Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Palestras da Tarde, de Coelho Neto


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

Espectros divinos

A antiga cidade

Respigando

À beira do túmulo de Artur Azevedo

No centenário da fundação da cidade

Na inauguração da Escola Dramática

Na Academia Brasileira

ESPECTROS DIVINOS

No Instituto Nacional de Música a 15 de junho de 1907

Foi em um dos derradeiros dias de junho, o frio e alegre mês dos santos — já o paternal e milagroso Antônio passara na refulgência mirabolante dos fogos de artifício, restituindo a seu dono coisas extraviadas, sarando enfermos e espalhando a mancheias flores de laranjeira — quando, acedendo a convite amável, uma madrugada, atabafado em lãs, como se fosse afrontar tempestades polares, deixei a cidade, já acordada e ruidosa, pela doce quietação campestre, amada dos deuses e dos poetas.

Através da lanugem de névoa, que envolvia os cerros, mais densa e mais alva no fundo dos vales, levou-me, em passo lerdo, da florida estação em que me deixara o comboio, por veredas toldadas de ramos buliçosos, à fazenda à que me destinava, o mais paciente burrico que hei jamais cavalgado.

Espalhando, com enlevo, o olhar em torno, parecia-me que a paisagem ardia, tanto era o fumo a subir flutuando, ora em rolos, ora tênue, esgarçado, diluindo-se no ar fino.

As árvores davam a impressão virginal de comungantes, cobertas de véus brancos e era pelas chãs aveludadas um suave marulho dizendo o segredo das águas que discorriam friíssimas, arrepiadas, duma transparência de cristal sobre areias e seixos claros, por entre margens rasas de um verdor mimoso, onde arrulhavam rolas e esvoaçavam passarinhos.

O galreio das aves modulava em concerto. E de flores, que profusão variegada! Árvores havia cuja fronde redonda era toda um imenso ramo e, ao bafejar da aragem, choviam pétalas roxas ou amarelas, alcatifando a terra em volta e, à tona dos banhados, era o nível açucenal, donde fugiam garças como se as flores, subitamente animadas, mudando as pétalas em plumas, levantassem voo, livres. E era inverno, imaginem!

Longe em longe, entre os matos redolentes, aparecia um rancho, uma casa palhiça, com a roça cercada de espinheiros e os pendões dos milhos espanejando como plumas louras.

Pelos aclives de arestas irregulares, cabras trepavam temerariamente e nos fartos capinzais, dum verde fino e tenro e rebrilhantes de orvalho, bois imóveis pasciam.

Sentia-se o cheiro acre e saudável dos silvedos e o sol, cindindo o nevoeiro, rosava-o, começando a dourar as folhas que reluziam.

Iris aureolavam cúspides; nos cimos já era de ouro a balsa e as árvores pareciam espalhar uma poeira flaminea como se sacudissem em bênçãos germinativas o pólen da fecundação.

Borboletas esvoaçavam ainda estremunhadas, pousando na haste flexível dos arbustos, onde ficavam como flores.

Eu embebia os olhos ávidos naquela beleza, fartava-me daquele ar delicioso, escutando, com enlevo e ternura de namorado, o cochicho perene das águas sumidas sob a relva.

Dum alto, entre duas pedras molhadas, onde lagartos papeavam, gozando o sol e esfuziando ariscos mal me sentiam perto, avistei a casa da fazenda, num vale reticulado cristalinamente de ribeiros sinuosos, com um fundo azulado de mata a entaipar o horizonte, destacando-se numa alvura de cal fresca, com a sua vasta varanda de colunas afestoadas de trepadeiras, como as de um templo pagão.

A vista percorria uma vastidão ondulada de colinas túmidas até a barra do céu de arminho, aqui, ali, rasgado em nesga sobre o azul.

Acolhido com o carinho hospitaleiro da nossa gente, tive o meu aposento tão perto do moinho que, à noite, até tarde, ficava-me debruçado à janela, por onde entravam vagalumes e falenas, a ouvir o escachoo da água e, já no leito, no fresco e macio alvor dos linhos perfumados, com o sono a cinzar-me os olhos, ainda escutava o fluido murmúrio e adormecia àquele doce cantar da natureza.

Que diferença do ruído da cidade, do estrondo das ruas, que não dormem!

Na tarde festiva da véspera de São João — as névoas saíam cedo envolvendo as cumiadas, atoalhando as várzeas, pendurando-se dos ramos — carros despejavam grossos toros de lenha e ramalho no terreiro e feixes de cana, cestos de batatas, jacás de espigas de milho e no ar, em vez do aroma das açucenas, sempre trescalantes àquela hora, pairava o cheiro apetitoso dos guisados, em que se apuravam as cozinheiras.

Na extasiada serenidade do crepúsculo — as estrelas nasciam — um chiado estridente subiu no silêncio largo.

A casa alvoroçou-se, saiu gente à varanda atalaiando os vindiços e, mal apareceu ao alto o carro de bois, que se anunciara pela chiadeira, com o seu toldo de palha, foguetes frecharam o espaço, estrondaram na altura, esparrimando cintilas e as saudações de boas-vindas cruzaram-se com os acenos de amizade, da varanda para o carro, do carro para a varanda.

E o que ali vinha no lento e vasto veículo! Moças, rapazes, crianças e velhinhos e, quando se pensava que o último saíra, ainda aparecia uma cabecinha arrebicada de laçarotes, ainda lá dentro casquinavam risos ou uma voz rabugenta resmungava.

E outros carros chegaram e cavaleiros em animais garbosos, ajaezados a primor, arrifando-se, cabeando ou em bestinhas morosas, que vinham em chouto batido, de orelhas bambas, por vezes passarinhando ao estourar das bombas ou aos rabeios esfuziantes dos busca-pés. Que alegria!

Quem me dera esse tempo em que floriu a minha mocidade, quem me dera um só dos seus serenos dias, uma só das suas ilusões! É bem verdade que nós só conseguimos regressar aos dias passados e neles gozar a delícia agridoce da saudade, quando evocamos um fato em que fixemos a memória.

O tempo é vaga abstração: intangível como o ar, como a luz, foge-nos ao conhecimento — é um vazio que só vale quando nele entram emoções. Fica-nos a recordação de uma árvore e um ano escoa sem deixar vestígio. O que chamamos passado é um conjunto de impressões remotas.

Foi nessa tarde que eu senti o que venho resumir nesta palestra pálida.

Perto da casa, no viso dum outeiro esmaltado de madressilvas, avultava, branca e iluminada, a capelinha de São João, padroeiro da fazenda. Em baixo, no começo da ladeira, em sítio agreste, verdadeiro algar, escondia-se a choça de Raimundo, velho escravo, tipo sombrio, macambúzio, banzeiro, que evitava todo convívio, preferindo a vida alapardada no sórdido tugúrio, onde resmoneava cantos soturnos ao som tristonho do urucungo, à intimidade da gente que, seja dito de passagem, não o via com bons olhos, tendo-o, como era crença, por aparceirado com o demônio.

O sino da capela ressoava na forca, ao adro, repicado por um moleque; zuniam foguetes, bombas explodiam e, ao som de sanfonas e concertinas, violões, flautas e machetes, lá fomos todos em romaria ver o santo, muito gracioso no seu costume Arcádio, um melote a cingir-lhe os rins, o anho veludo aos pés e no punho, solta ao vento, a flâmula messiânica.

O vigário — quase oitenta anos! — Que viera de longe para a festa, em predica suave, como se conversasse à varanda, repoltreado na cadeira de vime da sua predileção, falou-nos da vida ascética do essênio, da rígida pureza dos seus costumes, da sua sobriedade austera, do seu amor ao silêncio, do seu exílio voluntário no deserto, onde o foi buscar Jesus e pedir-lhe o batismo e, por fim, descreveu-lhe a morte trágica na torre romana, decapitado, para satisfação do capricho de uma mulher devassa.

Ouvindo-o, eu contemplava a imagem do Baptista, figurando um guapo rapazelho, de feição menineira, olhos suaves, cabelos louros, em anéis soltos sobre os ombros nus, contrastando flagrantemente com o retrato arrepelado e selvático, que nos apresentava o bom vigário, muito preocupado em dar-nos uma forte impressão de severidade e amargura.

Terminada a cerimônia, uma girandola arrancou estrepitosamente, espalhando no ar um chuveiro de estrelas; o sino repicou mais alegre, a música preludiou e, pelo caminho cheiroso, onde era trépido e contínuo o cantar dos grilos, descemos jocundamente.

Já as fogueiras crepitavam, lançando labaredas altas e a criançada corria, traquinava, saltando ao clarão sandicino das chamas em torno dos lumaréus.

Quando passamos perto da choça do africano, ouvimos o merencório instrumento e o canto monótono, grugulhado em voz taciturna.

Lá estava ele de cócaras ante uma fogueirinha de gravetos, invocando, talvez, os espíritos da sua selva natal, divindades sinistras e sanguinárias, que, à noite, percorrendo a aringa aterrada, vão de cubata em cubata fazendo estortegarem-se em escabujamentos titânicos, aos clamores proféticos, as virgens consagradas, ou estrangulando crianças nos braços das mães paralisadas de terror. As moças e a pequenada passaram de corrida, as velhas, voltando o rosto, esconjuravam rancorosas.

Aos que assim mostravam tão aversivo horror pela crença do negro boçal poderíamos repetir as palavras verdadeiras, com que Hilarião defende Isis ante a execração do eremita:

“Respecte-la”! C’était la religion de tes aïeux! Tu as porté ses amulettes, dans ton berceau.”

Quando chegamos a casa, as mucamas endomingadas logo nos preveniram da ceia.

A sala resplandecia e eram tantas as flores, tantos eram os frutos, que os olhos tinham, a um tempo, a delícia dos jardins e o gozo dos pomares. Sentamo-nos.

Que direi da abundância e da variedade escolhida das iguarias! Os pratarrazes sucediam-se recordando os bródios colossais do antigo tempo, quando o homem, em pleno vigor da saúde, devorava robustamente sem os requintes da gulodice, com a gana puramente animal de comer a fartar, atassalhando rezes à beira do fogo com o mesmo gladio com que, nos recontros ferozes, abolava armaduras e talhava, dum só golpe, o ginete e o seu cavalo.

E falava-se, ria-se, lembravam-se outros anos e os que, com eles, haviam desaparecido, os mortos que, lá do Além, onde as estrelas velavam, intercediam pelos vivos ou, rondando a casa, protegendo-a, como lares domésticos, gozavam ouvindo as enternecidas palavras de saudade com que eram relembrados.

O foguetório explodia, ouvia-se o lufar das chamas, o estralejar da lenha, o vozerio das crianças e as árvores, ao clarão, luziam, como de metal, na orla da mata enevoada pelo luar.

Saí à varanda e dei com uma linda moça que levantava nos braços o filhinho, oferecendo-o à lua com estas palavras docemente moduladas:

“Lua, luar, tomai este menino e ajudai-o a criar”. Outras iam e vinham cochichando. Esta, propunha deixar um ovo num copo de água, ao relento, para que o Destino se revelasse em símbolo de amor ou de morte; aquela esperava, com ânsia, a meia noite para ir à fonte ainda que a vereda, pela mata, amedrontasse, sempre, como diziam, assombrada de almas, ecoando gemidos de lêmures em pena.

E ali, naquele cantinho sociável, apareceram-me, como invocados da morte, vários mitos da Humanidade sonhadora: o animismo fetichista do negro africano, o culto astral à maneira egípcia — Isis recebendo os votos maternais. Além, o fogo lampejando, o “nodfyr” germânico, a fogueira de Freia que os campónios suábios ateavam, provocando a centelha pelo atrito dos lenhos, como o “patni” ariano quando embutia a “pramantha” no côncavo de “arani” torcendo-a, em fricção rápida, até despertar o calor e tirar a faúlha que se comunicava às versas do altar onde explodia em flama; a idolatria e o magismo divinatório.

Disse muito bem Fustel de Coulanges:

“Heureusemeut le passé ne meurt jamais complètement pour l’homme. L’homme peut bien l’oublier, mais il le garde toujours en lui. Car tel qu’il est lui-même à chaque époque, il est le produit et le résumé de toutes les époques antérieures. S’il descend en son âme, il peut y retrouver et distinguer ces différentes époques d’après ce que chacune d’elles a laissé en lui.”

Recolhendo ao meu aposento (os pares misturavam-se girogirando ao som das valsas na sala vasta, ainda mais alargada com a ausência dos móveis, as fogueiras esmoreciam em brasas rutilantes; no terreiro os negros saracoteavam aos pinchos ao som túmido dos tambores) olhando os balões que fugiam no espaço levados na monção do vento e ouvindo as águas no seu eterno gorgolejo, pus-me a pensar nas religiões do Passado, nessa Poesia sempre renovada na alma, lume que vem da madrugada da vida, desde o altar rústico, levantado no cimo da livre colina asiática, centro do arraial dos arias, até o templo cristão, vivo, claro e sempre alumiando a Fé.

Os velhos deuses, os velhos cultos, ei-los aí todos, passam por nós, vivem conosco, surgem de todos os cantos. Nas próprias igrejas, nos nichos, ante o sacerdote que os combate, eles aparecem, um momento pairam e somem-se no fumo dos turíbulos, como demônios exorcizados.

Pobres espectros!

Se eu quisesse falar de todas as sobrevivências, certo não vos convidaria, com prazo tão curto, para tão longa lição.

Vejamos de passagem, salteando no tempo, algumas mais frequentes. Na tempestade, por exemplo, mal estronda o primeiro trovão logo o esconjuram por meio de preces, queimando palha benta, acendendo velas do Santo Sepulcro, porque na Idade Média, como os fenômenos meteorológicos eram atribuídos à perversidade dos demônios, ao rolar longínquo dos trovões logo os sinos entravam a repicar em alarma; a chuva era borrifada com água benta e os relâmpagos, cindindo os vitrais, faziam empalidecer as lâmpadas acesas ante os nichos dos santos.

Posto que não tenhamos os nossos mortos na vizinhança da casa, como faziam os antigos, os seus manes ou demônios velam ainda do fundo do mistério sobre o nosso lar. Invocamo-los, juramos por eles, prestamos-lhes culto, senão com o “sraddha” hindu ou com as “parentalia”, à maneira de Roma, que eram banquetes servidos aos mortos, com a oblação perfumada e luminosa das flores e dos círios.

Cada um de nós representa uma acumulação de vidas, a herança milenar dos ancestrais manifesta-se em tudo.

A criança, ainda que rapidamente, passa por todos os períodos da evolução religiosa — desde o terror até a crença num Deus ameaçador e forte. A educação modifica-lhe o espírito ou mais o embota, dando-nos o homem superior e límpido ou o supersticioso toldado de abusões.

Supersticioso... ai! De nós, quem o não é um pouco? Rimos da benzedeira que se achega ao leito do enfermo ou ao berço da criança combalida com um pires de óleo ou um ramo de alecrim ou de arruda e benze a erisipela e conjura o quebranto, enquanto o fogareiro, em que ardem raízes de virtude e arômatas, espalha no ambiente o fumo que repulsa os males.

Que murmura a velhinha, herdeira da pitonisa e da saga? Palavras de tanto prestígio como as que pronunciavam os asclepíades em Epidauro ou os padres egípcios em Heliópolis ou em Philae.

Em um papiro médico do tempo de Ramsés diz o autor no prefácio: “Possuo encantamentos compostos pelo próprio Osíris — e acrescenta categórico: os encantamentos são bons para os remédios, como os remédios são bons para os encantamentos”.

Em tijolos assírios Oppert descobriu orações a Ishtar e a Istubar, eficacíssimas, como as das nossas rezadeiras, na cura da erisipela, do flegmão, da icterícia e amavios infalíveis em casos de amor infeliz.

E que direi eu dos sucedâneos dos abraxás, dos abracalans, dos phylacterios, das nominas, dos breves e de tantos outros amuletos e quebra enguiços? Os homens trazem-nos ocultos, as senhoras usam-nos como berloques, nos seus penduricalhos elegantes, desde a figa de azeviche ou de coral e guiné, o corcunda, o bacorinho, o signo de Salomão, os olhos de Santa Luzia, até a garra de onça, com vestígios de carne e sangue, garantia segura contra as traições... maritais.

De algumas sei eu — e são espirituosas, lidas e viajadas, rindo em público da crendice dos simples — que usam breves com hipocampos, trazem à cinta orações contra a inveja e, se sucede terem maus encontros, vão ligeiras com a mão à bolsa, rebuscam aflitamente as chaves do guarda-joias, esfregam-nas ou, dissimulando o gesto, dobram os dedos, pondo em riste o indicador e o mínimo, em bidente, ou, melhor em cabeça de touro... contra a jetatura.

Diz-nos o erudito Leoni: “Muitas das nossas cerimônias e práticas religiosas, como os bailes nas igrejas, as pausas nas procissões, os asilos, a reverência à mesa, o fechar os olhos e a boca ao defunto, o lavar o cadáver, o uso das pranteadeiras, nos vieram das instituições romanas.

As mesmas usanças e superstições populares não têm outra origem. As festas do Carnaval são as saturnais de Roma; os dias aziagos, os “dias atri ou nefasti”; os espectros noturnos, ou as “coisas más” que, alta noite, perturbam o silêncio das casas, os “lemures” ou “larvoes nocturnoes”; a sina ou o fado, em que geralmente acredita o vulgo, o “fatum inevitabile”; a varinha de condão, o “lituus” dos augures as nominas de que usa a gente do povo, os filactérios dos pagãos, as figas que as mães penduram ao pescoço das crianças para livrar do quebranto, a “res turpicula” de que geralmente usavam os gentios.” E acrescenta, deixando de enumerar outras superstições que “para se conseguir que os povos deixassem de celebrar “janeiras e maias”, foi mister instituir procissões que os distraíssem daquele culto gentílico; e, todavia, ainda hoje, em algumas das nossas províncias, se não extinguiram de todo estes restos de tão inveterado paganismo”.

O progresso, como a moda, é meramente exterior — a alma é invariável. Nada perece: as ruínas voltam a ser terra fecunda, o cadáver transforma-se em húmus, as águas tornam das nuvens em chuva e em orvalho, a cinza aduba e revive na flor.

O hino dos antigos sacerdotes ainda ressoa sob a abobada das catedrais e a inspiração, que roçou a fronte dos poetas orientais ainda reçuma da estrofe, reaparece na estância.

Se assim é com o efêmero, porque só havia de morrer o divino?

A lamentosa voz ouvida pelos navegadores que velejavam nas vizinhanças de Siracusa, anunciando a morte de Pan, foi uma ilusão. Todos os cultos subsistem estratificados: as sombras dos deuses vivos são os deuses mortos, a igreja de Jesus tem por alicerces os fundamentos do templo de Zeus.

“Cada religião que morre, disse Ampère, deixa o seu fantasma. ”

Nos mesmos lugares em que pereceram os deuses surgiram os santos. Nossa Senhora, por exemplo, é a síntese de todo o feminino zodiacal, dizem-no as múltiplas invocações. Ela é Ceres, protetora dos campos (Madona del’arco); ela é Anfitrite, amiga dos navegantes; ela é Palas, Senhora das Batalhas; ela é Lucina, Senhora do Parto...

No furor dos combates S. Jorge era invocado como Arés ou Marte. São Humberto é o patrono dos caçadores; Santa Cecilia é a musa suave da Harmonia.

Que direi eu das oferendas e libações? S. Cosme e S. Damião banqueteiam-se à tripa fora; Santo Onofre bebe como Sileno. E, no rito, que são os círios, as danças, os coros místicos, as procissões, senão o lume antigo, a emelia grave, o cântico das parthenias e as teorias?

A lâmpada que arde no vosso lar, ante o oratório em que tendes os santos, quem a acendeu senão Hestia?

E não se queixam os antigos deuses da usurpação de que são vítimas? Não, essas metamorfoses são como hipóstases, reencarnações do mesmo ideal de consolo, do mesmo sonho de Poesia mística.

Vamos pelo campo olhando a seara em flor, ouvindo as vozes bucólicas e louvando o Senhor que nos agracia coma abundância. Mas a loura figura de Ceres passa entre os ceifeiros sobraçando paveias, com uma capela de papoulas e rosas silvestres apegadas à fímbria da túnica. Para vê-la, basta haver lido e haver guardado a impressão de Hesíodo, de Teócrito e de Virgílio, esses evangelistas pagãos.

Entramos ao bosque — logo um murmúrio, passos levípedes, cochichos, risinhos, ramos que se apartam, uma sombra aflorando a água dormida.

Que será? O sertanejo dirá logo, arrepiado e persignando-se — é o saci ou o caipora. Dirnosia um saxão — é Kleber; um bretão explicaria — é um elfo. O homem da Floresta Negra nomearia — um kobbold.

Espectros dos antigos deuses jucundos, companheiros de Faunus e de Pan, que povoaram o arvoredo, retouçando nas folhas, espiando lascivamente as ninfas no banho ou armando ciladas perversas às campônias que enveredavam na brenha.

Rebrilha, ondula e freme a água do rio — é a iara, é a nixe, é a ondina, espectros das náiades humentes que se escondiam entre canas ou, surpreendidas em meio da corrente, achegavam aos lindos seios nus as ninfeias floridas.

Flutua uma névoa branca acima do cerro solitário, aparição, direis — espectro de oreada alpestre.

E assim o mundo é um cemitério divino, onde erram, como fantasmas, os espíritos elísios.

Melhor fora que os conservassem a todos no mistério não os abastardando, como fizeram a Pan, o arvense, que foi mudado em demônio, e à linda Vênus, que foi exilada em um monte turíngia, de cuja fralda, como Nitokris, à sombra da pirâmide, chama os que passam, atraindo-os ao seu antro, como sucedeu a Tannhäuser.

E que são as fadas senão espectros das antigas ninfas? E que são os gênios senão fantasmas dos antigos deuses? E ainda a licantropia...

Esses monstros híbridos que, à noite, assombram as encruzilhadas, como o lobisomem, a mula sem cabeça, vieram do Oeta e do Pelion, onde caracolavam os centauros.

