Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

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ANTHERO DE QUENTAL

A BÍBLIA DA HUMANIDADE

BARCELLOS

Typographia da Aurora do Cavado

Editor—R. V.

1895

Tiragem apenas de 100 exemplares:

20 em papel de linho.

80 em papel d'algodão.

N.º___

Colaborou Antero do Quental, assiduamente, em verso e prosa, com João de Deus e outros vultos literários da geração de 1864, no Século XIX, periódico que nesse ano se publicou em Penafiel, sob o influxo e direção de Germano Vieira Meirelles, seu condiscípulo na Universidade, como ele formado em Direito no ano de 1863, um dos mais pujantes e prometedores talentos dessa geração, com cedo roubado ao renome que por certo conquistaria, se a vida lhe fora mais longa, no mundo das letras e da política.

Entre outros escritos de Antero aí saídos, lugar mui saliente ocupa A Bíblia da Humanidade, trabalho filosófico de ancha envergadura e largos horizontes, que pena é ter ficado incompleto.

Não obstante isto entendi que deveria ele entrar, por seu incontestado valor, na coleção, em que tão piedosamente ponho empenho, de todas as suas obras esparsas, e para o presente opúsculo o traslado. Constitui ele já o duodécimo da mesma coleção, e no intento prosseguirei eu de a esta trazer tudo o que de Antero se não ache publicado em volume sobre si.

Nenhum interesse material me açula neste meu propósito, que nem um só dos exemplares de qualquer dos opúsculos, que vou fazendo sair a lume, é exposto à venda, mas apenas e só nele me anima o veemente desejo de reunir e facilitar materiais para uma edição completa da obra de Antero do Quental, edição em que não ficariam, creio eu, na sombra e nem sequer na penumbra, alguns dos seus trabalhos ainda não reunidos em volume, e alguns até incompletos, tão radiosa a luz que deles ressalta.

RODRIGO VELLOSO

A BÍBLIA DA HUMANIDADE

I

Dentro do homem existe um Deus desconhecido, não sei qual, mas existe — dizia Sócrates soletrando com os olhos da razão, à luz serena do céu da Grécia, o problema do destino humano. E Cristo com os olhos de fé lia no horizonte anuviado das visões do profeta esta outra palavra de consolação — dentro do homem está o reino dos céus. Profundo, altíssimo, acordo de dois gênios tão distantes pela pátria, pela raça, pela tradição, por todos os abismos que uma fatalidade misteriosa cavou entre os irmãos infelizes, violentamente separados, duma mesma família! Dos dois polos extremos da história antiga através dos mares insondáveis, através dos tempos tenebrosos, o gênio luminoso e humano das raças indicas e o gênio sombrio, mas profundo, dos povos semíticos, se enviam como primeiro mas firme penhor da futura unidade, esta saudação fraternal, palavra de vida que o mundo esperava na angustia do seu caos — o homem é um Deus que se ignora.

Grande e soberana consolação a de ver essa luz de concórdia raiar do ponto do horizonte aonde menos se esperava, de ver uma vez unidos, conciliados esses dois extremos inimigos, esses dois espíritos rivais cuja luta entristecia o mundo, ecoava como um tremendo dobre funeral do coração retalhado da humanidade antiga! Os combatentes no maior ardor da peleja, fitam-se, encaram-se com pasmo, e sentem as mãos abrirem-se para deixar cair o ferro fratricida. Estendem os braços... somos irmãos!

Primeiro encontro, santo e puríssimo dos prometidos da história! Manhã suave dos primeiros sorrisos, dos olhares tímidos mas leais desses noivos formosíssimos, que o tempo aproximava assim para o casamento misterioso das raças!

Não há no mundo palácio do rei digno de lhes escutar as primeiras e sublimes confidencias! só um templo, alto como a cúpula do céu, largo como o voo do desejo puro, como a esperança do primeiro e inocente ideal humano.

Esse templo tiveram-no. Naquela palavra de dois loucos se encerra tudo. Nenhuma montanha tão alta, aonde a olho nu se aviste Deus, como o voo desta frase, a maior revelação que jamais ouvirá o mundo — dentro do homem está Deus. —

II

Este fato único, aos olhos dos que leem a história nas letras impalpáveis mas luminosas das ideias, e não nos hieroglíficos bárbaros e confusos dos acontecimentos fatais, basta a explicar o mistério que segue tudo o que depois virá.

