Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

![if mso 9]> <![endif]>

ANTERO DE QUENTAL

LEITURAS POPULARES

BARCELOS

Tipografia da Aurora do Cavado

Editor — R. V.

1896

Tiragem apenas de 100 exemplares:

20 em papel de linho.

80 em papel d'algodão.

N.º___

Um dos periódicos acadêmicos em que Antero de Quental mais colaborou durante o seu curso universitário foi o quinzenário Prelúdios Literários, publicado em Coimbra desde dezembro de 1858 a janeiro de 1861, tendo por fundador, diretor e redator principal Vicente da Silveira. Para eles escreveram os mais talentosos dentre os acadêmicos de então, contando-se neste número Augusto Filipe Simões, Adolpho Ferreira Loureiro, António da Silva Gaio, Eduardo José Coelho, António Lopes dos Santos Valente, Augusto Luciano Simões de Carvalho, Bernardino Pinheiro, Francisco Beirão, Guimarães Fonseca, Joaquim Simões Ferreira, o divino João de Deus, e ainda outros.

De Antero de Quental, entre outros trabalhos que neles inseriu, conta-se a série de artigos que epigrafou Leituras Populares e que saiu em seu volume II e n.os 2, pag. 9 e 10: n.º 3, pag. 17 a 19; n.º 4, pag. 25 e 26; n.º 6, pag. 41 e 42; n.º 8, pag. 57 e 58; n.º 15, pag. 116; e n.º 20, pag. 153.

Compreendem-se nesta serie a apreciação das Bibliotecas Rurais, por Cormenin, o eminente publicista francês, que tanto ilustrou seu nome como ainda o pseudônimo de Timon, com que firmou alguns de seus trabalhos; a exposição e apreciação dos Estudos sobre a reforma em Portugal de J. F. Henriques Nogueira, incontestavelmente o primeiro de nossos publicistas em este país, cujos trabalhos estão reclamando instantemente uma edição completa e popular, que os torne conhecidos de todos e evangelho da democracia, que bem o merecem eles pela elevação e amplidão admiráveis de suas vistas e alcance; e a exposição e apreciação da Felicidade pela agricultura, a obra peregrina de António Feliciano de Castilho, em que tudo é ouro de lei, desde sua linguagem, a mais portuguesa e formosa, até seus ensinamentos os mais santos e justos e proveitosos.

Coube agora a vez de virem esses inestimáveis estudos de Antero à nossa modesta coleção de seus trabalhos dispersos, e não ficarão eles sendo uma das menos brilhantes páginas dela.

Rodrigo Velloso

LEITURAS POPULARES

Derramai a instrução sobre a cabeça do povo, que bem lhe deveis esse baptismo.

Alm. de França

I

Bibliotecas rurais

Um dos grandes sintomas de regeneração e progresso moral do século, em que vivemos, é, sem dúvida, o desvelado carinho com que, quase por toda a parte, cuidam grandes e pequenos, com interesse ou desinteresseiramente no melhoramento e instrução do povo — esse grande, inculto, e interessante enjeitado — como dele diz um grande poeta. É que a grande voz da democracia quando fala, inspirada pela boca dos Kossuths e dos Mazzinis, falas de amor e de esperança, não sei de coração generoso aonde não tope um eco.

II

Bem que a Europa jazia manietada mais ou menos pelos grilhões da tirania, contudo não se mostram os governos descuidosos em promover a ilustração pelo meio das massas: por toda a parte, nomeadamente na França, na Itália, na Alemanha e até na inculta Rússia, se veem a cada passo escolas para o pobre, e não é raro topar o trabalhador, pela hora da sesta, entretendo-se a folhear, ler e entender livrinhos, que, apesar de mui comezinhos e de popular expressão, nem por isso deixam de o iniciar no saber.

É certo que os verdadeiros promotores deste progresso intelectual não são os opressores, que mal têm eles tempo de se rodearem de lanças e baionetas: são os democratas, os verdadeiros amigos do povo, que por ele velam, e cuja voz, que é a voz da verdade e da justiça, apesar de proscrita e desterrada, brada tão alto, que a própria tirania, em que lhe pese, se vê forçada a se sujeitar mais ou menos aos mandatos desses representantes da opinião: parece que a providencia capricha em haver os tiranos por instrumento da própria ruina; pois só a ilustração, que dá ao homem a consciência de seus direitos, pode derribar ruins governos e opressores. Assim a instrução progride e gradualmente estende a sua rede, anelando abraçar todas as camadas da sociedade, ministrando à terra virgem, mas produtível semente de muita ideia, que se há de resolver em ainda muito mais obras de bem e só para o bem.