Pobres deuses! São as suas almas que nos aterram, elas que fizeram o encanto dos nossos maiores; elas que eram a sua mais animadora esperança, invocadas em horas de sofrimentos como consolo a mágoas e lenitivo a dores.

É verdade que saem de um túmulo, como duendes; vêm do Passado — são as crenças extintas, são os símbolos da primitiva Fé, a essência das religiões que passaram, espectros de antigas ilusões.

Calaram-se os oráculos. O cedro sagrado do Dódona tombou aos golpes do machado do pirata ilírio. A pythia délfica emudeceu no seu antro. Selvas emaranhadas e cavernas lôbregas onde estrondavam as vozes augurais, hoje apenas frondejam e reboam com os ventos.

Despojado de todo o prestígio e do mistério augusto que, outrora, os defendia, esses lugares de culto deixam-se agora penetrar até as profundezas, onde só os asseclas da divindade ousavam chegar, ao som das liras que abrandavam os numes.

Mas desapareceram todas essas mulheres predestinadas, que viam através do tempo e comunicavam aos homens, em enigmas, o segredo inviolável do Destino?

Certo não encontraremos uma Phemenoé que nos diga, em hexâmetros, sublimes como os de Homero, a sorte dos nossos venturos dias — saúde robusta e alegre ou enfermidade dorida: ouro em cópia ou fome e nudez misérrima, mas...

Eis ali, em caleja deserta, a baiuca do oráculo. É uma espurcícia. Sobe-se ao piso esotérico por uma estreita escada que range, forrada de lodo víscido, por onde escapolem ratos em chiadeira. Os pés esparrimam baratas e, ao deslizar da mão no mainel, que oscila, os dedos vão esmagando aranhas e enegrecendo à poeira.

O ambiente obscuro tresanda à humidade e a lixo. Entra-se às apalpadelas, tão densa é a escuridão. Uma noite artificial encerra a vidente, que recebe, em chinelas, à porta de uma saleta, tão atravancada de cacaréus que mal se pode dar um passo sem ir de encontro a um móvel carunchoso, sem derrubar uma lata cheia de bugigangas, sem dar com a cabeça em alguma prateleira.

Cadeiras espipadas, um sofá cambóto, sobre três pés, um deles enleiado em cordas, a palha côncava e tanada formando um ninho ao centro.

Ao meio da sala, a mesa que substitui a trípode.

Senta-se o consultante. A mulher, que, às vezes, masca, quando não exala o fortum alcoólico, tira duma gaveta um sórdido baralho, lança as cartas e começa a araviar.

Que diferença da linguagem alada de Phemenoé!

Não é a inspirada de Apolo, mas a mercenária soez, que intruja a boa-fé, que mistifica a ingenuidade, dando sempre um pouco de alento à alma combalida em troca de uma espórtula.

Criminosa, direis... Não sei.

A medicina nem sempre cura, mas refaz a coragem. O enfermo, sorvendo o remédio, confia em que nele bebe a vida, e a fé auxilia a terapêutica. E porque não à de a alma socorrer-se também da promessa da cartomante?

A esperança de melhores dias pode salvar um desgraçado, abrandando-lhe o desespero.

É vê-lo antes da consulta e vê-lo depois. Entra acabrunhado, suspirando, com o coração confrangido. Que lhe dirá a mulher sabedora? Instantes depois, saindo, é outro: sorri e parte de cabeça erguida, direito ao trabalho, de ânimo retemperado. Luta e vence, tira-se da dificuldade. Eis a profecia realizada.

E o homem bem-diz a “bruxa” sem compreender que deve toda a vitória ao seu exclusivo esforço, à corajosa e pertinaz energia com que saiu ao encontro da Fortuna, na estrada que ela mais frequenta, que é a do trabalho.

E, assim, acendendo a esperança na alma, essa sombra das antigas pitonisas e sibilas concorre para manter no homem a coragem e fortalece-o para a vida.

Mas onde iria eu se quisesse mostrar todos os vestígios das religiões extintas que, todavia, subsistem na religião que vive!

Na terra, onde floresce a roseira que perfuma o nosso lar, quantos resíduos jazem de outras plantas?

Mas deixemos o passado e vejamos o que nos ficou dessas religiões, cujos espectros enxameiam os séculos e hão de neles persistir vivazes, ainda que a Ciência ande sempre a afugentá-los, repelindo-os da Alma da Humanidade.

As religiões elementares deixaram-nos o culto da natureza.

O fogo, deus primordial, segue-nos em todos os tramites da vida. Sentimo-lo em nós, no sangue; sentimo-lo em centelha nos olhos e temo-lo presente em tudo; visível e etéreo nos astros, terreal na chama, recôndito na pedra de onde explui, em represália faiscante, quando o bloco é fendido ou apenas lascado pelo malho.

Símbolo do lar é o elemento doméstico e sociável por excelência, eixo da família, núcleo do altar. É claridade e calor e é nume. Durante o dia é operário — a sua blusa irradia, é toda uma fulguração.

É vê-lo na forja, é vê-lo na fornalha, é vê-lo no acanor, é vê-lo no maçarico — funde o metal, coze o pão, gera o vapor, amolda o fio, precipita a fleuma.

À noite, em flama solitária, do feitio de um ferro de lança, guarda o sono do lar e ilumina votivamente o santuário.

Ruge o vento, esfrola a neve — o fogo mantém a temperatura tépida e marulha em torno da acha, como um cão a rosnar pressentindo inimigo. Por vezes, insurge-se e lavra impetuoso traindo o próprio lar que alue carbonizado, mas os deuses também vingam-se e o prolóquio afirma que a vingança é seu prazer. Não podia o deus radiante fugir à regra divina.

O amor com que veneramos o fogo é tradicional, vem-nos dos grandes dias terríficos, quando o nômade, sentindo a noite e, com ela, a ameaça dos monstros que se rebuçavam na treva, recorria à proteção de Agne e, com a cintila sagrada, acendia, em torno do acampamento, as fogueiras que continham à distância os carnívoros da brenha.

Vemo-lo em toda a parte: nos lumaréus e nos círios, na oficina e no casal, em flama e em brasa, alumiando, agindo, curando ou aceso oblativamente ante as imagens, no altar. Deus vivo.

As águas amáveis, águas marinhas e águas de fontes, ambas fecundas — sangue que circula na terra, cantando; refrigério do mundo, batistério dos astros. Quer da onda verde, quer das correntes límpidas que buscamos ávidos vemos sair deuses de outrora.

Amamo-las, as águas que regam e, se nos faltam à sede ou ao refresco das roças, pedimo-las em preces, estendendo as mãos às nuvens que passam na altura, as nuvens etéreas, peitos pojados de leite cristalino, e as nuvens derramam copiosas chuvas que fazem explodir a floração campestre e alegram os rebanhos nas pasturas pouco antes esturradas e logo às primeiras gotas coloridas em verdor de seiva.

A floresta, centro dos deuses iniciais, de onde saía, coroada de flores, a primavera cheirosa, de onde abalavam em bandos os cantores alados; a floresta, asilo do homem, reservatório das águas nos períodos de esterilidade, celeiro farto nas eras de apertada inópia, verde e fresca no mais causticante fulgurar do estio, com refolhos agasalhados para abrigo no mais rigoroso inverno, a floresta era também divina.

Teme-a ainda hoje o lenhador, empalidece quando, ao penetrá-la, ouve as vozes misteriosas dos seres que a defendem garantindo a árvore, protegendo a fonte. Tais vozes soam desde a primeira madrugada do mundo, e era por ouvi-las e temê-las que o homem, no receio de um encontro mau, recolhia ao colmado ou à cabana de peles, mal começava a escurecer a tarde.

Os primitivos amaram veneradamente a terra e as suas forças e, ora contentes e agradecidos, quando viam lourejar o trigo, enfolhar-se a vinha, proliferar o gado, ora medrosos ante fenômenos incompreensíveis, foram imaginando divindades, umas meigas e providentes, outras hostis e truculentas entranhadas nas minas, revolvendo-se em massas ígneas, por vezes abalando os campos que se fendiam em fissuras, desmoronando penhascos, subvertendo povoas e lançando dos montes, por enormes bocas, rubras como chagas, a supuração inflamada das escorias subterrâneas.

E acreditavam que, também nas águas, pululavam deuses e que também os ares tinham protetores divinos e com tais crenças, que, ainda hoje, nos fazem amar e temer as energias misteriosas da criação, deixaram germens de onde deviam brotar religiões mais meigas, que trouxessem ao homem exilado na terra um pouco de Poesia, esse ar suave do Paraíso.

Os gregos, com o seu antropomorfismo, dando a todas as coisas uma essência divina, pondo todas as forças da alma sob a presidência de um deus regulador e munífice, construíram um poema admirável, que, se não nos deu a imortalidade olímpica, criou para o espírito a imortalidade na arte.

Uma fonte brotando da pedra, entre liquens, tinha, a guardá-la, graciosa ninfa; árvore alargando a ramaria frondosa era feudo virente de alguma dríada; não havia solidão — todo bosque tinha egipãs, toda colina tinha a sua oreada, em toda balsa havia uma napea, a onda rolava sempre uma nereida ou oceânide, no espelho da ribeira mirava-se uma virgem aquática, coroada de algas, com açucenas soltas sobre os ombros úmidos.

Um verso que explodisse na inspiração viera de Apolo; um repto de tribuna fora soprado por Polymnia; o arranque afoito de um guerreiro era um favor de Arês intrépido. O amor era devido a Eros. Uma ave, fendendo o espaço, em voo alígero, ia a recado de um deus e o hierofante, seguindo-lhe a evolução no espaço, tirava augúrios do meneio das remígias, que a guiavam em vertical de frecha ou a faziam voltear em arabescos aéreos.

A flor, que se abria na haste, fora, no correr silencioso da noite, tocada pelos dedos de alguma deusa que a ungira de perfume e a colorira caprichosamente.

Tudo dependia dos deuses — o Homem era um autômato, a natureza obedecia passivamente aos caprichos do Zodíaco.

Mas não ficou superioridade sem culto: houve templos erigidos à Beleza, à Força; a Graça era tida por um dom celeste e, ainda que se não aluda a tal sacelo, o do sorriso, certamente, ele existiu em algum bosque de rosas e loureiros, perto de água cantante, onde rolas se juntavam e uma sacerdotisa, moça e linda, ao som da lira, entoava louvores à deusa que enfeitava o rosto das suas eleitas com essa espécie de íris da alegria.

De tal conjunto de crenças, assim como a rosa é uma mancheia de pétalas, nasceu a Estética, esse evangelho da Beleza dando-nos, desde a Poesia, que é a expressão límpida da emoção, a irradiação da ideia no Verbo alado, até a estatuaria, que é a conversão da pedra em carne, a humanização do barro, o afeiçoamento do bronze à imagem pelo gênio do artista a que apenas falta, para que se iguale a Deus, o segredo que Psiquê só ao poeta transmite em versos que amorosamente lhe murmura ao ouvido.

Atenas opõe-se a Jerusalém. Na cidade síria tudo é tristeza e fala de suplício em memória da morte trágica de Jesus; na Acrópole, as próprias ruínas conservam o encanto que nelas deixaram os deuses e que os homens souberam perpetuar em hexâmetros, em estátuas, em métopas, em urnas, legando-nos, não uma religião efêmera, mas a religião imorredoura e olímpica do Belo.

Os romanos, além dos numerosos deuses inscritos nos Indigitamenta — (e tinham, nos diz Gaston Boissier, para cada um dos episódios da vida do homem, desde a concepção até a morte e ainda para tudo que provia as suas necessidades mais indispensáveis), adotaram divindades gregas e outras muitas que os seus soldados traziam das colônias bárbaras. Em Roma, encontravam-se homens de todas as raças, deuses de todas as crenças, amuletos e fetiches de todas as superstições.

Parecendo um povo beato, ultra religioso, o romano não sacrificava o bem-estar na terra às prometidas delícias de uma outra vida, depois da morte. Entre a Lei e os pontos de Fé não havia hesitação.

Com os deuses, pensavam eles, sempre seria possível um arranjo; os homens, mais severos, esses não perdoariam transgressões. O poder civil era impiedoso e exigia obediência imediata, cominando com penas severíssimas aos que se furtavam às suas imposições.

Assim, quando foi publicada a lei que proibia os enterros nas imediações da casa, não houve uma voz de protesto, posto que o uso viesse dos primeiros dias de Roma.

Os deuses prestavam-se ao reclamo dos homens com a mesma prontidão solícita com que um jornaleiro saía a lavrar o alfobre, a construir um muro, um criado a fazer o serviço no tablinum, um médico a curar, um citarista ou aulétride a alegrar o festim ao som do seu instrumento.

A religião romana era uma transação da terra com o céu — faltava-lhe a Poesia essencial.

O grande legado da pátria dos Feciaes foi a Lei. Queimados os livros sibilinos ficaram o Digesto e as Pandectas, de onde emanou o Direito a verdadeira, talvez única, religião romana.

Veio o Cristianismo e nele refugiaram-se todos os deuses. O desastre do politeísmo teria sido completo se a cruz, que salvou a Humanidade, também não salvasse os seus primeiros sonhos.

Foi em volta do madeiro do Gólgota que se juntaram, em homizio, os deuses, como náufragos agarrados a um lenho flutuante. Em torno dele deambulam os fantasmas das religiões extintas e o homem, que os sente, ainda hoje, apesar de cristão, teme-os, invoca-os, presta-lhes culto à maneira do lenhador romano que, ao entrar na floresta, antes de ferir o tronco, pedia perdão aos deuses desconhecidos.

O Cristianismo está cheio de entidades pagãs. Não agitemos a cruz, árvore em que se agasalham tantos deuses, deixemo-la no seu monte, de braços abertos, sustentando um Deus, cercado por uma aureola que é o zodíaco dos gregos em torno do qual, em nebulosas, outros deuses mais antigos ainda, por vezes, fulguram.

Que será amanhã? Deixemos o véu intacto na face de Isis...

“Toute expression est une limite et le seul langage qui ne soit pas indigne des choses divines, c’est le silence.”

Calemo-nos.

A ANTIGA CIDADE

No Instituto Nacional de Música

10 de outubro de 1908

É doce recordar e, à medida que a gente vai sentindo escurecer a tarde, mais grato se orna lembrar a manhã longínqua.

O bom Deus previdente não quis, na sua imensa misericórdia, que houvesse sombra completa e acendeu, dentro da noite, a lua cândida e as estrelas e deu ao homem, na velhice, a claridade das recordações.

Que seria de nós, nas horas tristes, se não nos fosse dado descer, com a lâmpada da saudade, à memória, cripta onde conservamos as relíquias amadas, tomá-las um instante, revelas, considerá-las: a umas sorrindo, a outras com lágrimas?

O velhinho que cruza conosco a passo tardo e trêmulo parece-nos um passeante, porque o vemos no parque, buscando a sombra das árvores. Está tão longe dali como a nuvem que paira no céu alto. Buscai ver-lhe os olhos: estão turbados, sem brilho — é que se voltaram para dentro.

O velhinho, em verdade, passeia no tempo “dantes”, o seu jardim chama-se outrora — lá é que ele distrai-se e ainda logra alguns momentos felizes.

Não digamos que a saudade é triste: melancólica será, não triste. Às vezes faz-nos sorrir.

Que culpa tem ela de que o coração dos velhos transborde à menor emoção? É uma fiel amiga que nos toma pela mão e faz-nos, de quando em quando, retroceder no caminho andado, mostrando-nos seres e coisas dos quais parecíamos esquecidos.

Vagarosamente nos aponta e rememora: — Aquela casinha... Ali nasceste. Não tinha rosal tão viçoso à frente, em compensação... eras criança, não precisavas de rosas, bastava-te a própria alegria.

Segue o velhinho vagaroso, abordoado, parando, de instante a instante, para um fôlego mais largo. Olha em torno o viço das terras, a serenidade do azul.

Eis surge-lhe à frente uma velhinha, também curvada e arrimada a um cajado. O coração do velho adivinha e pulsa alvoroçado, acendem-se-lhe os olhos e ele fita-os na passageira retransida.

Súbito a Saudade, como uma fada, toca a velhinha e logo apruma-lhe o corpo, esbate-lhe as rugas, aloura-lhe os cabelos, rosa-lhe as faces, acende-lhe os olhos cerúleos, carmina-lhe os lábios, refaz-lhe a graça airosa.

Os dentinhos, que reluzem no sorriso, parecem um mimoso teclado onde ressoa a música da sua voz. E o velhinho treme, marejam-se-lhe os olhos de água, agitam-se-lhe os lábios sem palavras, como azas de pássaro exausto, batendo em vão no esforço de voar.

É bem ela, a namorada dos dezoito anos, o primeiro amor.

Ó saudade bendita que renovas a vida, que tinges os cabelos brancos, fazes repontar a primavera florida no campo nevado e passas no cineral como um sopro de vida reacendendo a chama apagada pelo Tempo...

Vós, que sois moços, que andais airadamente atordoados com a felicidade, não compreendeis que se viva de reminiscências. E vós não viveis de sonhos?

O ideal é a projeção do Futuro; a Saudade é a sombra do Passado — e ambos são ilusões. O Ideal é inatingível — foge-nos; a Saudade, essa é fiel, não nos deixa — é o próprio Tempo que se faz sombra e entra-nos pelo coração. Não penseis que os dias morrem... ocaso, nós também o temos em nós. Os dias passam por nós, mas deixam ficar o que, mais tarde, há de confortar-nos a alma.

Ai! de nós se assim não fosse, se tudo perecesse, se não ficasse a lembrança!...

Julga-se o avaro feliz quando, à noite, no silêncio da casa, fechada a trancas, abre o cofre e tira os pesados sacos de ouro, despeja-os e põe-se a contar as moedas. É a fortuna que lhe passa pelas mãos, é o trabalho, é a usura, são ânsias, angústias, remorsos.

Tal moeda antiga lembra-lhe a agonia de um desgraçado que a trocou para ter pão com que acudisse à fome dos filhos; tal joia recorda-lhe certa viúva que, em vexame, aflita, dele se foi valer, chorando.

E o avaro vê sangue, vê lágrimas nas peças de ouro. É um prazer infernal o que goza em silêncio, fazendo tinir os dobrões que rebrilham como chamas, antecipando-se às infernais.

Comparai o avaro àquele velhinho que parece dormitar na varanda, à luz da lua.

Tem os olhos fechados para isolar-se do mundo. Tranca-se em si mesmo e, fazendo com o coração o que o avaro faz com os sacos de ouro, que vê? A vida, toda a vida desde a infância.

Passam ante ele as aventuras e, como em uma ressurreição, lá vêm os mortos queridos e falam-lhe. Ele sente-os a todos e olha-os com enternecimento e lágrimas.

Lá vão, uns em pós de outros. Outros chegam e são episódios, e são paisagens, e são glorificações, e são êxtases.

E a Saudade não se fatiga, sempre pronta. E com que zelo, com que cuidado armazena. “Nem me lembrava mais!” Suspira, às vezes, o velhinho. “Ah! Não te lembravas? Diz-lhe a Saudade, pois lá estava no fundo do teu coração. ”

Pasmais, às vezes, da memória dos velhos, achando estranho que um ancião de noventa anos refira fatos ocorridos na verde infância.

A Saudade cuida da memória, que é o seu tesouro, e lá vai, quando é preciso, buscar aquilo de que carece.

Bem haja a excelente companheira da vida. Falte-nos tudo e teremos sempre a ventura da recordação, porque a Saudade é como a lâmpada perene que se não extingue ante o altar.

A vida é a hora presente? É o momento em que bate o coração, o instante em que se respira? A vida é o passado e nós não fazemos senão... passar.

Se fossemos para o Futuro remoçaríamos, porque o Futuro é mais do que a mocidade, é o porvir; entretanto envelhecemos, e quanto mais avançamos, mais nos sobrecarregamos e só o passado pesa-nos, só o passado prevalece, só o passado subsiste.

Mal entramos no minuto, logo o sentimos sobre nós — é o grão de areia que vem aumentar a montanha.

Recordar é tão doce! Foge-se da realidade instantaneamente, e Aladino, com o prestígio do seu talismã, não se transportava com tanta rapidez no espaço como nós nos transportamos no tempo, lembrando.

Corre-se de uma a outra era, vencem-se os anos e salta-se do frio da anciania para o calor da mocidade como um passarinho, em voo lesto e cantando, salta de um ramo a outro.

Que seria a vida sem a Saudade? O homem estaria insulado em um instante, a vida seria um momento, o breve prazo de um hálito: nada antes, a incerteza depois.

Assim, não — somos como um novelo que se vai lentamente desenrolando — o fio vem de longe dando, dando, até que...

Tinham razão os Gregos quando explicavam a vida com o mito das Parcas.

É tão doce recordar! E tudo é condão para a Saudade — um ramo a brincar acima de velho muro, uma folha que se desprende da árvore, uma música longínqua no silêncio...

“Les vrais horames de progrès, diz Renan, sont ceux qui ont pour point de départ un respect profond du passé.”

Andava por aqui certa velhinha, tipo entre bruxa e santa, cuja figura singular era de todos conhecida.

Sempre de preto, mantilha à cabeça sobre as falripas brancas, mitaines nas mãos aduncas, rosto encarquilhado, olhos no fundo, o queixo avançando em rastro.

Madrugava à porta das igrejas, de onde só se retirava, e ainda a resmungar orações e a repassar as contas do rosário, depois da última missa.

Um dia avistei-a parada diante de um casarão que demoliam.

Os pedreiros bradavam-lhe para que se arredasse, e ela mantinha-se imóvel, às vezes desaparecia em nuvens de poeira.

Mas toda uma parede começou a oscilar e a infeliz teria ficado sob os escombros se eu, atravessando a rua, com risco de vida, não a houvesse retirado à força do sítio perigoso.

Instantes depois, com estrondo, dava-se a queda da construção.

