou palavras ininteligíveis. Ele insistiu:

— Como é?

— Pro tempo passar mais depressa mode eu ir lá em terra. O faroleiro não conteve o riso.

— Boba! A cabocla resmungava à beira, do fogo escaldando, aos sacolejos da água, o saco de café; e o homem, muito meigo, mas dando à voz expressão terrifica, aconselhou: — Isso não se faz, minha filha. O dia ainda não acabou. A gente só tira o papel da folhinha de manhã com o sol novo. Ninguém toma a dianteira do tempo, é pecado; Nosso Senhor castiga.

À ideia de um castigo de Deus a pequena vibrou num estremeção violento e, esgazeada, boquiaberta, num grande medo supersticioso, abraçou-se com o pai afundando o rosto no peito robusto a que se achegara. E chorava, pensando com arrependimento: “Se pudesse apanhar a folha que lançara às águas, com o dia ainda vivo... Se pudesse! ...”

Recusou a ceia de café e bolacha e, deitando-se, não pode conciliar o sono, torturada pelo remorso daquele pecado.

As ondas fragoravam no silêncio e o estrondo escachoante aterrava-a o comovia-a como se fosse o agoniado gemer do dia a debater-se ao mar.

Os pais recolheram-se. A lamparina ficou sobre a mesa vasquejando num tremer de sombras.

Revolvendo-se na cama, insone, com o coração em estuos o ouvido atento, escutava estarrecidamente os rumores noturnos. O crebro bater da porta às lufadas do vento fazia-a tremer! ...

Cobriu a cabeça e, encolhida, com os joelhos no queixo, imóvel, pôs-se a rezar. Por vezes, num uivo de tortura, o vento enchia a noite de angústia. Mas andaram na sala; o faroleiro pigarreou, tossiu. Houve um tinir de louça. Abriu-se uma luz mais clara. Então, repelindo a coberta, Sara sentou-se e, em voz surda, estrangulada, chamou o pai. O faroleiro acudiu, agasalhado em grosso casacão, um gorro de lã enterrado até às orelhas.

— Uai! Ocê tá acordada.

— Que horas são?

— É quase meia-noite.

— Ainda não é amanhã?

— Ainda não.

— Está custando tanto! ... E se não amanhecer mais, meu pai?

— Como se não amanhecer? Ocê tá sonhando?

— Papai não disse? Por causa do dia que eu botei fora, ainda vivo? ...

— Ora! Acendeu o cachimbo. Dorme, deixa de medo. Fê-la deitar-se, cobriu-a. Nosso Senhor perdoa por esta vez. Mas não faças mais, ouviste? Dorme.

E, tomando a lanterna, foi-se vagarosamente para revezar-se com o Bruno, lá em cima.

Sara, dantes irrequieta e afoita, destemerosa nas abaladas pelo ilhéu, às ribas e penhascais, algares e caurnas, retraiu-se em temor desde essa noite. Mal saía ao remonte fronteiro à casa de onde olhava o mar azul ao sol ou de um verde sujo nos dias brumosos, quando as gaivotas revoavam mais assanhadas, às voltas nos ares fuscos ou rastejando a espuma. Ali ficava contemplativa, abstraída em cismas de tristeza.

Emagrecia a olhos vistos, sacudida por uma tosse rouca que lhe recavava o peito.

Às vezes deitava-se numa moleza flácida, com a cabeça a doer, a boca seca e acre, uma sensação de calor em todo o corpo, como se estivesse ao sol. Chorava sem causa, em crises repentinas, e, com medo de que a vissem, descia às furnas, enlapava-se e, na solidão sombria, as lágrimas corriam-lhe dos olhos em silêncio.

Dezembro estava a findar, radioso e quente. O mar resplandecia de um azul forte, retinto, broslado de espuma. O céu, sem uma nuvem—todo ele translúcido de fimbria à fimbria, com o sol em disco enorme e coruscante, refulgurava. Madrugadas e crepúsculos eram maravilhas de serenidade e cor.

Na tarde de 31, ao fim do jantar, o faroleiro, que olhava os longes, falou da demora do barco das provisões. E a cabocla, já preocupada com o fato, resmungou: “Bem se importam eles com a gente. Estão em terra, têm tudo... Mês de festas, ora! Os mais que se arranjem”. Bruno não disse palavra, fumando. No silêncio a pequena falou timidamente:

— E a folhinha que está no fim... Já não tem para amanhã.

— É, disse, o faroleiro com indiferença... O ano está acabando, graças a Deus!

— E o outro? Perguntou Sara de olhos muito abertos.

— O outro? O outro há de vir...

— Se eles chegarem, ajuntou ela com melancolia pressaga. À noite, antes de deitar-se, ainda ouviu a mãe aludir às festas do Natal em terra, recordar os bailados pastoris, a visitação dos presépios, os ranchos de Reis, toda a suave poesia do mês santo. E ali, ali o mar, o mar deserto, infinito, e o céu mudo. Lá para as tantas estridores despertaram-na — o quarto rugia aos esbarros da porta. Pelas frinchas e abertas entravam livores dos relâmpagos e a casa aquecia em um abafamento asfixiante.

Sentou-se na cama. Houve um estrépito de raio e logo, com furioso estardalhaço, a chuva bateu nas telhas em um estrondar de pedradas.

A cabocla saltou da cama espavorida, correu descalça à mesa e, tomando a lamparina, foi colocá-la na cômoda, diante da imagem do Senhor dos Passos.

Outro estrépito estalou e toda a casa reluziu ao clarão pálido. Golpes de vento abalavam as vidraças, panos lufavam nas cordas agitando sombras trágicas e as vagas estrugiam investindo ao ilhéu, ouvia-se-lhes o embate violento e, em seguida, no desmanchar das águas, o ruído fervente das espumas que se esparramavam alagadoramente. Trovões detonavam, ribombavam rolando em repercussão profunda.

