Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

A Bico de Pena, de Coelho Neto


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

Lavradores

O amigo urso

Um sábio

Fantasia de inverno

O paradoxo contemporâneo

Balões

Divagando

Um simples

Away!

Decadência

D. João de Maraña

Reabilitação

A sorte

A nova raça

Palpites

Romance triste

O galo

As árvores

Urbano Duarte

Ciúme

O passado

Nas águas do mar

Um convento flutuante

A morte do estadista

Sim e nâo

Um modelo de marido

Emanuel

Luar

Arte

O poeta

A direção do balão

Apologia

Palavras de um stegomyia

Burro ou cão?

Manoel Victorino

O violino

Vigília

Ressurreição

Valentim Magalhães

O Ney

O peixe

Um audaz

A propósito de festas

A árvore

A glória

LAVRADORES

Entre as sábias máximas dos etruscos, esses criadores da riqueza do campo latino, máximas que Plínio, muito, judiciosamente, apelidou “oracula”, uma das mais concisas devia ser escrita em tábuas que fossem levantadas em altos postes fincados nas encruzilhadas, nos férteis outeiros, entre as plantações, impondo-se como um preceito a todos os agricultores que, de passagem, de manhã, em rumo dos talhões, à tarde recolhendo à casa, vissem e meditassem as suas singelas palavras: “Mau é o lavrador que compra aquilo que a terra lhe pode dar”.

Esses povos de tanta rusticidade, quase bárbaros, dedicando-se exclusivamente à terra com um amor avaro, vendo num torrão uma riqueza, numa semente de trigo ou de linho o pão ou fio, considerando o alqueire como a melhor fortuna, esposando a leira pela qual viriam sacrificando aos deuses para que lhes não faltassem com a rega fecunda nem lhes demorassem nos canteiros as geadas esterilizadoras, gozando deliciosamente o suave aroma dos fenos cortados, alegrando-se com o lourejar da seara ondulante, extasiando-se com o fresco cantar das regas ao mugir melancólico dos gados, ao zumbir dos enxames, tinham noções exatas da verdadeira economia e da ciência fácil e tão pouco praticada do bem viver. “Mau é o lavrador que compra aquilo que a terra lhe pode dar”.

Assim tiravam eles da terra o barro e as ripas com que edificavam a casa e modelavam o forno, a lenha que queimavam, o trigo que amassavam e cozinhavam, o linho que as mulheres fiavam e com que teciam os vestidos e a lençaria doméstica, a fruta, o azeite e o vinho.

Nos pastos engordavam o armentio que lhes fornecia os bois robustos que, ao doce cerrar das tardes, lentamente, pelos caminhos cheirosos, levavam o pesado carro das colheitas, a vaca de ubres pojados, a rês para o corte e a ovelha que se despia da lã para vesti-los.

A água era bebedouro no remanso e, correndo, escachoava na azenha de onde saía repartindo-se em acéquias que iam abeberar as raízes e, isolados nos seus casais, tinham os lavradores todo o necessário para a vida e das sobras abundantes faziam comércio levando-as às feiras periódicas.

A terra não se recusa a criar a semente qualquer que ela seja: prometa uma árvore frondosa ou seja o simples gérmen de um arbusto; o seu seio acolhedor é uma grande maternidade — ali acham abrigo favorável todas as plantas: a seiva que alimenta o jequitibá não deixa inanida a relva, circula de um a outra distribuindo-se igualmente.

Uma das causas da decadência do nosso lavrador é a sua mania rotineira da monocultura. A propósito dessa contumácia intransigente já houve quem declarasse que a nossa desgraça era o café. Toda a confiança do lavrador funda-se nessa cultura: o café é o senhor absoluto da terra, só ele tem o direito de vida, só as suas flores trescalam, só a sua folhagem, que já cingiu a coroa, é bela — por ele veio o negro da África, por ele vem o colono da Europa.

As máquinas, que se instalam nas fazendas, são para beneficiar o café, os ladrilhos que entram vão dilatar os terreiros, o adubo que se caldeia vai para o cafezal, o melhor gado trabalha nos eitos, a gente mais robusta é para lá destacada — ali fuzilam as melhores enxadas, a melhor água corre para os tanques de lavagem e, como para que lhe não saia das vistas o precioso grão, o fazendeiro aconchega ao domicílio a casa das máquinas e as tulhas, para que sempre ouça o frêmito das Lidgerwood, para que sempre veja o enxame de cascas voando dos ventiladores, para que sempre tenha, a acariciar-lhe o olfato, o cheiro acre das sementes novas.

Se há moinho para triturar o milho é um pobre casebre esquecido num fundo de grota, se há paiol é uma ruinaria — só o café tem agasalho digno em tábuas lisas, sob telhados, entre muros fortes. Se alguém, mostrando uma faixa de terra, lembra ao lavrador a vantagem de uma plantação de cereais ou de cana ou indica uma baixada úmida como excelente vargedo para um arrozal, ele sorri superiormente declarando: “Não vale a pena, isso é quitanda: o café dá para tudo”. O resultado é que não há residência mais desprovida que a do fazendeiro — ele compra os cereais para a despensa, a carne, o toucinho, o fubá e o milho e a forragem para os animais.

Entretanto, no quintalejo do colono europeu, viceja a horta sempre fresca da rega, o milho apendoa-se, enfeixam-se touceiras de cana, sobem verdes latadas de vinha e de gordas abóboras, verdeja em estendal a rama da batata, o feijoal espiraladamente enfestoa as hastes dos milhos e ainda no chiqueiro grunhe o cevado, cuincham os bacorinhos, a cabra lá está de peitos rijos, ruminando e na casa, pendente das cordas, defumando-se, os salpicões, o chouriço, o lardo e a um canto, em largas vasilhas, a carne em salga.

A previdência do campônio europeu que vem da miséria, tão bem descrita por Michelet, tendo de realizar prodígios de trabalho para fecundar vageiros e sáfaros terrenos erriçados de pedregulho, colhendo uns galões de vinho, que não bebe, umas medidas de trigo, que não come, umas estrigas de linho, que não veste, porque tudo é para o mercado ficando-lhe apenas a broa e o cânhamo de que se nutre e com que se cobre, sempre a pensar nos invernos, guardando avaramente todo o ramalho que encontra, aproveitando todas as migalhas, deve ser um exemplo para o lavrador brasileiro.

Posto que, com a fertilidade da terra e a amenidade do clima o colono vá, aos poucos, relaxando ainda assim com a ideia fixa de tornar à pátria levando o necessário para viver regaladamente no seu campo natal, trabalha e acumula, passando sobriamente porque, pelo hábito e ainda pela ambição, o melhor da colheita e da criação desce ao mercado mais próximo quando não é vendido ao próprio fazendeiro.

E o preço do café mantém-se miserável, mal dá para o custeio da fazenda, e o plantador, sem recursos num mar de abundância, com os terreiros cobertos, as tulhas atestadas e ainda os galhos vergados de fruto, sai a procurar capitais para acudir, às necessidades da lavoura: ao salário do colono, à provisão da despensa e, como sempre viveu em fortuna, sem preocupação de miséria, não se retrai — mantém, como de antes, a mesa farta, os quartos de hóspedes preparados, veste a família com esplendor, confiado na alta do precioso produto, certo de que, com um simples movimento na praça, resgatará o seu compromisso hipotecário, saldará os seus débitos particulares, ficando-lhe ainda capital bastante para abastecer a casa e beneficiar a terra no ano próximo de compensadora carga, lindamente anunciada pela florescência.

Infelizmente, porém, a sua ilusão desfaz-se e os dias correm. Vai-se-lhe a última nota e só, diante do cofre aberto e vazio, o grande senhor rural compreende a sua miséria e, com as folhas que arranca ao bloco do anúncio, vão-se-lhe as esperanças.

E que sucede? O colono, submisso e risonho enquanto recebe regularmente a féria, toma-se altivo e hostil à falta de um pagamento. O fazendeiro, sitiado pelos seus próprios homens, vendo aproximar-se o dia do vencimento da letra fatal, esmorece; o café baixa a mais e mais, as notícias do comissário são desesperadoras — que fazer? Lá fora, na colônia, o administrador procura, debalde, convencer os trabalhadores a voltarem ao serviço — negam-se, exigem o pagamento imediato, ameaçam com o cônsul, com o ministro, alguns mesmo falam no rei e logo, ingratamente, rompem referências despeitadas à miséria da terra, à inclemência do sol, à aspereza dos outeiros; lamentam as fadigas, as privações; referem-se a moléstias imaginárias, arrependidos de haver deixado a pátria, linda e rica, com as suas vinhas e os seus trigais cor de ouro. E o fazendeiro, emparedado, sem esperança de salvação, vê, com terror, chegar a data tremenda.

Lá fora o cafezal murmulha com o vento, jorram as águas soltas pelos canais, o gado muge disperso e na casa, a portas fechadas, a família reunida despede-se, chorando, daquelas veneradas paredes que foram levantadas pelos avós, daquelas terras amadas, para recomeçar a vida, onde? No desconhecido, aventurosamente, miseravelmente e com o humilde vexame dos decaídos.

Os otimistas dirão que exagero e eu lhes respondo que traio a verdade para não a mostrar tão desoladora como se me apresenta. Não sou, porém, do número dos desesperados, dos que veem perdido o campo, dos que não confiam na terra, não: há um mal que tende a desaparecer porque vai sendo substituído por um bem — o mal é o lavrador por herança, o que entrou na vida pela porta doirada, o que não conheceu o trabalho e foi sempre um mimoso da Sorte, o que achou a árvore carregada, tendo apenas o trabalho de estender a mão e colher.

Criado na abastança, entre negros humildes, vendo-se obedecido em todos os caprichos; senhor de homens, teve uma grande e espantada surpresa, só comparável à que teria um pastor que visse, de repente, tresmalhar todo o seu rebanho, quando, a 13 de maio, os negros, deixando os ferros, saíram para a estrada livre, ansiosos de liberdade.

Sem expediente, só, diante do vasto domínio, como num ermo mal assombrado, o fazendeiro julgou-se perdido. Ouvindo, porém, falar em colonos, tratou de adquiri-los. Despachou emissários para contratá-los por qualquer preço, contanto que não se perdesse a colheita nem o mato subisse sufocando a lavoura. E os colonos chegaram, a fazenda perdeu a sua antiga feição feudal — o sistema modificou-se radicalmente, passando o senhor a patrão: o ato humilhante da compra foi substituído pelo compromisso recíproco do contrato.

Esse foi o primeiro golpe no fazendeiro antigo ou, dizendo melhor — foi a morte do velho regime de trabalho. O pagamento das primeiras férias foi feito com uma mal contida indignação — aqueles que acudiam à chamada com as suas cadernetas eram como ladrões que assaltavam. Essa mesma revolta cessou e o fazendeiro julgou-se, de novo, feliz quando viu chegar o primeiro carro da safra a transbordar pelos caminhos o café em bagas purpurinas.

A terra, essa continuava submissa e fecunda, bela e fiel escrava! e, confiado nela, o fazendeiro, à primeira dificuldade, sem energia para vencê-la, sem ânimo para afrontá-la e não podendo privar-se dos gozos habituais — o seu descanso, a mesa lauta, o seu verão nas praias, o seu inverno na cidade, faustosamente instalado, confiando a fazenda ao administrador, recorria ao empréstimo, prendia-se à hipoteca e, dessa hora em diante, enlaçado pela constritor, lá foi indo para a miséria, aos arrancos, torturado, ansiado, até a hora dolorosa do abandono da casa.

Para salvar a lavoura aí está o fazendeiro novo, tipo perfeito do homem de ação, inteligente e enérgico, empreendedor e ativo. Esse não fica na varanda molemente estendido no pliant ou na rede, ouvindo o cantarolar guaiado das lavadeiras no riacho e o zumbir monótono das abelhas errantes. — Cedo está de pé, pronto para sair, a cavalo ou de trole, e lá vai, ao ar fino da manhã, rompendo as névoas que se desenrolam, fiscalizar o trabalho. Caminha pelos torrões que o arado levanta ou pela terra fofa que espera a sementeira, olha, examina, indaga; entra no cafezal, dirige a carpa ou anima a colheita, lança uma vista de olhos ao gado no pasto, sobe ao moinho e, sem maior atenção à poeirada loura que se desprende da mó, toma o fubá entre os dedos, experimenta-o; corrige uma falta, ativa um serviço, atende a uma reclamação, despacha um próprio e ei-lo na casa das máquinas atento à pesagem, depois nas tulhas e já o veem a correr à estrebaria examinando as baias para que não falte a ração aos animais e para junto ao chiqueiro, chega ao paiol, percorre a abegoaria, vendo como interessado, não confiando no administrador que é apenas um intermediário entre ele e os colonos.

Se, pelo céu, se vão arrumando nuvens de chuva e há café nos terreiros, ele é o primeiro a lançar mão do rodo dando o exemplo para que se ajunte e recolha e, à noite, na sala vasta, enquanto a esposa acalenta o pimpolho, debruçado sobre um livro, cercado de jornais e revistas, lê, anota observações sobre a terra, respigando o que lhe convém, aqui, ali: uma máquina útil, uma sementeira rica, um novo adubo, certo processo de enxertia e, ao primeiro bocejo, levanta-se, abre uma janela, respira largamente o ar puro da noite, sentindo em torno a terra viva e forte, tratada carinhosamente como um animal de raça, fecundando, florindo, frutificando ao esplêndido luar silencioso.

Dirão sorrindo: “Mas não há vida mais material, Deus do céu!” Não há vida melhor nem há vida mais calma.

Que falem os errantes, esses que palmilham, sem destino, as estradas que antes pisavam como senhores e que agora vão trilhando como banidos. Essa é a vida feliz do lavrador inteligente para o qual a crise é apenas um acidente e não um descalabro.

Saiba o lavrador aproveitar a terra e o elemento novo que a fecunda e a lavoura, no Brasil, será, em pouco, uma das mais prósperas e compensadoras do mundo — para isso, porém, é necessário que não fique simplesmente nessa ilusão do café porque a agricultura não se limita nem se pode limitar a uma produção única. O país do vinho é o país do azeite, é o país do pão, é o país do linho e é o país da fruta; da nossa agricultura pode, e com razão, dizer-se que dá apenas para encher uma xícara porque, em verdade, toda ela se reduz ao café, ao sul, e ao assucar (açúcar), ao norte.

O AMIGO URSO

Lorsqu’on voit deux grands peuples se faire une guerre longue et opiniâtre, c’est souvent une mauvaise politique de penser qu’on peut demeurer spectateur tranquile; car celui des deux peuples qui est le vainqueur entreprend d’abord de nouvelles guerres, et une nation de soldats va combattre contre des peuples qui ne sont que citoyens (Montesquieu).

Mestre urso, senhor de toda a parte da montanha que olhava para o Norte, fez constar aos seus vizinhos do sul que resolvera e jurara, à fé inquebrantável de urso, não permitir que pisassem a montanha, senão como hóspedes, quaisquer animais de outras regiões ainda que lhe fosse preciso, para manter a independência daquelas altitudes, deixar a última felpa nas garras do estrangeiro porque entendia que Deus criara aquela eminência maravilhosa para os animais que nela haviam nascido. Logo que foi conhecida a resolução do urso poderoso reuniram-se todos os animais da vizinhança e, em festa estrondosa, proclamaram a nobreza e a valentia do senhor do Norte que ousava lançar ao mundo tão atrevido cartel.

Pouco tempo depois um dos animais, cuja toca (que tinha a forma perfeita de um tonel e por tal lhe chamavam — a cuba —) fora descoberta por um caçador do ultramar que a cercara convenientemente para garantir-lhe a posse e manter em obediência o morador, resolveu revoltar-se contra as contínuas vexações e pôs-se a roer o cercado pondo abaixo o tapigo. Veio, porém, o caçador e o animal, posto que fraco, não mostrou arrecear-se do inimigo e esperou-o de frente, com audácia tão grande, que mais parecia loucura.

Lutavam os dois quando o urso, que espiava de longe, lambendo as grandes patas, notou que o cansaço e as muitas feridas, pelas quais escorria o sangue de ambos, ia-os enfraquecendo; sorriu, então, e levantou-se descendo vagarosamente para os lados da toca onde o caçador e o animal brigavam com desespero.

Ficou à espreita e, num dado momento, levou sorrateiramente para o lugar do combate uma malga de leite e lá a deixou, recolhendo a pata.

Sucedeu o que era de esperar — o caçador, que não dera pelo urso e muito menos pela sua traça, no furor da peleja, deu com o pé na malga e lá se foi o leite.

Levantou-se a fera aos urros protestando contra a afronta; o caçador quis ainda provar-lhe que não vira a malga, escondida, como estava, entre as ervas do campo, mas o urso a nada atendeu e, vendo o adversário arquejante, vermelho de sangue, com as roupas em frangalhos, entendeu que a ocasião era excelente para cair-lhe em cima e, assim pensando, logo executou.

O caçador, que era brioso, apesar de reconhecer a grande superioridade do antagonista inesperado, não desertou a liça; travaram-se. Mas, que podia fazer o desgraçado, já esgotado e consumido por um longo combater, contra aquele que vinha, fresco e bem nutrido, dos alcantis da montanha? Foi subjugado e teve de abandonar o campo onde o urso logo espichou o corpo a pretexto de descansar um bocado.

Os animais vizinhos alvoroçaram-se de alegria vendo que o urso cumpria a promessa que fizera, só o da cuba não via com bons olhos aquele corpanzil imenso estirado ali, logo à entrada da sua moradia, tirando-lhe o ar e a luz. Foi então que resolveu falar, primeiro para agradecer-lhe o socorro, depois para pedir que lhe deixasse livre o terreno.

Ouviu o urso a reclamação lambendo vagarosamente as patas, ao fim disse: “Meu amigo, se eu aqui não viesse tu ainda estarias a lutar com o caçador. Para livrar-te dele sacrifiquei uma malga de leite e tu não levas em conta o meu prejuízo. Queres que me vá embora e se o caçador tornar? Não, deixa-me ficar por aqui e dá-me alguma coisa porque estou com fome”. E, dizendo assim, espichou-se mais diante da cuba como um senhor na varanda da sua casa.

Entraram, porém, os vizinhos a murmurar contra aquela ocupação: “Afinal, que lucrava o animal? Passar de um senhor a outro; isso pouco valia e, se o urso não se intrometesse na luta, talvez que o animal já se houvesse libertado do caçador que o mantinha sob o seu domínio, não porque dele tirasse proventos, que só despesas lhe dava, mas por amor próprio e hábito”. O urso não andava bem e, crescendo as murmurações, resolveu a fera arredar-se da cuba, antes, porém, de partir, chamou o animal e disse-lhe: “Eu parto, volto à minha montanha mas fico de lá com os olhos em ti; não te movas, não vás longe — não quero histórias com vizinhos nem negócios sem o meu consentimento. O mundo está cheio de perfídias e tu és ainda inexperiente. Eu cuido de ti, descansa”; e foi-se. Lá trepou à montanha e, deitado, tem os olhos no animalejo que vai e vem timidamente como o ratinho que o gato deixa em liberdade mas que lhe sente o peso bruto das patas e os ferrões das presas se vai a entrar no buraco ou se se aproxima de alguma fresta.

Um dia o guanaco, que vivia em litígio com o tapir por causa de uma nesga de terra, estava a pensar nas suas finanças desbaratadas, quando avistou; mestre urso no viso da montanha. O guanaco, que não é covarde mas que é prudente, desconfiou daquela visita e pôs-se em guarda; o urso, porém, sorrindo, chamou-o com um aceno da pata pedindo que chegasse à fala porque tinha a dizer-lhe grandes coisas, coisas de alto interesse. O guanaco foi indo, vagaroso e matreiro, e, como havia um fundo abismo na montanha, deixou-se ficar à margem, pedindo ao urso que falasse. E o urso disse:

— Amigo guanaco, eu sei que andas muito preocupado com essa questão de terras que o teimoso do tapir insiste em afirmar que são dele. Não sei se são, sei que tens os olhos nelas porque te convém e como eu simpatizo contigo, que és um excelente guanaco, venho dar-te um conselho. Tu não podes entrar em contenda com o tapir que, apesar de andar entresilhado, é ainda animal de alguma força; há um meio, porém, e magnífico, de arranjarmos isso: os meus ursinhos são muito expansivos, nem há no mundo animais tão expansivos como eles e, como a borracha é também expansiva, eles andam com a mania da borracha. Pois bem, a pretexto de expansão, eu organizo uma companhia que arrendará as ditas terras litigiosas. Depois de arrendadas e habitadas pelos ursos, tu lavas as patas e eu fico à espera. É natural que o tapir invoque os seus direitos, silve, dê saltos; não te importes — eu estou lá em cima para o que der e vier. Se a coisa for por diante — o que não é provável porque eu conheço o tapir: aquilo é só parola e guincho — eu descerei dos meus alcandores e procurarei acalmar a questão mostrando que os meus ursos empataram grossos cabedais na empresa e que não os podem perder. Demos que o tapir se enfune e queira reagir — contra um guanaco um tapir é um tapir, mas que é um tapir quando lhe surge pela frente um urso? Pensa e resolve, mas não digas que falaste comigo. Eu volto para o cimo da montanha e lá fico às tuas ordens. Adeus; respeitos à senhora. E bambo, lá se foi mestre urso sorrindo, muito contente com a sua ideia. Mestre guanaco desceu para os seus campos pensando na proposta generosa do vizinho quando, detendo-se à margem de uma clara fonte, ouviu uma voz que o chamava:

— Guanaco amigo. Guanaco levantou a cabeça e deu com um grande e alteroso condor pousado no píncaro de um penedo.

— Que queres de mim, irmão condor?

— Ouvi toda a conversa que tiveste com o vizinho da outra banda e venho dar-te um conselho: não te fies no urso. O que ele te propôs, a título de benefício, é uma traição e não queiras servir de porta à ganância insaciável desse animal que, por muito jurar, já não nos merece confiança. O que ele quer é meter uma cunha nos domínios que nos pertencem para depois, facilmente, separá-los e absorvê-los. Juntos poderemos resistir à sua ambição desmedida; ai! de nós, porém, se ele conseguir colocar nas terras que nos pertencem um só urso — no dia seguinte os campos que percorres, os alcantis, em que tenho o meu ninho, serão fojos de feras e nós não teremos terras nem águas, tudo será do urso que lá tem cativo, preso por uma corrente à sua penha, o animal que ele pretendeu libertar das mãos do caçador. Se o tapir não tem razão vamos chamá-lo à razão mas com calma e estou certo de que ele virá; não queiras porém que, mais tarde, quando a montanha despejar sobre os nossos vales e campos a avalanche ambiciosa, os nossos irmãos bradem contra o traidor que franqueou as terras livres ao invasor insaciável. Diz o urso que a montanha é dos montanheses, mas, acautela-te, guanaco: palavras de urso não aproveitam a guanacos. Lembra-te da fábula do leão... Hoje será a companhia estabelecida nas terras litigiosas, amanhã serão os teus terrenos, depois os meus, depois os dos nossos irmãos e ele ficará senhor da montanha e nós seremos escravos vis dentro da pátria que pretendes trair. Eu falo como condor: vejo longe. Lá da altura passeio os olhares pela terra e sei o que nela se faz. Se queres o cativeiro deixa entrar o urso. Ouviu o guanaco e ficou a pensar mirando-se na corrente e mirava-se quando do alto o urso, que espreitava, rugiu:

— Então, guanaco amigo? Vai ou não vai? E o condor, que levantava o voo, bradou do espaço:

— Olha o trust do território... Olha o trust da montanha, amigo guanaco. Não abras a fenda à cunha da perfídia. Cuidado! Foi-se e o urso, lambendo as patas, ficou a olhar o guanaco, que pensava:

— Então, amigo guanaco?

— Espera um instante, amigo urso.

UM SÁBIO

Foi em meados de março de 1883, numa triste, lutuosa noite de quaresma, que cheguei a S. Paulo.

As ruas estavam apinhadas de povo que esperava, com ânsia devota, a passagem de uma procissão. A espaços, dobravam sinos plangentes e mulheres, sob negros biocos, passavam à pressa, surdamente, como sombras que deslizassem.

O carro, depois de fazer grandes voltas lentas, deixou-me à porta do Hotel da Boa Vista, na esquina da ladeira do Porto Geral. Os hóspedes desse casarão taciturno eram, quase todos, estudantes e, escusado é dizer que me fizeram as honras da casa, não como os árabes costumam acolher nas tendas àqueles que os procuram, mas como os galos antigos dos poleiros recebem os frangos novos.

Não me demorei muito tempo no salão onde o agudo Erico, de mãos para as costas, os óculos brilhando no nariz afiado, ia e vinha criticando, com furor, aquela “miséria moral” — toda uma população abalada pelo fanatismo, a entupir as ruas, pondo no ar puro um fartum insuportável de suor e de banha. Não, o Estado devia intervir energicamente opondo-se àquelas cenas ridículas e impróprias de uma cidade civilizada. Outro acadêmico, esguio e louro, saiu em defesa da religião e do seu ritual, demonstrando que era uma necessidade esse culto externo. Erico fitou o adversário e fulminou-o com um dito violento que provocou uma verdadeira conflagração.

Alguém, rompendo, então, o grupo, lembrou-se de pedir a minha opinião. “Sim, concordaram todos que fale o calouro! ...” Eu tremi e teria, certamente, de sofrer a pena ridícula que me impunham se o Erico não houvesse anunciado sisudamente: “Lá vai a procissão, senhores. Vamos ver as pequenas”. E o bando de hereges abalou, deixando-me naquela sala imensa e obscura a ouvir os tristes sons da marcha fúnebre que lá ia. Recolhi ao meu quarto com a minha saudade.

No dia seguinte, cedo, o Erico, que era meu vizinho, bateu à minha porta, chamando-me: “ó amigo, é sol nado; venha contemplar o grande Buda ebúrneo!”.

Não compreendi aquelas palavras misteriosas, mas saí e o Erico, muito grave, levou-me pelo corredor, em silêncio, até à sala. Ali, fazendo-me chegar a uma das janelas, disse, mostrando-me a casa fronteira:

— Vê você esse pardieiro fechado? é o templo de Buda, o grande Sabedor, o Sete Chaves, o Homo Sapiens. O vulgo ignaro chama-lhe Justino, o conselheiro Justino. Celibatário e civilista, esse homem conhece todas as leis, menos as naturais — é assim que detesta a mulher e o vinho, a música e as flores, a retórica e a salada de pepinos. Vive ali com os livros como S. Jerônimo vivia em Belém. E, fitando-me com aqueles olhos, agudos como estiletes: Conheces S. Jerônimo? Pensas, talvez, que é o marido de Santa Bárbara, porque aparecem sempre nas invocações? Não, criatura serôdia, essa aliança é iníqua — o santo nunca quis saber desse sexo comprometedor e se escreveu à Paula não passou disso. Mas, deixemos as divagações — olha, espera o Buda e, se tens relógio, acerta-o pela sua saída: nove e meia, nem mais, nem menos um segundo.

Efetivamente eu olhava quando vi sair da casa indicada um homem amarelo, magro, seco e rijo, de preto; os mesmos óculos que, de longe, lhe escaveiravam o rosto como duas órbitas fundas e vazias, eram escuros.

Grave, sem olhar para o nosso lado, seguiu com um bamboleio de corvo, dobrou a esquina e lá foi. Viste? Pois, meu amigo, escreve no teu diário, se anotas a tua vida, este grande acontecimento. Esse homem sombrio, que parece um inquisidor, é o grande, o incomparável Justino, mais sábio que Hermes, mais virtuoso que S. Antônio, mais seco da alma do que um arenque defumado. É lente; um dos mais respeitados da academia pelo seu grande saber. As suas preleções são verdadeiras derrubadas de bibliotecas. Se um novo cataclismo fizesse desaparecer o mundo e tudo que nele existe, esse homem, recolhido a uma arca, quando as águas baixassem, recomporia toda a ciência do Direito, desde as leis mais profundas até à mais reles chicana.

Erico, o fecundo Erico, que, pela sua grande força de generalização, não conseguira sair do curso anexo onde era considerado o “ancestral maior”, deu uma volta pela sala, chuchando um dente, e tornou ponderoso, resumindo numa expressão, já usada por Esquines com relação a Demóstenes, toda a sua admiração pelo civilista: “é um monstro!” Mas, vê tu, continuou com intimidade, espalmando a mão no meu ombro: é um rochedo, não produz uma linha, não tem um conceito, ninguém lhe atribui uma frase. E explicou: o homem é como a planta. Queres esterilizar uma árvore? Aduba-a em demasia; cresce-lhe basta ramagem, multiplicam-se-lhe as folhas, mas as flores rareiam e quase nunca vem o fruto.

O grande acúmulo de ciência mata as fontes da imaginação e da crítica, quase que estou em dizer que a ignorância é preferível. Um homem como aquele vale por uma congregação e, que deixa? A memória rápida de uma vida, nada mais. Toda a gente afirma que tem um grande talento e eu afirmo com toda a gente, mas afirmo por afirmar, porque do talento desse homem vejo apenas os livros, às centenas, muito bem arrumados nas imensas estantes. É um carregador de ideias, um estivador de pensamentos: transporta-os dos compêndios, dos tratados, para as memórias dos alunos. Ou melhor: é uma alfândega, entende você? Uma alfândega onde os autores estrangeiros descarregam as suas mercadorias e onde os jovens estudantes as vão buscar. É isso! Não, a ciência não é a esterilidade. Sábio não é simplesmente o que estuda, o que armazena, entesoira — é o que produz. O que ele é, em verdade, é um excelente método, isto sim, um método de vida e de estudo: honra e memória, ascetismo e rijeza.

O Erico deixou-me apressado ao ouvir tinir a campainha que anunciava o almoço mas, a meio do caminho, voltou dizendo-me: olha, é verdade — hoje não há aula mas o homem, para não transigir com o hábito, lá vai a um passeio de uma hora, certamente fazendo uma preleção erudita, à meia voz, para os botões da sua sobrecasaca. Vem almoçar, são horas.

O Justino que eu vi nessa memorável manhã de quaresma, encontrei, dez anos depois, uma tarde, à porta de um ourives da rua Quinze de Novembro — muito grave, de preto, óculos escuros, o cabelo muito empastado e luzente, a tez macilenta, cor de velho marfim. Vendo-o, passou-me rapidamente pela imaginação esse tipo tão fielmente retratado pelo incomparável Queiroz na Correspondência de Fradique Mendes — o conselheiro Pacheco, o do imenso talento. Não julguem, porém, os admiradores do grande mestre, em cujo rol me inscrevo, que eu seja capaz de medir o seu alto valor moral pelo estalão do Pacheco, da sátira, não — o que eu analiso é o tipo físico, é aquele vulto severo e ríspido do homem de negro, metódico, reservado, taciturno. O saber de Justino lampejava nas suas preleções e, se ele não deixou, em corpo perfeito, uma obra que leve o seu nome mais longe do que o levará a memória ingrata dos homens, aí estão as suas apostilas que serviram a quase todos os que legislam para o país, como clarões passageiros do seu espírito mas, não sei porque, acho que o grande Pacheco devia ser como o finado Justino e, na assembleia, espetando o dedo para confundir com uma frase forte a oposição rumorosa, devia ter aquela mesma grave figura que dava, nas aulas, ao grande mestre o ar divino e ornithoide (ornitoídio) de um Thot venerável silvando ciência do alto de um poleiro, com o bico muito curvado e as negras azas encolhidas e imóveis.

Ninguém o respeitou mais do que eu e, quando foi imposta a sua jubilação, provocada por um assomo irrefletido e injusto da mocidade, a minha pena, que sempre foi fiel aos moços, traiu-os nesse dia bandeando-se para o mestre porque do seu lado, sobre estar a Razão, estava também a tradição do prestígio do velho convento. E agora venho trazer veneradamente ao seu túmulo o meu preito de antigo aluno e de admirador do grande estudioso, do enérgico disciplinador e do homem exemplar que viveu moralmente fechado num programa rígido e seco, só comparável à velha casa em que acabou e que, no meio das construções modernas da cidade, parecia um protesto forte do passado, último remanescente ferrenho do arcaísmo, achatado entre as construções esbeltas do presente.

Como a casa, era o homem que Deus tenha.

FANTASIA DE INVERNO

Vento gelado, gélido vento amaina o teu furor, já que traiçoeiramente conseguiste penetrar em meu coração, que és tu que por lá andas: bem sinto o teu frio, bem ouço os teus gemidos. Ai! de mim... És tu mesmo que andas a desfolhar as minhas últimas ilusões e a crestar as verdes folhas das minhas últimas esperanças.

Como se contrai um mal de morte à beira da água azul de uma lagoa tranquila, admirando um nenúfar aberto, assim eu ganhei a melancolia que me transe olhando o límpido céu de inverno abotoado no pálido e triste plenilúnio.

Fazia frio, um frio navalhante e eu, esquecido, extasiado naquela serenidade, deixei-me ficar à janela enamorado da noite e foi, então, que me invadiste, como invades e varejas uma ruína fendida em mil abertas e taliscas e agora, no meu coração, gemes e regelas, vento gelado, gélido vento que andavas errando à luz do luar. Meu pobre coração! Quando, outrora, me falavam em vales floridos, em colinas marchetadas de margaridas e rosas, em campos palhetados de botões de ouro, em vivas águas recobertas de açucenas brancas, eu sorria superiormente como sorriria um deus a quem um mortal narrasse aventuras mesquinhas... é que eu tinha o meu coração, mais rico em flores, em toda a flor, do que os jardins maravilhosos de Viviana e agora... ai! de mim só há despojos e como poderiam resistir as flores meigas ao vento de inverno que traiçoeiramente penetrou em meu coração onde sempre havia a doce, a tépida temperatura de uma primavera ideal?!

Meus sonhos, que será feito de vós? Como andam no ar noturno, em torvelinhos fantásticos, folhas e flores orfanadas, assim andais nas lufadas do vento gélido.

Amanhã o sol tornará ao céu — eu mesmo o verei seguir, rompendo as névoas como um noivo preguiçoso que abre vagarosamente o cortinado e, preguiçosamente, deixa o seu leito nupcial, eu o verei surgir e verei a terra revestir-se de luz e, florida e contente, louvá-lo pela boca harmoniosa dos seus pássaros. Acompanharei, com olhares invejosos, a corrida sonora dos límpidos regatos, ouvirei as cantilenas dos campônios e, talvez, sinta o calor benéfico do sol que reanima mas... chegará o sol ao meu coração? Sim, é natural que chegue — ele não é da raça dos homens que só atendem aos que a Fortuna acerca, as mesmas ruínas vêm-no chegar, o pântano recena-se com ele, as cavernas recebem-no no íntimo, é para todos e para tudo que a sua luz rebrilha mas... será também para os corações? Diz-me o alma que não.

Ai! de mim... como poderei viver com tal inverno gelado?

Lua, lua perversa, pálido fantasma, foste tu que assim sacrificaste a minha vida — quiseste um companheiro que, parecendo vivo, não fosse mais que um cadáver e encantaste o meu coração, reduzindo todos os sonhos que nele havia a verdadeiros e melancólicos espectros.

Foste tu, foi o teu hálito, ou melhor, foi a exalação do teu corpo nevado, lívida e funérea lua, que transformou um campo de flores em campo de neve. E se vier o degelo que pranto copioso inundará meus olhos, que dilúvio transbordará de mim... para conter tantos sonhos e tantos amores é preciso que o meu coração seja do tamanho do mundo.

Quem me mandou a mim contemplar luares em maio, ao frio? Quem me mandou a mim fazer vigília a defuntos?

Bem fazem os indiferentes que, embora apareças, com a linda cor com que a morte irônica te enfeita, fecham as janelas e entregam-se aos travesseiros — esses estão livres do assombramento, mas eu, curioso, lá me deixei ficar a olhar-te e tu...

Daí... quem sabe! Talvez não sejas tu a culpada, lua merencória, porque, em verdade, quando eu te fitava, meu pensamento estava em outra face, mais linda do que a tua, mas também fria e indiferente...

Quem sabe se não foi a tristeza desse pensamento que me pôs no coração tamanha melancolia? Se foi... aqueles olhos doces, com um só olhar, desfarão a tristeza... Desfariam, devo eu dizer, desfariam-se, um breve instante, se volvessem para o meu rosto mas... são tão frios, tão frios que...

Ai! de mim... o inverno passará depressa, o verão tornará risonho mas no meu coração nunca mais, nunca mais haverá sol de estio nem flores da primavera.

Noite, eu também ando a carregar um astro morto: o teu, matou-o o tempo, o meu, matou-o o amor.

O PARADOXO CONTEMPORÂNEO

Sobre a nudez forte da Verdade o manto diáfano da Fantasia (Eça de Queiroz).

Não há esperança — tudo é verdura. Nunca a terra se mostrou assim próspera: não há memória de uma tão inclemente fecundidade. Dir-se-á que um Deus andou semeando e abençoando a sementeira, porque não há sol que a esturre, não há geada que a creste, não há lagartas que a destruam — as mesmas formigas mal aparecem nos trilhos e, por preguiça ou porque as contenha o mesmo Deus propício, satisfazem-se com as folhas secas que o mesmo vento espalha ou com as varreduras dos paióis.

O que era vageiro pedrento e maldito onde estalavam, fendidas, as relhas dos arados e os bois robustos arriavam arquejantes deixando na terra seca, estampada em suor, as marcas dos seus corpos, é hoje campo de fertilidade; várzeas estéreis onde apenas lograva viver o sapê da miséria ostentam-se vicejantes, cobertas de uma verde e alta alcatifa que é o arrozal que aponta; as mesmas rochas sáfaras geram prodigiosamente — a crosta que as forra vale por um alfobre. Veem-se penhascos floridos e, nos sucos dos carros que, meses atrás, passaram lentos, rinchando, recolhendo a colheita, os grãos perdidos proliferam: há milhos crescendo nos caminhos, empenachando-se nos andurriais ou, flexíveis, dobrando-se graciosamente no fundo das grotas, entre os inhames, onde a água brilha e canta.

Em todo o torrão há uma roça, em todo o canto viceja uma horta. O colono tem necessidade de arrancar os legumes que ameaçam invadir a casa; vergam as latadas, pelas cercas de espinheiros em flor trepam as ramas do feijoal, os repolhos gordos afundam na terra, a couve flor desabrocha como um polipeiro imenso e lá vão braçadas de folhas tenras para os estábulos, para a pocilga, para o aprisco, para o corveiro e ainda sobram aterradoramente.

As canas empinam-se e curvam-se em arco, estirando-se na terra para, adiante, levantarem-se de novo; o milharal farfalha ao vento como a chamar os colhedores, as vagens secas cascavelão, abóboras abandonadas desenvolvem-se monstruosamente sob as frescas folhagens protetoras e, quem olha os pomares, hesita entre as duas cores que se casam — a verde das folhas e a amarela dos pomos.

Os galhos vergam e, como não há mãos que bastem à colheita, sob as árvores acenosas os frutos que apodrecem vão formando um nateiro fecundante. Não há esperança! O cafezal parece adornado de coral — os frutos em cereja encarreiram-se, acumulam-se nos ramos pendentes e os rios aí vão regando, o sol reluz e cria, o vento leve encarrega-se de limpar os galhos, levando-lhes as folhas secas, e borboletas, besouros, libélulas e abelhas que pousam de flor em flor, conduzem o gérmen da fecundação, vão multiplicando a abundância, fazem uma semeadura aérea ou melhor: realizam as núpcias florais como sacerdotes alados que visitam os lares verdes e juntam os casais aromalíssimos, conduzindo a alma amorosa de um a outro, em beijos. Não há memória de uma tão inclemente fertilidade.

Com o frio a esperança do lavrador é a geada. Ao crepúsculo, quando as névoas se vão adensando, ei-los todos de olhos alongados: virá a geada? Cai a noite taciturna, estrela-se o céu onde não paira uma nuvem; o frio aumenta. Noite fria e límpida é anunciadora de geada. As crenças tiritam, os velhos abeiram-se do fogo estendendo tremulamente às chamas as mãos engelhadinhas e o vento agreste sopra.

Oh! como é alegre a voz do vento! Corta, vento de inverno! Corta, ceifador noturno, corta! E o homem bem diz o vento que zimbra. Bem haja o bom vento! Bem haja o bom vento! Curioso, lá vai o lavrador à janela, entreabre-a, espia e tirita: noite estrelada e gelada. Ainda bem! Ainda bem! exclama esfregando as mãos. Temos geada! Temos geada! anuncia contente e todos sorriem à ideia de uma devastação. Deitado, ouvindo as gambás que vão e vem pelas telhas, ei-lo a sorrir, pensando: “é a geada bem dita que está caindo. Amanhã os campos serão outros... eu ficarei reduzido a um terço, outros perderão mais e a safra de todo o Estado, com o benefício desta noite, ficará em menos da metade do que se espera e ainda será muito... Felizmente o inverno aí está e há um Deus no céu. Mais um ano de fartura como este e seria um dia a lavoura do Brasil”.

Não há quem resista. Antigamente, com o que dava um alqueire de terra, uma família vivia fartamente; hoje, com a abundância, o fazendeiro pena em miséria, o que o compromete é o excesso: todos plantam, todos colhem; não há compradores.

Anuncia-se uma feira, acode gente de toda a parte a disputar as barracas ou com as lonas e os esteios para armar a sua tenda. Levanta-se tão densa poeira nas estradas com a chegada dos carros, das tropas, das récuas, das manadas, dos rebanhos e ainda da gente que as mesmas torres das igrejas desaparecem abrumadas. No campo da feira amontoam-se os ceirões e as cangalhas, empilham-se os jacás e os cofos, enfileiram-se as capoeiras, atravancam-se os largos cestos — o cercado de animais referve e, como não há divisões, saltam os potros, os burros escoucinham, marram os touros, cuincham os bacorinhos, grunhem os grandes cevados acaçapados, fossando a lama, cacarejam as galinhas, grasnam os patos, arrulham os pombos e todas essas vozes não chegam a abafar as dos homens, das mulheres e das crianças que apregoam esgueladamente o que trazem das suas roças. Quem entra numa feira, vendo a multidão que vai e vem, imagina que o comércio corre animado, engano — só há ali vendedores, de sorte que o sertanejo, que deixou o seu sítio longínquo, à beira da serra, para oferecer na feira os frutos do seu pomar e o gado novo da sua caiçara para, com o produto, comprar novos ferros e chita e madapolão para os seus, ali está de cócoras, macambúzio, o cachimbo nos beiços, os olhos perdidos longe, no céu da sua banda, lá para os lados da serra onde a sua gente, pobre gente! o espera com as compras tão necessárias... até um remédio lhe pediram e o mísero nem para o remédio faz.

E dissolve-se a feira: lá tornam todos com os frutos murchos, com os animais cansados, maldizendo a abundância porque todos têm e não compram.

Isto acontece ao pequeno lavrador que ara, semeia, aduba e colhe, que tosa a ovelha, que munge a vaca, que enforma o queijo e bate a manteiga auxiliado pela família; imaginai o desespero do grande, plantador que vê, em torno da casa, formigar uma nova vila de colonos. É a exuberância que o desgraça, é a fartura que lhe traz a miséria.

Lá vai vagarosamente, aparecendo, desaparecendo por entre uns outeirinhos aveludados, um comprido e pesado trem de carga — café; dos sertões feracíssimos descem diariamente tropas numerosas, são campainhas tinindo desde a madrugada até a noite, às vezes pela noite adiante e tropeiros bradando — café; pelos rios, em balsas, descem milhares de arrobas que vão ter às pequeninas estações onde embarcam para o porto. Os horizontes são verdes — onde acaba o cafezal começa o céu, e as árvores, sobrepujadas pelos frutos, achaparram-se: é a maravilha da fertilidade, a praga arruinadora do excesso.

No porto, à medida que vão chegando os wagons entulhando os armazéns, vai o preço descendo e, como entram sempre novos trens carregados, mais baixa o valor da mercadoria; é quase uma miséria o que oferecem, não vale a pena vender; o melhor é conservar o café em casa, mas como? Onde? Se não há tulhas e se o fazendeiro tem a colônia a murmurar reclamando a pagar! Que vá o café, que vá! E os campos cada vez mais verdes... Oh! a inclemência do verde!

Como se vivia bem no tempo passado! O pouco que a terra dava era vendido a peso de ouro e o fazendeiro que colhesse o que hoje colhe um sitiante poderia viver regaladamente como um rajá: o fruto tinha valor real, as tulhas eram tesouros, os engenhos eram verdadeiras casas de moeda. Agora as máquinas poderosas não preparam em seis meses, trabalhando dia e noite, todo o café da colheita, as moendas, jorrando rios doces, não espremem toda a cana, parte perde-se nos carros ou amontoada nas eiras, e, se a deixam na terra, apendoa; o leite apodrece nas queijarias, a fruta encarquilha-se ou transforma-se em lama nos pomares. É demais! Corta, vento de inverno! Corta, ceifador noturno!

Criar... e vale a pena criar? Com a abundância o gado anda farto e luzidio: no chiqueiro do pobre cevam-se varas de porcos, as vacas mal podem caminhar embaraçadas pelos ubres apojados, e assim as cabras, as ovelhas igualmente. Por muito haver pouco vale e, como o preço oferecido não compensa, os homens resolvem deixar os animais no campo esperando confiadamente o tempo da miséria, que há de vir, Deus é grande! ...

Levanta-se o lavrador, sai pé ante pé guiado pela claridade tênue da lamparina do oratório, acesa diante das imagens como a lembrar-lhes o pedido feito, com fervor, por todos; lá vai; chega à janela, corre o ferrolho. Que frio! Sorri contente, tiritando e espia — noite serena, céu estrelado e a geada? E cedo, talvez; nem bruma — o luar galvaniza as frondes tomando-as de prata e as vozes da natureza cantam, sussurram dentro da noite; o aroma das flores passa nas auras, a água rola no moinho. O lavrador ali fica a olhar, sem sentir o frio que corta como à espera da geada que não vem, a ouvir, sem compreender, o que lá fora dizem as árvores alegres. Torna ao leito desanimado. A esposa, que o viu sair, espera-o sentada, com o rosário entre as mãos enclavinhadas:

— Gia?

— Ainda não.

— Pode ser que pela madrugada...

— Não creio. É Deus que nos abandona... Enfim, seja feita a sua vontade. Deita-se. Queria que sentisses o cheiro das flores.

— Que flores?

— Não sei, mas é um aroma que entontece. Essas malditas flores estão anunciando outras cargas. Aqui só o fogo. Cala-se e, de olhos abertos, fica a pensar na monstruosa queimada salvadora: uma chama viva que crescesse com o vento e que fosse arrasando os campos de milho e cana e o cafezal e subisse à mata e secasse as fontes deixando a terra vazia e estéril, coberta de cinzas, durante anos. Só isso... Faria um aceiro protegendo apenas o cafezal novo, o mais que fosse, que levasse o incêndio e o pouco dos anos vindouros salvaria o prejuízo dos tempos copiosos. Só o fogo! Mas, para isso, seria necessário que todos os fazendeiros entrassem no acordo sinistro tomando, cada qual, um archote e ateando o incêndio que, vindo de pontos diversos, às lufadas vermelhas, deixasse apenas, em cada fazenda, como pequenas ilhas, dois ou três alqueires de culturas verdes. Escassearia o produto e cresceria o preço... Mas o fogo estimula, o fogo arde e fecunda como o beijo, haveria, no primeiro tempo, um espasmo letárgico da terra mas, com a primeira chuva, todas as sementeiras repontariam viçosas, com ânsia maior de vida e a produção seria mais acabrunhadora.

Que fazer?

Um silvo atravessa o silêncio — já os comboios... lá vão eles, caminho do porto, lá vão! É madrugada — o gado muge, balem as ovelhas. Atroadoramente começam a trabalhar as máquinas beneficiadoras e o fazendeiro, fatigado da vigília, salta da cama, abre largamente a janela — uma poeira empana os ares, é a palha do café que voa e que lá vai estrumar o alqueive e, purpúreo, imenso, implacável, lá sobe vitoriosamente o sol.

Douram-se os montes, douram-se os campos, o orvalho rebrilha nas folhas — tudo reverdeceu com a noite e o fazendeiro, taciturno, pensa na miséria quando o administrador, descendo a galope do lado do engenho, estaca a bestinha diante da varanda e diz:

— Patrão, vou mandar colher aquele resto de café do pedregal porque as flores já estão vindo aos galhos... Ele estremece, fita o empregado e, sem compreender bem as palavras que ouve, encolhe os ombros indiferente. Fruto e flores... Mas... é a perdição, Deus do céu... É a perdição! Fruto e flores! Terra maldita!

E o sol vai subindo no céu e abelhas zumbem visitando as flores novas anunciadoras da abundância futura que será a falência, a definitiva desgraça. Ainda frutos e já flores...

E há ainda quem gabe a terra cafeeira, a terra da cor de agonia...

BALÕES

Dizia-me, uma tarde, com muita gravidade, o conspícuo comendador Juvêncio, lamentando o desastre de que foi vítima Augusto Severo: “meu amigo, a verdade é que todos nós temos o nosso balão. Aqui nesta sala só há aeronautas”.

Vendo o ar de espanto com que recebi a sua afirmação, o comendador, tirando um estrondoso pigarro da formidável goela — que é um abismo, segundo dizem na praça — avançou a sua poltrona juntando aos meus os seus joelhos enormes onde as rótulas são verdadeiras sacadas. “Ouça, meu amigo. O senhor é ainda muito novo, vê o mundo através das suas ilusões; eu tenho vivido muito, conheço todos os segredos da vida, a alma não tem mistérios para mim. Eu é porque não tenho tempo, senão o senhor havia de ver o belo estudo que me saía da pena, apojado de notas, farto de observações, com os nomes, com as datas, completo e irrefutável. Todos nós temos o nosso balão. Vê aquela criança que ali está ao colo da ama, toda enfolhada em rendas? Tem o seu balão...

— Aquela criança!

— É como lhe digo; e lá está ele, ou antes, lá estão eles túmidos, retesando o corpinho da rapariga, não vê?

— Os peitos da ama? ...

— Naturalmente. O pai tem um balão e há quem afirme que é obra fina: tem dado excelentes resultados nas experiências — é a tal máquina de chocar.

— De chocar!?

— Pois não: ele entende que tudo pode ser chocado, é uma simples questão de estufa: choca pintos, carneiros, bichos de seda, café, crianças...

— Como crianças? ...

— Sim, senhor; crianças. O filho do Amadeu é um produto da sua máquina, pelo menos é o que dizem; como foi não sei, mas a coisa é pública...

— E o Amadeu?

— O Amadeu está também às voltas com o seu balão que uma história de pesca na Amazônia para exploração do xarque do peixe boi...

— É extraordinário!

— É natural, meu amigo. Vê ali a menina Alice a conversar com o Lino? Está a encher o seu balão e Deus queira que lhe não saia hoje mesmo dos lábios o famoso Lachez tout! Não vê a quantidade de gás que ela está para ali a consumir? A falar, a sorrir, a mostrar o pé, a descobrir os dentes? ... Tudo aquilo é gás e do bom e o Lino começa a oscilar. Eu daqui estou a ouvir as pancadas no motor. O amigo há de ver, em breve, a ascensão...

— Mas o Lino não é partido para a menina Alice.

— Por quê? No casamento, como em política, não há partidos, há conveniências: casa? elege? É quanto basta.

— O Lino é impetuoso, violento...

— Já sei, o amigo receia a explosão? Mas o senhor não sabe que o marido é um balão cativo? Não há perigo... Demais, a menina Alice é segura, não é das que alijam o lastro: quando ela vir as coisas mal paradas...

— Apela para o divórcio...

— Qual divórcio! Apela para os próprios encantos e ... Mas vamos adiante: Conhece aquele calvo que ali está, no vão da janela?

— É o Simas. Tem também balão?

— Político; tem caído muito, volta e meia é uma queda, já até caiu uma vez no ridículo quando pronunciou na câmara aquele famoso discurso afirmando que a crise do açúcar era uma consequência natural da crise do café, e propondo, como medida atilada, que se desse o café de graça ao estrangeiro porque, como não se bebe café sem açúcar, ele seria forçado a vir buscar esse gênero ao mercado e então far-se-ia a alta do açúcar, alta que daria para indenizar o fazendeiro.

— O plano não deixa de ser engenhoso.

— Mas é idiota. Temos ali outro aeronauta — Está a insuflar um aparelho que, se nada vale na aparência, é uma preciosa máquina, de construção muito sólida e com excelente motor.

— Quer falar da baronesa?

— Sim; a baronesa vai para os sessenta anos.

— É um balão prático.

— Tem duas ascensões: a primeira com o Pimentel, coitado! Ela tinha dezoito anos e uma beleza de atordoar e o Pimentel era maduro, resultado? Veio lá de cima pondo sangue pela boca, deixando um lastro de quinhentos contos e duas fazendas no oeste. A segunda foi com o barão que, apesar de mais cauteloso, não pôde, ainda assim, evitar a queda.

— Mas dizem que...

— Que ele caiu de outro balão... Sim, pode ser, porque fazia experiências com diversos. Não afirmo — o que é certo é que, apesar dos precedentes desastrosos, o nosso amigo está a querer meter-se na barquinha.

— Diga antes: barcaça.

— Ou isso. E todos aqui, sem exceção...

— Quer dizer que o senhor também...?

— Pois não, não fujo à regra: também tenho o meu.

— E qual é, comendador...?

—É ... a imbecilidade humana.

— E, releve a minha indiscrição: como consegue equilibrar-se?

— Facilmente: manobrando. Se tenho contra mim um poderoso, humilho-me; se tenho um fátuo, lisonjeio-o; se é um tímido, apavoro-o; se é um ousado, acoroçó-o; se é um pobre, desprezo-o; se é uma mulher, louvo-lhe a beleza e assim me vou mantendo sempre a favor do vento, buscando a corrente da simpatia que é como um mar de leite para navegar-se.

— E nunca caiu, comendador?

— Sim, sim, já levei um tombo: meti-me num balão vagabundo que anda agora pelos teatros e caí na cama onde estive três meses, entre a vida e a morte. Felizmente curei-me.

— E está pronto para outra...

— Isso não: a experiência foi rude. Contento-me agora com os balões práticos.

— Pois eu confesso que não tenho balão algum.

— O senhor?

— Eu mesmo, comendador. Mas chamaram-nos para o chá. Íamos pela galeria vagarosamente, respirando o perfume que entrava, com o luar, pelas janelas abertas; o comendador insistia em demonstrar-me que todo o homem tem o seu balão, quando ouvimos um chuchurrear que parecia vir da sala. Voltamo-nos e vimos o Lino de braço com a formosa Alice que parecia mais linda com uma cor mais viva nas faces finas. Detivemo-nos à janela... Os dois passaram e eu fiquei a olhar o plenilúnio imenso e branco, que brilhava.

— Ouviu o Lachez toul!? Sussurrou ele com malícia, mostrando-me, com o beiço esticado, o jovem casal que lá ia.

— Sim... pareceu-me um beijo... Mas... que linda noite, comendador. Ele lançou um olhar indiferente ao céu e, encolhendo os ombros, disse, arrastando-me pela galeria clara:

— A lua não é balão que preste. E quer o amigo saber? Não se meta com ela — os que de lá caem vão dar com os ossos no hospício. Arranje, de preferência, uma estrela... mesmo de café concerto. E rindo, entramos de braços no grande salão iluminado onde resplandecia a mesa florida, carregada de pratas e cristais. E, sempre malicioso, o comendador segredou-me:

— Parece que o Lino usa carmim nos lábios?

