Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Rapsódias, de Coelho Neto


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

A forma

Pombos viajantes

A nau

A mais feliz das três

A salamandra

Estrelas

A mina

Primitivos

Inocência

Selemnus

No horto

Fora do paraíso

Buena-dicha

Sírinx-o ideal

Adágio

O fogo sagrado

Pastoral

Jesus de Nazaré

Para o inverno

Lágrimas de noiva

Frutos do céu

Soror Fábia

A pérola

Cristo em Cafarnaum

Edelweiss

Prisioneiro

A sentença

O espelho de brigantium

Zahuri

O batismo

O mineiro

A cegonha

À MINHA MULHER

Não se refaz o passado, o que foi pertence ao tempo. Se eu corrigisse os contos deste livro trairia a minha mocidade. Restauram-se telas, avivam-se cores, recenam-se molduras, mas o que o pincel traçou, isso fica perene.

A parte material do livro há de sofrer modificação, os contos saem como os compus. Assim os imaginei e tracei aos vinte anos, fiquem como me saíram da alma juvenil.

Hoje eu não os escreveria, mas que saudade tenho do tempo em que os escrevi!

COELHO NETO

A FORMA

Por ela o meu sangue, toda minha alma para resguardá-la: é o meu amor, é o meu ídolo, é o meu ideal — a Forma.

Para mim ela é a síntese, a concreção de tudo que é belo, de tudo que é puro, de tudo que é grande.

Teve o seu berço no Paraíso — foi feita de luz como todos os astros e, criada, tornou-se o modelo de todas as obras primas que têm saído da altíssima oficina onde Deus trabalha há milênios.

À noite, quando o céu constelado lembra uma enorme palheta suspensa, uma artista invisível labora no espaço — é a discípula do Criador, a espiritualidade sonora, a Forma, que dá feição, contorna e burila as coisas deste baixo mundo. Ela, luz como é, tem, como todo clarão, o dom da ubiquidade — trabalha tanto no corpo da flor como no profundo labirinto subterrâneo onde o diamante, luz de pedra acende-se. Palpita em tudo: na luz impalpável — foi ela que fez as auréolas e os halos; as miragens são debuxos seus nos desertos calados: — Tinha, o sol, unicamente o sol. Nas ervas, ela é que veste os bravios espinhais de botões, ela é que coroa de flores os troncos centenários fazendo pensar, quando a gente os encontra, nos velhos sátiros exauridos, mas sempre com os vistosos pâmpanos à fronte e torçais de rosas nos quadris. Ela é que torna serenas as noites, ela é que as torna tempestuosas. Daí uma diversidade de estilos de noites.

As noites de crescente: o céu parece um brasão do outono — em campo azul estrelas como espigas e no meio a foice de ceifar caída. Forma primitiva das pastorais. A impressão que nos deixa uma dessas noites é toda de doçura; parece, as vezes, que se está a ouvir um bando de harpas distantes soando em concerto, de repente, porém, espirra uma estrela alastrando de luz o céu penumbrado — é como se um homem do campo jogasse o laço claro ao armento para prender pelas aspas um touro rebelde.

Vêm à imaginação as bucólicas antigas — é a Forma lírica no espaço.

Tempo do plenilúnio, noites românticas. A Forma ameniza, uniformiza tudo espalhando, conjuntamente com o palor da lua, tal ou qual sonoridade que a gente não sabe bem se desce das estrelas ou se sobe da terra concentrada.

Tem-se, durante essas noites, a impressão de uma leitura mansa, alguma coisa como uma bailada tirando ao gênero de Uhland.

Resta uma referência — a derradeira.

Nas espessas noites sem luz, noites opacas, feitas para feriado das estrelas, restos de caos, lembranças da primitiva sombra, a Forma deixa o buril com que rendilha Athaír, a igual ao sol, toma proporções titânicas e, como no tempo da gigantomaquia, põe-se a amontoar cirrus sobre cirrus, cúmulos sobre cúmulos. Vê-se, de quando em quando, o flamante cinzel do fúlmen desbastar uma nuvem, os ventos levam de roldão em roldão as ampolas escuras; ruge, estrepita, estronda a estropeada dos trovões longínquos; há uma concentração primeiro, súbito tudo explode em formidando embate ríspido — é a tormenta, a Forma épica da noite.

Era por essas ocasiões que os guerreiros germânicos viam passar, malhando com o camartelo, Thor, o aéreo, Thor, o deus das trovoadas, galgando nuvens, com a cabeleira solta, rangendo os dentes e arrancando ao espaço, a cada martelada, faíscas vermelhas de coriscos.

A Forma incumbe-se da harmonia e, quanto aprendem nesse livro hierático os que contemplam o céu, os que se voltam para o alto de onde desce tudo, de onde tudo emana!

A Forma está no meio ambiente — sentimo-la como sentimos o perfume. Ela é que nos tonifica a alma e depuramos a imaginação.

Para tê-la é mister que a revelemos com o auxílio de todas as nossas forças espirituais. Pouco a pouco vamos vendo os seus traços: ora em um período — é já uma volta, é já uma transposição, uma palavra que entra, um termo que nos aparece — é a música, é a harmonia, é a sonoridade, é o ritmo.

É na tela onde apenas o debuxo existe — a linha avigora-se ou esgarça-se, aparecem os matizes; joga aqui um colorido contrastando com outro, afinam-se as tintas, combinam-se os tons, desenvolve-se a perspectiva, a sombra opõe-se à claridade. A luz alastra por aqui larga e ardentíssima, ali uma penumbra abafa o ramo, esconde o grupo, vela cantos de céu e trechos de arvoredo e tudo converte-se pela força superior da Forma, que é o último avatar da Arte.

Na escultura — devesse-lhe a expressão externa, que é a ficção da vida; devesse-lhe a atitude, devesse-lhe a desenvoltura — a vida da pedra, o que a parece fazer sentir, mover-se, ameaçar descer do pedestal para entrar na comunhão dos homens ou para subir ao seu lugar no céu. Tudo é devido à Forma. Vênus e Moisés, Perseu e o Centauro, o Juízo Final e a Conceição, a Divina Comédia e as Geórgicas, Hamlet e as Contemplações — são expressões da Forma em suas diversas manifestações.

O seu culto, nasceu com o primeiro olhar do homem.

Solto na bravia natureza, cercado de colossos: os montes verdes, os vegetais extravagantes, desde o baobá frondoso, a tenda natural das caravanas, até o feto, a renda graciosa do campo, o bárbaro começou a examinar o seu dote.

Aqui eram as artérias dos rios fugindo, a cantar, por entre as fráguas e as veias dos córregos suaves; ali pontas de rochas escabrosas, nuas como ossarias escarnadas, o céu por cima e, numa fuga constante, nuvens itinerando e, entre azul e verde, de um para outro lado, como tintas canoras, pássaros fugindo; os insetos, pingos de colorido vivos, descendo pelas hastes e as teias de aranhas, como pequeninas redes, rutilando ao sol entre os galhos torcidos.

Mais adiante a flor — ele começou a admirá-la. Havia na diminuta maravilha alguma coisa que a assemelhava à estrela, ele não sabia bem que era, sentia-o, entretanto. A estrela era feita de claridade e desabotoava luminosamente, a flor era feita de aroma e desabotoava balsâmica; ambas nasciam a noite, ambas tinham arestas. Uma constelação lembra um rosal carregado e, foi tão forte a impressão que teve o bárbaro, que em sua alma, de certo, surgiu esta interrogação: “Como não tem luz a flor? Como não tem perfume a estrela?” E começou a adoração da Forma: tanto os olhos queriam a estrela-flor como procuravam pela flor-estrela — era o fetichismo artístico.

O mar depois, o grande mar variável — como o bárbaro sentiu-o!

Vista de longe, à hora cálida do sol, a imensidade estuante dava a ideia de uma folha enormíssima de caladium manchada, aqui de pólen de ouro, ali cor de aço polido, verde na maior parle e salpicada de azul como se um pulverizador espalhasse pela superfície das águas trechos da formosa abóbada cyanica.

A noite confundia-se com a sombra, salvo se a lua vinha despertá-lo para argentar-lhe as vagas e as espumas com os cadilhos brilhantes dos seus raios.

A Forma triunfava.

Deus fez o mundo em seis dias, no sétimo a Forma começou a bruni-lo.

E foi ela, a espiritualidade ativa que entra pela alma e canta-lhe no íntimo, que armou o primeiro homem contra a besta, não para saciar a fome, mas para roubar a pele mosqueada —a primeira capa que aqueceu e ornou as espadas humanas.

Era a vitória do Belo.

O desejo de enfeitar-se fez do bárbaro um inimigo terrível, e começou a guerra aos pássaros para a conquista das plumas e aos animalejos para a posse do arminho.

A mulher, querendo acompanhar a natureza, teceu a primeira capela de flores e cobriu-se de rosas como as colinas, mal o inverno vai e a primavera chega.

A Forma poética, a Forma literária, teve também o seu período bárbaro — a música foi a sua primeira manifestação — dela nasceu o ritmo.

O cérebro é uma espécie de gruta hermeticamente fechada. A imaginação é como uma gola perene, sempre a cair no solo da caverna, sonora e brilhante.

À proporção que o período estilicida uma estalagmite vai se levantando, faz-se pirâmide. O artista sente-a dentro de si, sente-lhe o peso, sente-a crescer aos poucos, lentamente, e, quando a tem por pronta, com um esforço arranca-a como se arranca um galho de coral e leva-a ao coração. Ela aí aninha-se, aí aquece-se, embebe-se no sentimento e a bruta estalagmite começa a palpitar, move-se, ilumina- se, torna-se, em pouco, um corpo animado.

E sai do coração como saem dos cadinhos os metais depurados. Torna-se, então, mister a Forma.

Antigamente, com um pouco de trabalho desde que tivesse alguma semelhança com a ideia, estava pronta a obra de arte, cuidava-se mais de conservar a matéria prima — que tivesse muito sentimento era o que se queria — a ideia vinha apenas desbastada.

Hoje, porém, o bloco passa por um milhar de processos.

O artista desarreaste-o, lima-o, burila-o, leva-o à alma, trá-lo, examina-o atentamente e torna à faina. Aqui alisa, ali preenche, fica horas e horas em um ponto; afina, retoca, simetriza e, quando tem pronta a estalagmite, ela é uma filigrana.

Mas, através do rendilhado, vê-se todo o sentimento, vê-se toda a alma como através de uma redoma vê-se a imagem de uma santa.

Depois desse trabalho fatigante, depois desse sacrifício à Forma o artista recolhe-se admirando o seu lavor, mas, súbito sente no cérebro a queda de uma gota, de outra, de outra... Para, é uma nova ideia que se cria, é uma nova estalagmite que se põe de pé.

E ele lá vai de novo ao torculo e a Forma, espécie de torno ideal, começa a limar, a polir com um ruído sonoro que é a música dos períodos.

Por ela o meu sangue, toda a minha alma para resguardá-la: é o meu amor, é o meu ídolo, é o meu ideal — a Forma.

POMBOS VIAJANTES

Na brenha cerrada da minha tristeza, onde os sorrisos já não fazem ninho, viviam, pousados na árvore seca da melancolia, três pombos carinhosos.

Dia e noite arrulhavam; ao pôr do sol, porém, um deles, turturinando, trazia-me ao coração mágoas; acerbas indefiníveis — era o mais escuro.

O menor, branco, niveamente branco, durante as noites de luar gemia, mas a sua voz, posto que fraca, tinha mais alegria muito mais alegria do que a voz soluçada do primeiro.

O último, um grande pombo forte, de asas triunfadoras, capazes de voos temerários, dia e noite, cantava no ramo seco, olhando ora o sol, ora as estrelas.

Para viver melhor com eles dei-lhes nomes.

Chamei ao primeiro Saudade, ao segundo Amor e Esperança ao terceiro.

Um dia, à hora mansa da tarde, tomei no punho o primeiro pombo e soltei-o no ar. Fiz o mesmo ao segundo, fiz o mesmo ao terceiro.

Voaram, ruflando as asas, foram-se, muito alto, como se tomassem o rumo do céu, como se fossem mariscar as claríssimas sementes que a noite começava a espalhar pelo espaço.

Foram-se!

Solitário, pus-me a pensar na madrugada próxima e na volta dos meus mensageiros.

Que me traria o pombo Amor de novo e os outros dois que novas me trariam?

Assim a pensar fitei os olhos no mesmo ponto — a brenha enchia-se de lantejoulas brilhantes.

A proporção que a treva ia se fazendo mais espessa, apontavam mais estrelas e mais vagalumes apareciam como reflexos sidéreos.

Extrema solidão!

Meus olhos, por mais que se alongassem, não conseguiam descobrir a luz das choças; a cantiga melancólica do zagal, no alto do monte, não me chegava aos ouvidos.

Olhar o céu! Olhar o céu! Fitei a vista nas estrelas.

Subitamente um gemido... outro mais doloroso... uma ruflalhada em torno de mim.

Voltei-me... e ia levantar-me quando alguma coisa rápida saltou para o meu ombro, depois para o meu punho, gemendo, gemendo sempre.

Corri à claridade, cheguei-me à luz da lua e olhei.

Eterna companhia! Não pôde viver longe do coração... Sombra da vida extinta, espectro das lágrimas e dos sorrisos.

Eterna companhia! Era a Saudade, o pombo escuro.

O Amor e a Esperança passam de quando em quando junto de mim, demoram-se alguns instantes, mas, pela madrugada, fogem, voam turturinando. Ele só não me abandona, o pombo escuro, o que eu chamei Saudade, o triste, o melancólico, o dolente.

A NAU

Achei-me, um dia, sobre o verde oceano, sem mastros, sem velame, sem maruja. Em torno de mim várias e diferentes naus flutuavam. Eu, presa a uma boia, sacudia-me com o balanço que as ondas faziam.

Trabalhadores invadiram-me. Dia e noite o martelo batia. Construíram no meu bojo vários compartimentos, dividiram-me, depois fincaram no meu peito mastros enormes, espécies de cruzeiros; pintaram-me, fizeram-me garrida e, pouco a pouco, fui-me sentindo afundar nas águas calmas.

Um dia, pela manhã, homens armaram-me. Abriram panos em todas as vergas, teceram teias negras de cabos e correntes e, súbito, um tropel de marinheiros invadiu-me e ouvi, então, pela primeira vez, a canção da saudade.

Era forte e formosa; tinha dentes de aço e o eco retumbante da minha voz era repelido pelos ares longa e demoradamente. Meu grito matava, meu hálito era de fumo espesso.