A adopção do ideal hebraico pelo gênio grego: o cristianismo, misterioso hospede oriental recebido com amor sob o teto cheio de luz do Ocidente; Jesus sentado entre os filósofos da Alexandria escutado e aplaudido no Agora de Athenas; Cristo descendo da sua cruz da Judeia para, subindo ao Capitólio romano, estender os braços e tomar posse do mundo — este drama da fortuna inexplicada dum Deus desconhecido, esta Odisseia das peregrinações da religião dum mundo, acolhida, amada entre os cultos doutro mundo tão distante — que há em tudo isto de incrível? No dia em que Sócrates exclamou «há um Deus no homem» o primeiro arco da ponte extraordinária estava lançado: ficou firme, sustido no fundo do oceano. Cristo completou este caminho maravilhoso, lançou o segundo arco! Desde essa hora os filhos da Sara oriental podem atravessar de novo o Mar Roxo a pé enxuto: e a terra prometida, o ocidente de doce e humana luz, cá está para os receber em seu seio vastíssimo.

O milagre, o milagre verdadeiro, começara há séculos — o ideal comum — a unidade na aspiração. A realização devia para ambos ser igual. A mesma prece deve subir ao mesmo céu. Igual desejo devia tarde ou cedo afirmar-se na mesma realidade. Maria é a irmã das Sibilas... Jesus por que não será então o irmão de Sócrates? As diferenças de gênio, de raça, nada são aqui: o ideal comum, isso é tudo. E esse que assentou sobre a sua solida base a fé eterna da humanidade, a unidade dos corações, a verdadeira cidade de Deus! O cristianismo criou a humanidade (no grande e verdadeiro sentido da palavra) mas foi a humanidade toda que o criou a ele, não o gênio estreito duma raça.

Fundando a unidade divina, construiu a unidade humana mas os elementos da obra todos é que suscitarem o operário, é que o fizeram.

No dia em que Jesus se chamava a si Cristo, nesse dia deixou de ser judeu para se naturalizar homem. E o filho do homem — o filho da humanidade. Do desejo dos dois mundos brotou esse lírio divino... mas o perfume que lhe sai do cálix não há templo bastante para o conter! Todo o céu é essa catedral: o templo de Jerusalém, o Parthenon e o Capitólio são naves, apenas, dessa igreja universal!

III

Ei-la fundada em fim, idealmente, ao menos essa unidade, esse sonho milenário do mundo antigo! E quem dirá as dores, as lutas, as esperanças, as angustias de mil gerações esquecidas, cujas lágrimas regaram, e de cujo pó se alimenta ainda essa árvore de imortal amor?

Inúmeras raças extintas passaram curvadas sobre a terra; cruzaram no peregrinar de cem odisseias misteriosas, todos os continentes, para que seus passos apenas deixassem como derradeiro vestígio sobre a face do globo as letras fatídicas desse epitáfio de glórias, essa palavra única — unidade! Tudo o mais é o segredo do tempo. Os séculos desconhecidos esconderam sob a dobra dos imóveis sudários a memória dos obreiros com o risco e os instrumentos do trabalho — e vê-se a prodigiosa obra anônima erguer-se recortando o perfil estranho no horizonte desmaiado do passado, como o vulto da esfinge incompreensível no céu dos grandes desertos!

É a melancolia da história! Por entre o canto das Epopeias antigas escuta-se a espaço o gemido surdo desse desconhecido e infeliz mundo de escravos sobre cujos ombros doridos os heróis assentavam as suas cidades de luz...

E os palácios heroicos da humanidade, que são as horas solenes da sua inspiração, encobrem-nos também os peitos escuros mas fortes sobre que se ergueram esmagando os talvez, esses torreões de brilho!

Mas que importam os sacrifícios? O carro de triunfo não se lembra da mina sombria donde saiu o metal das rodas que o levam.

A obra do mistério, a cúpula esplendida da história antiga ergue-se e ninguém, sabe aí por que mãos se ergue. Mas solida é a sua base, que nenhuma convulsão lançará por terra como o canto de granito nos alicerces do circo romano.