A velhinha agarrou-se a meu braço e, em voz assustada, perguntou-me:

— Como é isto, meu filho? Pois então não há lei? Destrói-se assim toda a minha cidade: as minhas casas, as minhas árvores, os morros, os riachos, as pedreiras e o próprio mar, tudo que Deus me deu? Então é assim? Tenho tentado opor-me ao crime, ando de dia e de noite a pedir, a implorar, chorando, e os homens passam indiferentes aos meus rogos e vão destruir.

Uma manhã, ainda o sol estava em casa de Nosso Senhor, encontrei um bando de homens com picaretas novas. Perguntei ao mais moço, louro, de olhos muito azuis: “Onde ides tão cedo? Que trabalho é esse para que vos chama o canto matinal do galo? ” “Vamos pôr abaixo os morros.” “Porquê e para que, filhos de Deus? Que mal vos fez o monte, que é um esforço da terra para chegar ao céu? Não vedes que nas casinhas lá de cima há todo um mundo agasalhado? Se arrazardes o monte, que será dos pobrezinhos que nele se refugiaram? Não, deixai de pé o pedestal da Caridade. Lá na altura há um templo em cujo adro avulta, de pedra tosca e muda, o marco da fundação da cidade e em ruelas e calejas íngremes atravancam-se as casas dos humildes. E ali também moram os homens que conversam com as estrelas e os que vigiam os mares assinalando os navios. Se arrasardes o monte, ai! de nós!” Mas os homens passaram indiferentes e, pouco depois, vi os ferros cravarem-se no flanco do grande morro, e, como aparecesse o barro vermelho, pareceu-me que era o sangue da terra alta que escorria da grande ferida feita pelos homens cruéis.

No dia seguinte, cedo, encontrei outra turma de trabalhadores e interroguei um deles: “Onde ides tão cedo, antes da luz do sol? ” “Brocar pedreiras, trazer toda a pedra das grandes rochas para a planície. Somos construtores de palácios. ” “Mas se trouxerdes toda a pedra das rochas por onde minará a água que nos mata a sede e desaltera os rebanhos e revigora as raízes? Esses relevos, que formam uma robusta muralha em torno da cidade, são agasalho de animais amigos e peitos apojados onde rebentam nascentes beneficiadoras. Se os derrubardes onde procriarão os ninhos, onde borbulharão as fontes? Não toqueis na pedra. ”

Mas os homens passaram e, pouco depois, ouvi um estampido e logo o fragor da queda de um penhasco. Era o começo da destruição.

Outros homens romperam da névoa da manhã. Dirigi-me a um deles:

“Onde ides tão cedo, mal alumiados pelas estrelas? ” E o homem respondeu:

“Vamos cobrir com uma abobada os riachos que correm através da cidade. ”

“Que mal fazem os riachos? Não são eles o bebedouro das plantas e dos animais e o regalo da terra? Se os cobrirdes morrerão de sede as lavandiscas, as borboletas e os passarinhos que nos trazem recados da floresta e onde poderá encontrar águas levadias, como as que descem das pedras, atraída pelo mar, a gente pobre que vive da lavagem? Deixai em paz as aguazinhas inofensivas que passam cantando à beira do quintal dos humildes. ”

Mas os homens não me atenderam e cobriram os córregos com uma tampa igual à dos caixões funéreos. Hoje eles derivam escondidos, mal a gente os ouve. Pobrezinhos!

Ainda encontrei outro bando e perguntei a um dos homens:

“Onde ides, ainda com a noite negra? ”

“Vamos pôr abaixo as velhas casas e levantar palácios. ”

“E a pobreza, filho de Deus? Onde irá ela abrigar-se? A pobreza tem também infância e mocidade, velhice e enfermos. Há criancinhas de peito, meninos, donzelas, mães e velhinhos em grande número. Trabalham de sol a sol, mas é tão pouco o que fazem os desgraçados que, se lhes tirardes as casas, ficarão ao tempo, apinhando-se nas escaleiras dos palácios ou disputando aos animais a sombra do arvoredo. Não, não toqueis nas velhas casas.

Mas os homens não responderam e logo começaram a derruir paredes, a destelhar cumeeiras e eu vi uma população esfarrapada sair tumultuosamente para o sol nublado de poeira, com os trastes misérrimos às costas.

E o mar? Pois não é que também foram contra o mar? Que há de ser de mim, meu senhor? Eu era dona de toda a cidade, vivia tranquila e feliz e todos eram venturosos em torno de mim. E agora? Qual é o pobre que canta? O barulho que se ouve é o estrondo ruinoso das casas que aluem e das pedreiras que estouram e, por baixo da terra, como choram os sem lar, choram os ribeiros encobertos, órfãos do azul do céu e das aves da floresta. Pois não é uma falta de caridade? ”

Não era outra senão a Tradição essa velhinha tão amorosamente apegada às coisas do Passado.

Também eu, porque não dizê-lo? Também eu senti a morte da velha cidade. Quando a destruíam muita vez parei contemplativo ante as ruínas, vendo abater telhados, esbarrondarem-se muralhas que expunham, em nudez escorchada, os vigamentos apodrecidos do casario colonial.

E o que saía dos muradais, além da poeira que se levantava em nuvens demandando o céu, como se fosse a alma das construções vetustas! — Gordos arganazes, correndo tontos pelas sarjetas, esgueirando-se nas bocas de lobo ou arremetendo às soleiras das casas, encadeados à luz do sol; enxames de baratas, centopeias asquerosas, aranhas, escorpiões, toda a sevandijada que prolifera na sombra úmida.

Por vezes uma parede, ainda a prumo, mostrava no papel desbotado recortes que o tempo respeitara, onde os desenhos floreados pareciam recentes — eram os retalhos protegidos contra a luz pelos quadros de cenas ingênuas, pelo relógio que regulava o viver da família, pelas pesadas almanjarras do antigo mobiliário.

Se, ao bater da picareta, sucedia responder um som cavo, os operários detinham-se, entreolhavam-se com o pensamento nos tesouros a que as lendas aludiam: cofres de dobrões, escrínios de joias, baixelas, imagens de ouro maciço.

E procediam com cautela raspando vagarosamente a argamassa, retirando, um a um, tijolos e pedras, sem que aparecesse o vão onde esperavam encontrar a riqueza aninhada.

Então, com furor bravio e despeitado, encarniçavam-se na destruição e, em pouco, o pardieiro desaparecia e o sol tapeçava o antigo soalho doméstico, cujas tábuas escalavradas esfarelavam-se de podres.

Um lindo caso de evasão para a luz foi o que se deu na rua da Uruguaiana, na parte em que a atravessa a rua do Ouvidor.

Numerosos operários revolviam-na amontoando a terra em cômoros. Grossos canos de ferro apareciam terrosos, roídos de mugre; outros, de chumbo, estortegavam-se como veias esclerosadas; manilhas de barro escondiam-se à maneira de serpentes hibernando.

A escavação aprofundava-se e a terra começava a dessorar, a filtrar humidade. Os ferros empapavam-se em lodo, esparramavam-no aos espirros.

Súbito, como uma flor líquida, abrolhou um rebento de água límpida, borbulhando contente, em gêiser. Era a ressurreição da limpa que, outrora, quando a cidade era ainda um povoado sem ordem, cortado de estradas e veredas, por entre balsas e abafeiras floridas, naquele sítio derivava em córrego, ao qual, durante muito tempo, a rua devera o seu nome — da Vala.

Um momento o povo juntou-se a ver a água jorrar cristalina, brilhando ao sol. Houve quem relembrasse o bom tempo em que ela corria livre à flor da terra, mas os trabalhadores depressa estancaram o veio, soterrando-o para que não corresse empastando em lama a terra solta.

E quantos riachos desapareceram sob abobadas!

As carroçadas de barro, de alvenaria, de destroços que, noite e dia, passavam estrondosamente pelas ruas, caminho das praias, davam ideia do enterro da cidade. Era o corpo da velha urbs colonial que lá ia para a sepultura e matando porque os escombros serviam de entulho — lançados à praia iam afastando a onda, alastrando o terreno na zona marinha.

E o mar recuava a rugir. Mas o mar é preguiçoso, precisa das praias para estirar-se e há de refazer o seu recosto de areias reconquistando o que lhe tomaram.

A quebrança da onda é agora mais forte, sente-se nela a raiva e por baixo dos gramados e dos canteiros dos parques da ribeira, onde outrora só havia a verdura das ondas e o alvor das espumas, sente-se um rumor estranho, como de aríetes — é o mar que se insinua na terra minando-a, solapando-a para reaquistar as praias inclinadas onde, ao luar de antanho, as nereidas trebelhavam desfolhando alvas flores de espumas ou esparzindo prodigamente faúlhas de ardentias.

Mas consola ver essa terra que encobriu o mar, terra esterilizada em construções, renascer para a fecundidade, respondendo às graças do sol e da chuva e ao trato do homem com a erva virente e com a flor de aroma.

Renan fala da lenda da cidade d’Is, que foi engolida pelo mar armoricano, referindo ao dizer dos pescadores — “que nos dias de tempestade, no côncavo das ondas, veem as pontas das flechas das igrejas e nos dias de bonança ouvem subir do abismo o som dos sinos modulando o hino do dia”.

Eu, que conheci esta cidade no tempo antigo tenho, por vezes, em horas de saudade, recordações comovedoras. Vejo a vida e ouço os ruídos de outrora e posso dizer, parodiando as palavras do apostolo de Treguier: “Parece-me, às vezes, que conservo viva no coração a antiga cidade, onde brinquei na infância, onde gozei a adolescência e tive os primeiros encantos da mocidade — jardim das minhas ilusões, oriente das minhas esperanças. Sinto-a em mim.

Não raro quedo a ouvir vozes, pregões, surdinas de músicas longínquas. Passam ante meus olhos silhuetas vagas — são as visões do Passado, sombras do que foi e que não volta. E, com a velhice que chega, no crepúsculo da vida, é grato recordar, voltar os olhos para o caminho percorrido.... do qual restam apenas vestígios na minha saudade.

Tinha a beleza de Cendrillon.

Ainda a vi Borralheira, esfarrapada e descalça, as mãozinhas tisnadas e, nas faces, encobrindo as rosas, manchas de carvão.

Certo ela ainda hoje há de lembrar-se dos castelos que fazia nesse tempo, diante do lume, sonhando, talvez, não com o príncipe (muito ao invés disso) com o cavaleiro airoso que a devia furtar à vida desleixada.

Uma noite — a linda noite que foi! — Levaram-na a um baile em uma ilha tão fulgurante de luzes, que o mar, em torno, parecia de ouro líquido. Os barcos relumbravam na sombra e faixas de claridade varriam luminosamente as águas.

Esse baile! Quem lhe não conhece o final? Eu lá estive e vi Cendrillon sair pelo braço do cavaleiro do seu sonho...

Mas falemos da cidade.

A minha casa, casa de pobre, era na rua do Costa. Tinha quintal e água dentro e isso era luxo naquele tempo.

Meu quarto, à frente, respirava por uma janela de persianas que me punha em comunicação com a rua, por onde passava um bondinho ronceiro, de um burro só, que subia para a rua da América.

Depois do dobre do Aragão, além do guarda urbano, raro em raro passava um transeunte retardatário e a calçada ressoava no silêncio como o lajeado sonoro e retumbante de um claustro. Da madrugada, ainda escuro, a rua atroava com o matraquear dos tamancos dos operários do Arsenal — era um instante de rumor na tranquilidade, mas o quiete restabelecia-se e o sono interrompido volvia às pálpebras e ainda dormia-se uma boa hora.

Mas começava o tintinabulo das vacas, os leiteiros paravam aqui, ali e, para chamarem os fregueses, sacudindo a coleira dos animais, faziam chocalhar as campainhas e era uma matinada à qual frequentemente, para maior estrondo, as vacas juntavam os seus mugidos.

Era a manhã.

O sol luzia, de ouro, e sempre havia uma poça onde a sua luz brilhava e um monte de lixo que ele cobria de esplendor.

Rodavam, aos trancos, as enormes carroças de água em pipas e, quase ao mesmo tempo, chegavam à porta o padeiro com o cesto (e como era bom o cheiro morno do pão fresco a espalhar-se na casa apetitosamente), o moço do açougue com a carne, o caixeiro da venda com o feixe de lenha e o homem do cisco sorumbático, nauseabundo, que entrava a correr sem levantar os olhos, ia ao quintal, enchia a cesta e saía ligeiro, como vexado do seu ofício.

A quitandeira mina, com o filho enganchado à cinta, parava à porta, oferecendo verdura e frutas; o chim trotava apregoando peixe, e era “o compadre” de toda a gente.

Cães amatilhados subiam e desciam a rua rosnando, ganindo; de repente engalfinhavam-se e eram lutas tremendas até que o mais fraco abandonava o campo cainhando, e vaiado pelo ladrar da malta que assim lisonjeava covardemente o mais forte. E, um a um, apareciam os tipos costumeiros — a doceira esganiçando louvores ao “arroz de leite” às cocadinhas; os negros do ganho, latagões robustos, a cara retalhada em lanhos, cesta às costas, camisolão sobre as calças de zuarte, carapuça de baeta; bufarinheiras minas com cestinhas muito arrebicadas ou enormes conchas de pau cheias de missangas, figas de Guiné, sabão preto, capim mimoso, gengibre, contas de leite, favas de cheiro, anéis de lagarto, dentes de feras e de insetos, lágrimas de Nossa Senhora; e a preta da fressura com o sangrento tabuleiro onde se empilhavam corações e bofes, fígados e tripas, todo o deventre das rezes. Por fim a tia do angu.

Era uma negra alta e airosa, ainda moça, risonha, talvez para mostrar os dentes alvos, sempre arreiada de corais e ouros.

Caminhava em passo vagaroso e lânguido, rebolindo os quadris carnudos; braços nus, pés em chinelas de bico, trunfa à cabeça, o pano da Costa atravessando o busto de modo a deixar aparecer o cabeção de crivo da camisa e a pele fina e lustrosa das costas retintas.

Seguia-a lerdo, com o tabuleiro de angu, o negro escravo, macilento, fuveiro, cambaio de um pé, misero rebotalho de valongo, reles como cavalo de tilburi noturno.

O caixeiro começava a sua faina de casa em casa. Entrava até à cozinha bisbilhotando, coscuvilhando. Conversava com a criadagem, escrava ou forra, dava trela à senhora pondo-a ao corrente da vida do quarteirão e, enquanto despejava o que sabia, ia observando, como o Asmodeu de Le Sage, e por vê-las à vontade quando saíam do quarto, no desalinho matinal, podia dizer do assedado dos cabelos de Sinhá, da alvura dos braços de Nenê, dos postiços da matrona e, mais indiscretamente, dos ciúmes domésticos que começavam em arrufos no casal e sempre findavam na surra em que se estorcia a mucama zabaneira.

Não se fazia cerimônia com o caixeiro.

Era a hora em que começava nos colégios públicos, onde estalava à palmatória, a cantoria numérica da tabuada.

Passavam beatas da missa. O carteiro, fazia zig-zagues duma para outra calçada, falando a todos com intimidade.

De certas casas evolavam ondas de fumo tresandando a ervas secas ou cheirando a arômatas; de algumas soleiras escorriam lençóis de água sobre a calçada.

E à porta da venda, repimpado num caixote ou esmagando um saco de feijão ao peso do corpo nédio, o taverneiro, em mangas de camisa, lia o Jornal do Comércio e as cozinheiras, com as compras, levavam para as casas as notícias da véspera e narravam-nas estarrecidas.

Um assassínio alarmava a cidade e tornava-se, durante dias. O assunto das palestras. Terminada a leitura o taverneiro entregava o jornal ao caixeiro para que o levasse ao freguês mais importante e, até à noite, a folha andava de casa em casa, lida, relida, informando sobre a política, sobre o preço dos gêneros e das fazendas, sobre os casos das ruas, e fazendo sorrir e chorar com os episódios do folhetim, sempre suspenso no ponto mais interessante.

Nesse tempo um vintém era moeda. Com ele comprava-se um pão, um pé de moleque ou uma cocada, duas bananas, uma laranja, contentava-se um pobre, ou atendia-se ao “irmão” que às segundas pedia para “a missa das almas” e às quintas para o Santíssimo. O colegial, se fumava, tinha por um vintém quatro cigarros chamados “fuzileiros” ou um charuto “quebra-queixo”.

À saída do colégio já se encontrava o preto das empadinhas, o moleque da puxa-puxa e o da caninha doce baquetando na lata ou no tabuleiro.

Ainda havia a gondola para Botafogo e circulavam os “bondes”, que valiam 200 réis.

Carros, poucos e só apareciam em casamentos, batizados e enterros e as tranquitanas particulares não primavam pela elegância.

Hotéis de fama — o Mangini, o Ravot, o Frères Provençaux. Freges, a cada canto.

Lembro-me ainda, vagamente, do vasto chão em mato, que era o Campo de San’t Anna, onde avultava a ruinaria do Provisório.

Havia lixo às pilhas e carniça fétida.

À noite, ninguém ousava atravessá-lo. Ladrões e capoeiras dominavam-no; os assaltos eram frequentes e os urbanos, se ouviam gritos na escuridão, faziam-se surdos, não se atrevendo a meter-se com os valentes que assenhoreavam o deserto.

Pobres morcegos! Muitos sofriam, vingando-se nos pobres que lhes caíam nas mãos.

Nas ruas do Senhor dos Passos, Sabão, Alfândega e S. Pedro, na parte mais próxima do Campo, as casas de rótulas tresandavam como aringas.

Eram habitadas por negros que as dividiam em compartimentos separados por uma cortina.

Lá dentro fervia o “quimbande”, dava-se fortuna, faziam-se filtros e despachos e nas vésperas das festas batucava-se freneticamente ao som de atabales, ao tinir de pratos de louça repinicados pelas mulatas que se esgoelavam em guinchos histéricos saracoteando lascivamente. Ainda encontrei a fama sinistra do Juca Rosa e lembro-me de um negralhão petulante, que vestia de branco e passava sempre por entre negros zumbridos, como um rei, cuja mão muita vez eu vi beijada por mocinhas louras e crianças que as mães levantavam para receberem a benção do feiticeiro.

Quanta vez, ao sair do colégio, que era na rua do Hospício, parei maravilhado para ver o grande relógio da Pêndula Fluminense que enchia um carro, tirado por cavalos brancos. Ou então era um dentista americano a cavalo, arrancando anelas com o cabo do chicote, a oferecer dentifrícios e odontálgicos; ou um intrujão enaltecendo, em arenga araviada, um sabonete contra nódoas, um saca-rolhas, um elixir, pílulas contra enxaquecas ou simplesmente um realejo que pianolava e em torno do qual, preso pela cinta, um macaco, de saiote ou vestido a mosqueteiro, pinchava, saltava arcos, virava cabriolas, às caramunhas para o povo que lhe fazia roda.

E o Imperador? Estridentes clarins vibravam alvoroçando a rua e lá surgiam os batedores precedendo a pesada berlinda ou a “estufa” onde o monarca, umas vezes, verdadeiramente majestoso, com a imensa barba fluvial a branquear-lhe o peito recamado de ouro, ou burguesmente envergando uma sobrecasaca, a cochilar, passava seguido dum esquadrão a galope, a espada nua lampejando ao sol; ou, nos dias de gala, com os moços de sota e de taboa, os camaristas em carros do Paço e uma vistosa guarda de lanceiros agitando flamulas.

Mas o maior de todos os meus encantos — que saudade! — Era o passeio de palhaço. Lá vinha ele de pé sobre o lombo de um cavalo sarapintado, às gingas e às gaifonas, desconjuntando-se aos reboleios, e a molecada em torno.

A moça é bonita?

E logo, em coro, os moleques:

É sim, sinhô!

Abriam-se, de estalo, todas as janelas e era uma curiosa exposição de cabeças — desde a da trunfa até a de retorcidos papelotes, desde as longas tranças até a gaforinha arrepelada, lustrosa e tresandando a ranço.

E quantos olhos lindos enlevados naquele espetáculo de momo! Quanto coraçãozinho a pulsar de desejo, desejo inocente de ir, à noite ao circo ver as cabriolas dos acrobatas, o arrojo dos volatins, a destreza dos cães, o palhaço preto cantando ao violão modinhas brejeiras. Por fim, a pantomima, com muita “bexiga”, ao estrondo da gargalhada que fazia estremecer o toldo de lona onde se viam as sombras dos que, lá dentro, aplaudiam as sortes arriscadas, rebolcando-se de gáudio às gatimonhas do “Pai João”.

À entrada do circo estendiam-se em duas alas os doceiros, com as lanternas de vidro sobre os tabuleiros, apregoando regueifas e bolos de coco, canjiquinha e rolos de tapioca manaués, pastéis, balas de ovo, quindins, bons bocados e queijadinhas.

Em fogareiros de ferro estralejavam espigas de milho. E ainda havia o caldo de cana — quentinho; alguidares de tremoços, amendoim torrado, pipocas e dunas de gergelim.

A última “cavalhada” no Campo de Sant Anna, em frente ao Quartel, foi a que eu assisti e, até hoje, não me lembro de emoção igual à que tive nessa tarde vendo entrar na liça a gente galharda, dividida em dois partidos — mouros e cristãos, cujos cavalos caracolavam, cabeavam sob jaezes vistosos.

O sol ardia e a poeira, subindo da arena, punha no ar uma névoa de ouro.

A chirinola esbofava-se no coreto com um clamor de metais e muito estouro de bombo, sarrafaçando chulas reboladas, e os guerreiros, pimponeando na sela, com o albornoz ao vento ou aprumados na couraça de lata, que cintilava ao sol, conversavam enquanto o rei de armas, um barbaças muito enfunado, dava ordens rápidas, despachando mensageiros que se cruzavam em idas e vindas, com recados a um e outro partido.

Eram as negociações preliminares: o cristão generoso intimando o mouro a render-se à cruz, o infiel contumaz respondendo com insolência altiva.