Uma madrugada senti que alguma coisa repelia-me. Eu tinha as velas pandas e, lentamente, fui singrando o mar pacífico.

Dentro em mim palpitava, com um constante tan-tan, o meu formidável coração de ferro.

Que belo o dia da partida!

Passei por entre alas de outras naus, orgulhosa como uma rainha e fui-me fazendo ao largo. Ao cair da noite densa achei-me entre estrelas e águas revoltas. O oceano já não era o mesmo.

Ondas cuspiam-me, ventos insultavam-me; a maruja, na faina, não parava e achei-me só, completamente só, na soledade tristíssima de um mar tempestuoso.

De vez em vez uma ilha aparecia, o vento, porém, inchando as velas e um relógio que os homens consultavam faziam-me torcer involuntariamente o rumo. Ando, há muito tempo, no mar, ancorando um dia em porto bonançoso, surgindo, às vezes, em terríveis barras — entretanto a agulha sempre a mostrar o Norte e a voz do comandante sempre: Avante!

Tempestades me têm desmantelado, ventos passam por mim rasgando as velas, morrem marujos de fadiga, outros deixam-nos ficar na esteira branca que é o meu rastro no caminho verde. Não sei para onde sigo. Avante! Avante sempre!

Mal saio de um porto, outro procura-o e ninguém mais pensa em mim. Buscam-me as tempestades e, as vezes, tendo visto o que tenho visto andando, sinto saudade daquele mar quieto e tão verde onde vivi durante tanto tempo, armando-me para tão longa travessia. E não poder tornar à quilha desarmada, pensando o que pensava: — que o oceano era como a mansa baía onde me fiz tão forte e que as tempestades eram feitas com as brisas que me balançavam.

Hoje, que sou? pobre nau carregada — deixando mortos pelo caminho e tomando em cada porto um fardo novo e sempre a caminhar, velas ao vento, para o Norte fatal de onde nenhuma embarcação voltou jamais.

Como a nau da balada eu também, cheio de aspirações, com as velas da esperança cheias, depois de me julgar bastante forte, fiz-me atrevidamente ao largo.

Frisos do oceano do carinho, como vos transformastes em vagalhões de males!

Crenças, maruja da alma, como vos deixamos ficar na esteira de lágrimas — esteira branca da nossa rápida passagem!

Portos da fantasia, porque nos carregais a alma de ilusões, para que, na hora da tempestade, alijemo-las todas no pélago das falsidades e dos desenganos!

Sigo também o rumo fatal — o Norte é o meu termo. O Norte, o eterno país onde a esperança não desabrocha auroras, onde não há sonhos, onde não há beijos; o eterno país da sombra, silencioso e opaco, onde, em compensação, ninguém mais sofre.

É para lá que caminho por esse mar de procela, batido pelas tempestades de todas as agonias e de todas as desesperanças.

A MAIS FELIZ DAS TRÊS

Na Via Láctea, entre estrelas balbuciantes, à hora em que os astros acordam encontraram-se, por acaso, três almas puríssimas de virgens. Saudaram-se e travaram conversa:

Eu fui princesa, disse uma. Sobre o mausoléu onde deixaram meu corpo há um cipreste de prata e um arcanjo de mármore guarda severamente os meus despojos.

Tenho saudade dos lírios do meu jardim.

— Eu fui monja, disse a outra. Sobre o túmulo onde ficou a carne em que morei, chovem os psalmos das religiosas e as flores dos que vão correr o claustro. Tenho saudade do Ângelus saudoso, à hora melancólica da tarde quando brincam e recolhem-se as andorinhas mansas.

E a terceira disse:

— Eu fui pastora. Meu corpo está no humilde cemitério da aldeia. Guarda-o meu noivo. Quando não há flores nos galhos, ele desfolha o coração e espalha sobre a minha cova as pétalas do pranto.

Tenho saudade do meu noivo.

Uma estrela cadente que fugia, ouvindo a conversa das almas imaculadas, perguntou à outra estrela que surgira na treva:

— Qual a mais feliz das três, irmã radiante?

— A noiva, porque foi amada, respondeu a estrela que surgira.

A SALAMANDRA

Na cova profunda, acocorado diante de um brasido, o solitário meditava.

Iluminadas pelo fogo, as barbas longas, escorrendo-lhe pelo peito nu, pareciam de chamas e a cabeleira selvagem tomava tons dourados quando ele sacudia a trêmula cabeça.

A lenha crepitava e o velho, com o braço estendido, linha na palma da mão um corpúsculo purpúreo que se movia em coleios erguendo-se, rojando-se, torcendo-se com um reluzir de ouro novo.

Os olhos atentos do eremita não se apartavam do animálculo rubro, e, ora os seus lábios sorriam, ora a sua fronte carregava-se.

Entrei na cova profunda e detive-me a contemplá-lo, sem falar, sem mover-me, impressionado com aquele estudo da chama.

Afinal, curioso do mistério, aproximei-me do velho.

Dando subitamente comigo, pôs-se de pé, fechou a mão e encarou-me, mas, reconhecendo-me, sorriu e acocorou-se de novo.

— Que estudas? perguntei.

— A vida misteriosa. E, abrindo a mão, mostrou-me o animalejo: Conheces?

— Não.

— É uma salamandra. Está a morrer, repara.

Olhei. A rubra lagarta escabujava.

É muito pequena ainda. E, de repente, às pressas, pôs-se a deitar gravetos na fogueira quase extinta, e, como a chama crescesse, nelas lançou a lesma ardente.

Pouco a pouco foi o animal recuperando a vida começou por mover-se lentamente, coleou depois, subiu a uma brasa, e, súbito, começou a rabear como um corisco no vermelho fogaréu da cova.

E o velho, radiante, a bater as palmas, levantou-se balbuciando palavras cabalísticas, a saltar em torno das labaredas onde a salamandra nadava

Amor, meu doce amor, teus olhos negros queimam quando fuzilam de paixão, abrasam teus olhos negros, nem eu sei como posso admirá-los, entretanto, minha alma, como a salamandra, gosta de viver dentro das piras, gosta de adormecer na chama viva dos teus olhos e tanto que de ti me afasto sinto-a logo estremecer pedindo a luz ardente das pupilas, como a salamandra rubra pede, para viver, a chama forte dos braseiros.

ESTRELAS

— É curioso, disse o pastor olhando-me a fito.

Nós outros, pastores, nascidos e criados na montanha, não admitimos que ninguém saiba melhor do que nós a história das estreitas. O peregrino deve concordar comigo — nós, pastores, temos na terra o rebanho e as estrelas no céu ... que mais? Conhecemos todas as ovelhas e entendemo-las — um balido no vale diz mais do que todos os recados, sabemos se a ovelha chora ou se chama pelo seu macho. Não há um só homem da planície que perceba o segredo dos animais pela voz ou pelos olhares; nós outros percebemos.

Dá-se o mesmo com as estrelas.

Não há zagal que as não conheça todas pelo nome: sabem onde moram, a que horas saem, a que horas se recolhem, quando estão doentes, quando estão de amor. Mas o senhor, moço peregrino, o senhor conhece melhor do que os zagais a história das estrelas. O senhor, tem de certo, velado muita noite?

— Muita noite.

— E estudado muito?

— Muito.

— E em que montanha fica o peregrino para estudar os luzeiros?

— Em montanha alguma.

— Estuda da planície?

— Sim.

— E qual é o canto do céu que mais prefere?

— Um que ninguém conhece, que tem um oriente sempre púrpuro, um oriente que canta. Um ponto de céu sempre semeado de ouro e de rosas, um ponto de céu por onde voam meus beijos e onde moram duas estrelas, essas que me ensinaram a vida das outras todas.

— E que nomes deu às duas estrelas?

— Olhos azuis, pastor. Simplesmente, unicamente olhos azuis. Aí tens como eu, que estudo no rosto de minha amada, sei mais do que os zagais, sei mais do que os astrônomos a história das estrelas.

O pastor, apoiado ao báculo, meneava com a cabeça balbuciando:

— Estrelas... olhos azuis... Olhos azuis... estrelas...

E eu desci porque já vinha chegando a saudade do beijo e ele lá ficou, no alto cimo, entre os carneiros, com o queixo no báculo, os olhos fitos no céu, sempre a repetir:

— Estrelas... olhos azuis... Olhos azuis... estrelas.

A MINA

— Lá no alto monte, entre as urzes maninhas, disse Silvano. Lá no alto monte! Ide ver. É justamente perto do carvalho onde Lavínio, à tarde, sopra a flauta ou canta.

Lá no alto monte, entre as urzes maninhas.

Ontem, por acaso, à hora em que fui levar a ração ao pastor, atraído por um passarinho, fiquei algum tempo junto do carvalho, a ouvir, furando a terra com o ferrão do meu cajado.

O pássaro cantava no mais alto da árvore, e, dentre as urzes maninhas, outro lhe respondia.

Fiquei a ouvir, a ouvir e a cavar com o ferrão do meu cajado.

De repente, baixando os olhos para a terra vi, no fundo da cova que eu abrira, vi no fundo da cova luzir alguma coisa — era como um pedaço de ouro.

Sem ouvir mais os pássaros, pus-me a cavar e descobri, no fundo da cova, um filão maravilhoso: ouro do mais fino, como não há em revérbero de santo.

Entre os moços canoeiros — pescadores do rio, pescadores do lago — houve um grande alvoroço.

Queriam todos ir ao monte, ver a mina de ouro e Silvano, arrependido de haver contado o seu segredo, negou-se a acompanhá-los, limitando-se a dizer, mostrando a serra:

— Ide! É lá no monte, entre as urzes maninhas, junto do carvalho onde Lavínio, á tarde, sopra a flauta ou canta.

E os canoeiros partiram.

Subindo a montanha, uns pensavam em comprar grandes canoas, outros em edificar palácios, ricos como os dos fidalgos; outros, lembrando-se do próximo noivado, diziam baixinho: que a capela leria grandes círios e que o tapete do adro seria todo de flores.

Chegaram, enfim, ao alto do monte, entre as urzes maninhas. Era justamente à hora do cair da tarde.

Lavínio, entre as ovelhas, cantava sentidamente.

Os pescadores cercaram-no.

— Lavínio, disse um deles, o mais velho, mostra-nos a mina de ouro que Silvano descobriu no monte, conforme nos disse, há pouco. Deve ser neste sítio, entre as urzes maninhas. Deve ser neste sítio. É aqui que costumas cantar à tarde. A terra está revolvida de fresco; Foi Silvano que a revolveu com o ferrão do seu cajado.

Lavínio, a mina de ouro é aqui, mostra-nos a mina de ouro.

— Mina de ouro! dissestes. Mina de ouro! E o tristonho pastor, afastando o rebanho, falou ao canoeiro: Mina de ouro! Mina de ouro no monte, perto do carvalho, entre as urzes maninhas... deve ser aqui.

E, desviando-se, deixou que os canoeiros revolvessem a terra.

Todos, de joelhos, enterrando as unhas ambiciosas, puseram-se a cavar. Um deles, mais novo, ergueu-se de repente com uma pequena cruz de prata.

E Lavínio, a sorrir, disse serenamente: — Amuleto... amuleto gasto pelos seus beijos!

Outro arrancou da terra um ramo seco.

E Lavínio, a sorrir, disse serenamente:

—Foi o último ramo que lhe dei — o último! Súbito, recuaram todos — era o ouro que chispava no fundo da terra, era o rutilo filão maravilhoso.

E Lavínio, a sorrir, disse serenamente: —É ouro. Aí o tendes. Ouro puro! Ouro dos cabelos da minha amada, ouro dos seus cabelos.

E, como os canoeiros se erguessem, atônitos e comovidos, Lavínio continuou:

— Era minha esposa: ela pastora, eu pastor. Casamo-nos na serra, junto da fonte triste. O sol uniu-nos num mesmo raio. Foi em uma manhã de primavera. Presentes à festa nupcial: os pássaros, as borboletas e os dois rebanhos — o meu e o dela, que se misturaram. Ela trazia um ramo de bogaris, e, como lhe faltasse o véu, o véu que as noivas trazem, soltei, eu mesmo, os seus cabelos louros. Enquanto viveu amei-a estremecidamente, agora... os seus cabelos de ouro... Levai-os, se quiserdes. Já não tenho ciúme dos cabelos.

Como os canoeiros se persignassem, horrorizados com a profanação do túmulo, Lavínio serenou-os.

— Não vos assusteis. Ide! Ide que a alma da moça morta não vos perseguirá quando sairdes para os lagos frios, à hora dos maus espíritos. Ide, que a alma da pastora está presa em meu coração, vive com a minha. No mesmo dia em que guardei seu corpo junto ao carvalho antigo, entre as urzes maninhas, cavei, com a minha saudade, um lugar no meu coração para guardar sua alma. Ide! E não vos assusteis... nada receies — a alma da moça não vos perseguirá.

E ficou-se a cantar, junto ao carvalho, entre as urzes maninhas, com os olhos no céu pálido, onde desabrochava Vésper.

PRIMITIVOS

Minguava a protetora lâmina candente; as cintilas de sol embainhavam-se no azul.

Anoitecia.

Galopavam na floresta, em trépidas manadas, as vagabundas feras famulentas.

Nos vales e nas gargantas reboavam rugidos. Os leões, agachados no limiar das cavernas, fitavam soberanamente o cariz do céu cambiante.

Bailavam nos gneiss as sombras colossais dos ursos, suspensos sobre as patas traseiras, bambos e titubeantes, sacudindo-se e tripudiando em carícias de garras.

Voavam canoros pássaros brilhantes.

Abriam-se as cortinas verdes da folhagem e, no delíquio da tarde, gemia o madrigal suavíssimo dos ninhos.

Florestas virgens rumorejavam um prelúdio triste e o ambiente saturava-se do perfume casto, feito da transpiração das rosas e do aroma volátil dos resinosos troncos.

Cantante e namorada a fonte unia a sua música perene à esplêndida cantilena crepuscular dos seres.

Trevas da primeira idade. Espessidão compacta e sinistra, onde o espírito vago do primeiro homem procurava descobrir o Deus austero, coevo das primeiras sombras.

Noites de insônia, noites de vigília ingrata, à beira do fogo, no fundo regelado das cavernas.

Rodavam pelos arredores os bandos fulos dos colossais orangos.

Ele, de pé sobre um gneiss, olhava profunda e atentamente ao longe. Projetava-se no lago, de uma transparência melancólica de pupila azul, a sombra ereta e varonil do bárbaro.

Era a ronda final; a noite negra vinha descendo das alcandoradas serras.