Os dois homens lá estavam em cima, no lanternim da torre, iluminando o mar áspero.

E a chuva caía torrencial, às rajadas, com a fúria de trombas d’agua que rebentassem sobre a casa.

Sara, encolhida, rezava, não por si, mas pelos que vinham da terra, pelos que deviam vir sobre as vagas, no largo barco das provisões, trazendo os dias do ano novo. E se não viessem, se não chegassem a tempo com a folhinha, como viria o sol? Tremia, batia os dentes e, lá fora, à borrasca furiosa, o mar esbravejava. E se houvessem naufragado? Que seria do mundo sem sol? “Nosso Senhor nos salve! Nosso Senhor nos salve!”

A cabocla vestiu-se estabanadamente, embiocou-se no chale, foi ao armário e, tomando alguma coisa, caminhou direita à porta com um bater sonoro de tamancos. Teve um momento de hesitação medrosa, mas, resmungando, persignou-se e, decidida, deu volta ao loquete, passou através de uma lufada e, metendo a mão pela abertura por onde o vento esfuziava, fechou a porta.

Sara tiritava, batia os dentes. Sentou-se na cama retransida, retorcendo as mãos. Tentou levantar-se para seguir a mãe ao farol, ficar lá em cima, no meio da gente, olhando o mar alumiado, descobrindo, talvez, o barco, mas tremia tanto e a noite estava tão escura! ...

Desceu devagarinho. Um trovão explodiu violento, estatelando-a no meio do quarto. “Minha Nossa Senhora!” Correu ao canto onde se achava a folhinha, olhou-a de longe, com medo; adiantou-se, apalpou-a, quis levantar a folha do último dia que estava colada ao papelão. Insistiu cautelosa, mas não evitou rasgar um pedaço da margem, levantou-a, conseguiu destacá-la e o fundo apareceu, branco e vazio. Era o fim.

E o sangue bateu-lhe no coração opresso, contrangeu-se-lhe a garganta em um arroxo de estrangulamento. Quis gritar, correr para a porta, fugir... Foi de encontro à cama, com a cabeça a zoar, os olhos em fogo, flamejando áscuas.

O quarto alumiou-se em um instantâneo fulgor. Um estampido fremiu, outro logo mais forte, como se o céu houvesse rebentado.

Dirigiu-se à porta, quando um ruído estranho repercutiu lá fora. Clareou de novo, em luz fúnebre. Seriam eles? Deviam ser, com o sol. Os relâmpagos abriam-se tão seguidos como luz trêmula que o vento agitasse como fazia à chama escassa da lamparina. Era o sol que vinha pelas águas tempestuosas, subindo, descendo nas vagas roleiras.

Envolveu-se no cobertor, correu à porta, deu volta ao loquete. O batente, escancarando-se com o ímpeto da ventania, levou-a à parede. A lamparina apagou-se.

A chuva grossa escachoava, em bátegas, na sala. A pequena ficou diante da treva recebendo no corpo as ríspidas cordas de água e novo clarão, afuzilando o negrume, ofuscou-a.

De ímpeto, como se a impedissem, lançou-se de ilhéu afora, através da tormenta.

Ao deflagrar dos relâmpagos o maciço emergia trágico, reluzindo, como uma vaga imensa toda envolta em espuma.

Sara não sentia a chuva — ia em frente, direita à riba de onde lançara o dia ao mar.

Escorregava em resvaladios, tropeçava em cristas, metia os pés em cascabulhagem e, encharcada, com a roupa apegada ao corpo, corria.

O oceano estrondava e quando, aos lívidos clarões, as águas reluziam negras, viam-se-lhes alambores de escarcéus, altos, soberbos vagalhões emplumados de espuma e longe, no brilho sinistro, o marouço encapelava-se conflagrado, arremetendo ao ilhéu precipitoso, desordenado, solopondo-se uns aos outros, cavalgando-se e rebentavam na costa sáxea tonitruosamente.

Sara estacou num alto, chorando. O céu abria-se de instante a instante em fulvas cicatrizes e tudo em torno, nuvens e vagalhões, flamejava em livor. Trovões estalavam com estrondo de catástrofe, filas de fogo serpeavam. Era o fim do mundo! “Virgem Mãe do céu!”

E o sol? Que seria feito dele? Pobre gente que o trouxera! E o ilhéu? Lá andava também em pedaços no mar. Eram as espumas encapeladas que lhe pareciam crostas da ilha, boiando aos rebolões na borrasca. Não esperou mais. Na ânsia desvairada de ver, lançou-se, em delírio, pelas lombadas do escolho.

Subia às rampas, descia nos valados. Súbito, num relumbrar mais largo, teve um grito de triunfo. Lá vinha o barco! Lá vinha, com o sol. Vira-o bem, num flagrante. Lá vinha! Eram os homens que traziam o livro do Ano Novo, as folhas de luz, as folhas de luz, as folhas de sol.

Escorregou pela encosta da escarpa, caiu num vão, entre penhas, onde o mar raivava engasgado. Afundou na água de chofre e, antes que se pudesse agarrar alguma aresta, a vaga, que subiu, recuando em ressorvo, arrastou-a.

Debatendo-se na profundeza, entalada entre bordas penhascosas, escabujava, sentindo correr sobre ela o mar furioso. Ergueu-se tonta, desatinada, aflita, arrevessando golfões de água, com os cabelos empastados no rosto.