Os cavalos remordiam o freio, relinchavam, escarvando a terra, sôfregos, e o povo, impaciente, exigia o começo da função heroica.

Saíram arautos, troaram buzinas e houve um desafogado respirar na turba. Largaram-se os animais à rédea baixa e os guerreiros afrontaram-se com estrepitoso arranque.

Ao primeiro choque as canas voaram em estilhas e logo lampejaram as espadas, entrechocando-se, estourando nos broqueis e adargas. Antes, porém, que houvesse tempo de admirar-se a esgrima de tais próceres, já as pistolas tiroteavam, envolvendo em fumo tanto a mês nada cristã como a algára muslim, briosa e destemida nos seus alfarazes árdegos.

Era uma balbúrdia herói-cômica de prélio e troça. À grita de guerra dos combatentes respondia o babaréu do povo vaiando o cavaleiro desarçonado ou, às cascalhadas, recomendando a um tal que se agarrasse ao Sant‘Antônio para não afocinhar, tanto se desmantelava na sela às upas do corcel.

E ali tive ante os olhos o que o poeta descreve nos Doze de Inglaterra:

“Correndo algum cavalo vai sem dono,

E noutra parte o dono sem cavalo...”

Nas manhãs dos sábados a minha casa rescendia como se, por milagre de um dos santos do oratório, sempre alumiado, a mirrada roseira do quintal que, de vez em quando, abrolhava uma rosa, mais débil do que a de Malherbe, houvesse mudado todo o seu agressivo espinhal e toda a sua folhagem em flores dando, num só dia, a reserva de perfume de todo o ano.

O bom cheiro não vinha do esmarrido arbusto, mas da roupa lavada nos córregos, corada nos ervais da Quinta Imperial, que a lavadeira ia contando peça a peça.

Tinham fama as lavadeiras da Quinta porque, além de caprichosas no alvejo do linho, tão cheiroso o traziam que a gente, à noite, rolando voluptuosamente nos lençóis macios, dormia como em campo de flores, sentindo o perfume agreste que o leito branco e os travesseiros exalavam.

E os tropeiros, hoje tão raros!

Desde a meia noite, a espaços, ouvia-se o tinir das campainhas das récuas descendo para o Mercado com os feirões de frutas e de legumes, capoeiras de galinhas, sacos de carvão, e, até sol nado, continuava o desfile com o matuto à frente, banzando ao chouto da mula viajeira.

Às vezes, no silêncio tórpido do meio dia, quebrando a quietação da rua que parecia adormecida ao sol, um som rouco regougava soturno — era a buzina do peixeiro da Tijuca.

Lá vinha ele a passo, ladeando a bestinha em cujos flancos sacolejavam os cestos onde o peixe, entre húmidas folhagens, parecia vivo. A quando e quando abocava o chifre que trazia a tiracolo e soprava-o reclamo.

Dos arrabaldes — Tijuca, Andaraí, Trapicheiros, Engenho Novo desciam carroças acoguladas de frutas: laranjas, tangerinas, melancias, limões, também verdura tenra e, sobre as pilhas de couves e de alface, cestas de ovos, ramos de flores.

A cidade vivia farta e gastava pouco. Uma casa de 50$ agasalhava uma família e com 20$ ia-se à Praia do Peixe, enchia-se um cesto de compras e podia-se convidar Lucullo.

Não sei como vivia a nobreza de Laranjeiras e Botafogo; a gente do meu bairro modesto, ainda que não frequentasse o Cassino e o Lírico, dançava em casa, aos roncos do opheleide ou ao marimbar do piano ou nos bailes dos amigos e, além dos “cavalinhos” e dos teatrinhos de amadores, uma ou outra vez — e era uma festa gozada e relembrada durante meses — ia ao S. Pedro, ao São Luiz, ao Ginásio ou ao Vaudeville, que era na rua de S. Jorge. Essa gente, repito, seria ingrata se não rezasse aos seus santos domésticos, se não fosse à missa agradecer ao Senhor as grandes mercês, e se ainda, por amor de Deus, não atendesse ao pobre que alrotava à porta recebendo, de boa feição, o vintém de esmola, o mendigo com um naco de carne, um chapéu velho e até o “Deus o favoreça, irmão” bradado lá de dentro, através do trepidante rumor da máquina de costura.

O lar era tranquilo e os costumes simples. O pai de famílias saía cedo, almoçado e lá ia ao trabalho, contente de si e dos seus; o pequeno enfiava a tiracolo o saco dos livros e punha-se a caminho do colégio.

Ainda nesse tempo os filhos tomavam a benção aos pais beijando-lhes respeitosamente a mão. Ingênua idade! A casa tornava-se um gineceu e cada senhora ou donzela cuidava do seu mister — está a dirigir o serviço, essa a costurar à máquina, a bordar ou a cerzir a roupa, aquela a fazer doces, tudo ao som de cantigas apaixonadas.

Por vezes um romance amenizava as horas e corriam lágrimas compadecidas sobre o sofrimento de “Flor de Maria” ou pasmava-se da riqueza do Conde de Monte Cristo.

Aqui, ali doremifasolava um piano.

As beatas tinham os seus dias devotos e desciam do Castelo ou de S. Bento consoladas, dizendo enlevadamente as doçuras da religião.

Pelas ruas eram pobres expondo mazelas, cegos remoinhando realejos, trios e quartetos de crianças italianas, muito escanifradas e besuntonas, zangarreando harpas, rascando guinchos irritantes em violinos híspidos, a acompanharem uma canção napolitana ganida por uma pequenota.

Ainda cruzei nas ruas com a “cadeirinha”, o gracioso veículo dos tempos galantes. Ai! dela... descera à ambulância de enfermos.

Os mais pobres eram conduzidos em redes. Lembro-me de haver visto passar uma delas levada por dois negros, que acertavam o andar em rítimo sereno; ainda assim o ferido, a esvair-se, ia deixando um rastro de sangue na calçada e, por vezes, gemia lancinantemente.

À tarde subiam no ar o aroma da Água Florida e o cheiro rançoso do óleo de Oriza, as matronas vestiam casacos brancos com entremeios e rendas, trepidantes de goma, os maridos galeavam em costumes de brim ou, descerimoniosamente, debruçavam-se à janela em mangas de camisa fumando, conversando com os vizinhos.

Como se jantava às 4 horas, às 5 começavam a aparecer os elegantes, muito casquilhos, de calças de boca de sino, croisés compridos, cartola lustrosa, um tanto descaída à banda, uma ponta de lenço a fugir do bolsinho.

As mocinhas, sem os papelotes, cabelos em cachos tomavam atitudes à janela.

Estavam em moda as anquinhas, o puff, o coque e ainda, raro em raro, aparecia uma mulher tufada a pavonear-se na roda do balão, como um alparluz que o vento fosse levando de rasto.

Era a hora idílica, quando, no dizer do tempo, “a gente escorregava no azeite das calçadas”.

Ele à esquina, ela à janela esmagando o colo. E eram acenos de mãos, lenços que se agitavam, olhares incendidos, beijos atirados nas pontas dos dedos.

O moleque, a mucama, o caixeiro da venda concorreram para muito casamento e, ai! delas, para muito passo em falso de que hoje, talvez, ainda se arrependam as miseras que o deram.

Como as lojas das ruas do Ouvidor e dos Ourives e as do largo do Rocio conservavam-se abertas à noite, até às 10 horas, com a gambiarra exterior do mostruário acesa, a gente simples, sem tafularia, com pouco mais do que vestia em casa, logo ao escurecer, saía em bandos, desde a matrona, em cabelo ou com um leve toucado, um chale por cima do casaco branco, a menina, muito faceira, com trejeitos dengosos, os pequenos rezingando, embezerrando diante dos armarinhos e das casas de brinquedos, até as mucamas.

Seguiam devagar, relanceando olhares a tudo, fazendo paradas, aqui, ali, apinhando-se ante as taboletas dos ourives para admirar as joias fulgurantes, junto às vitrinas das lojas de modas para ver os manequins em que se enformavam os vestidos de baile; olhando os chapéus, as bonecas dos cabeleireiros que giravam mostrando os penteados, e, aqui, além as perfumarias, as fazendas em voga até um autômato em exposição, formoso pastor suíço, de cera, tamanho natural, sentado numa pedra musgosa, com ovelhas aos pés, a virar, a revirar a cabeça, levando a flauta à boca de onde tirava uns sons bucólicos que faziam a multidão sorrir enternecida.

O passeio prolongava-se, quase sempre até o Carceler, posto que as mamães, receosas de encontros com imperiais marinheiros e embarcadiços, gente provocante e sanguinária, só a muito custo cedessem às instâncias das moças. Mas o sorvete que se chuchurreava na confeitaria famosa pagava a audácia.

Outros grupos iam ao largo do Rocio tomar um refresco entre as árvores, ouvindo os alemães, ou simplesmente ver as joias nos ourives.

A praça, no lado da rua do Espírito Santo, era considerada impura com aquelas mulheres esgargaladas, algaraviando, cantarolando à janela ou lá dentro, a portas abertas, de pernas cruzadas, para que lh’as vissem, os pés em sandálias de veludo, em atitude languida junto a um pequeno balcão onde expunham, a título de comércio, cigarros e charutos, acenando de cabeça aos homens para o reposteiro de cretone, arrepanhado de modo o deixar bem à vista o leito em ostentação de cínica luxúria.

Quando não tinha visitas ou não saía a fazê-las nas imediações, a família empregava agradavelmente as horas da noite em conversa íntima, sobre assuntos domésticos; os homens às vezes, jogando o solo ou a manilha, as senhoras fazendo serão, ouvindo casos ou romances, lidos em tom plangente por uma das filhas; e a criançada, em volta da velha preta, escutando histórias maravilhosas entremeadas de trovas tristes.

Um após outro passavam na rua, apregoando, o negro do “caldo de cana, quentinho! ” A tia da canjica, o moleque das pipocas e do amendoim torrado.

Às nove era servido o chá e às dez as badaladas graves do Aragão como que espalhavam uma benção geral sobre a cidade... E fechava-se a venda. A rua caía em silêncio. O urbano ia e vinha, pausado. De quando em quando passava um grupo.

Nas noites de luar eram infalíveis as serenatas: flauta, ophicleide, violão, cavaquinho e um cantor.

Pé ante pé, descalça, arrepanhando a camisola ao colo, a donzela deixava o leito e, entreabrindo sorrateiramente a janela, ia impregnar-se de romantismo, gozando aqueles sons, tomando a si as palavras do trovador, que se queixava da ingratidão de “um coração de gelo. ”

Trepe-trepe, lá ia também a mucama. Os velhos, na cama, ficavam à escuta, todos, enfim, sob o prestígio daquele canto abemolado na distância, devaneavam docemente.

Outras vezes, porém, era o alarma apavorante — os sinos dobravam a rebate e era um bulício sobressaltado em casa e na rua.

Fogo! Onde seria? Abriam-se as janelas e zoava um vozear de colmeia assustada, gente de nariz ao ar procurando no céu o laivo purpúreo das chamas.

As nuvens encardiam-se, aclaravam-se, e todos a orientarem-se. Era perto, bem perto. Rolos de fumo negro subiam aos golfos, faíscas cintilavam esparrimando-se. Poviléu a correr aos magotes.

De repente um refluxo espavorido de curiosos e um estridor de ferro velho, estropeada de multidão — era a bomba do arsenal tirada a pulso pelos menores que, apegados, em penca, a um cabo, arrancavam o aparelho em desabrida disparada, aos trancos. Outra logo surgia através da grita do populacho amotinado, ao clarão de archotes lúgubres — era a “crioula” célebre nas crônicas do tempo.

O medo de ser apanhado para dar à bomba fazia o povo debandar e diante do edifício envolto em chamas as “máquinas” estacavam, estendiam-se as mangueiras e começava o vaivém, a braços, por turmas que se revezavam.

Às vezes (é vezo antigo) a água estancava e os bombeiros ficavam inertes, rubros ao clarão do incêndio, como corados dos pés à cabeça, vendo ruir o edifício, impotentes diante das labaredas que lambiam os prédios laterais e das fagulhas que saltavam, em crepitante enxame, sobre as casas fronteiras.

E eram destroços de cacaréus na rua, em montes que atravancavam a passagem e as vítimas da catástrofe, em menores, chorando, lamentando a perda dos seus haveres. E trágico, sem descontinuar, o sino redobrava como em calamidade pública. Era sinistro! Aos sábados, dia consagrado a Himeneu, se, à tardinha, atroava rodar de carros, era uma correria para a janela. Casamento!

Quando havia uma de tais cerimônias na vizinhança toda a rua alvoroçava-se. O caixeiro da venda dava informações minuciosas de tudo — desde o peru que engordava no galinheiro, até o número de camisas do enxoval da noiva, em que todas as senhoras trabalhavam dia e noite.

Os que não recebiam convite para a festa, recalcando o despeito, combinavam-se, em tom de troça, para espiar de fora: “Sempre queriam ver aquilo! ” E juntavam-se na calçada, enchiam a rua no ponto fronteiro à casa. O cocheiro do bondinho apitava desesperadamente, levando o carro à meia trava por entre o povaréu.

A casa aberta, com cortinas bordadas, jarros de flores, panos de crochê nas cadeiras, cheia a deitar fora, resplandecia à luz de muitos lampiões de querosene, uns próprios, outros emprestados como parte da louça, dos cristais, dos talheres e cadeiras que os vizinhos, durante o dia, haviam mandado.

Os noivos, sentados no sofá, muito juntos, mantinham-se em atitude rígida de figuras de cera — ela, com o buquê ao colo, o véu apanhado à frente; ele com as abas da sobrecasaca dobradas sobre as coxas, pastinhas lambidas, bigodes muito encalamistrados, a contrair, a arreganhar os dedos, incomodado com o arrocho das luvas.

Cruzavam-se galanteios, pilhérias provocavam risotas.

De quando em quando uma das moças apresentava à noiva um botão de flor de laranjeira que ela mordia maquinalmente.

O ophicleide cocoricava, a flauta respondia em trilo. Estalavam palmas e o mestre sala, azafamado, ordenava: “Tirem pares! ”

Era uma balbúrdia — todos de pé na sala acanhada, as damas sorrindo ao braço dos cavalheiros muito atenciosos, relanceando olhares ufanos para a rua onde o povo era denso e rosnava comentários.

A música atacava com estrondo e duas filas avançavam rastejando passos ao berro de “Enavant! ”

E o mestre sala, entusiasmando-se, desmantelava-se, a improvisar marcas em francês mascavo, complicando os passes, aos pinchos no remoinho de onde subia um cheiro de água da Colônia e canfora, da barata e de fazendas novas.

Não raro, por uma futilidade — coisa de um calo pisado, de um esbarro propositado ou involuntário — levantava-se uma discussão na rua. Palavra daqui, palavra dali, um nome crespo escandalizando as senhoras e dois adversários frente a frente, chapéu à nuca, olhos meio de esguelha.

Súbito esbarravam-se. O povo abria — um salto, um raspão na terra: era o rolo. Os “cabras” eram direitos, valiam-se. E era vê-los aos pulos, rastejando agachados na ligeireza da baiana, ágeis no rabo de raia, destros na “cocada” até que, enfurecidos, sacavam as navalhas.

Espraiava-se a debandada espavorida.

A casa fechava-se na confusão dos faniquitos das mulheres e do protesto dos homens. Apitavam, fartavam-se de apitar, até que os urbanos apareciam em magote, também apitando, já de fação em punho, espaldeirando a torto e a direito.

Os capoeiras ficavam isolados, gingando, com as sardinhas empalmadas e os morcegos, sempre bufando nos apitos, saracoteavam, sem ânimo de avançar, porque os heróis, solidários na defesa, acomadrados por espírito de malta, faziam letras mostrando o “aço”, que alumiava. Súbito, em dois saltos espernegados, punham-se a salvo e, de longe, vaiavam os “trouxas” aos berros, desafiando-os.

Reabriam-se as janelas. Um momento cabeças espreitavam, mas o ophicleide requebrava uma polca e o baile recomeçava em forrobodó desnalgado até à hora da ceia.

Os noivos abriam a marcha, de braço, e à mesa opípara, onde reluzia o leitão luzidio, incrustado de azeitonas e de rodelas de limão, e o peru avultava ao lado de uma travessa de tostado arroz de forno, entre pratarrazes e compoteiras, pirâmides de fios de ovos e o pão de ló simbólico, com dois calungas noivando sob uma rotunda de açúcar, um orador, taça em punho, falava no silêncio atencioso e comovido, fazendo votos pela felicidade do jovem casal, a quem desejava uma vida de venturas, como a de Abrahão e Sara, no Paraíso.

Os pais choramingavam, as moças cochichavam malícias, quebravam-se taças, urrahs! Atroavam. Mas um prelúdio de flauta desfazia o comenso, e a voz do mestre sala estrugia reclamando os pares.

No ar escuro, acima dos telhados, com um chirrio lúgubre, a coruja passava em voo misterioso. Quanta mocinha insone a devanear à meia luz da lamparina vacilante, ouvindo os amortecidos sons do baile, a pensar no seu dia ainda tão longe, na esperança.

“— Melange de damas e mussiús! ” Bradava o mestre sala afobado, suando em bicas e o revoluteio aumentava por entre gargalhadas.

Na sala de jantar sucediam-se os brindes, às vezes cantados, ao tinir de copos e garrafas. E as moças, vendo vazio o sofá dos noivos, riam à socapa, segredavam-se atacando-se a cotoveladas e beliscões, em estuos eróticos, remordendo os lábios.

Às vésperas do Ano Novo, Santo Antônio, S. João, S. Pedro, Conceição, Natal e o sábado de Aleluia eram dias tremendos para o poleiro e para a pocilga. Perus, galinhas, patos, leitões, cevados pereciam, não em oblata aos santos, consumindo-se, ao lume sagrado, no altar dos holocaustos, mas para regalo epicurista do homem, sendo levados a assar no forno das padarias ou refogando-se nas caçarolas domésticas.

O sangue corria a jorros nos alguidares para o molho pardo, para o sarrabulho, e para o chouriço; o caixão do lixo enchia-se de penas e de coscorões cerdosos e na casa mais pobre sempre um frangão esperneava batendo as azas ou o cuincho agoniado de um bácoro anunciava pitança.

Nos tachos borbulhava a calda, onde as doceiras despejavam o coco ralado, frutas ou esfiavam gemas que se enrolavam em novelos de fios de ovos.

A vigília de S. Silvestre era alegre e opípara. Em muitas casas improvisavam-se “partidas” para esperar o Ano Novo, e, ao bater da meia noite, estrondava o hino nacional no piano ou os músicos, em sopros tempestuosos, faziam sair dos instrumentos dobrados heroicos.

Foguetes esfuziavam, bombas explodiam, charangas atroavam as ruas.

À mesa da ceia a conversa era ruidosa e alvissareira: recapitulava-se o passado, faziam-se projetos.

“Vá com Deus e não deixa saudades! ” Diziam velhotas, queixosas do ano findo, que lhes repicara as carnes com as agulhas do reumatismo; outras, como as fadas que amerceavam príncipes recém-nascidos, faziam vaticínios augurando venturas a esta ou àquela.

E, ao dealbar, o chefe da casa, grave, como em cerimônia religiosa, bebia um trago de vinho à saúde da sua gente e dos amigos. Levantavam se todos, dando graças a Deus.

Um sino bimbalhava, logo outro em repique, o céu alourava-se, passarinhos espanejavam-se nos velhos muros, onde brilhava, de repente, um raio de sol, primícias da luz nova acesa no céu para alegria, beleza e fortuna da terra.

Ainda com sacrifício havia toda a gente de estrear um trajo no dia de Ano Bom: um costume, fosse embora de brim; um vestido, mesmo de chita, uma simples saia de riscado.

O pobre remendava os molambos, lavava-os, estendia-os, a corar, sobre o perfume das ervas campestres e vestia-os contente, como se os recebesse de Deus, bordados a ouro de sol e à prata de lua.

Que sonora e jucunda manhã! Todos os sinos em vira voltas nas torres, cabriolando em repiques, todas as almas reviçadas de esperança.

Desde cedo moleques pernósticos e mucamas faceiras, velhas negras achichelando os passos e tios perrengues cruzavam-se com bandejas nas quais, sob paninhos de crivo, enfeitados de flores, entreviam-se bolos, pudins, compoteiras, frutas.

Negros do ganho passavam a trote arquejado vergando ao peso de grandes cestos acogulados ou levando perus, leitões, caixas de vinho, ságuates destinados ao médico ou a amigos importantes.

Era um grande dia, o dia da esperança.

E, como o que se fazia a 01 de Janeiro fazia-se no ano inteiro evitavam-se rusgas, aborrecimentos, relevavam-se as travessuras das crianças e as faltas dos escravos e criados e os enfermos, ainda que lhes custasse, arrastavam-se até à sala ou sentavam-se na cama, entre almofadas, com um sorriso triste no rosto macilento e pálido.

Outra festa — o Carnaval.

Sem desfazer no presente estou em afirmar que o Carnaval de outrora era mais belo e até mais entusiástico do que o de hoje, apesar do luxo que ostenta e das avenidas que o emolduram. Dois meses antes começava nas lojas a exposição de máscaras e fantasias, predominando a carantonha e a ganga vermelha e rabuda dos diabos, o mascarão dos velhos, caveiras, cabeças de animais, caraças tatuadas de índios, doairos de fúrias, faces engelhadas de corumbás, rostos bochechudos de crianças choramingas, negros de beiçaria esborcinada e sanguínea, caras mongólicas de olhos oblíquos e longos bigodes escorridos.

Nas vésperas apressava-se a construção dos coretos, dos obeliscos, dos arcos triunfais que ornavam as ruas do centro.