De quando em quando o bárbaro soltava um rugido e, brandindo a maçã de sílex, parecia desafiar os perfis esfumados dos penedos longínquos.

No fundo da caverna a mulher, sentada sobre um crânio de rena, ateava a fogueira.

Girava em turbilhões difusos a grande alma da natureza — aqui, brotando transformada em rosas, ali rebentando na germinação magnífica de uma nova floresta.

A relva tinha frêmitos, as ramas apertavam-se em convulsões histéricas de gozo. Aves e arbustos derreavam-se numa lassidão de sensualismo forte.

E tudo amava na penumbra deliciosa com a discrição e a delicadeza dos lírios.

Ele, o forte, vigiava. Impávido e sereno, cindia a opacidade negra com o seu olhar vigilante.

Longe em longe, entre as rochas, um rugido de leoa fecunda, doloroso, vibrava.

O mar beijava a terra, a luz beijava o mar.

Entanto o homem triste, de pé austeramente sobre o gneiss, apoiado à maçã de sílex, sacudia da testa os longos cabelos flutuantes.

Ela ansiava. A chama da fogueira aviventava-lhe o sangue, o sussurro da folhagem cantava-lhe ao ouvido uma canção de amor.

Ergueu-se seminua, os seios fortes de mulher criadora a pino, belos como dois poemas genéticos de carne ou a bíblia do amor em dois capítulos brancos.

Trêmula, encostada à penha, fitando o crescente que subia, a mulher, lânguida, esperava.

O homem vigiava ainda; depois, soltando o derradeiro brado, no deserto, desceu de um salto do pedestal de mica.

Voltou para a mulher o olhar selvagem, fitou-a sem severidade e, com o sílex, indicou um meandro de sítio iluminado palidamente.

Então, sem uma palavra, sem uma ternura mole, fortes como a floresta, encontraram-se os dois corpos palpitantes; vacilaram e caíram rolando sobre a relva, perto dos ossos tábidos das renas, entre o crepitar alegre da fogueira e o cicio manso da viração da noite.

Amaram-se ali mesmo, em pleno ar, no encanto pacífico e virginal do campo.

Mas a folhagem estalou, abalaram-se as ramarias e o bufo dos mamutes sacudiu as palmas.

O homem saltou impetuosamente; travou do sílex e, firme como um semideus, heroico como o gênio errante da primitiva selva, adiantou-se, urrando como as alimárias. E ela, para auxiliá-lo, ainda ébria de sensualidade, levantou-se cantando uma melodia bárbara, e fora, com o corpo nu desafiando as bestas, pôs-se a aguçar nas arestas das penhas, as pontas incisivas dos punhais de sílex.

INOCÊNCIA

Na ocasião em que o Dr. Anselmo atravessava a ponte, cochilando, escarranchado no moroso jumento, Francina tomou-lhe a frente.

— Meu bom doutor...

Com a parada súbita do animal o velhito quase foi ao chão. Equilibrou-se a custo e, abrindo muito os olhos para encarar a pequena, perguntou severamente:

— Então! Que andas a fazer pelo caminho, mandriona?

Francina, muito vexada, baixou os olhos e pôs-se a enrolar as pontas do avental usado.

— Já estás cansada de correr os canaviais como rapazio? Sai-te daqui! Deixa-me passar!

E a pequena, humilde, sempre a torcer as pontas do avental, levantou para o velho os olhos suplicantes.

— Que queres? Fala!

— Eu queria, bom doutor...

— Vamos?! Fala de uma vez!

— Minha mãe morreu ontem, como o bom doutor sabe, deixando o pequenino Júlio que ainda mama...

— Sim. Mas que tenho eu com o Júlio? Queres dinheiro? aí tens.

E atirou à pequena duas moedas de prata.

— Não é dinheiro que vos peço, bom doutor...

— Então... que é? Fala de uma vez, que tenho pressa.

Francina, muito corada, hesitante, trêmula, desabotoou o corpinho, desabotoou a camisinha grossa e deixou ver os peitos virgens — dois botões puríssimos de magnólia onde havia pousado um casal de abelhas rubras — e, dirigindo- se ao doutor com ar pedinte, disse:

—Vê o doutor? Tenho peitos como todas as mulheres, entretanto, por mais que meu irmão puxe por eles, o leite não escorre. Creio que o motivo é estarem ainda fechados. Eu queria....

— O que, pequena?

— ... que o doutor, por piedade, m’os furasse.

— Não, isto não, filha. Olha, disse o bom velho comovido, leva-me o teu irmão à casa, tomo conta dele, ouviste? Mas não penses em furar os peitos. Tola. Isto é como um ovo: depois de fecundado o que está dentro procura sair sem mais auxílio do que o da própria força... como os pintos. Nunca viste nascer um pinto?

— Já sim, senhor.

— Ele mesmo belisca a casca, pois não é?

— Sim, senhor.

— É justamente assim com o leite. E, sorrindo, deu uma palmadinha no rosto de Francina. És muito nova ainda. Não penses mais em furar teus peitos... e, quanto ao Júlio, eu encarrego-me dele, ouviste?

— Sim, senhor.

E o Dr. Anselmo, limpando uma lágrima, esporeou o jumento e foi-se balbuciando, enquanto a ingênua rapariga, de pé no meio da ponte, guardava os peitos virgens, abotoando a camisinha grossa.

SELEMNUS

Pela esmeralda das campinas úmidas, soprando a avena suave, o meigo pastor Selemnus passeava o seu rebanho de ovelhas e de cabras.

Argyra, ninfa dos cabelos de ouro, mal o descobria, sentado entre os ramais de mirto verde, deixava a espuma jônica e, célere, a sorrir, saltando pelas pontas dos penedos, vinha cair nos braços desejados.

Os hirsutos tritões glaucos, de ciúme, punham-se a soprar nos búzios torsos, arrepelavam o mar espadanando vagalhões medonhos para ver se os amantes assustavam-se; os dois, porém, unidos peito a peito, mal o sussurro dos lábios percebiam.

As náiades, à noite, à sabida da lua, apareciam em bando à flor das vagas, cantando para tentar o namorado e Selemnus pensava unicamente na bela ninfa dos cabelos de ouro.

Um dia, Argyra descobriu rugas no rosto do pastor e fios brancos na cabeleira escura. Riu de cima da penha e, sem beijá-lo, de novo mergulhou no mar inquieto.

Selemnus debalde foi à praia vê-la, chorou debalde; à toda onda que subia à areia confiava um segredo para Argyra. E a ninfa, cavalgando o dorso verde e altivo de uma vaga, fez-se ao largo, rindo do pastor desventurado.

Dias e noites, entre as penedias, Selemnus soluçou pedindo a morte até que os deuses se compadeceram.

Vênus, porém, a deusa protetora dos amores, para tornar eterna a triste história, transformou o pastor em rio — mas, apesar de transformado, o amante não esqueceu a pérfida e, fugindo por entre os salgueirais, o nome Argyra soluçava sempre.

Foi preciso que a deusa o socorresse dando-lhe como remédio o esquecimento.

E nunca mais Selemnus suspirou sentido — pôs-se a correr silenciosamente através das pradarias de esmeralda— matando a sede às brancas ovelhinhas.

As vítimas do amor, os desgraçados, quando a paixão minava-lhes a vida, para esquecerem a causa dos tormentos, mergulhavam nas águas de Selemnus. E os que levavam nomes dentro da alma nem saudade traziam de tais nomes.

Eu vivia feliz pastoreando as minhas ilusões — sem martírios, sem mágoas, sem desgostos. Apareceste e tudo esqueci porque teu amor encheu-me o coração. A minha vida vinha de teus olhos, o teu prazer o meu prazer criava e nunca descobri pranto em teus olhos sem que nos meus não visses mais copioso. Deixaste-me sem luz.

Meu coração morreu e transformou-se em lutuoso rio de agonias. Corre pelo meu rosto, como por um vale, esse fio de lágrimas ardentes — é o meu amor, é toda a minha vida que se esvai nesse pranto.

Falta-me o esquecimento!

Falta-me o esquecimento!

Mas para isso é preciso que o meu coração desmanche-se e que eu fique sem a saudade que, no correr das lágrimas, balbucia para a minha alma debruçada sobre o meu coração, o teu nome, como Selemnus, o rio namorado, dizia aos salgueirais o doce nome da formosa Argyra.

NO HORTO

De joelhos, orando contrito, entre as oliveiras murchas do caminho, o rabino Jesus esperava o suplício.

Ninguém em torno — a sombra da noite velando pesadamente os arredores — e o mísero a balbuciar piedosamente com a alma no céu, arrebatado num êxtase suave.

De longe, na brisa leve e cheirosa, chegava o eco langoroso das cantigas das moças, vinham sons de instrumentos e o cicio dos ramos das oliveiras sacudidos brandamente pelo vento da noite.

Nem um discípulo, nem um amigo perto.

Jesus levantou os olhos límpidos para o céu — a lua rasgava as nuvens como o rosto branco de uma nadadora emergindo de um mar tenebroso.

A claridade envolveu-o e ele, o bom, o misericordioso missionário do amor, ficou numa redoma misteriosa de luz tênue.

Todos os sonhos do seu coração acordaram, todo o seu amor renasceu.

Lembrou-se de Bethânia onde, por noites iguais àquela, ele e Magdalena trocavam beijos desfolhando rosas; lembrou-se de uma samaritana apaixonada que lhe oferecera o leito perfumado a sândalo; lembrou-se de uma criança de Bethphagé que chorava de amor ouvindo-o falar de Deus — e o miserando Jesus sorriu para o luar.

De repente, sentiu na face gelada o calor rápido de um beijo. Estremeceu, e, com o mesmo sorriso, com a mesma doçura no olhar, estendeu os braços trêmulos e disse ternamente, com a voz abafada como um arrulho de rola.

— Maria!

E voltou-se para o dono do beijo.

Era Judas Iscariotes.

FORA DO PARAÍSO

Uma treva pesada desceu sobre a terra. Ventos fizeram profundas covas nas areias. O manso e claro Eufrates cresceu de águas e inundou as margens palmeirosas. Árvores perderam toda a fronde.

Sofria pelo pecado a natureza.

Voavam no ar, em turbilhões, flores roubadas pelos vendavais aos caules e passarinhos sem vigor nas asas. Grandes águias de forte envergadura soltavam gritos pavorosos nos penhascos; mamutes peludos corriam sem destino, íbis negros piavam e pombas, transidas de terror, encolhiam-se nas grotas enquanto os doirados leões e os tigres fulvos, arrepiados de medo, fremiam na floresta. As ribeiras de suavíssimo murmúrio roncavam como catadupas. Nem uma só das muitas aves aquáticas, nem uma só por fora. Os animais tremiam apertando-se debaixo das ramadas dos sicômoros. De vez em vez um balido ecoava e bandos de leopardos varavam a floresta destroçando, de raiva, magotes de ovelhas. Já não havia a promiscuidade pacífica — os rouxinóis evitavam as águias, os borregos fugiam das panteras. Foi, então, que começou a migração dos animais.

Nem um papeio de ave, entretanto, enroscado na árvore da Ciência, o píton do pecado sibilava de gozo.

Vencera!

Adão e Eva, nus, iam de fronte baixa, as mãos dadas, correndo à frente do Arcanjo vigilante que brandia na destra a espada luminosa.

Deus, do alto céu, contemplava a sua vingança.

Os trovões estalavam reboantes e, a mais e mais, o espaço escurecia-se. O rumor das grossas águas rolando tornava mais terrível a noite repentina. Urros e berros sucediam-se no bosque.

Nas ondas torvelinhantes da poeira desapareciam as borboletas fracas; mortas, nos rios cheios, desciam pombas da primeira idade. Andorinhas emigravam e cegonhas corajosas ganhavam o tenebroso espaço em procura de sítio mais ameno. Eva, de medo, escondia o rosto nas mãos.

O Arcanjo, com as seis asas espalmadas, severo, pairando sempre, brandia no escuro a espada de chamas. No largo oceano, enquanto a terra aturava humilhada a fúria da cólera divina, nascia o vagalhão tormentoso. Adão e Eva acharam-se, de repente, fora do aceitoso Éden. Ela, mais tímida e vergonhosa, agachou-se junto de uma pedra e, embrulhada nos cabelos, pôs-se a chorar as lágrimas primeiras.

Adão, apavorado, não tirava os olhos da curva espada ignívoma que alumiava formidavelmente na destra do forte Arcanjo.

O vento, nada de amainar. As franças, num ciclópico torneio, emaranhavam-se ruflalhando. Horríssonos roncos subiam aos espaços e, de momento em momento, passavam em desfilada junto dos dois expulsos quadrúpedes colossais, tontos, assustados, fugindo sem direção pelo meio da treva opaca.

Eva, receosa, chamou para junto de si o companheiro. Adão obedeceu a voz mansa e meiga e, tateando, foi agachar-se ao lado dela com o pavor no coração e os olhos sempre fitos no único ponto claro que existia na treva: a espada rutila do Arcanjo.

Eva, a primeira virgem, pôs-se a falar de Deus e Adão a ouvi-la. Uniram os dois as almas na mesma oração de misericórdia, dobraram os joelhos na pedra escabrosa, balbuciaram e, ao fim da reza, quando esperavam ver embainhar-se no azul a lâmina de fogo, viram-na agitar-se mais terrivelmente e ouviram redobrados rugidos do vento e mais troantes ribombos de águas que se despenhavam.

Deus não perdoava!

Deus era inflexível!

Cheia de arrependimento a mulher desatou em soluços:

— Senhor Deus! Senhor Deus? dizei-nos pela boca do vosso Arcanjo forte, como resgataremos a paz de espírito? Senhor Deus! Meu Senhor! Dizei-nos como pagaremos o nosso pecado? como remiremos nossa culpa tamanha? Dizei-nos, por quem sois, Pai de misericórdia!

Deus não deu resposta à súplica.

Mas Adão, que meditava, com a cabeça enterrada nos joelhos, sentiu subitamente o resvalar de um corpo na folhagem. Ergueu-se.

— Eva, formosa e meiga criatura, atende! Há um consolo para o teu suplício. Deus é surdo aos teus votos, eu, porém, quero provar-te que não vim trazer o mal à natureza. É grande o sofrimento que te oprime, mas a tua dor não é sem cura — há um bálsamo infalível.

Eva, que não via nem podia ver na treva o estranho interlocutor, perguntou a tremer:

— Quem me fala!

O píton, levantando a cabeça achatada, disse carinhosamente;

— Eu, Eva formosa.