— Por quê?

— Veja as faces da Alice... Efetivamente eram duas rosas.

DIVAGANDO

Entrando, de manhã, no meu escritório, vi o velho calendário murcho, a oscilar com a aragem na parede fronteira à minha mesa de trabalho — só lhe restava uma folha... Para que arrancá-la se nada mais havia atrás daquele número que representava apenas uma recordação? Que o mísero levasse aquela última folha para o lixo.

Outro calendário, novo e gordo, carregado de folhas, como uma árvore na primavera, foi substituir o velho bloco lentamente consumido e foi somente essa substituição que me fez sentir o tempo, porque não notei diferença alguma na manhã — nem mais moça, nem mais velha. No alto o mesmo azul, no azul o mesmo sol; voando, os mesmos corvos e as mesmas andorinhas; na terra às mesmas árvores, as mesmas flores, as mesmas águas, entretanto, durante a noite, o mundo silenciosamente dobará outro marco.

E porque só o calendário acusava a passagem destruidora do tempo?

Indiferentemente, todas as manhãs, eu lhe arrancava uma folha e a lançava à cesta dos papéis. E que representava aquela folha morta?

Quem lhe escrevesse o inventário teria de encher resmas e resmas de páginas largas registrando a campanha dos homens “pelo ventre”, como diz Epicuro: vidas e mortes, fomes e frios, agonias e prazeres, bodas e enterramentos, marchas de exércitos e convênios pacíficos, cerimônias rituais e conciliábulos covardes, inventos e desilusões, sonhos desfeitos e utopias realizadas, travessias de águas e de areais estéreis, ascensões arriscadas e mergulhos no seio da terra à cata do ouro das minas, trabalhos serenos, estudos calmos, ânsias desesperadas, ambições voracíssimas, e, superiormente, a marcha tranquila dos astros luminosos.

Tudo isso continha a miserável folha morta que eu atirava, com desprezo, à cesta dos papéis inúteis; cada uma delas representava um dia.

Ai! de mim, cada uma delas era como um recibo que eu dava de um dia que vivera e como eles são avaramente contados, como o dinheiro de Shylock, era o meu capital de alento que assim se esgotava. Era, pois, de mim mesmo que eu arrancava aquelas parcelas — o calendário era apenas um símbolo, o que eu ia destruindo era o meu próprio ser.

E fiquei a olhar o papelão onde estava estampado aquele número que era tudo quanto restava do velho calendário. Ocorreram-me, então, as palavras do filósofo: “a vida é como um rio que corre sobre um leito eterno — o tempo”.

Nós somos as águas que passam, águas, como as do Nilo santo, de origem misteriosa. Para onde correm elas? Para a eternidade, que é um oceano sem praias. As margens são de vários aspectos — aqui frondosas, ali estéreis, acolá sombrias, iluminadas além.

Há gotas de água que descem desde a nascente, pelo meio claro do rio, rolando em tumulto, refletindo o sol e as estrelas, numa alegria sem fim: são as vidas ligeiras e inúteis; que bem fazem? Que destino cumprem? Correm, engrossam apenas a caudal e passam.

Outras, como se se houvessem petrificado para conservar em carcérula uma centelha astral, cristalizam-se em diamantes imperecíveis e refulgem no seio das águas — a luz é a inspiração perene, o gênio cristaliza o esplendor em obras imorredouras. Outras remansam-se junto à raiz de uma árvore e transformam-se em seiva e, subindo, desabrocham em flor e metamorfoseiam-se em fruto. Outras, as mais humildes e as mais numerosas, transbordam com as cheias, são repelidas pelo fluxo do rio e alastram alagando as margens, formam nateiros pingues onde reponta a messe de ouro. Essas são as gotas generosas, são o enxurdeiro da fecundação, o tremedal da abundância. As outras passam — o rio é alvo e feliz e discorre cantando, o lodo é negro e parado.

Que nasce no rio? A ninfeia; o centro é estéril, só as margens tranquilas verdejam e o nateiro é todo trigo, é todo linho, é todo azeite.

Queres tu ser a gota que vai na derrama fertilizante? Não, por certo — preferes, sem dúvida, ser a gota ligeira e despreocupada que desce na correnteza para o oceano do eterno silêncio. O ideal é a “facilidade” — feliz é o que corre sem encontrar tropeço, brincando nos remoinhos, saltando nos pedrouços, revoluteando nos grotões e mais feliz ainda é a bolha efêmera de espuma que vive apenas o tempo necessário para refletir o azul do céu e o verde formoso da paisagem.

Como são desiguais os desejos! Vede como variam nas almas os ideais. Cada qual trata com mais empenho de iludir o tempo.

O menino imagina-se um homem — é guerreiro e, brandindo armas, que são brinquedos, afronta inimigos imaginários, ou é artífice e trabalha ajustando a ferramenta: aplaina, serra, prega e pule; ou é agricultor e cava, revolve a terra, planta e colhe. A menina, ainda balbucia, e já pensa em ser mãe — ei-la tartamudeando carícias à boneca e nina-a, e veste-a, e afaga-a. Chega-a ao colo agasalhando-a, alisa-lhe os cabelos, fecha-lhe as pálpebras e, à noite, cabeceando de sono, não há convencê-la a deixar a filha: leva-a nos braços e dorme com ela chegada ao coração.

O menino julga-se capaz de realizar a conquista do mundo e orgulha-se da sua força e da sua agilidade levantando pesos, lutando ou subindo lentamente às árvores como um esquilo. A menina já se imagina sedutora e dengosamente ensaia a faceirice — um corre aos ninhos, corre a outra aos espelhos, e que fazem? Sonham com o amanhã, é o instinto que os impele através do tempo ao destino prescrito.

Para complemento da ilusão o menino põe-se a repuxar o lábio, a retorcer as guias de um bigode imaginário, engrossa a voz, pisa com firmeza e, arrastando um bengalão, lá vai pela casa a pavonear ufano, e a menina reclama um vestido comprido, exige que lhe levantem o cabelo, adelgaça a cintura, toma atitudes languidas e, quando se reúnem, continuam a sonhar e o sonho é a família: são compadrios, crianças que nascem, projetos de batizados, mesas de lauto festim; ou intrigas na vizinhança, as rugas no casal e até (horresco referens!) alusões ao divórcio por incompatibilidade entre os cônjuges — é uma comédia da vida por marionetes animadas. Esses querem avançar.

Agora vede mais adiante — outra face da ilusão: os que procuram retroceder: É o homem que se encalamistra, é a dama que se maquilha; que fazem? Procuram reparar “des ans l’irreparable outrage”: são os regressivos.

Há aqui um cabelo branco indiscreto, há ali uma ruga denunciadora, a pele encarquilha-se, perde a frescura, vão-se os olhos tornando ternos, os lábios já não são tão róseos, que fazer? Pedir socorro ao artifício — e são tintas, pomadas, pastas, lápis, ferros de feitios complicados, toda uma farmácia, toda uma cutelaria no toucador.

O homem recorda, então, o tempo em que era um trêfego rapaz ágil e forte — ah! Dançava toda uma noite sem sentir fadiga, excedia-se em extravagâncias, sem jamais sofrer as consequências. Uma noite em claro... que era isso! Bom tempo!

A dama relembra os seus quinze anos viçosos, o seu primeiro namoro, os dias do seu noivado... como era feliz! Tudo lhe sorria e os espelhos eram mais puros... Porque não havia de tornar esse tempo amável?

E os velhos, os que já não podem esconder as injúrias do tempo? Esses tornam à infantilidade. O próprio tempo como que os transforma — tornam-se tartamudos, ficam desdentados, caminham à custa de apoios, alimentam-se como os petizes e até vão engelhando: — a velhice é a caricatura da infância, os extremos tocam-se.

Certos povos entendiam que era uma caridade matar os velhos — que ficavam eles fazendo na vida? Pobres ruínas, antes que aluíssem o melhor era deitá-las abaixo e os velhinhos, como era de uso o sacrifício, resignavam-se, e, arrimados aos mancebos, rindo, talvez, por entre os trigos e os fenos, ouvindo pela derradeira vez as vozes alegres dos pássaros, lá iam para o cutelo, desejando a paz aos que ficavam e abençoando os pequenitos.

Que nos importa mais um ano? Isso de idade é grave para os velhinhos — quando o copo está cheio basta uma gota de água para que transborde. Para nós outros, porém, que ainda vamos pelo meio, que nos importa essa gota que caiu da clepsidra?

A vida é como aquela colina encantada do conto maravilhoso — para alcançar-lhe tranquilamente o viso é mister seguir de fronte erguida, olhando sempre em frente.

Ai! Dos que volvem os olhos ao Passado — ficam na melancolia e na saudade e, se não vêm rochas que clamam, como viram os irmãos de Parisada, vêm lápides tumbais e ilusões perdidas. Assim, pois — caminhemos de olhos no além! E que o novo caminho nos seja suave.

UM SIMPLES

Não sei se ainda vive, no fundo das suas terras mineiras, cuidando a horta e o pomar que tinha uma escancarada voragem em torno da qual florejavam laranjais, o prudente, o acautelado Fraga. É natural que viva porque, como o seguro morreu de velho, Fraga há de morrer de velho.

Não o levarão moléstias nem desastres: ele acabará sossegadamente, sentado no limiar da sua casa, olhando as árvores que plantou, sem agonia e sem pecado, como uma lâmpada que se extingue à mingua de óleo.

O Fraga, que me foi apresentado numa tarde brumosa, à hora doce da Ave-Maria, anunciada pelos sinos da velha e escavacada cidade, tão rota nas suas terras como uma fidalga que houvesse sido assaltada em caminho por um rol de bandidos e ficasse, sem uma moeda e sem uma joia e crivada de golpes atirada, como morta, ao fundo de um valado, era um homem alto, magro, ossudo que, ao aparecer na varanda alpendrada da casa colonial, me fez lembrar o tipo esgalgado do cavaleiro D. Quixote.

Recebeu-nos com a bonomia patriarcal que caracteriza a gente hospitaleira de Minas e, recolhendo-nos à sua sala, alva, caiada de fresco, onde reluzia a mobília negra, de jacarandá esculturado, ofereceu-nos café e fumo.

No interior da casa senhorial crianças faziam uma alegre algazarra e, no pátio, fronteiro à varanda, o gado doméstico, que chegava dos pastos, mugia baixinho.

Veio o candeeiro que um negro suspendeu a um ferro e, dentro do círculo de luz, em torno da mesa redonda, sobre a qual havia um vaso cheio de cravos frescos, entabulamos conversa e, de assunto em assunto, falamos de viagens e foi então que o velho Fraga emitiu a sua opinião de homem prudente que prefere ir devagar, pousando em ranchos, com a sua tropa espalhada no campo e os camaradas estendidos em peles, em torno de um fogo, tocando e cantando até à chegada do sono, a meter-se num wagon de comboio, trancado, oprimido, com a poeira a entrar-lhe pela boca e a empanar-lhe os olhos.

— Olhe, meu amigo, os homens percorreram todos os mares sem o vapor e trilharam toda a superfície da terra sem as locomotivas. Para levá-los pelas águas os navios eram como grandes aves viageiras — à hora da partida abriam as azas largas e lá iam sem risco de explosões e, em terra, eram os carros de bois que rodavam, eram os cavaleiros que passavam a galope, eram os elefantes carregando às costas famílias inteiras, e camelos que trotavam pelos areais abrasados. A viagem era vagarosa mas a gente tinha a certeza de chegar ao seu destino. Para civilizar o mundo, o homem não precisou dessas complicadas “mecânicas”, agora que está tudo pronto é que os tais progressistas se lembram de estender trilhos e de aquecer caldeiras, para quê? Olhe, meu amigo, depois de jantar o meu feijão podem vir os melhores manjares deste mundo porque eu nem os provo — estou farto. É assim também com as tais “mecânicas” — agora que o mundo está conhecido de polo a polo é que vêm vapores, estradas de ferro e o diabo... Por que não inventaram essas coisas antes? Com que companhia de vapores se entendeu Moisés para transportar os israelitas através do Mar Vermelho? Em que comboio fugiu Nossa Senhora para o Egito? Os primeiros efetuaram a travessia a pé e a Virgem fez a viagem montada num jumento... Histórias! E veja o amigo: quem viaja a cavalo ou em carro de bois sente um alegrão doido quando vê na estrada, ao longe, outro cavaleiro ou quando ouve o rincho de outro carro de bois e no trem? Se a gente vê vir, na mesma linha, outro comboio em sentido contrário, só tem uma coisa a fazer: é encomendar a alma ao Criador porque está frito. Não, meu amigo — Deus não quer pressas, devagar se vai ao longe. O dia continua a ter as mesmas 24 horas, nem mais, nem menos, os infantes nascem com o mesmo tempo e, se se precipitam, não resistem. Não contrariemos as leis divinas.

O meu amigo, para prolongar a conversa, que nos interessava, perguntou ao excedente velho — “Que faria se fosse forçado a mudar-se para terras distantes?” Fraga cruzou as pernas, enclavinhou as mãos nos joelhos e disse tranquilamente:

— Eu tenho aí uma cadeirinha ainda em estado de servir, possuo excelentes animais de sela, bons carros e gado de primeira ordem. Se tivesse de mudar-me arranjava a cadeirinha para a velha, metia a criançada em um carro coberto, metia noutro as criadas, arrumava os cacarecos em dois ou três, fazia uma boa matalotagem e, com o rebanho entregue aos rapazes, que são de confiança, uma manhã, com a fresca antes do sol, saía por aí fora, devagar. Água não falta por essas terras de Deus; quando o sol apertasse, buscava a sombra das árvores, com a tarde retomava o caminho e, à noite, se houvesse rancho, muito bem, se não houvesse, melhor... Havia de chegar a são e salvo, isso havia! afirmou. O que está dando cabo do mundo é justamente essa pressa ambiciosa. Para que havemos de correr? Quem vai no seu passo, chega ao fim da vida descansado e sem remorso de haver pisado muita criaturinha inofensiva. Eu, que aqui estou, nunca me apressei para nada — vou devagarinho e vou vencendo, e assim parece que a velhice também vem chegando devagar. Os senhores de agora querem ver muito, querem saber muito — que lucram com isso? Aquela árvore que está ali fora nunca se arredou daquele lugar — ali nasceu, ali, todos os anos, fica coberta de flores, ali dá os seus frutos, os passarinhos já a conhecem; não é feliz?

— Não sei, disse eu.

— Pois eu garanto que é: a felicidade é a flor da satisfação — quem se contenta com o que tem, é mais que venturoso, porque não conhece o desejo que gera a inveja e a ambição. Quantos sóis bastam para aclarar o mundo? Um. Tudo que Deus fez anda devagar, depressa andam as criações do diabo, como os ventos que destroem, e os raios que fulminam. Vamos devagar, nada de trens, nada de vapores. Volta e meia é um desastre... para quê? Levantou-se, acompanhamo-lo à varanda. A lua subia lenta e branca no céu, os grilos cantavam na erva, um aroma de flores agrestes perfumava o ar e, no interior da casa senhorial onde se fizera silêncio, uma voz meiga, cantava a ninar crianças.

— Pois é como lhe digo: trens não me apanham. Tenho a minha bestinha viageira, dócil ao freio e de bom passo, que me leva a toda a parte, sem risco.

Eu, quando penso nos túneis, fico todo arrepiado... Deus me livre! Para sepultura basta a que me espera no cemitério... e não sou tatú! concluiu.

Ruskin, o grande esteta, o visionário que sonhou a Saint George’s Guild, essa herdade modelo onde o homem, sem o auxílio de máquinas agrícolas, semeava e colhia, e a mulher cardava a lã, levava a maçaroca ao fuso, fiava-a cantando e depois, estendendo a trama no tear, punha-se a urdir o tecido, como a Arachné pagã, Ruskin, o orador da natureza, não só fugia aos trens, como os combatia, não permitindo sequer que os objetos que lhe eram dirigidos (como os livros que o seu editor lhe enviava de Orpington para Londres que eram transportados em carroças) fossem despachados nos armazéns das gares.

Ruskin, comparando o passado com o presente, mostra um campônio de outrora viajando a pé, de uma cidade a outra, através dos campos floridos, bebendo nos límpidos regatos, repousando à sombra das verdes árvores, ouvindo os pássaros, contemplando os largos horizontes de verdura viçosa, ou de alegres colinas, com moinhos que bracejavam e, disseminadamente, como grandes moutas brancas, bandos de ovelhas pastando. Além do exercício salutar, tinha ele a impressão, e que gastava? As solas dos seus fortes sapatos ferrados.

O campônio de hoje, para fazer uma curta viagem, compra um bilhete, mete-se em um wagon, onde o atracam e, inerte, lá se deixa levar aos solavancos; fuma para distrair-se, trava conversa com um desconhecido, que lhe incute na alma inculta, ideias subversivas; na primeira estação, para fazer alguma coisa, bebe; bebe adiante e lá vai, cochilando ou viciando a alma no wagon, ou bebendo nas gares, e chega ao seu destino bêbedo, com uns schillings de menos e o gérmen de um crime na alma...

A estrada de ferro, é como uma grande lagarta que destrói a beleza da natureza — se atravessa um campo queima-o com as fagulhas que lança, as florestas abatem-se para que ela passe, arredam-se os rochedos, desventram-se as colinas, desviam-se as águas — o progresso é assim um destruidor da graça. E Ruskin não menciona os desastres: os choques de comboios em rampas ou dentro de túneis negros, os descarrilamentos, os esmagamentos de criaturas, e todos os mais horrores, que formam o sinistro cortejo dos tais engenhos.

Tem razão os dois homens: o velho Fraga com a sua simplicidade, aferrando-se aos hábitos patriarcais, e o autor dos Modern Painters defendendo a natureza — não há como o burro para uma viagem pitoresca mas, francamente, para vencer distâncias, com a urgência que a nossa vida complicada exige, o vapor parece-me insuficiente e só conseguiremos alguma coisa no dia em que a eletricidade for aplicada à tração nas vias férreas e os balões cindirem aos ares não um a um mas aos enxames, em revoadas, como grandes pombos correios.

Desastres... que valem desastres? Rolem comboios, estourem balões, cubra-se a terra de destroços, escureçam-se os ares com retalhos de aeronaves, a Humanidade irá por diante, contente, heroica, indiferente às vítimas que são as oferendas à vitória.

E os filhos do velho Fraga e os discípulos do grande Ruskin comprarão bilhetes nas gares e nas estações aéreas e irão, contentes, percorrendo centenas de quilômetros por hora na terra ou no espaço e pensando no tempo em que o pai viajava pelos andurriais mineiros ao chouto de uma besta preguiçosa e o mestre subia às colinas para contemplar as nuvens douradas do crepúsculo que eles verão, não mais acima das cabeças, mas debaixo dos pés como um amplo e flamejante tapete estendido no espaço, superior ao que Clitemnestra estendeu no palácio de Argos para receber o atride vitorioso.

E nesse tempo maravilhoso os homens, insatisfeitos ainda, pensarão em Progresso mas, no fundo de uma aldeia, haverá sempre um burrinho nédio e um velhinho que o monte dizendo, como hoje diz o velho Fraga: “que prefere o seu asno a todos os comboios elétricos da terra e a todos os balões do espaço”.

E Deus que nos conserve esses simples que são a Poesia suave do passado no turbilhão da vida contemporânea.

AWAY!

Michelet compara os dias a pontes que, uma vez atravessadas, abatem desaparecendo no abismo do tempo. Ninguém retrocede — a Fatalidade lá está para cortar a retirada. Não há exemplo de um só homem que tenha, da velhice embranquecida e gelada, recuado aos claros dias da mocidade.

Mal passamos a ponte, sem que ouçamos o fragor da queda, sentimo-la aluir-se, vemo-la desaparecer no vórtice fundo, onde pululam milhões de vidas.

Do outro lado os mais fortes deixam pegadas eternas, os semeadores deixam gérmens esparsos que darão aos vindouros sombra e fruto, os tristes deixam lágrimas que formam nateiros fecundos, mas nenhum regressa àquela barranca adorada cuja paisagem, à distância, esbatida na saudade, como que se torna mais fagueira porque ninguém vê os curtos e agudos espinhos nem os calhaos afiados, mas a massa de verdura imponente, a sempre viçosa e admirável Natureza e a estrada lisa e branca, ora larga, ora augusta, entre penhas alcandoradas ou frescos vergéis floridos.

Rindo, em tumulto alegre, acenando com palmas e flores, vão as crianças através da ponte. Que lhes importa que caia aquela passagem que as conduz ao futuro? Não voltam os olhos porque não têm saudades, correm ansiosas, aligeirando cada vez mais os passos porque entendem que a felicidade está além, no brumal distante e lá vão! Mas acompanhai o velhinho e vê-lo-eis voltar-se, a todo o instante, diminuindo os passos porque um minuto que avança na manhã apressa o esplendor, um segundo que passa no crepúsculo leva à desesperança — a ascensão é lenta, o mergulho é instantâneo.

Para os que agora entram na vida o tempo é festivo. Ano novo! Ano novo! Ai! Dos que caminham carregados de anos, para esses os novos dias serão um fardo pesadíssimo que ainda mais os curvará na estrada.

Lá vão eles tardigrados, arquejando, com os corações transbordantes e os olhos marejados. Quantos abismos vencidos e no fundo deles quantos sonhos, quanta ventura, quanta ilusão perdida.

Quis Deus nascer nos últimos dias do ano como para tornar a sua creche um diversório bendito onde as almas repousem e tomem o viático da esperança com que se alentem na Terra.

É ali, na gruta paupérrima, entre o jumento e o boi, sobre a palha olorante que Jesus se exibe. Chegam-se todos os crentes ao tugúrio, ouvem os cantos angélicos, escutam a égloga dos pastores e contemplam a Santa Família que rodeia o predestinado Mártir. Os mais aflitos sentem-se aliviados na suave companhia e recobram a coragem para a jornada fatal. Enquanto adoram o Infante esquecem os tormentos e pensam na redenção futura, no prêmio magnífico que lhes está reservado no céu e, retomando o cajado, lá vão, contentes, ao longo da estrada luminosa.

Ano Novo! Que veremos nós além da ponte de S. Silvestre? Chegarão todos à outra margem? Quantos se abismarão com a trilha oscilante?! Que desapareçam — o Tempo não se fatiga e, para os que chegam, lança novas passagens e logo as retira como o soldado do castelo recolhia a levadiça à entrada do último falcoeiro e do último montaras quando o senhor tornava, com estrondo de charamelas e ladrar de matilhas, das montarias que fizera com a gente nobre do seu solar.

Nem todos atravessarão a ponte que nos vai ligar ao ano próximo mas, para que a vida continue, basta que passe um casal, como o que saiu do Paraíso no dia do pecado e esse, entretido com o amor, nem dará pelo silêncio propício, nem se lembrará da mortualha que ficou atrás.

O melhor é seguirmos despreocupadamente — não imitemos a mulher de Loth. A ponte é frágil, Deus assim a fez para que não retrocedêssemos e pudéssemos conhecer todos os bens, e todos os males da vida.

Se nos fosse dado permanecer num mesmo sítio, à sombra aceitosa da mesma árvore redolente e frutífera, com um claro arroio para nossa sede serpeando à volta do nosso descanso, ficaríamos satisfeitos com essa sossegada e doce existência? Não, havíamos de querer avançar e falaríamos com a mesma ânsia com que falou o astuto Ulisses desligando-se dos encantos de Ogygia e das seduções de Calypso à medida que ia prendendo, com fortes pregos de bronze, os grossos troncos de cedro e de teca da sua jangada: “Oh! Deusa, não te escandalizes! mas ainda que não existissem, para me levar, nem filho, nem esposa, nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a ira dos Deuses! Porque, na verdade, oh Deusa muito ilustre, o meu coração saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza imortal. Considera, oh Deusa, que em oito anos nunca vi a folhagem destas árvores amarelecer e cair. Nunca este céu rutilante se carregou de nuvens escuras; nem tive o contentamento de estender, bem abrigado, as mãos ao doce lume, enquanto a borrasca grossa batesse nos montes... Deusa, há oito anos que não olho para uma sepultura. Não posso mais com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo do que se deforma e se suja e se espedaça e se corrompe. Oh! Deusa imortal, eu morro com saudades da morte”!

Não é essa, em verdade, uma perfeita e saliente representação da eterna e insaciável curiosidade do Homem que nem com o Bem se contenta e vai caminho do Mistério só para ver “algo nuevo” como o navegador? Se isso é próprio da condição humana vamos ao nosso destino de curiosos, mas vamos contentes, cantando e rindo, como os companheiros de Taillefer, em Hastings.

Deixemos que o abismo atroe com o rolar dos destroços da ponte atravessada — é o nosso passado que rola, é o dia de ontem que lá fica e que nunca mais avistaremos. Deixemo-lo no abismo e vamos para o amanhã, para a linda e refulgente ponte de Cristal que reluz ao sol entre as duas margens — a do que foi e a do que vai ser.

Que há nos longes? Névoas; e dentro das névoas? A glória, talvez... talvez... Que importa! vamos ver “algo nuevo”!

DECADÊNCIA

Da vida de duas princesas — uma alemã, outra russa — que caíram em miséria, deram os jornais o triste romance. A primeira, fugindo na mesma noite do casamento, preferiu ao marido, um príncipe, certo boêmio desabalado que, depois de a haver empobrecido, abandonou-a com uma filha pequenina e enferma nos braços.

A desgraçada, repelida pela família, cuja coroa ficara indelevelmente mareada, errou, faminta e tiritante, pelos campos até que a criança lhe morreu achegadinha ao colo mirrado e, sem lar e sem pão, com uns sórdidos andrajos sobre o esqueleto, foi, uma noite, bater à porta de um hospital pedindo, a chorar, que a recebessem por misericórdia. Receberam-na tomando-a por uma pobre mulher, viúva de algum operário e, só na hora extrema, quando a desvairada se desprendia do mundo, os enfermeiros souberam quem ela era.

A outra, menos romântica, perdeu-se em operações financeiras: atirou-se à jogatina da bolsa sacrificando milhões de rublos, empenhando as joias, o mobiliário, a seda, os linhos, até que se achou, uma manhã, sem um azinhavrado kopeck. Como não era mulher frágil e conservava no coração um resto de esperança, preferiu continuar a viver, mesmo com sofrimento, a mergulhar no Neva ou a queimar os miolos, se os tinha, com um tiro.

Procurou emprego como a Krotkaia de Dostoiewsky e, como não lhe foi fácil encontrá-lo em uma repartição do Estado, aceitou, com resignação, o lugar de servente de pedreiro e, como no tempo do fastígio subia, com peliças caras sobre os ombros, as escadarias de mármore dos palácios moscovitas, pôs-se a subir as escadas oscilantes que levavam aos andaimes equilibrando na cabeça, sobre a rodilha dos cabelos louros que haviam, em tempos prósperos, sustentado uma coroa, o cocho acogulado de barro.

Acabou, sem refazer a fortuna, em negra miséria, envelhecida, calejada naquele rude trabalho, ao sol e à neve.

Entre nós há de ser difícil aparecer um desses casos lamentáveis, porque não temos príncipes, mas podemos apontar muitos decaídos que, se não têm nas veias o sangue azul, tiveram nos cofres ouro bastante para, com habilidade, se quisessem, arranjar o colorido ciânico que é um nobre privilégio dos descendentes de reis.

Um desses decaídos acabou, no Hospício Nacional de alienados. Eu o conheci já na miséria, mas ainda são, íntegro de espírito. Chamava-se Pinheiro, por antonomásia — Chicote.

Fui-lhe apresentado, uma noite, por um acadêmico em cuja casa ele costumava pernoitar. Era um homem simpático, distinto, dotado de uma voz insinuante, conversando como um gaulês.

Nessa noite, minutos depois da sua apresentação, falando-se do passado, o sempre bon vieux temps, ele, que se achava sentado em uma canastra, levantou-se e, sacudindo os cabelos, compridos e soltos como uma juba, pôs-se a passear pelo quarto acanhado, em silêncio, estalando os dedos. De repente, detendo-se, cravou em mim os olhos que fulguravam, e disse com um momo:

— Meu amigo, no Brasil ninguém vive, isto é uma ocara, compreende? Uma ocara insípida. Para quem nunca atravessou os mares o Rio tem encantos mas, para quem viveu lá fora, isto não passa de uma aldeia sórdida e triste, com um lindo céu e algumas árvores. E, inspirado, entrou a descrever a vida alegre, agitada, em Paris — os boulevards iluminados, o Bois à tarde, os lagos no inverno recortados pelos patinadores que deslizam graciosamente sobre a neve rutilante, os teatros.

Depois Londres com o seu movimento e o seu nevoeiro, as costas azuis do Mediterrâneo, Nice e toda essa Itália artística e languida, as ilhas clássicas, a Grécia, Constantinopla, Jerusalém, os desertos, que sei! Falou-me do mundo descrevendo pitorescamente, e com saudade, toda a sua longa e lenta viagem — noites em Covent Garden e noites à beira do Mar Morto, numa tenda, entre beduínos, ouvindo os chacais.

Depois o Egito, depois a Espanha com amores e serenatas... Agitava-se, ia e vinha sacudindo, de instante a instante, a cabeça, com os olhos muito brilhantes. Eu ouvia pasmado e, como não conhecia a estranha história da sua vida, tomava-o por um louco.

De vez em quando procurava os olhos do acadêmico que me apresentara e nada neles descobria que denunciasse incredulidade: o rapaz ouvia, com respeito, as descrições fantásticas que ia fazendo aquele homem cujo casaco estava no fio, cujas botinas gastas iam e vinham pelo soalho sem ruído como se fossem forradas de algodão.

Depois referiu-se à Arte recordando as suas detidas visitas aos mais notáveis museus, com uma opinião sobre cada época e sobre cada um dos grandes mestres da pintura e da escultura. Falava com acerto como se repetisse as palavras de um guia bem compilado. Por fim chegou à mulher e sobre todas teve uma frase — desde a robusta campônia, linda e graciosa no seu vinhal do Douro, com as cores vivas dos seus trajos que recordavam a fantasia alegre dos sarracenos até à branca e delicada miss, figura mística, de uma doçura divina, como anjos das iluminuras medievais — e a todas ele amara e guardava ainda o sabor daqueles beijos que recebera, uns que sabiam a mosto, outros que deixavam na boca a impressão delicada de um gosto de violeta.

Mas, quando, de volta dessa viagem, ele reentrou a barra do Rio de Janeiro, a celebrada barra que não tem rival no mundo, a sua tristeza começou a manifestar-se: o entusiasmo caiu em morna melancolia e ele tornou à canastra, cruzou as pernas e, depois de haver explorado inutilmente os bolsos, pediu-me um cigarro. Dei-lho e isso foi pretexto para que ele discorresse sobre o fumo, falando de Cuba e das suas ricas plantações. Não era um homem, era a própria geografia.

O grande sino de S. Francisco pôs-se a bater vagarosamente as dez horas e o homem levantou-se. O acadêmico insistiu com ele para que ficasse.

— Não, estava uma noite linda, ia aproveitá-la. Tomou o chapéu e a bengala, despediu-se e foi-se, cabeça alta, bamboleando o corpo. Quando os seus passos se perderam na escada eu disse ao meu amigo:

— Esse sujeito é doido, não?

— Não. Esse homem que vistes foi um verdadeiro nababo. Descendente de uma família abastada herdou uma grande fortuna e, logo que entrou na posse dos seus haveres, resolveu satisfazer a ambição da sua mocidade: ver o mundo e saiu a realizar essa viagem admirável da qual nos deu, há pouco, as linhas gerais e, ainda assim, muito apagadas porque ele hoje está com a melancolia: há luar, é sempre assim.

— É, então, um lunático?

— Não sei, diz que o luar lhe reaviva todas as recordações. Pensas, talvez, que foi dormir? Não, foi andar e andar até de manhã. Vai a pé a Botafogo, fica horas e horas a passear ao longo do cais, falando só, ou falando ao mar; detêm-se diante de certas casas, olha demoradamente, depois segue cantarolando, como para disfarçar uma tristeza; é sempre assim, quando há luar.

Chama-se Pinheiro, Pinheiro Chicote. Dizem que, de volta da Europa, enamorou-se de uma formosíssima senhora e desposou-a. A princípio, por vaidade, abriu os seus salões, recebendo com fausto; levou a mulher aos bailes da corte, aos espetáculos no Provisório, a garden-parties, de repente retraiu-se; nunca mais a senhora foi vista em parte alguma, e entraram a dizer que, numa cena violentíssima de ciúme, o marido levantara contra ela o chicote ferindo-a no rosto e no colo. O povo entrou, desde então, a chamá-lo Pinheiro Chicote, juntando-lhe ao apelido, como antonomásia estigmatizante, o nome do instrumento vil com que ele ferira a linda dama.

Ele nunca se referiu à esposa nas palestras que comigo tem tido, conheço tais fatos por outras pessoas que o alcançaram ainda no tempo brilhante.

A senhora morreu, dizem uns, outros afirmam que o abandonou e que ainda vive; não sei. Ele é o que vês — um misantropo, com essa erudição de viagens e um pouco de poesia melancólica no coração. De resto — bom homem, posto que, algumas vezes, tenha verdadeiras crises de mau humor tornando-se insuportável. É de um orgulho desmesurado: sofre fome para não pedir e, se apanha algum dinheiro, vai a correr, para a estação das barcas para, sentir-se no mar. Tem a nostalgia das águas que o levaram a todos os pontos do mundo onde havia alguma coisa que ver, e admirar; e tem, talvez, um remorso que lhe tira o sono, que o irrita ou que o prostra em longa e muda melancolia, dias seguidos. Fala seis línguas, e é um crítico de arte admirável. Onde mora ninguém sabe, dorme, às vezes, aqui, outras vezes em casa do Rodrigues, e nas noites de luar caminha. É tudo quanto sei.

— E que faz?

— Nada. Já lhe quiseram dar um emprego, rejeitou com desprezo. Quer a sua independência absoluta, não sabe obedecer.

Anos depois, uma tarde, achava-me eu no largo da Carioca, à espera do bonde, quando ouvi uma gritaria e gargalhadas estrondosas que vinham da rua de Santo Antônio — voltei-me e vi aparecer, à frente de uma grande malta de garotos, roto, brandindo furiosamente um velho guarda-chuva, o Pinheiro Chicote.

Estava envelhecido e magro, o casaco era um trapo, as calças pretas, puídas na barra, reluziam. Caminhava apressado, gesticulando; de repente, sentindo perto os pequenos que diziam chufas, que lhe atiravam imundícies, que o puxavam pelas mangas, pelas abas do casaco, voltou-se e foi um chorrilho de obscenidades. Um polícia interveio defendendo-o e ele lá foi, atirando os braços, com acenos ameaçadores, e desapareceu na rua de Gonçalves Dias, perdido na multidão que subia apressada. Recolhido ao Hospício foi, enfim, libertado pela morte.

Esse grande desgraçado que, para uns, sofria as torturas de um remorso, que, para outros, era apenas um nostálgico da fortuna, vivia do passado: na maior miséria sustentava-o a recordação dos dias felizes que, no dizer do Dante, constitui a provação maior; para ele era a felicidade.

Olhar as águas verdes e irrequietas do mar era para o infeliz um consolo — por elas seguira outrora, moço e rico, e elas o viram feliz em tantos portos diversos, gastando a mãos largas; por elas tornara para agasalhar-se na pátria tendo por companheira uma senhora de esmerada educação e de fascinadora beleza. Fora injusto e cruel com ela, as erínias vingaram-na e o mísero Pentêo pôs-se a errar pela cidade, pobre e solitário, ao luar e ao sol, revendo os sítios em que fora feliz: aqui certo balcão de um antigo prédio, que fora seu, talvez, de onde, ao lado dela, olhara tanta vez aquelas mesmas estrelas do céu; adiante um jardim onde deixara uma lembrança do seu carinho numa árvore que ele vira pequenina e que, então, abria uma copa frondosa; os montes, os campos, o mar, o mar sobretudo...

Essa insistência da visão das coisas antigas devia ir abalando o pobre espírito — não foi a miséria que levou ao desespero a alma orgulhosa, altiva e sofredora do miserando, foi a saudade, foi a lembrança da ventura que, a princípio, o sustentava como a hera sustenta as ruínas mas que, insinuando-se por todas as frinchas e taliscas, acabou por estalar aquelas fracas resistências dando com a pobre alma na loucura. E que fazia o louco? Não vociferava, não investia, não ameaçava — só, monologando, ia e vinha pelos compridos corredores apontando coisas imaginárias, sorrindo, admirando.

Às vezes corria — não julgassem que ia praticar alguma maldade, não; ia tomar o comboio para Jerusalém ou o trenó para atravessar a estepe e, sorrindo, acenava adeuses fugindo na loucura para aquele passado, na visão suave do que fora, dentro do eterno sonho.

Nas noites de luar acendiam-se-lhe os olhos, tremia e pálido, sem poder conciliar o sono, não se aquietava enquanto não lhe permitiam ficar junto a uma janela olhando, através das grades, a lua pálida no céu.

Que lhe recordaria o astro meigo? Talvez um amor no deserto ou, quem sabe? A sua brutalidade de ciumento.

Que descobriria na lua triste? Seria ele um dos predestinados de que fala Raimundo Correia no seu Plenilúnio? Talvez... A lua...

Há tantos olhos nela arroubados,

No magnetismo do seu fulgor!

Lua dos tristes e enamorados,

Golfão de cismas fascinador!

Astro dos loucos, sol da demência

Vaga, noctâmbula aparição!

Quantos, bebendo-te a refulgência,

Quantos por isso, sol da demência,

Lua dos loucos, loucos estão!

 

D. JOÃO DE MARAÑA

Na lápide de uma tumba rasa que serve de limiar à portaria da igreja da Caridade, em Sevilha, lê-se em letras gastas pelo contínuo roçar dos pés, este epitáfio sombrio: “Aqui yace el peor hombre que fue en el mundo”.

Diz Mérimée que tais palavras, ditadas no momento da morte por aquele que debaixo delas repousa, como se quisesse ficar sob um perpétuo estigma ou sob um perpétuo anúncio, ou foram sugeridas por um humilde arrependimento ou inspiradas por um desmarcado orgulho.

O corpo que ali jaz foi o de um galhardo fidalgo, destemido e afrontoso, horror de Sevilha e de Salamanca, herdeiro da fortuna e da nobreza dos condes de Maraña, infame rausor de virgens, profanador de claustros, grande acutilador e matador de homens.

D. Carlos de Maraña, vencedor dos Alpuxarras (Alpujarra), era de antiga e ilustre casa sevilhana, famosa nas crônicas esforçadas do tempo das grandes guerras. Depois de muito talhar mourisma, destroçando aduares, escalando muralhas e levando, à frente da sua mesnáda afoita, a cavalaria do Islã batida e confundida, muito cansado de “montear” os cães de Mafamede e não menos enfastiado de aventuras, resolveu recolher ao seu palácio, nos arredores da cidade, no silêncio sombrio de um parque de velhas árvores, com muita terra de semeadura para o fundo, onde verdejavam olivedos e vinhas.

Os fâmulos, com as contínuas e demoradas sortidas do fidalgo, ficavam a cochilar no imenso e soturno palácio e, de tempos a tempos, acordados pelo mordomo, lá iam aos salões: abriam largamente as janelas ao sol e ao ar, sacudiam a densa poeira que encobria os quadros, açacalavam as armas das panóplias, bruniam os mármores dos móveis, batiam as tapeçarias, mas o senhor não tomava e, de novo, o palácio recaía no silêncio, fechado à luz como um solar abandonado e maldito.

Às vezes, um cavaleiro, coberto de pó, com as armas sem brilho, refreava, diante da grande casa armoriada, o ginete esfalfado, apeava e, com o punho da espada, batia de rijo na porta principal, chapeada de ferro, como a de uma fortaleza. O som estrondava longamente — acudiam, a correr, os fâmulos sobressaltados, olhavam pelo postigo gradeado e, reconhecendo o cavaleiro, com esforço faziam rodar a porta emperrada e pesada de cujos gonzos, no lento girar dos quícios, caía, como a farinha da mó, uma vermelha poeira de ferrugem. O cavaleiro penetrava, era acolhido com alegre alvoroço, dava-se-lhe do melhor vinho e da melhor fruta e, à noite, em torno da grande mesa, ao chamejar da lenha, secando canecos, ele narrava à boa gente doméstica os feitos maiores do senhor que lá ia, ao longo das praias, repelindo para o mar o ismaelita corrupto, levando-o, à ponta de lança, como o campino, na lezíria, apua a pampilho o touro — e, até noite alta, quando o fogo morria, os fâmulos, em silêncio, maravilhados e orgulhosos, escutavam as descrições das proezas do lidador. Na manhã seguinte o cavaleiro apressado montava um animal robusto e, com outro à destra e machos resistentes, lá ia levando novas armas ao campeão que pelejava e vencia a peito descoberto.

Veio, porém, o fastio da vida errante e incerta e o fidalgo, com mais de uma ferida no corpo e um grande talho da alfanje na face acobreada, entrou no seu palácio e, suspendendo o montante e o morrião, despindo a couraça abolada que foi brilhar, como um troféu, entre as luzentes armas dos Maraña, mandou abrir, de par em par, todas as portas e janelas, e, nesse dia, velhos morcegos, que se haviam acolhido, como em ruínas, aos ângulos daqueles salões, deslumbrados pelo grande sol que entrava fulgurante, puseram-se a esvoaçar pesadamente, indo de encontro às telas, ferindo-se nas ascumas, aos trissos, e foi para a gente doméstica uma divertida e ruidosa caçada.

D. Carlos, porém, habituado à vida agitada dos acampamentos, sentindo-se muito só naquela imensa morada, pensou em tomar esposa. Como, pela vida que adotara, andasse sempre longe, não conhecia as damas sevilhanas, despindo, porém, as armas e cobrindo-se de veludos, com um gracioso florete ao flanco, antes adorno que defesa, fez-se o mais assíduo galanteador nos salões da nobreza, procurando, com sagacidade, uma donzela que fosse, em tudo, digna do seu nome e do seu amor. Achou o que buscava, não no esplendor da cidade mas no retiro virtuoso de um paço de velha nobreza, calmo no seu recato, todo em sombras de árvores, à beira do Guadalquivir.

D. Ignez, nascida e criada naquele pensativo solar, onde apenas viviam damas, que o pai lá lhe ficara em guerras, na costa do mar, junto do filho que o seguira, muito moço ainda, mas já ardente em batalhas, era de uma pálida beleza, mais branca do que as imagens do seu oratório contíguo ao quarto em que dormia, fechado a ferros como uma cela de monja ou o ergástulo de um galé.

O primeiro homem que os seus olhos calmos contemplaram com a demora de um olhar foi D. Carlos, o guerreiro acérrimo, junto de quem ela ficava como um lírio fraco e languido perto de um roble anoso. De vê-la a pedi-la não houve demora e logo se anunciou pelas casas armoriadas o casamento do conde batalhador com a delicada filha dos fidalgos de Beira da Água. As bodas, como convinha a duas famílias de tanta prosápia, foram suntuosas: três dias duraram as festas e a gente dos campos desceu a admirar a riqueza e a fulgurância do palácio dos Maraña.

Anos tristes passaram sem esperança de herdeiro; uma manhã, porém, D. Ignez, a chorar e a tremer nervosa, deu ao conde a notícia grata de que se achava fecunda, e, meses depois, na hora da tarde, com o canto dos frades que enchiam a capela, nasceu, robusto e lindo, o varão que devia honrar e continuar a glória das duas casas.

Levado à pia com solenidade — dobravam alegremente os sinos como nos dias grandes da religião — recebeu o infante o nome de João e cresceu entre os círios e as rosas da capela onde a mãe, que o tinha por dom divino, com ele desaparecia a rezar. O conde, taciturno, medindo os vastos salões a duras e largas passadas, murmurava contra aquele vergar de alma e, quando, longe das vistas da mulher, achava o filho curvado, a folhear velhos livros cheios de iluminuras devotas, lá o arrancava com violência e, trancando-se com ele na sala de armas, ia-lhe apontando, um a um, os retratos dos avós, citando-lhe os seus feitos, descrevendo batalhas e, ora brandindo uma espada, ora embraçando um escudo, ora enristando uma lança, arremessando-se e recuando, aos brados estrondosos, dava-lhe ao vivo o exemplo dos combates quando, na confusão da peleja, os ginetes acobertados chocavam-se com estridor e as lanças voavam em estilhas de encontro aos aceiros rijos. E, como o menino, em cujas veias ardia o sangue bravo dos heróis de duas temíveis linhagens, se fosse inclinando àquele gosto que renascia no pai, deu-lhe o fidalgo um destro mestre de armas e, assim, entre esfiar de rosários e botes e arremetidas, devoções no oratório e retinir de espadas no salão ou no parque, foi crescendo o mancebo que devia continuar, com honra e denodo, a tradição dos Maraña.

Vendo-o o conde desenvolto e robusto, resolveu despachá-lo para Salamanca, onde florescia a Universidade.

D. Ignez, ao despedir-se do filho, encheu-lhe os bolsos de rezas e amuletos, pedindo-lhe que se lembrasse sempre do quadro que havia na capela doméstica, representando as almas do purgatório, sofrendo nas chamas espicaçadas por demônios negros, entre monstros esvoaçantes.

Que a não esquecesse nas suas orações, para que a sua alma não chegasse a penar como penavam as da tela sinistra. D. Carlos, cingindo-lhe uma espada de boa têmpera, lembrou-lhe a honra dos Maraña que ele ia continuar e engrandecer. E o moço partiu.

Em Salamanca fê-lo o demônio encontradiço com o estudante mais estroina da Universidade, D. Garcia, nobre e airoso moço que andava esfarrapado por gosto e blasfemava por bazofia. Ligaram-se os dois — de dia dormiam pelos grabatos das baiucas ou nos alcouces das marafonas, entre restos de orgias; à noite, traçando as capas, com a guitarra e a espada, lá iam pelas ruas e calejas acordando as virgens que acudiam aos seus cantares sedutores. Rara era a noite em que D. João, recolhendo, não referia ao companheiro um novo crime — ou de desonra, descrevendo, com lascívia cínica, a beleza profanada, ou de morte, comentando o golpe com que prostrara o desconhecido na treva deserta de uma esquina. Tantos e tão seguidos foram os seus crimes que, a conselho de D. Garcia, que temia um levante dos burgueses e a rispidez do corregedor, abandonou Salamanca, passando-se a Flandres a oferecer a sua espada e sua lealdade ao férreo duque de Alba.

Tornando, porém, a Sevilha, onde o palácio, por morte dos fidalgos, reentrara no antigo silêncio, uma noite, num fim de orgia, gabou-se D. João de haver ultrajado no amor toda a casta de homens: rolara com mulheres no estrame do pastor serrano e em damascos de leitos reais; tivera mesmo nos braços, nua e ardente, àquela que, em Roma, todos inculcavam como amante do Santo Padre — só lhe faltava, na lista dos traídos, um nome — o de Deus. Foi, então, que alguém se lembrou de o excitar ao derradeiro e mais hediondo ultraje e, para enraivecê-lo, sorrindo com incredulidade, desafiou-o a rematar a lista infame com o nome que faltava.

Pálido, oscilando, ergueu D. João o cântaro espumante e emprazou os companheiros para um festim que seria presidido por uma freira. Beberam todos e o sol, entrando pelas janelas enramadas de trepadeiras, dispersou-os.

Na manhã do dia seguinte estava D. João no leito quando ouviu tanger de sinos e lembrou-se que ali perto, na vizinhança, a curtos passos de sua residência, erguia-se um convento de freiras, casa de muita pureza, de onde jamais saíra para o mundo o eco mais leve do mais leve escândalo. Ali quis ele ensaiar a sedução e, vestindo-se à pressa, com austeridade, encaminhou-se ligeiramente para o seu posto. Entrou e, seguindo, com ar contrito, por entre bancos e genuflexórios, foi ajoelhar-se junto às grades que separavam as freiras e as noviças da multidão dos devotos do ofício da manhã. Logo, lançando o olhar arguto ao gineceu sagrado, pode ver entre as monjas uma ainda moça e de perturbadora beleza. Tanto, porém, que deu sem ela, bateu-lhe o coração e a si mesmo, baixinho, lançou esta pergunta: “onde vi eu este rosto?” E a freira, por seu lado, tremia e baixava os olhos corando, com o que mais se lhe avivava a formosura.

Atentando na face da religiosa lembrou-se de certa donzela de Alcalá, herdeira de um nome puro que ele, em delírio sensual, enxovalhara. O nome subiu-lhe aos lábios: “Tereza”; com ele, porém, na mesma lembrança, veio toda a tragédia que rematou tristemente aquele caso de amor: o velho pai, que os surpreendera, ferido de morte no vão de uma escada, um lacaio a escabujar em sangue e ela fria e pálida, caída como morta e seminua sobre os linhos do leito profanado.

Tereza tremia, mas o amor, que não lhe deixara o coração, subiu como um sopro abafado que um sopro de brisa ateia e logo rebrilha e chameja.

Houve entre ambos o entendimento dos olhos, corresponderam-se com as centelhas das pupilas e, mais tarde, pondo D. João o jardineiro do seu lado, fácil lhe foi falar à monja e logo a rendeu, combinando-se entre os dois a fuga para a noite próxima. Uma liteira bem fechada e guardada por homens bravos viria esperá-la a par do muro, numa viela deserta; o jardineiro guiá-la-ia ao caminho e, para que não sucedesse, no caso de ser ele interrogado, dizer o que sabia, um dos lacaios devia emudecê-lo para sempre; com tal recado dera-lhe o conde um dos punhais mais finos da panóplia venerável, arma que os de Maraña só haviam utilizado, com lealdade e bravura, defendendo a Fé, defendendo a Pátria ou defendendo a honra.

D. João não viveu as horas que o afastavam do momento alegre e de vaidoso triunfo em que devia aparecer entre os companheiros, conduzindo pelo braço a esposa do Senhor. Chegada que foi a noite, lá se foi ele postar no sítio mais escuro, à espera que soasse a hora determinada.

Era pelo começo do outono; um vento frio picava e as corujas passavam no ar brumoso com um chirrio lúgubre.

Impaciente ia e vinha o fidalgo, quando ouviu um coro de vozes tristes que pareciam entoar um canto religioso. Devia ser no convento, pensou — alguma prece noturna... mas não, era um canto merencório, de morte, e ele, que olhava, viu aparecer ao longe uma procissão sinistra — duas longas filas de penitentes negros, com círios, encapuchados em cogulas, precediam lentamente um esquife forrado de veludo e trazido aos ombros de monges de longas barbas brancas e armados como guerreiros.

Apesar do vento as chamas dos círios conservavam-se direitas e as estamenhas dos homens mantinham-se imóveis, duras como as roupagens de pedra das estátuas e, sendo eles numerosos, não se ouvia, entretanto, o mais surdo rumor de passos.

A procissão encaminhava-se para uma velha igreja arruinada e desprezada. Como o primeiro penitente passasse junto do fidalgo, cuja curiosidade ia crescendo sempre, ele dirigiu-lhe a palavra perguntando: “quem era o que levavam a enterrar?” O penitente levantou a cabeça e o nobre moço viu dois olhos que pareciam arder e um rosto agudo, macilento e marmóreo como o de um morto e o estranho andejo disse sinistramente:

— Senhor, é o conde D. João de Maraña. Ele sorriu afetando indiferença, certo de que o farricoco, que o reconhecera, quisera zombar do seu ânimo e foi com a procissão como atraído.

O cortejo seguia no mesmo andar pausado e surdo e achava-se ainda a alguns passos da igreja quando, entre os velhos muros, reboou tristonha e fúnebre, a voz grave do órgão e logo, no limiar, apareceu um grupo de padres entoando cavernosamente o De profundis.

Deposto o esquife no cenotáfio formaram alas os penitentes para a vigília funérea; então, já aterrado com todo aquele cerimonial, o conde adiantou-se e dirigiu-se a outro penitente, perguntando-lhe — quem ali jazia? E o homem, numa voz cava, respondeu como o primeiro:

— Senhor, é o conde D. João de Maraña. Alucinado, o moço fidalgo arremeteu e, querendo empurrar os penitentes, a sua mão impetuosa passou através dos corpos como por um fumo negro — subiu, em desvario, os degraus do cenotáfio, chegou ao esquife — nesse momento na torre do mosteiro soava vagarosamente a hora do sinistro ajuste: Thereza, ansiosa e medrosa, devia vir pelo jardim silente supondo-o escondido na sombra quieta das árvores. Violentamente descobriu o rosto do cadáver, inclinou-se e viu — era ele que ali estava estendido, as mãos duramente enclavinhadas no peito, lívido, hirto e frio; era ele mesmo, bem lhe haviam dito os penitentes — era D. João de Maraña, filho do conde Carlos, rausor de virgens, roubador e matador perverso. Em torno, sombriamente calados, imóveis, velavam os penitentes negros.

Curvavam-se-lhe as pernas, um suor frio escorria-lhe da fronte, faltava-lhe o ar. De repente levantou-se na igreja uma grita estrondosa e medonha: “a nós, o infame! A nós, o dilapidador! A nós, o devasso!” E, de toda a parte: das ruínas dos nichos, dos vãos dos velhos altares, dos escombros do coro, quebrando, com estrépito, as lajes sepulcrais que assoalhavam a nave, surgiam sombras pálidas e nelas ia o conde reconhecendo as suas vítimas amorosas e as que haviam caído a golpes de espada e punhal — lindas moças conspurcadas, velhos cujas barbas brancas esvoaçavam, mancebos de uma graça inda infantil e todas mostravam as feridas sangrentas ou vociferavam contra o enganador que as manchara e esquecera.

A velha igreja enchia-se, atroavam os clamores e, nas cimalhas, nos florões dos capitéis, nas cornijas, demônios rubros, de cornos em brasa, riam com esgares, balançando-se suspensos das caudas, brandindo garfos que chamejavam.

Na manhã seguinte alguém passando, por acaso, pelas ruínas da igreja, viu, caído entre os destroços de um muro, o moço nobre — a seu lado jazia a espada nua e úmida do orvalho. Não lhe acharam no corpo ferimento algum.

Recolhido ao palácio ali esteve, entre a vida e a morte, longas e tristes semanas, a cuidado de um velho dominicano e, melhorando, viram-no os fâmulos sair, envelhecido e curvado, seguindo com o religioso para desconhecido sítio.

Tempos depois todos os bens dos Maraña eram convertidos em esmolas e mais um frade rezava no coro dos dominicanos.

REABILITAÇÃO

Baptista Tornielli, escrevendo ao Aretino, disse, com deslavada e cínica subserviência: “non sapete voi, che con la pena vostra in mano havete soggiogato piú principi, ch’ogni altro potentissimo príncipe con l’arme? La pena vostra a quale non mete terrore, a quale non é formidabile?” O próprio Aretino deixou dito em uma carta: “...la maggior parte de i gran maestri non temono l’ira di Dio, e temerano il furore de la mia pena”.

Quando a morte aliviou Veneza daquele díscolo que a depravava, choveram os epitáfios e, em todos eles, transparecia o ódio que o grande difamador criara em torno da sua pessoa detestada e temida.

Entre os muitos, citados pelos biógrafos, há este que resume a vida abocanhadora do “sozzo cane”:

Qui giace l’Aretin poeta tosco

Che disse mal d’ogum, fuor che di Dio

Scusandosi col dir: non lo conosco.