Eram pilhas de tábuas, costaneiras e sarrafos, metim e belbutina em barda, arandelas e calungas de pasta e o martelo a bater, a serra a serrar, a brocha a broslar alegorias, painéis mitológicos, onde Vênus aparecia obesa, cor de oca, com as pernas mais tortas do que as do marido. E silenos, pandos e delambidos, cor de tomate, escarranchados em pipas, sob folhagens, caramunhavam em ricto de moafa, muito bisbórrias. Silhuetas, com pretensão a caricaturas, enchiam alusões que passariam despercebidas se as não iluminasse a legenda traçada na ortografia que os cinematógrafos perpetuam.

No sábado, à noitinha, saíam os zéspereiras, zabumbando estrepidantemente. Eram homens robustos e anafados, em mangas de camisa, o ventre a ressaltar, suando, às macetadas ao bombo, às baquetadas às caixas.

O roncante porta-voz de lata, pintado, às listas ou às aduelas, com as cores das sociedades, buzinava e engrossava o vozerio, como a máscara trágica no teatro antigo.

As badernas sucediam-se, qual mais ruidosa, num furor de rebentar soalhas, de estourar pulmões.

Às cinco da manhã já havia diabos na rua, e às oito, a cidade ficava coagulada de grandes manchas vermelhas que se esparrimavam em monstros horríficos, como se o inferno truculento houvesse irrompido na terra, avassalando-a com as suas legiões de carrancas espantosas, algumas vomitando basíliscos, com os retorcidos chifres emaranhados de serpentes.

E tudo aquilo corria, ululava, regougava, pinchava guindando-se ao peitoril das janelas, varejando as casas, espavorindo crianças e negras e eram correrias, aos gritos, gente sarapantada pelas ruas, pequenos berrando, quitandeiras protestando contra furtos de doces, cães arremetendo furiosos ou fugindo, aos cainhos, açoutados pelos diabos.

Muitos deles, latagões destorcidos, quando suspendiam a máscara, mostravam feição patibular, de facínora. Eram, quase todos, capoeiras — guaiamus ou nagôs.

No correr do dia sucediam-se as figuras típicas: o burro, gravibundo, de casaca e óculos, um livro aberto, a palmatória suspensa à ilharga; Pai João, tisnado, esfarrapado, varrendo a sarjeta a largas vassouradas, a chamar Mai Maria; a Morte, de roupeta negra, escaveirada, dois fêmures em cruz às costas, uma ampulheta à frente, a foice na sinistra e na destra a campainha tangida a espaços; dominós frescalhotes, em camisola de morim, com um az de copas, no respectivo lugar; princesas desenxabidos, baianas másculas, de colo ossudo, bíceps em panturrilha, barangandãs tinindo à cinta, chinelos de bico, batendo de estalo; chicards de cabeleiras brancas, em bucres, capacete encimado de uma lanterna, de um manipanso ou de uma estrela girando à guisa de cata-vento; soldados com espadagões; velhos, de cabeçorras grotescas, nariz em tubérculo purpúreo, belfas cor de bringela, perigalhos sanguíneos, de báculo e luneta, casaca bordada a cadilhos, fazendo piruetas e zig-zagues tremelicados, no saracoteio do miudinho, numa roda de máscaras e curiosos, que ritmavam a dança ao som fragoroso das palmas e dos pandeiros; marujos de cheganças, levando barcos em charola, tunas peninsulares zangarreando fados à guitarra; congadas, com maracás, caixas, tambores, e um canto guaiado e banzeiro; índios, com enduapes e cocares, à maneira de espanadores; chins.

E as ruas, ao sol, enchiam-se de uma policromia trêfega e de ruídos azoinantes, nos quais tilintavam guizos.

Toda a cidade afluía ao centro — dos mais remotos recantos descia gente com as suas mais belas louçanias; era um êxodo, a grande emigração para o gozo, buscando a rua do Ouvidor onde, desde as três horas, tornava-se difícil, quase impossível, vencer a multidão oprimida, que só abria um claro, recuando aos empurrões, quando, no alvoroto de um rolo, estabelecia-se a barafunda e via-se um valente investir, espalhar-se, brandindo a bengala ou manejando, ágil, a navalha fulcite, varrendo gente a rasteira, abrindo caminho a cabeçadas e com o frio, arrepiado terror do fuzilar do ferro.

Estalos, atirados aos punhados, crepitavam, os pés esmagavam esgotadas bisnagas de estanho, esguichos de seringas faziam curvas líquidas e irisadas ao sol e das sacadas para a rua era um vivo tiroteio de limões de cheiro que espocavam no colo das moças risonhas ou esborrachavam-se no peito dos marmanjos, encharcando-os de essências, de origem, às vezes, suspeita.

À noite, luminárias, arcos fulgurando, as músicas nos coretos, executando polcas e tangos rebolidos e o povaréu a arfar, avançando lentamente, angustiadamente, na opressão asfixiante.

Às vezes, entalada, a arquejar no aperto cada vez mais arrochado, a menina sentia um beliscão. Gritava, e a velha, indignada com o desaforo, bracejando, fula de ira, abria o dique à descompostura, atirando impropérios ao acaso e, agarrando a filha, puxava-a, de repelão, investindo como um aríete a romper o povo para livrar-se daquele sem-vergonhismo.

Mas o grande dia era a terça-feira, com a saída das sociedades em préstitos aparatosos, de grande luxo e... espírito.

O espírito... ai! Dele, também lá se sumiu na voragem do Tempo.

Quem hoje debuxa o cortejo triunfal de Momo é aquele mesmo discípulo de Apeles, cuja palheta sobrecarregada só servia para rebuçar a pobreza da imaginação.

Os grandes carros alegóricos, como os que ainda agora rebrilham nas avenidas e provocam polêmicas estéticas, representavam: grutas micantes, marchetadas de malaquita, com águas vítreas despenhando-se por arestas de ouro; cara- mancheis floridos; labirintos submarinos, onde brincavam cardumes de nereidas e tritões de escamas fúlgidas; templos de colunas giratórias; nuvens leves de gaze estrelada servindo de supedâneo a deusas; triremes de proas enfloradas; árvores em cujos galhos balançavam-se redouças; e, dentro de tais construções, os porta-estandartes ou as hetairas reclinadas, mostrando-se ao clarão dos fogos de bengala, lânguidas, correspondendo com beijos aos aplausos frenéticos da multidão em delírio.

E as guardas de honra, os séquitos equestres de ninfas ou de Amores, as cavalgadas de amazonas, e as borboletas de azas de escumilha em carrinhos leves, toda a grey de Cythera numa ostentosa exibição de corpos, que não eram inferiores aos de agora, nem na riqueza dos ornamentos, nem na perfeição das formas.

Mas entre o fulgor de um carro alegórico e um esquadrão venusto a gargalhada cascalhava estrondosa à passagem de um carro de crítica, comentando um acontecimento do ano, com personagens conhecidas, afeiçoadas em estafermos de porte agigantado, e a troça vivaz, por vezes irreverente, de um sócio gárrulo, a cujo aceno o monstro movia-se, um tanto perro nos engonços, bracejando, espernegando, arrevessando cobras e lagartos ou engolindo, com voracidade, propinas e negociatas.

E durante a passagem das sociedades a rua do Ouvidor ficava verdadeiramente entupida, com as janelas apinhadas de moças, que esparziam pó de ouro sobre os carros mais belos.

O diabo era a volta, com a fome a roer as entranhas, com os calos a martirizarem os pés.

Quanta senhorinha, que poderia usar a sandália minúscula de Cendrillon, palmilhava, descalça, as ruas, depois os andurriais que entravam aos arrabaldes!

Quanta praga, quanto esconjuro de matrona, que, animando a caravana exausta, suava esbofada, parando aqui, ali, certa de que teria o céu se o arrependimento salvasse, arrependida, como estava, de haver deixado o seu cantinho para meter-se em pagodeiras.

Bonds... O que deles aparecia, no lento e rangente resvalar ao passo resignado dos muares esfalfados, era uma crosta humana, passageiros até no tejadilho, batucando com as bengalas, numa algazarra ensurdecedora.

Beatas, que saíam cedo para as igrejas, ainda encontravam máscaras cambaleantes, aos resmungos, numa esbodegação de esbornia e gente sentada na soleira das casas, esperando pacientemente o bonde... que não chegava.

Que diriam as velhinhas de outrora, que passavam parte do dia nas igrejas, às mesuras ante os altares, borrifando-se de água benta, impregnando-se de aromas místicos (uma, conheci eu que cheirava a cera como uma tocha), confessando-se, comungando, se vissem entrar a semana santa sem luto, sem preces, sem dobres de sinos, sem vigílias, regaladamente banqueteada a carne, com as moças galeando modas espaventosas e os rapazes em troças pelas ruas!

Tudo na semana santa relacionava-se com os Evangelhos, os próprios brinquedos infantis pareciam trazer o selo das Escrituras.

Assim, nas proximidades de Ramos, apareciam as matracas, as cega-regas e os assobios de palma, em cartucho — uns simples, lisos, outros enfeitados de entre laços e caracóis.

Nas quitandas vendiam-se as espatas e os pequenos, cortando a palha em fitas, enrolavam nas espiraladamente, alongando ou curvando à feição de trompa venatória os “assobios” que ordenavam em alguidares com água onde os compradores escolhiam-nos para a enfezante aulética.

Se a gula, como afirma a igreja, é pecado que leva direito ao inferno, muita gente desse tempo deve referver nos caldeirões de pez.

Por preceito, durante a semana santa, não se sentia à mesa o mais leve sabor de carne, mas era farta e sortida a consoada meridiana em que primavam as cozinheiras negras, donas do segredo subtil da sopa de ostras, do polme de ervilhas, do vatapá dourado, do caruru, do zorô, das moquecas, das bacalhoadas, do peixe frito em azeite de gergelim, dos siris recheados, das tortas de camarões e de caranguejos, do acarajé, do aberém, do feijão de coco, do arroz de marisco, da canjiquinha de milho verde, da pamonha, do mungunzá, do manjar branco, do cuscuz, dos ovos nevados e da baba de moça. Era comida que farte!

A cidade tornava-se funérea — sentia-se verdadeiramente a presença da Morte.

Os homens, compungidos, trajavam de preto: as mulheres cobriam-se de mantilha e, até à noite, era um plangente, monótono dobrar de sinos.

No domingo de Ramos, desde cedo, começavam a passar palmeiros — homens graves, senhoras, rapazes, crianças, negras e moleques, todos com a sua palma, simples ou enfeitada, como se viessem de uma colheita mística.

O imperador descia da Quinta para assistir aos ofícios da Paixão, na Capela Imperial.

Na quinta-feira, à noite, as igrejas, sumptuosamente iluminadas, expunham a baixela e os paramentos ricos e, até tarde, regurgitavam de fiéis.

Na sexta-feira, porém, dia melancólico, o respeito era absoluto — nem se consentia que os pequenos corressem, falassem alto: “Nosso Senhor está morto”, sussurravam as velhas e se algum, mais irreverente e teimoso, assobiava ou gritava, era logo “jurado” para o sábado de aleluia quando, ao explodir do foguetório e ao repiquete dos sinos, tirava-se a comporta da tristeza para que a vida retomasse o seu curso e a vara saía a exercer o seu ofício enérgico no lombo dos relapsos.

Os bondes, sem a campainha, passavam surdamente; calavam-se os pregões. Em algumas casas paravam o relógio, apagavam o fogo.

O ofício nas igrejas era de uma solenidade trágica.

O sermão era acompanhado a brados de arrependimento e a bofetadas penitenciais, e as naves obscuras, abafadas, no denso atulhamento, ao brilho triste do círios, por vezes repercutiam lamentos angustiosos.

À noite era o tumulto à espera da procissão do enterro. As sacadas ostentavam-se forradas de colchas de damasco, com arandelas acesas; as ruas rescendiam cobertas de folhas de canela e mangueira.

O saimento divino era imponente. Abriam a marcha os guiões das Irmandades, a cruz com o sudário entre irmãos de opa, empunhando tochas; depois, em duas alas, o séquito seráfico de anjinhos alados, alguns tão pequeninos que iam ao colo dos pais, cabeceando de sono; a teoria das virgens, de branco, coroadas de rosas, e, entre elas, a Verônica, com a “imagem sangrenta” de Jesus, ante a qual o povo ajoelhava-se.

Logo apareciam os farricocos mascarados; depois o palio refulgente levado por fidalgos e a comparsaria tétrica — legionários de capacetes de ferro, couraça e loriga, caras iracundas, marchando soberbamente: o centurião a cavalo e, a seguir, o esquife de Jesus acompanhado das três Marias veladas de negro, em pranto.

A matraca estralava lúgubre e, de instante a instante, parando o cortejo, o “Anjo cantor”, linda moça, de branco, resplandecente de joias, os cabelos soltos, subia a um estrado e, tristemente, entoava o:

Ó vos omnes...

E Maria, lacrimosa, o coração varado por sete espadas, aparecia no andor que oscilava ao ombro de oito homens robustos.

Até tarde, fatigado, descalço e a cair de sono, cumprindo uma promessa de minha mãe, acompanhei a procissão na vez única que a vi.

O medo que me infundiram os soldados romanos foi superior a tudo e, por mais que me prometessem amêndoas e chamassem a minha atenção para a doce voz do anjo, eu embarafustava pelas esquinas numa ânsia de fugir, de safar-me pondo-me longe daqueles monstros que, se haviam assassinado um Deus, não seria muito que degolassem um fedelho de calças curtas e cabelama em tranças, como eu.

Em compensação, no sábado de aleluia, desde cedo, a cidade alvoroçava-se com a grita da molecada às soltas, arrastando e malhando a pão calungas de trapos, aos gritos de “mata o Judas! ”

À porta de certas casas amanheciam estafermos encostados, zambros, de cabeça pensa, acaçapados como bêbedos, com cartazes ao peito injuriando alguém.

A vítima da sátira indignava-se esbravejando à janela, a ameaçar céus e terras e mandava atirar longe o manipanso do qual imediatamente a molecada apoderava-se, esbordoando-o, estripando-o, esfrangalhando-o, queimando-o, por fim, com escândalo.

Não tardavam os “judas” apregoados pelos moleques. Eram pasquins redigidos à matruca por verrineiros de ofício, nos quais eram desnudamente expostos ridículos e mazelas morais. Os denunciados, postos em evidência pelas iniciais do nome, eram dados por “judas” e arrolavam-se lhes os delitos, os escândalos, as torpezas.

Este figurava na lista delatora por ser mau senhor; esse, por viver cinicamente, de portas a dentro, com a comborça, aquele, por se haver abotoado com os bens de um órfão; outro por namorador de moças ou rascoeiro de criadas; ainda um por presunçoso e arbitrado no exercício do cargo de inspetor de quarteirão.

E eram apontados rapazes estroinas, senhoras de vida airada, mocinhas levianas. Na coscovilhice dos foliculários por vezes transparecia a verdade, mas o despeito, a inveja, as covardias desforravam-se em torpes calunias ferreteando reputações ilibadas, abocanhando honestas firmas, espatifando virtudes, arrastando por lodaçal de aleives nomes venerandos.

Os moleques eram chamados das janelas, das sacadas, dos corredores, entravam nas estalagens e, em pouco, esgotavam a pasquinada deixando o acabrunhamento, a cizânia, o furor, a casquinada satisfeita, por vezes lágrimas nos lares em que entrava o sórdido papelucho. Ao meio dia os sinos repicavam, subiam girândolas ao ar e era um alarido nas ruas, um fragor de latas, estouro de bombas esfacelando a traparia dos judas, atroo de pregões, varas de mascates estalando, buzinas zoando, silvos de apitos, tinir das campainhas dos bondes e já uma charanga pífia, ali um piano batucado a murros, o guincho de uma requinta de cego e na esquina, fanhoso, esmoendo arias, o realejo do italiano. Dia alegre!

Aleluia!

Aleluia!

Carne no prato!

Farinha na cuia!

Cantarolava a molecada.

No alvorecer do domingo, ao lusco-fusco, o povaréu fervilhava nas ruas, espalhando-se em direções diversas, caminho das igrejas, para a missa da ressurreição.

O ofício terminava sol nado, num clangor de sinos e de cânticos e o povo deixava o templo com a alma contente, as mães abençoando os filhos, os amigos abraçando-se congratulatoriamente pela vitória de Jesus redivivo, que regressava ao céu para o governo misericordioso do mundo, segurança da paz e da redenção final.

Um momento, à porta das igrejas, a multidão coalhava-se rebalsada, pouco a pouco, porém, iam-se os grupos dissolvendo, cada qual a seu rumo, o maior número encaminhando-se para a Praia do Peixe.

Era um dos prazeres maiores do tempo patinhar no lodo viscoso daquela feira, sórdida. Andava-se aos apertões no tumulto beirando a rampa resvaladia e atulhada de bancas e canoas onde o peixe reluzia em pilhas e ostras escalavradas cascalhavam, ou esgueirava-se a custo por entre cômoros de abóboras, de repolhos, de melancias, montões de couves e alfaces, samburás, cestos, tampas de tomates rubros, de quiabos, de limões, de pimenta, num ambiente acre que tresandava à maresia e à horta, a suor, a álcool e a fumo, por entre a confusa algazarra dos que disputavam e o cacarejar das galinhas, o grasnar dos patos, o grulhar dos perus, o galrar dos papagaios e o babaréu de contenda da gente negra.

Nas tendas, onde cartazes anunciavam vinho novo, bebia-se a rodo junto às pipas enastradas de folhas de mangueira.

Os açougues atupidos vermelhejavam na abundância de carnes — quartos de rezes, carneiros abertos, porcos com a toucinhama a pingar chorume, línguas às pilhas, miolos, chispes, orelheiras, bandounas em acervo, às moscas.

A abundância excitava a gulodice e a família, vencendo o acanhamento, ia à fruta chuchurreando laranjas, mangas, trincando maçãs ou, por extravagancia, provava o mingau de tapioca ou de carimã na barraca de alguma mina onde ganhadores empanturravam-se de angu, repetindo a ração com apetite heroico.

Quase sempre, saciados de lambarices, os pequenos pediam, com frenesi, para ver os macacos. Os pais acediam e o rancho precipitava-se alvoroçadamente para o mercado central.

Lá dentro, em torno do chafariz e nas quatro faces do polígono, minas sentadas em tamboretes, diante de escaleiras de frutas, cabisbaixas, com peneiras ao colo, descascavam amendoim ou enfiavam missangas e búzios.

Mas o bando apinhava-se diante da “loja dos bichos” e ali ficava deliciado, a rir das cabriolas dos macacos, das gatimonhas dos saguis, a admirar a empáfia dos galos de raça, a musculatura dos bulldogs, a provocar papagaios ou a ouvir o chilreio da passarada vivida amenizando o basto celeiro imundo com a nota lírica que lembrava a harmonia natural das selvas ao amanhecer.

E o negro do ganho, com o cesto atestado de vitualhas e frutas, tomava o endereço e partia a trote, precedendo a família no lar com abundância saborosa para o festim de Páscoa.

Uma das calamidades do verão nesse tempo era a falta de água.

De manhã cedo, à hora do café, um vizinho aparecia à porta: “Dá licença que eu encha esta moringa? Estamos sem gota d’água em casa e o freguês até agora. ” Ia-se à bica, no quintal.

A água golfava em jorro, espocava aos repiquetes, logo, porém, minguava, correndo em fio liso. Pelo encanamento esfuziava um sorvo; e estancava. Era a seca.

A casa alarmava-se, todas as vasilhas eram postas junto à torneira e o lentejo raro, espaçado, trincolejava em latas, em bacias de ferro, num estilicido de lágrima.

E começava o suplício da cidade.

O aguadeiro, que vendia o barril a dois vinténs, logo o encarecia a tostão. Quem tinha escravos mandava-os ao chafariz mais próximo; quem não tinha submetia-se à exigência dos negros.

Das estalagens, viveiros de lavadeiras, saíam romarias de mulheres com regadores, baldes, latas de querosene. Crianças ficavam de atalaia à janela à espera dum “tio de água”. Eram raros e pediam pelo barril duzentos, quinhentos réis, dez tostões e mais.

Era um espetáculo curioso, a tamina.

Nas imediações das bicas, dos chafarizes, ao longo da calçada e da sarjeta, por vezes atravancando a rua, o povo juntava-se a eito, cada qual com a sua vasilha.

E havia de tudo, na medida das forças de cada um, desde o barril até à moringa e o jarro levados pelas crianças. E sentada no meio fio ou sobre os barris a pobre gente esperava a vez — uns conversando; este cantarolando, com o espírito longe; adiante uma mulher enfezada a resmungar escarapelando-se.

Não raro travava-se bate boca azedo, fervia a tapona, rolavam barris e latas, fechava-se o “salceiro” no qual intervinham, à bruta, urbanos e permanentes esmurrando, quando não desembainhavam os refles em fúria ceva, escachando.

E todo o dia e toda a noite o povaréu mantinha-se no posto em paciente espera, comendo ali mesmo, para não perder o lugar e o desfile não descontinuava ao longo das ruas onde ficava um rastro de água do transbordo do vasilhame.

Os aguadeiros faziam férias gordas e, passando muito pimpões com o barril à cabeça, se os chamavam, diziam logo, em tom que não admitia regateio: “É dois mil réis pra quem quizé. Vem de longe. Serve, serve...”. Que remédio!

Surge-me da memória uma cena, hoje apagada nos costumes e mui comum nesse tempo. Vejo-a nitidamente na tela das reminiscências, ouço-lhe o rumor atristurado.

Um dobre grave de sino, outro a espaço, outro e, de improviso, repiques em trebelho.

“O Senhor! ” Murmuravam as velhas, com unção beata. Esperava-se recolhidamente, em silêncio atento, e ouvia-se um vago sussurro, logo rumor, já perto vozeio rolando merencório no silêncio da noite e a espaços, límpida, mas lúgubre, a campainha soando religiosamente e aparecia à esquina, tumultuosa, num ressoo de passos arrastados, uma turba, com luzes vagalumeando e um marulho de prece murmurada em uníssono soturno.

À frente, o palio do Santíssimo ladeado por dois meninos de coro com lanternas alçadas, o padre paramentado conduzindo os Santos Óleos, o acólito brandindo a campainha e povo denso, a empurrar-se: homens, mulheres, crianças levando velas cuja chama protegiam com a mão em plataforma.