— Tu! Ainda tu! exclamou a mulher horrorizada, reconhecendo o réptil que a alucinara.

Sim; ouvi os teus gemidos e dei-me pressa em trazer-te o meu conselho.

E.... qual é ele? perguntou a curiosa.

Une a tua boca à boca do teu homem, deixa que a dele aqueça bem a tua, aspira-lhe o perfume, sorve-lhe o suspiro e aperta-o nos teus braços tanto quanto puderes. Obedece e verás.

E, sibilando, partiu pelos silvados.

Eva, desconfiada, sorriu do conselho e quedou, com o rosto nas mãos, os olhos pensativos, analisando as palavras da serpente: — “Une a tua boca à boca do teu homem”.

E a mulher fraca, picada de volúpia, sentiu o primeiro desejo. Os seios entumeceram-se-lhe e começaram num arfar apressado, os olhos foram-se-lhe a pouco e pouco, amortecendo. A medo, vergonhosa, a virgem primeira estendeu a mão trêmula procurando o homem. Os dedos perderam-se nos cabelos dele. Adão, acariciado, levantou o rosto e a sua boca roçou de leve no punho velutino da ingênua companheira:

— Eva! Eva não respondeu.

Um frêmito sacudiu-lhe o corpo, seus cabelos despenharam-se sobre os ombros do forte e, inconsciente, involuntariamente, vencida por uma força superior, a mulher deixou-se cair nos braços que a esperavam.

Houve um espasmo em toda a brenha trágica. As feras galopantes estacaram e, nenhum berro interrompeu a cavatina do primeiro beijo. Um silvo sulcou o silêncio — foi a voz do píton saudando o amor.

Quando os dois apartaram-se, Eva, que olhara, por acaso, o céu soltou um grito lancinante.

Adão! Adão!

O homem tomou-a carinhosamente.

Olha! e apontou a noite.

No céu, em vez das nuvens plúmbeas, brilhavam milhares de estrelas, a terra resplandecia à luz do plenilúnio e, no cavado rochedo da entrada do Éden, já não flamejava a rutila espada do Arcanjo vigilante.

Saíram para espiar-nos! disse a mulher chorando. São os anjos que nos espiam. É uma nova vingança de Deus.

Atende, meu amor, atende, murmurou Adão. Ouves esta perene música deliciosa? é o Eufrates, é o Gihon, são os rios que nos saúdam. Ouves este suspiro brando e entrecortado? são as bravias feras que se beijam. Olha os ramos em idílio; vê como as flores voam de um para outro galho, repara como tudo anima- se. O segredo de ser igual a Deus tu o tinhas contigo — é o beijo, meu amor. O que não fizeram as preces das nossas almas fez o primeiro beijo.

O homem, então, triunfante e orgulhoso, subiu para a pedra escabrosa e encarou as estrelas e a lua com atrevimento, enquanto a natureza fecunda torcia-se a seus pés nos paroxismos do primeiro gozo.

Eva voluptuosa, lânguida, amolecida pelo amor, escondeu-se entre os cactos olhando uma sombra que abria no pálio luminoso da lua asas negras e enormes de vampiro e fugia sibilando vitoriosamente. Era o píton do pecado que espalhava pela natureza a nova do desabrochamento das primeiras almas.

BUENA-DICHA

— Vamos, dá-me a tua mão, disse-me a pequena cigana que anda agora por aqui, a ler destinos. Dá-me a tua mão, misantropo.

Entreguei-lhe a destra aberta e operei as suas palavras com um sorriso de incredulidade.

Ela pôs-se a falar:

— Hás de viver eternamente triste. Hás de viver eternamente só. Tens um amor que te mata. Tens um veneno na alma: a saudade.

— Adivinhaste, cigana. Adiante.

— Foste feliz em moço: amaste.

— Amei, porém não fui correspondido.

— Tiveste uma mulher que te deu beijos.

— Sim, mas eu dei-lhe muito mais, cigana. Dei-lhe minha alma pura, dei toda a minha vida àqueles olhos falsos, àquele coração sem alma.

— Alma do coração! fez a gitanilla sorrindo. Que vem a ser a alma do coração?

— Não sabes?

— Não.

— E queres ler os destinos? Dize-me, sabes o que é o perfume?

— Sei: é a voz das flores.

— É a alma das flores. A pétala morre, mas o perfume fica na atmosfera embalsamando a natureza. Sabes o que é o azul?

— É o desejado ponto de chegada das nossas tristes almas.

— O azul, cigana, é a alma do Universo, como a nossa alma é o azul deste arcabouço que arrastamos. Sabes o que é a luz?

— É o olhar dos astros.

— É a alma de Deus. Cada estrela e uma hóstia onde se concentra o espírito do Almo. Sabes o que é o amor?

— Sei, é o pecado de Eva.

— É a alma do coração, cigana. E, como o Criador fez o espírito dos nossos primeiros pais apenas com o seu sopro divino, nós fazemos a alma do coração apenas com um aperto de mão, com um sorriso, com um beijo que é o sopro santo que tudo purifica e anima. As estrelas, crê no que te digo, cigana, as menores estrelas, são beijos de anjos cristalizados no azul. Queres ser como a estrela?

— Sim.

— Beija. O beijo, minha filha, é a única música que faz esquecer a lágrima. Quando vires duas bocas unidas espera o som do beijo. O beijo é a voz do coração como o soluço é a voz da agonia. Um coração sem amor e um corpo sem alma. Se não tens amor procura-o, porque só os mortos não amam, e é por isto que se diz que os mortos não têm alma. A alma no corpo só tem um mister, é fazer dia no coração que é um pequeno universo com estrelas, sóis, luas, tempestades e auroras. Vai, antes de mais nada, para que possas compreender a natureza a fundo, ama! O amor é que nos abre a porta da felicidade. Vês como sou triste? é que não amo mais, porque o meu coração está morto. És nova, aceita o meu conselho, cigana. Antes de procurar fortuna a mulher deve procurar o amor. Vai para o amor, cigana, é este o meu conselho.

SÍRINX-O IDEAL

Na terra do mirto verde e dos laranjais doirados, por uma madrugada festival e fresca, o caprípede Pan, deus dos pastores, o primeiro que soprou a avena, o pai dos madrigais, viu entre os juncos a formosa Sírinx.

Viu-se e não teve mais o coração calado.

Entrou a suspirar e a persegui-la, gemendo noite e dia e procurando deter a linda moça fugitiva.

Faunus, vendo-o chorar, riu do seu choro, e os egipãs e os sátiros caprinos seguiram os passos do cornuto amante por entre as moutas de loureiros verdes.

Debalde Pan, o pobre Pan clamava.

Debalde Pan, o pobre Pan gemia.

A moça, conhecedora de todos os meandros, fugia-lhe dos passos.

Só as hamadríadas e as oréadas dos montes saíram a socorrer o namorado triste. Súbito, a formosa fugitiva, desfeita em lágrimas, prestes a ser colhida transformou-se em caniço sussurrante.

Auras que voavam repeliram o derradeiro suspiro de Sírinx.

Pan, desconsolado, fez uma flauta do caniço verde e saiu pela floresta locando a ária sentimental do seu perdido amor.

O poeta é como Pan.

Vive seguindo um sonho e perseguindo-o.

Perde noites e dias vagueando. Nunca se cansa de chamá-lo, nunca! Um dia, enfim, quando pensa tê-lo, esbarra com o lúrido juncal do desengano.

O poeta faz dessa ilusão finada um motivo de canto e de poema e, como o Deus caprino, nunca mais o abandona, deliciando a todos com a sua mágoa ritmada, com a sua lágrima triste posta em música.

E, como Pan, sabe pelos bosques, entre os ciparisos, dizendo a todos a endeixa saudosa do seu amor perdido.

ADÁGIO

Vamos, meu caro amigo. O caminho a seguir é este mesmo. Vai de subida um pouco, mas não custa vencê-lo. Aproveitemos a brisa matinal que sopra. Nada de estações; o sol não tarda e daqui até a casa do cabreiro não há árvore de sombra. Vamos. Deixa a doçaina, deixa a música campestre. Estás a acordar saudades, cego. Vamos! Dá-me a tua mão.

E os dois — o cego e o guia, um cansado, o outro forte; um de cabelos brancos, outro de cabelos negros, formoso, vivace, foram devagar, subindo a encosta, por entre as urzes e os murtais cheirosos.

Vai-se daqui, dizia o velho, a gemer, vai-se daqui... porque já estamos a meio da subida, creio?

Sim; já estamos.

Vai-se daqui, em dois minutos, a umas ruínas onde, no meu tempo de moço, deixei ficar mil lágrimas. Se quisesses levar-me às ruínas, meu amigo! ...

Nada me custa. Vamos!

— O caminho de antes era delicioso. Árvores... Ainda há árvores, Reinaldo?

— Há, porém sem folhas.

— O tempo tosquiou-as. Árvores faziam uma abóbada sombria. Moços vinham apascentar ovelhas e cuidar de amores aqui neste ameníssimo caminho. Eu, muita vez, desviei para este lado os meus quatro borregos. Mas o meu ponto predileto, o meu ponto de estima era mais longe — ao fim, perto das pedras, nas ruínas. Creio que estamos a atravessar o caminho? ...

— Sim, estamos.

— Conheço-o pelos moradores. Esta música constante só aqui. Os pássaros não fogem, parecem aves dos primeiros tempos. Dão-se tão bom com os homens! Dentro em pouco outra música ouviremos. Espera! Espera! ...

— Que sentes!?

Uma carícia no rosto. Anda errante o lábio de veludo da que foi minha amada. Eu sabia, Reinaldo; eu sabia que havia de encontrá-la. Como é macio! como trescala bem! Para! Demora o beijo! Demora-te, peregrino amor, demora-te!

E o cego, em êxtase, agitou as mãos, sacudiu a cabeça, sorrindo à visão da mocidade morta.

Que fazes?

Lubrifico a alma com o aroma sensual de uma boca que passa. Olha! Roça agora os meus cabelos, pousa-me na fronte. Assim! ... Beija! Beija! Bem haja o teu coração, Reinaldo, que me permitiu esta viagem ao passado. Aqui vivi no tempo delicioso do meu primeiro amor. Morreu e anda a beijar-me agora. Reconheceu-me! Alma da minha amada, saiu das flores e anda a beijar-me. Beija! Beija! Beija!

Mas é uma borboleta que te rodeia a cabeça, cego.

É a sua boca. Então pensas, Reinaldo, que esqueci tão depressa o gosto da sua boca? Não! Tu que tens vista dizes que é uma borboleta; eu, que sou cego, sinto que é a sua boca. Vamos! Vamos! Leva-me às ruínas.

Estamos perto.

Apressa-te, apressa-te que eu anseio de desejo! Rápido, Reinaldo. Começo a ouvir as vozes dos solitários. Estamos na tebaida dos gaturamos. Os que se afastam do mundo fazem-se sacerdotes, eremitas do ermo e vem para aqui cantar psalmos à primavera. Ouves? são hinos. Já ouviste, por acaso, música mais deliciosa? Não, confessa. Esta é a melodia dos gaturamos exilados.

Por aqui, por aqui. Vamos mais devagar.

Sim, mais devagar. Mas Reinaldo... que suavíssimo sussurro é este que me chega? Parece que alguém soluça pelos cantos. Vê, vê bem, meu filho... Talvez que uma zagala namorada... Vê, procura.

Não há viva alma.

E este soluço então?

É de um arroio tino que rega esta parte da montanha.

Como! Um arroio aqui!

— Sim.

— Mas no meu tempo de pastor não havia por este lado água corrente.

— Pois o que soluça é a água de um arroio.

— Onde...? Onde? Dá-me a beber dessa água. Quero prová-la. Dá-me!

— Não.

— E por quê, Reinaldo?

— Dizem os pegureiros que a água deste arroio amarga e mata.

— Amarga e mata... Vê, Reinaldo, de onde vem o arroio, vê onde nasce o lio da água.

— Nasce nas pedras negras, perto das ruínas.

— Bem, bem, fujamos. Sei o bastante.

— Que sabes? perguntou o guia abrindo muito os olhos.

— No meu tempo, Reinaldo, não havia este arroio. Não havia... e dizes que ele nasce nas pedras negras?

— Sim.

— Pois a origem deste arroio está comigo — é o meu coração. Estas águas, Reinaldo, são as minhas lágrimas, as minhas lágrimas amargas que se multiplicaram na tristeza das ruínas, irmãs de minha alma. Deixa soluçar o arroio. Não interrompamos o soluço das águas. Vamos!

— E o cego, sorrindo, deu o braço a Reinaldo e, a descer, trêmulo, voltava, de vez em vez, os olhos vazios para os lados das ruínas balbuciando:

— Como as lágrimas cantam! Que doçura de música! Como as lágrimas gemem, como as lágrimas duram! Cantai! Cantai! Que eu, pelo menos, ouça a história da minha tristeza cantada pelo fio perene das minhas lágrimas. E como elas cantam, Reinaldo! Oh! que doce harmonia!

O FOGO SAGRADO

Nem uma fagulha na trípode; do fogo sagrado restava apenas o destroço: um monte de cinzas claras, resto da lenha olorante que alumiara Vesta.

E era tarde. As outras vestais, molemente caídas num comprido leito, envolvidas em clamydulas brancas, dormiam tranquilamente.

Profundo silêncio apenas interrompido, de quando em quando, pelo bater sonoro da lança do legionário que rondava o templo.

Como acender a trípode? Como chamar a luz do sol àquela hora da noite, quando apenas havia no céu, enroladas na escuridão, a lua pálida e as pálidas estrelas?

Que fazer?!

E a triste vestal criminosa desatou a chorar, evocando os deuses, pedindo perdão à Vesta inflexível, a deusa puríssima da castidade.

Os deuses, àquela hora, banqueteavam-se no alto Olimpo ou dormiam embalados pelos sonhos.

Nenhum deles ouviu o lamento da sacerdotisa. Amor, porém, que andava solto, brincando com os corações, passando por acaso, pelo templo, apanhou na brisa as palavras da criminosa.

Voz feminina que ele ouvisse era senha para a entrada em um coração — foi e. tão de manso atravessou as primeiras galerias, que o legionário não lhe ouviu o ruflo da asa.

A moça sacerdotisa gemia incessantemente.

Amor, reconhecendo uma vestal, estremeceu, mas indo fugir a ponta acerba de uma seita do seu carcás acordou uma pomba que dormia sobre uma estrela.

Com o arrulho a criminosa voltou-se e, vendo a seu lado o pequenino deus, nu, com o arco em uma das mãos e um dardo em outra, recuou até junto do altar.