A palavra, posta a serviço de uma ideia generosa, fulgura como um astro, empregada por um vilão é como a centelha do pântano. Os mesmos vocábulos que o Aretino, como um vulcão de lama, arremessara de Veneza sobre as reputações manchando-as, são esplendores nos versos de Dante e Petrarca.

Victor Hugo, na Reponse a un acte d’accusation, um dos golpes mais rudes vibrados contra o pedantismo clássico, fez uma brilhante defesa do vocábulo humilde, desses míseros e desprezíveis termos do populacho que não entram nos dicionários para que não maculem as nobres expressões de estirpe, descendentes de sonoros verbos gregos ou latinos ou, mais remontadas ainda, podendo mostrar a sua origem nos livros da Índia venerável ou da Pérsia heroica.

Ele desceu ao patois e foi buscar a farândola da gíria, penetrou o argot misterioso e trouxe para o esplendor da sua estrofe os vocábulos esmolambados, descalços, sórdidos, cambaleantes que os poetas escrupulosos e os prosadores brasonados evitavam como se evita nas ruas um bêbedo que resmunga, aos trancos ou um mendigo esfarrapado.

Toda palavra tem uma missão, é um ser:

Car le môt, qu’on le sache, est un être vivant...

E o grande poeta, o denodado renovador, acabando com os preconceitos, num generoso impulso, enriqueceu a língua francesa com aquela horda formidável que fazia pensar numa avalanche de bárbaros, como os hunos grosseiros de Atila, rompendo fragorosamente pelos períodos moles, estrondando nos versos alambicados, com a brutalidade de invasores poderosos que trouxessem um sangue novo e pululante para trasfegar nas veias dessoradas dos consumidos nobres dos glossários.

E, como nos tempos rudes, um scytha, coberto de peles sedosas, com grandes e desabridos gestos, vozeirando, bramando, rugindo, saltava do cavalo ardego para sentar-se no trono de um monarca efeminado, gasto pelas orgias, assim os rudes filhos do povo, os termos ressoantes do calão da plebe, subiam a escadaria de mármore da estrofe e iam impor-se anônimos, sem etimologia conhecida, colocando-se orgulhosamente entre um verbo cujo radical vinha dos tempos da Ilíada e um adjetivo contemporâneo de Fabio Pictor.

Sombre peuple, les mots vont et viennent en nous

Les mots sont les passants mystérieux de l’âme.

Que é a ideia sem a palavra? Uma alma errante, julgais, talvez, que há homens mudos? Engano: há homens cárceres: as palavras lá andam dentro deles como galés em um presídio. Algumas logram, às vezes, evadir-se e saem coxeando, tartamudeantes, como se ainda lhes pesasse a grilheta. A palavra, é, pois, o corpo da ideia e porque havemos nós de repelir essas criaturas do sentimento, da impressão do povo? Não lhes perguntemos de onde vêm — são os garotos do pensamento mas, quantos desses garotos têm conseguido a consagração dos léxicos?

Os clássicos não admitiam a promiscuidade, lá diz o poeta na sua Resposta fulminante, queriam que os vocábulos apresentassem certidões, que lhes mostrassem as raízes da árvore genealógica e, se desconfiavam da bastardia de algum deles, logo o repeliam, com desprezo e rebuscavam um substituto digno, de sangue azul, que fosse o introdutor do pensamento na circulação.

Se o termo se tornava antiquado esqueciam-no — era como um inválido, quando não o enterravam pondo-lhe como epitáfio o lema: arcaico — ele ninguém ousava exumar o cadáver que lá ficava, não apodrecendo, mas imobilizado como uma múmia entupida de resinas e envolta em ligaduras, com a ideia que representara, ao lado, como o escaravelho egípcio, símbolo da alma imortal.

Victor Hugo não só adotou o baixo dialeto como reanimou os arcaísmos e quantos deles brilham nas suas estrofes, remoçados como o Fausto, ligando o passado ao Futuro?

II n’y a qu’un mót pour dire les choses, creio que é de Flaubert este admirável axioma e aquele escritor que quiser apresentar o povo com verdade terá de lançar mão do seu vocabulário. Gautier recomendava insistentemente a leitura dos dicionários: “Lisez les dictionnaires!” e Victor Hugo disse:

   Chacun a quelque chose en l’esprit;

Et tout home est un livre oú Dieu lui-même écrit.

Chaque fois qu’en mes mains un de ces livres tombe,

Volume oú vit une âme et que scelle la tombe,

J’y lis...

Eis a razão porque ele, procurando traduzir a vida das suas personagens, serviu-se da linguagem peculiar a cada uma.

Eu mesmo — e sirvo-me do exemplo — senti uma detestável impressão a primeira vez que vi um índio em um núcleo de catequese.

Atravessando a floresta ia eu imaginando, com delícia, encontrar um homem reforçado e nu tendo apenas, em torno dos rins, um enduape de penas e, na cabeça altiva, um kanitar tremulante e calculem a minha decepção quando me achei diante do cacique dos tembés que arfava apertado numa farda de capitão da guarda nacional.

Dá-se o mesmo com a expressão — ela, para impressionar, não deve vir disfarçada, os mestres antigos compreendiam assim, o eufemismo é o envilecimento da ideia.

Il n’y a qu’un môt pour dire les choses... o mais é artifício e, se o povo tem a sua vida especial, as suas emoções próprias, porque não havemos nós de as traduzir com o cunho forte e ríspido da sua origem?

As expressões populares são sempre representativas — ou são satíricas como as caricaturas ou onomatopaicas — tomemo-las e demos-lhe um lugar nos dicionários, introduzamo-las na obra de arte porque, ao lado dos grandes quadros místicos dos mestres do Renascimento, podem figurar os desvarios de Goya e Callot não perde aparecendo entre as verdes paisagens de Tadema nem em confronto com as finas carnes amorosas das mulheres de Cabanel.

A reabilitação do baixo vocábulo deve-se, em França, ao mais nobre dos poetas contemporâneos que levou para a língua a mesma ideia democrática da igualdade apregoada na vida social, pelo programa da República.

Todas as palavras são nobres porque vêm da alma ou, como disse o grande paladino dos simples:

    Car le môt, c’est le Verbe, et le Verbe, c’est Dieu.

A SORTE

A bruma viera cedo apressando a noite, a noite maior, e trazendo o frio, o bom frio do S. João. Não havia uma estrela, certamente Jesus as escondera para que o essênio bravio, que acabou às mãos de Mennaei, no fundo do cárcere de Machaerous, perto das cavalariças de Herodes, onde brilhavam, como de neve, as trezentas éguas brancas da Arábia que Vitelio arrebanhou, maravilhado, não se aproveitasse de alguma para, com ela, incendiar o mundo. Não havia uma estrela, em compensação, de instante a instante, alguém bradava no terreiro anunciando um balão. Corriam todos contentes, numa chalrada ruidosa, as crianças empurrando os velhos e, na varanda, ao frio, ficavam a olhar o fogo errante que lá ia oscilando, aos boléus, em direção às montanhas.

A fogueira alta ardia no terreiro espalhando um rubro clarão que chegava às árvores tingindo-as de sangue e tornando a folhagem rutilante. Por vezes, ao abater de um tronco encarvoado, fagulhava um enxame de faíscas alegres que estralejavam e morriam. As crianças levantavam um alarido saltando e batendo as palmas: “as abelhas de S. João! As abelhas de S. João!”

Súbito, um foguete arrancava e lá subia serpentinando, explodia, dois, três estouros ou eram bombas que estrondavam. Feixes de cana, rimas de batatas e de carás esperavam a um canto, perto de uma aroeira, a hora do pagode, como dizia tio Chico.

Violas e cavaquinhos preludiavam e, lá dentro, na casa iluminada, era um ir e vir de gente apressada em torno da mesa florida onde já os grandes bolos tostados, os cremes, as gelatinas, os sequilhos empilhados, os alfenins alvíssimos e as compoteiras desafiavam a gula da petizada e mesmo dos taludos que rondavam aquele altar esquecendo o outro, armado numa saleta, entre verdes folhagens, onde S. João, cercado de círios e de rosas, com o cajado e o melote ao ombro, seguido do cordeirinho, estendia a mão como a abençoar.

As velhas faziam-lhe a corte — volta e meia lá estava uma espevitando os círios, afastando um galho pendido ou contemplando, com enlevo, a imagem. Outras chegavam e, de mãos enclavinhadas, ficavam um instante a olhar, com um movimento trêmulo dos lábios. Só a dona da casa, muito ocupada com a ceia, não se detinha ante o santo — quase que nem olhava, tendo-o por uma “divindade doméstica”, um íntimo com o qual não fazia cerimonias. As outras que pedissem à vontade, ela não precisava; tinha-o todo o ano em casa e, quando quisesse alguma coisa, era só abrir o oratório e rezar um terço.

No peitoril de uma janela, ao sereno, um copo de água esfriava — alguém ali o deixara, com um ovo dentro, para ver a sorte à meia noite. Tiravam-se os primeiros cantos logo interrompidos pelas gargalhadas... recordações alegres de outros anos. “Quá, gentil” e lá iam os tangedores, dobrados sobre os instrumentos, ponteando com bravura, qual mais ágil, qual mais faceiro, repinicando os bordões que ressoavam cheios, pondo um arrepio em todas as raparigas. Mas, a noite esfriava deveras; uma aragem gelada vinha de fora; pipocavam foguetes, crepitava a fogueira; mas era inverno bravo, os dedos estavam duros. “Genti, issu assim não vae...”.

Tio Chico entendeu as falas e foi logo, pressuroso, buscar o restilo para animar o povo. “Sim, que encarangados eles não podiam mesmo tocar coisa que prestasse e a noite estava dura. Ele mesmo, que não era friorento, estava ali fazendo de forte, só Deus sabia como”. E lá foi o codório, no mesmo copo de vidro grosso, de mão em mão, e era um pigarrear satisfeito em todo o bando. “Agora pega, genti! mas pega cum sustância, nada di afrouxá”. Oia ca genti não sabe si chega p’r’o ano!” “Cruz! Credo!” rebateram o agouro. Havemos de chegar, porque não? O santo não está ali? Qui mais! Deixa di falas tristes — que a morte tem di vir todo o mundo sabe mas o melhor é não falá nela. Que venha quando Deus quizé”. “E que seja bem tarde!” Disse um dos violeiros e Casimiro, que era folião, acrescentou com a sua voz cheia: “permita Deus que ela, quando tivé di vi p’ra mim, dê uma topada no caminho e fique concertando o pé uns bons par de anos...” Houve riso e um “Pois sim!” Atirado num muxoxo.

Mas uma das violas rompeu e as outras, em concerto, com os trêmulos dos cavaquinhos e os graves dos violões, deram o sinal da dança.

Uma a uma, graciosamente, foram as moças cedendo aos convites dos rapazes e, em pouco, os pares revoluteavam e era um sorriso só em todos os rostos, um só brilho em todos os olhos e que aroma na sala, de canela e de lírios, lírios das águas, dos que nascem do mururu no meio das lagoas, nos remansos dos rios, brancos, tão brancos, que até dizem que são restos da lua cheia que ficam nas águas e que vêm à tona, de noite, pedindo à lua que os recolha.

As velhas, sentadas pelos cantos, enlevavam-se nas graças das filhas e, quem sabe lá se aqueles sorrisos, que lhes franziam mais os rostos encarquilhados, não se referiam às suas reminiscências, ao bom tempo de antanho, quando elas, novas e lindas como aquelas que ali dançavam, cingidas por braços de rapagões, ai! deles, ouvindo-lhes as palavras iam, quase sem sentir o chão, fazendo voltas airosas e leves como se os mancebos fortes as levassem ao colo, carinhosamente, por um sonho fora. Ai! tempo. E as violas zangarreavam alegremente e lá fora, com a grita das crianças, ia morrendo a fogueira e a bruma crescia como o fumo de uma fogueira maior que ardesse longe, no céu, talvez, para recreio dos anjos.

— Mas, genti, que dê Luzia?! A esta exclamação lançada, de improviso, no meio da sala que refervia, detiveram-se todos entreolhando-se pasmados. Os violeiros, que afinavam os instrumentos, levantaram as cabeças filando a dona da casa que, de braços cruzados, olhava ora para um, ora para outro como à espera de uma resposta. A mocinha ali não estava, não estava lá dentro; dançara uma polka, a primeira, com o Firmiano, isso dançara, mas não a viram mais. “Quem sabe se ela foi-se deitá? Já olharam no quarto?” — “Não está!” Afirmou a dona da casa com a voz oprimida.

Já as senhoras se haviam espalhado pela casa, invadindo os aposentos, chamando a mocinha. Tio Chico chegou à varanda e pôs-se a bradar para o terreiro onde a fogueira morria esquecida: “Luzia! Luzia!” Nada! Um balão fugia pelo ar escuro levado pelo vento, longe o risco de fogo de um foguete coriscou no negrume; as árvores buliam devagarinho e, no silêncio, ouvia-se bem a queda da água no moinho, perto. “Luzia! Onde se terá metido essa rapariga?” Chegaram outras pessoas à varanda, olhando, chamando.

As moças cochichavam reunidas e já pesavam suspeitas sobre a mocinha quando, de novo, a voz de Tio Chico se fez ouvir: — Que é aquilo ali em baixo? Vocês não estão vendo um vulto? Ali para os lados dos bambus?

— Sim... Parece... E o velho bradou de novo: “Luzia!” Um cão pôs-se a ladrar na sombra. “É gente! É ... E é gente conhecida... O Tigre que calou a boca é porque é gente de casa”. As senhoras romperam pela varanda aflitas quando um dos violeiros disse: “Vem gente ali, e é mulher...” “Luzia!”

— Eh! responderam.

— Que é que você anda fazendo lá fora com essa noite, menina? Era ela. Vinha devagarinho com um punhado de lírios na mão e coroada de lírios. Entrou calada, sorrindo timidamente, a brincar com as flores.

Cercaram-na e a dona da casa avançou sem poder conter a fúria:

— Que é que você foi fazer lá fora, pequena? Onde estava? Fala. Tio Chico quis intervir, já disposto a perdoar a escapada, mas a mulher, de pé diante da mocinha, com as mãos nas cadeiras, olhava-a a resmungar ameaças. Luzia, de olhos baixos, esmagava os lírios alvos sem dizer palavra, com um sorriso triste no rosto moreno e lindo.

Foi uma velha quem descobriu o segredo:

— Que horas são? Perguntou.

— Vai para a uma, disseram.

— Então está aí, Luzia foi à fonte. Pois vocês não estão vendo que ela está cheia de açucenas? A rapariga levantou vivamente a cabeça e fitou-a indiscreta:

— Pois fui mesmo, disse altiva; fui e que mal há nisso? Cada qual sabe de si e Deus de todos. Fui... E, nervosa, desatou a chorar.

Foi bom assim porque a gente que a cercava sentiu um grande alívio, foram-se as suspeitas e as companheiras que a julgaram mal, como se as picasse o remorso, cercaram-na carinhosamente consolando-a: “Que não chorasse! D. Ana não estava zangada. Tinham dado falta, não a viam, não a achavam em casa... Aquilo era um mato perigoso, podia ter acontecido alguma coisa, ficaram aflitos; era natural. Ninguém estava zangado”.

Ela foi, abafando os soluços, seguindo entre as companheiras para o interior da casa. Os violeiros, querendo acabar com aquelas tristezas, deram o sinal para uma quadrilha e Tio Chico foi logo dizendo que era a última, antes da ceia, e como D. Ana, muito ansiada, ainda falasse do grande susto que lhe pregara a filha ele, que estava alegre, fez-lhe uma festa brejeira no rosto gordo:

— Está bom, não falemos mais nisso, a pequena foi à fonte ver a sorte, já está aí, com a graça de Deus. Vai ver a ceia, anda; sem isso não teremos comida senão lá para a madrugada.

— Com uma noite fria assim! até pode apanhar uma coisa no peito.

— Qual, história! em noite de S. João não há moléstias. Vai, anda. Olha, a gente está fraqueando que até faz pena.

Dançava-se com entusiasmo a terceira parte da quadrilha, marcada, aos berros, pelo Gustavo da Roça nova quando um tiro estrondou no terreiro. Os cães ladraram com fúria mas, quase ao mesmo tempo, uma das moças, que olhava para a varanda, exclamou corando: “Mundico, gente!”

Um rapaz desempenado estava parado à porta, de botas, chapéu à banda, o chicotinho enfiado no punho, sorrindo. Foi um alvoroço na sala, desfez-se a quadrilha; correram todos para o recém-vindo e quando o Tio Chico viu o rapaz, alegre como estava, abriu largamente os braços e caminhou para ele:

— Quê, homem! Você por aqui? Quando chegou?

— Ontem e aqui estou que é o mesmo que dizer que ainda não preguei olho. E tia Ana? E Luzia? As duas apareceram e foi um espanto ruidoso:

— Meu Deus, Mundico! Quando chegou? Você fez exame? Foi feliz? Como está gordo! E a velha mirava-o, sorrindo. Luzia, mais retraída, sorria também mas de olhos baixos. — Toma alguma coisa, rapaz; um pouco de vinho, um pouco de cana, café? ...

— Nada! Nada... Não estavam dançando? ...

— Sim...

— Uma quadrilha?

— Estávamos na terceira parte...

— Pois vamos continuar... Não há por ai uma dama? E voltava-se lançando o olhar em torno: Tens par, Luziazinha?

— Eu, não...

— Então, anda cá.

— Mas falta um vis-à-vis... disseram.

— Arranja-se. Tio Chico, titia... venham...

— O que?

— É para completar aqui o negócio, tenham paciência ... Os dois velhos, quase empurrados pelo rapaz, foram tomar lugar e os violeiros romperam. O Gustavo gritou logo, já rouco: En avant! E Mundico, inclinando-se disfarçadamente para a prima, perguntou baixinho.

— Então?

— Então?! Então é que eles desconfiaram. Eu bem dizia a você que estava demorando muito.

Châine de circunstância só para as madamas! esgoelou o Gustavo.

E as violas repinicavam com fúria.

A NOVA RAÇA

Quem conheceu o fazendeiro, o grande senhor de terras e de almas, mais poderoso do que os soberbos ricos homens da idade média, dificilmente, e com pena, o reconhecerá no agricultor atual, sombra triste de um fastígio morto, ruína melancólica de uma grandeza extinta.

Dantes, quem passava a porteira de uma fazenda, que era como uma pequena cidade encravada entre árvores, quase todas com a sua capela erguida no centro de um jardim florido, tinha a certeza de encontrar abundância e alegria: os paióis regurgitavam, o gado cobria os vargedos ubérrimos, as máquinas nublavam os ares com a poeira do café e a escravatura, numerosa e forte, espalhada pelos outeiros, punha uma nota de vida em todos os cantos, mesmo no fundo das grotas sombrias, onde a água límpida manava, negros faziam luzir os ferros agrícolas, cantando banzeiramente as suas saudades da África.

A mesa, copiosamente abastecida, dava a ilusão opípara de banquetes — chegasse quem chegasse, lá encontrava um talher e acolhida amável e, à hora em que a sopa vinha, a ferver, das imensas cozinhas, ou o sino badalava alegremente ou um negro possante saía à varanda, com uma buzina, soprando estentoricamente, para que os viajantes, que passavam nas estradas próximas, apressassem os animais e chegassem a tempo de poder refazer-se sob o teto hospitaleiro da grande vivenda rural.

As festas eram fantásticas — não é nestas linhas escassas que hei de descrever tão suntuosos regalos e só a pena abundante de um Simão Machado poderia bosquejar tais maravilhas do passado — eu não tenho as cores vivas de que se servia o pintor das procissões mineiras, no tempo rico do transbordamento do ouro.

Dizer fazendeiro correspondia a dizer nababo e quando, na cidade, aparecia um desses homens de tez queimada, com um largo chapéu de palha, calças fofas, de brim branco, casaco folgado e anéis e ourama lampejando, corria na assistência um murmúrio de assombro e todos os olhos deslumbrados cravavam-se no homem que, pelo hábito de tratar soberanamente a escravatura humilde, julgava-se, em toda a parte, um superior e, quando metia a mão nas algibeiras fundas, sacava maços de notas gordas e, às vezes, ouro reluzente, apanhado à beira dos seus córregos, que ele trazia, como amostra, para oferecer à venda.

Um filho de fazendeiro tinha foros de príncipe — era uma entidade quase sobrenatural, um como Aladino dos contos árabes. As cocotes punham-lhe cerco, os fornecedores disputavam a honra de lhe pagar o champanhe estroina, o crédito escancarava-se ao mais extravagante dos seus caprichos, e adulado, vangloriado, sempre com uma turba a formar círculo em tomo da sua pessoa, lá ia ele, orgulhoso, debicando amores, provando todos os prazeres, a espalhar notas, com a mesma prodigalidade com que um rijo vento do outono dispersa folhas secas.

Era isso no tempo em que o café valia o seu peso em ouro. Ah! O bom tempo! Hoje, o fazendeiro é um tipo de que se não fala e, quem o vê, não imagina que está diante de um descendente dos Cresos rurais, dos famosos senhores rústicos, cujos lindes territoriais iam além da linha do horizonte.

Muitas das antigas fazendas são hoje taperas ermas — o mato reconquistou, palmo a palmo, o terreno que lhes fora tomado. Veem-se casarões imensos com as paredes fendidas, os telhados cobertos de erva, os paióis em ruínas lúgubres e, às vezes, estalando os soalhos podres, pululantes de tortulhos, varando os tetos carunchosos, uma forte e verde árvore irrompe à grande luz, sacudindo vitoriosamente a sua rica folhagem, que farfalha aos ventos e abriga os passarinhos.

Perguntem pelo fazendeiro — foi desalojado pelo credor e, à luz alegre de uma manhã, com algumas relíquias num velho carro de bois, abandonou, com a família, o solar agreste, lançando-se aventurosamente a uma vida nova, como um náufrago que se salvasse nu das perfídias de uma procela.

Não julguem que exagero — copio fielmente quadros da decadência.

O fazendeiro que ainda resiste vive, como o triste profeta hebreu, desferindo lamentosos trenos — sem ânimo e sem esperança, espera resignadamente a chegada da Miséria. A terra debalde produz, debalde os campos cobrem-se de flores, de que vale tanta uberdade? Para que tanto esmalte nas campinas e nos outeiros, se o produto depreciado não dá, sequer, para o custeio da propriedade, que tudo consome?

Os que lucram são aqueles que lá andam pelos lançantes dos morros, homens, mulheres e crianças louros, como os temidos germanos de Tácito — são os conquistadores, que entraram submissamente como colonos e que, com a vida sóbria, acumulando os salários, vão conseguindo impor-se, adquirindo lotes de terras, que eles mesmos revolvem e semeiam. São os donos futuros, é a geração nova, que se impõe pela força e pela perseverança.

No dia em que o fazendeiro esgota o último recurso o colono levanta a cerviz e é vê-lo, então, dominando, como para desforrar-se do tempo da obediência passiva, ditando leis, assediando a casa senhorial, a exigir com armas e afrontas.

Quando li as palavras acerbas do livro pressago de Graça Aranha senti que o meu patriotismo, revoltado, protestava contra aqueles augúrios cruéis do alemão Milkau:

“É provável que o nosso destino seja transformar, de baixo a cima, este país, de substituir por outra civilização toda a cultura, a religião e as tradições de um povo. É uma nova conquista lenta, tenaz, pacífica em seus meios, mas terrível em seus projetos de ambição. É preciso que a substituição seja tão pura, e tão luminosa, que sobre ela não caia a amargura e a maldição das destruições. E por ora nós somos apenas um dissolvente da raça deste país. Nós penetramos na argamassa da nação e a vamos amolecendo, nós nos misturamos a este povo, matamos as suas tradições e espalhamos a confusão! ... Há uma tragédia na alma do brasileiro, quando ele sente que não se desdobrará mais até ao infinito. Toda a lei da criação é criar à própria semelhança. E a tradição se rompeu, o pai não transmitirá mais ao filho a sua imagem, a língua vai morrer, os velhos sonhos da raça, os longínquos e fundos desejos da personalidade emudeceram, o futuro não entenderá o passado”.

Hoje, porém, posto que reaja com toda a força, com toda a energia do meu instinto patriótico, diviso, através daquela profecia, um fundo de verdade: o Brasil vai sendo transformado, não absorvido. Os inimigos não vem em esquadras, aparelhadas belicosamente, chegam em grandes levas, que enxameiam as proas dos transatlânticos, vêm dos países regorgitantes, saem do aperto das grandes cidades e, como sofifreram toda a sorte de torturas, desde o frio, nos lajedos dos cães, até as fomes nas baiucas em que se acumulavam, às dezenas, confundindo os hálitos e os gemidos; desde a afronta dos poderosos até o desprezo dos próprios parentes mais aquinhoados pela fortuna, ouvindo o nome do Brasil e, talvez, lendas que ficaram dos venturosos tempos do ouro, demandam ansiosamente a terra do sol e das flores, onde não há invernos que transam, nem miséria que mate, onde sobram campos aos pastores e ainda existem regiões inteiramente virgens, nem trilhadas nem vistas por homens civilizados, onde só caminham hordas de bugres e feras fremem, ao luar, em manadas sanguinárias.

Chegam, são acolhidos pelo clima tépido, que é uma carícia natural, respiram, a largos pulmões, o puro ar das florestas, desalteram-se nas límpidas águas dos arroios que murmuram, contemplam os grandes rios, admiram, extasiados, as borbulhantes cachoeiras e, contentes com o que vêm, dão graças a Deus pela redenção e vão imediatamente tratando do estabelecimento, que é o primeiro passo para a conquista.

Fazem-se colonos e, como já conhecem a miséria, trabalham ambiciosamente, acoroçoados pela fertilidade. Na casa, o mealheiro é comum e, como a família vive com sobriedade, os lucros crescem, em pouco tempo.

O fazendeiro, ao contrário, habituado ao Fausto, à vida pródiga, não soma as despesas e, à medida que a crise aumenta, vai ele dissipando com mais largueza, como para atordoar-se — o seu dinheiro deserta do cofre e passa para as arcas dos colonos, empilhando-se até o dia em que ele se encontra sem vintém e assediado pelos avaros trabalhadores que lhe sugaram à fortuna.

Esse é o dia trágico, o dies irae: o senhor abandona a propriedade absorvida pela hipoteca, os colonos tornam-se pequenos proprietários e começa a expansão na terra.

Os berços lá estão ao fundo das casas — são os novos homens. Onde antigamente chorava, em farrapos, o crioulinho nu, filho do escravo, vage agora o bambino rosado e louro, abençoado por este sol admirável. Vai-se a língua cruzando — vocábulos exóticos ressoam estranhamente em frases portuguesas, é a lenta invasão da palavra; já se não ouve o ressoo soturno dos tambores nagôs, agora é o estrepitar das castanholas, ou o sonoro adufar nas soalhas dos pandeiros napolitanos.

Nos terreiros de congada dança-se a tarantela e as tradições brasileiras vão desaparecendo; a pouco e pouco uma nora raça surge e a humílima e dessorada geração, enfraquecida pela abastança desordenada, cede aos sadios o terreno, como os romanos da decadência cederam aos robustos bárbaros.

Mas, o caldeamento se fará sem prejuízo da Pátria — a nação não perecerá, porque os que vão nascendo, à medida que os pais enriquecem e aformoseiam a terra, vão-lhe ganhando afeição, amam-na e, começando por defenderem a casa, acabam defendendo a fronteira e quando, desaparecido o último decadente, viver, rija e formosa, a nova gente, sobre esse dilúvio, como o Espírito de Deus nas águas da catástrofe, há de pairar a língua, a doce língua portuguesa, enriquecida, sem dúvida, com expressões adventícias, e, baixando sobre a terra a raça que há de ficar, a Pátria reaparecerá mais bela, mais graciosa e mais rica, pronta para todas as sementeiras, como reapareceu o mundo depois dos quarenta dias de calamidade, tendo como prova de aliança não o íris fulgurante, mas a bandeira auriverde, que é o símbolo da nacionalidade.

O que se está realizando — é possível que eu veja como otimista — é a lei da seleção e não uma conquista prevalecer e queira Deus que assim seja, para glória da Terra e orgulho dos nossos filhos.

A raça desanimada que ai está, essa é que não pode subsistir. Homens que choram em presença do perigo não merecem as honras do triunfo.

Venham os novos brasileiros, apareça e domine a gente nova e robusta.

Foram os bárbaros que renovaram o mundo ocidental: venceram, mas foram assimilados pelos vencidos e, para fazer a assimilação das hordas que chegam, basta-nos o nosso Sol.

PALPITES

Ó mulher, onde meteste tu o dinheiro?

— Que dinheiro, homem de Deus?

— Não te queiras fazer fina! responde e deixa-te de histórias. Que fizeste do dinheiro que estava no pé de meia?

— No pé de meia não havia vintém. O que havia no pé de meia ficou na barrela.

— No pé de meia havia duzentos e tantos mil réis em muito boas notas, que eu lá guardei. Vamos, deixemo-nos de brincadeiras: onde meteste o dinheiro?

— Se eu te digo que não havia vintém...

— Vintém não havia, havia notas, já te disse. Onde estão?

— Foram por água abaixo, na lavagem.

— Mau! mau! Olha que eu não estou disposto a rir. Quem sabe se a senhora quer imitar o ministro? Imitar, digo mal, porque ele queima. Vamos, diga onde pôs o dinheiro se não quer que eu faça aqui uma das minhas... Depois... Aqui d’El-Rei...!

— Homem, queres que eu seja franca?

— Sem dúvida.

— Pois o dinheiro... o dinheiro... levou-o o burro.

— Que burro, senhora? Para que quer um burro duzentos e tantos mil réis?

— Foi o burro. Ele não levou os duzentos mil réis de pancada, foi levando aos poucos.

— Como? Então o burro entrava no quarto, abria a meia, tirava o dinheiro que queria...? Homem, mulher, tu pensas que eu sou idiota?

— Quem tirava não era o burro, Manoel...

— Então quem era?

— Era eu.

— Tu! Então que história é essa do burro?

— É que era o burro que o levava. Tu nunca jogaste no bicho?

— Eu? A senhora bem sabe que eu não tenho vícios.

— Pois foi o burro do jogo que levou o dinheiro. O caso foi assim: tu conheces a mulher do Cunegundes, uma ruiva, que tem dois filhos pequenos?

— Conheço. Mas que vem cá fazer a mulher do Cunegundes?

— Ouve. Como sabes o Cunegundes está de cama há uns pares de meses. Enquanto teve saúde foi um homem de trabalho, atirava-se a tudo para ganhar a vida — trazia a casa farta, a mulher limpa, os pequenos sempre bem vestidos, a moléstia, porém, acabou com tudo isso. O pobre homem, para não morrer à míngua, aprendeu a fazer charutos, mas os charutos dão muito pouco... Que eram cem charutos por dia para uma família como aquela? A Adelaide andava varada, pálida; os pequenos, rotos, descalços, pediam pão de casa em casa, até fazia pena. Quanta vez eu aqui lhes dei comida... Ah! Meu amigo, quando um pai de família cai numa cama...

— Pois sim, mas vamos ao burro...

—Vamos. As cousas estavam nesse pé quando, um belo dia, a Adelaide, que não tinha um casaco decente para chegar à janela e andava sempre a chorar, a lamentar-se, pedindo a morte para ela e para os filhos, apareceu risonha e mais contente do que dantes e, todos os dias, eu, por entre as reixas da janela, via chegar gente com embrulhos para a Adelaide: eram queijos, caixas de vinho, fazendas e a Adelaide a deitar luxo até que um dia saiu de carro como a senhora do doutor.

— E o pobre do marido a fazer charutos...

— A fazer? A fumá-los, e dos bons, deitado em lençóis de linho, com fronhas de renda nos travesseiros: um luxo de príncipe. Eu fiquei a banzar e, como não sou maliciosa, disse comigo: “a Adelaide tirou a sorte...” E um dia, apanhando-a a jeito, disse-lhe em ar de pagode: “então, sua felizarda, sempre apanhou um bilhetinho premiado, hein?!” Ela ficou muito espantada e respondeu: “não senhora: eu não jogo na loteria. Ah! Já sei porque a senhora fala — é porque me vê andar assim, apesar da moléstia do Cunegundes, coitado! Que quer, minha amiga? Quem não tem cão, caça como gato.

— Que gato?

— Espera, ouve homem: “enquanto o Cunegundes tinha saúde e força eu não me preocupava, mas veio a doença e, a senhora sabe, as crianças têm fome e o homem da venda não fia principalmente quando sabe que o dono da casa está entrevado no fundo de uma cama. Procurei trabalho... Só me apareciam charutos; desanimei. Foi então que uma comadre minha, cujo marido anda longe, apanhando borracha nos sertões do Amazonas, disse-me que eu aventurasse alguma cousa no touro. Aventurei. A primeira marrada custou, isso custou, mas hoje...” e desatou a rir, só para que eu lhe visse os dentes obturados a ouro, como lá diz o outro. Eu fiquei a olhar para ela e, com franqueza, estranhei aquela alegria porque a Adelaide era alegre mas agora dá umas gargalhadas... “Então a senhora vive agora à custa do touro?”

— É verdade, respondeu ela.

— E seu marido?

— Ah! Meu marido não sabe. Para uma mulher ser feliz no jogo do bicho deve guardar segredo, principalmente para o marido. A senhora por que não tenta?

Tu sabes que eu não gosto de bois, não gosto de touradas, boi só vaca, essa mesma cozida.

—Não, D. Adelaide, eu não gosto de bois.

— Não gosta! A senhora diz isso porque ainda não experimentou. Eu também não gostava e hoje não posso passar sem ele. Experimente, experimente — e dobrou-se toda em outra gargalhada. Eu fiquei pensando e depois que ela saiu resolvi experimentar.

— Tu!?

— Então? No primeiro dia mandei pedir porco; deu o burro; no segundo dia mandei buscar elefante, deu outra vez o burro. Fiquei desconfiada com tanto burro: diabo! isso não é um jogo, é uma estrebaria! Quem sabe se não é Deus que me está mostrando o caminho da felicidade! pensei. À noite sonhei que estava agarrando um burro pelo rabo. Foi naquela noite em que te agarrei, não te lembras?

— Sim, mas eu não sou burro...

—Nem eu te agarrei pelo rabo. De manhã, muito cedo, fui ao pé de meia e mandei comprar no burro... couce! E ... de couce em couce, meu velho, fiquei a tinir. A Adelaide vive regaladamente à custa do touro, eu com o burro só consegui amofinações e misérias.

— Então os duzentos e tantos mil réis foram todos no burro?

— Todos.

—Muito bem.

— Antes eu tivesse jogado no touro — ainda ontem deu.

—Se a senhora tivesse jogado no touro ia agora mesmo, como um fuso, para o olho da rua, entende? O touro dá todos os dias mas, se me constar que a senhora joga em semelhante bicho eu faço um banzé dos diabos nesta casa. Touro não é bicho que entre em casa de família, está ouvindo?

—E a Adelaide?

— Que tenho eu com a Adelaide?

—Ela não joga em outro.

—Porque o marido está entrevado mas eu não estou, com a graça de Deus. Enfim — no burro pode jogar uma ou outra vez, pouco, com touros é que eu não quero negócios. Se eu souber que me entrou touro aqui em casa a senhora vai para o olho da rua em dois tempos. É o que lhe digo. (E foi; todos os jornais noticiarem o caso comentando-o). O homenzinho, que apertara os cordões à bolsa, levando para a Caixa Econômica o que dantes deixava nas meias, começou a desconfiar dos lautos jantares que a mulher lhe apresentava — eram verdadeiros festins — e, farejando os pratos, perguntava desconfiado:

—Mulher, isto é burro?

— Tudo é burro, pelo moderno.

—Então agora não dá couces?

—Qual! está manso como cordeiro.

—Pois sim, mas não te fies. Depois apareceram sedas, chapéus, costumes de pano francês, joias, camarotes do lírico...

—É burro?!

—Então! que há de ser?

—Olha lá, mulher — acho muita carga para um burro só.

—A culpa não é minha... se ele dá. Um dia, porém, o homem entrou em casa justamente na ocasião em que a mulher fazia jogo e viu... Que viu ele? Sei apenas o que os jornais disseram: que ele travou de um páo e desancou a mulher. Sem razão disse a coitada ao delegado, explicando o caso: na ocasião em que o marido entrou no quarto ela abria a porta de espelho do guarda casaca e o homem tomou por uma desobediência o que era a sua própria imagem.

— Eu permiti que ela jogasse no burro, senhor doutor, mas o que eu lá vi de burro não tinha nada.

—Então que era?

—Ora! que havia de ser? Palpites da Adelaide.

ROMANCE TRISTE

Poetas... Poetas são como as abelhas que buscam apenas na flor a substância com que fazem o mel. Que lhes importa que, depois da visita ao nectário, a flor murche e feneça? Outras há pelo bosque perfumado e para essas outras vão elas aligeirando as azas.

Donzela, que dais ouvidos às canções do poeta, julgais ingenuamente que ele vos pertence, que nunca mais se apartará do juramento feito aos vossos pés, com os olhos nos vossos olhos procurando, talvez, surpreender a vossa alma? Engano vosso — para que ele vos abandone basta que uma outra apareça.

Foi Zeuxis, se me não trai a memória, que, para realizar na tela um tipo de beleza, reuniu no seu atelier várias donzelas aproveitando de cada uma a linha ou a cor mais pura, o garbo ou a languidez, a esbelteza e a curva graciosa e, depois de rematada a figura, era um complexo maravilhoso e as moças, que se haviam prestado a ser modelos, deixaram no painel do artista um pouco do próprio corpo. Desta ficaram os olhos, daquela ficou a fronte, os cabelos de uma despenhavam-se ondulando sobre os alvíssimos e redondos ombros de outra, as mãos eram de tal, os pés de uma outra, era a boca de um rosto, o nariz de outro e assim a obra perfeita era como o mel das abelhas — o conjunto do sabor de múltiplas corolas. Fazem assim os poetas.

Um conheço eu que, depois de me haver lido uma admirável composição em sonoros alexandrinos, toda consagrada à glória de uma mulher ideal, dizendo-lhe eu o nome da criatura inspiradora, fez um momo dobrando lentamente o papel em que fulguravam os lindos versos:

— Estás louco. A boca, efetivamente, é dela, mas os olhos... Ah! Se visses os olhos de... Duas violetas, meu amigo! Duas violetas! Nunca vi olhos daquela cor ...

— Mas Fulana, objetei, tem uns pés de saloia...

— Sim, os pés são hediondos... mas eu na poesia refiro-me aos pés imperceptíveis da Cesira. Conheces Cesira? Ah! Meu caro...

— De sorte que na tua poesia há quatro mulheres...?

— Cinco, aliás: a graça é da Olympia, ninguém anda como a Olympia; é uma deusa.

— Mas isso é um gineceu em alexandrinos, homem.

— O poeta não ama a mulher, ama a beleza, concluiu o meu amigo com solenidade.

Não pensava assim o que morreu entre as árvores amigas. Foi um amoroso fiel e calado, não gemia o seu tormento, continha-o no coração e, de quando em quando, lá o exalava em estrofes. Enquanto a criatura amada viveu na mesma cidade em que ele morria abafou medrosamente o seu segredo, como Arvers; ela, porém, partiu para outros climas, para outros braços e o solitário, num derradeiro esforço, deixou o seu retiro e publicou a sua história dolorosa. No frontispício do livro, como a legenda sinistra, pôs ele uns versos do Cancioneiro de D. Diniz que resumem toda a sua agonia:

Quizo ben, amigos, e quero e querrey

Hunha mulher que me quis, e quer mal,

E querrá; mays non vos direy eu qual

A mulher; mays tanto vos direy,

Que quis ben, quero, e querrey tal mulher

Que me quis mal sempre, querrá, e quer.

Fomos companheiros em Lambary. Ela também lá estava. Uma vez, à tarde, conversávamos no cottage do parque, ouvindo as cigarras, quando ele se pôs a falar no falecimento da sua velha mãe, uma boa e resignada velhinha, que era o seu amparo moral no mundo. Nunca pensará na morte enquanto ela vivera mas, na mesma tarde do enterro, voltando do cemitério, começou a ser perseguido por aquela ideia fatal. Sabia que estava perdido, era como um edifício que ia, aos poucos, caindo e, na sua qualidade de ruína, só acolhia tristezas. Enfim! E, resignado, encolheu os ombros.

— Mas tu tens aproveitado muito aqui, com as águas. Voltou para o meu rosto os olhos tristes e, com um sorriso melancólico, disse com a sua voz rouca:

— Com as águas... Súbito um riso cristalino rompeu alegremente o silêncio crepuscular, ele ergueu-se de olhos cravados num caminho que se ia enchendo de um festivo barulho: um bando gárrulo de moças apareceu e, entre elas, esbelta e loura, com uns olhos que fulguravam, uma boca mais vermelha que as rosas sanguíneas, onde um sorriso tinha residência, ela, a misteriosa criatura amada. Como se quisesse martirizar o desgraçado, chamou-o, a rir, tomou-lhe o braço e lá o foi levando por entre as flores, a inebriá-lo com o seu perfume de mancenilha.

Nessa noite, no salão do hotel, o poeta recitou um apólogo: “o sapo e a estrela”.

Era uma vez uma estrela...

E vai um sapo, o idiota,

Logo apaixonou-se ao vê-la.

O apólogo foi recebido com aplausos gerais mas, num vão de janela, houve quem murmurasse, disfarçando um sorriso: “o sapo... coitado! é ele...” E a estrela andava trefegamente pela sala reunindo pares para uma quadrilha.

E ele, triste, do fundo da sua melancolia de moribundo, ficava-se a contemplá-la, como o sapo contemplava Sirius. Não lhe falava do seu amor; e que lhe havia de dizer se ela era a própria imagem da Vida e ele... sempre a tossir, ouvindo as lástimas dos que auguravam a sua morte próxima. Que, ao menos, a deixassem ali, perto dele. “É a luz da minha última hora”, suspirou, uma vez, disfarçando a mágoa num sorriso.

À volta, no trem, ele queixou-se: “vai recomeçar o meu sofrimento...” E voltou os olhos marejados para o banco em que ela estava — era o apartamento. No hotel viam-se a toda a hora e ele estava sempre a ouvir-lhe a voz, mesmo quando adoeceu pediu que lhe conservassem a porta entreaberta e, como se alvoroçava quando, pelo corredor, vibrava o riso cristalino da formosa indiferente! No Rio viu-a uma tarde, na rua do Ouvidor, toda vestida de azul:

Chapéu azul; vestido azul, de azul bordado,

Azuis o para-sol e as luvas, Senhorita,

Como um lótus azul por um deus animado,

Passa, toda de azul, por mil bocas bendita.

Vendo-a não se vê mais nada que o azul tonteia...

Como num sonho azul logo nos vem à ideia

Um pedaço de céu azul passeando a terra.

Um dia ela partiu para o campo e de lá, a cruel, escrevendo a uma amiga, pedia-lhe que dissesse ao poeta que certamente ele ficaria curado com aqueles puros ares da serra, bebendo aquelas frias águas que manavam das penhas e o leite gordo que uma boa mulher trazia, todas as manhãs, à porta do hotel. Ele que fosse, que a fosse ver para convencer-se: estava outra, ela mesma achava-se bonita.

E o mísero, sofrendo, lançou-se afoitamente ao trabalho: em oito dias concluiu uma peça, entregou-a ao empresário e partiu. Lá esteve e, enquanto a sentiu perto, louvou a terra e os ares, falando em ressurreição “revivo aqui — sinto-me outro”. Ela, porém, desceu e, desde logo, todas as virtudes dos ares puros e das águas límpidas desapareceram: voltaram os sofrimentos — a febre, a insônia, os suores noturnos até que, um dia, os jornais anunciaram a partida da bem amada para a Europa.

Esse amor era uma misericórdia, a presença da criatura era o amparo daquela vida, tanto que ela partiu começou a destruição. A Morte, encontrando o coração ferido, foi abalando as últimas resistências, uma, porém, reagia — era a esperança de que ela voltasse. Mas não, deixou-se ficar em outras terras, nos braços de outro... Bem que a sua Musa pressaga soluçara:

Ela nunca terás nem seu amor

Desequilibrado, sem esse arrimo forte, o poeta caiu. Tornou-se-lhe, então, a vida um rosário de dores e as que menos o torturavam eram as que lhe pungiam o corpo — a alma, essa sofria mais acerbamente. E começou o desfalecimento — o solitário achou-se sem o seu “sonho”, tudo era deserto em torno: nem o seu faceiro sorriso, que era a alegria dos seus olhos, nem a sua voz que era a sua melodia predileta, nem o aroma que ela esparzia como se deixasse no ar um sulco de perfume. Lá longe! Como chegar até lá? ... Esses poetas, têm, às vezes, sonhos extravagantes... Quem sabe?!

Abatido, quis ainda voltar ao sítio que ela lhe recomendara como sendo um lugar de beleza e saúde; foi, apeou à porta do mesmo hotel rústico que ela habitara, percorreu vagarosamente os caminhos que ela percorrera, agasalhou-se à sombra da sua árvore predileta e teve visões de amor, viu-a ao longe, sentiu-a entre as flores silvestres:

Tudo de luz se inunda e, dominando tudo

Cheio da própria luz, sobressai na paisagem

O correto perfil dessa que me não ama.

Esse perfil não estava na paisagem — estava no coração, era uma miragem passional mas... esses poetas, esses poetas! Quando amam são capazes de tudo e quem sabe se o desgraçado, sem esperança de tornar a vê-la, não fez como aquela escrava do conto que para se juntar ao filho morto cravou um punhal no coração?

Ele não precisava lançar mão de uma arma para realizar esse desejo sinistro — a Morte estava dentro dele e bastou que deixasse a fera sair da jaula onde a continham os cuidados para que, em um momento, o martírio findasse. E agora...?

Talvez que, em breve (não vem longe a primavera) a ingrata, que habita um velho castelo de França, receba a visita da alma peregrina.

Uma noite, apoiada ao balcão, olhando o céu, ouvirá cantar um rouxinol nos roseirais em flor. Será tão lindo e tão sentido o canto que ela, apesar de indiferente, voltará o rosto para ouvi-lo e ouvindo-o não imaginará que, no pássaro dolente, palpita a alma saudosa do que viveu por ela, do que morreu de amor.

Ah! o soneto de Arvers... o soneto de Arvers...

É bem possível que, quando chegar à França a notícia da morte do poeta seguida dos comentários sobre a sua paixão funesta, ela, deixando no colo a carta anunciadora, exclame, penalizada, na língua que adotou:

“Quelle est donc cette femme?” et ne comprendra pas.

O GALO

Todo curvado e atento, a olhar as entranhas sangrentas de um galo, o meu amigo Galracho, áruspice e rosa-cruz, venerador de Peladan, sar nos cartões de visita e primeiro oficial do correio, na lúcida manhã de janeiro, enquanto o Menino seguia para o templo, a cumprir a Lei Judaica, santa pela intenção e higiênica pelos resultados, tirava augúrios no fundo recôndito de um quarto discreto, onde se empilham caixotes sobre os quais, à guisa de altar, as vítimas palpitam e mostram nas vísceras os arcanos do futuro.

Galracho, em robe de chambre sacerdotal, com um facalhão inglês, de lâmina luzente e larga, lembrava um sacrificador do antigo tempo.

Quando entrei, sentindo os meus passos no soalho que range, voltou a cabeça e fitou-me com os seus olhos de míope, desarmados das poderosas lentes. Não me reconheceu de pronto mas, ouvindo-me a voz, tranquilizou-se e, acenou misteriosamente para que eu encostasse a porta afim de que a senhora, que é alegre e incrédula, não interrompesse a cerimônia com o seu riso e com os seus comentários mordentes.

Galracho suava em bicas naquela estufa esotérica e depósito de velhas caixas. Um raio de sol, descendo pela claraboia, dourava a vítima gorda em torno da qual esvoaçavam gulosamente, desrespeitosamente moscas zumbidoras e o áruspice, com as mãos mais vermelhas do que as de um magarefe, tomava notas ligeiras numa larga folha de papel toda manchada de sangue.

— Que diabo fazes tu aqui, Galracho?

—Não vês? Estou tirando augúrios, como os nossos pais romanos. Leio o futuro. Leio-o nas entranhas deste galo como se o lesse nos mesmos livros da sibila. Estava agora justamente interpretando o fígado. Ah! Meu amigo, suspirou Galracho meneando a cabeça, em grande e abatido desalento — as coisas não nos sorriem. Vamos ter moléstias este ano, moléstias mortais e muitas.

—Epidemias?!

—Epidemias... não digo. Há muita gordura no fígado, vê — o galo está gordo demais...

— Divino é que ele está!

— e a enxúndia confunde as linhas do mistério. Não te posso dizer se teremos epidemias, afirmo-te, porém, que teremos moléstias.

— Isso também eu afirmo, mesmo sem olhar as entranhas do bicho.

— Olha aqui a moela... Que vês nela?

— Eu... eu vejo que o galo morreu em jejum, ou, antes, tendo iludido a gana com uns granizos e areia.

— Sabes que quer dizer isto? Sabes? E a voz de Galracho silvava e os seus olhos de míope faiscavam.

— Quer dizer que não atiraste milho ao poleiro...

—Não, quer dizer que vamos ter fome! Fome!!!

Não a fome que sofreram os lídios mas...

—Uma fome modesta, assim como quem diz: meia ração.

—Isso: meia ração; meia ração é bem dito. Vamos passar à meia ração. E Galracho coçou a cabeça intrigado: o diabo é a gordura! Quase que não posso interpretar com tanta banha. Mas, cá está a fome, cá está!

— Olha, Galracho, faze como José; previne-te — enche a despensa e o galinheiro, põe-te em guarda e não esqueças o meu talher. Mas o grande amigo saltou elétrico, arrepiado, numa inspiração.

— Olha o fel... a política: está túmido e negro. Vamos ter lutas, lutas tremendas. Ah! meu amigo, no ano passado, consultando as entranhas de uma pata...

— Tão gorda como este galo?

— Não, mais magra, (era uma pata própria para o mistério) eu anunciei todas as calamidades que nos haviam de flagelar. Disse que o presidente seria substituído...

— E foi, realmente.

— Disse que havíamos de perder um grande homem...

— Perdemos vários, a pata foi sóbria; é verdade que estava magra.

— Prognostiquei o nascimento do Augusto...

— Tua senhora, em outubro, já se sentia mal e, em março, avisado amigo, levamos o lindo Augusto à pia.

— É verdade! ... Vi tudo na pata.

— É extraordinário... E agora no galo? ...

— Vejo todo o ano em que entramos. Chamo a tua atenção para aquela gordura que se vai fundindo ao calor do sol.

— E que diabo é aquilo na tua sombria ciência?

— Aquilo? Pois não vês? A gordura é dourada, não é? Pois é um projeto de conversão do papel moeda...

— Em ouro, compreendo. E Galracho meditou e disse:

— E pode ser também uma tentativa revisionista.

— E sobre o Código Civil, que diz o galo?

— Tem muita gordura, meu amigo, e a gordura é o embaraço. Vou agora consultar uns velhos livros sibilinos para ordenar o oráculo. Espera-me um instante no meu gabinete, tens lá a rede, livros e uma caixa de música com doze peças.

Dirigi-me ao gabinete, tomei um livro ao acaso — era um romance venusino, com gravuras que fariam humilhação aos camafeus antigos, dei corda à caixa de música e afundei molemente na rede, ouvindo o repinicar do Trovador e deliciando-me com uma história de alcova, ardentemente ilustrada. Despertei em sobressalto, sacudido pelo amigo Galracho que me chamava para o almoço.

— Doce sono! Exclamei esticando-me nas pontas dos pés. Dorme-se bem neste gabinete.

A caixa emudecera e o livro jazia escancarado sob a rede expondo uma sena lúbrica aos olhos pudibundos do ledor de entranhas.

Lá fomos ao almoço e, enquanto roíamos azeitonas e barrávamos, com manteiga fresca, o pão branco e mole, levantou-se uma questão. Galracho afirmava que as entranhas do galo gordo lhe haviam augurado um sucesso estranho e tão novo que ele, apesar de haver consultado todos os mestres da ciência, não conseguira achar solução para o caso. E Galracho estava, em verdade, sombrio e preocupado e, tão distraído estava que, com vagar soprava para o prato toda a polpa das azeitonas e engolia, com gosto, os caroços.

Uma terrina, fumegante e cheirosa, apareceu e ocupou, com grandeza e brilho, o centro florido da mesa. Galracho meditava enquanto a senhora ia enchendo os pratos com uma canja, toda lentejoulada de olhos de ouro e com paio às rodelas. Cheirava e espalhava por toda a casa o seu apetitoso cheiro.

— Galracho, disse eu, baixa à realidade: deixa lá o transcendente, toma a tua colher e atira-te à canja... Deixa lá o sucesso: que venha e, para que não nos encontre fracos, comamos e bebamos.

— Não, meu amigo, não; o que eu achei no galo não me sai da cabeça. Ali há sucesso e grande....

—Então que foi? Dize lá!

— Que foi! Que havia de ser? Um ovo, homem, achei um ovo...

— Superfetação...

— Qual superfetação!

— Velhice... e eu ia comendo.

— Qual velhice! Um ovo autêntico... num galo... Este país está perdido, meu amigo; irremissivelmente perdido. Nem Deus o salva!

— Por causa do ovo? ...

— Então? Queres ver? E, arrebatadamente, Galracho deixou a mesa, correu ao santuário e eu ouvi um urro, um verdadeiro urro e logo o áruspice reapareceu tremendo de terror sagrado, com os cabelos em pé, lívido, bradando: que é do galo? E a senhora, serenamente, sorrindo, mostrou a terrina que rescendia dizendo ao esposo alarmado:

— Está aqui, homem, não te apoquentes — aproveitei-o para a canja; estava tão gordo...

— O galo profético! Estamos perdidos! E Galracho deixou-se cair pesadamente no sofá e pôs-se a dizer com uma voz tão soturna, rolando uns olhos tão apavorados: “Estamos perdidos! Estamos perdidos!” Que eu, francamente, não descansei enquanto não me vi livre do diabo do galo gordo e carregado de vaticínios.

AS ÁRVORES

Li algures que, na China, quando nasce um infante, os pais plantam uma árvore. À medida que a criança vai crescendo, vai a árvore ganhando vigor e beleza; e quando o petiz, ainda mal seguro nas pernas, sai, arrastando pela cauda um minúsculo papagaio de papel de arroz, pintado a cores, a sua verde irmã, lá de longe, lhe acena com todos os seus ramos viçosamente cobertos de folhas e, se é precoce, recamados de flores.

O jovem chim tem, para alentá-lo, os cuidados domésticos — os pais não o perdem de vista e a ama tártara, solícita e carinhosa, segue-o a toda a parte, protegendo-o ao sol, com a sua sombra, equilibrando-o com os seus braços, animando-o com o seu canto monótono e, à noite, depois de o adormecer com uma história maravilhosa, deita-se junto ao seu berço de laca, numa fina esteira e, ao mais leve resmungo, ei-la de pé, debruçada, a examinar a cócedra macia, a sacudir o mosquiteiro ou a balançar, de leve, o berço delicado. De manhã, lá o leva ao ar puro, aos jardins, a correr na relva ainda úmida e, quando o sol aquece, lá vai ficar à beira dos lagos que parecem dormir um sono doce e eterno e sobre os quais as aves, que se refletem ligeiramente, passando e turgindo no ar, são como iterativos sonhos.