Aterrada, em agonia, agarrou-se à pedra — outra vaga arrancou-a, embrulhou-a, levou-a aos rebolcos e encontrões pelas bordas do rochedo, atirou-a à penha, trouxe-a de reboleio e deixou-a varada numa chanfradura. Ainda um clarão, ainda um ribombo. Ia gritar, mas outra vaga passou, tomou-a, levou-a acima, repuxou-a de rasto e assim, durante a noite, o corpo andou naquela redouça de água, acima e abaixo, no valo, ao ritmo dos vagalhões.

Pela madrugada abonançou, o vento caiu, o mar, ainda crespo e lúrido, arrufado de espumas, rolava grosso. As nuvens corriam no vento, o céu foi limpando-se em rasgões de azul e um sol triste apareceu, brilhou um instante, sumiu; reapareceu, ainda o cobriram nimbos até que surgiu livre em campo azul vívido, resplandecente, espalhando no ar e nas águas e pelo costão do ilhéu a claridade e o calor do novo dia.

Três vultos iam e vinham por alcantis e algares bradando desesperadamente. As gaivotas celebravam em voos barulhentos a volta do bom tempo. O mar ia ficando azul, e no fundo do valo ia e vinha na mareta o corpo da pequenina que não vira o sol novo e a terra verde além do mar, além do céu, além!

TRAIÇÃO

Em Janeiro, à noite, plena estação das águas, num lanço de terras altas à beira do Amazonas.

Luar. O rio túmido, espraiado, rolava vagaroso, coalhado de cintilações. As barrancas, escavadas em sulcos e taliscas, pareciam de pedra e as árvores, cuja ramagem pendida rastejava nos remansos, fulguravam como enfolhadas de prata.

Suave respiro movia as frondes alfas. Por vezes a água estalava balida de chapa pelo salto de um peixe; galhos, oscilando em lânguidos meneios, ringiam, crepitavam ou era o trisso ríspido, silvante dos morcegos que esvoaçavam estonteados.

Na margem oposta, entre árvores densas, uma luz lívida fitava; de longe em longe sumia como a um bater de pálpebra, para, de novo, rebrilhar imóvel. Súbito extinguiu-se.

Marcos, que tocaiava, colado a um tronco, avançou de rasto, mansinho, parando a alguns passos da vereda que levava ao rancho. “É agora! Murmurou. Apagou a luz é porque vem.”

Arfava em ânsia de fadiga. Corriam-lhe crispações pelo corpo, eriçavam-se-lhe os cabelos, a espaços arrepiava-se sentindo como um lento, macio repasse de pluma ao longo da espinha: na garganta, áspera e seca, o hálito rascava; os olhos eram brasas. Os braços rijos, retesos, as mãos espalmadas na terra amparavam o corpo inclinado, mas como, pela altitude forçada, os joelhos se lhe fossem curvando trêmulos, frouxos, firmou-os no solo ficando de quatro, agachado como uma onça à espreita. Atento, sem perder ruído, a vista duramente fincada no rio, ouviu um leve chapinhar de pá cavando as águas e logo, negrejando na esteira lucilante do luar, destacou-se, em relevo de esmalte a sombra ligeira de uma montaria. “Era ele, Lúcio. Lá vinha o famanaz. Canáia! Não lhe haviam mentido no Barracão.”

E rilhava os dentes raspando o chão com as unhas.

A montaria proejou à terra deslizando por entre as canaranas que arfavam e o homem saltou galgando lesto a barranca. Amarrou o barco a uma raiz, e iscando lume, acendeu o cigarro metendo-se à vereda com segurança de dono.

Era um latagão airoso, de bom porte, robustamente entroncado. O chapéu de ouricuri, descaído sobre a nuca, deixava-lhe a fronte nua. Tinha um quê de insolência no requebro do andar moroso, em passo aberto e arrastado.

Violeiro e cantador de fama, era um perigo quando pegava o desafio, sempre agressivo nas tiradas, chasqueando, pondo em ressalto os ridículos dos companheiros. Mais de uma festa findara, com espavorido tumulto, às arrancadas do mulato. Homem deveras e relutante!

Marcos viu-o passar, desaparecer no mato. Cravou nele os olhos incendidos, mas não se tirou da posição em que jazia como paralisado. Pancadas retroaram no rancho e, logo em seguida, a voz de Lúcio: “Eh! Faceira? Que é isso? Dormindo sem mulato?” Um cão ladrou. “Maroto! ...”

Marcos cerrou os punhos, estalaram-lhe os dentes e, retorcendo-se num furor convulso, com constrições na voz angustiada, resmungou impropérios. Esteve um momento imóvel, inerte, como deslembrado de tudo. Por fim, cruzando os braços, balançando a cabeça emaranhada.

“É verdade! E é assim que um homem se desgraça. Uma porcaria de muié apanhada na miséria, que ele limpara, acolhera, fartara, assim lhe pagava o benefício.” Cuspiu por entre dentes, com asco: “Ela, biraia!”

Enveredou pelo mato sem sentir os carapanãs que zumbiam. Sapos coaxava em gargarejo ou tinindo metalicamente; outros, em tom cavo, a espaços, pareciam soluçar, e longe, de voo, a mãe da lua agourentava o silêncio.

As ervas vivas pareciam ter garras: prendiam-no, detinham-no com as suas viges eriçadas de espinhos. Folhas largas batiam-lhe no rosto, cordas de cipós enleavam-no. Ele seguia de vagar, pensativo, a ver a traição infame. “Ah! Muié... Muié... Bicho ruim!”

Mas o corpo da cafusa, rijo, azeitonado, cheirando a silvas, os seus olhos negros, quebrados de volúpia, os cabelos crespos sempre com uma flor a orná-los, o colo redondo, referto, bicando a camisa de crivo, tão cheia de dengues, retraindo-se, toda encolhida, à menção de um carinho, a cabeça tombada, mordicando, com os dentinhos brancos, a polpa carnal do beiço rubro...