Amor olhou-a muito tempo e, encantado com a beleza, mais em realce na triste feição do rosto, adiantou-se.

A vestal trêmula, as mãos implorativas juntas, ia cair de joelhos, quando o deus pequenino lhe travou do braço.

— Por que choras? Conta-me a sua mágoa.

— Sofro porque tenho medo da morte.

— Medo da morte?

— Sim.

— E por que hás de morrer?

Estava a velar o fogo do templo, a saudade de minha mãe distraiu-me. Esqueci tudo por ela e, quando o meu espírito voltou da sua peregrinação pelo passado vi, com espanto e terror...

— Que se extinguira o lume?

— Sim.

— E que tem isso?

— Oh! se eu ainda tivesse um pouco de sol...

— Mas... que idade tens?

— Dezesseis anos.

— Pois com dezesseis anos há mulher que precise do sol para acender uma trípode? E Amor quebrou todas as suas frechas, arranjou-as na trípode e, aproximando-se da sacerdotisa, disse a sorrir:

— Não quero roubar ao teu namorado o precioso lume. Basta-me um raio só de pupila, um só para incendiar todo este templo, e, delicadamente, cuidadosamente, apanhou um raio ardente do ardente olhar da moça e deixou-o cair no feixe de setas. A chama crepitou vitoriosamente — o templo iluminou-se e Vesta, a puríssima, estremeceu no seu altar de pedra.

— Não há sol mais forte! disse Amor mostrando a chama. Adeus! guarda com mais cuidado este lume que é mais do céu do que os raios de ouro do astro quente. Guarda-o com mais cuidado. Que ele não arda em corações, vestal. E nunca mais hesites, não temas nunca mais: não há sol mais forte do que a luz dos olhos femininos.

E, dizendo estas palavras, desapareceu, deixando a vestal atônita, extática diante do seu olhar que ardia, alumiando, como em uma apoteose, o templo grandioso de Vesta, puríssima.

PASTORAL

Volta do campo. A frente, na planície morna, marcha o bando pacífico de cabras; em seguida os carneiros; e os grandes bois serenos, vão o passo ouvindo e gozando a melodia errante de todas as flautas e de todas as vozes.

Segue-se o grupo dos pastores: um bando gárrulo de moços e de moças — elas, coroadas das primeiras flores; eles trincando os primeiros figos.

Os currais conservam as portas abertas de par em par. Os meninos das casas, nus como semideuses, com ramos de oliveira em punho, giram perto da fonte, cantando e rindo, as mãos dadas, em círculo, formando uma arrecada de cabeças louras.

O sol vai-se também a passo brando, como um louro farto — farto de ter pastado um dia inteiro pela terra e pelo céu.

Aponta a primeira estrela quieta, sem brilho ainda — tímida como uma criança que espera retirar-se o velho para saltar e rir.

Outra surge — e, de repente, como um jogo de balança, quando a concha do sol mergulha, levanta-se a da lua.

O gado recolheu-se. Afinam-se no campo as liras, flautas preludiam rápidos gorjeios. Treine uma voz entre os mirtais. Longe, uma rapariga garganteia. Uma ri, outra fala; bale uma ovelha em torno de um menino, e tudo se harmoniza, e tudo se aviventa, cresce, recresce, avoluma-se. E, de repente, no campo virginal da ingênua Arcádia, rompe um valente concertante alegre.

Não há lecytho — há folhas. Uma moça conduz o cântaro, outra oferece o mel. Provam primeiro os velhos e passa depois à banda juvenil.

Recomeçando a música, duas moçoilas saltam em pleno círculo. Olham, levantam devagar os braços, dobram-se numa curva acrobática de torso, mostram os pequenos pés nervosos e saem dançando triunfalmente, por aqui e por ali como duas abelhas namoradas.

Dançam mais forte ao compasso das palmas das crianças e da grande orquestra pastoril, feita dos instrumentos e das vozes doces.

Essa que mais se lança, essa que mais se agita é Hermia, a dona dos mais belos olhos em toda a região. Um só, Bactylo, teve a ventura de ver aqueles olhos tristes! Tristes aqueles travessos olhos que nunca se anuviaram nem pelo amor, nem pelo ódio.

Nem um só pastor por fora.

Portas fechadas. Andam os egipãs pelos caminhos trocando chufas com as hamadríadas.

Em cada rosa aberta um par de asas fechadas — asas de borboleta, — a flor errante.

Ouve-se a flauta de Pan soluçando o nome de Sírinx no meio do caniçal flexuoso.

Uma orçada, no alto de um outeiro, tece um cesto com filamentos de lua e perfume de flores.

Cotyto morde os beiços estorcendo-se de volúpia, vendo um escaravelho amoroso abrir as asas para cingir um lírio.

Hebe, de flor em flor, espreme no cyatho de diamante o delicado néctar dos deuses.

Há, no murmúrio da natureza, uma solene música misteriosa, espécie de ofego ritmado, mistura de ânsia e gozo, de sensualidade e dor.

Puríssima anacreôntica das árvores! Epopeia noturna da fecundação!

Uma sombra, outra, unidas, muito unidas, descem em direção ao rio. Duas napeias fugindo batem de leve numa parasita e um beija-flor acorda. Acorda e voa estonteado. Hermia passa. Levado pelo perfume das flores da sua cabeça, ele esconde-se, aconchega-se e fica-lhe nos cabelos como se fosse a antiga parasita.

À borda da água Bactylo e Hermia, um ao lado do outro, mudos, encarcerados no pudor, olham-se, mas olhando as sombras reciprocamente. Ela sorri para a Água e a água límpida sorri para ele... e depois retribui o sorriso.

Enquanto a multidão caprípede cabriola num tiroteio de flores com as ninfas a água silenciosa ora parece rir, ora beijar.

Depois? ...

O beija-flor, assustado, levantou o voo para longe e uma náiade apareceu à flor do rio.

Cupido, o vagabundo, encostado a uma laranjeira, ria sacudindo nas mãos todas as flores que coroavam a pastora.

E Bactylo? Bactylo disse-lhe num beijo: — Doravante seremos dois a apascentar. Eu, o rebanho...

— E eu?

E os dois olhos na água olham para Bactylo.

— Tu? ... Vem com o teu amor pela manhã da mocidade, abebera-o na corrente da minha vida, espalha-o pela minha existência como por um prado. Trá-lo à colina do meu coração e deixa-o dormir no aprisco da minha alma, com o balido de teus beijos, sempre! sempre! sempre!

JESUS DE NAZARÉ

Perto da fonte, sob uma abóbada de verdura fresca, Maria, irmã de Marta, a mais delicada e linda moça da Betânia, esperava o nazareno que vinha de longe, por entre alas de loureiro e murta.

O sol morria na extrema do horizonte. Bandos de lavradores, ao lado dos búfalos suarentos, sentados nos varais dos carros vagarosos, cantavam descuidadamente, sob os últimos clarões purpúreos que desciam do azul do céu pacífico.

De espaço a espaço ouvia-se um balido manso surdindo dentre moutas de eloendros, como uma nota perdida do madrigal vespertino. Cabras e carneiros desfilavam. Raparigas morenas, de branco, subiam pela encosta da colina carregando aos ombros ânforas vermelhas.

— Salve, Jesus de Nazaré!

— Salve, Maria! respondeu o Cristo, com um sorriso terno, beijando a fronte imaculada da moça donzela.

E os dois, as mãos unidas, graves, meditativos, subiram pela vereda olente, conversando baixo, nessa linguagem musical, suave, exclusiva dos namorados.

— Em que pensas, Maria?

— Em vós, senhor. E outro não é o motivo da tristeza que enoitece minha alma.

— E de onde vem essa tristeza, filha?

— É que sei de uma mulher, Jesus, uma mulher formosa que se aproxima de vós tão de contínuo que os vossos cheiros confundem-se. Juro, meu bom senhor, que ora ela expande dos cabelos negros o perfume dos óleos que levastes quando daqui saístes. E, se me não engano, pertence-lhe esse que agora tendes, meu Jesus.

— E que mulher é essa que me rouba os teus mimos e enche-te os olhos de água?

— A mais formosa dentre as mais formosas, a morena sedutora, dona dos olhos de veludo, dona da boca debruada a púrpura, dona do vosso amor — a Magdala.

— Filha, disse Jesus, se salvasses da borrasca um pássaro sem ninho, sem abrigo, não terias amor ao pobrezinho?

Maria levantou os olhos para o Cristo e, fitando-o entre lacrimosa e tristonha, respondeu-lhe

— Mas por que razão não a salvastes, meu senhor, sem esquecer-me? Porque pregais o Bem a toda gente e apenas praticais o mal comigo. Por que razão abristes vossos olhos onde fui ler, pela primeira vez, o Cântico dos Cânticos? Antes de ver-vos eu não me afligia, mas se agora vos não vejo desespero. Sois, bem me o diz o coração ansioso, o Messias que minha alma, há tanto, espera. E que maior adoração quereis? Fiz do meu corpo um templo para adorar-vos exclusivamente. Fiz dos meus lábios cythara sonora, círios dos meus dois olhos, dos meus cabelos, ouro para espalhar-vos pela fronte, dos peitos aras perfumadas sempre e, para comungardes, meu Jesus, ofereço-vos a minha boca — o cálix; e, num só beijo, como em uma hóstia, toda a minha alma branca e imaculada. E, se viestes do céu para salvar o mundo, por que também não me salvais, Jesus?

O nazareno repeliu suavemente a virgem e, volvendo os olhos para o céu, balbuciou, pela primeira vez, quase vencido, sem ânimo de voltar-se para ela, trêmulo, sentindo-lhe o hálito perfumoso acariciar-lhe a nuca: — Eli, Eli, lamma sabacthani?

PARA O INVERNO

Estava a expirar o outono — os celeiros regurgitavam. Nos campos rasos, doirados de sol, cantavam, sobre os restos da seara, as cotovias alegres. Nos vinhedos, sobre os varais empampanados, os melros joviais chalravam hilaremente.

Manhãs deliciosas, céu azul, límpido, sereno. Dava gosto sair do leito cedo, antes de nascer o dia, quando a lua mansa branqueava ainda os prados, para ir esperar no monte o primeiro venábulo do sol e o despertar canoro de toda a passarada.

A gente da lavoura começava a tocar para os casais os bois possantes que tiravam os carros de trigo, as abegoarias enchiam-se de charruas e de arados; os que tinham colhido os pendões flavos dos trigais partiam agora de machado ao ombro ou de foice e iam buscar lenha aos montes, porque, à tarde, pela hora do Ângelus, começavam a aparecer, toldando a diafaneidade do céu, cúmulos alvíssimos, boiando no espaço como icebergs suspensos.

A aldeia preparava-se para receber a neve.

Os pássaros tímidos, adivinhando a chegada das noites longas, despediam-se dos ninhos cantando sentidamente madrigais sentidos.

As velhas, conhecedoras do tempo, falavam, com terror, do inverno que vinha, anunciando que não ficaria uma só folha nas árvores e que os montes cobrir-se-iam de gelo e viveriam dentro de uma redoma espessa, até o dia em que aparecessem no campanário a andorinha trissante, núncia da primavera, dando a esperança da fuga do inverno, como outrora a pomba da arca deu a Noé a boa nova do abaixamento das águas do dilúvio. Outras iam aos armários, tiravam a roca e preparavam-na para os insípidos e prolongados serões do inverno.

Um velho octogenário, pobre velho de longos cabelos brancos e alva barba comprida, o tio Anselmo, sorria quando lhe falavam de dezembro e, se alguém dizia que se fosse prevenindo, encostava o queixo no cajado e, sacudindo a cabeça, murmurava:

— Que me previna! Que me previna! ... Previnam-se vocês e deixem-me. E sabia a cantarolar tranquilamente.

Um pastor, passando, uma vez, ao meio dia, junto da cabana do tio Anselmo, encontrou-o entretido, a regar um canto da sua pequenina horta, justamente onde não havia plantas. Era junto à porta da casa.

Tio Anselmo cantava molhando a terra e dois pássaros, talvez os últimos que andavam ainda pela aldeia, despedindo-se dos ninhos, no alto de uma ginjeira cantavam também.

O pastor estacou diante do velho admirado de não ver planta e estar ali a pobre criatura a entornar regadores a ponto de fazer lama.

— Eh! tio Anselmo! Que é que vosmecê está a regar? a sombra da ginjeira?

O velhote levantou a cabecinha branca e fitou longamente o pastor, sorriu, baixou os olhos e continuou a regar, cantarolando sempre. Depois pondo a um canto o regador, disse, esfregando as mãos:

— Estás espantado por que me vês regar um pouco de terra onde não há plantas?

— De certo.

— É para o inverno.

— Para o inverno!?

— Sim. Se eu te dissesse o que tenho aqui plantado! ...

— Diga, tio Anselmo. Diga! insistiu o pastor.

—É um segredo. Se eu te disser dentro em pouco toda a gente da aldeia estará a imitar-me É para o inverno.

— Diga, tio Anselmo.

— Não, não. Tu não guardas segredo.

— Juro! Ninguém saberá.

— Pelo túmulo de tua mãe?

— Pelo túmulo de minha mãe!

— Bem, então ouve cá. E tomou o pastor pela manga do gabão. Sabes que tenho aqui enterrado?

— Não, tio Anselmo.

— Um raio de sol.

O rústico deu um salto para trás, espantado.

— Não te espantes, meu filho. Não sabes que as sementes dão fruto? Nunca viste plantar-se uma videira? Então? Que é o raio de sol senão uma semente da claridade? Quem planta um raio de sol pôde vir a colher dias de calor, muitos dias de calor. Eu, certa manhã, foi em pleno estio, vindo repousar à sombra desta árvore, vi um formoso raio de sol na leira. Estive a brincar com ele muito tempo e, de repente, veio-me à ideia plantá-lo. Sim, plantá-lo para colher, durante o inverno, as luminosas flores. E que melhor lareira, pastor? Quando vocês estiverem tiritando de frio eu estarei aqui, debaixo da minha árvore de luz, alumiado e quente, rodeado de calhandras, de pardais e de toutinegras, porque todos os pássaros imigrarão para o meu jardim, onde haverá sempre um pouco de calor para os pobres. E todos da aldeia hão de vir pedir-me flores de sol e sementes da árvore acalentadora, e eu darei. Aí tens a razão porque estou regando esta terra sem plantas — é que tenho aqui a minha lareira para o inverno. E, tomando o regador, a cantarolar, o velho pôs-se de novo a encharcar a terra.