Transeuntes ajoelhavam-se na calçada, nos corredores das casas quando não aderiam ao acompanhamento.

Era o Nosso Pai.

Abriam-se portas e janelas, gente ajoelhava-se na soleira e, no interior alumiado viam-se pessoas prosternadas, cabisbaixas, batendo no peito.

Devotas saíam à pressa traçando o chalé e lá se metiam no séquito.

Uma voz tirava o Bendito e logo atroava em coro o cântico piedoso. E lento, triste, às vibrações espaçadas da campainha, tinindo através do canto, o cortejo prosseguia acompanhando o Viático levado a um moribundo para o temeroso transe.

Mas deixemos recordações funéreas.

O mês de Junho, com o frio, era dos mais alegres na cidade e na roça. Os pequenos expunham à porta de casa as barraquinhas sortidas de fogos, diante das quais a meninada da vizinhança parava invejosa e basbaque.

No ar cruzavam-se balões, explodiam foguetes esparzindo lágrimas. Às janelas turbilhonavam rodinhas, busca-pés rabeavam esguichando fagulhas, bombas estouravam e, de uma para outra casa eram tiroteios a pistolas de cores pondo as ruas, em certos pontos, sob uma abóbada de fogo.

As moças reunidas faziam sortes. Mas na roça é que era gozar as festas de Junho e roça nesse tempo, era o Andaraí, era a Gávea, eram os Trapicheiros, com o seu banho famoso, era o Engenho Novo. Bairro que nunca ouvi nomear na minha infância foi o de Vila Isabel... era ainda talvez, sertão inexplorado, com feras e bugres.

A viagem ao Engenho Novo era complicada e difícil. Lá fui eu, a um sítio, passar a quinzena festiva.

Ia-se de trem, em um vagão azul, de dois andares, que jogava desabaladamente como falúa em mar grosso.

Junto à estação, que tinha a aparência humilde de um rancho, tomava-se o carro de bois e, sob o toldo de palha, aos trancos, rodava-se por ali fora, a rir com os boléus, a gozar a paisagem verde e cheia de passarinhos, a estrada sinuosa, ora em rampa, ora aos corcovos, mas sempre entre virentes balsas, com uma palhoça aqui, outra além, e, numa volta, a venda de alpendrada, diante da qual se juntavam roceiros e os burrinhos dormitavam pacíficos e gordos.

A casa do sítio, coberta de sapê, ficava à sombra de um laranjal.

No terreiro já estava empilhada a lenha para e fogueira e ia uma azáfama contente em volta das trempes sobre as quais ferviam panelas.

O leitão esfolado e aberto, muito rosado, estava estaqueado e pendia de um limoeiro.

Os hóspedes acomodavam-se como podiam. Dormia-se em redes, em esteiras sob o teto palhiço, sentindo o vento frio entrar pelas frestas e ouvindo os sapos num aguaçal vizinho. Comia-se sob latadas, com abelhas zumbindo em volta e os ramos das laranjeiras tão perto que era só estender a mão e colher a mais viçosa e madura e à noite, ao vivo clarão das fogueiras crepitantes, a foguetearia varejava o espaço e com que gáudio ia-se à fogueira tirar das cinzas a batata, puxar uma cana, chuchurrear enquanto o balão bojava e a viola e a sanfona arranjavam-se em concerto para as danças ao ar livre, na eira varrida, branca ao luar. E que sono!

Despertava-se à voz dos galos, ao mugido dos bois; saía-se à névoa, para o banho na fonte, tornava-se à casa, ainda molhado, a correr, roxo de frio, e achava-se a tigela de café, o bolo de milho, beijus e aipim e brincava-se na grande liberdade, entrando ao mato de onde abalavam rolas, subindo aos cômoros, marinhando nas tangerineiras esmaltadas de pomos de ouro.

Outro prazer era ir à noite, durante a festa do Espírito Santo, às barracas no Campo de Sant’Anna.

Havia ali de tudo — desde o jogo desenfreado até a marmota ingênua, desde o teatrinho de bonecos até fenômenos que faziam pasmar, como o anão sem braços que escrevia, jogava, tocava violino, comia e atirava ao alvo com os pés.

Cartazes atraíam com figuras e dizeres convidativos: era o homem que engolia espadas, era a cabeça que falava, era o Hércules que levantava um boi às costas, era a domadora de serpentes, era o homem pássaro, cujo gorjeio ouvia-se de fora.

E os pregões confundiam-se, atroavam através do badalar de sinetas, ao rinchavelhar de charangas e de realejos, do guincho das gaitas, dos assobios, dos tambores, das matracas, do grunhido de porcos, do grasnar de patos apresentados ao público pelos vendedores de sortes, que sacolejavam sacos com as pedras numeradas.

E o povo mexia-se lentamente nas ruelas iluminadas, indo de uma a outra barraca, jogando, agachando-se ante os óculos dos cosmoramas, bebendo nos botequins, rindo das chalaças do palhaço ou afluindo, apinhando-se na praça em torno das peças do fogo de artifício para ver o combate entre a fragata e a fortaleza, a dançarina ou o amolador no seu rebolo chispante.

E a alvorada patriótica do 07 de setembro, no Rocio, com as salvas de artilharia no morro de Santo Antônio, o hino da Independência cantado por moças de branco, e fitas verdi-fliavas a tiracolo, o coreto armado junto ao monumento a Pedro I.

E a festa da Glória, com o famoso fogo de artifício, quase sempre prejudicado pelas correrias anavalhadas dos capoeiras.

E a Penha...? A Penha! ...

Era mais pitoresca, nesse tempo, a romaria.

As estalagens ficavam desertas — os carros partiam para o arraial de madrugada.

Vê-los era à volta, à tardinha, enramados de folhagem, com os burros — duas e três parelhas — enfeitados de flores e os romeiros alegres, emborcando os chifres de vinhaça.

As mulheres vestidas à saloia, com arrecadas e grossos cordões de ouro, uma grande rosca à guisa de turbante; os homens com rosários de roscas a bandoleira e ainda roscas em volta do chapéu, veneras da santa ao peito, cantando, bailando às umbigadas, castanholando, ao som de gaitas e doçainas rústicas, vermelhos de sol e de vinho como se tressuassem mosto, de olhos languidos, aos vivas! à santa e à terra, atravessando as ruas numa algazarra bachica como se viessem de uma festa pagã.

A Conceição, o Natal com os presepes, os bandos pastoris... E a minha meninice, a minha infância, a festa de que mais saudade eu tenho...

Ai! De mim...

A antiga cidade morreu, mas do seu túmulo surgiu outra mais formosa... e quanto mais ela entrar pelos anos mais jovem parecerá e mais linda.

Ai! De mim...

Vejo-a reverdecer como as árvores que se desfolham no inverno e reviçam mais frondosas na primavera... e os meus cabelos, que eram de ouro, embranquecem — é o sol que transmonta no ocaso.

Os anos passam por ela como eflúvios de vida; sobre mim são como pedras que pesam.

O que eu amo da antiga cidade é o que nela deixei — os dias suaves da meninice, floridos de sonhos que se desfolharam.

Mas ainda que a saudade me reconduza ao passado, como nos leva ao cemitério onde temos mortos inesquecidos, quero a luz do sol, a vida, a agitação e não ficarei petrificado à beira do sepulcro, mas seguirei na marcha em que vão todos até tropeçar na cova que me espera.

E a cidade viverá ao sol, linda e moça, passando pelos séculos incólume.

De Renan, que também amava o passado e sempre o tinha no coração, tiro o fecho de ouro para encerrar este memorial de saudades:

“Parlant d’un passé qui m'est cher, j'en ai parlé avec sympathie; je ne voudrais pas cependant que cela produisit de malentendu et que l’on me prit pour un bien grand réactionnaire. J'aime le passé, mais je porte envie à l’avenir.”

RESPIGANDO

Página de saudade

Lida na sessão literária comemorativa do 70° aniversário da fundação do ginásio nacional a 02 de dezembro de 1907

Entre os papeis da minha correspondência recebi, certa manhã, uma carta traçada em linhas de elegante, mas visivelmente disfarçada caligrafia, na qual um másculo e retorcido G. cujo talhe forte mal se continha no arrocho do rebuço, lamentando muitas e deploráveis omissões em um dos meus romances, perguntava: “Quando pretendia eu publicar as minhas Memórias?” Se me não ocorresse o que escreveu Aristóteles sobre os efêmeros das margens do Hypanis, passageiros de um sol, que vivem entre dois crepúsculos e conhecem as graças gentis da infância, os arroubos da juventude, os árduos trabalhos da virilidade e os desconsolos da velhice, certo teria tomado à má parte a interrogativa que me relegava à anciania, porque, em verdade, Memórias são relatos do fim da vida.

Mas as horas ativas passam em tamanha vertigem neste destravado século que, para um efêmero, quarenta anos contam como uma eternidade. Não me pruiu o melindre da Vaidade, de antes galeando em vestes de ouro como refulgente e alegre dia de verão, a embranquecer agora, anoitecendo ao luar. O que fiz foi responder para a Posta Restante à curiosa inicial uma só palavra: Nunca!

As minhas Memórias!

“Ce quon dit de soi est toujours poésie” confessou um contemplativo e quem, descrevendo o Passado, não o fizer como poeta, poderá deixar abundante e substancial acervo histórico, mas não dará cópia do que constitui propriamente a essência das Memórias. O amador de tais escritos folheia-os procurando neles um encanto raro: a verdade sobre uma vida e, por entre fatos atropelados, episódios tumultuosos, sombras e deslumbramentos, quer surpreender a alma nua, alada e livre daquele cujo maior cuidado na existência foi esconder, sob espessa folhagem de palavras, o seu verdadeiro sentir.

E valem Memórias sem sinceridade? Nada valem; e sinceras, quem as fará? Ninguém. A nudez é sempre vergonhosa, mesmo na morte.

As minhas Memórias...

Se eu as houvesse começado nos dias áureos dos meus vinte anos seriam hoje tão volumosas como uma enciclopédia: é que eu vivi num agitado e robusto período de criação. A minha época há de ficar na História Pátria como aqueles dísticos radiosos que, no Livro Magno, clareiam, douram e vão desvendando ao espírito as belezas magníficas da terra infante:

“1 — No princípio criou Deus os céus e a terra.

2 — E a terra era sem forma e vazia e havia trevas sobre a face do abismo: e o Espírito Santo se movia sobre a face das águas.

3 — E disse Deus: Haja luz: e houve luz.

4 — E viu Deus que era boa a luz e fez Deus separação entre a luz e as trevas.

5 — E Deus chamou à Luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã o dia primeiro”.

E assim foi, em verdade. Os moços dificilmente entenderiam as minhas palavras se eu entrasse a debuxar o aspecto da Pátria no tempo, tão de ontem, que, entretanto, parece coevo da vasa primordial.

A Treva... Treva viva dentro da qual tudo era desespero e dor. Quem se debruçava sobre esse ergástulo tetérrimo ficava estarrecido e comiserado descobrindo dentro dele milhares de almas em pena.

Pobre treva humana! Noite dolorosa e fecunda que orvalhou de lágrimas os nossos campos, ainda úmidos do sangue do selvagem. Dissipou-se, uma manhã, ao som de cânticos, esse negror de vilipêndio e crueza. Eu estava de pé nessa hora sobre todas fúlgida e sublime.

Outra veio. Toda a Pátria iluminou-se ao clarão estupendo. Eu fui dos primeiros que saudaram o sol nesse dealbar. Depois...

Como se há de descrever o portento? Viajantes afirmam que, na região amazônica, quem adormece no recesso das matas, é, alta noite, despertado por estridores e, no silêncio misterioso, a quando e quando, ouve crepitar, estalar, ranger, fremir. São as árvores que se desenvolvem, é a floresta a crescer. E, no solo raso, em ruído perene, pulula a erva, sobe a tige dos arbustos, estira-se a liana, desabrocha a flor para enfeite e aroma da manhã que as mil aves anunciam do cimo das frondes em que afloram e se rasgam as tênues gazes da neblina, véu nupcial das eternas bodas da natureza.

Nós vivemos dentro de maravilha igual e, se não pasmamos do espetáculo, é porque já nos afizemos ao prodígio. Assim o índio passa indiferente sem atentar na gênese floral; nem volta a cabeça para ouvir a crebra trepidação do arvoredo que abrolha.

A seiva, de antes mesquinha, agora circula em caudal e, constantemente, ouvimos, ao sol e á noite, à luz rubra de fachos, como em reino ciclópico, o rebate estrondoso do trabalho.

Mas não é a brenha, é a cidade que exubera em progresso, é o país que se dilata, é a energia que exsurge de ímpeto.

O Japão revelou-se ao mundo pelas armas mostrando-se de pé sobre mortualha e ruínas, num ralo feito pelo irradiar da guerra. Nós mostramo-nos com mais doçura no campo em flor, que a messe farta aloura, ao brilho do sol pacífico, ouvindo, a um tempo, o canto das almas felizes e as vozes da natureza suave.

E a expansão assombra! Erguem-se soberbos palácios, alargam-se avenidas, alhanam-se montanhas, saneiam-se rebalsos, plantam-se e ornamentam-se jardins, e a nossa inteligência, na véspera nem sequer suspeitada lá fora, nos grandes centros espirituais, transborda explosivamente e toma de assalto o acume.

É vê-la, ufana nos ares límpidos disputando o espaço à nuvem e inaugurando, no praino da aza e ainda nos penetrais da estrela, um livre rumo para a Humanidade.

É vê-la no Congresso dos Homens Bons, em Haia, entre séculos de cultura, jovem e altaneira, como Jesus no Sanhedrin, dando lições aos doutores encanecidos na Thora.

É vê-la no Congresso de Higiene, reabilitando a antiga Feira da Peste, a oferecer ao mundo, como a benfazeja Minerva Hígia, o elixir da vida.

É vê-la na Força pacífica do direito reavendo territórios usurpados pela chicana ou abandonados pelo descuido. É vê-la nas Artes, nas Letras. É vê-la no trabalho, desde o que se executa, com mistério, nas entranhas da terra, à maneira pelágica, até o que se faz à luz plena, na leira pingue, saciada de águas, amadurecendo searas ou engordando rebanhos.

Bem vedes: muito eu teria de dizer se quisesse redigir Memórias. Vivi como o Povo na Idade Média. Os meus vinte anos juvenis foram tristes e vazios para a minha Pátria como os dez adormecidos séculos o foram para a vida Ocidental, ainda que em uma e em outra era o húmus latente circulava.

Mas o dia do Renascimento foi tão cheio, tão glorioso, que eu posso falar como um efêmero que houvesse nascido em manhã de primavera e assistisse ao desabrochar de todo um rosal.

“Ainda não cheguei ao crepúsculo do meu dia escasso e em anos longos, discorrendo como uma ribeira que não cessa de fluir e murmurar, nem assim vos descreveria tudo que hei visto nestes tempos mais próximos, desde a primeira manhã alumiada pelo amor, com o canto dos livres coroando de harmonia os cerros”.

As minhas Memórias...

Se eu as escrevesse uma das páginas mais comovidas seria, sem dúvida, a que viesse com a data de 20 de abril de 1907.

Na manhã desse dia cheguei, não sem emoção direi até: receio, à portaria desta casa.

Logo à entrada como que se me mudou a alma — senti-me outro dentro de mim. Uma viva e forte recordação operara o encanto devolvendo-me ao Passado.

Em vez do homem, já orvalhado de velhice, foi um menino de quatorze anos louro, reforçado, míope, a testa sempre franzida, como a repuxar a atenção, quem cruzou o limiar, sorrindo ao velho porteiro Gomes, curvado sobre a perna ancilosada que, arrastando os passos, a resmungar, ia tanger a sineta.

O menino vivia na vizinhança do colégio, entre dois velhos que o estremeciam, numa casinha pobre, em cujo quintalejo mirrava uma laranjeira estéril e rosas davam perfume. A casa talvez já não exista... era tão antiga, uma das primeiras construídas na rua estreita; os velhos, esses têm-nos Deus no céu...

Ao atravessar o portão de ferro o menino descobriu-se e, como levava um livro, seguindo ao longo do claustro, teve ímpetos de o abrir, repassar a lição, fixar na memória uma regra rebelde.

Alunos, perfilados em forma, encaravam-no sorrindo, cochichavam e ele, mudo, retraído, receando chufas, cosia-se com as paredes, sem levantar os olhos.

Entrou em uma sala esconsa. Sentou-se quieto, o livro sobre os joelhos e ali ficou imóvel... quanto tempo? Não saberia dizê-lo: cabem anos em um minuto de sonho. Mais de uma vez soergueu-se respeitoso, murmurando, entre lábios, uma saudação.

Vultos passavam.

O primeiro foi o do velho Lucindo. Grande, robusto, cor de bronze — um numida. Chapéu de Manilha, calças brancas de aspecto enxovalhado, larga sobrecasaca de abas imensas, esvoaçando. Lá ia sacudindo os braços, cabeça alta, olhando em frente, como a descortinar, distraído... pensando, talvez, no Lácio amado, com as vinhas pampinosas descritas pelo mantuano, com as metamorfoses divinas do triste Ovídio, com a perfeição meditada do incontentável Horácio, com as guerras longas de César, com a eloquência empolgante de Cícero, com a gargalhada de Plauto, com o sorriso de Terêncio. Roma intramuros, a urbe forte; Roma hastada, com as vexilas altas, em marcha por terras bárbaras. E parecia chuchurrear hexâmetros com a delícia com que deixaria dissolver-se lentamente na língua um fino e pralinado bon-bon fondant. E ele não os desdenhava. Deu pelo menino, lançou-lhe um olhar de relanço e, acenando com a mão larga, trovejou: Vale!

Outro: Halbout. O tipo austero e ríspido de professor à antiga. Sempre escanhoado, a boca funda, queixo em ressalto agudo, apontado em esporão de heptére. Estrábico, como se confiasse a cada um dos olhos a guarda de um dos seus flancos: este, atento à direita; aquele, vigiando a esquerda; passo apressado, firme, batido, atroando, em ritmo, as arcadas.

Depois, vagaroso, cabisbaixo, pensativo, de um louro diluído, anêmico de mel, nos cabelos alisados, na barba longa e rala, míope, os olhos entre cílios cor de palha, o erudito D. Garcia, familiar dos clássicos vernáculos e tão amoroso de Camões e de Vieira que, não raro, em aula, perdia o fio da lição repousando numa oitava do épos ou enlevado no cristalino período de algum sermão.

E eram todos, todos passando, perdendo-se, os bons semeadores que, do alto da cátedra, como do cimo de uma colina sagrada, lançavam à planície de almas a sementeira luminosa.

E colegas... quantos! Uns que já não respondem às vozes da terra, outros que por aí andam servindo à Ciência, às Letras, à Indústria, ao Comércio, às armas; e outros... não os evoquemos... foram como as pedras de que fala o Evangelho nas quais não vinga a semente.

A sineta soou. Aula. Do Lucindo... seria? Onde o volume do Virgílio? Seria do Halbout? E o Charles André? Geometria (oh! Medo) com o Drago? Ou simplesmente uma hora solta e divertida no pátio, com o Paulo Vidal, de dólmã de linho, gorro e cinta, comandando evoluções, às ruflas alegres da caixa ou excitando ao salto no trampolim, à flexão nas argolas ou ao volteio na barra? Que seria? Entrou em uma sala que logo reconheceu — era a do Lucindo e a voz do mestre, pausada e forte, acentuando as sílabas, resoou-lhe na memória:

Fortunate senex! Ergo tua rura manebunt!

Em vez, porém, de ocupar uma das carteiras, a sua: primeira da segunda fila, à esquerda, encaminhou-se à mesa; à lição, sem dúvida.

Mas, como sob o império de uma sugestão, subiu ao estrado, afastou a cadeira, sentou-se.

Um momento, imóvel, de olhos muito abertos, relanceou toda a sala e, como num quadro dissolvente, a cena foi-se abrumando — uma névoa empanou a visão e, pouco a pouco, esgarçando a sombra, foi surgindo em formas tênues, leves, quase indecisas, o real... e acentuava-se, ressaltava, vivia e... minha alma regressou tristonha do Passado.

Do menino o que ficou foi um homem cheio de cabelos brancos e mais ainda de saudades tristes... que sou eu. E que me deram os anos passados nesta Casa onde troquei as ilusões da infância pelos conhecimentos exatos e puros da Vida e do Dever? Deram-me o trigo com que amasso o pão bendito de que me nutro e que ainda reparto convosco à mesa, meus alunos.

E afinal esta página das minhas Memórias, se eu as escrevesse, seria interessante, se não por outro motivo, ao menos por haver provado a verdade do suave conceito do filosofo: “Ce qu'on dit de soi est toujours poésie.

À BEIRA DO TÚMULO DE ARTUR AZEVEDO

(23 de outubro de 1908)

Nesta fronteira misteriosa que limita os dois mundos — o tumultuoso da vida que tanta vez surpreendeste fixando-lhe os episódios em cenas de intensa flagrância, e o sereno da Eternidade, cujos umbrais atravessaste, digo pela Academia Brasileira, que aqui me manda, o derradeiro adeus à tua suave Bondade.

Foste dos seus mais ilustres sócios, honraste-a com o teu caráter, enobreceste-a com o teu talento: é justo que a sua voz se faça ouvir no instante em que regressas ao seio da Grande Mãe, a dormir o sono da noite sem horas.

Outra voz, porém, sobe-me à boca em palavras sentidas — é a da nossa terra pequenina, é a do amado e saudoso Maranhão, onde surgimos ao sol, na linda e graciosa paisagem de arvoredos verdes e de águas que cantam.

Vendo-te partir, lembro-me das erosões que os rios fazem nas barrancas quando descem precipitosos, em rumo ao Oceano, roendo os contrafortes da terra e arrastando consigo as humildes plantas e as árvores robustas; e a vegetação que fica debruçada, sentindo o escorcho das águas que lhe vão descobrindo as raízes, pende, inclina-se acenosa, à espera da hora de seguir na corrente para o destino do Nada.