“Ah! Muié... Bem que lhe haviam dito. A mentira pegara e, como o julgavam em Gurupá, com os sírios, lá estavam, os cães. O outro, aproveitando-se da valentia, vivia naquela vida de desencaminhar raparigas. Mas tanto havia de fazer que, um dia... Só se não havia Deus.”

Ia indo. Deteve-se entre uns assais, pensando e, tão distraído, que, tirando o isqueiro, petiscou e acendeu o tauari.

Estava em frente do rancho. A claridade interior transluzia pelas frestas. No teto palhiço ia e vinha uma sombra, mucura de certo. Mas a curiosidade picou-o e, ainda que o coração lhe batesse aos arrancos, inchando, subindo como se lhe fosse saltar pela boca, arriscou-se ao terreiro que resplandecia ao luar, branco como um canto de praia.

Chegou à porta e, agachando-se, ouviu vozes, percebeu o palavreado mole da cafusa, os seus resmungos voluptuosos e as meiguices devassas do mulato. Desvairou-se e ansioso, sôfrego buscava frestas, ora empinando-se nas pontas dos pés, ora agachando-se, com o rosto de encontro às paredes ásperas, num furor em que havia estuos de sensualidade.

Chegou a ver os vultos e ouviu o seu nome e, a envolvê-lo, uma gargalhada de zombaria.

Prosseguiu arrastando-se ao longo dos muros, circulando o rancho, em busca de uma aberta por onde pudesse ver tudo, toda a infâmia.

De repente, porém, com um farfalho de folhas, num recuanso, o cão, que dormia enrodilhado, abalou de fugida latindo desabridamente. Ele chamou-o baixinho, avançando: “Maroto! Maroto!" O animal acirrava-se, investia aos saltos, negaceando de longe. Quis fugir, o cão tomou-lhe o passo. “Maroto! Diabo de cachorro!” murmurou.

No mesmo instante a janela escancarou- se e o busto do mulato apareceu:

— Quem tá í? Uai! Descobrira o caboclo no terreiro, hirto, tremendo ao luar. Recuou um momento logo, porém, esticando o braço, intimou: Eh! Camarada, se vem de recado vá dizendo que a resposta tá qui. E apontava a garrucha.

O caboclo rolou como fulminado, as mãos na cabeça e, num bolo, retransido, bradou em frenesi covarde:

— Não me mate, não... Por Nossa Senhora!

— É ele! Sussurrou a cafusa. Lúcio teve uma exclamação de surpresa, e perguntou:

— É ocê, Marco?

— Pois antão... Como é que se vai atirando assim? Sentou-se tolhido, a respirar aflito, as mãos ao peito contendo o coração que o sufocava. O cão, reconhecendo-o, rodeava-o de rastos, saltava, acenando com a cauda, a rosnar ganidos. A porta abriu-se. Lúcio saiu ao terreiro acompanhado da cafusa que cobrira o colo com uma toalha. Acercaram-se do caboclo que jazia prostrado, levantaram-no e os três, esquecidos da traição, formaram um grupo em torno do qual o cão rabeava trêfego.

— Mas ocê, Marco... Ocê escapou de boa

— Foi Nossa Senhora, sussurrou a cafusa.

— Nossa Senhora... É... Houve um silêncio vexado. À voz lânguida, arrastada e macia da traidora uma ideia sinistra lampejou no espírito do caboclo. Lúcio amparava-o, mentindo-lhe:

— Eu vim aqui mode ela qui mi chamou numa gritaria di fazê medo. A cafusa fez-se assustada confirmando as palavras do amante:

— Eu sempre disse que este lugar era mal assombrado. Foi Deus que fez seu Lúcio ouvir o meu grito, senão... Nem sei mêmo. Uma criatura sozinha neste desamparo.

Marcos gemia, curvando-se, a repassar a mão no ventre côncavo. O mulato, abatido pela surpresa, coçava a cabeça, de olhos no chão. Marcos aconselhou surdamente.

— Guarda essa arma...

— Que arma? Uai! Ocê inda tá com medo? E, rindo, espalmou as mãos. Tá lá dentro. Mas por pouco, heim? Ocê nasceu hoje. A cafusa, embaraçada, para fugir à situação, lembrou um café e logo desapareceu no rancho. Marcos seguiu-a com um olhar aceso e, gemendo, encostou-se ao tronco de uma seringueira, acusando dores agudas em uma perna; torcia-se, estirava os braços, rangia os dentes, ofegando. O mulato perguntou:

— Que é?

— Jeito. Foi jeito que eu dei no cair. Sacudia os braços estalando os dedos frouxos.

— Espera... E o mulato pôs um joelho em terra e, tomando a perna do caboclo, estirou-a a bom pulso. Nesse instante os olhos de Marcos fuzilaram, um ritus contraiu-lhe o rosto macilento. Levou a mão à cinta, sacou a faca, apertou-a rijamente e, num violento arremesso, que o levou sobre o mulato, embebeu-lha toda nas costas, com um rugido selvagem.

— Desgraçado! Arquejou o violeiro rolando em terra sobre gorgolões de sangue.

O outro, vendo-o debater-se, volteou-o e, rápido, num salto de fera, rasgou-lhe o ventre. Ainda o mulato soergueu-se de borco apresentando o dorso à arma que o varou uma, duas vezes até que o corpo abateu flácido, estremeceu e ficou retorcido sobre a sangueira que negrejava.

Marcos sorria contemplando a sua vítima, o famanaz temido.

— Tá aí! Disse por fim; e respirou largamente. Então, virando o cadáver, expôs-lhe o rosto desfigurado ao luar. Os olhos muito abertos e baços tinham uma expressão de espanto, a boca estava cheia de terra. Tá aí! Erguendo-se, então, chamou aforçurado:

— Lina! Vem cá. Vem depressa! Corre! E ria. Ouvindo os passos precipitados da rapariga insistiu: Corre! A cafusa apareceu à porta, com a camisa a escorrer-lhe dos ombros lisos, os peitos firmes, em riste. Corre. Olha! E mostrou-lhe o cadáver.