A arvorezinha tem apenas o sol e as chuvas que a vão nutrindo e, nos tempos secos, duas vezes ao dia, ao partir e ao chegar das pombas domésticas, a rega do velho tankia melancólico. Ninguém a agasalha — dorme exposta ao tempo, ao clarão dos luares, e cresce, enfolha-se, frondeja e floresce.

O jovem chim deixa os braços da ama e, seguindo para um quiosque forrado de seda, alto como um taí, agasalhado discreta, silenciosamente num bosque de bambus, entrega-se a um velho letrado que lhe fala dos grandes espíritos do império: Laótseu propagando a doutrina de Taó, Confúcio ditando aos seus discípulos as sábias leis puras da moral, os lamas contemplativos que descem do Tibete, com uma corrente beneficiadora, fazendo crescer nas almas a esperança e, por desfastio, de quando em quando, lá lhe põe ante os olhos uma peça dramática composta por alguma das mulheres do régio harém para os cômicos da corte.

Depois são as armas — é um espadachim que lhe transmite a sua ágil ciência, manejando uma espada ou enristando uma lança; depois o mestre de equitação que aderença um alfário ardego até que, um dia, moço e lindo, gracioso e robusto, para continuar a glória da sua casa, os pais, depois de muitas consultas, resolvem dar-lhe por esposa uma princesa mandchú, senhora de terras vastas, ricas em arroz e em árvores de laca.

Contratada a aliança, determinado o dia dos esponsais, é logo chamado um artista perito para construir o leito nupcial. E a árvore que, lá fora, toda se enfeita ao sol, a árvore plantada no dia do nascimento do noivo, alta e forte, verde e em flor, é sacrificada como uma vítima. Recebe no tronco um golpe fundo, outro logo, ainda outro, cava-se uma cinta de onde escorre, como sangue novo e sadio, a seiva loura, saltam aparas e a madeira ringe, estrepita, estala, oscila e pende — a fronde ainda resiste, mas, a uma leve aragem, derreia-se languidamente e, ao peso da folhagem, inclina-se com fragor atroante e tomba com sonoro farfalhar de folhas e de galhos.

É depois arrastada, entra na oficina, é serrada, acepilhada, torneada e vai, a pouco e pouco, sob os ferros do artista, tomando a feição graciosa de um leito — os embutidos enfeitam-na, os vernizes emprestam-lhe um brilho resplandecente, o ouro enriquece-a em filetes de caprichosas voltas e, no respaldar, o dragão emblemático, de rútilas escamas, contorce-se, de olhos fuzilantes, com as garras de ouro esmagando crisântemos e lírios sobre um fundo vago, indefinido, onde voam garças.

É nesse leito que se reúnem os membros da nova família — a árvore torna-se assim como um elo humano — o seu destino é nobre, a sua genitora é poética e, à proporção que sobe, vão os pais sentindo que é tempo de cuidar das bodas e ela, toucando-se de flores, para estar a chamar a linda noiva, que deve repousar nos seus braços e gerar no seu colo.

Eis aí um culto poético que, se não garante a eternidade do vegetal, estabelece, ao menos, a obrigação do replantio. Assim, na China, enquanto nascerem infantes, nascerão árvores — um pimpolho que engatinha indica que há uma ramaria a dar sombra e flor, um tronco forte, não longe, destinado a ser o tálamo sagrado — e ganha a natureza com essa tradição poética, criada, sem dúvida, por um filósofo budista, defensor de animais e florestas.

Por que não havemos nós de imitar, no amor, essa gente bárbara, que vive confinada entre as altas muralhas, além das quais não chega a civilização? Se um bruto mongol entrasse em uma das nossas matas e encontrasse o lenhador derrubando velhíssimos troncos, não para aproveitá-los em úteis construções, mas para reduzi-los a achas, certamente, e com razão, tomá-lo-ia por um bárbaro; pois esses bárbaros constituem legiões — do extremo Norte ao extremo Sul do Brasil o machado trabalha desapiedadamente, sem descontinuar, devastando.

Quem percorre o interior paulista vê, ao longo das linhas férreas, altas trincheiras de lenha — é o tributo florestal: as locomotivas, como os dragões das lendas medievais, exigem esse repasto cruel — a tarasca do Ródano reclamava virgens, o monstro de ferro reclama o cedro, e a selva despovoa-se em proveito do que chamam — o progresso.

A área esterilizada pelo machado é imensa — o cálculo feito por um distinto engenheiro, o Dr. João Pedro Cardoso, assombra e prova, com algarismos irrefutáveis, que se os lavradores não tratarem, em tempo, de sustar a depredação, dentro em breve uma grande área do riquíssimo Estado de S. Paulo não será mais que vageiro estéril.

Com a morte das árvores desaparecem as fontes: rios que rolavam águas abundantes derivam agora em filetes rasos e tão escassos que uma quente semana de verão é bastante para secá-los; a caça rareia. Estrangeiros, que percorrem o interior, voltam impressionados com a ausência de pássaras — não se ouve um gorjeio, não se vê um ninho — tudo é silencioso, e viaja-se longamente ao sol, sem um oásis, sem uma árvore, mas os tocos adustos, que apontam à flor da terra, atestam a existência anterior de florestas grandiosas — levou-as o machado, arrasou-as o fogo, e, sobre o terreno nu e sáfaro, cresce a erva maninha que apenas serve de abrigo à serpe. O ar vicia-se, o mesmo clima modifica-se, e isso é notado pelos velhos moradores desses lugares, dantes bem regados e sadios, hoje secos, ingratos e insalubres, onde o homem não vive nem a sementeira vinga.

Além das estradas de ferro que devoram as florestas, grande número de fábricas não queima outro combustível senão a lenha, e já não falo na que se consome nos fogões domésticos.

O lenhador vive folgamente, sem preocupações — não tem o cuidado do lavrador que se alarma quando, no tempo da florada, o sol abrasa ou grandes chuvas assolam; não lhe importa a geada, as larvas são-lhe indiferentes — sempre é tempo para destruir e o mercado é sempre lucrativo — um ferro de bom gume, o carro e quatro juntas de bois bastam ao que vai à floresta, e quem atravessa as estradas ouve monotonamente os golpes do machado, de repente um grito de aviso e logo o fracasso da queda da árvore talhada.

Parece, entretanto, que já se vai sentindo a necessidade do replantio; os mesmos “fazedores de desertos”, como muito bem lhes chamou o Dr. Euclides da Cunha, começam a compreender o mal que fizeram, mas não se atrevem a repará-lo, porque é mais difícil construir que destruir — emigram, talvez com remorsos, passam adiante, de olhos compridos, consultando os horizontes rasos, e onde descobrem verduras frondosas, aí ficam, afiam os ferros, armam ranchos e entram em exercício.

Dizem-me que há leis decretadas em favor das árvores, afirmam-me que o Congresso já se preocupou com essas míseras autóctones mas, quem há de fazer respeitar a lei? Onde estão os nossos guardas florestais, a nossa polícia das matas e dos campos? Ninguém os viu até hoje — o homem, que atravessa a trilha com a caçadeira e um cão, é um pobre matuto que vai bater a macega ou o cerrado, ver se levanta uma perdiz — as árvores não tem defensores.

As municipalidades evitam, com esperta prudência, a luta — o fazendeiro declara que as matas lhe pertencem, são seus bens, pode mandar destruí-las se assim lhe convier — que lhe importa a manutenção dos mananciais que abeberam a cidade ou vila? A lenha é tão sua como o café e o milho, a cana e o feijão, o arroz, a batata e a mandioca que ele colhe e manda ao mercado, e o lenhador errante é um voto certo e será um terrível capataz da oposição se a municipalidade lhe sair ao encontro proibindo-lhe a faina cruel.

E dia a dia, vão os bosques desaparecendo — a região privilegiada e formosa das árvores será, em breve, mais árida e mais nua do que a Líbia estéril. Os mais belos espécimes da nossa flora riquíssima somem-se reduzidos a cinzas e os animais emigram, fogem: uns pela terra, outros pelos ares, buscando novos abrigos, e a terra alhanada, deserta, com uma hirsuta felpa de capins ressequidos, estende-se, plana o solitária, ao sol que a queima, cheia de cepos tostados, que são como fragmentos de colunas, restos de um fastígio morto, escombros de uma glória extinta, ou cipós funerais num extensíssimo e aquecido cemitério.

O arvoredo é o grande químico de Deus. Felizmente o alarma, que repercute em todo Estado, vai despertando a atenção dos que ainda se interessam pela sorte desta terra formosa e rica e desgraçada.

URBANO DUARTE

As ideias aparecem-nos como a Verdade — nuas; somos nós, os escritores, que as vestimos e, como cada qual tem a sua feição própria, pode a mesma ideia, tratada por várias penas, ser jovial como uma canção, meditativa como um provérbio, gloriosa como um epinício, passional como uma ode sáfica, dolente como uma elegia, lúbrica como uma fescenina, sentenciosa como uma máxima ou cômica como uma tabarinada: tudo está no gosto do revestimento.

Vejamos, por exemplo, uma caveira que sugere, a quem quer que a veja, a ideia da morte — ponhamo-la sobre uma herma, à beira de um caminho bem trilhado e façamos desfilar por ele um grupo de poetas.

Dirá o primeiro:

“Eis um espelho de bom aço. Se as mulheres o tivessem nas suas câmaras não haveria vaidade. Bem fez a Magdalena que o tomou para seu uso quando se fez troglodita arrependida. Este é o espelho que a Verdade deve trazer na mão. Pois sim, senhores — não somos lá grandes coisas!”

Dirá outro: “Ser ou não ser, eis a questão...” Outro: “concha da ideia, saíste do oceano tormentoso da vida, jazes vazia na praia deserta do nada. Dentro de ti, porém, como dentro das conchas, há um rumor constante que é como um eco imorredouro da agitação de onde vieste. Na concha é o estuar da vaga, em ti é o referver da ideia. Ondas, maiores que as do pensamento, tormentas, mais desencadeadas do que as da consciência, não as tem o mar largo. Vós que passais encostais ao ouvido o crânio tábido e ouvireis o eco da vida que por ele passou — são os espectros dos sonhos, das ambições, das angústias, dos gozos que assombram a ruína. Evohé! Pela eternidade da agitação!”

Outro: — “Foste, talvez, como uma flor de aroma e os beijos procuravam-te ansiosos, hoje, fanada e seca, jazes no esquecimento e no abandono. Onde andarão as abelhas que te buscavam? Que outro nectário as prende? És como um caule seco de onde, uma a uma, todas as pétalas caíram”.

Outro: — “Pulvis! Poeira e só. A carne levou-a o verme, o arcabouço rolará na terra até a reversão total. Eis o que somos. E já que o fim é tão triste, porque nos havemos de amotinar com a ambição e a vaidade? ... ".

Outro: — “Nichos vazios, que é dos olhos que rolavam ansiosamente dentro do vosso âmbito como leões em jaulas apertadas? Boca, que é da vossa humidade? Que é do vosso perfume? Que é da vossa melodia? Ouvidos, que é dos vossos andarilhos que levavam ao cérebro todos os recados...? Ah! pobre crânio, já não te abrasa a paixão, és como uma velha lâmpada sem óleo. Quantas vezes, trazida pela Luxúria, a insônia se hospedou entre os teus muros! Quantas vezes, como em um antro de lâmias, esfervilharam em ti espectros delirantes? Foste, como uma cafurna orgiática, abrigo de súcubas e todo o corpo que encimaste sofreu agitadamente com os teus delírios. Agora repousas, só os incestos viajam pela abobada deserta e os ventos silvam atravessando o teu bojo vazio. Mas, se o amor viveu em ti e com ventura, foste feliz e eu te invejo, carcaça”.

Outro: — “Não somos nada neste mundo”.

Finalmente: “Ris, fazes bem; o teu ríctus é como um recibo irônico. Durante a vida pagaste caro o teu tributo, foi uma cilada que teus pais te armaram. Quem eram eles? Talvez não os houvesses conhecido. Fazes bem em rir, mas como a vida exige a hipocrisia e tu, sendo caveira, andas por entre os vivos, dias antes do desastre que te levou os músculos e os outros enfeites, devias ter ido a um dentista para que te arranjasse essa boca... porque, com franqueza, esses molares estão indecentes e tu devias gastar muito algodão nas covas que eles apresentam — não são dentes, são verdadeiros armazéns, com o algodão com que os tamponavas poderia uma fábrica tecer pano para um regimento. Se é para mostrar os dentes que ris, podes limpar a mão à parede”.

Há disparates nesses comentários, pois são tais disparates que constituem a harmonia. Homens há que se comovem, até às lágrimas, com a claridade pálida da lua cheia, outros dão para o derriço e saem afinando violões à procura de alguma dama descuidada ou paciente que lhes ouça as loas; outros, finalmente, dão para valentias e, ardidos, de sobrecenho carregado, brandindo cacetes, investem provocadoramente desafiando e, se a polícia não acode a tempo, os jornais, no dia seguinte, registram fraturas e contusões e autos de flagrante. Ainda se há de escrever uma monografia sabia com este claro título:

Da influência da lua cheia sobre os espíritos

Os nossos cronistas são, em geral, contemplativos (mea culpa! mea culpa!) e vestem todas as ideias de melancolia, torcem o mesmo riso e descobrem em tudo um estigma de dor — poucos são os que riem. Dir-se-á — somos um povo triste e o cronista, que reflete a alma do povo, não pode andar às gargalhadas. Não sei se somos um povo triste, sei que somos um povo tímido.

O brasileiro é naturalmente expansivo mas profundamente desconfiado e a verdade da afirmativa, que faço sem receio da contestação, tiro-a do seguinte caso comum:

Chega-se a uma casa e, pouco a pouco, vêm surgindo os membros da família, todos mais ou menos reservados, de olhos baixos, como receosos; por fim aparece o pimpolho chuchando o dedo e trata logo de encolher-se entre os joelhos da mamãe. A conversa vai indo arrastada, por monossílabos, com grandes pausas, até que o chefe, vendo o embezerramento do petiz, chama-o à ordem:

— Então, que é isso? Tira o dedo da boca... O pequeno amua e o hóspede, para dizer alguma coisa, afirma — “que o menino tem um olhar revelador e parece muito bonzinho...” Espanto dos pais:

— Bonzinho! Isto... ahh! É porque o senhor não sabe. Ele é porque está fazendo cerimônias, o senhor há de ver ...

Efetivamente, dali a meia-hora o pequeno está a cavalgar a bengala do hóspede, estão as meninas ao piano, a dona da casa faz o histórico da vizinhança, o chefe reclama as chinelas e todos, à vontade, riem, galram, mostram que tem sangue e que não são mudos, muito pelo contrário, como dizia o outro.

O brasileiro é isso: “um povo que faz cerimônias” e os cronistas sempre o apresentam em momentos cerimoniosos, raros são os que no-lo mostram como ele verdadeiramente é — em calças fofas e largas chinelas, rindo de mãos nas ilhargas, como riam os bons velhos de Brantôme e Des Periers.

Desses raros cronistas um dos mais fiéis era Urbano Duarte, o excelente, o alegre companheiro que se finou na estação do riso.

Conversávamos uma vez, no bom e guloso tempo do Rabelais, aqueles opíparos e intelectuais jantares! a propósito de crônicas, era do grupo o torturado Pompeia, que então andava a burilar os seus rendilhados períodos das Canções sem metro, quando, a propósito de estilo, alguém se lembrou de fazer a apologia da Forma. Urbano, encarquilhando as pálpebras, sumindo ainda mais os olhinhos miúdos, sorria; de repente, pondo-se de pé, disse peremptoriamente:

— Não concordo. A crônica deve ser um flagrante da vida, e eu desafio a todos vocês a que me apresentem um homem, seja uma besta ou um gênio, que, na intimidade, fale essa linguagem que vocês lhe emprestam. Eu tomo os meus burgueses nos dias comuns, no trabalho ou na cadeira de balanço da sala de jantar, com as calças brancas e o paletó de alpaca ou em mangas de camisa, à fresca, enquanto esperam o jantar, ouvindo os seus canários. Vocês só apresentam tipos endomingados, num estilo de sobrecasaca e cartola, com muita água de Colônia no lenço e muita severidade nos modos. Vocês não conhecem o homem — o homem é isso que eu descrevo, o resto, meus amigos, arranjo. Vocês inventaram essa história da “tristeza do povo” e aferram-se a ela. O brasileiro não é triste, o brasileiro é o povo mais pândego do mundo. Querem vocês a prova? Sempre que eu conto uma das minhas anedotas encontro um sujeito que me diz sorrindo maliciosamente: “Seu maganão, aquilo foi com o F... hein?” Protesto — que não, nem conheço o F... e o homem, sempre com o risinho malicioso: “Não conhece, hein? ora morda-me o dedo se é capaz”. Isso prova que o fato que relatei foi... um reflexo da realidade. Eu não invento — transcrevo. Tristes... tristes somos nós”.

Efetivamente... tristes somos nós e ele era dos nossos. Atravessou a vida a fazer rir, que ele não ria, as suas crônicas eram verdadeiras máscaras e, nos últimos instantes, com a atroada carnavalesca, como se a Morte quisesse, em homenagem a esse dispensador de prazer, dar-lhe a extrema ilusão no derradeiro momento, ele volvia os olhos úmidos para a esposa e para os filhos, que era para esses entes que ele, calando as dores, ria através das páginas, incessantemente, com a regularidade de uma máquina hilariante e, para não entristecer a meiga companheira... talvez ainda sorrisse.

Mesmo a sua Dor saía disfarçada e quem diria que era um gemido de moribundo que vinha com tão ruidoso tintinábulo pelas colunas dos jornais afora? Bem podia ele dizer com Stecchetti:

Ben ritornato carneval giocondo;

Eccomi serio: ecco repiglio il mondo,

      La maschera bugiarda.

Oh! non tradire il mio dolor segreto

Pallido aspetto mio! Mostrati lieto,

      Che la folla ti guarda.

CIÚME

Um missionário, que por ali passou, demorando-se dois dias sob as palhas podres de um velho curral porque nenhum dos moradores, para que o santo homem não desse pelos torpes vícios que enegreciam as suas vidas, tão livres como as dos animais, quis hospedá-lo ou mesmo visitá-lo, saiu aterrado daquela aldeia, mais encharcada em pecados do que a impura Sodoma e, nos campos, sacudiu, com horror, a poeira das sandálias.

A igreja caía em ruínas e pastores, nas horas mais abrasadas, recolhiam os seus rebanhos à sombra fria das lajes da velha nave e ali ficavam profanando o sagrado muradal com cantares de amor senão com o mesmo amor. O cemitério jazia desamparado, sem muro ou sebe que o protegesse contra os animais e não havia uma cruz em todo o vasto terreno tomado pelas ervas bravas.

Os sacramentos eram ali desconhecidos; as crianças ficavam com os nomes que lhes davam os pais sem que o batismo os confirmasse e purificasse, ao mesmo tempo, a almazinha maculada; não havia notícias de casamentos e, na hora extrema, ninguém se lembrava de reclamar uma vela e a presença de um padre para que a alma, prestes a partir, não saísse em trevas e carregada de pesadíssimos pecados.

O missionário resumiu a sua impressão numa frase: “é uma grande pocilga”. E era. Todavia, se o santo homem houvesse seguido um trilho sinuoso que, por entre velhas árvores, levava ao alto de um outeirinho alegre, teria encontrado os lírios daquele tremedal: dois velhinhos e tão puros que, até se dizia, à boca pequena, que recebiam no seu casebre visitas de anjos e de santos.

Efetivamente, uma tarde, um velho zagal, que recolhia com o seu rebanho de cabras trêfegas, viu, no caminho do outeiro, um lindo moço louro, com azas mais brancas do que as das graças, subindo vagarosamente em direção ao casebre. Era um anjo do Senhor e, como os velhinhos nem sequer desciam ao mercado, logo se murmurou na aldeia que o mesmo Deus os sustentava milagrosamente mandando-lhes, por anjos, água pura e manjares.

Em verdade não se pode levar vida mais santa do que a que levavam as duas criaturas perdidas em tão escuro marnel de crimes. Sempre juntos, ele e ela, nem desciam ao povoado para que os seus trêmulos pés não tocassem a terra daqueles caminhos malditos nem os seus olhos esmorecidos vissem um só rosto daqueles heréticos — viviam na moradia solitária e tão arredados da impureza da aldeia como se estivessem a mil léguas de distância.

Contente com eles, já por serem virtuosos e, principalmente, porque conservavam a virtude em tão depravado meio, quis o Senhor recompensá-los generosamente com uma ação de grande misericórdia. Assim, uma tarde, estavam, como de costume, os dois velhinhos, sob uma velha mangueira plantada e tratada por eles, onde as cigarras e os gaturamos cantavam ao cerrar do dia, quando um velhinho, mais velho que eles, abordoado a um bastão florido, com uma sacola ao flanco, apareceu-lhes como por encanto, pedindo agasalho, exatamente como fez Junipiter, outrora, procurando, como peregrino, a Philemon e Baucis.

A velha reconheceu prontamente o bom Deus sob o miserável disfarce e, numa emoção que a agitou suavemente, sorrindo com lágrimas e tão trêmula que nem podia juntar as mãos engelhadinhas, pôs-se a louvar o Criador clamando que era indigna de receber na sua miséria Aquele que governava os mundos e premiava a justiça. Mas o Senhor, tranquilizando-a, disse-lhe: “que se ela se comovia por vê-lo ali, à sombra da velha mangueira, mais se comovia a sua Bondade por ter, naquela terra tão envilecida, duas criaturas sãs que lhe abrandavam a cólera suspendendo-lhe o movimento de vingança que mereciam gente e terra tão vis”. E, aceitando a oferta dos velhinhos, sentou-se com eles à mesa frugal da ceia e participou, com apetite, da broa e de um pedaço de anho que era tudo que havia no armário pobre. Ao fim do repasto — já noite negra, posto que o outeirinho resplandecesse porque nele estava a própria Luz — o Senhor disse aos seus hóspedes que lhe pedissem uma graça. Os dois hesitaram, encolhidos de vexame, e foi o mesmo Deus quem, de novo, falou:

— Quereis tornar à mocidade? Dar-vos-ei a mesma força e a mesma beleza que tínheis quando, na antiga ermida, em presença do cura, vos recebestes como esposos. O velhinho sorriu esfregando as mãos a pensar naquela mocidade ardente e tão bem vivida! Ah! Como era bom ser moço, poder andar, correr, bailar, subir ao monte, ter força no braço e ligeireza nas pernas. Ah! como era bom ser moço!

Por baixo da mesa o seu joelho magro e trêmulo tocou o joelho trêmulo da velhinha e o Senhor esperava pacientemente com um doce sorriso na face venerável. Então a velhinha falou:

— Senhor, o que a Vossa Divina Graça nos oferece é, em verdade, um presente divino, só o mesmo Deus, como sois, poderia fazê-lo; mas, se as criaturas vis, como somos, quisésseis permitir a sinceridade, eu vos agradeceria o que nos ofereceis com um não respeitoso. Ser moço é, em verdade, um, grande bem mas não depois de haver sido velho — o que torna a vida agradável é a esperança e que esperança podemos nós ter quando, com a experiência de cem anos pesados, sabemos que tudo é ilusão? Não, Senhor — não queremos voltar à mocidade — a vida é um livro que se não relê. Já que nos permites a escolha eu ouso pedir-vos que nos concedais a Graça de morrermos sem ânsia, no mesmo minuto, para que um não tenha de chorar o outro e não sofra a agonia, mesmo rápida, da solidão e da saudade. Esta é a graça que vos pedimos, Senhor.

E, Deus, comovido, prometeu aos velhos que assim como desejavam se havia de cumprir. Disse e logo um clarão iluminou o casebre deslumbrando os velhinhos que entraram a tremer e, quando os olhos tornaram a ver, o casebre estava como dantes — em silêncio e sobre a mesa ardia escassamente a candeia das vigílias.

— Queres ver que foi sonho? Exclamou a velha.

— Sim, foi sonho... afirmou o velho; mas lá estava um prato conservando ainda um pouco de pão e um pouco de anho, prova de que um terceiro ali havia estado e esse terceiro fora o mesmo Deus que os visitara.

— Tu devias ter pedido a mocidade, disse baixinho o velho; e a velha, firme na sua ideia:

— Foi melhor o que pedi.

Uma semana depois achavam-se os dois velhos sentados sob a mangueira, gozando o fresco da tarde e ouvindo as cigarras e os gaturamos, quando uma nuvem lhes passou pelos olhos. Ouviram uma doce música, sentiram um aroma gratíssimo e inclinaram-se, um sobre o outro, conservando-se sentados e imóveis, sob a velha mangueira cheia de cigarras e de gaturamos. Logo dois anjos desceram e tomaram as almas dos velhinhos subindo com elas ao céu, todo estrelado e com um luar que luzia como se se houvesse preparado no Paraíso uma grande festa para os receber.

Os corpos lá ficaram vazios, no banco, sob a velha mangueira, junto ao casebre do outeirinho e ali o tempo os há de consumir sem que os da aldeia deem pela morte daqueles justos.

Subiam os anjos com as almas e, de repente, o que levava a da velha ouviu-lhe a voz doce a perguntar:

— E ele?

— Vem perto, nos braços de um querubim; descansa.

— Não é uma virgem que o vem trazendo?

— Não, é um querubim...

—Ah! E subiam. Apesar do voo ligeiro dos anjos levaram toda a noite a subir até que avistaram a porta esplêndida do céu onde uma turba de serafins desfolhava flores e esparzia perfumes.

A alma da velha, sempre preocupada, não se aquietava entre os braços de seu condutor, indiferente aos esplendores celestiais, só perguntando pela outra. “Vem aí”, respondia o anjo sorrindo e assim chegaram à presença dos Tronos que guardam a entrada do Paraíso. Um deles adiantou-se e, tomando a alma da velha, levou-a a um grande santo que se movia entre retortas e alambiques em um imenso laboratório.

O santo trancou-se com a alma da velhinha e, ao cabo de uns minutos, abrindo de par em par as portas rutilantes, declarou que havia encontrado entre as virtudes, que eram magníficas, 55% de ciúme.

Levantou-se uma discussão entre os anjos: uns bradando que o ciúme era um feio pecado porque a base do amor deve ser a confiança reciproca, outros afirmando que o ciúme era a mesma essência do amor — Deus decidiu a favor da velha recebendo-a, a sorrir, à sua direita e foi a vez de ser examinada a alma do velho.

Não foi longa a operação e o santo, encarregado do laboratório etéreo, abrindo as portas, declarou, carrancudo, que havia encontrado vestígios de um amor impuro.

A alma da velha estremeceu à direita de Deus. E o santo continuou com precisão a expor o crime divulgado pela análise: “certa noite, na primavera, no caminho do outeiro, descia uma moçoila para a fonte, com a bilha ao ombro quando esta alma toda se agitou num desejo ardente e ...” As virgens coraram e batendo azas fugiram espavoridas e a alma da velha tremia à direita de Deus e soluçava:

—Ah! antes eu não viesse ao céu!  Antes eu não viesse porque conservava a ilusão única da minha vida. A Rachel! A Rachel! Ah! Estou a vê-la, a desavergonhada, com a bilha ao ombro, a caminho da fonte... Antes eu não viesse ao céu.

E a alma do velho, entre os dedos do santo, tremia, num grande medo. E os juízes declararam — “Que aquele pecado merecia as penas infernais”.

Ia o santo soltar a alma pecadora quando a outra, a da velha, se pôs a gemer aflita rojando-se aos pés de Deus:

— Para o inferno não, Deus de misericórdia... Para o inferno não, meu Senhor!

— Louvo a tua caridade, disse o Senhor comovido, porque tens pena daquele que te traiu...! Não queres que pague nas chamas o seu crime?

— Ah! Senhor, não é pelas chamas, não... Pouco se me dá o fogo que lá arde...

— Então por que é? Perguntou o Senhor e os anjos, cheios de curiosidade, cercaram a alma chorosa da velhinha:

— Ah! Senhor, a falar a verdade: é porque sempre ouvi dizer que o inferno está cheio de mulheres bonitas.

O PASSADO

Depois de um ano bem longo de apartamento encontramo-nos peito a peito num abraço forte que, por muito apertado, como que nos espremeu o coração fazendo com que nos subisse aos olhos uma humidade que o nosso pudor de homens logo secou — não nos ficava bem chorar na gare de uma estação atulhada de gente, com tantos olhos curiosos voltados para o nosso lado porque o povo começa a interessar-se pelos seus poetas e ali estava o maior da nossa geração, o suave Bilac.

Olhei-o depois, vagarosamente e, a princípio, pareceu-me o mesmo rapaz robusto e sadio do bom tempo — ah! O bom tempo! — Pouco a pouco, porém, (meus olhos estavam deslumbrados pela emoção) comecei a notar nos cabelos negros do fino cantor das Virgens mortas uns sulcos de rara alvura, uns fios claros como uma teia que se tramasse naquele esplêndido negror: eram cabelos brancos.

Diabo! Disse comigo numa explosão de egoísmo, somos da mesma idade e se ele tem esse “sinal dos tempos” eu o devo ter também e, maquinalmente, passei a mão pelos cabelos como se quisesse sentir os mortos, os arrefecidos fios entre os que ainda conservam o tom louro da mocidade. Não os senti, não podia senti-los, e, confesso, fiquei com um pequenino orgulho como se houvesse reconhecido a minha resistência maior, mas o amigo, o irmão, como nos fossemos lentamente dirigindo para o carro, lançou também um olhar perscrutador à minha cabeça e, como eu, ufanamente, alisou os seus cabelos negros e luzidios. E pusemo-nos a falar dos amigos distantes. Enquanto o carro rodava, ia eu pedindo notícias de um e de outro, de certos lugares amados e o poeta referia-se aos homens com tristeza, quanto às belezas da terra sempre as mesmas, talvez maiores, realçadas por um ano de copiosos aguaceiros e de soalheiras abrasadoras. Só os homens mudam...

— Mas tu estás o mesmo...

— E tu?!...Como mentíamos! Eu vira-lhe os cabelos brancos e ele também relanceara os meus; mentíamos ambos.

Quando nos concentramos, no meu gabinete, entre livros, discorremos largamente sobre os dias passados — dias de esperança, sem preocupações, sem tormentos — havia dificuldades, mas, com que garbo as vencíamos e o riso era o clarim com que saíamos a pelejar, entretanto...

— Francamente, suspirou o poeta, se Deus me propusesse voltar à mocidade com a condição de repassar os sofrimentos que curti, eu lhe diria — muito obrigado!

— Não querias?

— Não.

— Pois eu daria alguma coisa para tornar a esse tempo. Houve um silêncio entre nós, interrompido estrondosamente por um dos meus filhos que entrou cavalgando uma bengala. Enquanto a criança circulou pelo gabinete estivemos calados, logo, porém, que ao apelo tartareado do irmão mais moço, esfuziou pela porta, aos brados, numa galopada, voltamos ao nosso assunto.

— Queres saber? Trazes apenas da travessia que juntos fizemos as impressões amáveis, há memórias que repelem as recordações amargas. Se houvesses lentamente descido pelas barrancas escalavradas de um abismo rasgando as carnes nas arestas da pedra, deixando as roupas, que são as ilusões, (porque nós andamos vestidos de ilusões) nos espinhais, sangrando, arquejando, simplesmente porque na altura o ar era mais fresco e cheiroso e de lá os horizontes pareciam mais amplos e nas bordas dos rochedos viste flores de uma cor admirável e ninhos cheios de pássaros, quererias voltar ao sofrimento e aos receios da descida? Não, por certo. Pois a nossa vida, no passado, foi isso, senão foi pior.

— Nem tanto.

— Teríamos de rever os amigos mortos e passaríamos pela dor de os perder de novo, seríamos pungidos pelas mesmas desilusões...

— E os gozos?

—Gozo! O gozo é o prazer tranquilo que nunca tivemos. O homem que janta, às pressas, num hotel de estação, não aprecia o que come. O nosso prazer era um delírio e queres tu a prova? Somos dois entediados...

— Eu, não.

— Tu, não? E deixastes o Rio e vieste procurar o silêncio de uma cidade do interior... que é isso senão indiferença? O teu prazer hoje é tranquilo como convém — tens a esposa, os filhos, o aconchego seguro, pensas no amanhã — és homem, enfim, e que eras tu? Um visionário que vivias acumulando utopias e colhendo desenganos. Queres saber? Eu não olho para o passado com saudade senão com tristeza e pena do que lá deixei, que foi muito, foi tudo, devo dizer. Demais, para recordar esses dias extintos, não careço da memória — tenho os achaques. Pensas que venho por essas serras acima por gosto? Não sou alpinista: venho empurrado por esse mesmo Passado que me deixou assim, como vês. Se me dissessem — volta ao passado e virás suavemente pela vida sem moléstias, caminhando sobre libras esterlinas, livre das perfídias, da inveja, do ódio mesquinho e das discussões políticas, eu ainda pediria alguma coisa ao bom Deus...?

— ?

— Que me fizesse bronco, mais bronco que um penhasco para não ser perturbado na minha felicidade pela inteligência. Não há coisa pior, meu amigo. O “Por quê?” É pior que o abutre de Prometeu, querer saber é o diabo. Não há nada como a indiferença dos lorpas e das coisas — viver como a água que é cantando por entre ribas verdes sem se preocupar com o destino — se vai direita ao mar ou se tem de se rebalsar num açude para depois descer a uma azenha e virar a mó. Isso é que é. Mas viver a vida vivida com todas as suas vicissitudes, isso nunca! E queres saber? Para mim deve ser esse o suplício infernal. Morre um desgraçado e, na outra existência, é condenado a repassar todos os sofrimentos que o atormentaram na primeira provação — dores, falta de agasalho, dias de solidão, noites de insônia, intrigas, o diabo...

— E tu que não falas de um só momento feliz? Porque os tivemos...

— Gotas de água no absinto.

— Que pessimismo, homem. Isso é influência do dia que está taciturno, com essas nuvens pardas. Vamos dar uma volta pela cidade. Conheces Campinas? Já aqui estiveste?

— Sim, em 1892... horas apenas.

— Pois vamos dar uma volta. Saímos. O dia era triste, nublado; nos telhados das casas corvos negros, pousados numa imobilidade de figuras de bronze, concorriam para a melancolia que nos ia encharcando a alma. Em uma das praças cantava a água de um chafariz. Começou a polvilhar uma neblina fria que ia abrumando o horizonte; amiudamos os passos, corremos curvados, com as golas dos casacos levantadas. Quando nos refugiamos na Minerva — justamente o caixeiro chegava para o muito conhecido: “Que há de ser?” — a chuva caiu forte, aos jorros, ruflando na vidraçaria e o poeta, sacudindo-se, muito cauteloso, arrepiado e arrependido de haver saído sem o guarda-chuva, resmungou contra o tempo pérfido. “É o diabo... esta molhadela agora...”.

— Quê? estás impressionado?

— Então? Que pensas? Julgas, talvez, que somos ainda aqueles doidos que afrontávamos aguaceiros como o famoso que apanhamos desde o largo do Rocio até à rua do Riachuelo numa noite de carnaval? Foi-se o tempo... hoje os médicos nem querem que eu apanhe sereno. E tu? O caixeiro serviu-nos dois grogs. Lembras-te da tua volta do rio de Ouro quando lá foste com Moysés Frontin para a maravilha da água em seis dias? Parecias um daqueles bárbaros de Armínio descritos por Tácito.

— Se me lembro! molhado até os ossos.

— E nada, hein?

— Fome apenas.

— Bom tempo! E o poeta, talvez para não cair em contradição, pôs-se a mexer lentamente o seu grog, mas bem que eu lhe notei uma certa ondulação do peito como se ele houvesse engolido um suspiro. Por fim, não se contendo, disse:

— Estamos velhos, meu amigo. Eu afirmei num aceno, descoroçoado. E, calados, ficamos a ouvir a chuva que jorrava grossa.

NAS ÁGUAS DO MAR

O púlpito da sua maior eloquência não tinha entalhes preciosos nem recamos clássicos, por ele não andara o formão nem a goiva o cavara, por ele não se enastravam folhagens nem anjos o rodeavam, em coros jucundos, soprando tubas ou tangendo harpas — o púlpito de sua maior eloquência foi um bruto e desconforme penhasco, negro e calvo, fincado nas areias de beira-mar. Na sua base a onda fervia e o verde e pútrido sargaço formava uma orla verde. Ali pousavam as gaivotas nos dias azuis, ali refugiavam-se as procelárias quando os grandes ventos conflagravam os mares, dali falou o santo aos peixes.

Não era Antônio um frade do abismo posto que as fundas águas de esmeralda também possuam congregações religiosas. Heine faz menção de dois ou três bispos marinhos que deram à costa nos frios litorais do Norte arrojados à praia por algum vagalhão herético ou colhidos na rede de um pescador ousado.

Antônio, nascido em Lisboa, era frade paduano e a razão que alegam os seus biógrafos explicando o seu capricho de pregar aos peixes é ponderosa: os homens incrédulos e desatentos, faziam ouvidos de mercador às suas santas palavras. Debalde ele os chamava para a virtude, debalde lhes prometia a bem-aventurança, os homens ingratos achavam maior prazer no vício e preferiam a vida terrena, que conheciam, à outra que era apenas uma hipótese de pregadores. “Mais vale um pássaro na mão que dois voando”, diziam e a igreja ficou às moscas; eis porque o santo resolveu pregar aos peixes.

Logo que ele surgiu no cimo do penhasco acardumou-se o mar que, de verde que era, ficou colmado de prata — robalos, badejos, sardinhas, pescadas, baleias monstruosas, tubarões vorazes, linguados, raias, polvos, enguias, todos os representantes do povo escamoso, acudindo apressadamente dos antros, subiram à tona do mar plácido e ouviram devotamente a pregação do frade.

Antônio falou com muita inspiração referindo-se aos gozos enganadores e efêmeros da vida e, quando aludiu ao céu, foi tal o poder da sua palavra inflamada que os peixes entraram a flagelar o mar com as barbatanas, que é assim que os peixes manifestam o seu entusiasmo. Alguns, mais sensíveis, ficaram com os olhos arrasados e, convertidos, levantaram um grande e atroante clamor, pedindo o batismo.

Desceu Antônio do penhasco e, como os catecúmenos estivessem na melhor das pias, limitou-se a pronunciar as palavras sacramentais dando a cada um o nome que lhe subiu à boca naquela hora milagrosa e foi assim que os peixes ganharam os nomes porque são hoje conhecidos nos mercados.

Finda a pregação despediu o santo o seu auditório e desceu do sáxeo púlpito. Foi, então, uma alegria imensa no mar. Os peixes, confiando na promessa de paz que lhes fizera o santo, saíram contentes nadando à flor das águas que o luar fazia de prata — as baleias golfavam trombas espumantes, os botos viravam as mais arriscadas cambalhotas, as raias saltavam caindo de chapa na água, com estrépito e as sardinhas, aos milhares, toldavam o mar semelhando ilhas brancas e resplandecentes que fulguravam ao luar. Só um velho espadarte desconfiado e prudente, em vez de sair em triunfo apregoando a bondade do propagandista e a facúndia do orador, como faziam os seus irmãos, desceu a meter-se na lapa mais funda, entre as mais enredadas algas, buscando, com dificuldade, encravar se nos labirintos de coral, e quieto, lá se deixou ficar a ver em que paravam as modas.

Ali jazia mestre espadarte quando viu passar uma gorda tainha, muito garrida, a dar de cauda com pressa como se fosse ligeiramente a algum negócio urgente:

— Irmã tainha, perguntou o matreiro peixe, onde vais tão taful e com tamanho azáfama e açodamento?

— Onde vou? Que pergunta! Vou gozar o luar que lá em cima esplende e vou aspirar o aroma que chega dos jardins da terra...

— E não receias o anzol e a rede do pescador, irmã?

— O anzol e a rede? Pois não ouviste o sermão do santo, irmão espadarte?

— Ouvi, irmã; ouvi e aqui estou nesta lapa porque não há outra mais funda por esses mares; e acho que farias bem se te deixasses ficar entre as lajes em que nasceste. Deixa lá o luar, deixa lá o perfume; enlapa-te, irmã tainha, enlapa-te.

— Pois desconfias do santo, irmão espadarte?

— O santo é homem e eu sou peixe, irmã.

— Que tem isso?

— Que tem? Ah! minha irmã, bem se vê que és muito nova... O Deus dos homens, minha irmã, morreu por eles e não por nós. Foram os homens que o trouxeram à terra com os seus pedidos de misericórdia e que fizeram os homens? Pregaram-no em uma cruz. Que devia acontecer depois de tamanha ingratidão? Devia baixar sobre os homens um castigo tremendo, não é verdade?

— Sim...

— Pois, minha irmã, o castigo baixa mas é sobre os peixes que nada fizeram. Quando os homens comemoram o sacrifício do seu Deus atiram-se a nós sem misericórdia e é uma devastação por esses mares que... não te digo nada. Se nós tivéssemos um Deus poderíamos ter uma quaresma e nela tiraríamos uma justa vingança dos homens, mas nós somos peixes, não temos Deus, não temos política, não temos nada...

— Então achas que Santo Antônio...?

— Eu acho que Santo Antônio quer pregar-nos alguma. Palavras de tal homem a peixes... Uhm! Isso é isca... Minha irmã, quando um superior desce assim a intimidades com a canalha... Desconfia dele: o menos que pode pedir é a vida. Para o homem o reino do céu, dos peixes é o escabeche. Enlapa-te, irmã tainha, e deixa lá andar em cima quem anda.

Pela manhã uma sardinha passou desgarrada e espavorida diante do velho espadarte:

— Que é isso, irmã sardinha? Que ânsia te leva assim afogueada?

—Ih! Irmão espadarte... o sermão do frade... o sermão do frade...

— Lindíssimo! Admirável! Um primor de forma.

— Uma isca perversa! As redes varreram o mar de praia a praia e, como nós confiávamos na promessa de paz, a pesca foi avultada, nem sei mesmo se ainda haverá peixes que continuem a espécie nestas águas.

— De outros não sei, mas que há espadartes e sardinhas garanto — sardinhas porque atravessam as malhas por serem pequeninas, espadartes porque não se fiam em palavras. Palavras, palavras, palavras... E parecia que a alma de Hamlet se havia encarnado no atilado peixe.

Desde então nunca mais quiseram os peixes ouvir sermões... E por essas e outras vão os milagres rareando e ... não aparecem eleitores em dias de eleição...

UM CONVENTO FLUTUANTE

No porto de Taganrog entrou um navio bem curioso: o grande veleiro Pokrow-Pressiyatya-Bogovadis, que não é senão um convento flutuante. Toda a equipagem é composta de monges do monte Athos; o capitão é o P, Gerassim, superior da ordem. Os marinheiros monges trazem vestes eclesiásticas, porém, apropriadas ao serviço.

O navio é pintado de negro e tem na proa uma grande cruz.

A bordo, o capitão diz missa todos os dias.

Em geral aí se observam rigorosamente todas as regras do convento. O acesso do navio é interdito às mulheres. A carga compõe-se de óleos sagrados e de objetos religiosos.

Os monges e os oficiais são de nacionalidade russa, mas navegam sob o pavilhão turco.

Notícia transcrita.

Quem leu as páginas admiráveis consagradas pelo visconde Melchior de Vogüé à Montanha Santa, que forma o fecho de um dos promontórios chalcidicos, rematando, em contraforte abruto, uma das línguas de terra que, como os tentáculos de um polvo imenso, partem da antiga península macedônica para o mar, não vê sem interesse a curta notícia da peregrinação dessa não monástica, abrindo as velas aos mesmos ventos que levaram Argos em tempos mais fortes e mais jucundos, ao som de cantos, com a flor dos pelasgos, à conquista do ouro nas terras de Aétes.

O monte Athos, cuja sombra, espalhando-se nas águas calmas do Egêo, chegava, no dizer de Plinio, a escurecer as praias de Lenos, viu formigar a seus pés a chusma asiática que Xerxes conduzia fragorosamente; viu mais de uma vez, em noites claras, passarem, em cardumes, brincando e cantando na vaga, as encantadas filhas de Nerêo; viu nascerem cidades em torno do seu corpo, viu-as caírem esboroadas pelas catapultas; teve, mais de uma vez, ensejo de admirar as aguerridas falanges macedônicas, e, uma manhã, olhando de alto um punhado de homens que formigavam na sua base, descobriu entre eles Dinócrates que propunha talha-lo de alto a baixo numa figura monstruosa na qual o futuro maravilhado visse a imagem do moço Alexandre, dominador do mundo.

As florestas seriam a cabeleira encaracolada e verde do herói formoso, as nuvens formariam a sua clâmide translúcida; fontes rebentariam copiosas das dobras do seu manto; nos seus ombros, pelas suas coxas cresceriam cidades, na palma das suas mãos, estendidas e abertas, quadrigas disputariam o prêmio da corrida e a seus pés fervilhariam empórios colossais.

O sonho de Dinócrates passou e o monte, áspero, escabroso e altivo, manteve-se o mesmo do antigo tempo, monstruoso e severo como o descreveu Diodoro.

Morreram os deuses, o crepúsculo escureceu o esplendor da Hélade e o monte lá está, de pé, nas terras que hoje são da Romelia, onde voaram, em tempo de Trajano, as águias do Capitólio, levadas, como gerifaltos, pelos vexilarios de Roma e quem agora o governa é o turco bárbaro que lá mantém, numa aresta de rocha, entre vinhas agrestes e ríspidos cardos secos, o seu representante.

O monte é hoje um silencioso eremitério: cobrem-no mosteiros a torreado, alguns construídos nos primeiros dias do século IX, em pleno esplendor bizantino, outros mais recentes, mas todos rijos, de grandes blocos de granito, lembrando as construções ciclópicas das primeiras eras.

Neles habitam os homens santos, os homens virgens que se afastaram, para o sempre, do mundo segregando-se nos alcandores onde não chegam as seduções enganadoras do século.

Nas épocas da prosperidade dessa Tebaida alpestre mais de dez mil monges entoavam antífonas pelos seus meandros, no fundo dos vales onde se despenham torrentes, nos visos dos cimos, nos pendores dos abismos, no seio das matas escuras. Hoje esse número está reduzido a seis mil skitas, administrados pelo conselho dos cinco ou epistatia, que elege anualmente, tirando alternativamente de um convento e de outro o protathos, ou magistrado supremo do estado monástico.

A população do monte Athos, diz Melchior de Vogüé, é exclusivamente composta de religiosos subordinados à regra de S. Basílio. O uso da carne, do fumo, dos banhos lhes é desconhecido. Usam invariavelmente um hábito negro, de lã, conservam toda a barba e o cabelo que trazem em tranças sob altos gorros, de um tecido grosseiro, copiando a fôrma do fez.

Seguindo a antiga crença nazarena, não cortam os cabelos: Non tanget caput novacula, como diziam os nazires. “A particularidade mais curiosa da sua regra é a proibição feita a toda a mulher, a toda a criança, a todo o animal fêmea de penetrar no território do Athos. Essas proibições pueris, para não dizer revoltantes nunca foram infringidas desde que foram ditadas, há mais de dez séculos: elas contribuem, mais que tudo, a dar uma caráter de singular estranheza a esse canto de terra, posto fora da natureza, tão longe quanto o pôde levar o furor ascético”.

É com tal gente que vai tripulada a não que surgiu no mar de Azov, não com a celeuma alegre que os marujos levantam quando sentem na aragem o tépido perfume da terra próxima, mas ao som triste dos cânticos religiosos.

Sebastião Brandt, o grave jurisconsulto de Strasburgo, autor do Narrenschiff, ou navio dos loucos, não foi tão longe com a sua tresloucada fantasia. As lendas bretãs falam de barcos espectros que passam surdamente nas brumas dos dias polares e nos quais a companha é toda de sombras e a bandeira é uma alva mortalha e vive a lenda do navio do Holandês errante, acossado por mil tormentas, vogando incerto por todos os mares, mas que são essas criações da sátira e do medo, essa ironia e essas superstições comparadas à verdade que pode ser vista diante do porto rumoroso da cidade fundada por Pedro o Grande?

Lá está o navio — é um mosteiro sobre águas: a sua tripulação é toda de monges, a sua carga consiste em óleos santos e em objetos religiosos.

Enquanto está ancorado a maruja mística pode cuidar serenamente do culto: o gajeiro deixa o cesto de gávea, deixa o timoneiro a cana do leme, fecha o piloto a bitacola e, com os panos ferrados, as vergas estendidas em cruz, a nau atroa os hinos. Sobe-lhe do bojo, em espirais cerúleas, o fumo aromático dos turíbulos, tine retine a campainha e a hóstia, branca e pura, eleva-se entre os dedos salitrados do protathos navegador, à luz do céu nevoento, defronte da cidade moscovita mas... vendidos os santos óleos e os rosários de sândalo, as nôminas e as verônicas, as relíquias e, talvez, antigualhas bizantinas e aberto largamente o pano sigamos, mar em fora, a não monástica.

Lá vai, proa altiva, rompendo a vaga, galgando o macaréu; lá vai! Range a mastreação, silva o vento nas enxarcias e, em tomo do cabrestante passam os monges os cabos... Eia! mãos bentas, Ala! Iça! Aos turcos a chalupa! Ala! E o protathos, enérgico, brada à companha hirsuta que, marinhando por mastros e mastaréus, surgindo nas escotilhas, caminhando na rede da bujarrona, em faina ligeira, põe o navio à feição do vento até que ele ganha a abordada e parte. Lá vai!

Se não mentem as bailadas do Norte que se referem à existência de catedrais e mosteiros submarinos onde oficiam bispos e cantam, em coros de nácar, escamosos monges e freiras de olhos de esmeralda, quando a nau monástica passar na vizinhança de tais templos e conventos, os sinos bimbalharão sob as águas cerúleas e as sereias cristãs ajoelharão devotamente nos genuflexórios de coral, sobre esponjas macias.

Não é a peregrinação dos monges que eu lamento — o mar tem encantos que absorvem a alma, quem viaja sonha, mas a terra? A terra que se adivinha como uma felá pudica, encolhida sobre o verde tapete das águas, toda envolta em gaze, mostrando vagamente os seus contornos, os relevos do seu corpo ondulante; a terra que se vai avistando, ainda indecisa, despindo-se com o vagar pudico de uma noiva, deixando ver alvuras; e depois as torres agudas que aparecem, zimbórios que rebrilham, vidrais faiscando; por fim a cidade que se vê linda, alegre, resplandecendo, ora verdes planícies ou em aveludados outeiros com o casario alastrando ou subindo, em rebanho, pelos flancos das eminências e lá, no referver da vida, o espetáculo novo para aqueles olhos cansados de vigílias à luz trêmula das lâmpadas absconsas, da grande, forte e inevitável germinação.

Não lhes arderá na alma o desejo, filho do instinto, que é o pastor do rebanho dos sentidos? Não lhes pulsará o coração ansioso batendo, como uma máquina apressada, a impelir o corpo para o seu destino? — o polo magnético do amor não os atrairá da terra?

Não, não é a peregrinação pelos mares que eu lamento — as sereias deixaram as ondas que delas apenas conservam a perfídia, as sereias estão hoje em terra firme e têm as suas grutas de coral, não erguidas pelos falanstérios, mas estofadas pelos armadores; o que eu lamento é a chegada aos portos, é a visão da terra sedutora.

Uma mulher que passa na praia cantando leva-lhes os olhos e manda-lhes o seu perfume. Oh! O aroma da carne! Outras caminham ao longe e, à noite, à hora calada das estrelas e das ardentias, quando no porto adormecem as docas, sulca as águas mansamente um barco e nele, unidos, dois vultos trocam beijos. O monge que vela escuta o crepitar dos lábios ardentes, debruça-se à amurada, olha e, extasiado, não se pode tirar daquela contemplação alucinante.

Ao longe a cidade, recamada de luzes, fulgura e um hausto grande, quente, rumoroso como um arquejo, hausto que é a confusão de todos os suspiros que sobem, hausto que é a grande respiração voluptuosa dos que amam, chega ao navio ascético e os monges levantam-se atordoados como perseguidos por um sonho mal.

Que é! Que é! Indaga o protathos e todos, lívidos, perturbados, trêmulos, estendem os braços magros mostrando a cidade ao longe, cravejada de luzes, subtilizando o perfume embriagador da volúpia. É a cidade! É a cidade!

O protathos dá o sinal da partida fugindo com pressa ao pecado e, à primeira luz da manhã, panos todos abertos, bojando à aragem, lá vai a nau velejando a fugir à mulher, levando, porém, como um presente satânico, a acídia, essa melancolia que é uma saudade do mundo, essa tristeza mortal que é uma revolta da carne e que foi assim definida por Frei Luiz de Granada:

“He uma frouxeza e caimento de espírito para bem obrar, e particularmente é uma tristeza e fastio das cousas espirituais”.

E, recolhendo a nau ao porto do Egeu, voltando os monges às asperezas da sua montanha, mais a acharão deserta e triste, intratável e mesquinha. Mas a regra ferrenha será transgredida, não pela presença da Mulher, mas pela obcecação do Feminino apenas e de leve percebido nos rápidos surgimentos naqueles portos onde o amor era livre, na terra e no mar, não só entre os casais humanos que trocavam beijos mas mesmo entre os animais.

E, no monte, os delirantes, contorcendo-se raivosamente nos grabatos das celas, não distinguirão no murmulho do arvoredo o delírio do amor e, se distinguirem, por certo não comunicarão ao protathos para que ele, em ira feroz, não conclame as congregações para abaterem, a machado, as depravadas árvores, únicos viventes que ousam, com desfaçatez, cumprir o preceito divino da procriação naquele eremitério da esterilidade.

Pobre nau de sombras, mais trágica do que a dos espectros alvos que passa envolta em nevoeiros pelos tristes mares mudos da região dos polos. Pobre nau de agonia!

A MORTE DO ESTADISTA

Não há morte que mais comova do que a do guerreiro; basta que a notícia circule para que a multidão se levante empolgada pelo entusiasmo e deplore, com verdadeiro sentimento, a perda do herói; mas o que a agita e abala não é propriamente a queda do vingador intrépido da Pátria mas a série de circunstâncias, o conjunto épico que a torna extraordinária.

Imagina-se o momento, compõe-se a rapsódia, à guisa das de Homero, concorrendo cada imaginação com o seu subsídio: “ei-lo soberbo, sofreando o ginete ardego que escarva o solo, à frente dos exércitos estendidos em linha de batalha.

“Ao sol que sobe, claro e quente, rebrilham as línguas agudas das baionetas, fulgem os canhões, cintilam os metais das fardas. As bandeiras desfraldadas palpitam ansiosamente como aves batendo as azas em ensaios de voos; relincham os corcéis, vibram os clarins estrídulos e ele olha firme, com a espada a flamejar no punho, atento aos passos do inimigo.

“Súbito, ao longe, dentre as ervas, um golfão de fumo nítido arremete, outro, mais outro — atroa o pávido silêncio, turva-se o espaço luminoso. Estraleja e ronca a metralhada rasgando os ares, detonam bombas, crepita a fuzilaria e, de um lado e de outro, o incêndio cresce, o armistrondo reboa.

“Gritam, guaiam, clamam os feridos, gemem os moribundos e, num momento, ao soar dos clarins, movem-se os cavaleiros erguendo as compridas lanças, formam-se os pelotões e ele, acenando aos soldados, parte, à rédea solta, levando no rastro do seu ginete a multidão frenética.