Passas na levadia, vais teu caminho, deixando órfã a Terra que tanto se orgulha do teu nome, pelo Céu, que a tua Bondade conquistou. O que fica de ti entre os homens é a obra do poeta; o que vai contigo para Deus é a virtude do teu espírito perfeito.

Poucas vezes tenho encarado tão de perto com a Morte, como ontem me sucedeu quando a sua sombra baixava sobre o teu rosto; e o que me ficou dessa visão memorável de um ocaso humano foi a certeza do prestígio da Bondade.

Atravessaste a vida num sorriso, nunca saíste do raio de sol, e, da grande altura da Morte, alongando o olhar até às lindes do berço, viste tudo azul, puro e claro. E sereno, na doce paz de uma consciência límpida, esperaste o final da comédia.

O lance seduziu-te: era novo.

Sorrindo, viste baixar o pano lentamente, satisfeito como que fizeras. Mas, num arranque, soergueste o corpo já frio e, relanceando o olhar em torno, buscaste fixar na retina o cenário do teu mundo amoroso, e viste o círculo de afetos em volta de ti.

Então, ajuntando, às pressas, o que ainda tinhas no coração generoso, acendendo o olhar no último vasquejo, já da outra margem da Vida, atiraste aos que ficavam o mais formoso e triste dos adeuses — duas lágrimas.

E foi tudo.

Foi ainda uma lição, mestre e amigo: — aprendi na tua morte a condensar a emoção numa síntese augusta.

Palavras são vestes, a Lágrima é a Verdade nua. Ela aqui fica como a flor de minha alma. Adeus!

NO CENTENÁRIO DA FUNDAÇÃO DA CIDADE

Discurso pronunciado no castelo, como orador oficial da prefeitura, na data aniversária da fundação da cidade, 2º de janeiro de 1910

Sr. Ministro de Portugal. Srs. representantes da Marinha portuguesa. Povo:

Nascido nos areais do Norte, nessa alvura que cintila e deslumbra ao sol e, à noite, ao luar, dá a impressão regelada das invernias polares, tendo por sombra os flabelos vivos das palmeiras, que a terra tropical erige nos escampos para resguardo e encanto dos seus filhos, cedo, na madrugada da vida, deixei o lugar nativo passando-me, com os meus, a esta cidade hospitaleira.

Nos seus recessos tanto me entranhei que a todos conheço, como os conhece o sol, desde os mais recônditos e aceitosos balsedos, onde ainda frondejam árvores à cuja sombra larga estancearam tribos, até as avenidas de ontem que ali tendes sob os olhos, na sua maravilhosa beleza, agora opulenta, porque o sol, na agonia, distribuindo os bens que lhe restam, delas se vai despedindo com adeuses de ouro e violetas de saudade.

Conheço-lhe as águas que cantam nas pedras tornando em grandes harpas eólias os rochedos agrestes; conheço-lhe as águas que fazem acreditar no capricho de Cleópatra dissolvendo uma pérola em vinagre porque parecem, na grande taça de Guanabara, um licor de esperança, feito de esmeraldas diluídas; conheço-lhe os vergéis e os montes e para que dizer que lhe conheço o encanto se disso vos dou prova com a minha presença?

Cativo de amor aqui vou envelhecendo, de olhos no céu, com a certeza de dormir o doce sono no leito que a Primavera, que aqui mora, traz sempre coberto de flores.

Este apego: de alma, à beleza; do corpo, à delícia do que esta cidade tem em maravilha e em doçura fez com que, mal saído de uma enfermidade, ainda de olhos obumbrados, eu me abalançasse a tão árdua caminhada em romaria ao lugar onde se encontra o relicário augusto da cidade, em torno do qual nos reunimos, quase em religião.

No mosteiro, perto de Deus, descansa o despojo do herói.

Que pantheon mais grandioso e mais belo poderiam dar-lhe?

Trazido aos ombros dos batalhadores, alguns, talvez, dos que com ele andaram baralhados na acometida valente contra a flecha do gentio e contra a bala do usurpador, aqui jaz, sobranceiro à cidade, como Minerva avultava na Acrópole ateniense.

Lá, na eminencia helênica, era a ficção posta em forma pela Arte; aqui é a Verdade sob a guarda da História.

Retirai a lápide e vereis a ossaria, mas a obra do herói, ei-la ante vós: é a florescência do seu gênio, é o desenvolvimento da sementeira fecunda — as gotas do seu generoso sangue — que, germinando e trabalhada por gerações sucessivas, deu a cidade que aí está, formosa.

Em torno do túmulo acham-se todos os membros do povo, desde o Prefeito que é o representante do Distrito Federal, até o mais humilde sem lar, que vive pelas ruas, dormindo, como as ervas de Deus, à luz das estrelas, embalado pelo bulir das folhas.

A comemoração de hoje vale como um preito e uma lição de civismo.

O povo não folheia alfarrábios, não tem tempo para esmerilhar assuntos — aprende a história ao sol, nas ruas. Não a decora: sente-a. É necessário dar-lhe a em documentos e em festas, estabelecendo, assim, pela imagem e pelas comemorações, o culto da tradição, essa força das raças.

O exemplo vale tanto como as regras, senão mais.

A tradição é a poesia da história e o povo prefere o canto de um poeta à preleção de um erudito.

A humanidade veio, desde o planalto ariano, caminhando ao som das harpas e onde ela passou deixou ficar uma lenda que floresceu e deu o fruto da Verdade.

Povo sem tradição é como árvore sem raiz.

Imaginai, se é possível, uma floresta de árvores soltas, pousadas no solo, sem afinco, desligadas da terra: morreriam à falta de seiva ou cairiam ao sopro do vento.

Navio sem âncora que o retenha garra, vai perdido e soçobra em mar frouxo.

A tradição infunde-se no passado como as raízes entranham-se na terra, amparando e nutrindo a árvore que, quanto mais as recrava e irradia, mais se robustece e alinda.

Por elas sobe a seiva e assim como as folhas caídas transformam-se em húmus, que é a força da árvore, assim o Passado alimenta o Futuro e os mortos dão com o exemplo dos seus feitos uma lição perene aos vivos.

A recordação é um mergulho na morte, do qual se volta com mais alento para a vida.

Um povo sem tradição vive como os efêmeros.

“Le souvenir est pour chaque homme une partie de sa moralité; malheur à qui n’a pas de souvenir!”

Estas palavras límpidas e verdadeiras refletem a suave filosofia de Renan.

Quantos exemplos temos nós de povos desaparecidos e quantos nos dá a história de ressurreições de povos!

Onde foram os redivivos buscar alma para o renascimento? Na tradição.

Anteu, tocando a terra para refazer-se de forças, dá bem a ideia da luta pela vida em que se empenham as raças que recorrem às origens quando se sentem desfalecidas.

Vede os povos do Oriente que ressurgem possantes, trazendo, como símbolos, as figuras do passado. No Japão foi o samurai que comandou, em espírito, os exércitos na formidável campanha de que saiu vencida a Rússia apagada e fria.

Dá-se, hoje, festivamente, uma lição de civismo ao povo, à maneira olímpica dos Gregos que passeavam os seus deuses em triunfo, coroavam os seus heróis na ágora e, visitando os lugares sagrados, celebravam festas que ficaram memoráveis.

Aí está a cidade em marcha! Ei-la formosa, branca entre verdores, ainda esplêndida ao sol. Veio dali, saiu do recôncavo das penhas, em tejupares ligeiros e caiçaras frágeis. Depois teve colmados mais largos e uma roça vicejando em volta. Ranchinhos à beira mar tremiam com o vento. Logo entraram homens ao bosque derrubando troncos, o oleiro pôs-se amassar o barro, enfermou-o, secou-o ao sol e houve tijolos e telhas e as casas, com mais segurança e conforto, lançaram-se, a esmo, por montes e planícies. Refloriu um jardim viçoso e logo alteou-se um muro a guardá-lo e os animas, sócios do homem, cresceram na cerca doméstica.

Então lançaram-se regras, pensou-se em dar largueza às estradas, em achaná-las para facilitar as jornadas e começou o trabalho paciente dos aterros. E como os mananciais ficavam longe arquearam-se os suportes de um aqueduto e houve fartura de água.

E a cidade crescia, enchia-se de bens que amenizavam a vida.

Pôs-se o comércio em comunicação com a lavoura, as indústrias surgiram, vieram as artes e, com elas, o gosto.

Navios entravam descarregando produtos do velho mundo e regressavam levando as primícias da terra nova e a cidade ganhava com o contato dos que a visitavam, deixando-lhe no espírito, com a indiferença com que as abelhas deixam o pólen nas flores, as ideias que deviam medrar, produzindo o que hoje vedes, essa grandiosa beleza que é nosso orgulho, e que também deve ser vosso, bravos marinheiros da armada portuguesa.

Se houvesse flor nesse túmulo que a lápide esteriliza eu vos daria para que a levásseis à vossa pátria, grande ancestral desta República. Seria uma parcela do herói perfumada pela seiva da nossa terra.

Mas levai a notícia do que vedes e dizei como cumprimos devotamente o dever de filhos agradecidos ante o túmulo do que nos deu, livre, desde a ribeira do mar até as fundas selvas que a fechavam, a cidade que festejamos.

Por um capricho do acaso viestes em nave airosa que perpetua nas águas o nome, fulgurante na história, da nau em que Vasco da Gama dobrou ousadamente o Cabo Tormentoso e, acolhidos como irmãos, que sois, partilhais da nossa alegria numa festa doméstica que vos recorda o tempo em que andáveis soltos nos mares, como pescadores de mundos.

Ide e dizei como nos vistes, cercando de amor a Tradição e a História, que são vossas, e relembrando, no aniversário da cidade, o feito do vosso herói.

Certo não vos sentis hóspedes entre nós. Que falta para que tenhais por vossa esta terra que amamos? Vós a tirastes do mistério, vós a defendestes em guerras encarniçadas, vos começastes a levantá-la, parte da sua vida está inscrita na vossa história e a língua em que vos falo os mesmos que vos ensinaram a transmitiram.

Que há entre nós a separar-nos? Um pouco de mar. E isso que é para um povo de navegadores, cuja glória maior foi conquistada nos oceanos?

Estácio de Sá saiu da vossa gente para a nossa história. Tínheis tantos heróis que um que mandáveis além, sem diminuir a vossa glória, engrandecia um povo.

Deixamos o templo. No altar vimos o santo que combateu heroica e valentemente. Lá está a imagem de São Sebastião aspada de frechas.

Mais abaixo o túmulo de Estácio de Sá vítima da frecha tapuia.

O mártir e o herói morreram da mesma morte.

Senhores, tendes aqui o marco, tendes ali o túmulo, relíquia fundamental da cidade. São émulos na História.

Glória aos heróis!

E agora, com a noite que desce, desçamos. Fique em repouso o que dorme, tornem os vivos à vida com mais ânimo, continuando a obra do grande antepassado no campo que ele defendeu esforçadamente com a espada e adubou generosamente com o sangue.

NA INAUGURAÇÃO DA ESCOLA DRAMÁTICA

Discurso pronunciado na inauguração da escola dramática municipal a 15 de abril de 1910

Fundar uma escola é construir no Futuro — só um edifício pode avultar ao lado dela, o templo. Assim ficarão contíguas duas eternidades: Deus e a alma.

Não sei de lavoura mais bela do que a do mestre e, entre o que espalha a sementeira no alfobre e o que incute o verbo no espírito é, sem dúvida, superior o segundo.

O pão da seara mitiga a fome de um dia; a instrução é alimento perene: pão é pasto; ideia é luz.

O lavrador planta para o corpo, o didata semeia para a alma.

É na escola que o povo transforma-se em nação.

O alfabeto mantém o Passado no presente e singra para o Futuro. Barca sagrada, de vinte e cinco remeiros, vogando no Tempo, o alfabeto é mais misericordioso do que a arca, porque, salvando a tradição da Humanidade, espalha os cantos da revora do mundo na tristeza contemporânea, como aves da madrugada soltas no crepúsculo. Mais vale uma criança que jogue com o alfabeto do que uma horda ignara saída da Escuridão.

Não basta ser homem, é preciso ser força, ter consciência de si e conhecimento da Vida.

A Esfinge reaparece diariamente com o sol — é o mistério, e, se os esclarecidos lutam para decifrá-lo, que farão os míseros que desconhecem os caracteres da inscrição fatal?

A escola é como uma torre alta a que se sobe por escadeira fulgida — de degrau em degrau mais a vista alcança descortinando o mundo, o universo, desde os horizontes rasos da terra até às nebulosas suspensas em colgaduras rútilas.

A letra é voz, o número é pena — a palavra é o Verbo, emanação divina; o cálculo é aza que triunfa no espaço. Com estas duas forças chega-se até onde pode chegar o espírito.

Nos Aveugles, de Maeterlinck, há um símbolo admirável que vem aqui a propósito.

Saem os cegos de um asilo com o seu guia. Passo a passo, contentes, enveredam em um bosque seguindo ao som da voz pastoral de quem os leva.

Com que enlevo ouvem o sussurro do folhedo, aspiram o cheiro acre das resinas, escutam o gorjeio dos pássaros, param, sorrindo, junto da água que canta.

O guia, velhinho e enfermo, cansa. À sua voz detém-se a turba e o coitado, achando uma pedra a jeito, senta-se, inclina a fronte e ali fica, imóvel.

Em tomo os cegos cochicham, barbarizam, riem. Este estremece ao leve roçar da aza tênue de uma borboleta; aquele passa, repassa os dedos na casca rugosa de velho tronco. Qual, agachado à beira da água, refresca voluptuosamente as mãos na correnteza; qual, a cantar baixinho, macera entre os dedos folhas que trescalam. Mas o tempo corre e arrefece. Alguém murmura em tom sombrio: “Parece que vem vindo a noite. ” Aumenta o frio, transe; os ruídos tornam-se estrondosos.

Então, como o guia persiste calado, um cego chama-o. Silêncio. Repete o apelo em voz mais alta. Mutismo. Reclama-o, voz em grita e pávida. O bosque atroa soturno.

O medo espalha-se, comunica-se a todos e são todos a bradarem. Alguns choram e, movendo-se, esbarram-se aos encontrões, tateiam, topam as mãos umas com as outras, tropeçam, abalroam nas árvores, magoam-se.

Já um deles anuncia tormenta, outro faz notar um escachoo, e sussurra aterradamente: “É o mar! ” Aumenta a balbúrdia, é um torvelinho de espectros no crepúsculo pálido até que uma voz brada no tumultuar do desespero: “Que o menino veja! ”

É o pequenino filho de uma cega, único ser que vê entre tantos obliterados.

A mãe levanta-o nos braços trêmulos, todas as mãos elevam-se, agitam-se, na ânsia de tomarem e suspenderem aquele que vê, e bradam-lhe: “Olha! ” E os olhos inocentes da criança vêm por todos os cegos.

Esse olhar é um esplendor na treva, é uma estrela dentro da noite!

Símbolo admirável!

Tal como o olhar do infante é o brilho da inteligência e é na escola que ela se acende para luzir, tornando-se um astro na alma.

O diamante em natureza é pedra opaca: o lapidário muda-o em fulguração.

Os governos deviam celebrar com festas as inaugurações das escolas, focos de claridade que fazem mais pela glória, pela prosperidade e pela defesa da Pátria, do que todos os aparelhos de aço com que a possam blindar.

A escola que aqui se inaugura, sob o patrocínio da cidade, não é das que iniciam a inteligência no trato das letras — a sua instrução, guiada para o conhecimento da alma, será uma como mimeses.

Aqui o aluno virá aprender a reproduzir as emoções humanas, desde a que ri, na comédia, até a que alucina e desfigura na tragédia; refletirá como um espelho e, reproduzindo a alegria ou o sofrimento, será, ao mesmo tempo, o intérprete da nossa poesia dramática, tanto tempo e humilhantemente açacanhada pelo cordace obsceno; virá afinar o seu dizer pela nossa prosódia, sem, todavia, sacrificar o vernáculo, senão apurando-o no falar estreme; virá exercitar-se na arte da cena movendo-se com elegância, ouvindo com discrição, atalhando com aproposito, dialogando com eloquência, sabendo estar em todas as atitudes, sem comprometer a graça com o jeito canhestro do pastrano nem afetar, até ao ridículo, a posição e o jeito; virá, enfim, a ter ideias gerais do belo e conhecer a história do teatro, desde os grandes dias dionisíacos até ao referver da vida intensa deste século. Já era tempo de termos está didas-calía.

Prátinas, um dos reformadores do teatro grego, fez, em torno do thymelo, um trabalho, talvez superior ao de Hercules na Élida. “Foi ele, diz Paul de Sant Victor, que expulsou os sátiros da Tragédia como um bando de capros que conspurcasse um templo levantado no campo que lhes fora pastora. ”

Repulsando-os da arte nobre, levou-os de corrida para um corveiro onde pudessem marrar, berrar, cabriolar e tresandar à vontade — e foi o drama satírico — espécie de alforja, indispensável na trilogia para despejo da sordície.

Faltou-nos um homem de energia que se opusesse à invasão hircana e os caprípedes irromperam de todos os rincões, às upas, e invadiram o palco brasileiro enxotando os que nele procuravam continuar a tradição dos dias augustos de João Caetano e Peregrino, Ismênia e Apolônia e ainda de Furtado Coelho, Lucinda e seus discípulos.

O nosso teatro é tavolado de feira — onde exclusivamente se mira ao lucro, usando-se de todos os meios torpes para o tornar mais grosso. Debalde Arthur Azevedo, sempre na brecha, procurou, com os salvados, refazer a antiga cena — todos os anos, nas proximidades do inverno, era infalível a irrupção da bacanal.

De desânimo em desânimo os poucos artistas nacionais, fieis à Arte, cederam o campo aos invasores, indo, como no tempo de Scarron, jornadear nas províncias no velho carro que, desde Thespis, leva pelos campos o tiaso de Dionísio.

Teve a cidade, entre os monumentos com que foi dotada, um teatro suntuoso. É esplêndido, não há negar, mas lembra a cabeça de cera que menciona a fábula: formosa, mas vazia. Dê-se-lhe a alma que lhe falta e será maravilha.

A poesia dramática encaminha-se a novo rumo, é preciso segui-la atentamente e os nossos poetas vão-lhe no encalço. Não sou pessimista como Philaréte Chasles que, já no seu tempo, aludia à falência desse gênero:

“C’en est fait des jeux de la scène; la lutte des passions avec le caractère, et de notre destinée avec nos désirs, n’offre de nouveauté. C’est une vieille histoire souvent redite, un conte rebattu, dont l’intérêt s’est émoussé”.

Não subscrevo tampouco a linda frase de Mme de Staël: “Tous les voiles de l’âme sont déchirés.”

Não, a alma é como o sol, invariável na essência, mas sempre nova nas manifestações, como os dias que se repetem, mas sempre com imprevistos. Os séculos trazem o seu cortejo de paixões, de nevroses, de delírios e de sonhos — tudo está em procurar o fato, estudá-lo, desenvolvê-lo e projetá-lo na cena.

Demais, no Teatro é preciso ver o que aparece, atendendo, porém, a grande Força anônima, que gera o drama — o Povo.

O ator interpreta o poeta, o poeta interpreta o Povo, o Povo interpreta o Tempo. Assim é a Vida que aparece no Teatro em clarões mais ou menos intensos — ora pálidos, ora rubros, ora violáceos, ora cerúleos, mas sempre a Vida.

E, para termos a Poesia da nossa vida, desde a de um simples indivíduo até o grande epos do Povo, faltava-nos o teatro — corpo e alma. Do corpo é esta casa um membro, alma...? Está, talvez, conosco... quem sabe?

A escola começa com 138 alunos. Um basta para enaltecê-la, reivindicando para o Teatro Brasileiro as glórias perdidas. Não nos retire o Prefeito o seu patrocínio, valha-nos sempre a Providência com a sua Graça e talvez, em breve, vejamos repontar à flor do palco o novedio da flora intelectual que esmarriu desprezada e quase pereceu sob o gelo da indiferença e espezinhada pelos sátiros caprisaltantes.

Não nos falta coragem. Tenhamos fé e... avante!

NA ACADEMIA BRASILEIRA

Discurso na recepção do São Paulo Barreto a 12 de agosto de 1910.

C’était un noble cœur, naïf comme l’enfance,

Bon comme la pitié, grand comme l’espérance,

Il ne voulut jâmais croire à sa pauvreté,

L’armure qu’il portait n’allait pas à sa taille,

Elle était bonne au plus pour un jour de bataille,

Et ce jour-là fut court comme une nuit d’été.

Aqui o tendes em uma estância de Musset — o estojo é digno do extinto e, através dele, como pela tampa de cristal de um esquife, vê-se o lírico suave das “Horas mortas”.

Era assim o pobre Guima e, como o seu poeta favorito, ele podia dizer, saudoso do tempo afortunado, quando os deuses andavam na terra entre os homens:

“Je suis venu trop tard dans un monde trop vieux”.

Não venho evocá-lo ante vós, que o conhecestes e ainda o tendes presente na memória dos olhos, com a sua figura de entono, o passo lento e medido, de um alor augusto, seguindo sem rumo, parando aqui, ali, a cabeça ereta, o olhar em largo descortino curioso, como estrangeiro em transito que admirasse a beleza da terra jovem e a graça, no que ela tem de mais airoso, que é a mulher; e a cor onde ela mais realça que é no relevo da paisagem e no límpido azul do céu.

Não o evocarei!

Já a sua imagem passou de leve nos períodos flóreos do discurso que enlevadamente ouvistes, como a de um mista no arvoredo de um bosque sacro, matizado a luar.

Seja-me, porém, permitido, enquanto me curvo ante o seu túmulo recente, que é um pouco meu — porque lá dentro há muito da minha mocidade — dizer algo desse que foi o último trovador da nossa terra e ceifeiro comigo na seara das ilusões.