A estátua ideal da Fé humana achou enfim o pedestal de mármore imaculado, onde se firmem seus pés divinos — a consciência da nobreza do destino do homem, a revelação da sua mesma divindade.

IV

Mas, esse Deus misterioso, que céu o esconde nos paramos do céu azul imensurável? Que Sinai enubla a sua glória? O seu altar em que monte o ergueram os profetas desconhecidos? Que rito é o seu — e em que taboas de mármore escreveu o fogo de cima a legenda prodigiosa de sua lei? No meio de nós por entre o tumultuar das gerações passa como o Deus antigo, por entre os combates da Ilíada, e ao longe retumba o eco de suas passadas. E, entanto, ninguém o vê. Só de longe a longe, algum profeta desce das solidões a mostrar ao mundo a palidez de suas faces emagrecidas, seus olhos cavos e fixos, da fixidez assustadora das visões, como testemunho de ter entrevisto na sua noite um raio dessa glória que o deslumbrou e consumiu.

É o absoluto que deixa nas mãos do homem, que o tentou prender na sua fuga eterna, um fio apenas da sua túnica de brilho. Mas esse fio é um raio de tal luz, que basta a alumiar o trabalho de muitos séculos!

Toma-o nas mãos Moisés, mostra-o ao mundo, e chama-se Jeová. Ergue-o Maomé entre os povos e chama-se Alá. Deixa-o Cristo cair do alto da sua cruz, e chama-se amor. De cima duma guilhotina o atira Robespierre para o meio das multidões e chamam-lhe Direitos do homem e Revolução. E Hegel, levantando a cabeça de sob as ondas imóveis e tristes da abstração, lança nos ventos, que a levam ao mundo, esta palavra — Ideia!

O que revela cada profeta não é o Deus eterno, o Absoluto dominador, entre cujos braços se contém o universo, não confuso e multiforme nas mil aparências do relativo, mas na verdade ideal da sua essência — o ser puro. — Esse poderia por ventura, afirmá-lo a criação toda, os soes e os insetos, o espírito e a matéria; o visível e o invisível, o certo e o possível, se um dia, esquecendo ao movimento lançar o metal ardente de suas criações nos moldes da variedade, se precipitasse todo sobre o seu centro ideal assumindo enfim a consciência plena da sua universalidade.

Mas o homem não afirma nada mais além da sua mesma alma? E esse vulto imenso a que ainda chamam Deus, é apenas a sombra do ideal humano, que acha o mundo estreito e se alarga pelo espaço. Concebe o absoluto nos limites da sua relatividade.

Por seus mesmos passos mede o caminho do infinito. E, nos últimos limites aonde alcança o seu pensamento, ergue ele as balizas extremas do possível. As religiões são os marcos sucessivos das mais longas corridas do seu desejo no caminho do infinito: mas não são o termo dessa estrada que se perde nas nevoas do inatingível e cujos desvios últimos pé algum pôde ainda pisar.

É por isso que os Deuses morrem, se sucedem e transformam. Vê-se o fim dessas eternidades — e o homem que as criara para perder cá a incerteza do seu transitório destino, o homem, o seu coração, o seu ideal, sobrevive-lhes, é ele quem parece eterno ao pé desses absolutos passageiros!

Mas que importa esse Deus que nenhum olhar pôde ainda descobrir no deserto dos céus, se dum céu interior, tão puro e tão belo, sai para cada ouvido atento uma voz divina, e uma sibila misteriosa deixa cair dos lábios palavra a palavra, o oraculo sucessivo do destino dos homens?

Se a alma cria deuses e, respirando, espalha o infinito em volta de si — é que lá dentro alguma cousa infinita se concentra e o divino se esconde para se manifestar dia a dia na revelação constante chamada Vida. É que o mais humilde dentre nós dá em seu peito morada a um grande desconhecido que ali existe, cuja voz grave se ouve a espaços e nos alumia a face com os relâmpagos da sua glória.

Existe com efeito. Que somos nós todos senão uma forma visível da essência infinita — um momento determinado da existência sem termo — uma vibração do movimento eterno — uma fase da Lei do todo, chamada aqui lei humana mas a mesma no ser, com igual fim, igual origem, que nos determina e de que vivemos? A lei! Proteu prodigioso de mil formas de inúmeros vultos inesperados em toda a parte diversos, e em toda a parte o mesmo sempre todavia! Mil faces, e uma só alma! mil braços, e uma vontade só! por mil caminhos, e um único o termo da viagem!