“Lá vai a avalanche em desabalada investida através do fogo cruento, rompendo as sebes de aceiro, deixando a planície assoalhada de cadáveres, os valados entupidos de mortos, os marnéis encardidos de sangue. Mas uma bala silva — empalidece o herói, oscila incerto na sela, pende-lhe no punho a espada, cerram-se-lhe os olhos e os companheiros, que o veem sem alento, acodem em seu socorro. É tarde! a morte turva-lhe a vista, mas a alma heroica sobe-lhe ainda aos lábios para o derradeiro comando pedindo que prossigam e emudece abandonando o corpo enlanguescido.

“A soldadesca, ao saber do desastre, assanha-se ainda mais querendo vingar o general ousado e àquele cadáver, que é recolhido à tenda, fazem os exércitos uma oblação de sangue, só voltando ao acampamento quando o inimigo, espavorido, abandona a ação refugiando-se, desbaratado, entre as suas trincheiras”.

Morre assim o guerreiro, choram-no todos os olhos, lastimam-no todos os corações, mas comparai a sua morte a desse homem que se finou depois de tão longa agonia.

O guerreiro, caindo entre os bravos, leva na alma a consoladora certeza de que a pátria o glorificará porque os atos da sua vida não se reservam em segredos — o homem de Estado vai duvidoso da justiça, entretanto, se compararmos os feitos de um e de outro, o guerreiro terá de ceder ao estadista.

Na guerra a comoção de todos influi na coragem, há o estímulo eletrizante dos clarins, há o pean das músicas guerreiras, as vozes que bramam, a artilharia que incita, o fumo que embriaga, e, acima de tudo, a força poderosa do instinto de batalha que arrasta, impele o mais enfraquecido.

O cenário é vasto, o público é o universo e no silêncio de um gabinete onde chegam, como projéteis tremendos que vão direito à honra, os reclames do povo faminto, os apodos das fações adversas, os protestos da imprensa, as acusações dos grupos despeitados, os pedidos das camarilhas e os compromissos que traem a honorabilidade do governo, as campanhas políticas, as urdiduras da intriga, as guerrilhas de campanário, as exigências absurdas dos diretórios, as alicantinas eleitorais, todas as tramas da administração eivada de vícios antigos nas quais o homem de Estado se debate como a mosca na teia da aranha pérfida, ele só tem um estímulo — o dever.

Se resolve uma questão cria sempre desafetos, se aplaina uma dificuldade dão-no por acompadrado, se consegue um benefício acusam-no de interessado, se protela uma resolução afligem-no com injúrias, se procede com energia bradam contra o tirano, se anda com calma e doçura increpam-no de pusilânime.

Deixam-lhe os cofres vazios, exigem que os abarrote. Se restringe os gastos passa a ser miserável; se desatende, por insuficiência, aos contratos anteriores, logo lhe assacam os mais infames apodos e não o deixam em paz um só minuto — os amigos com a amizade, os inimigos com os ataques.

Sabe o guerreiro o que tem a fazer, o estadista tem sempre necessidade de modificar os seus planos para atender às conveniências — um é o absoluto condutor da batalha, outro é um instrumento do partido; o primeiro só tem um fim: vencer, o segundo precisa atender à vitória e aos meios de consegui-la fechando, muitas vezes, os olhos ao saque como fez Caio Mareio dentro dos muros de Corioles.

Esse que se finou esteve na trincheira, de pé, até a última hora. Já a moléstia o minava, já ele sentia os primeiros cruéis sintomas do mal que, antes de o levar, o torturou penosamente, e lá estava trabalhando em silêncio, em prolongadas vigílias, para recompor o Estado cuja administração lhe fora confiada.

Quem via o seu trabalho quando ele o fazia? Ninguém. — Vem-no todos agora, e aplaudem. Ele, entretanto, dirigia a batalha formidável na qual os exércitos eram de homens pacíficos contra a miséria, contra a esterilidade. Ele ordenava os semeadores nos campos, os lenhadores nas florestas, os mineiros nas minas, os maquinistas nas máquinas, os faiscadores nos córregos, a justiça no seu tribunal, a instrução nas escolas, a honra e a fortuna nos lares e a integridade nos lindes do território do Estado.

Não viam ou não queriam ver enquanto ele agia, foi necessário que, com a queda do seu corpo, a vista se alargasse francamente pelos benefícios que ele fizera para que então o aplaudissem e venerassem.

Essas vitórias sem brilho são as mais fecundas e esse que morreu de fadiga, sacrificado pelo dever, foi o vencedor de um inimigo terrível — a inércia, porque deu aos mineiros, povo forte e nobre mas que parece viver ainda numa época pastoral como os hebreus em Ur, a consciência da sua força e o incitamento para o progresso e, mais feliz que o pastor enérgico do povo de Deus, sucumbiu na cidade formosa que sonhara para ser o centro da vida do poderoso e riquíssimo Estado, que vive acabrunhado e pobre dando, entretanto, ao mundo que o explora, os tesouros do seu ventre inesgotável.

Esse que foi honesto, trabalhador e leal bem merece que lhe deem por mortalha a bandeira da sua terra porque por ela morreu heroica, abnegadamente... e pobre.

E esse heroísmo da honra vale bem o da temeridade.

SIM E NÂO

Nestes civilizados tempos, esterilizados por muito civilizados que são, sem ideal e sem crença, que é a “forma” mais nobre e mais alta do ideal, com muita cultura e muita chateza — porque o que se ganha em superfície perde-se em elevação — o homem, esse ser “amante e pensante”, perdeu as qualidades que o tornavam a maravilha maior da criação — um pouco de divindade dentro de um pouco de argila — e passou a ser uma obra artificial como as máquinas beneficiadoras ou o gárrulo fonógrafo.

Nos bons tempos de antanho, tempos simples e heroicos, quando os anjos, nas horas douradas e calmas da tarde, nas épocas de aroma e sabor, que eram as da florescência e a do fruto, encolhendo as azas, vinham sentar-se sob a vinha dos lares, bebendo, com sede humana, a água fresca pelo gargalo vermelho das urnas que as moças, como Rachel, graciosamente lhes ofereciam e aceitando a broa, o anho e o vinho da refeição frugal dos patriarcas, a vida era, talvez, mais rude, em compensação a alma era mais pura e tinha toda a sua força de criação que os tempos foram consumindo.

O patriarca era um nômade — se a terra do seu habitat se lhe tornava ingrata ou se a fonte, com os calores, ficava em marnota, logo ordenava a partida e, tomando um bordão, reunindo a sua gente, lá ia, entre os lentos carros toldados de peles onde se acolhiam as mulheres e as crianças, com um rebanho numeroso a balar e a mugir na coda da caravana, guiado por pastores, que eram, ao mesmo tempo, homens de guerra, olhando atentamente as terras, provando as águas, à escolha de um sítio de fertilidade e beleza onde estendesse as peles das fendas e cravasse os moirões dos currais.

O “homem” era um ser de vontade, pensava e agia por si — era o sacerdote e o juiz, o patrono e o caudel: oficiava e julgava, abençoava e conduzia ao combate. O altar era um monte de pedras coberto de musgo, o tribunal era a soleira da própria casa e havia crença e havia ordem. Com duzentos bois, uma centena de vacas, um lote de ovelhas e rafeiros possantes e, para trazerem em ordem esse armentio, uns rapagões alentados, o patriarca era um rei no deserto e, se sucedia sair-lhe ao encontro algum rás, o senhor de campo e monte, com muitas lanças, embargando-lhe o passo, bradava à sua grey: o pampilho do pastor transformava-se em lança, o corno de reunir o gado ressoava como tuba de guerra, e toda a bucólica, perdendo o seu encanto sereno, aparecia como um epinício ruidoso.

E a terra ficava em poder do mais forte como prêmio da vitória: era a prisioneira e os triunfadores, como não havia vaidade, em vez de levantarem arcos festivos e de abalarem o silêncio com arengas e apologias celebrando a batalha, bem conduzida e bem terçada, recolhiam os despojos, enterravam os mortos e, passando e repassando o arado pelo solo que as patas dos ginetes haviam calcado, semeavam cantando e as festas triunfais quem as fazia era a primavera.

Os homens não tinham livros, muito eram os tijolos cozidos em que gravavam os fastos da raça e as observações que faziam na terra e no céu; não tinham tribunas, não tinham jornais, não tinham escolas — a sabedoria era pouca e bastava: saber a época de lançar a semente, a época mais favorável ao corte das árvores, quando convinha mondar, podar, armar um carro, laçar um touro, aderençar um potro, tosar a ovelha, aguçar um ferro de lança, cavar um pilão, fiar uma estriga, doubar um novelo, desviar um golpe, vibrar uma funda, triturar as ervas benéficas, sonhar e cantar os hinos religiosos, eis em que consistia todo o saber humano. E os homens tinham saúde e alegria e as mulheres tinham virtude e beleza — o céu era o mesmo, o mesmo era o sol e as estrelas brilhavam, talvez mais claras, dentro da noite.

Rolaram séculos e os homens foram inventando e aplicando — e, à medida que inventavam e aplicavam, iam perdendo a energia: a escrita atrofiou a memória, a máquina atrofiou o músculo, o artifício matou a beleza, o sofisma foi batendo o bom senso, a pólvora inutilizou a bravura. A Ciência reduziu toda a ação humana a funções nervosas e musculares, sanguíneas e linfáticas, produtos de mais ou de menos bile, de mais ou de menos fósforo.

O furor de Ajax, cantado por Homero, podia ser combatido por um cola gogó e a Ilíada não existiria. Hesíodo foi um ingrato cantando as pierides quando devia ter enaltecido a massa cinzenta. Em uma caixa de fósforos Jonkopings há mais ideias do que em todo o Parnaso grego de onde decorreu, como uma clara e sonora fonte, toda a antologia. Com a substância que gerou o Górgias de Platão, os petizes do nosso tempo acendem cigarros às mesas dos botequins e, sobretudo, para confundir o mundo e abastardar a Humanidade, a Palavra domina. A Palavra — eis tudo, eis o mal grande; a Palavra que voa e que é águia ou corvo, borboleta ou mosca, e a Palavra escrita, que é diamante eterno ou gota de água efêmera, luz ou brasa, glória ou difamação, epopeia ou mofina.

Em verdade — quais são os verdadeiros polos do mundo senão estas duas palavras: sim e não, que resumem toda a vida? Estes dois monossílabos essenciais que respondem a todas as necessidades da existência dispensam a língua e, em qualquer gesto, numa contração subtil ou num ligeiro aceno logo se manifestam — basta uma oscilação de cabeça para que se afirme uma verdade ou se negue uma graça.

No olhar o sim é brilho, o não é chama que arde; sim é fecundo, não é estéril, sim corresponde ao estio, não corresponde ao inverno, sim é vida, não é morte. Todas as demais palavras não passam de modificações desses monossílabos — são como os recamos com que o lojista, para dar mais valia e realce aos objetos, costuma enfeitá-los.

No amor: a mulher que vos unge com a luz enternecida dos seus olhos, que vos envolve com o halo dos seus braços, que vos acaricia com o seu mais suave sorriso, que, pouco a pouco, brandamente, vai inclinando a cabeça, como uma árvore inclina o seu ramo florido, para que vos chegue à boca o beijo dos seus lábios, que faz com todos esses movimentos cheios de meiguice e de graça? Diz sim. Aquele que para responder ao vosso pedido aflito, explica que a política vai mal, que as terras estão esgotadas, que as chuvas são poucas, que há falta de braços, que o país está à beira de um abismo, vai desembrulhando lentamente um involucro de palavras inúteis dentro do qual há apenas — o não.

A criança, sorrindo, estendendo os braços, está a dizer: sim; amuando está a dizer — não. Na política — o parcial do governo que se levanta com muita gravidade e longamente discorre horas e horas sobre um projeto, despejando palavras ocas, pouparia um trabalho inútil se logo dissesse — sim; o oposicionista verberando, citando, apostrofando, lamentando, não faz mais que encher um não! para que retumbe.

Vede duas obras compactas sobre uma tese controvertida, um autor é materialista, é espiritualista o outro — que há nas mil e tantas páginas atochadas dos pretenciosos volumes? Sim em um, no outro não.

Trava-se uma guerra, ferem-se batalhas, sucumbem milhares de homens, arrasam-se cidades, sossobram navios... se quiserdes saber porque assim se hostilizam as duas nações perguntai a um filósofo lacônico e ele vos dirá — “Queria uma o sim, a outra respondeu que não e do sim e do não veio a guerra que as maltrata”.

Simplificada a vida em duas palavras sóbrias, para que há de o homem gastar tanto tempo com tão oca facúndia? — palavras são folhas que caem, só o tronco subsiste — ou é verde e é sim, ou é seco e é não.

Licurgo exercitava os jovens espartanos, não em discursos vazios, mas na precisão eloquente e, essa raça de austeros silenciosos, que brandiam na guerra uma espada curta, dizendo como Agis “que era de tamanho suficiente para alcançar o inimigo”, também nas suas respostas só empregavam as palavras estritamente necessárias: a prolixidade é um vício da decadência. Assim o homem que se tornou ateu para não perder tempo em orações, que inventou a escrita para descansar a memória, que inventou a máquina para poupar o músculo, que inventou a pólvora para aliviar-se do peso das armaduras, que negou o “ideal” para não sair do real, onde tine a moeda, que é o encanto da vida, esse adorador fanático dá inércia, que vive a poupar o esforço, não descansa e, falando ou escrevendo, trabalha mais do que todos os patriarcas do velho tempo e, ainda, não contente com o que a boca infatigável jorra durante as horas do dia em discursos, em controvérsias, em palestras, em maledicência, em conchavos, em declarações, ainda pôs o fonógrafo a palrar, conservando, como embalsamadas, as próprias vozes dos mortos.

E a razão que alegam os avaros da hora em defesa desse instrumento é a falta de tempo: não sobra tempo para leituras, que os minutos são poucos para negócio e chalreio e assim, enquanto o homem estiver ao balcão vendendo ou a almoçar à pressa ou a espairecer na varanda, um fonógrafo lhe irá servindo, como em conserva, as notícias do dia, berrando os telegramas da última hora, os discursos do parlamento, as vendas da bolsa; outro lhe exporá as últimas novidades cientificas, outro dissertará sobre a nova filosofia, o último, rangendo, irá vagarosamente narrando as peripécias do romance em voga. E é isto a civilização: o culto da palavra. Ah! Os homens sóbrios do bom tempo! os patriarcas das primeiras eras!

Mas, ó plumitivo incoerente e ingrato, que seria de ti se não fosse a palavra! Que vens tu fazendo por essas páginas fora senão desmentindo o teu sermão? ... Dá conta do teu recado com um sim ou com um não.

Se não fosse a palavra, ingrato, onde irias tu buscar assunto para tanto? — no Instituto dos mudos, talvez, que foram, sem dúvida, os autores desse falso adagio que diz que “o silêncio é de ouro...” De ouro, pois sim, mas estou certo de que eles o trocariam, de bom gosto, pelo cobre mais azinhavrado do calão mais reles.

Louva a palavra, plumitivo, louva a palavra sonora. Para glória da palavra, basta este vocábulo: “Amo! ...” cantando docemente na boca de uma mulher. Louva a palavra e pede aos homens que a louvem e, quanto à vida dos patriarcas, deixa lá, sempre se viaja com mais facilidade e comodidade em um wagon de primeira do que no melhor carro de bois do tempo de Jacob.

Isso de lamentar o velho tempo... words, words, words.

E vês, ingrato? ainda para remate do teu trabalho veio em teu auxílio a palavra.

UM MODELO DE MARIDO

Mieulx est de ris (RABELAIS).

Lembro-me sempre dela, e dela guardam uma doce lembrança, doce e apimentada, por vezes, todos quantos a conheceram e saborearam, nos famosos e prolongados jantares do Andarahy, aos sábados, os excelentes pitéus cujos segredos lá foram para a Eternidade com a alma virtuosa que abandonou, por uma indigestão de pepinos, o corpo anafado da que se chamava cerimoniosamente D. Bertoleza Couceiro e na intimidade Totó, sem mais nada.

A excelente senhora, que Deus tenha! expirou nos braços do inconsolável marido, numa noite triste de Agosto e as suas últimas palavras foram ainda de bondade recomendando um peru que engordava para ser servido no próximo jantar, tão tristemente adiado por motivo tão triste.

Com a morte da admirável matrona cessaram os jantares e, aos sábados, os antigos comensais do Andarahy, espalhados pelos hotéis, trincando bifes córneos, lamentam, com sentimento, aquele desastre que os privou da delícia hebdomadária dos mais louros e cheirosos vatapás que jamais alastraram terrinas, dos peixes fritos mais deliciosos que jamais rechinaram em sartans, sobre azeite de gergelim, das almôndegas, dos caranguejos em cascos, das sopas de ostras, das tortas fofas de camarões ou de mariscos das...

Como eu invejo os santos...! Se lá no assento etéreo há uma cozinha muitos dos bem-aventurados já terão sofrido as dolorosas consequências da gula porque nenhum, mesmo aqueles sóbrios ascetas que se contentavam com um gafanhoto ou com uma seca raiz, resistirá aos acepipes em que era inimitável a boa D. Totó, mestra em temperos.

De todos o que mais sentiu a sua morte foi o Couceiro — ainda hoje o pobre homem, sempre que se senta à mesa, com o guardanapo tarjado entre as dobras do pescoço gordo, suspira com tanta angústia que as folhas tenras da alface voam dos pratos como sopradas por um rijo vento de outono e, aos sábados, há lágrimas dignas. Quantos cozinheiros, de um e de outro sexo, tem passado por aquela cozinha tão celebrada no antigo tempo! Quantos! Mas os segredos, esses não tornam.

Couceiro lembrou-se do tomar um médium para a cozinha e, todas as noites, com muita gravidade, entre panelas e frigideiras, invocava o espírito da esposa para que se comunicasse com o médium ditando receitas. Cheguei a acreditar que o viúvo fizera alguma porque o espírito arranjou uma tal salada de ovos duros, mariscos, beterraba e especiarias que o bom homem quase rebentou e emagreceu a caldo chilro durante uma semana de cama, drogas e dieta. Contando-me ele o caso eu observei:

— Couceiro amigo, os espíritos são ubíquos e vêm tudo, não pôde haver segredos para os imateriais. Tu és homem e frágil Couceiro amigo, e nunca houve no mundo, especialmente nesta pátria que um sol perverso abrasa, tantas seduções como agora. Tu viste algum palmo de rosto e ...

Couceiro levantou-se e roncou espalmando a mão gorda no peito generoso:

— Juro-te que sou puro como uma vestal! Vivo para a finada — sou tão fiel àquele túmulo que... nem sei mesmo... Queres que te diga? ... E o meu nédio amigo e anfitrião nos saudosos tempos esbugalhou os olhos radiados de sangue e, depois de uma pausa sisuda, disse: eu sou o modelo dos maridos. Notei que os seus olhos saltados se iam marejando e quis fugir ao assunto melindroso e comovente; ele, porém, insistiu.

— Não, agora hás de ouvir-me; quero provar a um amigo, como tu, que sei cumprir os deveres que a viuvez impõe. Eu sou um Achiles, Anselmo! Berrou; invulnerável como Achiles, em se tratando de amor...

— Mas... hás de ter o teu calcanhar, Couceiro; todos temos...

— Sim, tenho calcanhar... Mas, que diabo vou eu fazer com o calcanhar? Digo-te e juro pelas minhas barbas que sou uma vestal: não há dois Couceiros no mundo; não há! A alma da minha mulher, daquela grande amiga, que era também tua e dos outros, dos ingratos que me abandonaram, vive nesta casa e governa-a, eu sinto-a ... mas, o que tu não sabes é que os ossos de Bertoleza me acompanham, eles que são tudo quanto resta do seu corpo que a terra comeu com uma voracidade incrível. Ah! que Bertoleza devia ser saborosa, tanto lidou com temperos que ficou, sem dúvida, saturada e a terra — como nós, que também somos terra — aprecia o que é bom.

Quando fui ao cemitério para a exumação ia certo de encontrar ainda um resto de carne, daquela carne tão tenra e tão branca; pois, meu amigo, só vi ossos limpos, mais chupados do que os ossinhos das galinhas de molho pardo que ela fazia e que eram uma verdadeira delícia. Ossos e cabelos, nada mais. Tomei o esqueleto adorado e apertei-o de encontro ao peito... Ah! Quem a viu e quem a visse! Nem parecia a minha, a nossa Bertoleza, que era uma senhora de peso e medida. Depois de apertar aqueles queridos ossos encerrei-os em uma urna e trouxe-os para a minha companhia. Todas as manhãs lá ia eu à sala e, curvando-me, beijava a urna, dizendo: “Bom dia, Bertoleza”. Antes de deitar-me ia desejar-lhe uma boa noite. Assim vivemos alguns meses, eu e os ossos.

Um dia, porém, tive uma ideia, uma ideia que só podia nascer no espírito de um marido fiel como eu me prezo de o ser. Encaixotei os ossos e despachei-os para Londres com uma carta a Harrison & Brothers. Meses depois recebi o resultado da minha encomenda e vais vê-lo. Couceiro, então, tomando a lapela do seu casaco, disse-me: estás vendo estes botões?

— Sim, Couceiro; estou vendo.

— São de ossos humanos, ossos de Bertoleza. Os botões do colete, os das calças, os das ceroulas, os da camisa, os do sobretudo, são da mesma matéria. Os cabos das facas e dos garfos com que como, o cabo do meu guarda-chuva, o castão da minha bengala, a piteira em que fumo, o cinzeiro, o tinteiro, as minhas canetas, o meu porta-cartões, o cabide em que penduro a minha roupa, as peças do meu xadrez, tudo, tudo foi feito em Londres, por Harrison & Brothers, com os ossos da minha sempre chorada mulher. Olha estes suspensórios? foram tecidos com os seus cabelos e os seus dentes estão todos aqui, menos os postiços; e Couceiro, abrindo a camisa, mostrou-me sobre o velho hirsuto e negro do peito, como uns ovinhos de lagartixa bem aninhados, quatro molares presos a um fio de ouro.

Eu pasmado, não dizia palavra: olhava e admirava. Que outro homem seria capaz de proceder assim, dize, tu que conheces os homens? Garanto-te que se mais não fiz foi porque os ossos para mais não deram: o meu desejo era que eles me fizessem a casa e os móveis e, se eu tivesse obtido a pele macia e alva de Bertoleza, mandaria fazer camisas e ceroulas mas, que queres? Os ossos eram poucos e a pele foi devorada pelos bichos. É assim que vivo — sou uma urna. Esta é a memória do corpo, da alma como me hei de esquecer?

Logo de manhã, quando me trazem o chocolate ou o mingau, suspiro por ela e sempre que faço alguma refeição lembro-me daquele espírito gentil... aos sábados, então, choro copiosamente. É possível que a alma ciumenta se tenha querido vingar algumas vezes, mas só com ciúme das cozinheiras. Lembro-me que um dia, no tempo daquela cabocla Sebastiana, gabei, com entusiasmo, um peixe de forno dizendo — “que parecia preparado pela minha defunta mulher”. Pois palavras não eram ditas e já eu engasgava, com uma espinha atravessada na goela. Fiz tudo: virei o prato, engoli farinha, invoquei S. Braz, tossi, nada; foi preciso chamar um cirurgião. Outra vez foi com um polme de ervilhas, em verdade maravilhoso! — louvei-o e fui para a cama com uma congestão de fígado da qual não sei como escapei. Bertoleza não tem ciúme da Mulher — eu posso admirar a beleza, o que ela não permite é que eu elogie as cozinheiras. Eis o caso.

Para não ceder às tentações ando com os ossos, sirvo-me deles para tudo: — é çom os meus botões que converso e os botões, como sabes, são ela e, sempre que se vai gerando em meu espírito alguma ideia menos digna assim como os eremitas, sentindo o demônio, levantavam a cruz, eu esfrego os botões e logo se dissipa o sortilégio e assim vivo puro e só, sem pensar no pecado que nos estraga o corpo e nos põe a alma à boca do inferno. Outros maridos, menos escrupulosos, contentam-se com o ligeiro luto de um ano e com algumas missas mandadas dizer, mais para a sociedade, do que pela alma das suas defuntas — o meu luto aqui está nos ossos: trago-os no corpo e uso-os em tudo e as missas digo-as eu mesmo, à mesa, duas às vezes, três por dia, sempre que como.

A mesa é um altar, já alguém disse — pois é diante desse altar e com as lágrimas dos meus olhos que eu rezo pedindo a Deus que trate a alma da finada com todo o carinho da sua misericórdia. E agora, sê franco e dize se há no mundo outro homem como eu, fiel à esposa apesar de ser ainda um bom partido e bem disputado? ... Há aí uma viúva que me faz ardentes propostas com os olhos, ainda luminosos, sempre que me encontra. Estive para corresponder mas lembrei-me do finado e disse aos meus botões: “nada, ele é capaz de fazer-me alguma lá pelo outro mundo, para vingar-se de eu lhe haver tomado a mulher...” e recuei. Depois, francamente, eu nunca gostei de objetos comprados em segunda mão — trazem sempre alguma coisa dos primitivos donos. Uma vez, ainda era viva Bertoleza, comprei uma cama em um leilão de antiguidades; pois, meu caro, fizemos tudo para pô-la em estado de servir, não houve meio — à noite, mal nos deitávamos, sentíamos umas cócegas, depois umas dentadas e teríamos sido devorados em vida se eu não me resignasse a passar adiante, com prejuízo, o tal móvel precioso. Com a viúva podia acontecer o mesmo. Não, já agora levo a minha cruz ao Calvário.

— Mas... há partidos novos, Couceiro e excelentes. Tu és um homem conhecido, rico, ainda forte...

— Quarenta e oito feitos...

— Então?

— Não quero... lembro-me sempre do meu avô...

— Que houve com o teu avô?

— Eu tive duas avós, uma direita em tudo, outra torta, também em tudo. Meu avô, já era avô três vezes, meu e dos meus irmãos, quando, perdendo minha avó, casou com a outra que podia ser sua neta e o resultado foi aparecer um tio que escandalizou a família.

— Por quê? ...

— Ora... porque apareceu durante a ausência do meu avô. Parece que a senhora minha avó quis fazer uma surpresa ao velho. E fez...

— E ele?

— Ele... Ele era um idiota (salvo seja) e reconheceu a criança, até achou nela os traços da família. No ano seguinte veio uma tia... e ainda depois da morte de meu avô, um ano depois, nasceu-lhe um filho, o caçula. Não, eu fico com os meus botões e com os outros ossos e, como, tendo a mesa farta e bem temperada, sou um homem feliz, contento-me com as cozinheiras.

EMANUEL

Foi em Belém, no Pará, em julho de 1899 que o vi pela última vez em companhia da formosíssima Nella Montagna, uma mulher alta e branca, de neve, em cuja alvura realçava, em contraste, o negror dos olhos e dos cabelos. Não era uma grande artista, sentia-se bem a sua fraqueza ao lado do possante interprete de Shakespeare, era uma divina carne, uma flor de volúpia, um estimulante lúbrico dos sentidos. O seu porte airoso e, ao mesmo tempo, flexível, dava-lhe o aspecto delicado de um grande lírio quando ela aparecia, como no Hamlet, toda branca, na sua cândida túnica, os olhos parados, desfolhando malmequeres e caminhando, como uma sonâmbula, para a morte nas águas.

Emanuel adorava-a com a fúria ciumenta de um italiano que sabe amar e admirar. Era preciso vê-lo no Otelo, na cena da câmara: avançava como um abutre para o ninho da pomba e como que todas as suas desconfianças sopitadas explodiam naquele momento misturadas com o seu amor ardente e sensual. Como ele admirava a filha de Brabantio, como sentia a mulher cuja beleza ia fanar-se na morte e o arrojo com que arremetia era bem o de um impulsivo, o de um homem que sabia, ao certo, que se não executasse, de pronto, a sua resolução, fraquearia diante da formosura vencedora.

E era bem isto, o grande trágico: um amoroso e um impulsivo. Na tragédia, quem examinasse detidamente a personalidade do ator, acharia estas duas qualidades — a veemência no amar e a violência na vingança. No Rei Lear, por exemplo, que era o seu melhor trabalho, no qual, até hoje, ninguém o excedeu, quando não era um violento, um homem da rebentina, era um domador da fúria. Na cena da divisão do reino o velho mal se continha no trono, atendendo à direita, à esquerda, irrequieto, agitado, alegrando-se ruidosamente com as respostas de Goneril e de Regana e insurgindo-se, aos berros, com a ingênua simplicidade eloquente de Cordelia. A sua saída era como uma rajada de borrasca — a corte seguia-o num torvelinho como se ele a fosse arrastando impetuosamente: era bem o homem que encarnava o personagem, a “alma” do poeta adaptava-se perfeitamente ao indivíduo que a carregava.

Nas cenas subsequentes desse doloroso poema que Florence O’Brien denominou, com tanta propriedade: uma noite de tempestade (a stormy night) era sempre o impulsivo que aparecia até o final em que irrompia o grande amoroso que se abrandava sentindo a presença daquela filha tão ingratamente repelida do seu coração e que, quando a encontrava assassinada, feroz na sublimidade do sentimento, como o leão que arrasta para a floresta a companheira morta, vinha trazendo o cadáver aos arrancos, que já lhe negavam auxílio os braços débeis, aos gritos surdos que eram verdadeiros uivos e, repousando a filha, hirta e fria, ajoelhava-se perto, numa agitação de agonia, chamando-a, apalpando-a, querendo ver-lhe os olhos vítreos, sem poder compreender aquela catástrofe, até que, desesperado, desenganado, não podendo suportar a dor ia, aos poucos, pendendo e caía morto sobre o corpo amado.

Emanuel era sublime em todas as cenas dessa estupenda agonia porque ela lhe dava ensejo de mostrar as duas forças da sua alma elástica — a força de arremesso e a força de retração — a violência e o amor. Ninguém definiu melhor esse tipo do velho rei bretão do que Victor Hugo — ele não o esculpiu num bloco, talhou-o numa pedreira virgem. Depois de haver descrito Cordelia diz o poeta gigante na sua linguagem gigantesca:

“Et quele figure que le père! quelle cariatide! C’est l’home courbé. Il ne fait que changer de fardeaux, toujours plus lourds. Plus le vieillard faiblit, plus le poids augmente. Il vit sous la surcharge. Il porte d’abord l’empire, puis l'ingratitude, puis l’isolement, puis le désespoir, puis la faim et la soif, puis la folie, puis toute la nature. Les nuées viennent sur sa tête, les forêts l’accablent d’ombre, l’ouragan s’abat sur sa nuque, l’orage plombe son manteau, la pluie pèse sur ses épaules, il marche plié et hagard, comme s’il avait les deux genoux de la nuit sur son dos...”

Ninguém encarnou melhor esse tipo sempre colossal e bárbaro, do que Emanuel, dando-nos perfeita essa espécie monstruosa da paleontologia do sofrimento e do amor.

Foi nessa tragédia que eu o vi em toda a sua grandeza, foi nela que o senti e que o admirei com mais entusiasmo e mais lágrimas, e mais tarde em um banquete oferecido a Rodolpho Bernardelli, no salão do teatro S. Pedro, conversando com o grande trágico que, então, se me revelou um erudito, compreendi que ele não só representava aquelas cenas como as sofria todas porque não as comentou como grandezas literárias, discorreu sobre elas sentindo, com acabrunhamentos e ânsias como se fosse contando, em dolorosa confidência, os martírios da sua própria vida, os transes agudos da sua atormentada existência e não esqueço o ar resignado com que ele lançou toda a culpa sobre o desventurado: “eh! Um imprudente!...” E, encolhendo os ombros, ficou de olhos no chão, esmagando nervosamente entre os dedos pequeninas migas que encontrava na toalha.

Vi outros artistas interpretando esse tremendo papel, nenhum, porém, conseguiu dar-me a verdadeira impressão da realidade, da vida que eu obtinha de Emanuel e mais do que ao seu talento atribuo à sua constituição moral aquela maravilhosa “realização” da epopeia sinistra do poeta máximo.

Emanuel era admirável no Otelo, era revoltante no Shylock, era amoroso no Romeu mas, em todos esses papéis sentia-se o ator — no Rei Lear via-se a criação, era a própria figura ancestral daquele, que, conforme rezam as crônicas, “no ano do mundo 3105, sendo Joás rei de Jerusalém, subiu ao trono da Bretanha, sucedendo a Baldud, príncipe de grande poder e de muita sabedoria e bondade. Léir chamava-se e, governando o seu povo com muita cordura, criou para o seu reino uma época de prosperidades deixando, entre outros benefícios, a cidade forte de Caeirler, fundada pelo seu braço”.

No teatro moderno Emanuel sentia-se acanhado, oprimido — a sua voz, que dialogava, no escampo, com o trovão, soava estrondosamente nos salões, o seu próprio corpo como que se não sentia ajeitado no trajo contemporâneo — os seus gestos eram largos, os seus movimentos ríspidos. Imaginai um daqueles esforçados guerreiros que, como Oliveiro ou Guido, saíam a pelejar cobertos de aço e manejando armas que dois dos nossos coevos nem sequer alçariam, despindo o aceiro pesado e vergando a casaca cerimoniosa — toda a altivez desapareceria e, em vez de airoso e galhardo, o homem atorreado aparecer-nos-ia ridículo, atirando as pernas leves, abanando com os braços, desequilibrado e tímido, a servir de chacota a quantos o vissem. Não era ridículo o ator porque supria com o talento a falta de disposição, mas o artifício saltava aos olhos, o esforço era por demais visível e o vexame tornava-o quase humilde e lá ia ele procurando um plano inferior como envergonhado de mostrar-se com costumes que não eram seus.

Conhecendo profundamente os antigos, falava dos gregos com verdadeiro entusiasmo e uma vez, no seu camarim, conversando-se sobre Sófocles, Emanuel levantou-se e, descrevendo o tipo de Édipo, esse grande avô de Lear, a traçar largamente as cenas, pôs-se a murmurar o grande monólogo do desventurado... Ao fim, com um movimento descorçoado, juntou as mãos e, de olhos no céu, suspirou: “não é possível... Não é possível...” Representava-se nessa noite O Grande Industrial do incomparável senhor Ohnet e o contrarregra veio preveni-lo. Emanuel deu de ombros e, lentamente, como se fosse a um sacrifício, lá caminhou vergado para a cena.

Era um antigo, educado à antiga — o seu mesmo porte, altaneiro e robusto, inculcava-o um homem de rija tempera, um homem da idade forte. Novelli é incontestavelmente mais correto, falta-lhe, porém, a folgue de Emanuel, aquele ímpeto indomável que o arrojava na ação transformando-o de simples intérprete em personagem viva.

Nos últimos tempos a vida do grande ator ia caindo nas peripécias do Romance Cômico, de Scarron. Em Manáos, disseram-me, ele viveu enclausurado em uma casinha modesta onde escondia, com ciúme, o seu tesouro de amor. Aos que o iam visitar ele aparecia como Shylock: primeiro entreabrindo desconfiadamente a janela, depois franqueando a porta e acolhendo, a contragosto, na sua sala onde tudo era desordem. A mulher raramente aparecia e ele falava, sorria, lançando, de espaço a espaço, um rápido olhar à porta como para fiscalizar a prisioneira.

Era um sensual, dirão; não sei — sempre o conheci assim, acompanhado por uma mulher formosa que mais se impunha pela cor da pele, pelo brilho dos olhos, pela massa sombria dos cabelos, pelas linhas ondulantes do corpo do que pelo talento. A primeira — Virgínia Reiter, abandonou-o, segundo a versão que correu, por não poder suportar a sua cólera ciumenta; houve outra, que também o repeliu — a última foi a alvíssima Nela Montagna e essa, se os de Manáos não exageravam quando descreviam a sua vida atribulada, esteve, algumas vezes, ameaçada de representar ao vivo a cena cruel da câmara de Desdemona. Não sei se o acompanhou até à última hora ou se, como as outras, para não acabar às mãos do terrível ciumento, deixou no seu lugar uma grande saudade.

Lembro-me de a ter visto, uma vez, no Pará. Emanuel magoara um pé e sofria; fui visitá-lo. Uma criada recebeu-me introduzindo-me em uma sala que estava muito longe de ser um primor de gosto. Ali fiquei relendo velhos jornais que se achavam sobre uma mesa onde era tanta a poeira que se poderia nela semear. Por fim ouvi passos lentos, arrastados e Emanuel apareceu-me em robe de chambre, a barba crescida, os cabelos arrepelados, coxeando, amparando-se ao ombro da formosa mulher, mais branca do que nunca. Não sei porque, lembrei-me do cego Édipo seguindo vagarosamente, sofredoramente levado por Antígone.

Ali estive algum tempo a ouvir o grande artista que então andava com um desejo forte de representar Macbeth. “Se voltar ao Brasil comprometo-me a trazê-la”, disse-me referindo-se à tragédia macabra e amoroso, festejando o rosto alvo e macio da companheira, ameigou-a: e tu farás a Lady... Tem as mãos lindas, não acha? E, com a pequenina mão marmórea pousada na sua mão de atleta, esperava a minha opinião. Eu afirmei: — que, em verdade, era maravilhosa e ousei levantar os olhos para os olhos negros... Creio que Emanuel rugiu... felizmente ele não podia correr e foi justamente por isso que a tanto me atrevi.

Não pôde o artista realizar a promessa magnífica confirmada no dia em que dele me despedi para subir as grandes águas, em direção ao Amazonas, depois de o ter ouvido, ainda uma vez, a última, não em cena mas no salão de um club onde ele disse, como sabia dizer, o canto V do Inferno, de Dante.

Descansa, grande espírito, repousa nessa região misteriosa de onde viajor algum logrou jamais voltar e se lá, como conjecturou, em hora de saudade, o grande épico, se consente memória desta vida, certo estarás repassando o monólogo sinistro do príncipe sombrio e vendo o que nele existe de verdade: “Morrer... dormir... dormir! sonhar talvez! ...”.

E com que sonharás tu, alma que foste o espelho de outras almas? Com que sonharás tu? Com a tua Arte? Com a Pátria azul? Com as terras que percorreste? Com todos os povos que viste? ... Ah! Não, sonharás com elas: com Ofélia, com Desdemona, com Portia, com a suave Cordelia, não as abstrações do poeta, mas as lindas mulheres que as fizeram viver a teu lado quando conspiravas contra a infâmia rebuçado na velha capa de Hamlet, quando rugias sob a couraça do mouro, quando exigias a dívida de carne, sentado a um canto do tribunal, afiando voluptuosamente a faca na sola do velho papuz, quando, coroado de urzes, com um junco por sceptro e um bobo por companhia, afrontavas a tormenta no descampado.

Sonharás com elas e, se sonhares, pobre espírito amoroso, mísero espírito ciumento, como te há de ser dolorosa a bem-aventurança com as reminiscências desses amores.

LUAR

A tarde ia muito fresca, muito doce, toda azul, sem névoas. Já o sol mergulhara por trás dos cerros que resplandeciam como zimbórios e cúspides de uma rica cidade de lenda, toda de ouro puro, sob velários tendidos de púrpuras atálicas e os últimos raios solares abriam-se em leque flamejante sobre as lombadas acesas.

As árvores, de um desenho forte, em nítidos relevos, realçando todos os detalhes, pareciam cravadas na lâmina esbraseada do ocaso, como bordadas a retrós negro sobre uma tela de seda chamarreada. Um silêncio de êxtase ia adormecendo o campo raso e extenso que se esbatia em linhas indecisas, nas quais, a espaços, ressaltava, em tom mais claro, o sapé de uma choça com o terreiro aberto em meio do pomar, como um resto de luz na penumbra serena do crepúsculo.

A estrada direita, alvacenta, desaparecia no bambual que vergava em movimentos demorados, aflitivos, de ânsia e por ela tardo, tristonho, a cabeça baixa, as mãos juntas de encontro ao peito, vinha vindo um negro.

À varanda, reverdecida de ipomeias, chegava, na aragem, o cheiro doce das açucenas que abriam; os grilos começavam o seu canto nas ervas: era a hora das juritis; quem fosse ao açude havia de vê-las à beira da água, trêfegas, esvoaçando assustadiças com turturinos doridos.

Empalidecia; os cerros tornavam-se escuros, perdiam a cor dourada e uma névoa fina, rala, subia da terra, envolvendo-os. Longe, num canto do pasto onde frondejavam paineiras altas, o gado mugia deitado ou esfregando-se voluptuosamente pelos troncos; borboletas noturnas vinham vindo da mata pesadamente, num voo incerto, as azas bambas, atordoadas, como se houvessem acordado — nuvens de mosquitos esfarinhavam-se no ar. O céu tomava-se violete, num esmaecido e lustroso tom de porcelana antiga; estrelas piscavam, aqui, ali, dispersas.

Em casa, como se o poderoso misticismo da hora contivesse as almas, todos guardavam silêncio, as mesmas crianças, reunidas a um canto da sala, brincavam baixinho, cochichando e o velho Estevão, com a. sua apiançada dispneia de asmático, estirado na cadeira, os braços abandonados, de olhos entrecerrados, deixava-se afagar com volúpia pelo ar puro e fresco que entrava, às bafagens, como em hálitos regulares.

Naquele silêncio religioso um som triste permanecia insistente como um zumbido lúgubre que impressionava — vinha do lado da estrada, mas os meus olhos estavam retidos na contemplação da mata que negrejava alta, dominando a colina, com as suas grandes árvores cerradas e imóveis.

A lua nascia cedo e era de lá que ela devia surgir como um grande pássaro que ali tivesse o seu ninho macio e saísse, pela hora da noite, remontando silenciosamente aos ares, todo branco na escuridão ferrugínea. Morcegos esvoaçavam aos trissos ríspidos, passavam de esfuzio, confundindo-se com as últimas andorinhas.

O velho Estevão queixou-se do frio, pediu que fechassem a porta e logo pôs-se a tossir. Deixei-me estar; olhava a mata soberba que era um empastamento negro no fundo esmaecido do céu vesperal mas o som triste atraiu-me — voltei-me para o lado da estrada que amarelecia entre as duas bandas do campo e olhava quando ouvi a voz ansiada do Estevão: “aí vem o poeta!”.

Na colina acendiam-se as casas dos colonos, cabras berravam. O céu, sobre a mata, esclarecia, ficava de uma cor melancólica e no pasto, longe, cintilavam vagalumes como se homens andassem por ali fumando, aparecendo, desaparecendo, escondidos pelas moitas negras.

O som vinha vindo, cada vez mais soturno. Um raio de luz amarela estendeu-se na varanda e uma voz saudou: “Boa noite!”; outras vozes responderam e houve um alarido alegre de crianças. A natureza, passada a transição do crepúsculo, parecia acordar, transformada para uma nova vida, mais calma. A Luz andrógina voltava para a terra o seu flanco feminino — era a hora criadora. A hora maternal da lua, hora silente e de amor, hora de iniciação. O meu espírito perdeu-se em sonhos, reminiscências de leituras afluíram-me à memória — éras velhas da Humanidade, mistérios do culto astral, cenas do rito pagão, tão cheio de encantos.

Ergui os olhos — a mata começava a branquear como se um véu fino viesse caindo de leve sobre as frondes, flutuando, tênue e solto, entre os galhos; reapareciam, mais negros, os contornos do arvoredo, destacavam-se os altos e sobranceiros jequitibás e, de olhos fitos, hipnotizado pela magia daquela solenidade extática, eu olhava: a luz infiltrava o seu esplendor na densidão florestal, apareciam clarões alvíssimos; lembrei-me, então, dos mistas de Orpheu, todos de cândidas túnicas, com harpas soantes, as cabeças coroadas de hera, caminhando maciamente entre os fortes carvalhos da Thessalia divina, graves, silenciosos, seguindo os passos do grande iniciado deifico para o vale feliz e aromal do Tempé.

A sugestão poderosa da reminiscência trouxe a ilusão completa — era o paganismo poético que eu revivia naquele suave minuto rápido de sonho. Diana evocava em minha alma o seu culto, a Lua, antiga e fiel companheira das peregrinações e dos amores humanos, a Lua dos Trácios selvagens, a tríplice Hecate sanguinolenta empolgava-me como se o seu poderoso filtro se fosse espalhando pelo sangue das minhas veias fazendo-me passar como a natureza, numa transição suavíssima, da grande Luz das ideias novas para o frio palor dos ideais primitivos.

Eu ali estava com o mesmo enlevado respeito e o mesmo encantamento com que na rocha escura e escalvada da agreste Samaria o pastor emorita do tempo de Yoakanan e de Jesus, vendo o primeiro clarão do astro noturno, ficava de pé, com o queixo na volta do cajado nodoso, entre as cabras do seu rebanho e, ao ascender da lua no céu livre e pálido, bradava atroadoramente, como por uma buzina: “Eschmún! Eschmún!” Acenando com a grossa e pesada lã de ovelha que lhe servia de agasalho na caverna fragosa. Astarté dos fenícios, branca, celestial amiga dos navegadores...

Eu estava assim enlevado quando o som soturno subiu de perto; um vulto caminhava rente com a varanda: era Terêncio, velho africano que ali estava tocando o seu urucungo; às vezes sapateava resmungando e lá ia de olhos altos no céu... Era o “mina”, o homem da selva negra, que festejava ritualmente o astro contemplativo; era o bárbaro que celebrava, à sua maneira, o culto da natureza luminosa como, talvez, ainda celebrem nos matos bravos ou no terreiro das aringas os seus irmãos africanos. Calou-se de repente e houve um silêncio maior e, sobre as árvores, a lua imensa surgiu, alastrando a campina vasta de claridade. De repente, Christina, abrindo a porta, saiu à varanda entre as crianças que saltavam e riam e, levantando nos braços o pequenino Carlos que ria gostosamente derreando-se, mostrou-o à grande lua serena.

— Olha lá em cima, meu filho! Olha... E, sacudindo-o, pôs-se a cantarolar:

Lua, luar

Tomai este menino

E ajudai-me a criar...

As crianças, aos saltos, com as camisolinhas tufadas, repetiram:

Lua, luar...

Por fim, Christina, num frenesi amoroso, apertou o filhinho nos braços e beijando-o com voracidade, sacudindo-o, agarrado ao colo, lá foi com ele, a correr. As crianças ficaram brincando e o velho negro, sentado no último degrau da escada, voltou ao seu uruncungo e ao seu canto e eu deixei-me estar olhando, olhando e, como eu, no terreiro, uma mulher, de branco, olhava o céu e a lua — alguma colona talvez... que pediria ela?

Quando deixarão de atravessar as almas entristecidas esses queridos espectros das primeiras crenças!

ARTE

Acompanhai um grupo de homens a uma galeria de pintura, entrai com ele, tanto que chegardes ao salão logo o vereis dispersar-se buscando cada qual, não a pura emoção estética, mas a representação de uma “realidade” conhecida. Não é o instinto do Belo que os conduz, é o instinto da Crítica.

Um, que foi militar mas que nunca desembainhou a espada, senão em vésperas de revistas para esfregar a lâmina com uma camurça, detêm-se, muito grave, de olhos apertados, em frente de uma “batalha”, comentando, com a ciência de um estratégico, a posição do exército, as atitudes das figuras; explicando os diversos apetrechos bélicos, analisando a expressão de cada um dos combatentes.

Outro, que viajou comodamente em um paquete do Lloyd Bremen, estaca diante de uma “marinha”, a comparar o navio que veleja a todo o pano por um vasto e roleiro mar cortando o quadro em diagonal como para mostrar o flanco no qual a onda se acapela com o outro em que fez a travessia e recorda, calado, aqueles dias, aquelas noites de viagem, vendo na tela uma referência ao passado feita com o propósito de despertar reminiscências boas.

Outro, com as mãos nos joelhos, fica acocorado a olhar uma natureza morta: perdizes e lebres. O homem é caçador e busca nos animais o tiro apenas. Mais adiante certo cavalheiro, de ar sisudo e óculos de grossas lentes, o sobrecenho carregado, fita umas lindas árvores — está a classificá-las, descobre-lhes as famílias, quase que lhes fala, porque, enfim, na sua qualidade de botânico, é quase um íntimo.

Mais longe, um saloio rebarbativo coça o queixo e, risonho, confessa que — “repolhos daquele tamanho ele nunca os teve na sua horta” e toda a sala murmura aprovando, criticando. Só, diante de uma paisagem mística — um trecho de campo à hora crepuscular sobre um fundo violete de colinas nubladas — um rapaz, por vezes eleva os olhos como em êxtase, torna depois com eles à paisagem, eleva-os de novo, um instante, gozando introspectivamente a visão ou tirando da natureza exterior, material, a mesma essência subjetiva, o que há de sugestivo, de divinamente poético em toda a realidade. Esse é o único que goza os mais olham, comparam as simples representações de fatos, de coisas e de aspectos.

A verdadeira Arte é desinteressada como o verdadeiro amor e procura na natureza não o que ela tem de útil mas o que ela tem de Belo — daí essa constante tentativa dos artistas para alcançarem o que se convencionou chamar o Ideal, que é para a Arte o que Maya é para a mitologia hindu — a suave, a eterna ilusão.

A poesia, que é, afinal, a alma de toda a Arte — melodia na música, emoção na pintura, expressão na escultura, simbolismo na arquitetura, graça na dança, é uma idiossincrasia e, por isso mesmo, variável. Há uma só poesia mas os meios de representação multiplicam-se — não há aspectos, há impressões.

A poesia de Hesíodo difere essencialmente da poesia de Barbier, como a do Dante diverge da de Lamartine, todavia ninguém ousará negar ao autor dos Imbos e ao poeta sentimental da Queda de um anjo o sentimento lírico que é a fonte da verdadeira Poesia.

Se compararmos uma tela de Fra Angélico com uma fantasia de Callot acharemos em ambas a mesma essência poética, a interpretação é feita, porém, de acordo com a personalidade de cada um. O motivo dórico de um coro antigo e a Adelaide de Beethoven, uma canção de galiongis, do Bosphoro e o Adeus ao cisne, do Lohengrin, são variações diferentes dos mesmos sons — a escala é uma só.

O que varia substancialmente é a forma, a essência é imutável; para senti-la, porém, é necessário não ficar superficialmente na representação mas descer à intenção: ver não é olhar, é compreender: é sentir com os olhos.

O artista fiel não deve imaginar a natureza, deve senti-la. Ruskin, o grande revolucionário da Arte inglesa, pensava assim: “para que mentir, se a realidade é admirável?” Na estética ruskiniana tudo é Belo — o “Belo é a assinatura de Deus nas suas obras”.

A beleza é caprichosa: para transformar toda uma paisagem basta um raio de sol e o mesmo trecho de bosque, visto em horas diferentes pode, na tela, com a poesia própria dos momentos — porque cada hora tem a sua expressão — dar impressões diversas, interpretado por artistas de gênio. A cor é sempre um reflexo da luz e não a realidade da visão, a palheta é um relógio e os pincéis variam como os ponteiros seguindo o esplendor ou as sombras.

A luz de um quadro é sempre motivo de controvérsia. Os que não sabem ver revoltam-se indignados contra certas ousadias — um fundo de serras cor de rosa, uma água arroxeada, certo tom violeta recorrendo pelo tronco rugoso de uma velha árvore, uma nuvem coruscando no ocaso como uma língua de fogo, a névoa azul deixando ver em transparência suave, a natureza que adormece; perfis de choças, rochedos esbatidos, bosques que se confundem em uma única mancha de um tom cinéreo-escuro, e lá ao fundo, aguda e branca destacando-se vivamente, uma torre fina.

Essas temerárias ousadias ferem a visão comum e provocam os protestos — “não há tais cores, montes cor de rosa, águas como feitas de violetas diluídas, nuvens cor de fogo, ares azuis, absurdo, erro, asneira!” E, por mais que o artista afirme que viu aqueles aspectos, que copiou fielmente aqueles efeitos de luz, a revolta continua, simplesmente porque o crítico não teve a fortuna de admirar, na realidade, aquelas magnificências que lhe parecem exageradas como se a Arte pudesse exceder em beleza a natureza.

O que os olhos não veem o espírito não pode compreender, afirmam os intransigentes; entretanto, aceitam, sem discutir, todas as afirmações da Ciência. O mar que os nossos olhos veem é uma verde planície e ninguém hesita em aceitar a sua curvatura; os astros que a nossa vista alcança são pequenos pontos luminosos e não há quem neles não veja outros tantos mundos — uma refração na tela é absurda, um poente de ouro é fantasia e a análise do espectro é uma verdade que todos acatam porque traz o prestígio da Ciência.

Toda a obra de Arte que comove é verdadeira, porque só a verdade impressiona e sugere, assim, pois, faça-se a crítica com a emoção, não com a preocupação. Ninguém analisa o sol que atravessa os escassilhos da folhagem, nenhum crítico ousará achar escandaloso o verdegai dos fetos na orla bronze-negra de uma floresta nem se dirá que uma garça de neve pousada em uma boia escura foi um arranjo da natureza; entretanto, tais motivos num quadro, fariam logo a crítica vociferar contra o convencionalismo. Em arte só há um fim — é o Belo, e quem o atinge, impõe-se.

Todos os processos, todas as escolas dirigem-se para a mesma conquista da verdade estética. Que importa que o artista tenha uma das três preocupações: da cor, da luz ou da linha? Vejamos se satisfaz na realização, se nos transmite o seu “assunto”, se nos faz sentir emoção, que é o fim essencial da obra de arte. Seja a maneira adotada a do Perugino ou a do Caravajo, traga a suavidade de Fra Angélico ou as sombras carregadas do Espagnoletto ou seja o assunto de pura idealização: uma virgem aérea entre lírios esguios, flutuando em brumas cerúleas, fugindo e deixando um rastro de luz fina no caminho percorrido, mãos postas, olhos extasiados, uma auréola a iluminar-lhe a cabeça pequena como as das figuras quase fluidas dos pré-rafaelitas, não entremos a desfazer em análise o trabalho, pedindo o claro escuro, diluindo as sombras ou reclamando proporções para as flores, transparência para as águas, músculos fortes para a figura — contentemo-nos com a impressão.

Essa pintura dos pré-rafaelitas, como a música de Wagner, é uma “ideação” — ambas são falsas para os que não admitem a intervenção de uma arte no domínio de outra, porque, dizem eles, julgam poder dispensar a palavra — impondo-se como expressivos poemas de cor e de som. Eu sou dos que não indagam se a invasão é admissível — preocupo-me apenas com a emoção que me causa e, interpretando, gozo e gozando satisfaço-me.

A propósito da exposição do artista brasileiro Aurélio de Figueiredo, que foi, durante alguns dias, hóspede de Campinas, muito se discutiu a nova maneira que vai avassalando os velhos processos da pintura. Entre os 38 quadros expostos no salão do Centro de Ciências, Letras e Artes, dez filiam-se à luz — são quadros de esplendor — em todos eles brilha o sol, em uns com o rigor da manhã, em outros com a saudade crepuscular e essa luz farta derrama-se esplendidamente pelas telas, transfigurando a paisagem que, olhada de repente, ofusca, mas contemplada, sentida, expondo todos os seus detalhes, transmite o sentimento que nunca mais nos deixa e que fica no espírito, forte, eterno, como a “ideia” de um poema ou o “som de uma voz adorada”, ou, como diz melancolicamente o poeta saturnino:

L'inflexion des voix chêres qui se sont tues.