A rapariga estacou num atordoamento, a tremer. De repente, relanceando um olhar de pavor, fez menção de fugir para a banda do rio. O caboclo agarrou-a por um braço e sentiu-a cair de joelhos, esforçando-se por juntar as mãos, chorosa, meiga, implorando de olhos enternecidos:

— Não! Não, meu bem. Não mata a sua cafusa, não!

— Biraia! Resmungou com desprezo. Tá aí... Então ocê pensava que era só afrontá um home? Eu sabia de tudo e arranjei essa istória de Gurupá mode apanhá a vergonha. Tá aí.

A mulher tremia, de olhos esbugalhados, a boca entreaberta mostrando dentes brancos e balbuciava ininteligíveis rogos. Um almiscar estonteante, lascivo, expandia-se-lhe do corpo suado.

O caboclo levantou-a de ímpeto e, enfiando a faca na bainha, ficou um instante a fitar a amásia. Arrancou-a a si com brutalidade, passou-lhe um brado a volta do pescoço, com o outro cingiu-lhe a cinta atraíndo-a, esmagando-lhe o colo de encontro ao peito ripado e, com a boca a queimar-lhe o rosto, disse em arrancadas: Era assim, heim? Pois agora... Riu estranhamente, forcejando com a mulher. Um instante ela defendeu-se, com modo, mas, compreendendo a intenção do homem, deixou-se vencer, caiu sobre o cadáver, ergueu-se, tombou adiante e o caboclo beijava-a com frenesi, rosnando como um animal em repasto.

E o cão, que se deitara à distância, a cabeça entre as patas, olhava fito e, aos escabujamentos dos corpos, acenava com a cauda festivamente, ganindo.

CASADINHA

Quando Benjamin desapareceu na volta do caminho que, àquela hora apagada da tarde, entristecia com o gemer das rolas, Lina, que o acompanhara até a gameleira grande e ali, sob a fronde vasta, onde já parecia noite, apertando-o nos braços, molhando-lhe o rosto de lágrimas, lembrara-lhe, com soluços, a sua promessa de honra, deixou-se cair à beira da barranca e os olhos se lhe enxugaram fitos na terra, como se acompanhassem o desfilar afanoso das formigas que carreavam achegas para as luras.

Acima do monte o céu era um tapiz esbraseado com o rastro do sol que ficara nas nuvens. Um bando de jandaias passava em direção à montanha, descrevendo curvas ondulantes, fechando-se em linha direita, logo partida, com o dispersar das aves, que, mais adiante, tornavam-se a ajuntar e seguiam compondo arabescos no espaço. Lina não levantava os olhos. Por vezes, além da cerca de espinhos, crescia um mugido rouco. Cigarras cantavam vésperas e já os bacuraus, em voos moles, saíam dos matos passeando na areia branca.

As cabanas enegreciam, aparecendo como enormes cubos de cinza entre as árvores escuras.

Soaram as Ave Marias.

Lina arrancou um suspiro, meneando com a cabeça; passou a manga do casaco pelos olhos e, tomando um graveto, pôs-se a riscar a terra. De novo as lágrimas subiram-lhe do coração dolorido e começaram a pingar em goteiras no pó fino da estrada, justamente na trilha das formigas. Algumas paravam, desviavam-se da amargura; houve uma, porém, que não fugiu a tempo e foi apanhada por uma baga de pranto. Em ânsias de morte pôs-se o inseto a debater-se, subiu à tona aflito, mas a terra ávida sorveu a lágrima e a formiga, achando-se em seco, esticou as pernas, limpou-se e fugiu ligeira como se escapasse de uma borrasca; e, topando com as companheiras, detinha-se um momento como se lhes referisse o desastre em que estivera prestes a perecer.

Lina parecia entretida com a cena das formigas, mas o seu espírito estava tão longe! Iam tão longe os seus pensamentos...! Benjamin... Lá partira! Fora-se! Àquela hora em tão fogoso cavalo como o Pachola, já devia ir beirando a lagoa; com mais um pouco antes do nascer da lua, estaria no Pouso de Santo André e, de manhã, a barca da carreira o levaria a cidade, àquela cidade maldita que parecia ter encanto porque raro era o moço que de lá voltava, e se algum, por necessidade, regressava à vila, ficava macambúzio, não achando prazer em nada, como o Romão, da olaria, que mais parecia nuvens. Um bando de jandaias passava em direção à montanha, descrevendo curvas ondulantes, fechando-se em círculo como um halo ou seguindo em linha direita, logo partida, com o dispersar das aves, que, mais adiante, tornavam-se a ajuntar e seguiam compondo arabescos no espaço. Lina não levantava os olhos. Por vezes, além da cerca de espinhos, crescia um mugido rouco. Cigarras cantavam vésperas e já os bacuraus em voos moles, saíam dos matos passeando na areia branca.

As cabanas enegreciam, aparecendo como enormes cubos de cinza entre as árvores escuras.

Soaram as Ave Marias.

Lina arrancou um suspiro, meneando com a cabeça; passou a manga do casaco pelos olhos e, tomando um graveto, pôs-se a riscar a terra. De novo as lágrimas subiram-lhe do coração dolorido e começaram a pingar em goteiras no pó fino da estrada, justamente na trilha das formigas. Algumas paravam, desviavam-se da amargura; houve uma, porém, que não fugiu a tempo e foi apanhada por uma baga de pranto. Em ânsias de morte pôs-se o inseto a debater-se, subiu à tona aflito, mas a terra ávida sorveu a lágrima e a formiga, achando-se em seco, esticou as pernas, limpou-se e fugiu ligeira como se escapasse de uma borrasca; e, topando com as companheiras, detinha-se um momento como se lhes referisse o desastre em que estivera prestes a perecer.