Inverno! As velhinhas da aldeia tinham dito a verdade — inverno rigoroso!

Os montes cobriram-se de neve, caíram todas as folhas das árvores — à noite ninguém ousava sair ao campo. O vento uivava sinistramente e os lobos, transidos, desciam das serras procurando abrigo junto aos currais onde os rebanhos baliam.

Em todas as cabanas, mal o triste sol afundava, acendiam-se fogueiras, toda a gente cercava a lenha, toda a gente procurava a brasa. Os pastores, não podendo suportar o rigor do frio, fugiam para os casais e, às vezes, no meio da noite, ouvia-se o tilintar do chocalho de alguma ovelha que abandonara o aprisco montesino e procurava, a balir, um canto mais ao abrigo do vento.

Rigoroso inverno! As velhas tinham dito a verdade.

Tio Anselmo desaparecera, ninguém o via — ele que não passava um dia sem visitar todas as casas, sem ir ao presbitério ajoelhar-se diante de Jesus, sem esperar as crianças condutoras de ovelhas que lhe pediam a benção antes da partida para os vales. Tio Anselmo não aparecia.

Uma noite, como perguntassem por ele, o pastor que o encontrara regando a terra sorriu.

— Tio Anselmo! Perguntam por tio Anselmo!? O velho é mais esperto do que qualquer de nós. Enquanto a gente cuida em rachar troncos, em apanhar gravetos durante o dia para fazer as fogueiras da noite, ele já está na sua horta, gozando o calor que lhe dá uma árvore de sol que abre flores de luz.

— Uma árvore de sol! exclamaram todos a um tempo.

— Sim, porque tio Anselmo, em fins do estio, plantou na sua horta um raio de sol que, a esta hora, deve estar crescido e cheio de flores do tamanho de estrelas.

Os camponeses, ouvindo a singular narrativa do pastor, puseram-se de pé, tomaram dos cajados, dizendo em coro:

— Vamos ver a árvore de sol. Vamos vê-la! Um acendeu a lanterna e saíram todos para o campo gelado, tiritando, enquanto a neve diáfana cabia sem bulha, amontoando-se em cômoros brancos.

O grupo corria, precedido pelo pastor que, de quando em quando, alongava os olhares para ver se conseguia avistar a claridade da árvore do velho, e nada ao longe!

Afinal chegaram. Um empurrou a cancelinha da horta e entrou. Tudo em sombras.

O pastor foi direito à leira para onde fez convergir a claridade da lâmpada. No lugar em que o velho plantara o raio de sol havia um monte de neve e, ao lado, estendido, hirto, regelado, tio Anselmo, o triste sonhador da aldeia. A luz não medrara, a semente de sol não conseguira resistir à neve.

Os rústicos estiveram longo tempo a contemplar o velho e voltaram depois correndo, balidos pela granizada, açoitados pelo vento e, junto das fogueiras das cabanas puseram-se a comentar o caso triste.

Alguns zombaram da credulidade do velho; só o pastor, taciturno e tristonho, murmurava:

— Murchou, murchou a flor de sol. Esperança, esperança! ... E quantos morrem como tio Anselmo! A flor de sol murchou. Pobrezinho do velho que morreu de frio! ...

LÁGRIMAS DE NOIVA

Alba, a boa fada protetora das noivas, Alba, que mora na pupila azul das virgens sem pecado, passando, uma manhã, junto de uma camélia, ouviu o seu nome pronunciado por três gotas trêmulas. Aproximou-se e, pousando no coração da flor, perguntou carinhosa:

— Que quereis de mim, gotas brilhantes?

— Que venhas decidir uma questão, disse a primeira.

— Propõe-na.

— Somos três gotas diferentes, oriundas de diversos pontos: queremos que nos digas qual de nós vale mais, qual é a mais pura?

— Pois sim. Fala tu mesma.

E a primeira gota trêmula falou:

— Eu venho das nuvens altas, sou filha dos grandes mares. Nasci no largo oceano antigo e forte. Depois de visitar praias e praias, depois de andar envolta em mil procelas, uma nuvem sorveu-me.

Fui às alturas onde brilha a estrela e, rolando de lá por entre raios, caí na flor em que descanso agora. Eu represento o oceano.

— Agora é a tua vez, gota brilhante; disse a fada à segunda.

— Eu sou o rocio que alimenta os lírios: sou irmã dos luares opalinos, filha das névoas que se desenrolam quando a noite escurece a natureza. Eu represento a madrugada.

— E tu? perguntou Alba à mais pequena.

— Eu nada valho.

— Fala: de onde vens?

— Dos olhos de uma noiva. Fui sorriso, fui crença, fui esperança; mais tarde fui amor. Hoje sou lágrima.

As outras riram da pequena gota. Alba, porém, abrindo as asas, tomou-a consigo e disse:

— Esta é a de mais valor! Esta é a mais pura.

— Mas eu fui oceano!

— E eu fui atmosfera!

— Sim, trêmulas gotas, mas esta foi coração. E desapareceu no azul levando a gota humilde.

FRUTOS DO CÉU

Bem singular, bem triste a história do campônio errante. Nos campos, quando ele aparecia, vinham moços e moças, pequenos e velhinhos ouvi-lo contar a história das estrelas.

A história das estrelas! Pobre campônio errante.

Pelo inverno rigoroso, quando a neve caía, o pequenino idiota saía para os caminhos tiritando e ficava a noite inteira ao vento, colhendo nas mãozinhas os frocos de geada, e, quando lhe perguntavam porque passava as noites fora, à neve e ao vento, respondia tristemente: — Colho estrelas.

Pela primavera o pequeno idiota tinha saudade da neve e então, para consolar-se, punha-se a mirar as trêmulas estrelas e, apontando-as, dizia:

— Aquela pequenina que ali está, no próximo dezembro frio, virá cair na concha dos meus dedos. Aquela outra, a grande, não está em tempo ainda; aquela só para o outro ano. Há muitas verdes, muitas, muitas! Quando vier o outono das estrelas todas amadurecerão.

E, consolado com pensamentos tais, o pequenino idiota adormecia.

A lua era o seu sonho. Ah! se a lua caísse! E o pequeno fitava os olhinhos no astro misterioso, branco como uma bola de neve.

Foi rigoroso o inverno, em janeiro. Morreram carneirinhos na montanha, pastores fugiram para as aldeias, tremendo de frio, com os gabões molhados de nevasca; as árvores ficaram cobertas de carambina e, nos campos, grandes estalagmites de gelo hirtas, hialinas eram como vergônteas de uma flora de cristal fantástica.

O pequeno exultava. Que grande colheita de estrelas ia ele fazer por esse mês inteiro de geada! Que grande e rica colheita! As velhas fiandeiras, durante os serões das noites gemedoras, no interior das cabanas, ao calor das fogueiras, ouviam a voz dolente do idiota e diziam baixinho:

— Lá vai a pobre criancinha para a colheita da neve.

A neve, nessa noite, cabia abundantemente: as colinas estavam cobertas e as águas dos córregos quase cristalizadas. O pequenino batia as palmas de contente e, a um pastor retardatário que descia da montanha regelada, ele disse a sorrir:

— Germano, hoje é a grande noite. Hoje é a grande noite! A lua, vês? a lua está madura e vai cair, Germano. Espera um pouco para veres a lua. E, tiritando, mostrou as mãozinhas roxas, cheias de neve clara.

— Estrelas de hoje, Germano.

O pastor passou adiante e o pequeno ficou para esperar a lua.

Ao nascer da alva, um carreiro, passando pelo caminho escuro dos pinheiros, ouviu gemidos tristes. Parou os bois robustos e pôs-se a procurar a vítima. Andou de canto em canto furando a neve com o cajado até que, depois de grande azáfama, conseguiu descobrir o pequenino idiota quase inteiramente coberto por um cômoro de neve.

Levou-o para uma herdade próxima e, acudindo-lhe com confortativos, aquecendo-o a um fogo de pinho, conseguiu chamá-lo à vida.

O pequenino abriu os olhos doces, sorriu para a caseira que o animava carinhosamente, mas descobrindo o pastor Germano entre a gente da herdade, ergueu-se e agitando as mãozinhas, exclamou:

— Então, Germano! Então, Germano! Que te disse eu? a lua caiu esta noite. Vai vê-la no campo, vai vê-la entre os pinheiros, lá onde me foi achar o carreiro da herdade. Vai vê-la. Mas, de repente, desatando a chorar, pôs-se a dizer baixinho, com o rosto nas mãos: Que há de ser de mim agora! ... Que há de ser de mim! Não há mais frutos no céu... O céu não tem mais frutos!

SOROR FÁBIA

O tribunal monástico ia julgar a pecadora acusada de crime nefando.

Em torno da mesa, freiras, velhas e moças, com os rosários no colo, os capuzes caídos, o rosto baixo, oravam pela criminosa.

Ardiam círios em tocheiros enormes e o sino do convento, de vez em vez, plangente e fúnebre, desferia um melancólico gemido.

O mártir Jesus era o juiz que, do alto do negro cruzeiro, presidia o julgamento.

Soror Fábia, de joelhos, esperava a sentença.

A um canto da sala ardia um braseiro estalidante.

A um tempo as freiras todas persignaram-se houve um ruído sinistro e os rostos pálidos das ascetas voltaram-se para a condenada.

Nem uma palavra, nem um movimento.

A brasa estalava de quando em quando, vermelha e sinistra.

A um gesto da superiora quatro monjas ergueram-se e, dirigindo-se a soror Fábia, em nome de Jesus, fizeram-na sentar-se em um grabato. Tomaram-lhe os pequenos pés brancos e cor de rosa na palma — tomaram-lhe os pequenos pés, enquanto uma velha corria ao braseiro para examinar a espátula candente.

O sino gemia de momento a momento.

— Confesse, soror Fábia! exigiu a superiora. Acusam-na de um ato iníquo, acusam-na de um pecado revoltante. Confesse, soror Fábia!

A vítima sorria.

Uma pancada seca sobre a mesa foi o sinal da superiora. A velha freira tomou a espátula do braseiro e, acocorando-se, encostou-a na palma cor de rosa do pequenino pé da pecadora.

A carne chiou e a espátula, à força da pressão, curvou-se.

A vítima sorria.

— Confesse, soror Fábia! tornou a superiora friamente.

Nem uma palavra; os olhos apenas, fitos no juiz crucificado, pareciam pedir perdão.

A executora aqueceu de novo a espátula e aplicou-a ao outro pé da freira.

As lágrimas saltaram-lhe dos olhos... e a mísera sorria.

— Confesse, soror Fábia!

Um gemido repercutiu na sala baixa e lôbrega, e a freirinha, lavada em pranto, falou soluçando: — O ferro do suplício abrasa, mas ainda é pouco, irmãs religiosas, é muito pouco ainda para obrigar-me a trair o meu segredo. Mais queima um beijo. Um recebi eu, foi em tempos que vão longe! entretanto abrasa-me o coração, abrasa-me ainda a alma esse primeiro e único que recebi na boca. Apesar de queimar com mais intensidade não confessei que o amava, amando-o como a minha melancolia de hoje afirma.

E vós, religiosas, e vós, boas irmãs, exiges que eu o denuncie queimando apenas as plantas dos meus pés a fogo lento. Incendeia-me o coração! Incendeia minha alma que nem assim o sabereis! Nas cinzas do meu corpo não descobrireis o nome do que amo, irmãs.

Nunca descobrireis!

Dizendo estas palavras caiu desfalecida no grabato.

Foi justiçada à noite, à hora da meia noite, nunca, porém, as velhas monjas conseguiram saber quem era o cavaleiro, que, pelo tempo dos luares, vinha cantar amores debaixo da ogiva escura da cela de soror Fábia.

A PÉROLA

Certa manhã Amor, andando a correr os bosques viu, ao primeiro clarão do sol, em branca pétala de magnólia, uma gota de orvalho. Límpida e trêmula a pequenina gota, dentro do seio imáculo da flor, era como um coração sem nódoa de pecado.

Amor, menino e trêfego, colheu a pétala mimosa e outra igual para resguardar a lágrima da aurora dos calores do sol ríspido e ardente.

E foi pelos bosques sem destino, frechando aqui, frechando ali, deixando, como rastro da sua passagem, mágoas nos corações, idílios na alma.

À beira mar parou.

Parou para ouvir o casto e cândido murmurar das águas e o soluço constante das espumas que nasciam nas ondas e que nelas morriam.

E pôs-se a seguir o rumo das gaivotas que se levantavam do mar como espumas aladas.

Depois fechou com uma pétala a outra pétala. Dentro a gota tremia como um coração pulsando.

Amor juntou as pétalas, largou o escrínio nas ondas e quedou vendo-o fugir, boiando à verde flor dos mares mansos.

Anos depois, em praias da Sicília, estando Amor à sombra de um penedo à espera de uma náiade, viu vir boiando à flor dos mares mansos uma concha de alvura incomparável.

Lembrou-se, então, das pétalas da magnólia.

Saltou ao mar, tomou a concha e abriu-a em procura da gota de rocio, mas agasalhada como estava outrora a gota de água Amor, curioso, achou uma mimosa pérola.

Contam navegantes fenícios que, pela primavera, os mares gregos ficavam brancos de pétalas de flor.

Uns atribuíam o fenômeno à intervenção das ninfas, outros ao capricho de Éolo, outros ainda à garridice de Anfitrite.

Um pescador siciliano foi o único que disse a verdade: “Era um menino louro que, pelo tempo das magnólias, corria os campos, ao clarão da alva, colhendo flores para juncar o mar com elas”. “Algum voto a Netuno, concluía o pescador siciliano”.

Só então começaram a aparecer as pérolas.

CRISTO EM CAFARNAUM

— Jesus de Nazaré! gritavam os leprosos.

— Jesus de Nazaré! bradavam os cegos.

E o rabino passava vagaroso.

Aqui um velho trôpego aprumava-se, um cego, de repente, abria os olhos; os leprosos ficavam sem feridas, os aleijados atiravam para longe as muletas inúteis e mais aleijados vinham, tentando caminhar sem os arrimos, bambos, caindo, trêmulos, com um toc-toc de muletas toscas dando de braços e gritando pelo simples Jesus, filho de Deus.

E o rabino sereno estendia a mão benéfica curando.

— Nisto entrou na sinagoga uma pequena de Galaad. Triste, os olhos grandes humilhados, soltos os bastos cabelos, sem sandálias nos pés. Vendo Jesus, o médico divino, foi cair-lhe aos pés chorando e disse:

— Jesus, curai-me por quem sois! Dai-me de novo a paz que já não tenho. Dai-me sossego à alma e alívio ao peito. Vede que desfaleço e acabo lentamente!