Diante de um dos quadros intitulado Tarde fluminense disse alguém, com sinceridade:

— Sim, eu sinto bem a hora, sinto o transmontar do sol que deixa um resto de luz rósea nas montanhas, vejo que é a tarde, mas... não compreendo essa cor. Acho tudo bonito mas não percebo; não sou capaz de exprimir o que sinto. Nunca vi uma montanha cor de rosa...

— Mas, já procurou ver uma montanha à hora do ocaso, com os restos da luz que se vão diluindo em sombra?

— Não... Sinto a tarde, isso sinto...

— E quantas vezes terá o senhor detido o andar olhando um céu afogueado, árvores polvilhadas de ouro, águas lampejando como lâminas de prata, lombos de rochas faiscando e depois tudo arroxeado...

— Sim, sim...

— Então? Se visse isso mesmo em um quadro que diria?

— Não sei. Esse “não sei...” diz tudo.

Nessa nova “maneira” do artista há o triunfo esplêndido da luz — a natureza é clara e é justamente essa alacridade que parece um defeito, o que nós condenamos é justamente a verdade — é o sol que veste de púrpura os rochedos, que chameja nas nuvens, que recena os arbustos, que cintila nas águas e que polvilha de bruma dourada os ares finos. Os nossos olhos como que não sentem a impressão da arte, os quadros são como os postigos e o que vemos entre a moldura, como na abertura de uma janela, é a própria natureza luminosa — é a manhã, é o meio-dia, é a tarde — é a luz, enfim, em todos os seus aspectos, a cor em todos os seus matizes.

E a falta dos tons fortes, os toques pastosos, as manchas largas à espátula, as tintas superpostas, toda essa grossa placagem que dá ao quadro a rugosidade áspera de cascas esborcinadas é substituída pela suavidade harmônica dos esbatidos, pelos contrastes que não ferem como não ferem na natureza, pela doçura que há em toda a verdade, quer ela seja uma flor, quer seja um penhasco anfractuoso e nu.

Demais o que há nessa pintura luminosa que logo impressiona é a poesia das coisas que se espalha de todas aquelas telas como o perfume se evola de um ramo de flores — com a naturalidade de uma respiração.

A Arte não é a cópia servil, é o sentimento ou a adoração da Natureza, como disse Ruskin. A obra de Arte não é bela por isto ou por aquilo, é bela porque é bela. As regras são apenas caminhos e que nos importa que o artista tenha seguido por uma trilha por ele mesmo aberta se chega ao ponto em que se reúnem os mestres?

Em Arte só há um processo mau — é o do trivialismo, e infelizmente é esse o que mais admiradores tem.

O POETA

Os críticos de profissão devem estar afiando os ferros para a autópsia do gigante afim de que o mundo, que estremeceu abalado com a queda do colosso, possa conhecer o segredo da força que impulsionava aquela formidável figura épica que, durante tanto tempo, fazendo soar uma lira estranha, maravilhosa pelo prestígio, como as de orfeão e de Amphião, moveu, a seu talante, as multidões insubmissas e as coisas inconscientes, agitou as almas e as florestas, as paixões e as tormentas fazendo com a natureza o que Prospero, o mágico, fazia com a sua ilha e com as forças elementares, passivas e obedientes à voz dessa poesia alada: Ariel.

Quem estudar a fauna prodigiosa do naturalista de Medan pasmará da sua estupenda faculdade de análise: o que Buffon e Aubudon fizeram com os animais ele fez com a natureza com a diferença porém de que os primeiros restringiam as suas observações ao critério científico e ele viu e descreveu com a larga visão da Poesia, sem se preocupar com o estreito limite, rompendo, devassando todos os horizontes, e todos os mistérios.

A sua obra é uma visão apocalíptica — ao lado de cada homem está uma besta monstruosa: Aqui é a Terra superficial, geradora dos frutos e das flores, a Terra do pão e das rosas, o campo da seara e o jardim das violetas. É a Terra do sabor e do aroma, do alimento e do gozo: a besta fecunda, estendida ao sol e à neve, a ruminar sementeiras e mortos, devolvendo a cinza em estriga e em corola, colorindo as camélias com a palidez das virgens mortas, carminando as papoulas com o sangue absorvido. É a besta tranquila, a esfinge imperturbável que devora o homem e o lar — a consumidora e pródiga. Por sobre ela vão os arados, cantam os lavradores, trilam os pardais, resplandece o sol, alargam-se as sombras quietas, desce o crepúsculo, palejam os luares e a besta serena vê passar, uma após outra, gerações e gerações de rústicos, de avós a netos pisando-a, rasgando-a, conspurcando-a, até o dia fatal em que a sua boca se escancara e fecha-se sobre o corpo gelado do campônio morto.

Ali é a Terra profunda, a Terra dos Telchinos, a terra obscura, o antro; é a besta spelea, o minotauro sinistro, a mina. Parece dormir e os homens, como os anões das lendas escandinavas, lá vão ao íntimo abscôndito, penetram, escavam, tiram-lhe as riquezas e o monstro consente até que, num dado momento, como aqueles dragões flamivomos dos barditos medievais, sopra um hálito explosivo e as galerias aluem como se as garras da fera se plantassem nos homens subjugando-os, esmagando-os, triturando-os.

Súbito uma água jorra, é como a baba lubrificante que escorre. Os que podem fugir correm alucinados às caçambas e sobem ouvindo os gemidos das vítimas e, alcançando o grande ar luminoso, respiram, gratos àquela ressurreição, mas lá os espera outra besta — a miséria, que os desnuda e os deixa ao frio, que os consome e esqueletisa, que os prostra, que lhes rouba os filhos, que lhes prostitue as mulheres, que os converte em assassinos.

Outra “besta” — o mar, que o diga Lazare. Outra, o bosque, o Paradou, espécie de milita babilônica, Éden no qual as árvores, as águas, o ar, a luz, os pássaros, os insetos são outros tantos poderes lascivos, ministros da eterna força irrecursiva que junge os corpos tirando deles a eternidade da espécie como do atrito dos lenhos, na mão do sacerdote ariano, saltava, viva e alegre, a esplêndida centelha que mantinha perene, no altar doméstico, o corpo terreal e fulgurante de Agni.

Outra — a locomotiva, espécie de boa dos tempos úmidos do planeta, quando ainda a crosta da terra era mole e fria como o barro que espera a plasmagem do artista. Lá vai a correr; arquejando, através da névoa das manhãs e da escuridão das noites, com o seu grande olho ciclópico a brilhar, o seu rosto rente aos trilhos, bufando fumo, lançando brasas, a assustar os rebanhos com os seus urros, cortando os campos, atravessando cidades, metendo-se ariscamente pelas locas, subindo aos montes, descendo aos vales, beirando rios, lançando-se afoitamente sobre abismos ora alegre, ora exausta, vivendo como se tivesse uma alma, morrendo come se tivesse uma vida.

Outra o comércio; outra a guerra; outra a Arte... e toda a obra, enfim, do admirável artista, é uma cena de pigmeus em torno de um animal monstruoso.

A mesma Naná, como muito bem notou Lemaitre, que é senão a “besta” do vício?

"Naná est une bele béte au corps magnifique et malfaisant, stupide, sans grâce et sans cœur, ni méchante ni bonne, irrésistible par la seule puissance de son sexe. C’est la “Venus terrestre" avec de "gros membres faubouriens". C’est la feme réduite á sa plus simple et plus grossière expression". Zola apresentava-se como um reformador filiado ao processo de Balzac quando, em verdade, ele foi o grande decorador do romantismo: o edifício estava pronto e sustentado pelas cariatides que fizeram a revolução de 1830, ele entrou e, levantando os andaimes, começou a ornar as paredes com os frescos soberbos da sua “História natural e social de uma família no segundo império”. Mesmo se lhe quisermos notar os processos e essa estranha psicologia das coisas vamos encontrá-la esboçada, à maneira larga de Miguel Ângelo, por Victor Hugo — nos Trabalhadores do mar, o oceano; em Notre Dame, a catedral, etc. — são as coisas vivas, as coisas animadas, os monstros que Zola desenvolveu classificando na mesma “família” todos os achados que foi fazendo na vida — desde o mercado até Lourdes, na série das Cidades.

Os que se preocupam miudamente com as análises meticulosas podem notar os defeitos na grande arte decorativa do possante autor dos Rougon Macquart — eu contemplo-a à distância, abandonando os detalhes fatigantes e só demorando a vista nos que revelam uma impressão poética como a estropeada selvagem dos cavalos famintos, na Debâcle ou a morte de Albina, entre flores.

Zola era um sincero: descrevia monstruosidades porque a sua visão poderosíssima aumentava tudo dando proporções colossais às menores coisas. Esse “naturalismo” que deu a Moysés é o mesmo que gerou o Inferno — é o naturalismo dos gênios. A verdade é uma mas é sentida diversamente: o luar que, para Musset era um incentivo poético porque é sugestivo, para o português é apenas o pretexto para um passeio, à fresca; para o bandido é um cúmplice; para o sensual é um amável; para o melancólico é um motivo de tristeza; para o alegre é o melhor incitamento à troça.

Zola via a natureza através de um sonho panteísta. Ele era dos poucos que não acreditavam na voz profética que gemeu doridamente nas praias da Thessalia — para ele o grande Pan vivia. Poeta e poeta dos fortes andou sempre dentro de uma ilusão, seguindo um sonho ao qual resolvera dar o doce nome de Verdade.

Foi um pessimista, e, por isso, rudes foram os ataques com que a Crítica, mais de uma vez, o foi perturbar na sua grande oficina, esse castelo de Médan de onde, todos os anos, saía uma obra divina e satânica, como do solar do conde de Raimond, numa noite sinistra, fugiu, aos gritos, Melusina, a mulher-serpente.

Nos livros do poeta há esse dualismo — a cauda serpentina é enorme mas prestai atenção e descobrireis em todos eles o busto e, dentro, um coração meigo pulsando com enternecimento como batia o da castelã que, tornando à pena, enchia os ares de gemidos e orvalhava a terra de lágrimas pensando nos pequeninos filhos e no amor que deixara.

Em Raimond é a curiosidade a causa do Sortilégio, em Zola é a imaginação, essa curiosidade do Ideal.

Sei que a Crítica aprecia a parcela e na obra de um grande espírito procura não só os largos traços como as pequeninas e mesquinhas insignificâncias e, como os corvos, passa indiferente pelas belezas baixando imediatamente, com alegres crocitos, mal sente o fartum da carniça; falo da pequena crítica, a das varejeiras, que estão para os corvos como os chacais estão para os leões.

Não vejo em Zola o homem da preferência salaz, mas se ele só foi repelido porque nos apresentou Naná, porque havemos de adorar Longus, com a sua Lycenion, Ovídio com os seus Amores, Vatsyayana com os seus conselhos, Apuleio com a sua Metamorfose, Teócrito com a sua Feiticeira? Volúpia é mais excitante do que a lascívia: há sedução maior nos encantos que se adivinham do que na nudez que se ostenta descomposta e impudica.

Há exagero mas sejamos leais: o exagero é a qualidade própria do escritor, é a sua maneira — como ele exagera o mal exagera o bem, como exagera o homem exagera a natureza. Para Montsou aquela gente, para Sedan aqueles soldados e aqueles animais fantásticos, para Coupeau aquela monstruosidade do Assomoir, para aquela vermina aquele planturoso mercado do Ventre de Paris com os seus tabuleiros, com as suas barracas onde parece acumular-se toda a produção das hortas fartas dos arredores da cidade.

A mesma virtude é exagerada como no padre Mouret, o místico.

O estilo de Zola é formidável — ele não tinha a preocupação das miudezas posto que, por vezes, se divertisse em detalhar; a sua intenção era o assunto e, diante da tela imensa, lançava o desenho com a pressa fogosa de um delirante e, enchendo-o com as tintas, procurava, à força de cor, a verdade imaginada e, quando contemplava os seus horizontes como que ainda os achava apertados e lá ia com eles para mais longe, impelindo-os como se afastasse um biombo que atravancava um aposento.

O que torna, talvez, monótona a grande obra é o forte tom marcial que dela sobe — é o mesmo hino que regula a vida daquela gente — no campo e na cidade, nas minas e nas igrejas, nas greves e no amor, na guerra e na balbúrdia dos mercados, nos boulevards e nas chãs campestres. O ritmo é o mesmo e tem-se a impressão de um cinematógrafo variegado, de grandes proporções, ora trazendo cenas épicas, ora apresentando episódios domésticos ou mostrando o trabalho agrícola, a luta tremenda do camponês com a terra, ao som da Marselhesa tocada estrondosamente e sem descontinuação.

Esse defeito do poeta épico desaparece por vezes e é quase sempre atenuado pelo entusiasmo que desperta ainda que prejudique, em certos lances, a verdadeira emoção — isso, porém, vem ainda provar que o grande escritor era um extraordinário poeta que se deixava arrebatar pela musa seguindo-a nos ovos arrojados.

Bem diferente do tranquilo Daudet, que tão bem descrevia os homens e a vida, sem arrancos com um sentimento justo, com as proporções exatas — um via a natureza e o homem e copiava-os, outro cantava-os com a voz forte com que os aedos e os ollans dos tempos heroicos referiam os feitos dos guerreiros e descreviam as carnificinas e as quedas estrondosas dos muros das cidades.

Sei que a Crítica vai analisar a obra do romancista, eu fico contente com a minha admiração pelo poeta.

A DIREÇÃO DO BALÃO

Craveiro, da extinta e florida firma de Craveiro & Rosas (chá, cera, rapé e sementes) era homem de muita carne, de bom sangue, católico e conservador. O pai, além de haver sido um dos esteios do partido, fora, na mocidade, conservador de um museu, onde, diziam as más línguas, ele encontrara a excelente senhora D. Brígida, modelo de honestidade e de magreza — o que lhe sobrava em virtude escasseava em carnes.

Até os vinte anos Craveiro Júnior, que nascera entanguido, foi um mocinho amarelo e magro, muito sujeito a bronquites e a cólicas, sempre a tossir e a gemer pela casa, atabafado e mole. A mãe atirava-lhe para os ombros derreados todas as lãs que encontrava, o pai obrigava-o a trazer baetas sobre a pele e D. Serafina, todas as noites, fazia-lhe uma gemada substancial com canela e cravo e punha- lhe aos pés, sob as cobertas, duas botijas com água a ferver, tanto que, uma vez, estando Craveiro a dormir quando a solícita senhora lhe chegou às plantas o aquecedouro, o rapaz, num assombro, saltou da cama berrando que descera ao inferno, como Orpheu; e pôs-se a esfregar os pés, às gadanhadas, mostrando bolhas que lhe haviam feito os ardentes ladrilhos do reino de Belzebu. Apesar de todos os cuidados Craveiro continuava a amarelecer e a definhar, sempre a tossir, mastigando pastilhas, engolindo xarope.

Não era bonito, tinha sardas e cravos (não fosse ele Craveiro), os cabelos eram negros mas raros e a fronte ia-se-lhe alargando com a idade, o que maravilhava o velho que, ao contemplar a vastidão daquela testa, lisa e cor de marfim, que ia subindo a pique, dizia, com enlevo e orgulho — que era o talento, o fogo vivo do gênio que esturrava a raiz do cabelo como as chamas, em agosto, lavrando por um cerro, consomem, até às raízes, as plantas que o vestem.

Apesar da profecia do velho, o apregoado talento do rapaz era difícil, e só escorria, num fio escasso, em dias de festa doméstica, arriscando, à mesa um brinde trêmulo. Quando se falou em mandar Craveiro aos estudos, D. Brígida opôs-se aterrada aconchegando o filho aos ossos do peito:

— Medicina, Brígida; aventurou pacatamente o velho.

— Deus me livre! O quê? Para o pobre menino ter de estudar em defuntos e passar toda a vida à cabeceira de doentes com risco de apanhar alguma coisa!? Deus me livre!

— Bem... engenharia, então.

— Que engenharia, homem! você parece maluco: para um dia cair de uma ponte ou ficar debaixo de um túnel...

— Então... direito.

— Nada! pode, como promotor, acusar um sujeito de maus bofes que mais tarde, queira tirar vingança...

— Então, filha, só o seminário; vamos metê-lo no seminário. D. Brígida sorriu desvanecida, mas veio logo um suspiro contrariar o prazer:

— Sim, padre, isso era outra coisa, mas... e os jejuns? Ele podia lá com os apertados jejuns!? Não. Olha, queres a minha opinião? Mete-o no comércio, dá-lhe sociedade na loja. Ele que venda chá, dizem que o chá ataca os nervos, mas é história, o chá é inofensivo, a cera é grata ao Senhor e as sementes são a riqueza da terra.

— E o rapé? E as lanternas? E os fogos?

— É verdade... Mas seu Rosas pode encarregar-se dessas coisas. Divida-se a casa em duas seções — uma para o pequeno, outra para seu Rosas.

E assim se fez. Craveiro encarregou-se da 1.ª seção e o Rosas lá foi para a dos explosivos e dos esternutatórios.

Nos primeiros tempos a vida foi uma maçada tediosa para o mancebo: o dia todo ao balcão ou no escritório a vender círios, barrigas, pernas, chá verde, chá preto, chá padre, abóboras e fúcsias; pouco a pouco, porém, habituando-se, Craveiro deu em pandear — aos vinte e cinco anos era, todo ele, uma só, imensa barriga — foi necessário alargar a porta do escritório para que o homem passasse. A mãe, alvoroçada, exigiu um exame médico e a ciência, em lenta e minuciosa análise, achou apenas toucinho. Foi uma alegria em casa.

Um dia chovia a jorros, Craveiro bocejava no escritório com a fronte lisa sobre a mão, quando duas senhoras, acossadas pelo aguaceiro, entraram precipitadamente na loja. Era no tempo dos balões tufados, aí pelos fins da guerra. A que parecia mais velha trazia um balão de pequeno diâmetro; a outra, porém, com as goteiras que pingavam da saia, fez na casa um círculo maior que a roda maciça de um carro de bois.

Era uma criaturinha viva, de um moreno quente e aveludado, olhos mais negros que jabuticabas maduras e com uma pequenina boca que era mesmo um botão de rosa. O colo era alto e arfava, as mãos eram finas e arrepanhavam o mantelete com um brilho rico de anéis.

Craveiro, vendo-a, sentiu um tumulto no coração amadurecido para o amor e, como as duas senhoras se conservassem de pé examinando plantas, ele compreendeu, com muita sutileza, que elas não queriam saber de dálias nem de azaléas senão de um pouco de agasalho até que a chuva estiasse, e ofereceu cadeiras. Agradeceram e sentaram-se; a mais velha acomodou o balão; a mais nova, porém, por mais que batesse, por mais que aconchegasse, não conseguiu submeter os arcos rebeldes da crinolina que ficou rebeldemente empinada e enfunada expondo à curiosidade lúbrica de Craveiro os pequeninos pés da linda morena e um palmo de meias cor de rosa que eram uma tentação, ou melhor duas tentações.

Craveiro perdeu a cabeça e, de olhos gulosamente abaixados, admirava; os caixeiros ouviam-lhe os roncos e viam-lhe o fogo das pupilas incendiadas. Felizmente chovia e os fogos lá estavam na seção pirotécnica do Rosas. Por fim a chuva serenou e as duas senhoras, com muitos sorrisos e agradecimentos, saíram.

Craveiro não se conteve, tomou, à pressa, o casaco e abalou, a largas pernadas, chapinhando nas poças, escorregando no lodo, a ver a direção que tomavam os balões.

Oh! Aquela morena! Aquelas meias cor de rosa! ... Via-a ao longe, muito tufada no grande balão que bamboleava, via-a e forcejava por alcançá-la... mas a barriga! Aquela barriga...

Num cruzamento de ruas perdeu de vista a linda criatura. Ficou a olhar pasmado: onde se teria metido? Pôs-se a rondar o ponto em que se sumira a beleza, a olhar as casas, a tossir, a pigarrear... e nada! E ali esteve até tarde. Já escurecia quando, com o desespero na alma, o desventurado resolveu voltar ao negócio mas, ai dele! Já não era o mesmo homem calmo, sisudo, despreocupado — tornou-se frenético, deu em berrar com os caixeiros, em atirar murros à secretária e, em casa à noite, cercava-se de papéis e punha-se a riscar, a calcular e ia até à madrugada, às vezes, naquela lida, suspirando e bufando.

O pai interpelou-o uma noite sobre aquelas vigílias que lhe comprometiam a saúde e Craveiro, sem tirar os olhos do papel, respondeu secamente: “estou vendo se descubro uma coisa...”.

De sorte que o velho, quando D. Brígida suspirava atribulada com tantas noites em claro e trabalhosas, dizia-lhe com uma ponta de orgulho: “deixa lá o rapaz, está com a sua descoberta... Eu, quando te dizia que ele devia estudar para engenheiro, tinha as minhas razões”. E Craveiro, sobre um complicado desenho que representava o cruzamento das ruas, colocava dois feijões pretos e um feijão cavalo — os feijões pretos representavam as duas aerostáticas senhoras, o feijão cavalo era ele e tanto mexia com os tais feijões que perdia a calma e acabava a pesquisa atirando formidáveis murros à mesa e, já deitado, esmagando os travesseiros, lançava ainda exclamações que atroavam a casa: “eu hei de descobrir, custe o que custar. Eu hei de descobrir”. E, tanto insistiu na famosa descoberta que, um dia, foi postar-se no tal cruzamento, perguntando a todos que passavam: “o senhor (ou a senhora) não viu por aqui um balão com umas meias cor de rosa? Não sabe que direção tomou?” Arrancaram-no dali, à noite — estava louco.

Os pais quiseram conservá-lo em casa mas Craveiro berrava com tal furor que a vizinhança, alarmada, recorreu à polícia e o infeliz foi internado em um hospício. O Rosas passou a dirigir as duas seções, D. Brígida finou-se ralada de tristezas, o velho seguiu-a pouco depois, e Craveiro lá ficou no hospício calculando e engordando até que as banhas o prostraram a um canto do cubículo, pesado e inerte.

Com os anos, porém, foi-se-lhe desvanecendo a mania e os médicos pensavam em dar-lhe alta e teríamos cá fora o estupendo corpanzil do antigo negociante se um incidente não o comprometesse. O médico passava a visita quando, justamente diante de Craveiro, voltou-se para o farmacêutico que o acompanhava:

— Então, hein? Temos o balão. Craveiro estremeceu e arregalou os olhos, maravilhado.

— Parece que sim, doutor.

— Onde? Bradou o louco, num rugido.

— Onde? Em Paris.

— Em Paris?! Um balão? Com umas meias cor de rosa?

— Como?

— Sim, senhor: meias cor de rosa... Acharam sempre, hein?

— Acharam; e foi um patrício nosso, mas... que história é essa de meias cor de rosa? Craveiro teve um sorriso malicioso e, afagando a papada, murmurou: “É cá uma coisa, doutor. Se eu, naquele dia, tivesse descoberto a direção... Ah! Não lhe conto nada...”

— Que direção?

— A direção que tomou o balão; eram dois...

— Um do Severo, disse o farmacêutico.

— Qual Severo! Um era de uma senhora magra, já idosa, a mãe, creio. Mas o das meias! ...

— Que meias?

— Que meias, hein? Que meias? Pôs-se a ranger os dentes, fechou ameaçadoramente os punhos e ... foi metido em camisola de força. E agora a fúria é contra o médico porque entende o infeliz que foi ele (pobre Dr. Brochado!) quem descobriu o balão ou antes — a direção que tomou a dama que o vestia.

E lá está.

APOLOGIA

Que soe o hino de Arquíloco a cujos acentos estavam tão habituados os ares finos e azuis da Olympia que, mal auletrides e cytharedos o rompiam entre as nuvens doiradas da poeira da arena revolvida, logo os ecos o iam redizendo antes mesmo que os cantores o entoassem.

Que soe o hino de Arquíloco celebrando a vitória dos atletas que, com o poder do músculo robusto e ágil, conquistaram a glória que fica perpetuada na inscrição tabular.

Os tempos são outros — já os poetas não se levantam entre o povo, com a lira enramada de oliveira pálida, o olhar ardente de inspiração, saudando os heróis da luta — hoje a poesia é gemedora e fraca: arrula e suspira, não freme como nas eras pujantes, quando muito atita, porque lhe falta o heroísmo de outrora que fazia do poeta um glorificador.

O homem definha e com a consumpção que lhe vai entibiando o corpo, a alma se lhe torna fraca, pusilânime, sem fé.

Já que os cantores contemporâneos preferem a molície do amor à valentia da peleja, um beijo ao arrojo seguro de um disco de bronze, o abraço languido à formidável tensão nervosa que exige um pugilato, a carícia de um olhar úmido ao flamejar dos olhos de adversários que se medem, um gorjeio de mulher voluptuosa ao rouco bramir do auriga que, no estádio, excitava as parelhas da rápida quadriga, uma promessa lasciva ao desafio heroico, gênios do passado e tu, maior de todos, moço tebano, cantor sagrado dos grandes feitos de Epharmosio, vencedor nos jogos pythicos, neméos e ístmicos, empresta o teu gênio imortal a um dos vates que melhor compõem a estrofe com a imagem que a ilumina e com a rima que a enfeita para que ele dignamente descante o renascimento do culto e da beleza do Homem.

Salve! salve ainda heróis do páreo forte que vindes levantar, com o vosso exemplo, a alma abatida dos mancebos pátrios.

Um povo não se robustece na inércia. A mesma árvore, prisioneira pelas raízes, tem o vento como lanista que a obriga a exercitar-se: abalam-se-lhe os galhos, retorce-se-lhe a coma, a cativa debate-se violentamente como o leão que passeia na jaula e salta corcoveando para expandir a sua força nervosa.

O rochedo cravado tem o mar que o fustiga — a terra é como a Atalanta do espaço: corre vertiginosamente e se perde do sol que a vence, deixando-o nas brumas do inverno, é porque se curva para apanhar os frutos do outono que o Hipomenes flamejante lhe atira.

O homem, que se devia impor pela força como a mulher se impõe pela graça, porque ele deve ser como o cedro e ela como a palmeira, copia os ademanes femininos e, a pretexto de ser esbelto, amaneira-se, fugindo a todo o exercício, com receio de que se lhe calejem as mãos ou se lhe tufem os músculos endurecidos como os do Hércules Farnésio e o resultado é termos uma mocidade dessorada, tíbia, muito encalamistrada, muito oleosa e trescalante, mas incapaz de um ato de energia, passiva por fraqueza, humilde por desalento.

A culpa, em verdade, não é dos moços senão dos pais que os criam nos refolhos domésticos, atabafados, para que o ar não lhes dê tremuras, para que o sol não lhes creste a cútis e, desse choco o que sai é uma ninhada a piar medrosa e transida, que encara a vida com medo e, à primeira dificuldade, encolhe-se e deixa-se morrer covardemente. Se os governos das sociedades modernas não entendem, como o ríspido Licurgo, que o infante é um bem da pátria que o deve afeiçoar, desde a idade mais tenra, ao destino que lhe cabe, que é o de ser um cidadão útil na paz, como elemento de prosperidade e na guerra como elemento de defesa, cuidem, ao menos, de mostrar aos pais que os exercícios são a melhor medicina e a moral mais sã — ganham com eles o corpo e a alma, desenvolvem-se a força e a coragem, uma que é o fruto da robustez, outra que é a flor da energia.

Felizmente parece que a mocidade já se vai insurgindo contra o regímen desmoralizador.

Coalha-se o mar de embarcações esguias que disputam a carreira na arena verde e móbil; corpos arrojam-se ao encontro da vaga e lá vão por ela às braçadas rijas, ora levantados nas cristas espumantes, ora desaparecendo nos sulcos; as bicicletas afrontam os andurriais, trepam às serras, descem aos vales, atravessam florestas em viagens longas, de Estado a Estado; a pela elástica parte como uma bala da cesta dos fundibulários; cruzam-se floretes e sabres em punhos de esgrimistas; turmas flanqueiam as paralelas, correm outras ao lawn-tennis. Ali é um trapézio que oscila, além é um corpo que volteia na barra; mais longe vai o ginete sorvendo o ar dos prados frescos, levando um cavaleiro louro e moço e no campo, sobre a erva rasa, correm os teams, disputando a bola que bate, salta e voa perseguida, indo de um a outro, repelida, numa ânsia desinsofrida de vitória que dá à face dos lutadores a cor alegre e formosa da saúde.

É exercitando-se nesses jogos enérgicos que o homem aprende a vencer na vida: o hoplita dançava a pyrrhica sob o peso derreante das armas.

O grego era um povo esteta que admirava o corpo formidável de Sostrato dormindo nu, estirado na erva verde e cheirosa do Parnaso; o grego corria aos ginásios para aplaudir os gladiadores, a Hélade atroava quando um mancebo conquistava, em Argos, a taça de bronze e as coroas ornavam o thymelo trágico como a borda da biga triunfante.

Hoje, porém, raros são os que prestam culto à robustez, — as raças sucumbem anêmicas, o Adão atual não se parece com o colosso de argila dura cuja ossada era de rude granito — é uma figurinha de terracota, mais para a peanha do que para a arena.

Nem todos os pais querem ver os filhos nesses exercícios — a maioria prefere ver os seus mirrados pimpolhos, muito apertados em umas casacas que lhes dão o ar de grandes gafanhotos negros, fazendo numa sala voltas subtis de valsas. Felizmente, porém, começam a aparecer os jovens reacionários, os que se revoltam contra essa vida abafada e mole de plantas de estufa e correm, com o peito forrado por uma camisa de malha, os braços nus, as pernas nuas, ao ar livre reforçando-se ao sol que é o grande juiz e o apologista da força.

É preciso pensar um pouco no Homem que é o responsável pelo mundo, que é o fiador do Progresso. Não basta que sobre as vertentes das colinas e nas verdes planícies cresçam palácios de nobre arquitetura, alastrem relvedos de parques, refuljam serenos lagos; que, por toda a parte, circulem ativamente os veículos eléctricos, que haja monumentos nas praças, centros de sabedoria, casas de diversão, casernas e hospitais, é necessário que haja homens, homens que não fiquem avassalados pelas maravilhas, homens que não sejam ridículos ao lado das magnificências, homens, enfim, dignos da cidade, do país em que nasceram e no qual brilham pelo esforço e pelo espírito.

Que diria o estrangeiro que, ao saltar no caos de uma cidade toda de mármore, com avenidas de cedro, faiscante de focos eléctricos, visse pelos degraus dos templos, nas raízes robustas das árvores, nos peristilos dos palácios, uma população enfezada, a tiritar de frio, macilenta e lívida? Sorriria ou daria por mal empregada tanta beleza... Pois temos um meio de evitar esse ridículo deprimente e o meio é belo e é nobre e nos foi dado por um povo que é um dos orgulhos da humanidade — o inglês. Aceitemo-lo e tornemo-nos dignos desta grande pátria, que é, como um jardim exuberante de Titânia... habitada por pigmeus.

PALAVRAS DE UM STEGOMYIA

Andava eu, à tarde, a espairecer no meu pequenino jardim, onde as angélicas apendoadas prometem, para dias próximos, umas varas floridas de fazerem inveja ao próprio S. José, quando um mosquito (stegomyia fasciata) imaginando-se talvez um rouxinol, entrou a perseguir-me esvoaçando em torno da minha cabeça com um zumbido enfadonho, só comparável aos exercícios de violino do meu melodioso amigo Eleutério.

Esbordoei-me a valer, não para castigar o corpo pecador com as macerações que valem por massagens espirituais, porque robustecem a alma em graça e favor divino, mas para ver se apanhava o terrível e desafinado stegomyia. O animalejo, porém, que era astuto e ágil, fugia à bordoada rindo-se da fúria com que eu ia enrubescendo a cara e, principalmente, as orelhas.

Desanimado, retrocedia deixando o jardim, àquela hora delicioso, quando me pareceu ouvir, não mais o enfadonho zumbido, mas palavras, palavras claras como as que saem da boca dos homens.

Voltei-me espantado à procura do meu interlocutor misterioso e só vi o Jacinto que regava um canteiro de violetas, calado como o próprio silêncio.

— “O senhor pode ouvir-me em particular?” Interrogou a voz misteriosa. É estranho! exclamei, sentindo um arrepio em todo o corpo e os cabelos crescerem-me na cabeça.

Quem me falaria? Que invisível ser aéreo andaria a divertir-se comigo à hora santa em que os sinos espalhavam, na serenidade da tarde, os dobres religiosos das Trindades? Demônio? Não, demônios não ousam afrontar a voz dos sinos e poucos são os que se atrevem a fazer diabruras à luz do sol... (Faço exceção de ti, demônio de olhos claros e cabelos luminosos, tu não te preocupas com os sinos nem com o sol, mesmo a primeira vez que te vi foi em uma igreja, na missa das onze e a manhã era das mais radiantes: falo dos demônios do inferno e tu... tu és um demoninho... do céu). Mas, deixemos idílios satânicos, vamos ao caso misterioso. Quem me falaria?

Procurava eu o mistério quando, de novo, ouvi a estranha voz:

— " O senhor pode ouvir-me em particular? Quem lhe fala sou eu, Stegomyia fasciata, vulgo pernilongo, um seu criado”.

Era o mosquito.

Não se espantem os leitores — já no tempo de Esopo e depois nos dias de Babrius os animais falaram e com o bom Lafontaine isso, então, nem se fala! ... até em francês se exprimiam, como dizia, maravilhado, e admirável Salema. Assim, pois, não há motivo para estranheza no que lhes vou contar.

Requestado, com tanta gentileza, pelo Stegomyia, não quis ficar por baixo de um reles mosquito e respondi, também fidalgamente:

— Pois não, meu amigo, estou às suas ordens. Quer conversar aqui mesmo ou prefere o meu gabinete, mais agasalhado e, discreto?

— Aqui mesmo, senhor. Peço-lhe apenas que nos aproximemos daquele sabugueiro em flor para que eu descanse em uma folha e possa falar com a calma necessária porque o que tenho a dizer é grave e reclama atenção.

— Pois vamos lá para o sabugueiro. E fomos. Stegomyia partiu à frente, zumbindo mas, quando cheguei ao arbusto, foi um trabalho para descobrir o ilustre animalejo e, se ele mesmo me não houvesse chamado, dentre miúdas florinhas, eu teria desistido da interessante entrevista que vou tentar descrever, omitindo pequeninos episódios como, por exemplo, as ciladas que contra o meu interlocutor armou uma aranha esperta que o descobriu de longe e desceu, ligeira, por um fio, não logrando, porém, o seu perverso intento porque Stegomyia, que vê longe, safou-se chamando-me para junto de uma sempre-viva vermelha.

— “Meu amigo, já que sabe o meu nome, quero que também saiba onde nasci e o que faço neste ingrato mundo onde só podem viver em paz os grandes — as moscas, por exemplo, que são mais impuras que nós, porque nascem nas estrumeiras, não sofrem as perseguições de que somos vítimas.

“Eu nasci numa gota de água, eu e mil e tantos irmãos que andam soltos por esses ares. Não conheci meus pais. Logo que senti forças para voar deixei a gota de água, subi ao macio espaço e compreendi imediatamente que o homem era o meu pior inimigo porque, tendo fome e procurando o nariz vermelho de um sujeito, não sei como escapei ao murro com que o perverso pôs as próprias ventas em sangue. Voei e tive de esperar pacientemente que todos dormissem para, então, regalar-me à vontade. O grande crime: chupar um pingo insignificante de sangue, muitas vezes bem ordinário: mais água que sangue, como o leite das vacas, outras vezes tão carregado de micróbios que é um nojo bebê-lo, só mesmo por necessidade. Mais do que nós sugam as pulgas e quem é que as persegue com medidas higiênicas, os tais preventivos que nos põem tontos, principalmente uns pós que fazem uma fumaça dos diabos à qual não há mosquito que resista?

“Os nossos filhos — e dizem que os homens são humanos! — não chegam, muitas vezes, a ver a luz do sol — matam-nos ab-ovo: despejando as tinas, estancando as poças, não deixando água, nem mesmo nos jarros, só para que não tenhamos lugar para a criação da prole. É justo, Deus disse: — Crescei e multiplicai-vos e os homens, contrariando a ordem expressa do Senhor, querem que diminuamos, mais do que isso: que desapareçamos e empregam todos os meios para que a iniquidade se realize. E por quê? Porque uns sábios afirmaram que os transmissores da febre amarela somos nós.

“Ora, francamente, ou esses sábios não enxergam uma polegada adiante do nariz ou querem imitar aquele lobo da fábula, porque a verdade é que nós entramos nessa história de febre amarela como Pilatos no Crédo. Dizem eles: “o mosquito é o transmissor certo e talvez o único da febre amarela, do impaludismo (febres intermitentes), etc.

“O mosquito transmissor da febre amarela, muito comum nas nossas habitações, é o stegomyia fasciata, conhecido geralmente pelo nome de — mosquito ou pernilongo rajado”.

“Eis a acusação; agora vou eu, em meu nome e em nome de todos os meus irmãos, produzir a defesa que o senhor me fará o obséquio de tornar pública:

“O mosquito é o transmissor — o que transmite é aquele que faz passar além ou de um corpo para outro, no caso vertente, alguma coisa, que aqui é o gérmen da tremenda pyrexia. Entre mosquitos — e o senhor pode consultar a estatística da nossa mortalidade — nenhum foi jamais vitimado por essa moléstia, própria do homem. O que acontece é o seguinte — nós (e, como nós muitos desses que se dizem filantrópicos) vivemos à custa do sangue humano, assim quis o Senhor que fosse e assim há de sempre ser: o homem é, pois, o nosso hotel. Ora, se o senhor entrar, um dia, no seu hotel e comer um bife com cogumelos (eu detesto os galicismos porque sou jacobino) que lhe ponha no estômago uma carga sofrível de tóxicos, culpa o bife? Não, atira a responsabilidade para os cogumelos que o envenenaram, não é verdade? Pois, conosco é o que se dá: nós somos o bife, os cogumelos são o sangue humano. Se alguém tem direito a queixar-se não é o homem, é o mosquito que bebe cada sangue que é mesmo uma imundície.

“Eu já bebi um sangue que era só cerveja, bebi, digo mal, provei e enjoando, porque detesto bebidas, fui procurar outro sangue mais sóbrio e encontrei-o em um rapaz. Mal comecei a sugar-lhe a nuca, que era alva como a de uma mulher, senti que a cabeça do rapaz oscilava — estava na môna por inoculação de ebriez, dirá o senhor — engano: estava com uma congestão e morreu, horas depois. Fui eu o transmissor da moléstia? Não; eu podia, quando muito, ter transmitido uma bebedeira, não acha? Mas congestão, nunca!

“Porque não cuidam os homens de purificar o sangue? Há tantos purificadores — o mercúrio, o iodureto, o arsênico e ainda outros, não: enchem-se de moléstias e depois querem que os mosquitos, que comem sardinha, arrotem garoupa, como vulgarmente se diz. Não — o mosquito não transmitiria a febre amarela se não a encontrasse no sangue.

“E não fica nisso, há de ver — dir-se-á amanhã que o mosquito é o transmissor de todas as moléstias físicas, mesmo de algumas morais, veículo nefando dos germens nefastos à vida e à moral. Assim, se certa dama incorrer em grave falta, ninguém atribuirá o pecado à sua cabecinha leviana nem ao seu temperamento abrasado, mas aos mosquitos e como hoje, de acordo com a doutrina de Lombroso e tutti quanti, não há mais criminosos senão degenerados de várias categorias, não haverá, igualmente, impudor mas dentadas de mosquitos. E será frequente ouvir-se: “coitada de fulana, uma senhora tão séria, para o que havia de dar. Aquilo foi algum mosquito que a mordeu levando vírus de amor”. E quando se der algum desfalque também se poderá dizer:

— “Veja você, o Cabedelo, um exemplo de honestidade. Quem diria! Eu, custa-me a acreditar. Para mim ali andou pernilongo”. E o mosquito passará a ser o bode expiatório ou o burro de carga de toda a pouca vergonha!

“Se tivéssemos um laboratório de análises os amarelentos podiam ficar descansados porque não lhes iríamos à pele, mas o mosquito, como o poeta, prend son bien où il le trouve e ainda berram.

“Berrem contra os que apanham febre amarela, berrem contra a sujeira, contra o desasseio, contra os comedores que nada fazem e não estejam a descarregar a culpa sobre o mosquito.

“Há mosquitos em Paris, em Londres, em Bruxelas, em todas as cidades, em todo o mundo e porque não se manifesta universalmente a febre amarela? Respondam — é que em todo o mundo são mais os atos do que as palavras.

“Saneiem a cidade e hão de ver que o mosquito, sem perder os seus hábitos de sanguessuga, será tão inofensivo ao homem como as andorinhas que chilreiam à beira do seu telhado.

“Uma criança, mamando no peito de uma ama inficionada, não só ganha o mal como, passando ao peito de outra ama, logo o transmite. A culpada é a criança inocente? Não, culpada é a ama... eis o caso do mosquito.

“Agora, meu senhor, por quem é, defenda-nos, escreva sobre nós, não é vergonha para a sua pena descer a um bichinho tão ínfimo — o grande Virgílio escreveu o Culex.

“E adeus! Prometo em meu nome e, em nome de todos os stegomyias que, se escrever sobre nós, poderá, doravante, dormir sem mosquiteiro, palavra de pernilongo”.

E eu, para não ser mordido, prometi ao stegomyia reproduzir as suas palavras e cumpro a minha promessa.

BURRO OU CÃO?

Burro ou cão? E Melchisedec da Silva, de mãos nos bolsos, media, a largas passadas, o seu quarto de sábio e celibatário com uma dúvida no espírito, mais incoercível que a de Hamlet: Burro ou cão?

A máscara de burro, um primor, lembrava a cabeça asinina que Puck fez crescer sobre os ombros de Bottom, a de cão era tão perfeita que o velho Pachá andava pelos cantos erriçado, desconfiado, a roncar. Melchisedec não se decidia e, hesitante, queimava charutos e era tanta a fumaça no aposento que as estantes, altas e atochadas de preciosos volumes, desapareciam abrumadas pelo fumo, menos denso, entretanto, do que a dúvida que escurecia o claro espírito do profundo psicólogo. Burro ou cão?

Quando entrei para consultar o meu esclarecido amigo sobre um aforismo complicado de Mencio, o espanto reteve-me à porta, sobre um velho atlas de etnografia que servia de capacho. Não vi Melchisedec, o que vi foi uma espécie de Anúbis, de quinzena, contemplando-se a um espelho com serenidade. O velho Pachá bufava trepado na mais alta estante, com os olhos rebrilhando como duas brasas. Por fim o cynecephalo voltou-se para o meu lado, e, em vez de ladrar, disse-me com intimidade: “entra, homem”; e logo reconheci a voz do meu erudito amigo que, para tranquilizar-me, retirando a máscara, mostrou-me o seu rosto magro e pálido onde a barba crescida punha uma arrepiada sombra.

— Que capricho é esse, Melchisedec? O sábio encolheu os ombros estreitos e sentou-se cansadamente, com um suspiro. Vais sair fantasiado? De novo encolheu os ombros com indiferença. Por fim, depois de alisar a fronte vasta, perguntou-me:

— Que dizes: burro ou cão?

— Burro ou cão?! Não te compreendo, Melchisedec. Intimamente eu sentia um alvoroço contando com uma nova e arguta sutileza filosófica e cravei os olhos na face macilenta do austero homem.

— Não me compreendes?

— Não.

— Pois não há dificuldade alguma na minha pergunta. Senta-te e ouve. Sentei-me e dispus-me a ouvir a palavra, sempre fecunda, do grande e desconhecido comentador dos moralistas chineses.

— Sabes que fui de novo, preterido por um mocinho chamado Alfredo, filho de um chefe político que dispõe de uma centena de votos por aí algures. Estou vivendo dos meus livros e, levantando o braço direito, o mesmo que ele eleva para os céus, à noite, para indicar-me as constelações luminosas, mostrou-me uma das estantes, consideravelmente desfalcada.

— Estás vendendo os teus livros, Melchisedec?! Exclamei pasmado e indignado.

— Alguns. Que hei de fazer? O senhorio e o estômago são exigentes. Mas, vamos ao caso: fui preterido e queres saber por quê?

— Porque não levaste um empenho...

— Talvez tenhas razão, mas eu atribuo à fama que vocês, meus amigos, criarem em torno do meu nome: que eu sou um homem de estudos, que tenho o meu bocado de filosofia, que penso, que escrevo a minha língua sem grandes erros comprometedores... e que sou independente. Estudos e inteireza de caráter são duas qualidades mas para quem precisa. O regímen é dos medíocres... e dos bajuladores: burro ou cão, não te parece? Na face magra de Melchisedec tremeu um sorriso triste. Aquele rapazote, que foi nomeado secretário de legação, foi meu aluno durante três meses: quando se inscreveu na secretaria ainda escrevia omenajen e afirmava que a primeira missa no Brasil fora rezada na igreja da Candelária. Lá está na Europa e Deus o tenha por lá muito tempo para que a língua não sofra com os seus constantes ataques. O governo entende que, como ele vai viver no estrangeiro, pode, perfeitamente, dispensar o português. O regímen é dos medíocres e dos engrossadores, como agora se diz. Um homem seco, como eu, não pode engrossar mas também não me convém morrer à mingua — é preciso que eu arranje alguma coisa. Com a minha cara estou certo de que não consigo um lugar de porteiro nem mesmo de varredor. Tenho aqui duas máscaras, qual delas devo levar: a de burro ou a de cão? Qualquer desses animais tem cotação: o ignorante impõe-se, o servil consegue tudo. Estamos no carnaval e estou aqui ensaiando os papéis de burro e de cão e amanhã, optando por um ou por outro, lanço-me por aí à aventura, subo as escadas da primeira secretaria, dirijo-me ao ministro e zurro ou gano.

— Tu estás pessimista, Melchisedec.

— O que estou é convencido de que isto é o país dos analfabetos e dos zumbridos. Olha que é um crime saber ler, meu caro. Eu vivi a absorver ciência e literatura e hoje não tenho uma camisa decente. Que é o carnaval? A vida voltada pelo avesso, não te parece? Todo o homem tem em si uma feição que se oculta sob as conveniências. Antero, que é mais triste que uma missa de sétimo dia, só se fantasia de palhaço e tem graça, faz rir a valer — ninguém dirá que, sob aquela máscara cômica, está a cara consumida do mais taciturno homem que o céu cobre... Na quarta-feira de cinzas Antero recomeça a pensar no suicídio. As crianças, que são verdadeiros diabretes, trocam, de bom grado, o mais rico trajo de príncipe, pela ganga rabuda de um diabinho; os velhos, são, em geral, rapazes lépidos — eu vou virar-me pelo avesso mostrando-me burro ou cão e, quem sabe lá? é até possível que se dê comigo o que se dá com o Antero: que os solecismos me acudam em borbotões e que a minha espinha se torne mais flexível do que um junco. Queres, em suma, a verdade? Vou exercitar-me, vou aproveitar os três dias de irresponsabilidade para despejar asneiras, afeiçoando-me aos barbarismos indispensáveis e para lamber todas as mãos e todos os pés que me aparecerem. A vida é dos que mais fingem — tudo está em saber disfarçar. O rapazote não está a percorrer cidades, de embaixada em embaixada, a rir-se e com razão, das minhas preocupações espiritualistas? E eu que faço? Não tenho uma codea para roer e durmo sobre um catre duro, como um penitente. A sociedade deu-me o diploma de sábio, pois bem; faço agora questão de merecer o título de besta e só me considerarei feliz no dia em que ouvir louvor à minha passagem, coisa que se pareça com isto: “ali vai o maior camelo desta terra!” E, no dia afortunado em que tal coisa se der, poderás procurar-me porque serei uma influência no país. A dúvida que me retém é esta: como devo ir: de burro ou de cão?

Eu estava pasmado e o meu espanto cresceu de ponto quando Melchisedec enfiou na cabeça a máscara de burro e sobraçou um grosso volume:

— Que diz você? Roncou. Estou bem assim?

— Eu acho que tu estás doido, Melchisedec.

— Não te pergunto se estou doido, pergunto-te se estou bem como burro.

— Isso estás.

— Pois então, meu amigo, prepara-te para a surpresa.

— Que vais fazer?

— Vou ao ministro. Ponho-me de quatro pés, subo as escadas, ornejo diante do reposteiro, entro, escoucinho, e ...

— E sais corrido a pauladas como aquele burro da fábula que se meteu a fazer carícias.

— Então vou de cão... Filho, irrompeu de repente, eu preciso fazer pela vida, isto assim é que não pode continuar. É preciso transigir? Transijo. Os homens querem a mediocridade lisonjeira, seja feita a vontade dos homens.

— Vais renegar a ciência, relapso?

— A ciência? Tudo! O que eu quero é um emprego. Vou passar o resto da vida disfarçado em asno ou em cão ou alternativamente: em cão e em asno. Viverei como Pele de burro — em público besta quadrada, em casa, com o ferrolho corrido, filósofo espiritualista. E que pensas? A maior parte dos fantasiados que por ai anda esmoer uma ideia. Despe o princez, desmascaro-o e talvez encontres debaixo da belbutina um desgraçado que se atordoa ou um infeliz que tem fome. Já alguém observou que o carnaval, nos tempos de crise, é sempre deslumbrante — é que a loucura é proporcional ao desespero: há homens que bebem quando têm mágoas. Dizem que é a festa da Folia, a apoteose da Hipocrisia é que é. Como eu quantos haverá amanhã nas ruas? Enfim, nada tenho com os outros, dize lá — como devo ir: de burro ou de cão?

— Não sei, Melchisedec.

— Vou de cão...

Se os senhores encontrarem pelas ruas um sujeito pequenino, magrinho, com uma cabeçorra de cão, lastimem-no: é Melchisedec que anda cinicamente a mendigar emprego ou a ensaiar-se para um alto cargo.

Pobre Melchisedec! Não sabe o mísero que a gralha pode disfarçar-se em pavão mas o pavão... esse é que nunca se disfarçará em gralha. Com cabeça de cão ou de burro ele há de ser sempre o mesmo filósofo, o mesmo erudito, incompatível com as propinas gordas. Em todo o caso não lhe matemos a esperança — deixemo-lo iludido nesses três dias de ilusão.

— Burro ou cão... que animal!!!!

MANOEL VICTORINO

A infância de Manoel Victorino parece moldada no versículo do evangelista: “nonne hic est fabri filius?” Não era ele, como Jesus, filho de um artífice? Não foi em uma oficina que passou os seus primeiros anos serrando, acepilhando a madeira, afeiçoando-a a móvel, lixando-o, envernizando-o, com os pés nos montes farfalhantes de maravalhas, entre operários, seguindo os conselhos paternos como o sírio misericordioso ouvia as palavras do carpinteiro que, à sombra da vinha doméstica, enxameada de abelhas, escavacava, a enxó, os lenhos dos montes? A mesma cidade natal, alta, numa formosa situação dominando o mar liso, com a sua população mista e a sua verdura tão viçosa nos eidos e nos pomares lembra a Galileia messiânica que Amiano comparou ao Paraíso pela doçura do ar, pela pureza cerúlea do céu, pelo perfume das flores, pela beleza languida das mulheres.

Ali cresceu o infante no trabalho, entre os irmãos e os operários — com o homem simples que vinha do povo, com o tronco saído da floresta, o primeiro conservando ainda todas as tradições puras do passado, o segundo ainda a exalar o perfume silvestre das resinas — os representantes robustos das duas grandes forças humildes: a plebe e a selva.

Ali cresceu na virtuosa atividade e dali saiu para o Sanhedrin tornando-se, em pouco tempo, o mais arguto e o mais brilhante dos doutores.

Do passado não se desligou jamais renegando-o por vergonhoso — o seu prazer era mostrar, na sala nobre da sua residência, a cadeira que fizera na oficina paterna: era o seu brasão de orgulho aquele móvel.

Conhecendo a vida porque a vivera desde o grau mais modesto até o sólio mais alto, de cima, como se o coração lhe houvesse ficado na rasa planície de onde partira, tinha sempre os olhos abaixados para o sofrimento dos que fervilham obscuramente na miséria desconhecida e era por eles que a sua palavra ressoava ferindo toda a gama das angústias; era por eles que a sua pena, forte como uma clava e delicada como um plectro, rodopiava demolidora ou vibrava suavemente a harpa das elegias; era por eles que o seu gênio criava e a sua mesma força vinha daquela humildade tanto que, quando um adversário, querendo abatê-lo, referiu-se, com desprezo, à sua origem, vimo-lo sair mais alto daquela modéstia. O nada deu mais grandeza ao seu filho e do opróbrio da acusação rebentou o esplendor da defesa, como das chagas de Jesus saiu a glória da sua doutrina.

O povo devia amá-lo porque ele era o seu mais legítimo representante. No passado tinha apenas para mostrar a porta de uma oficina, mas, estendendo a pena, apontava o Futuro, cujas ondas ia apartando para levar a Canaã os que confiavam nos seu prestígio e na sua coragem.

Morreu pelejando, caiu na trincheira e, como o soldado fiel que, ao sentir-se ferido, procura, na confusão da batalha, a bandeira pela qual verteu a última gota de sangue, ele, na agonia, pediu ansioso: “Abram as janelas! Deixem-me ver o sol. Quero morrer vendo a luz!”.

Era o combatente que procurava com os olhos a bandeira sob a qual pelejara. Queria vê-la, ainda uma vez, como se pudesse levar para a sombra do túmulo a sua visão esplêndida do céu azul, da manhã iluminada em ouro pelo sol que subia. E foi, efetivamente, o seu lábaro, a Luz, na sua fulguração mais bela: a Verdade.

Pela verdade foi que ele surgiu entre os guerreiros da santa campanha da abolição. Era ainda estudante, conservava, talvez, nas mãos os calos da ferramenta quando lançou o seu grito de guerra correndo a juntar-se aos propagandistas da redenção O que ele foi como abolicionista dizem-no os seus escritos, repete-o o povo rebuscando na memória as palavras flamineas com que o seu patriotismo ou, melhor, a sua filantropia verberava a exploração cruel da gente negra.

Vencida a primeira batalha logo se empenhou, com o mesmo atrevimento, em outra, e foi dos que mais lutaram esquecendo interesses, e só visando o triunfo ideal e até a hora em que estrugiram os clarins da vitória ninguém o viu desfalecer, ninguém o encontrou repousando.

Como o Macchabeu estava sempre nos pontos mais arriscados e foi a sua ânsia nobre de refazer a cidade do Futuro, que o matou — ficou sob as ruínas quando, a grandes camarteladas, procurava desempecer os lugares tomados ainda por construções defeituosas para nelas fazer subir o edifício novo e admirável que sonhava.

O hebreu, filho de Matathias, caiu sob o paquiderme monstruoso que, partindo das alas sírias, incitado pelo cornaca, esmagava no campo a gente israelita. Cravando-lhe a espada no ventre o herói não mediu a força nem pôde escapar a tempo à queda da mole viva e foi por ela apanhado; assim ele, na luta, sem olhar as consequências, ouvindo apenas a voz do patriotismo, afrontou o perigo e, quando quis recuar, as forças depauperadas negaram-lhe a necessária energia e o vencedor ficou sob o peso do vencido.

Era um tipo de raça, um dos últimos representantes desses heróis em que tão fértil tem sido a gloriosa Bahia, que reúne nos seus filhos o brilho dos atenienses e a audácia dos lacedemônios.