Lina parecia entretida com a cena das formigas, mas o seu espírito estava tão longe! Iam tão longe os seus pensamentos...! Benjamin... Lá partira! Fora-se! Àquela hora, em tão fogoso cavalo como o Pachola, já devia ir beirando a lagoa; com mais um pouco, antes do nascer da lua, estaria no Pouso de Santo André e, de manhã, a barca da carreira o levaria a cidade, àquela cidade maldita que parecia ter encanto porque raro era o moço que de lá voltava; e se algum, por necessidade, regressava à vila, ficava macambúzio, não achando prazer em nada, como o Romão, da olaria, que mais parecia uma alma penada do que gente. E ela! Ai! Dela... Tinha toda a sua sorte ligada ao Benjamin. Se ele não voltasse?! Mas, não! Havia de voltar — tinha a mãe, tinha as irmãs e ela que era mais que noiva, ele bem sabia.

Era uma morena airosa, cinta delgada, ombros largos, rosto redondo, cabelos fartos e corridos, olhos negros e grandes, de uma doçura que fazia pena, tão tristes pareciam. A boca, pequenina e carnuda, tinha uma riqueza nos dentes alvos e as faces, cor de jambo, eram tão coradas que as companheiras diziam — que ela parecia andar sempre com vergonha. O andar era um meneio em que todo o corpo se comprometia — eram as cadeiras jogando docemente, eram os braços em balanço, era o colo, papo de rola, subindo e baixando com o respirar macio, como cansado. E que voz! Dezoito anos viçosos, os mais viçosos do sertão! Benjamin sabia quão doces eram os beijos daquela boca, como eram macios aqueles braços, mimoso e lânguido o seu sorriso, dengosas as suas palavras sempre quebradas em queixas, como nascidas em pranto. Amaram-se.

Desde o primeiro encontro, na festa do mês de Maria, nunca mais, para Benjamin, houve outra mulher e Lina esqueceu os seus muitos adoradores que eram, a bem dizer, todos os rapazes da vila, não contando muitos moços que por ali passavam, um deles até estabelecido na Barra d’Alva, que chegara a tocar em casamento.

Só depois da noite de amor foi que Benjamin expôs-lhe a sua ideia de ir à cidade procurar emprego.

A vida ali era difícil: a roça não dava e sua gente, por mais que se matasse, mal fazia comer. Que eram redes e crivos? Quem comprava cuias, por mais bem pintadas que fossem? As pobres mulheres não tinham um minuto de descanso e era sempre a mesma miséria. E ainda era preciso que uma delas fosse esperar o regatão que era o comprador de tudo... E por quanto?! Assim não! Ia à cidade aventurar, tinha lá o padrinho que podia empregá-lo e, logo que se colocasse, viria buscá-la, e juntos, casados, viveriam felizes.

Se ele lhe houvesse falado assim antes daquela noite, por certo que não teria acontecido o que acontecera. Mas o mal estava feito.

Verdade é que Benjamin era rapaz sério, havia de cumprir a promessa.

Escurecia. Já os vagalumes iam e vinham, as estrelas, lá em cima, abriam os olhos luminosos e a lua começava a estender na terra a sua roupa branca.

Pobre lua! Tanto linho, tanta renda! Desde quando ela estendia a sua cambraia nos montes e nas campinas, clareava-a nos rios e perfumava-a em flores! Desde quando!? E para que o noivo saiba que está pronto todo o lindo enxoval por ela mesma fiado e bordado, e o noivo sempre a fugir... Pobre lua!

Ela também tinha toda a sua roupa branca na arca, entre favas de cumaru. De vez em quando tirava-a, estendia-a ao sol, nos ramos, para que não ganhasse mofo, e ficava a olhar, pensando no seu noivado.

E Benjamin partira.

— Enfim... Deus é grande! Suspirou a morena entrando na palhoça.

A velha fazia serão à luz da candeia e na rede o curumim cantarolava, balançando-se à luz da lua que entrava pela porta, aberta sobre o silêncio e a solidão dos campos adormecidos.

Três meses! Todas as semanas, uma vez por outra, lá ia a morena ver a gente de Benjamin, pedir notícias, contar saudades. A velha e as duas mocinhas trabalhavam. E eram sempre as mesmas palavras tristes:

— Benjamin... Benjamin apanhou-se na cidade e nem se lembra da gente.

Ficavam as quatro em silêncio: a velha e as moças fazendo crivo, Lina de olhos molhados, artando, cheia de angústia. Fora, ao sol escaldante, no sujo terreiro, galinhas cacarejavam espalhando cisco. Sentia-se o cheiro avinhado da moenda e os besouros entravam, corriam os cantos da casa, esbarrando, zumbindo; por fim partiam de lanço desaparecendo nos ares quentes.

— E onde está ele?

— Eu sei! Suspirava a velha. Aquilo é tão grande! Cidade... Ahn! Vão lá achá um home num mundo daqueles. Fio home é sempre assim: má se apanha criado, faz qui nem passarinho. Deus o ajude. Óie, praga é que eu não rogo, isso não. Si ele se alembrá de nós, mió; si não se alembrá, seja feliz. Terra pra sipultura é que não farta. E, inclinando-se sobre a almofada, continuava a trabalhar. Lina ainda ficava olhando, com o coração apertado, as lágrimas crescendo-lhe nos olhos. Por fim, despedia-se.

Prolongava, em passos lentos, a volta à casa, metendo-se às veredas mais desertas, a evitar a gente da vila que começava a murmurar chasqueando da sua magreza.