E, beijando os pés poentos do piedoso missionário santo, umedecia-os de lágrimas ardentes.

Uma mulher de Samaria, vendo a criança aos pés do nazareno, avançou para ela com os punhos cerrados, feroz e indignada:

— Sai-te, rã dos pântanos! Que moléstia tens tu? Vai-te daqui, danada!

Jesus, porém, meigo, piedoso e bom, impondo a mão à fronte da criança, protegeu-a benigno.

— Deixa-a, samaritano. Ela que me procura é porque tem alguma enfermidade. Deixa-a!

— E, baixando os olhos e enternecendo a voz, perguntou à pequena:

—De que mal sofres, minha filha? Fala.

— Jesus, as noites passo-as sem cerrar os olhos, os dias correm sem que eu ache o riso. Meus tristes olhos veem, em toda parte, uma sombra perseguidora — nas águas das correntes, nos rosais, nas estrelas, na treva e nos luares, durante as noites e durante os dias.

— Tens remorsos, pequena?

— Não, Jesus.

— Então?

— Amo.

O Cristo cravou os olhos no mosaico, conservou-se calado muito tempo, meditou profundamente e, súbito, falando aos que o cercavam, disse:

— Vede, esta criança que eu acaricio, sofre mais do que todos vós, meus filhos.

— É mentira! bradaram.

E a samaritana, arremetendo, perguntou furiosa:

— De que sofres, vadia?

— De amor, disse o calmo Jesus.

E, pensando em Magdalena, balbuciou, fugindo do tumulto:

— O amor... só o amor o salva. Um coração não tem luz própria, recebe a vida de outro coração. Como curar a enfermidade da alma? E depois de pensar: Pequena, vai-te! O remédio que me pedes está na boca do teu namorado. O que não te posso dar: a cura, um beijo, um beijo só, um só, dar-te-á. Vai-te.

E saiu pensativo, aclamado e seguido pela multidão curada.

EDELWEISS

Tácita brancura! Luto níveo do inverno!

Hiálico sudário extenso envolve a planície inteira. Tremem no espelho frio as sombras hirtas dos esqueletos das árvores.

Neve por toda parte!

As águas cantantes dos regatos, as gotas perenais das fontes foram petrificadas. De rumores só o zunido do vento e o trino do granizo estalidante.

De quando em quando um corvo corta a musselina da garoa e some-se. O horizonte aproxima-se.

Nem um pastor! Os casais, embuçados no gelo, espreitam como enormes ursos brancos. Os flocos, caindo sempre, vão formando pirâmides. Infinita solidão alva, sinistra e muda estende-se, alonga-se, regeladíssima sempre!

Nesse isolamento frio subsiste uma flor — a edelweiss da steppe. A neve cai constantemente, zimbra e rufla a ventania e ela vive, viçosa sempre, pequenina e forte na infinita tristeza da invernia.

Como esse deserto nu e devastado tenho o meu coração constantemente.

As tristes desilusões enchem-no todo, melancolias apertam-no transindo-o, mágoas pesadas matam-lhe as esperanças — nem uma só de pé — restam apenas os desenganos, esqueletos de antigos ideais.

O que ainda o anima, o que lhe empresta algum conforto é o teu amor, que é como a edelweiss dos gelos, vivo, eterno! na tristeza hibernal do meu coração magoado.

PRISIONEIRO

Coração! Triste prisioneiro eterno! Vive constantemente a bater de encontro às paredes do cárcere que o encerra sem conseguir, jamais, uma saída. Dia e noite trabalha. Prestando atenção ouvimos continuamente o ruído da faina do galé, continuamente ouvimo-lo gemer e não nos comovemos, e não nos apiedamos.

Uma luz alumia o cárcere trevoso — é a alma, candeia sempre acesa, atirada a um canto da prisão para alumiá-la e aquecê-la.

Às vezes, pelos olhos, como por dois postigos, entram raios de sol e o prisioneiro trabalha com mais ânimo, aquecido pela luz vibrante e lépida.

Levamo-lo conosco a toda parte: ele é que nos regula a marcha, ele é que nos determina tudo — o cárcere obedece ao encarcerado.

Dentro do funesto asilo, acocorado a um canto do corpo — essa ignomínia — o coração, como Sílvio Pelico, compõe as suas saudades, aproveitando todas as melancolias e todas as amarguras. A obra da Humanidade é quase toda devida ao triste prisioneiro. Ele é o Prometeu da matéria: um abutre, o amor, lacera-o de instante a instante e é do sangue que escorre das suas feridas que têm surgido as aparições meigas como Cordélia, mansas como Imogênia, lânguidas como Julieta, loucas, sentimentais como essa harmonia dolente, ninfa depois de morta, depois de morta deusa — Ofélia, a vítima encantadora da paixão, extinta sem o batismo purificador do beijo.

Entremos vagarosamente no cárcere.

Ali, ao canto, o galé trabalha. Mais devagar! Não o interrompamos. Parece que nada tem feito, parece que ainda não conseguiu vencer um ponto, entretanto há um acervo enorme junto dele. Quanta destruição! Quanta coisa inutilizada! Nem era possível que ele, batendo, há tanto tempo, não conseguisse fazer alguma ruína.

Há ali saudades, esperanças quebradas, ilusões e ilusões em mil pedaços. Quanto amor destruído e que quantidade de crenças incineradas. E ele continua a bater. O cárcere resiste, a luta aumenta — é que a sentinela, no alto do torreão onde o pensamento habita, não tem tempo de embargar a entrada a tudo. A agonia, a dolorosa agonia que espreita o prisioneiro, desce como um lacrau e morde-o covardemente.

O mísero, sentindo-se ferido, geme e todo o cárcere atroa o seu gemido e para fugir ao venenoso inimigo, redobra de esforço, exaure-se e, ás vezes, fica banhado em copioso suor, Tão copioso que quase sempre rebenta pelos olhos.

A agonia sobe quando um raio de luz mais forte invade o cárcere. O triste descansa então, parece que se recolhe um momento enquanto a alma visita a enxovia secando, com o seu calor, a humidade da lágrima.

Outras vezes, porém, está o desgraçado no seu trabalho eterno e alguém canta em torno do cárcere. O emparedado escuta, deixa um instante de pensar na evasão, entrega-se todo à música, dá-se inteiramente à cavalina. É o amor que passa, é o amor que o visita.

Agora, por exemplo, como o galé humilha-se, como se achega à muralha da prisão, como procura a alma para alumiar a cova. Encolhido como está parece Caliban na brenha, entretanto alguém que se aproxime dele, alguém que o ouça... Ariel, o aéreo, não cantava com mais doçura. A música que passa é a serenata do amor — é o que lhe dá vida, é o que lhe dá força. Outro prisioneiro conversa da sua jaula com ele. Falam-se, a princípio rapidamente; aproximando-se, estreitam a amizade e ficam, como este agora, que não pode trabalhar na sua célula sem ouvir o ruído do trabalho do outro.

Este levíssimo som que vibra ainda parece uma nota de cítara — é a descida da refeição no beijo; foi um beijo que desceu para levar alimento à vítima. Como o forçado anima-se, como se fortifica!

Não há perdão para ele. Foi lavrada a sua sentença: eterna carceragem. Perguntarão: “Como pode viver o desgraçado preso na cafurna infecta do corpo?” Vive sonhando, sonhando com o seu ideal, e é por isto que procura fugir, e é por isto que bate dia e noite, incessantemente, desesperadamente nas fortes paredes do corpo, procurando abrir passagem para alcançar o seu sonho.

Mas não consegue. Em alguns o mineiro preso cava profundamente na sensibilidade, em outros bate apenas sem conseguir arredar um ponto das muralhas.

Quando a fadiga o vence, o mísero deita-se no seu leito de saudade e recorda o passado escuro, o triste passado de ânsias e de desesperos, na ferrugínea prisão onde vermina a melancolia.

Na hora da desesperança, já sem ânimo de continuar, recolhe-se, suspende o trabalho e, súbito, com um sopro forte, apaga a lâmpada da enxovia: a alma, e deita-se, para todo o sempre, no seu cárcere-túmulo, livre da mágoa, livre do amor, descansado, enfim, da alucinação torturante do ideal.

A SENTENÇA

Amur, chefe de um bando de beduínos, teve notícia por um dos camaradas, de que Ibrahim, seu filho, conquistara a beijos Valinda, a favorita.

Amur, ciumento e cruel, guardou-se para tirar vingança dos traidores e, uma noite, como parassem junto das pirâmides, na areia morna e fofa de Gizé, Amur chamou à sua presença os dois culpados.

Resplandecia no céu claro o pálido crescente, o cheiro da mandrágora excitava e, ao clarão vermelho dos archotes fumarentos, reluziam as compridas lanças dos cavaleiros do deserto, fincadas junto às lendas.

Valinda, a ismaelita, aproximou-se do sheik humilde e triste, o rosto baixo, os olhos lacrimosos, sem sandálias nos pés, um véu no rosto, os cabelos rolando pelos ombros.

Ibrahim, o traidor, trazido por seis árabes possantes, apareceu depois.

Amur fumava, esticado voluptuosamente sobre um pelo de leopardo — um nômade, de alfanje nu entre os braços cruzados, fazia sentinela, enquanto uma mourisca impúbere picava indolente uma mandora.

A gente da caravana reuniu-se toda em círculo em torno do chefe. Os criminosos estacaram. A mandora deixou fugir a nota derradeira.

— Ibrahim, falou Amur, erguendo-se sobre o cotovelo, deu-me Alá a tua vida e eu não quero desfazer-me do presente do Muito Alto. Tu, aproveitando-te da noite e dos teus anos, assaltaste a boca da mulher que amo. Quero, contudo, ser clemente e perdoo-te....

Valinda estremeceu. O chefe continuou:

— Perdoo-te, mas condeno-te a seres o carrasco da traidora. Divide-a com o meu alfanje em duas partes. Toma uma para ti, a parte que me roubaste, dá-me a outra, a que me cabe de direito.

E cuidado! Vê bem! Em duas partes bem iguais.

E ofereceu ao moço o seu rútilo alfanje.

Ibrahim avançou e, recebendo a curva lâmina das mãos do chefe, disse sereno e altivo:

— Queres que divida Valinda em duas partes? Seja! Nota, porém, que nós, diante do astro que brilha no alto azul, juramos ser fiéis eternamente. Eu e Valinda não somos mais que um ser. São dois os nossos corações, porém o nosso amor é um. Eu vivo dentro dela, ela dentro de mim. Mas já que exiges a divisão, cumpra-se a tua vontade.

E, arrancando da cinta de cachemira o iatagã marchetado, ergueu bem alto o braço forte e, à claridade da lua, viram todos o ferro enterrar-se lhe no peito.

Vacilou e, dobrando os joelhos, foi cair sobre o pelo de leopardo, junto ao pai espavorido soltando, ao cerrar os olhos, estas palavras finais:

— Aqui tens a parte de Valinda que te pertence, pai. Lego-te a minha.

E, com mão ensanguentada, incerta e trêmula, mostrou ao pai e à tribo a ismaelita morena.

O ESPELHO DE BRIGANTIUM

— Hospitaleira gente de Brigantium, quero perpetuar o meu reconhecimento para que a todo tempo saibam os deuses imortais e os homens passageiros saibam. Assim falou Hércules, o forte, construindo junto do mar queixoso uma torre de pedra monumental. No alto, o vencedor heroico de Lebreu, colocou, com o próprio punho, um espelho maravilhoso.

Liburnas que velejavam longe, refletiam-se no aço fulgurante.

Triremes que fugiam pelas águas remotas apareciam milagrosamente no prodigioso espelho. Os habitantes da cidade tinham sempre, perto dos olhos, os seus queridos que andavam ao sabor traiçoeiro do oceano — velas pandas ao vento, remos compridos na água, fugindo pelas ondas pérfidas.

Namoradas iam, pelas manhãs serenas, consolar os olhos e sufocar saudades vendo os namorados que andavam muitas milhas afastados. Mães sorriam vendo os filhos à proa, com os olhos voltados para o lado da terra natal, pensativos; criancinhas batiam as palmas reconhecendo os pais entre os marujos. E tudo o espelho de Hércules mostrava.

E sempre os de Brigantium tinham diante dos saudosos olhos os queridos do coração por mais longe que fossem!

Assim eu, minha flor! Longe, por mais longe que estejas, minha alma reflete a tua imagem suave, o teu formoso rosto, o teu sorriso cândido.

E, todo o meu coração com saudades e amor, crenças e melancolias, rejubila revendo-te, querida, como essa gente da cidade antiga alegrava-se vendo os seus marujos viageiros estampados no espelho que lhe dera Alcide.

A alma é o espelho, a saudade é a sombra — sombra dos queridos, sombra dos desejados que nela se refletem — quer a distância os separe, quer os separem túmulos.

Nunca estás longe de mim, doce amor, estás sempre comigo, vejo-te sempre em minha alma ... sempre! sempre! sempre!

ZAHURI

Longe os montes verdes e silencioso, claro, fugindo por entre os sobreiros, o rio manso onde os ginetes, mergulhados até o ventre, bebem à guarda de uma turma de escravos.

Distante, reluzindo ao sol ardente, Granada, — a mourisca, entoa pela boca dos muezins a oração meridiana ao deus das fortes tribos da gente cor de sândalo.

A voz passa de minarete a minarete e, no acampamento, embainhando as largas e curvas cimitarras, fincando as lanças na terra, os mouros tiram os turbantes e prostram-se de bruços, rezando, enquanto o Amir, à porta da tenda de purpura, solene, os braços cruzados no largo peito, cabeça nua, firme, olha a formosa cidade longínqua com o olhar fixo, sereno e duro das águias quando fitam o sol.

Súbito uma voz estrugindo no campo quebra o encanto místico do exército anestesiado pela oração: Zahuri! Zahuri!

Os guerreiros debruçados levantam apenas o rosto da terra e espiam.

Um velho, estatelado no campo, entre as tendas, entre as lanças, olha estupidamente os meninos mouros que o cercam, gritando:

— Zahuri! Zahuri!

Para qualquer lado que se volte encontra um impertinente que lhe brada, aos saltos:

— Zahuri!

O Amir olha algum tempo, depois, sem mover um passo, faz sinal aos pequenos e o velho é imediatamente agarrado e conduzido à presença do chefe.

Aparenta idade de patriarca, o mísero.