O seu enterro foi uma apoteose, todas as representações populares acompanharam ao frio silêncio o despojo do grande homem como se nele vissem um viático que se recolhia. Foi a homenagem respeitosa com que os sofredores quiseram honrar aquele invólucro de onde saía, em clarões, como do sarçal montesino, o verbo eloquente da defesa e os protestos altivos contra o Erro.

Com Manoel Victorino desapareceu mais uma das glórias que nos orgulhavam.

Homem múltiplo ele era o sábio e o poeta, o fundibulário e o artista, o ciclope e o miniaturista.

De volta da sua viagem à Europa, reassumindo a cátedra de lente e tornando à clínica, arrebatava o seu auditório de alunos com a beleza da frase, sempre culta, com que deslindava todos os segredos da ciência e, à cabeceira dos enfermos, maravilhava os colegas com as audácias de alta cirurgia, recompondo, por meio da autoplastia, faces corroídas ou propondo e realizando resseções e ablações que pareciam loucuras. Terminada a operação, deixando o alívio àquele que gemia, purificando as mãos que haviam chafurdado em sangue e em ichor, sentava-se à mesa e o cirurgião desaparecia e no seu gabinete tudo se transformava: o tabix do esqueleto cobria-se de carnes, um sangue entrava a colorir os lábios que se entreabriam, onde só havia o rictos sinistro, olhos acendiam-se nas órbitas vazias, voltava o sorriso à face; o gesto, o movimento acionavam o que era inércia e o símbolo triste da Morte aparecia sob a feição risonha da própria Vida: era a Musa inspiradora! E a mão que havia, minutos antes, retalhado a carne, esborcinado a pústula, lá ia obediente à inspiração divina, traçando o período cintilante onde a ideia fulgurava facetada carinhosamente pelo capricho requintado de um artista magnífico.

Mas se o barbarizo se levantava nas ruas, se partiam justas queixas do meio do povo oprimido, ele deixava a sua torre de Marfim e, subindo ao posto de combate, com a fúria de um lapitha, era vê-lo lá de cima a arrojar catapultuosamente penhas sobre penhas como a ave monstruosa da lenda persa que, remigiando na altura, de azas largas, para vingar-se, subia penhascos até perto do sol e, lá de cima os deixava destruindo com eles esquadras nos mares e aldeias nas terras.

Morreu pobre como o homem da cabeça de ouro, de A. Daudet que, depois de haver enriquecido meio mundo com as preciosas lascas do seu crâneo, um dia, querendo comprar um par de botinas, levou os dedos à cabeça, que era o seu tesouro, e tirou-os ensanguentados, com umas miseráveis estrias de ouro... “Il y a par le monde de pauvres gens qui sont condamnés à vivre de leur cerveau, et payent en bel or fin, avec leur moele et leur substance, les moindres choses de la vie. C’est pour eux une douleur de chaque jour; et puis, quand ils sont las de soufrir...” e assim termina a Légende de l’home à la cervelle d’or.

O que morreu tinha ainda uma copiosa riqueza na grande mina mas dava-a toda aos que a pediam. Aqueles lábios não sabiam dizer não! E lá ia ele a todos os trabalhos, mostrando-se em todos os lugares, na hora do combate ou no instante da caridade — fulminando ou implorando, batendo-se pelos oprimidos ou pedindo para os pequeninos e para os valetudinários.

Na sua casa da rua Leite Leal, nas Laranjeiras, disse-me ele, uma noite, a propósito da literatura: “que era uma carreira ingrata, menos ingrata, todavia, que a política. Não me aconselhava a deixá-la porque eu poderia responder com o mesmo conselho e ele teria de calar-se e concluiu: esses idealismos são sempre fatais. A política é também uma poesia”.

Toda a vida desse extraordinário lutador de rija tempera, mas desprovido de couraça, porque não tinha o egoísmo para defender-lhe o corpo nem a indiferença a reforçar-lhe o coração, residia no cérebro que funcionava como um farol mostrando ora a luz branca da paz, ora a luz verde da esperança ou o clarão sanguíneo do combate.

A tempestade rugia em torno dele, tremenda, os vagalhões assaltavam o seu rochedo cuspindo-lhe a baba salgada da injúria, e ele, indiferente, continuava a alastrar o mar proceloso com o clarão salvador do seu gênio — por ele fugiam os navios evitando a costa tenebrosa salteada de rochedos e as alcíones vinham bater as azas de encontro à sua luz como se tentassem fazer a treva, mas só conseguiam magoar-se e caíam palpitantes nas rochas do seu pedestal. Às procelárias, gritavam, longe, na vaga, receando afrontar o esplendor e todos os monstros marinhos, que esperavam a carniça dos naufrágios, olhavam, com ódio impotente, aquela fulguração bendita que abria na ferrugínea densidão uma clara estrada por onde os navegantes pudessem levar seguramente os barcos frágeis.

Como não visse clarão de sol e a noite se prolongasse pelo dia o farol não se apagava e aclarando, resplandecendo, ia sendo minado na base pelos vagalhões assaltantes e, repentinamente, fragorosamente, eis que a torre desaba deixando em negra escuridão costa e o mar sinistro onde agora erram, entrechocando-se, os navios perdidos e alcíones, monstros e procelárias festejam, com alegria selvagem, a catástrofe.

Mísero e grande luzeiro, tiveste a sorte de Prometeu e mais do que o grande piedoso que viu apenas as filhas de Oceanos chorando lamentosamente em torno do seu presídio, tu tiveste toda a Pátria a chorar à volta do teu corpo, e se, como na linda poesia do grande lírico das Levantinas, as lágrimas que a tua morte arrancou corressem em uma só caudal por ela iria flutuando o teu esquife, como uma bari divina descendo na correnteza de um rio de saudade.

O VIOLINO

No recesso mais temeroso de uma embrenhada floresta onde o sol era tão raro como os passarinhos, avultava, calada e sinistra, alta e de muros de ferro, cercada por um fosso no fundo do qual luzia uma água morta, logradouro de rãs que, desde o cair das noites, alteravam o silêncio com um lúgubre coro, a alcáçova do gênio.

Homem algum, cavaleiro ou lenhador, por mais atrevido que fosse, jamais chegara àquele encantado sítio; as mesmas águias temerárias, ainda acossada pelas tormentas, evitavam, espavoridas, as ameias da mansão; só as estriges e os vampiros chirriavam, trissavam esvoaçando à volta das torres sombrias onde tinham os seus ninhos bem agasalhados.

Um exército de gnomos e enxames de silfos vigiavam a terra e o ar e, à beira dos rios, nas pedras das fontes, nixes e ondinos, com os cabelos verdes emaranhados de algas, faziam a guarda silente das águas e ai! de quem se aventurasse pelos meandros de tão fechado bosque — aquele que chegava a avistar o viso de uma das torres não olhava jamais o sol que redoura os campos.

Tão tristonha morada, perdida na selva, devia ser como um cárcere. Quem a visse, quem a percorresse, não lamentaria o sequestro do mundo: os salões, que eram incontáveis, variavam no feitio e na riqueza: neste os muros eram todos de prata, noutro eram de claro cristal oude oniz negro e rebrilhante. Os tetos resplandeciam como céus recamados de pedras finas — o ladrilho era todo de pórfiro, de aventurina, de topázio e de jalde. Fontes aromáticas, golfando sonoramente, refrescavam, perfumavam todos os aposentos e os jardins imensos, de áleas semeadas de mica, estavam sempre floridos e por eles, festivamente, cantavam legiões de pássaros mimosos graciosas corças e antílopes, juntos à beira dos lagos espelhentos, olhavam pensativamente os cisnes que nadavam.

Não havia, entretanto, em toda a imensa alcáçova, a sombra de uma ancila — todo o serviço era feito misteriosamente e a única criatura que habitava a vastidão era a mimosa e linda princesa Eudalia.

Filha de reis, tinha Eudalia cinco anos quando, uma tarde, passeando entre as aias nas alamedas do parque real, foi arrebatada por uma águia que, sem dar tempo a que acudissem, voou, voou tão alto que, quando as aias, saindo do espanto em que ficaram, ergueram os olhos, nada mais viram no espaço senão as nuvens que se acumulavam.

Foi uma consternação na corte e em todo o reino. Emissários saíram propondo prêmios a quem descobrisse o paradeiro da princesa, por fim lembrou-se o rei, para animar as pesquisas, de oferecer a mão de Eudalia e a coroa real a quem a conquistasse ao gênio, porque um feiticeiro, consultando os seus grandes livros mágicos, chegou a descobrir que o rausor era um gênio e dos mais poderosos. Foi tudo em vão.

Cobriu-se a corte de luto mas, com o correr dos anos, Eudalia foi esquecida — só a rainha a chorava quando, atravessando a câmara deserta, via a cama de fios de prata em que dantes sorria a princesinha.

Eudalia, entanto, crescia feliz na merencória alcáçova da selva. Nada lhe faltava — os seus desejos eram imediatamente satisfeitos.

A princípio ela espantava-se de ver a mesa servida sem que aparecessem criados, de ouvir músicas e cantos, de achar flores na sua câmara, de ser levada suavemente de um a outro ponto sem ver, sem sentir os braços que a transportavam pouco a pouco, porém, habituando-se à vida de encantos, achava naturais e simples todos os prodígios.

O gênio, esse, só de longe em longe lhe aparecia, porque andava, quase sempre, errando. Era um lindo mancebo, louro, de olhos azuis, mas triste, de uma tristeza que se comunicava à alma da formosa Eudalia, já então moça e linda.

Quando ele permanecia no castelo, tempo tão curto e tão feliz para Eudalia! ela cercava-o de carinhos, tomava-lhe ao colo a formosa cabeça e, ameigando-o, asseteava-o com perguntas sobre a sua vida, sobre o mistério daquela residência; ele, porém, mantinha o mutismo, e para evitar mais perguntas, pretextava uma viagem e levantava-se à pressa. Sempre, porém, que tinha de sair, chamava Eudalia e recomendava-lhe que respeitasse o salão que era fechado pela porta de bronze.

Sucedeu, porém, que, sendo, de uma das vezes, mais longa a demora do gênio e conhecendo Eudalia todas as maravilhas do solar, cresceu no seu coração o desejo de ver a sala proibida. Que estranhos e admiráveis tesouros haveria lá dentro? Durante quatro dias com as suas noites Eudalia lutou contra a curiosidade para não falhar à promessa que fizera; no quinto dia, porém, caminhando ao longo do corredor que levava à sala do mistério, desejou, com ânsia, ver o que nela se continha e, como todos os seus desejos eram imediatamente satisfeitos, logo se escancarou, sem rumor, a pesadíssima porta.

Eudalia, com o coração sobressaltado, entrou no recinto, que era iluminado por uma claridade azul e, correndo os olhos pelas paredes nuas, nada viu que reclamasse a sua atenção e sorriu dizendo consigo mesma: “foi, sem dúvida, para experimentar-me que ele proibiu que eu aqui entrasse...”

Caminhando, porém, descobriu a um canto um toro de madeira e num dístico estas palavras: “pedaço do tronco de Hain, a árvore do Bem e do Mal ...” perto estava um fino arco, com estes dizeres em letras de ouro: “Arco de Eros, o Amor”. Pendente da parede um nastro de filamentos: “Clinas do cavalo Pegas”, ao lado quatro fios compridos: “Cabos da nau Argos”, não longe um “osso da cauda de um delfim”, um “báculo de pastor ariano” e “os quatro cravos da cruz de Cristo, os que pregaram os membros do Messias e o que cravou a legenda irônica no tope do cruzeiro”.

Eudalia sorriu vendo aqueles estranhos objetos, e ainda sorria quando sentiu que alguma coisa lhe caía aos pés — olhou e viu uma finíssima serra de diamante e logo uma voz lhe disse:

“Serra o toro de Hain e tira duas lâminas bem finas, dá-lhes a forma de um gracioso tronco de mulher com a cintura bem justa — terás o Bem do amor e o mal do Ciúme. Adapta-lhe, na parte superior, o báculo do pastor ariano e na parte inferior o osso da cauda do delfim que conservam toda a bucólica dos campos e toda a melancolia dos mares. Grava na volta do báculo, dois em cada lado, os cravos da cruz e terás os pontos cardeais do sofrimento — prende nos cravos e liga-os ao osso do delfim os quatro cabos da nau Argos nos quais silvaram os quatro grandes ventos de Éolo. Toma o arco de Eros e nele estira de ponta a ponta as finas clinas brancas de Pégaso, que é o Ideal que arrebata. E, com o Amor e o Ideal, repassa os cabos retesados da nau Argos e terás uma companhia na solidão em que jazes”.

Calou-se a voz e Eudalia ficou largo tempo a pensar no seu conselho até que se resolveu a executar o que ela lhe dissera — e assim fez.

Dias e dias passaram sem que ela sentisse, entretida, como estava, naquele emprego, até que, ao cabo de uma semana trabalhosa, realizou o seu desejo — tinha o objeto nas mãos e, passando e repassando o arco pelos finos cabos, notou que alguma coisa gemia torturadamente. De novo a voz falou no mistério:

“Abre dois S na caixa do instrumento — um será o sorriso, outro será o soluço”. Assim fez Eudalia e, de novo, repassando suavemente o arco, teve como uma visão angélica — e os primeiros acordes abalaram de tal modo a alcáçova que todo o encanto desapareceu e a pesada mole aluiu com estrondo e todos os gnomos, silfos, nixes e ondinos que assombravam a floresta desapareceram da noite para o dia.

Justamente no momento em que soavam os primeiros acordes o gênio chegou ao castelo e descobriu a desobediência de Eudalia. Para vingar-se, então, por haver uma mulher, desvendado o seu segredo, brandiu a sua vara de encanto destruindo a alcáçova e arrasando a selva e, furioso, pronunciou estas palavras cruéis: “vivias feliz, desobedeceste à minha ordem — sofre para o todo sempre, alma curiosa, encerrada na própria carcérula que construíste”. E a alma de Eudalia, abandonando o divino corpo que habitava, passou-se para a caixa do objeto que pacientemente construíra com tudo quanto encontrara na misteriosa sala fechada pela porta ênea.

Anos e anos correram. Ninguém mais se lembrava da alcáçova do gênio quando, uma tarde, um menestrel errante, parando, para repousar entre as augustas ruínas, ouviu um piar mimoso — baixou os olhos e, entre as urzes fortes que livremente cresciam enfestoando a pedra enegrecida, descobriu um objeto de extravagante feitio — tomou-o curiosamente e pôs-se a examiná-lo e viu que alguma coisa havia dentro dele — um pássaro, talvez... não! ... Ao lado jazia um arco, o arco de Eros...

O menestrel, sem atinar com a utilidade de tais objetos, ia-os já abandonando quando uma voz suave pôs-se a dizer: “repousa o instrumento sobre o coração e agita-lhe as cordas com o fino arco que empunhas e ouvirás todas as melodias — desde o canto inocente da ave, porque muitas pousaram na árvore do Paraíso, até o ululo dos ventos que sopraram, vergando, os cabos da nau Argos. Nele acharás a poesia suave dos campos e a epopeia grandiosa das tormentas no mar, a voz do Amor e todos os sofrimentos que resumem os cravos que pregaram Cristo e o seu opróbrio, enfim ouvirás quanto cabe entre os dois polos do Sorriso e do Soluço que têm as suas passagens nos dois S talhados na caixa rubra, porque foi feita toda ela com finas lâminas tiradas da Árvore do Bem e do Mal.

“O que tens, menestrel, é o sacrário de todas as vozes e, dentro do sacrário, jaz a alma que afina a melodia dando-lhe a expressão. Como o ar que atravessa um jardim florido leva o perfume das flores assim os sons que repassam através de uma alma levam o sentimento”.

Ouviu o menestrel e, tomando o arco docemente, extasiadamente, pôs-se a aflorar as cordas do instrumento.

E foi assim que, na terra, apareceu o violino.

VIGÍLIA

“MADRID, 18,

“Hoje, pela manhã foi preso um indivíduo que atirou grandes e pesados ramos de flores à carruagem da princesa D. Maria Thereza, irmã de sua majestade o rei Afonso.

“Verificando-se que os ramos só continham flores e que o indivíduo era um simples entusiasmado, foi ele posto em liberdade”.

(Telegrama d'O País.)

À primeira luz da manhã ei-lo de pé, pálido, com fundas e roxas olheiras, dobrado de fadiga, esgotado pela vigília da noite longa, rolando sofredoramente, pavidamente, no leito real de baldaquino armoriado. Que noite angustiada! Não padeceria mais um réu que, na véspera do suplício, estirado no seco grabato, olhasse, de instante a instante, o alto e gradeado respiradouro à espera do primeiro alvor da madrugada mortal. Mísero príncipe!

De volta das festas, ansioso por um instante de silêncio e sossego, recolhe-se à sua câmara tapeçada.

As paredes sombrias estão cobertas de retratos dos grandes, dos fortes reis da Espanha: de Afonso o poeta até Carlos V o senhor do mundo e outros e outros perdendo-se na penumbra, uns vestindo veludos, outros acobertados de aço e, entre eles, como a própria bravura ibérica, o gênio guerreiro da península, o Campeador, com as mãos apoiadas no punho do montante, os olhos além, como a perscrutar o horizonte; e todas as figuras parecem fitar, com pena, o jovem rei em cujas veias um sangue fraco circula com o vagar de uma aguazinha de arroio que vai secando.

Lá fora, além dos muros espessos do palácio, velam as sentinelas armadas contendo o povo generoso que aclama o moço monarca, e ele ouve as vozes confusas da populaça, ouve os sons das charangas que passam, o atroar dos vivas que reboam e, de instante a instante, como a recordar a grande religiosidade da terra de Santo Ignácio e de Santa Thereza, os sinos bimbalham alegremente porque a Igreja celebra igualmente, com júbilo, a ascensão ao trono de mais um defensor da Fé. E ele ouve, escuta.

Vai a noite seguindo o seu curso, recama-se o céu de estrelas, a lua aparece, lua de Maio, clara e linda, de uma doce luz transparente. Um clarão amarelece o espaço como o livor de um incêndio — é que toda a cidade resplandece iluminada festejando o acontecimento de que é ele o protagonista. Ele é a causa única daquela alegria, foi para honrá-lo que outros príncipes deixaram os seus reinos seguidos de numerosa comitiva; que os embaixadores chegaram apressados, com presentes, de todas as partes do mundo; que os comboios se multiplicaram para conduzir os homens curiosos do fulgurante espetáculo.

Todos os palácios têm hóspedes de estirpe — os grandes de Espanha receberam e agasalharam representantes das nobres cortes, os hotéis regurgitam de forasteiros, as modestas locandas foram disputadas e todo esse movimento de simpatia fá-lo tremer apreensivo. Onde estariam eles?

Pouco a pouco a cidade vai escurecendo; ainda passam grupos, e, às vezes, uma estropeada de animais. O leito lá está a esperá-lo ...

Dormir!? E se alguém houvesse penetrado no palácio aproveitando-se de uma distração da guarda que anda com a atenção nas festas, esquecida dos seus deveres ou, quem sabe? Talvez mancomunada com os assassinos? Pode estar alguém ali dentro, à espera da hora silenciosa, com um punhal pronto para o crime.

A tremer, lento e cauto, ei-lo a correr os cantos, descalço, contendo o coração — afasta os pesados reposteiros, olha, inclina-se para espiar atrás dos moveis; desconfia e estira-se no soalho atapetado e olha para baixo da cama. Ha lá uma sombra, treme, recua e insiste — não, talvez se haja enganado. Volta a olhar: sim, foi engano. Levanta-se e, dando com um dos retratos, estremece — a figura de um guerreiro formidável parece sorrir com pena daquele mancebo fraco que anda, em pontas de pés, de canto a canto, espiando, perscrutando, examinando.

Ah! Aquele era da raça dos valentes que, ao brado dos esculcas, montava o árdego ginete e, descendo a viseira e enristando a lança, arremetia feroz contra as hostes soberbas. Aquele não tremia e, só com um brado, fazia recuar o inimigo mesquinho. Ele descendia daqueles heróis magníficos, era um rebento daquela raça viril, de conquistadores afoitos mas, pobre dele! Se para ser rei da Espanha lhe fosse necessário revestir todo o aceiro daquelas armaduras, peça a peça, desde o morrião até os sapatos de ferro e afivelar a espada, embraçar o escudo, empunhar a lança, então o mundo veria que a raça dos reis acabou no dia em que o último alfageme, açacalador de armas finas, deixou morrer o fogo na sua forja. E a noite segue.

Já os sinos não bimbalham festivamente. De espaço a espaço, no silêncio, um deles bate as horas lúgubres. O palácio dorme — lá fora velam as sentinelas armadas como as guardas de uma alcáçova sitiada.

E ele é o rei — sente na fronte a impressão da coroa, ouve ainda as vozes que entoaram a sua glorificação, vê o povo contido pelas alas militares e o sol, o admirável sol fazendo brilhar as polidas lâminas das baionetas que o defendem. É o rei...

Deita-se medrosamente, encolhido. Uma zoada enche-lhe os ouvidos como se neles tivesse as abelhas de umas colmeias assanhadas.

Repentinamente eriçaram-se-lhe os cabelos, um frêmito percorre-lhe o corpo, escancelam-se-lhe os olhos... que viu? Uma das figuras das telas como que se moveu levantando o braço rijo e, como o velho Eviradnus do poeta, deixando a armadura no palácio sinistro, lançou fora do quadro a mão calçada em guante agitando uma lança aguda. Foi ilusão... o velho rei lá está imóvel, olhando-o serenamente, com a piedosa ternura com que um avô contempla o pequenino neto. Foi ilusão; deita-se e, sem sono, fica-se a repassar todos os acontecimentos do dia. Ele é rei! Rei e senhor de toda aquela terra tradicional, rei daquele povo heroico que, tantas vezes, em tão esforçadas batalhas, em tão arriscadas expedições, levantara gloriosamente o pavilhão católico.

É rei e senhor nas cidades velhas como Toledo e nos campos fecundos, nas águas do mar que ainda refervem sobre os destroços da frota carregada de ouro e nas montanhas onde rolou o precioso sangue de Rolando e de Oliveiro, em cujas penhas parece haver ficado o eco clangoroso do elefante do paladino; nos vales férteis onde loureja o trigo e reverdece a vinha e nas covas asturianas onde se refugiaram os companheiros de Pelágio. Ele é rei!

Na sua infância diziam-lhe que ele governaria outros povos de ilhas longínquas, umas nos mares da Ásia, outras nos mares da América... depois chegaram homens feridos, rotos, sangrando e nunca mais lhe falaram de tais ilhas... também, para que mais território? Para que mais povos se ele tem a Espanha e os espanhóis?

E eles? Onde estariam eles, os inimigos? Com certeza, durante as festas, alguns, mais atrevidos, tentaram chegar ao seu carro e teriam realizado o seu intento se a tropa os não tivesse contido e porque não havia ele de os conhecer, a todos? Que fazia a polícia que os não prendia? E os carrascos da Espanha? Ah! Não, a Espanha não os tinha... E, como havia ele, o rei, de livrar-se daqueles homens que desejavam o seu sangue? Morrer! Morrer quando começava a reinar... E, ante os seus olhos, como numa dança fantástica, cruzam-se, rebrilhando, lâminas frias de ferros mortais. Sacode-se o infante, ergue-se e a visão horrível desvanece-se subitânea.

Ali mesmo em palácio devia haver conjurados... aquele velho lacaio que vira seu pai, o finado rei, ensaiar os primeiros passos nas alamedas do parque real ... Não, pobre velho! Se ele o olhava com aqueles olhos cheios de piedade... Por que lhe havia de querer mal, o bom velhinho? Não! Mas, os outros? Os alabardeiros? Os pajens, que, à noite, atravessavam sorrateiramente os longos corredores, cosendo se com as paredes como se não quisessem ser vistos? Mesmo entre as damas algumas há que lhe despertam suspeitas... E os guardas? Serão todos fiéis ao juramento que prestaram? Aqueles brados que quebram o silêncio da noite morna não serão um sinal convencionado? Porque não há de ele conhecer todos os conspiradores! Oh! A incerteza cruel! A dúvida tremenda! A eterna suspeita...

E aquele homem que rompeu a multidão para arrojar ao colo da princesa os dois grandes ramos de flores! Seria mesmo um representante do antigo e generoso povo de Espanha que estremecia os seus reis dando a vida por eles? Sim, era um humilde homem do povo que, querendo provar aos soberanos a sua fidelidade, talvez mesmo com o intuito de demonstrar que, apesar da sangrenta propaganda do anarquismo, há ainda na Espanha homens fiéis à tradição, resumira as suas despesas para reunir as pesetas necessárias à aquisição daquelas flores de Maio com que entusiasmado, saudou a princesa Maria Thereza.

A cavalheiresca cortesia não foi retribuída pela dama gentil mas por um solícito agente da segurança que logo se apoderou do homem — e os dois ramos foram repelidos do carro e, examinados cuidadosamente, os homens da polícia neles apenas encontraram flores — rosas, lírios, amarílis, fúcsias e, circundando, folhas de tênue e recortada avenca e era tudo.

O homem, de pé, entre esbirros, olhava acompanhando, com pena, a destruição dos lindos ramos: as pétalas espalhavam-se pelo chão, eram pisadas brutalmente e ele olhava, calado, lembrando-se de que, para comprar aquelas flores, privara-se de tanta coisa... tanta! E ali estava preso, maltratado, ameaçado como um criminoso.

Por fim, demonstrada a sua inocência pelas mesmas flores, deram-lhe liberdade. O mísero ficou ainda algum tempo cabisbaixo, a olhar e foi necessário que o mandassem sair para que se resolvesse a tomar o chapéu e partir.

Desceu as escadas vagarosamente, um sorriso triste franziu-lhe os lábios e, em baixo, detendo-se, ficou a pensar nas flores, as lindas flores, que lá estavam em cima amarfanhadas pelas mãos brutas dos agentes. Por fim, resolutamente, mergulhou na multidão e desapareceu:

Este episódio, que lhe fora narrado por um áulico, acode ao espírito do jovem rei e, pensando no homem simples, cuja bondade fora tão mal remunerada, Affonso sente o coração travado e uma voz, como da consciência, diz-lhe no íntimo da alma: “Esse homem nunca mais trará flores à passagem dos reis — é um despeitado e tem razão... Se o vires no teu caminho evita-o. E lembra-te, agora que és rei, que os ódios do povo nascem sempre de injustiças como essa que foi cometida com o teu súbdito”.

As sentinelas bradam e, como o rei se recline nos travesseiros, à escuta, ouve uns trêmulos de guitarras e vozes que entoam uma seguidilha alegre. É uma serenata que recolhe, rapazes. E sozinho, triste, entre as hirtas figuras dos seus ríspidos antepassados, o jovem rei da Espanha vai esquecendo o entusiasta das flores para acompanhar aquela alegria da mocidade, últimas notas da festa noturna, que lá vão pelas ruas adormecidas, fazendo estremecer de amor nos leitos puros as lindas moças enamoradas como no tempo romântico de D. Juan Tenório e, deixando-se cair pesadamente no leito, o rei suspira, invejando os mancebos que podem andar livremente, à noite, pelas ruas, cantando amores, ao luar.

RESSURREIÇÃO

Ave Maria! dobre a finados. O sol agoniza. Em torno dele, no leito do ocidente, prostram-se as nuvens, como odaliscas, recolhendo, com ânsia, a herança luminosa dos últimos esplendores.

Ei-las garridamente rolando na copiosa púrpura que escorre, todo o ocaso encarde-se e, à mesma terra, chegam restos da luz que esmaece no azul. As nuvens ficam vaidosas, qual mais dourada ou mais vermelha, escabujando nas ondas sanguíneas que, como um rastro, o sol deixa na altura. Iblis, porém, espreita as descuidadas e, tanto que o guerreiro tomba, logo se precipita no céu com a sua horda rapace roubando a claridade às nuvens resplandecentes.

Rouba com fúria, deixando-as pálidas como cadáveres e estende pelo céu lívido o crepe negro da noite, prega-o seguramente com os cravos das estrelas, espalha sobre ele a cal funerária da Via Láctea e, aqui, ali, punhados de nebulosas e, a lua, como um fantasma melancólico, vestindo o sudário branco, sai pelos ares tristes peregrinando solitariamente.

Veste-se a terra de luto e Iblis, sempre parodiando o Senhor, abre o sinistro aviário soltando nos ares os voadores trágicos. A estrige chirria, trissa o morcego, a falena esvoaça e miríades de insetos enxameiam a sombra como uma poeira viva: são miniaturas de vampiros, abelhas satânicas que fazem o seu mel com o sangue da flor humana.

Meia noite! Iblis domina. O silêncio é geral — só as águas, que brilham o seu viajar eterno, passam chorando pelos cavados leitos pedregosos. É a morte. Eis, porém, que no oriente aparece uma nesga rosada — desprende-se o crepe, rasga-se o funéreo velário. Canta um galo no campo, um sino vibra: Matinas! é a ressurreição — a aurora.

Ressurge o sol como uma semente que se abre — é um renovo primeiro, tenro, mal rompendo a densidão das nuvens, mas radia como uma haste que vai lançando as folhas, cresce, aclara, esplende, brilha, aquece rútilo, flameja, sobe no céu, impõe-se e, como sob uma árvore é a sombra que se espalha, sob o sol é o clarão dourado que irradia.

Vivo, lá vai, entanto, a caminho da morte — o ocaso é o alvo do oriente — a estrada da vida vai em rumo direito à sepultura e a sepultura que é? O canteiro de Deus.

Ressurge! Esta é a ordem indefectível, este é o imperativo divino: a morte é um novo princípio.

Para onde vão os rios? Vão ter ao mar, sobem ao céu, baixam em chuvas e em orvalho, entranham-se na terra e reaparecem em vigor na planta, em sabor no fruto, em aroma na flor; secam na planta, mirram no fruto, exalam-se na flor e morrem — vão renascer adiante, em outros seres, na eterna ressurreição, porque Deus, no Paraíso, fez uma só sementeira para toda a eternidade.

Não choremos a morte. Quem chora o sono? Quem lamenta uma criança que dorme? Espera-se que desperte; pois do sono maior espere-se a ressurreição.

Esperar o céu é ter consciência da eternidade, mas o céu é o aniquilamento pela inércia, é a morte pela esterilidade — o fim universal é a produção: Deus é ação.

A piedade pela morte é um sentimento do egoísmo humano — por que se lamenta o homem que geme? Simplesmente porque o gemido é a exteriorização do sofrimento como a lágrima; e quem nos diz que as coisas não sofrem? A pedra bruta ferida responde ao golpe flamejando, arma-se de raios como a nuvem, tem cerdas de fogo, que arroja; a árvore lacrimeja quando o machado a fende e entre os animais, que tão pouco nos merecem, há as mesmas manifestações que caracterizam a dor — a ave chora o ninho destruído, o paquiderme atroa a floresta com o rugido lamentoso quando encontra ferida a companheira — a dor é universal.

O que torna os simples e as coisas brutas superiores ao homem é a resignação e essa resignação é, talvez, uma prova a favor da utopia — o homem orgulha-se da sua inteligência mas, que sabe o homem da vida? Que ela é o princípio da morte e espera-a com tristeza — os animais e as coisas esperam-na com indiferença e, talvez, com ânsia, porque sabem que ela é um aperfeiçoamento. A árvore não chora a folha seca que cai — deixa-a ir desprendida: se ela fica nas suas raízes ali apodrece e a sua essência, a seiva, volta ao tronco mais forte e renasce na flor e no fruto, se o vento a leva para longe, em qualquer sítio que caia, acha meio de renascer voltando ao esplendor solar mais perfeita e mais linda.

A carniça que tresanda sob enxames de moscas é um viveiro embrionário — onde alveja um arcabouço há a semeadura fecunda — a sânie purifica-se no túmulo e o que foi nojo volta como delícia. O verme repugnante colora-se e desdobra as azas marchetadas durante o período da imobilidade — a larva jaz como morta no casulo antes de ser borboleta. Entre uma página e outra há uma pequenina solução de continuidade, longa como um bater de pálpebras — é a morte.

Em todas as religiões há um deus que sucumbe e renasce e os exegetas veem nisso uma reprodução do mito solar — os mesmos gregos, tão indiferentes à morte, choravam entoando o lino lamentoso por ocasião dos funerais de Adonis. O Cristianismo, ampliando as tradições antigas, não podia deixar essa poesia da morte e fez dela, não um simples episódio, mas o motivo essencial do seu culto.

Toda a cerimônia do rito tristonho converge para uma apoteose à ressurreição: as traições, as angústias, a agonia do horto, a marcha para o Calvário, a crucificação, a morte, são os degraus que levam à gloria suprema. O céu escurece quando a cabeça do mártir pende sobre o peito, faz-se noite em Jerusalém. Redoura-se o céu ao grito das mulheres anunciando o desaparecimento do corpo.

O mistério reproduz-se no rito como no mundo; a vida é uma continuação — cada existência individual representa o progresso de uma série de vidas — o homem é uma acumulação. “Onde estão os morins? Pergunta Schopenhauer, e responde: aqui, entre nós. Apesar da morte, a despeito da putrefação, eles e nós estamos unidos” e Pompeyo Gener acrescenta: “Assim se harmonizam o que nós poderíamos chamar a perpetuidade da matéria e a perpetuidade do espírito — uma produzindo formas mais a mais perfeitas, a outra fornecendo obras cada vez mais consideráveis. A herança das capacidades engendra seres cada dia mais aptos a pensarem, mais susceptíveis de um grande nível intelectual porque à capacidade e à aptidão que cada um recebeu ela ajunta o que adquiriu pela observação e pelo cálculo. De sorte que, pela herança conservadora e pelo progresso individual, a Humanidade encaminha-se gradualmente para a perfeição”.

Essa certeza da vida progressiva através da morte não basta para consolar a mãe que vê o filhinho morto, estendido entre rosas e ciriais, no caixãozinho enfeitado de franjas e galões dourados. Maria sabia que Jesus havia de ressuscitar, que sairia da cova, ao terceiro dia, entre anjos, na glória esplêndida da luz divina; entretanto, desfizeram-se-lhe os olhos em água e, enquanto durou o martírio, não se despegou dos pés da cruz, na atitude sublime e muda do Stabat.

Viesse um querubim à terra e dissesse à mãe infeliz que velava o cadáver do filhinho: “Seca o teu pranto, ele é anjo no céu...” ela, por certo, cairia de joelhos e, de mãos postas, pediria o filho preferindo vê-lo junto ao colo, a sugá-lo, a sabê-lo no céu, com uma harpa de ouro nas pequeninas mãos, entoando hinos ao Senhor.

O que faz a morte triste é o egoísmo humano.

O mundo é um grande túmulo tendo à cabeceira a cruz de Cristo e nós vivemos de exumações — somos como essa Amina do conto oriental: a morte restitui-nos a vida, a semente é que nos dá o pão e o linho, subindo transformada da cova em que a deixamos. A vida é uma ressurreição perene.

VALENTIM MAGALHÃES

Foi o meu primeiro adversário. Quando estreei no Rio, em 1883, publicando na Gazeta um conto, puramente descritivo, intitulado: Pai do céu, Valentim, que, então, redigia as Notas à margem, estranhou o meu estilo superabundante, traçou a minha adjetivação excessiva que prejudicava, sobremodo, a ideia, abafando-a: “a floresta não deixava ver as árvores”.

Eu, que estava no pleno viço dos meus saudosos vinte anos, melindrei-me com as observações do crítico e, ardendo em fúria, cheguei a pensar num desforço violento e escandaloso, mas um estupendo poeta épico (que acabou porteiro de uma secretaria), lembrou-me, como mais digno, o duelo: um duelo de morte, à espada, num bosque. Aplaudi a lembrança daquele que devia ser o rival de Camões se não tivesse degenerado em empregado subalterno e juntos fomos procurar certo romancista (que não medrou, por motivos que a História Literária não registra) e estabelecemos, com crueza, as condições do encontro: um de nós devia ficar no campo, esse um, está visto, seria o crítico.

Felizmente nesse tempo o meu apetite era famoso e foi necessário adiarmos a discussão sanguinosa para irmos ao jantar.

À mesa, devorando, a calma baixou sobre os árdegos espíritos e, ao café, já se não falava em duelo — o épico superiormente forte, do alto da sua soberba lira de sete cordas, sagrou-me o “primeiro prosador americano”, o romancista augurou-me um futuro deslumbrante e, com um vinho, cujo veneno até hoje me rói as entranhas, bebemos à grande Arte, desancamos toda a cáfila de imbecis (que eram os escritores feitos... Vingai-vos, novos de hoje, vingai-vos!) e saímos para a noite estrelada, carregados de glórias, cheios de elogios e de ensopado com repolho.

Os tempos correram levando, pouco a pouco, as minhas ilusões — eu começava a ver a realidade agreste. O épico esquecera as estâncias que não lhe davam, sequer, para o almoço de assobio, o romancista lançara ao fogo as páginas admiráveis do seu estupendo estudo psicológico, só eu me conservei imprudentemente fiel a Apolo, vivendo como Villon e como aqueles povos da fábula que se nutriam do aroma das flores.

Andava acesa uma grande guerra digna de ser cantada por um aedo — a gente literária dividira-se em dois campos — em um deles tinha sua tenda, que era a Semana, Valentim Magalhães, no outro avultava o pavilhão vermelho de Murat, ríspido como um Ajax — era a Vida Moderna, revista notável, não só pelas formosíssimas produções dos seus colaboradores como também pelas gravuras terríficas que estampava.

Eu, que ainda guardava rancor ao crítico, alistei-me na hoste do Murat e, força é dizer, as batalhas foram soberbas e, se a vitória nem sempre nos sorriu, podemos dizer, com orgulho, que não recuamos de adversários, armados pelos deuses, como Aquiles, que se chamavam: Bilac, Raymundo Corrêa, Alberto de Oliveira, Fontoura Xavier, Filinto de Almeida, Aluízio Azevedo, Luiz Delfino, Julia Lopes e o chefe Valentim Magalhães.

A fúria sonorosa de Ajax-Murat retumbava em alexandrinos formidáveis, Arthur Azevedo compunha os seus delicados contos em verso como essa formosa Soror Martha ou trazia-nos cenas de Molière, vertidas com a firmeza perfeita com que ele transporta de um idioma para outro as obras primas da poesia dramática e eu... eu, sei lá! eu vingava-me esvaziando tinteiros.

Bom tempo! Como havia entusiasmo! Como todos nós acreditávamos no futuro! Um dia Murat apareceu-me lívido, bradando contra o público ignominioso que não entendia o nosso jornal. Compreendi. A Vida Moderna estava morta... também, com tantos dragões, com tantas catástrofes na sua primeira página.... Enfim — entramos para a Maison Rouge e lá ao fundo, num salão obscuro, bebemos funebremente uma lutuosa cerveja preta.

A Semana continuou. Eu, sempre confiante, com um maço de originais debaixo do braço, procurava um canto sossegado para escrever o meu primeiro romance. Nos botequins não era possível, com a lufa-lufa dos fregueses, os berros dos caixeiros, toda a balbúrdia ruidosa do comércio, da politicagem, da maledicência e da literatice e assim andava eu errando quando, um dia, me apresentaram Valentim Magalhães.

Guardei certa reserva digna, ele expandiu-se, sorriu e — ó desvanecimento! — falou de todos os meus trabalhos publicados na A Vida Moderna. Lera-os...! Sorri também e, caminhando, fomos até a porta do Londres e o meu “cordial inimigo” apresentou-me a Alberto de Oliveira e a Lúcio de Mendonça e ficamos a conversar à porta até que o poeta jurista nos convidou para um grogue honesto. Entretivemo-nos a falar da Arte até as cinco horas da tarde e Valentim, que não perdia tempo, pasmou de que assim o tivéssemos agarrado. Levantou-se apressadamente; antes, porém, de despedir-se, sem frases rebuscadas, ofereceu-me a Semana. Eu mirei-o espantado.

— E a luta?

— Que luta? A luta foi maravilhosa, que diabo! Podemos falar, com orgulho, das nossas batalhas contra o inimigo comum: a indiferença pública. Pensa, talvez, você que não senti o desaparecimento de A Vida Moderna? Senti e muito, não só como escritor que presa as boas letras, mas também como proprietário de jornal, porque o público, interessado na polêmica, buscava, com ansiedade, a Semana e a leitura já se ia tornando um hábito. Nós estávamos criando o leitor. O Murat fez prodígios, vocês portaram-se como valentes. Agora, se queres continuar, lá tens a Semana, aquilo é uma casa de artistas: não há ali inimizades. Se o soneto do adversário é bom lá vai para a primeira página e com o louvor que merece. Efetivamente era assim.

Nas lutas em que o vi, várias vezes, empenhado, sempre contra adversários temíveis: Sylvio Romero, Murat, Mallet, Valentim guardava sempre uma atitude correta, fugindo, com gentileza, às retaliações e aos doestos e só ficando no terreno da discussão, no assunto da polêmica.

No período mais brilhante da sua vida literária que foi, incontestavelmente, o das Notas à margem, ele teve fulgurações. Por vezes a sua réplica, rápida e aguda, lembrava as vibrantes represálias de Camillo; o seu colorido tinha vida, a sua forma, se não brilhava pelo bem polido das facetas, era forte e de bom quilate. Ele era um polemista nervoso, que esgrimia com elegância e firmeza, atacando com lealdade e defendendo-se com graça. Teria, talvez, ficado com um tipo original e único em a nossa literatura se a grande febre de produzir, o imenso desejo de desdobrar-se não o houvesse afastado do verdadeiro terreno, no qual o seu espírito se sentia à vontade.

No conto, no romance, no teatro não foi o mesmo homem vigoroso que nos havia aparecido na polêmica e creio que só uma vez a sua alma de têmpera acerada conheceu o desalento; foi quando a Crítica, que esperava o momento para vingar-se, arremeteu impiedosa contra a Flor de sangue, romance que bem pouco valor tem e que, longe de ser um florão para o morto, é uma falha na sua obra pertinaz de batalhador.

Valentim via bem o real para o comentário, sabia dar a exata impressão de uma leitura, achava, ao primeiro olhar, a parte fraca de um escritor ou de uma obra, e, enristando a lança, era terrível o golpe que vibrava, mas a imaginação não o levara longe e, observando para o conto ou para o romance, ele, o minucioso, o homem da lente, que não perdia um detalhe, por mais insignificante que fosse, esquecia-se de tudo e, encantado, enamorado da própria obra, não lhe via os defeitos. Foi o que se deu com a Flor de sangue.

O nome de Valentim Magalhães há de ficar como um símbolo — outro não houve de mais coragem, de mais tenacidade, de mais perseverança. Quando todos desanimavam querendo pendurar as liras ou atirar ao valado os buris com que lavravam períodos ele chamava-os, levantava-lhes o ânimo, falava-lhes das suas lutas e, rindo, travava-lhes do braço e lá os ia levando para a Semana e só os deixava quando lhes arrancava a promessa de novos versos e de novas páginas de prosa. Foi, sobretudo, um agitador e muito do que por aí há deve a sua origem àquele eterno confiante, àquele fiel apolíneo que, mesmo abandonado, sem público, costumava a tanger a lira para seu próprio gozo.

Foi ele o instituidor dos concursos literários que nos trouxeram tantos artistas magníficos que viviam ignorados na província e mesmo na capital: João Ribeiro, o poeta-filólogo, publicou o seu primeiro conto, S. Bohemundo, uma joia, na Semana; lá tivemos o Caso do abade, de Garcia Redondo; João Luso forçou a popularidade com o Serafim tristonho. Francisca Julia, Julia Lopes, Julia Cortines, Zalina Rollin, Adelina Vieira foram apresentadas ao grande público pela folha de Valentim. Antônio Salles, o doce Luiz Rosa, Luiz Edmundo e tantos outros poetas de merecimento estrearam naquelas páginas sempre fulgurantes onde resplandeciam as crônicas do Bilac e de Filindal, o puro e devotado Felinto de Almeida, alma rara de homem, alma sensibilíssima do poeta.

Carlos Malheiros Dias, que é hoje uma das glórias da literatura portuguesa, a quem se quer dar o sceptro de ouro do príncipe harmonioso da forma, o admirável Queiroz, era dos mais assíduos frequentadores da Semana e, como se não bastassem à revista semanal tantas glórias, deve-lhe ainda a literatura o haver ela ido buscar ao silêncio em que se deixou ficar, depois da morte da Gazetinha, esse soberbo poeta, talvez o maior da América — Luiz Delfino, tão avaro em abrir os seus tesouros diante dos quais a gente tem a ilusão de estar .debruçado, como nos poemas da Índia, à beira de prefulgentes abismos de pedrarias em cujo fundo, entre fulvos leões de ouro, parthenias de virgens nuas dançam serenamente uma ronda sagrada, ao som de liras tangidas por deuses.

O escritor que morreu foi um chefe de movimento, foi o corifeu de uma teoria de poetas e de prosadores que hoje sustentam, com brio, a glória literária da Pátria e, se lhe não bastasse a sua copiosa bagagem para garantir-lhe o nome ele viria à frente dessa brilhante falange, claro e puro, como o de um guia que alumiou o caminho para a caravana.

Os que ainda se interessam pela vida intelectual do país devem sentir o desaparecimento desse robusto espírito que, apesar da indiferença, lutando esforçadamente pela vida, sempre achava uma hora no dia para pensar e escrever, apelando, com a sua palavra insinuante, para os que se deixavam vencer pelo desânimo para que voltassem à luta, retomando as liras silenciosas.

Valentim é um dos obreiros do grande período literário do Brasil e este louvor não lhe negarão os seus próprios inimigos, se é que ele deixou alguns; não creio porque, como eu, todos devem estar convencidos de que ele nunca vestiu armaduras senão para defender, como bom paladino, a Arte que era a sua dama Ideal, o seu supremo amor.

Eu, que vivi dentro da agitação fecunda desse bom tempo, devo também ao morto de ontem, ser hoje... um homem que não tem onde cair morto, porque tomou a sério a literatura ingrata.

O NEY

Realizou-se, no cemitério de S. João Baptista, no Rio, a piedosa cerimônia da exumação dos ossos de Paula Ney.

Eu estava presente quando as “maxilas do sepulcro” se fecharam sobre o corpo do generoso boêmio. A tarde era linda, uma tarde fresca e dourada. O arvoredo funéreo estava cheio de cigarras e, no alto e negro cruzeiro, brilhava ainda uma faixa de sol.

Éramos poucos, todos amigos do que ia ficar no seio da terra e, silenciosamente, como se adubássemos o alqueive que recebera a semente, íamo-nos transmitindo a pá de cal antes que a terra incubadora rolasse fechando o túmulo; depois recuamos e os coveiros começaram o seu triste serviço.

As cigarras cantavam, alegres coephoras que, dos altos ramos funerais, diziam adeus àquele irmão que também atravessara a vida descuidado, sem pensar nos invernos agrestes que trazem a fome. Cantavam, nem deviam chorar porque a morte fora para o excelente rapaz um descanso — tão consumido andava ele e tão triste, como um príncipe que houvesse perdido o seu reino.

Nos últimos tempos tornara-se melancólico, silencioso, — raro em raro atrevia um comentário. Encostado à porta do Paschoal, os olhos parados e tristes, ficava horas contemplando a multidão negando-se aos convites. A alguém que com ele insistia, uma tarde, para que fosse beber um vermute, respondeu:

— Obrigado, meu amigo — não posso aceitar: estou sem espírito; e encaramujou-se amuado.

Dias antes da morte, indo eu visitá-lo, ele chamou-me para junto do leito em que jazia, estendeu-me a mão fria e magra — mão generosa que era como uma ponte de misericórdia entre a riqueza e a miséria, porque recebia dos banqueiros para dar aos pobres, e ficou a olhar-me — enternecido e mudo, com os olhos a encherem-se-lhe de lágrimas; e disse, com uma voz surda e áspera, arrancada, a custo, do fundo do peito:

— Estou acabando, meu amigo. A Morte, em mim, está procedendo por partes: estou assistindo a uma mudança. Ela começou pelos extremos: tenho os pés frios, tão frios que não os sinto — estão mortos: parece que estou soterrado em neve até à cinta. Não como, não tenho apetite... Isto cá por dentro está vazio — os órgãos essenciais já perderam a energia, a Morte levou-a. Estou agora sentindo que arrastam alguma coisa no meu coração. Ah! Não há de ser fácil a remoção nesse órgão, é que nele eu tenho os móveis mais pesados: o coração era o gabinete de trabalho de minha alma. Imagina o mundo de afeições que nele eu tenho...! E suspirou: Como deve pesar o meu amor de filho, velho amor que nasceu comigo e que a saudade foi, aos poucos, aumentando. Minha pobre mãe! E os outros amores! Meus filhos, ela, vocês, o sol, as crianças... tudo isto! ... Quando saem das casas os móveis pesados, o soalho, por onde eles são levados de rastos, ficam vincados... é o que se está dando no meu coração. A Morte é brutal, meu amigo... que execução dolorosa! Como ela arrasta e como é lúgubre o vazio que se vai fazendo em mim...! Nunca imaginei que a minha vida acabasse assim, com um mandado de despejo. Sorriu tristemente e recostou-se nos travesseiros altos. Depois, tocando na garganta, continuou: Ouves a minha voz? Está rouca. Tu que a conheceste sonora deves ter pena da sua miséria atual. A Morte quis levá-la inteira, não pôde e fez com ela o mesmo que se faz a um grande móvel: desarmou-a e lá a vai levando aos pedaços. Foi primeiro o timbre — estou fanhoso, foi depois a dutilidade, estou áspero — resta-me o sarrido: falo como um asmático. Em pouco a Morte estará no cérebro abarcando as ideias e a divina Fantasia, que ocupa o altar-mor. É triste morrer assim, aos arrancos. Cair fulminado! Eis o meu ideal. Enfim... Quedou, cruzando as mãos. Que há de novo? Perguntou de repente, repuxando as cobertas. A Poesia indígena continua a proliferar? E a Política? E as mulheres?

— Tudo como deixaste, Ney.

— Não é possível: a imbecilidade deve ter produzido alguma coisa nova. Fala-me dos imbecis para que eu saia da vida sem saudade. Abriu os olhos como em ânsia e, surdamente, soerguendo-se, exclamou: Meus filhos! Que há de ser deles? Ah! Meu amigo, o que dói na morte é o desprendimento: os amores são as nossas raízes. Eu vou tranquilo — já dei balanço na vida: tenho um grande saldo a favor da alma e a benção de um sacerdote honesto... mas os pequenos? A Caridade anda muito atarefada e falta-lhe um repórter... como eu. Enfim... Deus está lá em cima e eu que tanto consegui dos homens ei de conseguir alguma coisa do Senhor, não te parece?

Quando me despedi ele exclamou, conservando a minha mão: Adeus! Eu disse: “Até logo!” O moribundo sorriu: Até logo! Vais suicidar-te? Adeus! Adeus!

De repente, com os olhos rebrilhantes, como se neles houvesse renascido a antiga centelha, filou-me e, rindo, com todo o corpo a tremer, pediu-me: Olha, vê se conténs F. Eu sei que ele anda a compor um necrológio para recitar à beira do meu túmulo, volta e meia está aqui a rondar-me, a beber inspiração. Compreendes que na minha posição de defunto, que é, com pouca diferença, a mesma de uma vítima do retrato a óleo, tenho de aturar resignado, mas vocês, meus amigos, que vão apanhar a maçada de uma viagem ao cemitério... não! Aquele canalha, que nunca conseguiu impingir-me um discurso, é muito capaz de aproveitar-se da minha morte para vingar-se... mas a pilhéria é que eu não ouço. Em todo o caso, por causa das dúvidas, não deixes falar senão depois que os coveiros houverem entupido a minha cova. E rimos. Dois dias depois extinguia-se serenamente o grande espírito. As suas últimas palavras foram ainda de piedade e fantásticas. Voltando-se para um dos amigos que o cercavam, rouquejou, referindo-se às crueldades praticadas em Canudos:

— Que ei de eu dizer ao Eterno quando ele interrogar-me: “Ney, como é que em teu país há um homem que enfurna mulheres e crianças para matá-las a querosene?” Confesso que, pela primeira vez na minha vida, quero dizer, na morte ficarei sem resposta... Logo depois, vagarosamente, arquejando, murmurou: Daqui a pouco estarei como o meu alfaiate: cadáver.

E assim desapareceu o gênio da pilhéria.

Paula Ney, cuja vida foi sempre misteriosa, era conhecido em ama roda muito restrita — o boêmio, esse era íntimo do povo: o banqueiro e o operário, a matrona e a cocote, o fidalgo e o mendigo tratavam-no com a mesma familiaridade — era o Ney, o alegre Ney, que fazia rir, mas o verdadeiro Ney que enxugava lágrimas, que levava criancinhas doentes aos consultórios dos médicos, que guiava os cegos nas ruas, que visitava enfermos em verdadeiras tocas de miséria, que fazia enterros à sua custa e que defendia os animais com o carinho piedoso de um brâmane, esse só era conhecido no reduzido grupo dos companheiros.

Trabalhávamos, uma vez, na tipografia Reynaud, onde era impresso O Meio: Mallet, escrevendo de pé, com o grande chapéu mosqueteiro, um imenso charuto a fumegar ao canto da boca, eu redigindo vagarosamente uma nota escandalosa, Ney, a vociferar contra a “sandice universal” quando assomou à porta uma velha, muito encarquilhada e tímida.

Ney, logo que deu por ela, precipitou-se e lá se ficou todo curvado cochichando, a gesticular com o pince-nez. De repente bramiu:

— Não senhora! Há de ser no sábado, neste sábado... senão... e rugiu ameaçador: meto-o na cadeia, a ferros. A ferros! Vá e diga-lhe isto: a ferros! E, tomando a velha pelo braço, inclinou-se e berrou-lhe ao ouvido: — Olhe, minha senhora, isto é uma canalha. Mulher não é melão que a gente cala para ver se está maduro. Diga-lhe que no sábado, às quatro horas, quero encontrá-lo pronto para a cerimônia. Os papéis estão arranjados, o padre está falado. No sábado! nem que chova raios, entendeu? Senão demito-o e meto-o na cadeia, a ferros. Ele sabe que sou homem para mais. Vá. O véu eu levo para salvar a moralidade do caso. E despediu a velhinha. Interrompendo, então, o nosso trabalho, esbravejou: — Comigo está enganado! Mallet voltou-se curioso:

— Que é? De que se trata? Quem é essa velha, Ney?

— Hein? A velha? Quem é? Homem, com franqueza... sei que é uma velha que a compulsória obriga a ser virtuosa. Procurou-me, há dias, lavada em lágrimas, pedindo-me que lhe salvasse a filha, uma linda pequena que abalara de casa com um amanuense. Pus os meus galfarros em campo e consegui descobrir o terno casal num chalé, no Engenho Novo. Entrei pelo ninho amoroso como o próprio símbolo da Honra e bradei: — “Olá, amiguinhos, não comprometam, a um tempo, com tamanho desplante, a gramática e a moral: o verbo amar é regular, nada de exceções arbitrárias...” e, intimando os pombinhos em nome da Lei, trouxe a pequena e dei ao marmanjo quinze dias para tratar dos papéis, sob pena de ser demitido e metido a ferros, numa fortaleza. Ah! porque se for preciso, vou a S. Cristóvão, lanço-me aos pés do imperador pedindo justiça. O tipo anda a adiar a coisa e ontem foi pedir moratória, a pretexto de falta de dinheiro. Há de casar no sábado, mesmo porque eu sou o padrinho e a pequena não tem tempo a perder. Há de casar no sábado!