Falando só, parava à sombra das árvores, esmagando folhas entre os dedos, mirava-se nos córregos apalpando o rosto, passando a mão pelo ventre, sentindo-o crescer.

Os indícios da maternidade tornavam-se, dia a dia, mais evidentes. Não havia dúvida: estava grávida. E que seria dela? Como prevenir Benjamin? Dizer-lhe a sua desgraça, a sua vergonha? Em casa refugia à mãe e ao irmão e, se sucedia encontrarem-se frente a frente, sempre achava meios de voltar-se para esconder a barriga.

À noite, na rede, ficava de olhos abertos, pensando no seu destino. Às vezes no silêncio, saltava ao chão e, pé ante pé, ia para os fundos da casa, abria a porta, sentava-se na soleira em face da noite e chorava, lamentando a sua desventura.

Se alguém por ali passasse ouviria as suas palavras tristes. A infeliz falava como se conversasse com o noivo ingrato. Dizia-lhe o seu estado, lembrava-lhe a sua promessa, perguntava-lhe se não tinha pena do pequenino que ia nascer? Que seria dele, sem pai? E ela, como andaria na vila, expondo a todos a sua desonra? Ai! dela...

Ao clarear da alva recolhia-se devagarinho, metia-se na rede para levantar-se pouco depois e começar o serviço. Assim, enfraquecendo-se em vigílias, sem comer e sempre com aqueles pensamentos, emagrecia... E o ventre resvalava ainda mais.

O rosto redondo, de pele macia e corada, ia-se tornando anguloso, os olhos, entre círculos denegridos, já não tinham a ternura antiga e a graça airosa do andar perdera-se no lento e pesado passo em que se arrastava. E de Benjamin? Nem notícia.

Outro mês passou, ainda outro. Uma manhã, atravessando a praça da igreja, pareceu-lhe ouvir o seu nome entre risos de mofa, depois uma gargalhada. Voltou-se — era, à porta de um negócio, um grupo de mulheres, entre as quais a Quinota, que se perdera com um soldado e andava à gandaia, ora com um, ora com outro, esmolambada, descalça e suja, às vezes bêbeda, caindo pelos matos onde, não raro, era encontrada dormindo, descomposta.

Quinota chamou-a e, por entre a rinchavelhada escarninha, aludiu, com palavras torpes e gestos desabridos, à sua miséria.

Lina sentiu todo o sangue subir-lhe ao rosto. Quis correr, as pernas vergaram-se-lhe, o coração batia como a rebentar; uma nuvem escureceu-lhe a vista.

A vagabunda, que cambaleava, indo, em esbarrões, às paredes, ria escancelando, a boca desdentada; as companheiras puxaram-na, levaram-na, à força, para o interior do negócio.

A morena, atordoada, com uma zoeira nos ouvidos, enfiou por um beco, entre palhoças, deu volta pelos fundos da igreja e, quase a correr, ofegante, entrou em casa de Benjamin. As mulheres lá estavam trabalhando.

— Ainda nada?

— Nada! Benjamin tava perdido. Ela que tirasse o sentido dele. Se ele não achava uma pena mode escrever pros seu quanto mais pros outro.

— Mas Benjamin me deve um reparo.

— Reparo? Reparo de quê?

— Prometeu casar comigo.

— Pois sim! Promessa de casamento é como jura em boca de criança — tão bem se faz como se esquece.

— Mas ele não pode esquecer...

— Uai! Ocê confia demais em Benjamin!

— De certo. Quando um homem faz mal a uma moça a sua obrigação é casar com ela.

— Má! Benjamin fez má a ocê?

— Olhe aqui. Então, apartando os braços, descruzando o chale, mostrou o ventre impado. As três mulheres olharam um momento, sérias; de repente, porém, uma das moças derreou-se sobre a almofada, a rir, o riso tomou a irmã; mas a velha, pondo-se de pé, fitando os olhos duros na morena, cresceu para ela raivosa:

— Tá aí! Tá aí! É mode isso que Benjamin não escreve. Eu logo vi! São essas vagabundas que estragam os fio da gente. Foi mode ocê mêmo, sua oferecida, que ele foi-se embora daqui. Que é que eu tenho qui ocê teja assim?

— Tão vendo só...!? Resmungou uma das moças e a outra, amuada, acrescentou:

— Quem sabe! ...

— Pois entonces não querem vê!?

Lina, imóvel, empalidecia remordendo os lábios, com os olhos muito secos, Faiscando. Fez um gesto, traçou o chale e balbuciou: “Pois sim... Deus é grande!” A velha fez um gesto de repulsa e nojo:

— Ah! Vai-te embora. E riu escarninha. E as duas moças riram com ela.

Lina saiu cambaleando. Desnorteada, foi até à cerca, voltou, esteve um tempo parada, olhando o céu; por fim, numa decisão, meteu-se pelo caminho estreito em passo de fuga, falando, gesticulando, sem sentir o chale que lhe escorrera de um ombro e ia, de rastos pelo chão, varrendo as folhas.

Era o tempo das flores e as abelhas chegavam em enxames, atraídas pelo perfume. Os laranjais rescendiam, as copas das árvores pintalgavam-se, nas águas branqueavam os lírios. Saíam ninhadas de aves e pelos ramos, à beira do córrego, nas moutas, era um ensaio contínuo de cantos: pios, pipilos, gorjeios e, desde a madrugada até o cair da noite, não cessava a alegria, modulada em vários tons a que se juntavam o seco chiar das cigarras e o ríspido estrilar dos gafanhotos.

Os campos, ao amanhecer, cintilavam de orvalho; era uma delícia seguir por eles fora sentindo a frescura e o aroma, vendo as pombas ruflarem as asas e as jaçanãs fugirem em direção às águas.