Uma dessas do Proteu é o homem, a lei humana. A parte de ação que exercemos no movimento eterno: a hora que nos é dado preencher na duração sem termo — é isso o que somos, por isso que nós agitamos, o nosso ser, o nosso mistério. É o Deus, que o universo esconde revelando-se pela consciência. E o absoluto que fora nem podemos entrever, ei-lo vivo e palpitante em nosso coração e debaixo de nossas mãos, a ponto de o podermos palpar! — A alma da humanidade em cada homem; e, na humanidade a alma inteira do mundo — .

No mais estreito, no mais tremulo e humilde raio de luz, coado a custo por entre duas nuvens, se estuda e está o segredo do brilho imenso e inefável que inunda as alturas, se vê patente o mistério da maior glória dos esplendores celestes. No gemer da onda indolente, que se espreguiça no areal, e nem assusta o folgar descuidoso duma criança, está a voz do oceano, a sua ânsia, o porque de suas lutas, o motivo de tantas tempestades, tantos brados, tamanhas convulsões — . No que agita o peito do mais humilde e desconhecido dos homens está o segredo de ansiedade, do desejo infinito, que comove os universos, o verbo do movimento que arrasta os impérios como os mendigos, as folhas do outono como os astros do espaço — está a palavra do ser, a origem e o fim, Deus!

Sim. Esse Deus buscado em vão na vastidão dos céus desertos, que não revela a imensidade desoladora e fria, ei-lo em fim que o vemos concentrado no fundo da consciência, dormitando, mas em movimento, mudo, ao parecer, mas murmurando sempre, como um canto de lendas misteriosas, o oraculo sucessivo dos Destinos! É o Deus da humanidade; a parte do ser eterno, que se move nela, que a firma, que é ela mesma. Jeová, Brama, Sabaoth, Alá, Cristo, por grandes, por luminosos que pareçam, não são mais que as sombras projetadas sobre a terra pelo vulto desse grande desconhecido — degraus da escada do desejo que essa alma sobe no caminho do seu Fim. É a luz, que nos sai de dentro, e diante dos nossos olhos se agita, convidando-nos a segui-la em seu correr. É a coluna de fogo do deserto — não aquela trazida de longe e sem se ver a mão que a trouxe, mas saída do mesmo seio do povo, como que a sua própria alma, adiante dele caminhando. Movemo-nos porque a seguimos; não pelo capricho de nossos passos. O nosso trabalho o seu brilho no-lo indica, não é só o lavor escuro de nossas mãos.

Toda a esfera de nossas ações, as maiores, as melhores, fecha-a o círculo daquela lei — que é a nossa mesma.

Nem doutra lei precisamos. Cumprir a tarefa deste momento é cumpri-la na sua forma rigorosa, correspondendo ao destino dele entre todos os movimentos de que se compõe a duração eterna. — O fim do Homem é ser homem. E, para o ser, viver segundo a nós, ao nosso fim, que mais se precisa que seguir a lei humana? É a nossa afirmação. A força que a determina não lhe vem de fora, dalguma mão escondida entre as nuvens gloriosas dalgum céu inatingível. De dentro vem, como as folhas do lírio, que se abre, vem todas do botão que as continha em suas dobras, como todos os suspiros vem do coração que deseja, e não do objeto que os acorda.

É o seu trabalho quem cria os absolutos que depois a esmagam. Mas a força primitiva reage; e os espectros caem por terra estalados os braços com que tentavam sufocá-la.

As revoluções, os cultos, os sistemas, as filosofias, as revelações não são princípios exteriores que dominem a história, de cima, da altura de suas verdades determinando os sentimentos, os desejos, as crenças, a vida enfim. Pelo contrário. — São apenas evoluções dum interior, que os cria e destrói, e faz o novo templo com as minas do templo antigo, e se chama Natureza.

O Deus da Humanidade é o mesmo homem: e o seu Ideal, a religião da Vida.

V

É a negação do absoluto e, como tal a afirmação do homem.