— Mas que diabo tens tu com isso, Ney?

— Que tenho! Homem essa! Não tenho nada... mas é um desaforo. Que tenho! ... Tenho irmãs, sabe você? Tenho irmãs... Efetivamente, no sábado, às 2 horas da tarde, o Ney apresentou-se na tipografia enfarpelado para o casamento e com um lindo buquê de cravos brancos.

Cabem-lhe perfeitamente as palavras com que Philarète Chasles traçou o caráter estranho do poeta do Intermezzo:

“Heine est peuple; il est bohemien, et il l’avoue: bonhome et médisant, il en convient. Mais il est home. Il est même vulgaire à bon escient et j’aime mieux cela. Il pleure, il rit, il se desole. Redoutable et toujours, présente, mobile, incertaine et s’égarant sans cesse, en lui vit éclate et flamboie, come le feu follet sur les marais, la flamme de la passion sincere”.

Os que leram a notícia da trasladação dos seus ossos e que só conheceram o Ney das sátiras explosivas e dos paradoxos flamejantes muito devem ter pasmado sabendo que a Provedoria da Misericórdia resolveu realizar aquele meigo transporte em lembrança dos muitos e grandes benefícios prestados à santa instituição pelo grande estroina que parecia rir de tudo e que passava os dias às portas das lojas da rua do Ouvidor, não raro a pedir para os outros.

Generoso Ney, só os que privaram contigo podem falar da tua caridade mas não serei eu quem desvende os teus segredos. Descansa em Deus, tu que foste o melhor de todos nós, o mais escandaloso e o mais meigo, o mais implacável e o mais terno — abelha dourada que distribuía o mel e as ferroadas com a mesma liberalidade. Descansa em Deus, puro espírito.

O PEIXE

Logo que se espalhou a notícia da prisão de Jesus — nesse tempo não havia jornais de grande (nem de pequena) tiragem, mas havia mulheres — os discípulos que eram apontados, em Jerusalém, como cúmplices do nazareno, trataram de acautelar a vida, não porque receassem perdê-la — que era a vida amargurada que levavam comparada à outra, de tranquilidade e glória, que lhes prometera o Mestre excelente? — mas porque tinham uma missão a cumprir que era a de levarem aos mais remotos e rudes confins da terra a doce palavra tomada nos lábios do próprio Deus.

A polícia do sanhedrin, açulada por Malchus, que perdera uma orelha, varejava os khans das estradas, invadia os bazares que referviam nas verdes e floridas vertentes do monte das Oliveiras, trazia vigiada a casinha de Simão, na Bethânia, onde ainda durava o suave cheiro do óleo com que Maria untara os pés do moço amado e mantinha asseclas nas imediações das granjas de Gethsemani de onde o vento trazia um cheiro aborrecido e morno de azeite novo.

Os mesmos galileus, de antes tão dedicados ao filho do carpinteiro, bandearam-se covardemente e, como conheciam os lugares proferidos de Jesus, prestavam-se a guiar os esbirros, já subindo com eles aos velhos cedros da colina sob cuja fronde, à tarde, quando os imensos galhos se cobriam de pombas, os que deixavam os pilões e os tanques, lustrosos de óleo, iam repousar um momento olhando, ao longe, as aldeias caladas que as névoas azuis iam pouco a pouco abrumando, ou desciam às margens escarpadas e rumorosas da pedrenta torrente do Cedron onde moças cantavam entre linhos alvos, corados nas ervas cheirosas.

Jerusalém, a cidade maldita, era um perigoso sítio para quantos haviam acompanhado o mancebo divino que, trilhando as estradas de areia ou os caminhos pedregosos dos montes, espalhara, por toda aquela região amorável, a doutrina do amor e milagres.

Cephas, muito comprometido, ofereceu-se para agasalhar os companheiros em Cafarnaum, na sua miserável cabana de adobe, à margem do lago de Genezareth. Não havia riqueza mas o Senhor, mais de uma noite, cobrindo o rosto com o seu alvo manto, dormira tranquilamente sobre um estrame, perto das redes que tresandavam à maresia e, de manhã, quando os primeiros barcos, deslizando na areia, molhavam as negras proas na água transparente, abrindo os olhos, abençoara aqueles muros enegrecidos de fumo e aquele teto onde as cegonhas costumavam parar olhando os espaços azuis que o sol ia dourando.

Entre os galileus, das cinco cidades estariam a salvo da perseguição e, cumprida a dolente profecia, sairiam todos, cada qual a seu rumo, a espalhar a semente bendita que o divino apóstolo lhes deixara na alma.

A proposta do pescador foi aceita e, como a noite era negra e alta, logo foi resolvido que deviam aproveitar o sono da cidade para a fuga; e fugiram. Não diz a tradição como fizeram a viagem, ora atravessando campinas rasas, de grande esterilidade, sem água e sem sombra, ora galgando alcandores de rochas nuas que, ao sol, ardiam e queimavam como brasas ou passando em desfiladeiros altos, de pedra negra, fervilhantes de víboras que silvavam ameaçadoras, à beira das luras. — Chegaram a Cafarnaum ao cair da tarde quando os barcos recolhiam lentos com o peixe vivo saltando, no fundo da quilha, num resto de água que rolava.

Os pescadores, tanto que Cephas lhes dirigiu a palavra, logo o aclamaram com alvoroço e, esquecendo a pesca e a ceia que os esperava, quente e cheirosa, nos lares, às últimas luzes da tarde dourada, sentados em círculo na areia, pediram ao companheiro notícias do lindo moço que tantos milagres fizera naquelas paragens de simplicidade. E Cephas suspirando, com os olhos voltados para os lados de Jerusalém, anunciou aos pescadores a prisão do Messias.

Foi uma consternação entre a boa gente. Alguns, mais exaltados, falaram em partir para a cidade vil, com armas. Forçariam as portas, assassinariam os guardas e iriam arrancar Jesus às mãos dos seus algozes. Cephas, porém, que tinha experiência da vida, agitou a cabeça lustrosa, dizendo:

— Amigos meus, as coisas parecem muito fáceis quando as olhamos de longe — eu também tive ímpetos de levar tudo a gume de espada, cheguei mesmo a decepar a orelha de um soldado recalcitrante e teria debandado a guarda se o Mestre me não houvesse detido dizendo-me, com a sua voz doce e persuasiva: “Que não me opusesse à realização da profecia”. Embainhei a espada contendo a fúria e deixei-me ficar para um canto remoendo o meu ódio. Depois chegaram legionários cobertos de ferro, com lanças e, querem vocês saber, meus amigos? foi preciso que um galo cantasse três vezes entre as oliveiras de uma herdade para que eu recuperasse o ânimo que me havia abandonado. Ninguém imagina o efeito que produz no espírito de um homem a presença da polícia — é preciso ter sentido o que eu senti, eu que, vocês sabem, não sou medroso — afronto com calma as mais desabaladas tempestades e, mais de uma vez, atravessei sozinho o bosque de Tiberíades onde há feras que atacam... mas a polícia... não sei. Nós somos os depositários da palavra divina, continuou Cephas — se perecêssemos, quem espalharia entre os homens o gérmen da Nova Doutrina? Eu sei que vão crucificá-lo e, se não fosse a missão de que fui por ele incumbido, teria reclamado uma cruz, menor que a dele, porque sou um discípulo, mas com os mesmos cravos, no Calvário... Não devo, é preciso que me sacrifique pela sua Ordem — sou apóstolo, tenho de viver. E todos, em torno, lamentaram comovidamente a sorte daquele discípulo fiel que, por amor da doutrina e da salvação dos homens, deixara de morrer no monte, ao lado de Cristo e, sem parar, ferindo os pés nas pedras e nos espinhais dos ásperos caminhos, deixara Jerusalém a largas pernadas para refugiar-se em Cafarnaum.

Ora, em Cafarnaum os rebanhos eram raros e, quando se abatia uma rês, era um acontecimento de que se falava longamente desde Magdala até Chorazin. O lago nutria as populações que lhe ficavam à beira — peixe e frutas, mas não havia. Sabia disso Cephas e, caminhando vagarosamente, à brisa fresca da tarde, para a sua cabana toda aberta em frinchas, com erva brava pelos muros, foi preparando o espírito dos companheiros:

— Olhem, amigos meus, aqui não há os recursos fáceis de Jerusalém, isto é uma pobre aldeia de pescadores — há o bom peixe das águas e a boa fruta dos pomares e alguma caça gorda, no tempo dos patos, e é tudo: tenham vocês paciência, é pelo amor de Deus. E, empurrando a porta da cabana, notou que ela resistia como se a houvessem pregado; forçou-a mais rijamente, e lá a levou dentro com fragor.

Um ar úmido, tresandando a bolor, fez com que o apóstolo recuasse e, como um pescador aparecesse com um feixe de palhas embebidas em resina levantando uma chama rubra e crepitante, um bando de morcegos desprendeu-se das vigas e voou, perdendo-se nos ares melancólicos, toldados de brumas, que era o triste momento do cair da noite.

Cephas entrou seguido dos companheiros e como não houvesse pescado nem lume um velho ofereceu-se generosamente para fornecer-lhes a ceia e logo pela filha, uma linda moça morena e forte como um cedro novo do Líbano, lhes mandou duas fundas malgas onde, em molho corado e perfumado a coentro, apareciam as postas de um peixe alvo e gordo, que cheirava apetitosamente.

Sentaram-se os discípulos e, devorando, recordavam as passagens felizes do bom tempo — as tardes à sombra do cedro do Olivete ou no beiral das fontes onde se reuniam as raparigas, à hora em que os trituradores esmagam as azeitonas nas grandes fábricas de azeite de Gethsemani, os passeios à Bethphagé, as subidas à Bethânia. Alguns, ainda agarrados ao mundo, pensavam, com saudade, nas belezas da cidade vil — nos seus palácios, nos seus banhos, nos seus mercados e no formigar constante de homens que de manhã, à hora dos primeiros sons das buzinas romanas, entravam cantando, com os jumentos carregados de frutas, moças com ânforas de leite, gemores de farinha e gigos de ovos, outras com aviários de junco, as cabeças graciosamente ornadas de lírios, um ramo de rosas como a mostrar a divisão dos seios.

Lá fora, a lua silenciosa iluminava de alvo o lago adormecido e foi o mesmo Cephas o primeiro a falar no Mestre:

— A esta hora que fará Ele? suspirou.

—Talvez pense em nós.

— E nós aqui comendo este saboroso pescado que é o melhor de toda a Palestina...

— Eu comeria de bom grado um pouco de carneiro.

— E eu um bolo de farinha e mel ou um punhado de tâmaras.

— Contentemo-nos com o peixe que outra coisa não há nestes lugares que o Senhor visitou e amou e lembremo-nos de que se fazemos este sacrifício, que há de ser contado no céu, o Mestre amado sofre a injúria, sangra, expira, talvez, entre os soldados boçais do romano e a cáfila cruel dos sabujos do Sanhedrin.

Um largo e profundo suspiro abalou os velhos muros da cabana e as colheres raparam as malgas onde apenas restavam as espinhas chupadas e, como nada mais houvesse, os discípulos desceram à fonte e Cephas, juntando as mãos, com os olhos no céu, disse cheio de unção devota:

— Seja tudo pelo amor de Deus! E, enquanto se demoraram em Cafarnaum, Cephas e os seus companheiros não comeram mais que peixe do lago...

É por isso, para comemorar o sacrifício dos apóstolos que, durante a quaresma, o peixe é de preceito... Enfim, se não é por isso (bem pode ser que não seja porque essa tradição é muito contestada), deve ser por outro motivo, bem desagradável aos peixes que nada fizeram e que na semana santa têm a vida por um fio e custam os olhos da cara.

UM AUDAZ

A vida extraordinária desse robusto e alegre Steelman é das que se prestam às urdidas e complicadas páginas dos romances de aventuras, com imprevistos maravilhosos, rasgos admiráveis de energia e audácia e prodígios a cada passo.

Steelman tem sido tudo, conhece todos os gozos e não há dor nova para os seus nervos. Foi tatuado na Tartária: desenharam-lhe nas costas os mistérios da vida de um lama e inscreveram-lhe no peito, com um sortimento de finas e compridas agulhas, em três espaçados meses de tortura, um dos quatro livros da Moral de Confúcio.

Em Esmirna teve uma cultura de bálsamo; foi pastor de camelos no Teheran; curtiu peles numa aldeia pestífera da costa do Mar Vermelho; conduziu hostes negras de uma aringa ao deserto onde destroçou um bando rapace de beduínos que incendiava as culturas e furtava o gado, pregou num templo budista, passou sob a terra, nas margens do Ganges, com uma plantação de aveia a brotar sobre o túmulo em que o encerraram, vinte e tantos dias, sem sofrer, sem sentir, dormindo tranquilamente “no seio da morte”.

Numa povoação Tibetana, que era um imenso oásis de palmeiras, esteve nu, com uma leve tanga em torno dos rins, as mãos rijamente ligadas por uma corda de fibra de coqueiro, a cabeça curvada sobre um cepo, sob o gladio reluzente e curvo de um fanático.

Livrou-o da morte um prodígio do qual ficou referência memorável numa laje, em caracteres eternos, gravados fundamente, a ferro. Na ocasião em que o carrasco, agarrando, a mãos ambas, o alfanje largo, derreava o corpo para vibrar o golpe, uma cegonha, passando no ar, deixou cair do bico uma flor sobre a cabeça da vítima.

O carrasco ficou como de pedra, a olhar; a multidão tremeu e, repentinamente, com uma algazarra que chegou às montanhas, onde os penitentes queimavam lenhas aromáticas, entre cedros frondosos, as mulheres, numa fúria, descabeladas, aos ululos, arremeteram, derrubaram o carrasco, romperam, a dentes, as cordas rijas e, carregando Steelman, nu e pálido, entraram com ele no povoado, aclamando-o e, com a notícia do caso, apareceram adoradores, houve ideia de exigir-se um templo ao homem da tez rosada, moveram-se, dos mais fundos desertos, peregrinos com presentes e Steelman ficou como um deus, adorado, principalmente pelas mulheres, que lhe pediam fios de cabelos e da barba loura, razão pela qual esse homem admirável é calvo como Sócrates e glabro como um hierofante.

Nessa terra de trato rude e velhíssimos costumes andou ele, dous anos, representando uma divina hipóstase, e, o que maior tédio lhe punha na alma era não poder caminhar livremente porque, se aparecia nas vielas, com ânsia de ar, logo o povo correndo atropeladamente para forrar-lhe o caminho com as tangas, prostrava-se no pó da terra, seco e imundo, com um murmúrio de reza, beijando-lhe os pés nus, as canelas nuas, todo o seu corpo nu e ele tinha de seguir vagarosamente, rompendo aquela difícil muralha de homens, de mulheres e de crianças, babujado por aquelas bocas, beliscado por todos os dedos que não lhe deixavam um pelo curto nas carnes.

Só os cães se animavam a fitá-lo, alguns mesmo rosnavam farejando-lhe as pernas e ele voltava à sua choça derreado, com o braço direito pendido e esmorecido de tanto sacudir bênçãos sobre as cabeças devotas, sobre os mirrados campos para que se cobrissem de milho, sobre as águas escassas para que não cessassem de correr e ainda pelos ares para que os não toldassem as nuvens de gafanhotos.

Fugiu, com ódio e nojo, àquela gente espessa descendo o rio num barco de couro com uma rapariga e, chegando a uma cidade, já inglesa, onde havia gin e polícia, respirou largamente, com satisfação, quando se viu entre as mãos de quatro policemen severos por causa da sua nudez divina, contrária à moral e às leis inglesas.

Meteram-no em uma prisão sórdida onde passou uma semana, entre um faquir bêbedo e uma velha do deserto, douradora de víboras, que chorava e cantava versos de Firdusé.

Steelman, na pocilga, não se cansou de render graças a Deus que o livrara daquele martírio da adoração, restituindo-o à vida, com as suas leis exigentes, os seus cárceres sujos, as suas inflexíveis justiças e os seus grogues.

Na Rússia Steelman comprometeu-se no niilismo aliando-se, em pacto tremendo, aos impulsivos do otchaianié. Fez-se apóstolo da regeneração, adorou o mujik e preparou uma bomba que explodiu à beira da linha férrea dois segundos depois da passagem de um trem imperial e, uma tarde, à margem do Neva, depois de um conflito, foi espezinhado por um esquadrão de cossacos ficando sobre a neve, com o corpo em pandarecos, e uma costela a pedir solda.

Na Polônia, em Varsóvia, foi do partido dos libertadores e escreveu panfletos com o pseudônimo de Kosciusko. Foi membro da Máfia, na Itália; na Inglaterra alistou-se na “Salmtion army”; em França ateou uma jacquerie, abafada a tempo; apedrejou conventos na Espanha, dirigiu uma greve de cocheiros em Portugal, tentou incendiar o harém de Constantinopla...

Mas, a sua aventura maior foi em Dakar. Saltando nesse porto com a sua insaciável curiosidade de homens e de paisagens, foi seguindo, ao acaso, por entre choupanas e lixo, repelindo cães e negrinhos, a ver, a informar-se, debuxando no seu álbum trechos da terra seca e misérrima, negralhões em camisolas folgadas, negras de grandes e pendurados beiços, tetas moles e chatas e carapinhas altas como cocares.

As casas, umas locas, eram acaçapadas, algumas arriavam os muros frágeis fendidos, arrimando-se às árvores. Uma poeira quente embaçava o ar e, do labirinto lobrego daquela imensa arenga, saíam porcos grunhindo, cães gafados, ladrando, lotes de negrinhos nus, aos saltos, rinchavelhando.

Steelman ia seguindo, a olhar, mas, amolecido pelo bochorno, sentindo as pernas vergarem-se, já se decidia a voltar quando viu, por entre as árvores, alvejar uma casa, à cuja frente uma latada verde cobria de sombra duas mesas toscas e dois compridos bancos mal acepilhados.

Um homem de rotundo ventre, barbudo e sardento, fumava à porta. Steelman adiantou-se e percebeu, com alegria, que a casa era uma tasca: lá estavam as garrafas, as latas de conservas, pencas de frutos e, no seboso balcão, uma pipinha de Cristal com aguardente. Pareceu-lhe aquilo um oásis providencial e logo, dirigindo-se ao gordo homem, que era francês, pediu cerveja e charutos — só havia cerveja e infame; Steelman resignou-se e, abancando a uma das mesas, tirou o casaco, arregaçou as mangas da camisa e bebeu, depois estirou-se em um dos bancos e adormeceu. Quando acordou a luz era branda, cantavam cigarras, e uma brisa, cheirando a florestas, sacudia as palmas dos coqueiros. De repente, pálido, de olhos arregalados, boquiaberto, Steelman ficou como se houvesse avistado um leão ou uma serpente — é que uma ideia irrompera, súbita como uma pontada: o paquete! Ergueu-se assustado, pagou a cerveja choca e deitou a correr seguido de cães que ladravam e de moleques que riam, chegando à praia esfalfado justamente quando a lua, imensa e amarela, como de cera, subia pelo céu vazio: o paquete era um pequenino ponto no horizonte que logo desapareceu ficando no seu lugar, à flor das águas, uma estrelinha a brilhar.

As muitas e arriscadas aventuras deram a Steelman uma resignação invejável — duas pragas surdas e um leve encolher de ombros e o grande homem retrocedeu lamentando apenas a falta de charutos e o seu inseparável Homero.

Caminhando pelas ruelas apagadas onde começava o despejo, chafurdando em Iodo, pisando flácidas imundícies que se esparrimavam molemente sob os seus pés, chegou ao albergue onde o francês, na doçura da noite morna, com o cachimbo nos beiços, já bêbado, afagava a carapinha de uma negra lúbrica.

Entrou, contou a sua desgraça e pediu ceia e cama. A negra, num assomo de pudor, encolheu-se toda, escondendo nudezes e o francês, com um espanto grande no carão barbudo, pôs-se a resmungar — que fora mesmo uma desgraça aquela partida do paquete e que, para ceia, se podia arranjar umas bananas fritas em azeite. Steelman comeu as bananas e dormiu num catre, forrado de palha, num quarto contíguo ao do alberguista de onde, até adormecer, revoltado com aquela molície, ouviu a negra gemer e o homem fungar como um suíno no lodo.

Cedo, ainda escuro, Steelman saltou do catre, escancarou a porta e saiu à procura da água — não havia água, tudo era secura e miséria. As árvores pareciam cobertas de cinza, a terra era todo um cineral, as mesmas casas pareciam feitas de cinza amassada. Rugiu com ódio e, numa assanhada revolta, responsabilizando a França por aquele desconforto, jurou, no seu íntimo, tirar uma desforra tremenda conflagrando a negrada da Senegambia contra o governo da grande República que assim deixava uma das suas colônias sem água para um banho e sem um charuto.

Efetivamente, recolhendo ao albergue, meditou um vasto plano de conspiração que, numa hora de matança e de fogo, acabasse com a dominação francesa. Redigiu a proclamação e os primeiros decretos, lançou as bases de uma constituição liberal na qual, como legislador supremo, permitia a poligamia e a nudez e, com as suas notas no bolso, saiu a tramar.

Sabendo, por velha experiência, que não há povo, na face da terra, que se não julgue oprimido, Steelman dirigiu-se ao primeiro negro que encontrou, agachado junto a um poço, coçando as pernas; chamou-o com mistério e expôs-lhe a sua ideia. O negro, pasmado, esfolava, escalavrava as pernas com as unhas sem perceber palavra e foi necessário que o grande homem lhe dissesse claramente — que era preciso acabar com os franceses, queimar as casas dos franceses, não deixar na terra negra memória alguma dos franceses, juntando às palavras, como se as ilustrasse, a mímica mais precisa e feroz, para que o “comedor de carne de porco”, saltando e ululando, lhe atirasse os braços ao pescoço, comovido. E logo saiu a concitar os companheiros e, em pouco, toda a população, reunida num bosque, ouvia a leitura da proclamação sediciosa.

Facas reluziram, fimbos entrechocaram-se e, com um juramento solene, todos comprometeram-se a dar cabo dos brancos antes que outro sol luzisse e uma negra, com louvável patriotismo, rasgando a saia, que era de riscas vermelhas, ofereceu um trapo para bandeira. Steelman foi aclamado salvador da Senegambia e senhor absoluto de terra e mar, desde as carvoeiras do porto até as minas do sertão.

Infelizmente, porém, um negrote mais entusiasta ou mais bronco, sem paciência para esperar a hora propícia da meia noite, logo à tardinha, com um facalhão afiado, vociferando contra a França despótica, saiu à procura de franceses. Foi preso e, ante ameaças de torturas e de morte, denunciou a conspiração sem omitir a leitura da proclamação e o episódio da bandeira.

Steelman, vendo-se perdido, ganhou a floresta e, durante noventa e tantos dias de trabalhos e sustos, de misérias e dores, caminhou pelas brenhas, ouvindo silvos de serpentes e frémitos de tigres, nutrindo-se de frutos e de raízes, desalterando se em pântanos até que alcançou uma feitoria portuguesa de onde pôde passar a terras da Europa, como cozinheiro num brigue.

Esse homem raro que conhece toda a terra e que nela tem sido tudo, encontrando-me, nas vésperas da sua repentina partida, disse-me, com verdadeiro terror: “Meu amigo, só agora ao fim de trinta e tantos anos largamente vividos neste vastíssimo e descontente planeta, que tenho percorrido, como aquele herói do conto suábio, “sem conhecer o medo” vim tremer neste ponto superior da terra onde as árvores são sempre verdes e os homens sempre amarelos.

“Fui adorado por um povo forte e guerreiro que, antes de queimar resinas a meus pés, tentou arrancar-me a cabeça dos ombros; fui pastor de camelos, curtidor de couros, rás de uma horda niilista, socialista, anarquista e tudo mais que acaba em ista e que procura destruir a ordem social; preguei num templo, passei um mês num túmulo, tentei sublevar povos, fuzilei homens e leões, pisei constituições e serpentes, cavalguei príncipes e zebras, fiquei tostado aos sóis africanos, tiritei em covas de esquimós, combati na China por uma religião desconhecida e defendi os cristãos na Armênia, gemi em cárceres, três vezes a corda deu volta ao meu pescoço, fui tatuado, estive para sofrer uma operação decisiva que me desclassificaria e resisti a tudo sem empalidecer. Confesso-lhe, porém, que não me atrevo a ficar neste país excelente onde vim conhecer o que me parecia uma palavra vã — o medo. Saio daqui com medo, meu amigo, varado de medo”.

— E por quê? Perguntei.

— Por quê?! Pois não sabe que, seduzido por um homem, consenti em alistar-me e sou hoje eleitor? Francamente lhe digo — os que me admiram, os que andam a escrever louvores à minha coragem, não sabem que há políticos e eleitores nesta terra ou, se sabem, ignoram como aqui são feitas as eleições. Com uma cédula eleitoral, recebi uma caixa de armas, dois cunhetes, uma camisa de malha, o recibo que me garante sete palmos de terra no cemitério do Caju... e outros papéis. Não! antes a fera e os bárbaros.

E o intrépido Steelman tomou passagem para o Amazonas, constando que vai viver entre antropófagos. Os jornais, anunciando a sua partida, subordinaram a notícia ao título: “Um audaz”. Um audaz... Pois sim!

A PROPÓSITO DE FESTAS

Em torno do círculo eterno são vários e diferentes os caminhos da vida, mas as regiões que eles percorrem são invariavelmente as mesmas. A primeira — brumal — o ponto de partida, é a região da infância que coincide com a última — nivosa — região da velhice, como se fosse uma aurora d’aquela noite, um esbatimento suave daquela sombra. Segue-se — floreal, a região luminosa e alegre da adolescência, depois germinal, a fulgurante e cálida região da idade adulta que se inclina, em crepúsculo, para a treva tristonha.

Há uma larga e fácil estrada central, sem desvio, que liga os pontos extremos — é o caminho afortunado. Por ele seguem os felizes, os que fazem a travessia com descanso, sempre protegidos por sombras gratas. Ainda assim nem sempre os peregrinos alcançam a desejada meta porque não faltam ciladas, não rareiam abismos — as mesmas flores admiráveis que enfeitam e perfumam as margens estilam veneno, as águas límpidas dos lagos ocultam serpentes e sob as folhagens que se adensam em macios tapetes trescalantes, há vórtices que devoram os caminheiros incautos.

E quantos são os que se aberram, uns por ousados, outros por curiosos, ainda outros por ambiciosos abalsando-se e perdendo-se nos ínvios caminhos! Ah! Os ínvios caminhos...! Esses são estreitos — uns pedregosos, outros apuados de espinhos, outros alagados por imensos marnéis, outros ainda acidentados e todos estéreis, com raras fontes e árvores escassas mas, como vão por vários sítios, sempre com horizontes novos, umas vezes ladeando a estrada larga, outras vezes subindo em aclives fatigantes pelas serras escabrosas, descendo a floridos vales, são os que o Destino escolhe para os poetas, não só para que os cantem como também para que, com os seus cantos, deem coragem à turba numerosa dos infelizes que os trilham.

A estrada larga é mais fácil mas não é mais bela — a regularidade da sua beleza torna-a monótona. Os aspectos dos caminhos variam de instante a instante, os mesmos perigos encantam e o orgulho de os vencer já constitui um incentivo.

Há um lago, é necessário atravessá-lo, a empresa não é fácil, antes, porém, do arrojo o caminhante contempla extasiado as maravilhas que tornam o sítio admirável e, enquanto os olhos gozam, o sofrimento adormece... depois... à aventura! E, por todos esses caminhos vários, a Humanidade desfila em rumo ao seu destino.

As regiões, com os seus climas, com os seus aspectos próprios, essas não variam.

O feliz lembra-se vagamente da névoa tênue de que saiu para uma doce luz. Ó a alegre passagem! Como andava ligeiro e contente! como tudo lhe parecia delicioso! Não tinha cuidados nem tristes pensamentos, seguia cantando, por entre flores. Depois o sol, o vivo sol, os frutos corados vergando os ramos das árvores, um momento de repouso num sítio aprazível, um encontro idílico, por fim a doçura da tarde, o silêncio da noite e o serão à volta do fogo.

Felizes são os que podem achegar-se à lareira, felizes são os que sabem acumular o necessário combustível para a noite gelada. São como centelhas em torno dos corações dos velhos as cabecitas louras dos netinhos gárrulos, e, eles, buscando-os, sentem-se rejuvenescidos vendo nos cabelinhos anelados como lampejos do Sol da mocidade, o passado, tudo que foi, o irregressivo tempo.

Como os felizes gozam os infelizes — não à lareira, mas à beira de um fogo, às vezes mais vivo e mais alegre... Pois não é verdade que as criancinhas pobres riem mais francamente? E vendo-as os avozinhos recordam os transes difíceis, mas os mesmos espinhais florescem, o mesmo cardo dá a sua flor e não há vida miserável que não tenha, lá no fundo, como um lírio em águas de paul, a sua flor de poesia.

No extremo são todos os mesmos e, quando a noite entrevece, quem pôde saber, na multidão dos velhinhos trêmulos e engelhados, todos com as mesmas rugas na face e com as mesmas saudades no coração, quais foram os que vieram pela estrada fácil e quais os que tiveram de vencer os tropeços dos caminhos escabrosos? Na morte? Quem os distingue? São todos os mesmos pobres velhinhos.

O que lhes resta no fim da vida é essa saudade grande chamada tradição. E que é a tradição? É o lume que as gerações se transmitem, é o fogo sagrado que a Alma dos povos, como a antiga vestal, deve conservar sempre vivo. Todos os que viajam nos caminhos da vida trazem da peregrinação uma lembrança ou deixam ficar uma recordação.

Os poetas passam e deixam os seus hinos, os profetas deixam as religiões. Aqui fica a memória de um amor, ali a ruína de um templo.

Os velhos, à noite falam aos moços do que viram e eles, que veem? Que encontram? Tudo arrasado: a Poesia morta, a Beleza extinta e fazem a viagem sem uma impressão, sem uma alegria, sem um oásis onde se reúnam confraternizados e repousem celebrando o culto do Passado.

Não há memória de um só homem que tenha começado a viagem partindo da segunda região — todos vêm da névoa infantil, todos saem do mesmo ponto para que gozem todos os climas e tenham todas as impressões e é por isso que se perpetua no mundo o amor da Humanidade, é porque “em tudo há um pouco do passado”.

Nós caminhamos sobre túmulos: Como os antigos guerreiros para tomarem de assalto os muros das cidades iam subindo pela mortualha, fazendo de cada cadáver o degrau da escada, nós vencemos à custa do que foi — o dia de ontem é que nos deixa no amanhã, a noite, que é a morte, é que nos traz o dia — nas escadas, entre os degraus, há um vácuo como os túmulos.

E por que havemos nós de ser ingratos com esse Passado ao qual tudo devemos? Quem o não lastima? Quem o não invoca?

“Comme nous voudrions, ne fût-ce qu’un moment,

Revenir en arrière et, frissonants d’ivresse,

Parcourir de nouveau le meandre charmant

Que creuse en s’écoulant, dans nos cœurs la jeunesse!"

A alma rumina — no fim da vida ela apenas se alimenta de saudades.

Dir-se-á que os séculos não carecem de poesia — a Poesia é o espirito, é a mesma alma da Humanidade. Calem-se os poetas e o mundo, com a sua agitação frenética, ficará como um grande corpo de convulsionário rebolcando inconscientemente.

Agindo, o homem só atribui o seu trabalho à mecânica do corpo — é a mão que escreve, burila, debuxa, cava, semeia, vence, erige, destrói e abençoa. Ninguém no momento da ação, se preocupa com a alma, ela, entanto, é a ideia na frase, a expressão na figura, o sentimento na paisagem, a intenção no braço do cavador, a direção na destra do semeador, o esforço no punho do soldado; a simetria no escopro do arquiteto, a fúria no montante e o amor no gesto que perdoa e sagra.

Assim no progresso só se vê o produto material, ninguém penetra o segredo das coisas, que é a Poesia, criadora de Deus e da Liberdade, ubíqua como o próprio Deus.

A poesia não está só nos poemas, em tudo ela existe: sob a clâmide e sob a blusa, sob a farda e sob o amicto — ela é a alma... Guia, ela tem um Norte, o Ideal... e é porque ela o indica que a Humanidade caminha.

Todos os povos veneram a sua Poesia, quer seja ela a Ilíada ou os Niebelungen, quer seja a simples farândola no campo florido ou a suave vigília em torno de um rústico presepe. Essa poesia simples, popular, que nos vem de eras perdidas, modificando-se, sem todavia perder a beleza, constitui, entre os homens, um elo forte, robustecendo neles o sentimento patriótico. Quem não terá visto o emigrado triste, sentado pensativamente no limiar da casa em que se instalou no país novo, suspirar, olhando o céu estreitado, em noites santas, a pensar nas festas que se celebram nos campos de sua terra? Será o europeu mais rude do que nós outros? Não, entretanto, apesar da intensa cultura intelectual que o distingue, é ele o povo mais conservador das tradições, mais respeitador das coisas do Passado e esse respeito dá-lhe mais resistência à crença, prende-o mais à terra, conforta-o no desalento — como ele traz a sua religião, traz a sua poesia...

Só nós, só nós, povo de ontem, povo infante, nós que ainda nos achamos na primeira região: brumal, por uma vaidade ridícula ou por um triste indiferentismo que demonstra o nosso desinteresse pelas coisas pátrias, deixamos que pereçam essas tradições ingênuas, uns alegando que elas são restos de um culto pagão, superstições deprimentes, abusões aviltantes, outros porque entendem que o tempo é escasso para os negócios lucrativos e que essas festas infantis revelam ingenuidade, falta de ponderação.

Que o brasileiro é um povo triste sabem quantos visitam este alegre país, poucos, porém, ousam dizer a verdade, que ele é ...

Em tudo quanto produzimos o que logo se nota é a absoluta falta de sinceridade, nem pode haver tal virtude quando há imitação. A nossa Poesia é um reflexo — os nossos poetas vivem a gemer, não porque sofram, senão porque está em voga o gemido. Se a Arte se nubla com o nefelibatismo, surgem os nefelibatas e já temos os sinfonistas, os decadistas e uma série de bardos em ista que não valem um caracol. A verdadeira, a genuína Poesia brasileira raramente aparece e é preciso ter um grande nome para lançar à publicidade quatro ou cinco estrofes de um puro lirismo sem mescla de estrangeirice.

Somos um povo novo, devemos ter alegria e devemos cantá-la — só a Poesia espontânea vive, o arrebique é frágil. Não é inspiração que nos falta e a natureza aí está a oferecer-nos copiosas fontes mas... a França atrai-nos e, como nos vestimos à francesa, também poetamos à francesa. E vamos deixando morrer as tradições.

Antigamente, como eram divertidas essas festas de junho — Santo Antônio, S. João, S. Pedro... Quem as gozou deve lamentar a geração de agora, triste geração, triste e presumida, que não conheceu o encanto de uma noitada em torno da fogueira crepitante, a ouvir trovas e vaticínios, enquanto as névoas se confundiam com o fumo dos fogos e os estralos das bombas faziam com que não fosse ouvido o leve e amoroso rumor de um beijo.

Oh! O passado, as festas do passado...

Quem escreve estas linhas faz a travessia da vida por trilhos difíceis e muito lhe tem custado vencer certos trâmites pedregosos, mas não inveja os moços afortunados que vão pela estrada larga, mas sem encantos, saturados de filosofias e com mais descrenças e mais tédio na alma do que o frenético Timon de Atenas.

Ele soube ser criança: na idade de brincar brincou e, ainda hoje, diante de uma fogueira, lembrando-se do velho tempo, é bem possível que a saltasse bradando um viva! Ao santo festejado.

Mas o brasileiro começou pelo fim: É um povo que saiu da noite, como as estriges. Quando entrará ele na região da alvorada? E quando chegar à velhice, que dirá ele às novas gerações, ele que nada leva, ele que vai destruindo e apagando o que recebeu dos bons velhos d’antanho, a crença, o amor e as tradições?

Merencória velhice vai ser a tua, povo de velhos que ainda balbuciam.

A ÁRVORE

Dans les villes et dans les écoles l’esprit subtil et vain peut rire de l’âme de l'arbre. On n'en rit pas dans le désert, dans les climats cruels du nord ou du midi, où l’arbre est un sauveur.

On y sent bien le frère de l’home (Michelet)

Quem, como eu, teve um dia a fortuna de dormir agasalhado por uma floresta, mais antiga que a cruz nesta formosa e moça região da América, sentiu, por certo, a mesma impressão poderosa que avassalou o meu espírito quando, ao morrer da luz forte, ao nascer da luz branda, desde a beira do rio até o íntimo da selva, correu um sussurro manso como o suspiro amoroso da vegetação.

Os nossos canoeiros, acocorados em torno de um fogo de versas, as mãos estendidas acima da chama que as avermelhava como se as trespassasse, falava baixinho. A água lenta e cheia do rio deslizava com um leve murmúrio e, por vezes, longe, um pio de ave noturna feria o silêncio. As nossas redes oscilavam de galho a galho fazendo farfalhar a folhagem.

Esfriava. Docemente, no céu límpido, ia a lua subindo. Já a densa fronde alta estava toda forrada de alvo e, insinuando-se pelos escassilhos, atravessando as abertas, a claridade mística escorria pelos troncos, alastrava a alfombra, brilhava na água ou estendia-se no recesso do arvoredo ribeirinho figurando maravilhosas estruturas: Aqui era um adito de capela, com o altar atoalhado, os nichos brancos, como de mármore; ali eram ruínas dos castelos — as franças semelhavam muralhas aluídas, parapeitos ameados, torres que subiam talhadas em seteiras; e clarões, salteando o negror, criavam perspectivas fúnebres e fundas recuando aquelas fantasmagorias selvagens. Além era uma alvura que se destacava, perpendicular e esguia, fincada na treva como um cipó solitário. Mais longe, disseminadamente, esplendores colgando o negrume e a água lisa e dormente do rio espelhava todos aqueles aspectos estranhos recordando-me as descrições românticas do Reno onde os poetas vão abeberar a musa elegíaca, ao longo das margens tradicionais em que perduram, como arcabouços do passado, muros negros de castelos e elfos e ondinas, à noite, esvoaçando ou bailando, redizem lendas do velho tempo ou entoam bailadas melancólicas que fazem tremer o barqueiro retardatário ou assombram e enlouquecem o afoito caçador furtivo.

Meus companheiros dormiam; eu velava extasiado, olhando o céu por entre os ramos e parecia-me que as estrelas eram flores que desabrochavam na coma altíssima daquelas árvores. Por vezes, como se alguma se desfolhasse deixando cair uma pétala esplêndida, uma centelha descia trémula, bruxuleando e perdia-se... Vagalume errante, vagalume errante, ardentia alada dos oceanos de verdura.

Então senti, senti bem a vida grande e misteriosa das árvores.

A espaços era um crepitar, depois um estalido seco, e logo um hálito — era a brisa que passava... Seria a brisa ou o suspiro da selva pressaga? Pobres árvores acolhedoras, prisioneiras da terra, eu bem senti que vivíeis e vós, porque nos víeis ali, quisestes guardar reserva como o caçador surpreendido pela fera que, de bruços, contém a respiração enquanto sente o inimigo a farejá-lo. A vossa alma, que os gregos personificaram na hamadríada, não ousou deixar o recesso dos cernes, lá se ficou encolhida porque o homem cruel estava ali perto.

Debalde o luar magnífico brilhava, debalde as auras passavam, não procurastes corresponder ao apelo do mistério e a noite correu serena e casta, só os arbustos amaram, eles, os pequeninos, eu bem os senti que se abraçavam na sombra, junto às raízes dos jequitibás portentosos; mas, pela madrugada, um perfume forte, acre, estonteante, veio até mim, perturbador como uma sedução — vinha de longe, era a respiração ofegante das árvores que se amavam na brenha virgem, era o aroma nupcial da floresta, a exalação erótica dos vegetais. Era o amor poderoso e eterno da natureza, o amor fecundo, o amor criador que passava em eflúvio pelo bosque, multiplicando a beleza, a graça, a força e o benefício.

E porque se acautelavam tão pudicamente as árvores mais próximas? Porque sentiam o homem, o homem cruel, o encarniçado inimigo da sua generosa espécie. Ó se têm alma as árvores!

Alma é amor e que maiores provas de amor queremos que nos dê a árvore? Ela é a purificadora do ar que respiramos, ela é que nos garante a fonte que jorra para a nossa sede e para a rega dos campos, ela é a fiandeira de sóis — caem-lhe na copa os raios caniculares e ela, desfiando a flama, dá apenas o calor ao que se achega à sua sombra. Ela é a medicina, ela é a beleza cercando a moradia em que vivemos, ela é a nossa confidente discreta porque é sob os seus ramos que abrimos francamente o coração deixando livres as saudades e as reminiscências. Assim é a árvore viva.

Morta ela é tudo — o princípio e o fim: berço e esquife, e, entre esses dois polos, tudo mais é floresta: a casa e o templo, o leito nupcial e o altar, o carro que trilha os campos, o navio que sulca os mares, o cabo da enxada e a haste da lança, tudo é madeira, tudo é arvore, é a floresta.

Matai a árvore e tereis o vagueiro. A terra tem os seus nazires: Sansão tosquiado é impotente para a vingança, as regiões devastadas tornam-se desertos. E que vemos nós por todo este vasto Brasil que era uma floresta frondosa? A destruição inclemente. E porque vai tão encarniçadamente o homem à árvore, que foi a primeira geradora do lume nos tempos remotos do pastor ariano? Porque a árvore é um ser bruto, insensível e mudo. Ah! que se atentasses bem, lenhador, à morte de árvore, tal não dirias, homem de coração. Ao primeiro golpe do machado todo o colosso treme e os passarinhos, como a gente de uma cidade abalada por um terremoto, logo desertam os ninhos. Vai o segundo golpe ao mesmo lanho, afunda-o — eis a seiva a correr, é o sangue que se esvai; outro golpe e começa a árvore a gemer surdamente, doridamente — a sua folhagem agita-se como a acenar à clemência, os seus ramos debatem-se mas o lenhador, a mais e mais empenhado na crueldade, redobra os golpes e canta.

Em torno da que agoniza as outras parecem tremer como ovelhas num pátio de matadouro e, como se de uma a outra corra a notícia cruel, toda a floresta vibra prevendo a mesma sorte.

Por fim, a um golpe mais rijo, um estalo responde — é o estertor da árvore e o lenhador recua e fica a olhar... Lá vem pendendo a frondosa cabeça, inclina-se e um fragor levanta-se na mata; derruba-se hirta, roçando de raspão nas companheiras, a árvore ferida e cai estrondosamente esmagando os arbustos gerados à sua sombra. Cai e agoniza e leva dias agonizando até que se lhe vão secando as folhas, encolhendo, mirrando... então sim está morta a árvore.

E para que a sacrificas, homem de coração? Para o fogo... e secas a fonte da qual a vítima era como a ninfa protetora, e esterilizas o terreno que ela fecundava alimentando-o, como o pelicano, com o seu próprio sangue que ia nas folhas, que ia nas flores, que ia nos frutos. E, com a morte das árvores, lá se vão os animais e, em pouco, o que os descobridores viram como a região favorecida da fartura e da beleza não será mais que um campo arrasado, seco e triste, cavado em valetas que foram leitos de rios, brocado em grotas que foram nascentes e desamparado ao sol esterilizador...

Felizmente começa a reinvindicação e coube à criança iniciar a santa empresa. Para responder ao machado ai está a enxada nas mãos débeis dos infantes — mas a semente é como a esmola e a Terra é como Deus: dai-lhe um grão e ela vos responderá com a centena, plantai um renovo e ela vos gratificará com o milhão e ainda com prêmios maiores que são o ar puro, a água, a sombra, a medicina e com a sua beleza — assim a árvore demonstra a sua gratidão

Não tem alma e é grata! não tem alma e vinga-se ...

Eu, que tive a fortuna de dormir agasalhado por uma floresta, posso dizer-vos, crianças heroínas do renascimento, semeadoras benditas da segunda geração floral: fazei o bem às árvores que elas saberão corresponder à vossa caridade e lembrai-vos de que a festa que celebrais é o início de uma Redenção: renovar a flora é robustecer a Pátria da qual as florestas são os reservatórios de vida e de fortuna.

A GLÓRIA

O caminho tornava-se a mais e mais apertado e sombrio. Árvores de coma espessa esgalhavam a ramaria densa interceptando a passagem da luz. O solo, pedregoso e seco a princípio, ia-se tornando em mole alagadiço — vasto balseiro onde apodreciam folhas mortas. Aves sinistras voejavam pesadamente de galho a galho, negras, de enormes garras, com os bicos aduncos manchados de sangue. No interior havia um choro perene — talvez alguma fonte oculta a lacrimar.

De quando em quando um réptil aparecia — ora enroscado à beira da trilha estreita, vibrando a língua bífida ou mole, oscilando pendente de um ramo, como uma ponta de cipó.

O ar era úmido e tresandava à podridão. Não havia outro rumor senão o do ramalhar do arvoredo e o do choro misterioso que vinha, como um fúnebre presságio, do recesso do bosque. E o peregrino seguia.

Era um lindo mancebo louro — os cabelos caíam-lhe em bucres sobre os ombros, as suas mãos eram brancas e finas, o seu andar airoso. Seguia cantando, sem impressionar-se com o horror do sítio: animava-o a esperança de que, além daquela morta paragem, resplandecia no céu um sol eterno. Para alcançar, porém, o largo e formoso país da luz sempre viva, quantos sacrifícios teria ainda de sofrer!

Ia caminhando, a cantar, quando, de um calvo rochedo, desceu crocitando uma revoada de corvos famintos. Abriu o farnel e, para conter os voracíssimos animais, atirou-lhes a metade das provisões que levava. Foi o bastante para que, de todos os lados, acudissem, com uma grasnada aterradora, centenas de aves vulturinas, umas negras, outras vermelhas como se houvessem tingido as penas em sangue.

O peregrino, sem descorçoar, abriu a governita e desfez-se de tudo quanto levava e, enquanto os monstros debicavam gulosamente as provisões, lá ia ele, sempre a cantar, feliz com a esperança de ver-se, em breve, livre daquela passagem temerosa.

Mas, dentre o bosque uma voz silvante, que parecia retalhar o silêncio, pôs-se a dizer através de casquinadas sarcásticas:

“— Que há de ser de ti, mancebo imprudente? Julgas, talvez, que está próximo o termo da viagem? Muito tens ainda que andar e que sofrer. Desfazes o teu alforje, cedes tudo aos abutres e com que hás de saciar a tua fome quando ela apertar? A floresta é estéril, as árvores que vês nada produzem. Volta, ainda é tempo; retrocede antes que se desfaçam as tuas pegadas, que são o roteiro que te restituirá à vida feliz que abandonaste por um sonho ingrato. Não prossigas.

“Quanto mais avançares mais difícil se te tornará o regresso ao lar abandonado onde vivias feliz, entre os teus, à sombra das tuas árvores sempre em flor. Não te iludas! Essas aves bravias que vês, gordas, tão gordas que mal podem voar de um galho a outro, nutrem-se de imprudentes como tu. Outros, que têm ousado a travessia, têm ficado pelo caminho e, apodrecendo, vão formando esse atascal escuro no qual te chafurdas.

“Retrocede em tempo para que não tenhas a mesma sorte dos que te precederam”.

“Deixaste a luz tranquila, vais em busca da claridade maior mas, antes dela, infeliz, estão os horrores da selva mefítica, estão as perfídias, estão as maldades. As aves escarninhas zombarão de ti — seguirás perseguido pela assuada atroadora de todas e muitas, baixando, virão bicar-te as carnes como fizeram outrora ao filho de Japéto. Retrocede, imprudente.”

O peregrino ouvia a voz que vinha, como um oráculo, do fundo tenebroso do arvoredo e, indiferente, sorria. Que lhe importava o sofrimento se lá ao longe, alma da floresta, estava a compensação?

O terreno tornava-se mais encharcado — um cheiro acre de sangue subia do tremedal. Por vezes um crânio rolava ou eram tíbias que se levantavam hirtas entre as ervas do pau.

Que importava? Já os seus olhos divisavam uma réstea de luz, além — antes da tarde lá estaria: era a aberta que levava aos campos elísios.

Os outros haviam desanimado, ele não se deixaria vencer pela cobardia. Que esvoaçassem as gordas aves carniceiras, à noite todas se recolheriam às suas cavas, aos seus ninhos nos penhascos e ele, então, seguiria sossegadamente, a correr, vencendo distâncias.

Pensava assim quando um novo bando de aves precipitou-se das frondes, galrando. Nada mais lhe restava e como havia o infeliz de saciar os abutres? As aves adejavam ameaçadoramente em torno da sua cabeça loura, investiam com estrondoso bater de azas; ele procurava espantá-las, agitando a capa que levava e que era o seu único agasalho; as aves, porém, rasgaram-na com as garras e às bicadas reduzindo-a a tiras; depois atiraram-se-lhe ao corpo, e estraçalharam-lhe as roupas e ele sentiu nas carnes o acúleo dos primeiros bicos. Pensou, então, que se atirasse aos seus perseguidores um pedaço de carne, enquanto eles a disputassem, poderia caminhar tranquilo. Mas onde havia de encontrar, naquela esterilidade, a carne de que carecia para repastar os abutres? Deteve-se um momento, encostado a uma árvore, em atitude de defesa. A árvore, porém, estilava uma resina venenosa cujo aroma matava.

O peregrino sentia-se abalado: vertigens seguidas enfraqueciam-no, perturbava-se-lhe a vista, vergavam-se-lhe as pernas. Notou, então, que havia mais perigo naquele refúgio do que no meio agitado das aves vorazes e, atordoado, lançou-se afoitamente a caminho.

Seguia quando se viu, de novo, cercado pelos monstros; foi então que resolveu engodá-los atirando-lhes tassalhos da própria carne e, arrancando da cinta uma adaga afiada, pôs-se a retalhar o corpo jogando aos animais postas ensanguentadas.

Foi uma alegria satânica no bando alado e, como se o cheiro do sangue fresco chegasse além, outras aves surgiram precipitadas, com um galrar horrendo, e, enquanto disputavam a carne que ele lançara, o peregrino seguia.

Não estava longe o termo da viagem — lá brilhava, por entre a luzida folhagem, a luz sem crepúsculo, o esplendor sem ocaso. Mais um pouco de ânimo e venceria aquela passagem onde tantos haviam sucumbido. Lá ia.

Repentinamente, a mesma voz, que lhe falara à entrada da floresta, tornou com mais sarcasmo, vindo, como um canto de pássaro, da ramaria mais alta de uma árvore frondosa e negra.

“Volta, peregrino ousado. Vê que já se te tornou necessário o sacrifício — é com a tua própria carne que vais comprando os passos nesse caminho, teu sangue encharca o terreno e, dentro em pouco, não terás resistência para o menor movimento. Aí vem a noite; repousa um instante e, quando as aves adormecerem, retrocede. Não tens saudade da terra em que nasceste? Aqui tudo é hostil, lá tudo é propício. Aqui as árvores envenenam, o ar que se respira é nauseabundo, a água, longe de aplacar a sede, aumenta-a e é como um fogo que abrasa as entranhas. Se saíres do alagadiço em que te vais enxurdando encontrarás o pedregulho agudo que rasgará os pés e os espinhos que te romperão as carnes. Volta! espera a noite e volta.

“A esta hora os teus, que além deixaste, gozam os favores da primavera cheirosa. Teus filhos brincam porque são inocentes e, como tu lhes disseste que lhes levarias brinquedos quando regressasses, fazem castelos dourados saltando na relva. O mais novo chama por ti na sua linguagem indecisa alongando os olhinhos para o lado em que o sol morre. Tua esposa suspira — talvez que o coração, que adivinha, lhe esteja a contar os teus sofrimentos. Espera a noite e volta.

“Não te iludas com o sonho. A vida é a tranquilidade e mais feliz é o pastor que tem um pouco de queijo negro e água da fonte e não deseja senão a madrugada e as estrelas do que o milionário que ambiciona — e tu és o maior dos ambiciosos. Volta!”

O peregrino ouvia, mas os seus olhos não se tiravam do ponto luminoso que fulgurava ao longe. Ia-se-lhe o sangue pelas muitas feridas, doíam-lhe os pés, a fadiga tornava-o vagaroso, ainda assim lá ia ele sorrindo e cantando.

“Mais um pouco, dizia, mais um pouco, e viverei como a própria Vida — meu nome ficará como um esplendor eterno. Que importa a dor? O que sofre é o corpo, mas, para que quero eu o corpo senão para que conduza minha alma? E é ela que vai à vitória. A tranquilidade, sim, a tranquilidade é deliciosa mas o grande Bem lá está, já o diviso daqui. Mais um esforço e, antes da noite, eu estarei repousando no campo de flores imarcescíveis — e lá se renovará o meu corpo, um sangue mais forte me encherá as veias, sangue eterno, feito de luz, como esse que purpurina o céu nas claras manhãs e nas tardes luminosas. Que importa a carne que vai ficando pelo caminho no bico e nas garras dos abutres? Que importa o sangue que jorra das feridas abertas? A glória é uma ascensão e eu faço como os que tentam remontar às nuvens: alijo a carga inútil. Eia! Um pouco mais e será minha a vitória”.

Caminhava, mas um novo bando de aves pôs-lhe cerco; não hesitou: retalhou-se e, atirando a um lado e a outro o pasto vivo, foi seguindo.

Já era escuro na brenha, sinistro, lá longe, porém, fulgurava sempre o pérfido esplendor e nele levava o caminhante os olhos postos.

“Mais um pouco! Que me não traíam as forças agora que estou a chegar ao termo da jornada. Que me fique nas veias uma só gota de sangue e com ela irei ao extremo da viagem”.

Mas os olhos empanavam-se-lhe, dobravam-se-lhe os joelhos, vacilava indo de encontro às árvores e aos seus ouvidos chegava um rumor confuso como o do longínquo bater do mar.

Deteve-se encostado a um tronco, olhando — os abutres cercaram-no a princípio medrosos; mas o primeiro avançou, logo outro o seguiu, outro, mais outro e, atirando-se todos ao corpo do peregrino, começaram às frenéticas bicadas.

Ele ainda tentou reagir mas faleceram-lhe as forças, os braços penderam moles ao longo do corpo aberto em chagas. Passou-lhe, então, na saudade, a visão do lar que abandonara — lembrou-se da terra amiga que deixara, da esposa, dos pequeninos filhos, mas a visão foi rápida porque logo os olhos se voltaram para o ponto luminoso que parecia estar tão perto, a uns passos curtos daquele sítio de morte.

Súbito, de todos os meandros do bosque romperam risos sarcásticos e o peregrino, só então, chorou, porque em verdade, doíam-lhe mais aqueles risos do que as bicadas das aves.

Esmorecia; ia-se-lhe o corpo curvando e tombou no atascal e, no momento em que exalava o derradeiro suspiro, pareceu-lhe ouvir a voz oracular que saía do bosque repetindo as palavras que dissera:

“Que há de ser de ti, mancebo imprudente? Julgas, talvez, que está próximo o termo da viagem? Muito tens ainda que andar e que sofrer...”.

Era outro que vinha ousadamente, trilhando o mesmo caminho ingrato que levava à gloria.

Que perecesse aquele, outros que perecessem, o caminho há de ter sempre andejos que por ele sigam, afrontando tormentos, de olhos postos no além, na eterna luz que fulgura.

FIM