Foi nesse tempo risonho, ao luar de uma noite, que a velha cabocla, mãe da morena, chegando à casa esbaforida, chamou a filha e, sem lhe dar tempo, logo que a viu, foi-lhe arrebatando o chale e, cravando os olhos no ventre alto, meneou com a cabeça, desgrenhando as falripas às unhadas:

— Ah! Praga...! Onde ocê se meteu, seu diabo!? E me escondendo, rabuda! ... Entonces ocê, em vez de cuidá do qui fazê, andava por aí buscando home? ... Um porcaria como Benjamin. Oia só isso... E já pra cada hora. Pôs-se a esmurrar o rosto, o peito, o ventre túmido da filha. E ocê pensa que eu hei de criá fio do mundo? Acha pouco o qui ocê come? Já! E, curvando-se, fincou o braço magra mostrando a porta. Já! Nem um minuto mais no que é meu! Já! E não me apareça aqui qui eu sou capaz de te acabá... Rua! Falava por entre os dentes cerrados e as palavras pareciam rangidos. Sem vergonha! E tão sonsa aqui dentro... Rua! O curumim olhava estarrecido, encantoado junto à arca e Lina, com as faces em fogo, os olhos secos, sem uma palavra, traçou o chale e foi saindo.

A estrada parecia de neve. Ao estridor metálico dos sapos respondiam os bacuraus saltando ao clarão da lua.

A velha acompanhou a filha, empurrou-a, bateu com a porta e já de dentro ainda bradou: Rua! A morena hesitou um momento, logo, porém decidiu-se seguindo o mesmo caminho por onde fora com Benjamin naquela tarde melancólica do adeus.

Chegando à gameleira grande meteu-se sob a treva dos ramos e ali ficou imóvel.

Crescia o concerto noturno: eram os grilos, eram os morcegos esvoaçando e, mais longe de espaço a espaço, o agouro triste dos caborés. O cheiro das flores passava na viração e o luar, cada vez mais claro, estendendo-se largamente por toda paisagem quieta. A morena saiu da sombra e, cantarolando, foi-se, perdeu-se entre os matos floridos.

Na manhã seguinte, cedo, antes da missa. Lina apareceu na vila e foi um acontecimento a sua chegada.

Viera do lado do rio, coberta de flores. O chale, posto sobre os cabelos, caía-lhe em dobras pelos ombros como um manto de santa, uma coroa de açucenas cervava-lhe a fronte do colo, pendia um ramo, outro entre as mãos, secava, e, por todo o corpo, presas nas rendas, saindo dos rasgões do vestido, eram flores, de laranjeira na maioria.

Ajuntaram-se os da vila e, como a reconhecessem, foi um pagode ruidoso. Gente aparecia às janelas, chegava às portas, os tropeiros paravam as récuas e todos riam da rapariga que caminhava, impassível, em direção à igreja, ainda fechada. Parou à porta, junto ao cruzeiro, as mãos enclavinhadas sobre o vento enorme. Um povaréu seguia-a. Então uma vez troçou-a.

— Ocê vai casá? A morena voltou-se risonha e, como afirmasse, sacudindo a cabeça, foi uma chuva de flores. A gargalhada estrondou.

— Tá fresca...

— E o home? Onde tá o marido? O sino começou a dobrar à missa. Abriu-se a porta da igreja, a multidão avançou seguindo a rapariga. O sacristão, um velho muito azedo, vendo-a sob aqueles enfeites, e ouvindo a assuada do povo, tomou-lhe o passo:

— Onde é que você vem? Você tá louca, muié? Mas a morena, negaceando com o corpo, passou airosa e, com ela, a turba penetrou na igreja. Foi, então, que uma mulher murmurou com pena:

— Gentes, ocês não tá vendo qui isso é loucura? ... Lina, uma rapariga de tanto propósito... Não caçôa, não. Deus castiga.

É mêmo, concordaram. E o riso cessou, todos ficaram imóveis, contemplando a morena, que se postara junto ao altar-mor, quieta, de olhos baixos, como uma noiva modesta. Foi o vigário quem a tirou dali, despedindo o povo:

— Que é? Então vocês não tem dó de uma pobre de Cristo? Isto é coisa de que se ria? Vão-se embora. O povo saiu em silêncio, comentando o caso, uns com pena, outros em tom de mofa.

O vigário, depois da missa, acompanhou a morena à casa, mas foi um trabalho para convencer a velha a aceitar a filha que enlouquecera.

— Então você não tem coração, criatura? Quer que sua filha ande por aí como um animal sem dono? Pecou, não digo o contrário, mas para castigo basta a infelicidade de haver perdido a razão. Tenha misericórdia.

— E o fio, seu vigário?

— Deixe vir, há de criar-se com a graça de Deus.

— Oie, ela fica por causa de vosmecê, por mim ela podia morrê. Tanto casamento bom e o diabo vai cair na mão de um porcaria como aquele...

— Deixe lá! Deixe lá... É sua filha. E olhe: mais perdoou Nosso Senhor...

A morena ficou, mas todas as noites, com estrelas ou chuvaradas, era a mesma penitência de noivado. Lá ia, estrada fora, coberta de flores e, sob a gamoleira grande, abrigava-se até o romper do dia, quando os sanhaços começavam o canto.

E ficou-lhe a alcunha de “Casadinha”.

Uma manhã um recoveiro deu por ela. Debaixo da árvore nupcial, estendida entre flores, morta. Quando a apalpava sentiu alguma coisa, mole, sob os vestidos úmidos. Puxou o corpo da finada, arrastou-o e na terra, sobre as folhas e as flores murchas, rolou uma criança roxa, quase negra e toda encolhida, como de frio; as mãos na boca, como faminta; os olhos fechados, como a dormir, gelada.

FIM