O Deus sai da imobilidade do símbolo inalterável: faz-se vida, move-se — é um Deus progressivo.

O seu dogma (semelhante à fonte nascida da terra e de continuo acrescentada) dia a dia o vai o tempo completando com tudo o que lhe sai do seio vasto e fecundíssimo. É o culto de um mistério que descobrindo-se sempre, jamais se poderá ver todo. E a Bíblia tem brancas as últimas páginas, para que lhe possa cada geração nova escrever lá o verso de oiro de cada novo Evangelho que se revele.

Religião doce e humana, que não despreza uma palavra de criança, o sonho dum coração de mulher, o pressentimento da mais humilde consciência! É como o olho do sábio que se esquece horas sem conto na contemplação do mais estreito cálice duma flor sem nome desses campos! No cálix da flor, diz o poeta, se encerra a beleza toda do universo — e que profundos e desconhecidos tesouros de beleza e verdade não guarda o coração dum simples?!...

É por isso que esta religião abraça no seu círculo maravilhoso a alma toda e toda a vida como o sol do meio dia vê quanto rasteja na terra e quanto paira nas alturas — porque não despreza ninguém. Como Jesus entre as crianças aprende tanto quanto ensina. Missiona, e recebe todavia lições do mais humilde catecúmeno. O seu decálogo tem uma margem larga bastante para que o povo o comente, quando não acrescente um artigo à lei. É a religião do movimento — o Colombo dos mundos encobertos do espírito ereto na proa do galeão, sondando o horizonte com os olhos, incitando, animando todos para a conquista do desconhecido. Sentado na trípode santa da sua inspiração, sente correr-lhe n'alma o espírito do Deus vivo: profetisa, improvisa de continuo e, como a chuva de pérolas da boca da fada legendaria, lhe caem dos lábios as palavras nunca interrompidas da sua revelação — a lei, o ideal humano.

VI

A Idade Media não compreendeu isto. Seu grande gênio, sublime como Poesia, achamo-lo aqui estreito e acanhado como Razão. Porque do chão saiu um dia essa flor maravilhosa, a mais bela entre todas no jardim do espírito, chamada unidade, pareceu-lhe ter morrido a força geradora da terra e tornar-se impossível outra florescência, outra primavera, outro perfume.

Deu por concluído o trabalho das criações humanas, e fechado o ciclo dos poemas divinos chamados religiões. Declarou o coração incapaz de novos sonhos, a alma inerte para mais desejos, a inteligência morta para outras concepções e outras formas que não fossem as suas — porque no ardor de sua fé, uma nobre ilusão lhe fez ver o vácuo e o nada além do espaço que abrangia a sua vista alucinada. Grande e solene dentro do templo santo da sua crença por isso mesmo desprezou o resto da terra aonde já se não avistava esse prodigioso edifício, e o resto da alma que o calor desse raio de amor não aquecia. As tristes flores desse deserto não eram para adornar o seu altar — não era digno do seu Deus o perfume saído dum coração não alumiado pelo brilho de sua glória... Fez o Dogma e fechou-se nele como num sepulcro. Largo sepulcro, em verdade, como para um Deus e todo mármores e oiro... mas ainda no tumulo de Cristo, o frio que se sente é sempre o frio da morte!

A antiguidade pagã dava às suas religiões um cinto elástico, para que a Virgem pudesse crescer e engrossar, fazer-se mulher e mãe, conceber e criar o filho que lhe havia de suceder. Como as não revelava nenhuma voz encoberta, saindo do meio das nuvens de fogo duma glória sobre-humana — revelavam-se elas por si, em toda a parte, em cada hora, e não já no cimo deserto do Sinai, mas em baixo, no vale, onde se assentam as tendas do povo, no ajuntamento dos homens. Por isso não havia palavra murmurada no meio da multidão, que se sumisse esquecida, que um deus amigo não ouvisse e decorasse, como ensino duma boca humilde, mas nem por isso desprezível. A onda mais imperceptível, nascida nos últimos confins da sociedade trazida com o sopro do vento, achava sempre uma doce praia aonde depositar o seu pequeno tributo, um canto, uma espuma branca, uma rara flor muitas vezes.