Trovador, ele o foi e da boa, genuína raça daqueles que, como Ventadour e Ausias March e os que enxameiam sonoramente o cancioneiro do Rei Diniz, trilhavam estradas cantando e, diante dos castelos fortes, anunciando-se ao som da “rota” que atraía à ogiva a solariega loura, pediam pousada e, acolhidos ao lume nas salas apaineladas, diziam sagas e baladas para barões e damas.

Guima, poeta do amor, dele apenas viveu e por ele. Atravessou a vida com o mesmo descuido de si com que a cigarra atravessa o verão radioso. Mas, ao contrário do inseto estivo, que parece viver do sol, sempre recôndito, concentrado no ideal, amava a lua silenciosa e fria.

Vivemos juntos alguns dias, eu seu hóspede, em uma água furtada lôbrega, onde havia um catre, que era “um hemistíquio” que apenas comportava metade do poeta, porque os pés transbordavam; uma rede, a mala encourada, que servia de mesa, um retrato de Hugo e livros. Um postigo abria sobre o telhado.

Guima, nos dias quentes, sentia o sol nas telhas da estufilha e, ouvindo-as crepitar ao calor abrasante, resmungava enfezado e suando:

“Lá anda o monstro a patejar no cimo! ”

O monstro era o sol. À noite, porém, abria o postigo à lua. Ela entrava tímida, sorrateira, pálida — tal descia Selene na colina helênica a beijar o pastor Endymião formoso.

Ele rejubilava, vestia-se cantando e, não raro, com o estômago vazio, descia as escadas e entrava na rua, como Gavroche, a buscar solidão e silêncio na cidade que adormecia. Andava.

Era visto nos teatros, nos hotéis, nas tascas e, quando, de todo, cessava a vida na morte efêmera do sono, ia esperar a manhã à beira mar, vê-la nascer no céu, lavar-se nas ondas, subir triunfal e de ouro dourando a terra. Aguavam-se-lhe os olhos de emoção.

Mas começava o rumor, acendia-se o sol e o poeta regressava ao “cimo” a pôr em rimas amores que sonhara, ouvindo ruílar a onda, saudades de antanho que lhe acudiram, visões e tristezas que trouxera de fora.

Noctâmbulo, ainda assim a sua noite não era a que corria no céu e na terra, com estrelas estudadas e combustores de gás, mas a noite velha dos astros inominados e dos brandões e trípodes cheirosos, quando as constelações eram ainda divinas e os bosques densos e redolentes murmurejavam beijos no férvido estuar de amores de sátiros e ninfas.

Teve todas as aventuras que romantizam a vida dos poetas — amou e sofreu de amores; dormiu, como Gringoire, à luz das estrelas claras; experimentou, como Ovídio e o Dante, as agruras do exílio; peregrinou em mares assolados da guerra; foi o Chefe de Polícia de Gumercindo, em Santa Catarina; esteve em vésperas de ser passado pelas armas. Tanto, porém, que a oliveira reverdeceu na pátria, regressou pressuroso à sua beleza, da qual andava aguado e receoso de a não tornar a ver.

Guima foi poeta de temperamento: o verso era o seu destino — rimava com a facilidade natural com que o pássaro canta e por isso, sendo da alma a sua poesia, infiltrou-se nas almas, como o filete de água corre para o rio, até com ele perder-se no mar. Não era o poeta do livro — lido, não impressiona; ouvido, encanta.

Foi num rincão do pampa, à beira agreste do Camaquã, que senti verdadeiramente a poesia de Guimarães Passos.

Era noite, uma noite mística, de sossegado luar. As árvores reluziam imóveis na paisagem marmórea.

Alegre, num rodeio de gente, flamejava o fogão gaúcho. A cavalhada, à soga, movia-se em sombras lentas. A peonada churrasqueava.

Docemente, quérulo, um violão ressoou, cavaquinhos vibraram, uma flauta lânguida desferiu e, por entre o som dos instrumentos concertados, alou-se a voz de um cantor.

A melodia era doce e as palavras sentidas.

Ergui-me do meu leito folheiro, saí à porta da ramada pisando descalço o relvado frio e, quieto, encostado ao esteio, deixei-me estar embevecido na cantiga tão sugestiva e tão doce naquele vasto cenário bíblico. Ao fim, curioso, dirigi-me ao cantor, pedi-lhe o nome do poeta. Não sabia. Em compensação várias vozes disseram o título da modinha. A Casa branca da Serra.

— Mas é do Guima, exclamei em comovida surpresa e a minha emoção foi de tal maneira viva que os olhos se me arrasaram de água. É que eu vira o poeta construir aquela morada da saudade com a paixão de sua alma enamorada; vira-a subir desde os alicerces do amor até a última rima; vira-o preocupado com o vocabulário, escolhendo expressões mimosas que ficassem bem e bem ornassem o templo do seu afeto e, depois de pronta, porque negá-lo? A casa pareceu-me tosca.

Entretanto, ali na solidão, às estrelas, entre a gente nômade, e cheia do som dos instrumentos, como a achei formosa!

E só naquela noite compreendi o poeta porque o achei no seu meio, entre os simples.

Só naquela noite, ouvindo-a na voz de um rústico, provei o suave encanto da sua poesia. E ela por aí anda de vila em vila, de rancho em rancho, abalsando-se a mais e mais; ela por aí anda ao som de violões e guitarras, amenizando a vigília dos serranos, aligeirando a jornada dos tropeiros, em serenatas ao luar sereno.

Refluindo da cidade, só no campo é sentida e amada. Se a Posteridade não a encontrar no livro há de ouvi-la da boca de algum sertanejo e, talvez, a exilada regresse à cidade trazida por um folclorista e reentre anônima nas letras até que algum investigador paciente, esmerilhando, encontre o nome do poeta e restitua à sua glória o que ele lançou abandonadamente ao povo.

Pobre Guima!

Morreu longe, em Paris, à neve, e lá está no mesmo cemitério em que jaz o seu poeta favorito. E os pardais que trilam sobre o túmulo de Musset voam de leve e pousam entre as rosas que enfloram a cova do poeta alagoano.

Viveria hoje como viveu? Não creio. A cidade que o acolheu era outra, ainda permitia essa vida dissipada e indiferente, em que ele esgotou as energias. Vivia-se com sobriedade. As horas eram lentas e tudo fazia-se com preguiçoso vagar, sem ânsia, sem o afogadilho da ambição — o tempo era vasto e vazio.

Um soneto bastava para dar glória a um nome, uma atitude celebrizava um indivíduo — um homem destacava-se na multidão com escândalo por trazer uma rosa à botoeira. E Guima tinha o “Lenço”, o soneto famoso com que acenou à celebridade, tinha aprumo e andava sempre florido. Impôs-se. Admiradores paravam para vê-lo passar, majestoso e indiferente: moços imitavam-no, disputando a sua convivência; chegou a ser temido das mães de família como um Satã perverso, e as janelas cerravam-se sobre rostos de donzelas quando ele aparecia guapo, o olhar a fito, pisando, com solenidade heroica, a laje das calçadas.

E assim temido, cortejado, admirado fazia a sua hora de “mostra” à porta de uma livraria, e era de ver-se-lhe a figura viril, em porte de estátua, gozando a admiração das gentes como um deus vaidoso do incenso que subia da terra e o envolvia no fumo dos arômatas ablativos.

Uma manhã, porém, descendo a escadaria da sua torre de sonho, em vez de encontrar a cidade como a deixara: pacata, com as suas calejas e vielas dessorando humidade, à sombra triste de velhos muros esborcinados e gente a barbarizar coscuvilhices de aldeia ou, lerda, bocejante, remanchando em serviço, achou-se, e com deslumbramento, no vasto esplendor das avenidas, na alfombra macia dos relvados cuidados, diante de palácios, e rolou no turbilhão das turbas açodadas, atordoado com os veículos lustrosos que se cruzavam em velocidade de fuga, ante um fausto improviso, uma agitação repentina, arrojo para a vida.

Densas massas passavam por ele desatentas; nem um olhar, nem um murmúrio: os próprios amigos que, na véspera, amesendavam-se com ele, ouvindo-o e aplaudindo-lhe os versos, mal lhe acenavam adeuses.

A sua primeira impressão foi de espanto. Quedou olhando, certo de que estava dentro de um sonho, ou imaginando que acordara do sono de Epimênides e que a sua cidade, com a gente balorda que a povoara, desaparecera nos séculos, desfizera-se no tempo. E sentiu-se só e desamparado.

Ainda tentou um supremo esforço para acompanhar a investida vertiginosa, logo, porém, fatigou-se e, inerte, sem ânimo, descoroçoado, deixou-se ficar imóvel, olhando sem compreender o que via, perdido e solitário.

“Toutes nos passions, dit Zimmermann, nous suivent dans la solitude. La moindre maladie morale s’y aggrave, parce qu’on se représente vivement et sans cesse ce qui était et ce qui est. Là, on n’oublie rien; là, toutes les vieilles plaies se rouvrent, là, nulle pointe de flèche ne s’émousse. Tout ce qui nous a jadis agité, tout ce qui s’est gravé dans l’imagination nous apparaît alors, ou comme un spectre qui nous poursuit avec une rage infatigable, ou comine un ange qui nous montre à tout instant une félicité céleste.”

Pobre Guima! Essa foi, talvez, a causa da sua morte — acabou com a cidade que o amará. O ídolo pereceu sob as ruínas do templo.

Sem forças para acompanhar a marcha acelerada em que vai a vida de agora e não querendo que o vissem combalido, não cobriu o rosto para morrer, fez mais — fugiu da Pátria e foi cair longe, em terra alheia, onde não soubessem que ele tivera dias de triunfo, para que não lastimassem a sua derrota e a sua decadência.

E assim morreu como vivera — altivo. Pobre Guima!

Arrasada a velha cidade, como de um campo lavrado a ferro e fogo, a vida repontou mais vigorosa e mais farta. À tibieza dos dias moles, de entorpecida modorra, sucedeu a azáfama desinsofrida das horas rápidas.

Já se não caminha automaticamente para o rame-rame do salário, corre-se em tumulto ao assalto da fortuna e o homem afronta-se com o desconhecido — atreve-se a perlustrar os extremos frios da terra, na eternidade álgida dos gelos, ala-se aos ares conquistando o espaço.

O Progresso trabalha como Dédalo, pondo azas nas espáduas de Ícaro.

Que importa a queda de um se outro, em surto ousado, alcança a nuvem, balouça-se na altura, paira acima dos mais altos visos, dominando a terra e o mar lá de onde os astros nos mandam claridade?

É a corrida frenética para a riqueza, para a glória, para o gozo que tudo isso, em suma, se resolve na mesma meta — que é o túmulo.

A ambição põe azas no calcâneo e acoberta o homem com o pétaso divino: pressa no movimento, pressa no pensamento.

Hermes é o símbolo da era.

Tudo se conjura contra a lentidão: a máquina suprime o braço, o dínamo vale por legiões. O raio de Zeus passou às mãos de Prometeu e recomeça a escalada do céu, agora com certeza de êxito, porque não a tentam gigantes brutos, mas homens, e alados como os próprios deuses.

Esta mesma festa é uma vitória da vida intensa. Um moço é o triunfador, ei-lo aí conosco. Nós subimos passo a passo a montanha e chegamos ao cimo já com os cabelos brancos, ele vingou-a ligeiro e com todo o viço da mocidade.

É o primeiro que nos chega do novo tempo, citando, como da história antiga, dias, para nós saudosos, da nossa adolescência.

Ei-lo aí com a vivacidade da juventude e o afogo dos que ambicionam.

Vem para a cadeira do poeta moroso que passou pela vida com a indiferença dos resignados, desejando, mas sem energia bastante para investir com o ideal.

Este, no pouco que tem vivido, não perdeu um instante: de cada minuto da sua curta vida, explui uma ação como de semente mínima rebenta uma árvore.

Vem da mocidade e, moço, entra-nos pela casa como um raio de sol.

Bem-vindo seja o precursor da nova geração que chega para colaborar conosco. Não está só o Passado, tem o Futuro consigo. Hosana!

Não se alegue que venho louvar o acadêmico por injunção da Academia, em obediência à pragmática oficial — antes de o ter por nosso, nesta assembleia, já eu dele dissera o que vou repetir.

“Dois volumes em uma quinzena, outros no prelo, artigos escritos a bordo no atabalhoo alegre da travessia ou nos hotéis das cidades que perlustra à pressa, observando com a serenidade de um indiferente, eis, neste momento, a história do escritor curioso e verdadeiramente bizarro, único em nosso meio, que é Paulo Barreto.

Quem o vê, sempre no mais apurado alinho, elegante no trajo, displicente nos modos, lento, o ar entediado e farto de quem já experimentou todos os gozos que propina a doce embriaguez do vinho de Hebe e começa a sentir a lia amarga no fundo da taça, não suspeita que há nele, esperto e cintilante, o espírito vivaz de um escritor moderno.

Traça-lhe o viver pela aparência, imagina que é um voluptuoso, dessa volúpia inerte de preguiçamentos, que reclama penumbras silenciosas, amplos e flácidos sofás de molas, vinhos doces, cor de âmbar, resinas da Ásia, trescalando em nuvens de fumo azul, tapetes aveludados, cortinas e reposteiros pesados que coem a luz e amorteçam os ruídos e, para encanto da inteligência, uma biblioteca de livros raros, encadernados como os queria o Duque de Brabante; para regalo dos olhos a alvura de mármores em femininos corpos nus, e dominando o seu adito, um símbolo misterioso com uma legenda em hieróglifos áureos.

Ninguém o dirá capaz de aventurar-se, à noite, longe do seu retiro sossegado a buscar impressões em bairros sórdidos e de má fama; sentar-se à mesa de tavernas suspeitas, entre a farandolagem calaceira; afundar, à luz vasquejante de lanternas imundas, em cafuas onde o Sono, por um óbolo, como o Caronte, dá passagem no rio do esquecimento efêmero; visitar tavolagens e antros obscenos; descer a rampa resvaladia dos cais e ouvir conversas de catraieiros; correr betesgas e vielas; iniciar-se em religiões para estudar-lhes o rito — prostrado à beira-mar, entre rochas, adorando maravilhadamente o sol no ocaso e correndo, na escuridão do crepúsculo, para chegar a tempo de assistir ao “Introito” de uma missa negra: respeitoso ante o fetiche do “mina” e venerando a cruz; indo a tudo com a mesma sôfrega ansiedade de “novo”, à cata do inédito, requestando apaixonadamente essa eterna e deslumbrante miragem que é — a alma da multidão.

Pois é justamente em tal diorama que se compraz o escritor estranho que, sob a aparência de um enfarado da vida, é dos que a amam com o amor exaltado que leva ao sacrifício.

E a vida é assim — uma palheta onde o artista vai buscar as tintas com que ilumine a sua obra — de longe é como o íris, uma faixa de sol na câmara escura é o espectro, o heptacromo, as sete cores, desde o vermelho do crime até o roxo da mágoa e, entre elas, o azul e o verde, como a inocência e a esperança e outras ainda que o prisma da observação decompõe na sombra.

Para sentir a vida é necessário penetrá-la, ir-lhe ao fundo e é o que faz o jovem escritor, sempre flagrante.

Gomo o lendário califa, percorre as ruas desertas escutando às portas para surpreender confidências, ouvir sons de beijos ou anseios de morte, palavrões ou doces murmúrios de idílios, ver o Belo e o Hediondo, o Sublime e o Ridículo, a Candura e a Torpeza, a Comédia em uma calçada e a Tragédia na outra, uma a rir, outra a chorar, mordendo os pulsos.

No salão, ao intenso fulgor das lâmpadas, entre decotes e casacas, é o anotador da elegância e colhe das almas superiores a essência requintada da civilização. Sai, a manhã vem longe, sobram-lhe horas de treva, esse manto da miséria, e lá vai ele às alforjas e, ainda recordando o encanto de onde emergiu, mergulha no horror — é a descida ao Inferno com as sandálias rutilantes do pó dos astros do Paraíso.

E o escritor abeira-se do bagaço humano, ainda o espreme aproveitando-lhe a angústia e faz com ela e com a alegria que trouxe do salão esse elixir de sonho que nos dá, como nas visões do ópio, ora o encanto que delícia, ora o horror que retranse.

Abelha, aproveita todas as flores, a do jardim e a do paú e delas extrai o mel que é doce e trava porque é um composto de ventura e dor.

É assim o homem singular dos livros “As religiões do Rio”. “A alma encantadora das ruas”, “O momento literário” e o “Cinematógrafo”.

Paulo Barreto desorienta-nos pela suar indisciplina literária — ora é um “clássico”, e surge-nos sereno, como saindo dentre os plátanos, meditando ainda os ditames do filósofo. É um grego da grande era e fala dos deuses e das hetairas, descreve-nos os jogos da arena e o culto dos templos, sabe das expedições por terra e mar e anuncia-nos a vitória de um condutor de quadriga ou a coroação de um poeta.

Súbito, num salto sobre o espaço e o tempo, transfigurado, ei-lo a referir-nos o último caso da cidade, correndo o reposteiro de seda de uma câmara cor de rosa que vela e sensualiza o ambiente do adultério galante ou levando-nos à baiuca, ainda manchada de sangue, onde caiu, a golpes, a michela traidora, ou tirando do bolso, entre flores secas e um pergaminho antigo com invocações a forças ocultas, um amuleto, búzio ou hipocampo, presente de um feiticeiro ou dadiva de uma supersticiosa.

Sente-se que tal homem é um excêntrico que, negligentemente, ou para gozar o disparate, orna a gorja da Vênus de Milo com um colar de conchas, ou cinge-a, à maneira de cesto, com uma tanga de barro cosido; um curioso que tem à sua cabeceira Homero e Brisson, Ésquilo e Bernstein, Aulo Gellio e Huret, Dante e Conan Doyle, e, deixando Ulisses na terra dos Pheacios, segue um inquérito com Anatole France; desce do Cáucaso, onde ouviu Prometeu, para a violência mundana da “Rafale”; saindo das “Noites áticas” acorda na Alemanha, com o repórter, e na volta de um círculo do “Inferno” encontra Sherlock Holmes e esquece-se, distraído, a conversar com ele.

O estilo do escritor ressente-se de tais leituras e, ainda mais, da sua vida de observador constante: é um misto de clarões e sombras.

Há nele períodos de um trabalhoso retraço, onde os vocábulos precisos adaptam-se com justeza e brilham, os epítetos são perfeitos e a forma nobre, polida, é de um remate impecável. Improvisamente, em fuga, rápida, a anotação, a cor sem o desenho, um golpe de espátula dando a impressão forte. De longe encanta, perto a mancha aparece.

A pressa fá-lo transigir com a arte, mas no correr das páginas, períodos tais, longe de as comprometerem, dão-lhes um cunho original, e quem os lê tem a impressão exata da vida, ora lenta, grave, olímpica como a dos tempos augustos de serenidade, ora impetuosa, ríspida, violenta, como nos dias de pressa e ânsia em que rolamos.

A visão do conjunto obriga a síntese, a síntese força ao resumo, daí as repressões, por vezes obscuras, mas sempre intensas, de que se serve o escritor.

Taine esmiúça no estilo de Balzac grande número de metáforas atordoantes — algumas parecem arranques de loucura, vozes desvairadas de um delírio, outras são verdadeiramente cômicas, resvalando no ridículo e o grande crítico justifica-as com o gênio poderoso do escritor formidável — dando-as como a tradução de pensamentos complexos, a preocupação de condensar em uma frase toda uma impressão de natureza ou de alma.

Dessas metáforas encontram-se em todos os criadores. São como os rochedos na natureza: disformes e admiráveis.

Há em Paulo Barreto metáforas que confundem, vocábulos que atarantam, construções que desatinam. Tal barafunda é o escachoar, o precipitoso despenhar da ideia, a viva, indomável corrida do espírito em pós do fato em curvas e coleios, vieses e viravoltas, até apanhá-lo e fixá-lo, com adjetivo forte, no período.

Todos os livros de Paulo Barreto são brilhantes, palpitam neles vasquejos, mas a claridade reabre-se, mais viva e esplêndida.

Mas o que deles ressalta à primeira vista é o vigor do talento, manifestado na poderosa faculdade de observação que nos anuncia, para os dias repousados que hão de vir com a metamorfose do jornalista apressado no escritor paciente e sereno, quando o repórter do fato passar a ser o analista de almas, um romancista robusto, que entrará na arena aparelhado para uma grande obra com a leitura dos mestres, com o conhecimento amplo da natureza e das almas e o tesouro de um vocabulário que, dia a dia, avulta em abundância e estrema-se em vernaculidade e que, perdendo todas as impurezas que o maculam de jaças, há de fulgurar diamantino, encarnado em páginas de arte perfeita, opulentas de vida e flagrantes de verdade.

Se há escritor em que possamos confiar para o registro da nossa época tumultuosa é esse que, sob a aparência flácida de um preguiçoso indiferente, é uma atividade que assombra e o mais intrépido e o mais esforçado dos que servem à Arte pela glória da Vida e labutam na Vida pelo esplendor da Arte.”

Estas foram as palavras de ontem e serão as de hoje: o hino é um para todos os momentos.

A Academia acaba de abrir as suas portas aos novos; bom é que assim seja para que se não insista em dizer que, nesta casa, onde assistem — e excluo-me da referência — os espíritos superiores da nossa literatura, tudo é gélido e retransido e pelos cantos, enconchadas em sono veternoso, jazem ancianias tórpidas que, ao estremunharem, resmungam conceitos serôdios, esmoem versos cediços, bradam contra a irreverência dos moços e cabeceando, recaem na modorra, arrepanhando às gelhas e aos perigalhos as pontas da túnica rapada.

Bom é que venha a mocidade ver como aqui se vive e trabalha e trazer-nos o seu ardor, o sol do espírito, que é o entusiasmo e o sonho que é a flor que nos perfuma e alegra a vida árida e triste.

E a mocidade aí está. Alas à Primavera!