Descem-lhe pelo peito magro e queimado longas barbas amarelas; os cabelos, cheios de erva e de espinhos — porque ele anda, quase sempre, a errar entre as urzes dos montes — dão-lhe uma feição leonina à cabeça, mas os olhos irrequietos, vermelhos, desorbitados, enormes, reluzem estranhamento nas órbitas como fogueiras ardendo à entrada de furnas.

— Zahuri! diz imperativamente o chefe, tu que tens a faculdade de ver através da terra e através do céu; tu que te sentas à borda dos túmulos e vês a carne desfazer-se no fundo da terra como eu vejo os peixes passarem nas águas límpidas; tu que vês no coração da pedra o diamante; tu que és mais poderoso em vista do que as águias valentes que olham do espaço e descobrem a presa nos vales, Zahuri, em nome de Alá, segue-me! Preciso dos teus olhos prodigiosos.

O velho, sem dizer palavra, curva a cabeça e caminha e é o próprio Amir quem afasta o bissus pesado das cortinas para que ele passe.

Interior menos guerreiro que voluptuoso. Enredam-se em sanefas, circulando a tenda, a cachemira, a púrpura e o damasco. Armas de apurado lavor, mais de mimo que de combate, aos feixes, em panóplias, reluzem por toda parte. Flores, em vasos de bronze bizantino, abrem corolas rubras — outras, pequenas, espalham um perfume ativo. Incensórios enfumaçam de aroma o harém e, uma gazela familiar, com o dorso coberto por um pano de seda e ouro, de pé, a um canto, mira-se namoradamente no aço polido de um escudo.

Por aqui quadros de amor, instrumentos mouriscos dispersos por ali: canas de flautas, arrabil, mandoras, o repábil do chefe, adufes engrinaldados e mandolinas de ébano e de sândalo; estandartes muçulmanos e no centro preso por um nastro de seda, o crescente de prata cravejado de pedras.

Em altos tapetes de felpa macia rubros, cor de laranja, alvíssimos, as mulheres do Amir, sentadas em grupos de três e quatro, na mais bizarra combinação de cores de pantalonas fofas e de corpetes, todas envoltas em musselinas, sequins em torçais pelos cabelos, numa indolência preguiçosa e mole de meio dia, gazilam e excitam um pequeno pássaro solto que voa, aos gritos, raivoso, pulando de colo em colo, de ombro em ombro. Uma escrava, quase adormecida, guarda nos lábios o bocal de âmbar de um tubo de narguilé; outra, com os braços por baixo da cabeça, esticada em uma pele de leopardo, coberta por um burnú árabe, canta, com voz sumida, uma canção de serralho. Uma pálida, de longos cabelos negros, ajoelhada sobre um tamborete, chora, beijando, de vez em vez, um crucifixo de marfim que segura fervorosamente a mãos ambas.

O Amir para e chama:

— Zahuri! O velho, sempre de cabeça baixa, aproxima-se arrastando os pés descalços. As mulheres, surpreendidas, voltam-se, caladas.

Guardam, porém, as mesmas atitudes branca lacrimosa e a que tem na boca o fino tubo de âmbar.

— Zahuri, esta mulher pertence-me, diz o Amir, designando a moça dos longos cabelos negros. Guardo-a comigo há muitas luas, creio, porém, que à proporção que o meu amor aumenta o seu desprezo recrudesce. Ela tem outro amor. Quero que lhe vejas o coração e a alma. Pede-me depois o prêmio que quiseres. Examina, Zahuri!

A moça, vendo o esfarrapado velho adiantaram-se para o seu lado, põe-se de pé de um salto, mas encontrando diante os olhos as duas pilas vermelhas do vidente prodigioso, recua espavorida, exclamando:

— Um Zahuri! Um Zahuri, meu Deus!

— Sim, afirma o chefe, um Zahuri. Já que não me quiseste dizer a verdade, embora eu, pela primeira vez, encostasse o joelho em terra; já que não te venceu o carinho, a fina argúcia da vista do Zahuri descobrirá, dentro do teu coração, o amor que faz com que recuses o meu. E, voltando-se solenemente para o velho, ordena:

— Vê!

Quase de rojo o mísero aproxima-se da favorita, antes, porém, que lhe toque no corpo ela mesma, corajosamente, rebenta os alamares do colete, depois as pérolas da camisa de seda, põe a nu o colo e os peitos alvos, coroados por dois botões de rosa, núncios da primavera sensualíssima da carne, e avança exclamando:

— Vê, Zahuri! Endemoninhado, vê!

E os seus pequeninos dedos nervosos desfazem a seda, o ouro, a caxemira —veste-lhe apenas as espáduas brancas o véu de filigrana ebenica dos cabelos.

As outras mulheres tremem de horror — menos a do tubo de âmbar que dorme embriagada, apertando o bico dos peitos, mordendo os lábios e soltando, de vez em vez, suspiros dentre sorrisos.

O velho calca a vista no peito da orgulhosa cativa e demora-se a examinar detidamente.

O Amir não tira os olhos do seu rosto estudando-lhe as contrações.

— Então, Zahuri?

— O coração, senhor. Vejo-lhe o coração.

— Não basta. Mergulha a vista, sonda; deve haver alguma coisa dentro dele.

— O Zahuri fixa de novo os olhos penetrantes e, depois de longo exame, banhado em suor, ergue a cabeça e diz:

— O coração, senhor.

— Que mais?

—Mais nada.

O Amir carrega o sobrolho e, desembainhando o yatagan de larga lâmina, torna:

— Zahuri, atenta bem!

De novo o velho crava a vista no peito da donzela, detêm-se, mas desanimado, recua meneando a cabeça.

— Que viste?

— O coração, senhor. Somente o coração...

— E a alma?

— A alma! exclama o miserável atônito. A alma!? não vemos, senhor. A alma é o Deus do corpo e Deus não se vê. Nós, Zahuris, nunca vimos a alma; nenhum de nós, senhor. Se quiserdes, posso mostrar-vos as minas subterrâneas onde o ouro refulge, posso dizer-vos que se passa em Altair, a estrela gêmea do sol... mas a alma! Nós, Zahuris, não podemos ver. Nós não vemos a alma.

— Mas eu ordeno. Vê! E escolhe: a fortuna ou... e o yatagan de larga lâmina esplende como um corisco.

Calmo conserva-se o velho e sem resposta. Com os dedos trêmulos abre os farrapos da camisa, tira o albornoz dos ombros, junta as mãos, ergue os olhos e, curvo, balbuciando, arrastando os pés, encaminha-se para o Amir.

— A alma não nos é dado ver, senhor. Nós, Zahuris, nunca vimos a alma. Não posso ver ... meus olhos não têm força. Feri! aqui me tendes. Feri! Mas ficai certo, senhor, do que vos digo: Zahuri algum viu jamais o Deus do corpo. Vê-se o coração como se vê a colmeia, mas as abelhas, Amir, ninguém as vê... elas trabalham misteriosamente.

O chefe encara desconfiado o velho, aperta o yatagan nos dedos e, apontando a saída, expulsa-o com um gesto.

— Seja o Senhor convosco, amir, diz o Zahuri inclinando-se. Muito honroso seria para mim qualquer serviço que vos pudesse prestar, mas... a alma nenhum Zahuri viu ainda. Nós não podemos ver a alma — é o mistério do coração. E desaparece arrastando os pés incertos.

Nesse instante a moça, avançando para o Amir, diz arrogantemente:

— Amir, nem mesmo que a vista dos Zahuris pudesse descobrir o segredo mais íntimo do meu coração, minha alma, esse que daqui saiu, nunca descobriria.

— E por quê? pergunta furioso o chefe.

— Porque está longe, com outra alma, no coração do que eu amo.

E, correndo a cortina da tenda, mostra Granada ao longe, clara ao sol, rutilante de cores, com os minaretes das mesquitas relampejando à luz.

O BATISMO

Espinhos das ásperas montanhas, topos e pedregais dos caminhos silvestres iam-lhes tomando, aos poucos, os vestidos.

Quase nus, os pés em sangue, os cabelos crescidos, ora dormindo à luz das estrelas, nos altos cimos frios, ora invadindo as cavernas molhadas-ela encolhida, a rezar no fundo do abrigo escuro; ele, de ronda fora, atento aos rumores da floresta e ao farfalho das folhas, na expectativa sempre de uma luta bravia com a fera, dona da úmida caverna.

Andavam errantes, fugindo à vingança de um fidalgo austero, simplesmente porque ela era a primogênita da nobre e ele apenas trovador.

Fugiam porque os corações pecaram, amando-se. O que lhes dava algum alívio nas horas de maior tristeza era o sorriso da criança, que, ora a mãe levava ao colo, agarrada ao seio, ora o pai acariciava muito chegada ao coração.

Nessa jornada amorosa, através dos desertos não batidos, viviam como bárbaros, nutrindo-se de frutos, menos a criancinha, para essa sempre havia leite.

Certa noite parando em estéril monte a mãe desventurada notou que o filho estremecia. Pressentimento trágico agitou-a.

— Depressa, Alcindor. Água! Água, meu amor, que o pequenino morre!

— Água! exclamou o trovador atônito, correndo olhares ansiosos por todo o escalvado monte.

— Sim! Depressa! Depressa... para batizá-lo!

A criancinha agonizava à luz dos círios pálidos do céu.

Alcindor desceu o monte aos saltos e ganhou a floresta da aba, em demanda de rio ou uma fonte onde apanhasse um poucochinho de água.

Pobre Alcindor!

Não havia na floresta um veio! Em toda a redondeza nem sinal de arroio!

Meia hora depois o trovador errante voltou com uma folha verde, vagaroso, passo a passo, para não perder o precioso achado:

— Edwiges, aqui tens. Toda a água que encontrei na selva: duas gotas de orvalho numa folha.

— É tarde, Alcindor! O pequenino foi-se!

— Sem batismo! pagão!?

— Descansa! batizei-o. Tu não achaste fonte na floresta, eu achei-a bem perto. Olha, molhei-o todo.

— E onde descobriste a fonte, amor?

— No coração: batizei-o com lágrimas.

O MINEIRO

Trilhando a estrada úmida, através dos campos silenciosos, vai caminho da furna o trabalhador das minas. A neve polvilha-lhe a cabeça, o vento regeladíssimo do inverno crispa-lhe as carnes e ele canta, ativa os passos, cada vez mais apressado, julgando, a todo instante, ouvir a sineta chamando ao ponto os operários.

Homens de lavoura passam por ele calmos, tranquilos, embrulhados em gabões pesados; meninos de pastoreio, bocejando alto, olham-no e seguem indiferentes, entre pequenas ovelhas friorentas.

À volta de um caminho cerrado, dando de chofre em pleno campo, o mineiro levanta os olhos — lá está adiante, sinistramente negra, a casa das máquinas, apinhada de gente, como uma colmeia humana.

Chega esbaforido e apresenta-se ao chefe da turma para que lhe registre o nome. Da porta lança um derradeiro olhar para o dia que nasce, aspira a plenos pulmões o ar puríssimo da madrugada e, ao tinir da sineta, corre e entra na jaula que o deve deixar no abismo tenebroso onde o carvão germina.

Em baixo, na umidade escura, salta, vê fugir o elevador como um esquife vazio e vai pelas galerias dentro até o ponto onde os wagons estacionam e as picaretas, encostadas no sílex, esperam pelo braço dos trabalhadores.

Treva caótica — apenas a claridade da lâmpada risca um raio de ouro nas paredes da cripta.

O homem curva-se, levanta a picareta e cava, ouvindo o silvo do grisú e o rangido dos carros que vão e vêm empurrados pelos apanhadores.

Cantarola, trabalha e, à luz que lhe escorre da lâmpada, presa à cabeça, o mineiro enterrado descobre o veio oculto e cava-o, fá-lo saltar à flor da terra; cava de novo e sempre até a hora em que a sineta longínqua toca anunciando o fim do trabalho e a ascensão para a luz.

Como os mineiros os poetas descem aos profundos abismos do sentimento — vão ao coração descobrir o veio luminoso dos amores castos, entram na alma e extraem-lhe os segredos das paixões sagradas, visitam todas as dores e todos os sorrisos, colhem o beijo e a lágrima; e ascendem ao paraíso dentro da fantasia — extraordinário elevador do espírito — com esta lâmpada cabeça — o gênio.

A CEGONHA

Os leões de pelo de ouro, às vezes, na hora quente do meio dia, param nas ruínas, agacham-se algum tempo, espojam-se e, ao cair da tarde, partem sacudindo a cauda, babando a areia; os crocodilos saem da água, arrastam-se um momento por entre os capitéis caídos e mergulham depois. Ela sozinha atura a infinita tristeza.

Foram-se todos os deuses, todos os crentes, os sacerdotes todos, e a cegonha solitária ficou trepada nos escombros, entre os memnons e as esfinges de pedra, piando ao sol, piando à lua.

Às vezes, um beduíno para e descansa entre os cardos, tocando mandolina ou guzla. A música desperta a cegonha. A ave triste abre o voo no espaço quente e foge para um sítio abandonado.

O árabe demora-se pouco — o tempo apenas de refrescar o corpo no fio triste da água que serpenteia por entre as pedras, silenciosamente, dando a beber aos chacais e aos íbis melancólicos — pobre lágrima perene das ruínas.

Ao anoitecer fala ao dromedário, traça o albornoz e parte a galope, cantando, pelo baldio e morno mar de areia solta.

Então a cegonha volta, batendo as asas e procura o seu isolamento; encolhe-se, guarda uma pata e finca o olhar tristonho no poente em fogo.

E o eremitério taciturno obumbra-se. De vez em vez a esfinge, varada pelo vento, guincha pavorosamente.

Meu coração é como essas ruínas.

Foi um templo festivo outrora. Deusa eras tu o teu amor o sacerdote que dia e noite oficiava; teus olhos duas lâmpadas acesas, teus beijos a música suavíssima que acompanhava os psalmos dos meus beijos.

Desapareceste — todo o templo caiu.

Hoje o meu coração é uma imensa ruína. A saudade, como a triste cegonha, pia dia e noite nos destroços. Às vezes uma lembrança ocorre-me e minha alma, como a esfinge batida pelo simum, soluça no deserto sem raias do meu isolamento.

De longe em longe uma mulher visita estas ruínas, acha-as, porém, tão desoladas que pouco se demora. A saudade foge por um breve instante. Mas à noite, quando me recolho solitário, a cegonha volta a piar tão tristemente que chego a pensar que é minha alma que chora, sem lembrar-me que a saudade não morre, que ela é a cegonha que fica em todos os desmoronamentos do coração para relembrar a felicidade morta.