Cada modesto veio d'água lá ia dar sempre ao lago dessas religiões tão humanas, que não se pejavam de os receber, com eles crescer e alargar, ser por eles formado — fazendo assim a divindade com o melhor e o mais puro da humanidade. Essas religiões formavam-nas em colaboração as almas das gerações sucessivas, cada uma como que tinha de mais íntimo em si, do mais elevado ao mais inocente. O sábio dava o forte pensamento, o simples a intuição profunda. Emprestava-lhes um fato o herói, e a virgem lançava-lhes no regaço uma lágrima de piedade. A praça pública lhes enviava um eco de seus rumores, e a família um reflexo amorável do seu lar. Cada qual tirava do coração a perola que lá tem todos escondida; e com essas gemas, preciosas, quentes ainda e quase vivas, se adornava a divindade. As paixões, os amores, os cuidados, as lutas dos homens, tudo isto idealizado e puro se via brilhar sobre o peito dos deuses, como penhor da fraternidade entre terra e céu, e modelos de perfeição que buscava cada qual realizar. Ser bom e forte e grande para ser semelhante a um Deus — porque este era a última expressão da humanidade.

Era ela o que a criava. Ao lado da inspiração do augur caminhava a espontaneidade do Povo.

Ella transformava a legenda; desenvolvia a moral; compunha o rito: adotava cultos; erguia outros deuses ao lado senão sobre o pedestal dos antigos; verificava a lei velha com o espírito novo: tinha autoridade em fim, autoridade, voto e força para obrigar um Deus progressivo a medir seus passos pelos duma sociedade sempre em movimento. Por detrás do Olimpo havia muito céu ainda e muito espaço. Além da morada das divindades via-se o infinito sem termos — e Prometeu profetizando a queda de Júpiter não era um ímpio; era um semideus. As religiões antigas não faziam da alma humana (e, com a alma as sociedades e o mundo) prisioneira dum dogma imutável. Sentiam ser ela mesma o verdadeiro dogma. Abriam o seio a cada palavra inspirada e transformavam-na em sangue do coração...

Religiões humanas! uma intuição profunda da mesma lei da vida — a diversidade, o movimento, a sucessão — dava-lhes a largura, a flexibilidade e o vago necessários para que correspondessem a todas às formas inúmeras e inesperadas do espírito, às infinitas transformações das sociedades, às mil aparências da realidade. Dava-lhes a virtude desses cordeais próprios para todas as idades e todas as compleições: para os fortes calmante; e para os fracos, balsamo e conforto. Eram como o vestido natural do corpo do homem acompanhando todos os movimentos, feito para todas as altitudes: simples ao pé do lar, nobre na praça, grave no repouso, e na luta ou na corrida ligeiro e fácil.

Esta verdade humana que as fez tão animadas, por isso mesmo as impediu de avistarem o outro termo correlativo, o extra-humano, o absoluto.

No coração dessas raças como parte que é da alma, estava esse sentimento, por certo. Mas não vinha fora em forma de luz, não inundava dali o mundo, não doirava a fronte dos deuses nem a cabeça dos homens. Viram-na, a essa luz, passar como relâmpago nos olhos dalguns inspirados; mas o povo não a soube compreender, deixou-a morrer, quando a não matou ele mesmo. No meio da diversidade, que o absorvia, o politeísmo não pôde conceber a unidade existente com ela e nela mesma porventura. Ao sol da Grécia e do Oriente, a rosa viva, a flor intima da humanidade, a alma, abrira todas as suas pétalas estranhas mas formosíssimas! uma só ficou fechada; mas essa era a mais larga e a mais forte, que devia conter todas as outras — o sentimento da unidade.

Unidade de Deus! Unidade do Homem! nesta onda mística mergulhou o Cristianismo a cabeça — com este Jordão batizou o mundo! Esta contemplação do absoluto fez a sua força: foi ela também quem o matou. Em vista deste princípio resolveu corajosamente o destino humano; mas vinculando-a a essa resolução, desconheceu a sua lei essencial — o movimento. — Não. A contemplação inerte não pode ser o ar que o espírito do homem pede para respirar! O ar da vida é outro... A vida! no seu voo para o céu, na sua sublime ambição ideal, foi isso que esqueceu ao Cristianismo — a terra, a vida. —

FIM