III

Remissa e vagarosa, porém, vai a instrução por esta boa terra de Portugal; e ai de nós se não se atende a este grave mal com prontos remédios, ai de nós, por que um povo que possui a liberdade sem instrução, que só o pode nela iniciar e nos sagrados direitos em que se resolve, a custo poderá conservá-la, e o que é mais, conservá-la sem abusar.

Saídos apenas dum baptismo de sangue, em que nos foi mister mergulhar para granjear uma alma nova, para reconquistar a austera mãe dos povos, a liberdade, conservamos ainda vestígios cruentos, reminiscências odiosas dessa luta fratricida, bem que em prol da pátria; e é só a instrução que nos pode lavar da fronte as manchas do sangue de nossos irmãos, e conduzir-nos a bom fim.

Qual é pois a causa da ignorância — indigna do século — em que vegeta todo o nosso povo e grande parte da burguesia? Porque não é só o proletário, é também a classe média em grande escala, que não cura de seus direitos e liberdades, considerando-os, indiferente, como uma invenção do século, e desconhecendo que só eles são as garantias únicas e seguríssimas da sua individualidade e progresso.

A causa não está na escassez de livros populares, que alguns temos nós e de elevado mérito; nem mesmo na indiferença do povo português, que sabido tem ele mostrar o como zela seus direitos, uma vez compenetrado por eles. A resposta já de há muito a deu um grande homem e um grande Português, quando se lastimava de que possuindo nós ainda todos os elementos duma grande ventura, só nos faltasse um a vontade dos que podem.

IV

A carência duma boa organização de escolas, dum bom regulamento literário, e um ministério — próprio de instrução — o campo que se acanha a quem sabe, e só se alarga a quem tem e pode; eis as causas do menosprezo e quase aversão, que entre nós sofrem letras e ciências. Esta é a causa, e só causa de tantos males.

Sei que é dura e fere o ouvido, e mais ainda o coração, esta verdade, contudo é uma e tão amarga, que custa a confessar, parecendo melhor desculpa, a míngua de livros bons e baratos.

É fado que entre todos os povos cultos, sendo que as nossas bibliotecas gemem debaixo do peso de boas obras nacionais, somos porém um dos que menos livros possuímos maneiros e de fácil compreensão. Abundam as nossas livrarias em pesados volumes, de ainda mais pesada erudição e elevado estilo: mas ao alcance do obreiro, do agricultor, do próprio camponês, volumes, que por seu tamanho, preço e clareza a eles se amoldem, que lhes mitiguem, por sua amenidade e instrução, o rustico e afanoso lidar, a custo se depara com um ou outro.

Nisso diferimos da França, da Itália, da Alemanha, que os tem aos cardumes, enquanto que os nossos escritores parece falarem-se mais entre si do que com o povo.

V

Com tudo, para quem tiver sede de instrução, para quem bem os procurar, ainda há que se achem e que sirvam.

As grandes, ideias, se vieram encontrar Portugal adormecido nos braços da ignorância, ainda houveram almas nobres e inteligências elevadas aonde fizessem eco; e a geração nova tem continuado, de testemunhar à Europa, que os elevados pensamentos da fraternidade não deram com corações esquivos em peitos portugueses. Ainda há quem trate com afã do que convém ao seu país e quem se não peje de dar testemunho, com palavras ou com escritos, do seu pensar, crer ou esperar.

Nem temor deve haver de que esta, que em tão boa senda; porque a era é nova e a ideia virgem e longe o dia vem, em que tem de ceder o passo a outra maior e mais elevada.

O dever de todos, quantos somos, que pugnamos pelas liberdades e bem do povo, é seguir sempre a grande ideia, através de todos estorvos e revezes, com o peito ao vento, o rosto alto, os olhos só fitos no futuro. Abrir bem o coração a voz que vem de cima, e cerrá-lo à das paixões da terra.

VI

Dissera eu não serem elementos de felicidade que nos faltavam; mas só o querer dos que podem tirar deles matéria de muito bem. Temos a ideia e temos os meios; tenhamos também a vontade, e para todo o mal se deparará remédio.

Um pequeno alvitre quero eu lembrar que, com ser pequeno e de pouco custo, talvez não deixe de gerar bom fruto.

Ideia dum grande francês e grande amigo do povo, Mr. Cormenin, soube ela insinuar-se em o ânimo dum governo ilustrado, que a soube aproveitar, e dela já hoje em França vão brotando frutos de muito bem.

Se o exemplo dum povo tem algum peso no obrar dos outros, por que não aplicaremos e experimentaremos entre nós a ideia do grande homem sendo que ela produz, como tem produzido, resultados tão elevadamente civilizadores?

Tal experiência quisera eu se realizasse em nossa terra, que certo estou de nos não deixar iludidos.

VII

A ideia refere-se maximamente aos habitadores dos campos, esses, mais que todos, enjeitados da civilização moderna.

E contudo é à sua ilustração que de mais vontade nos deveremos aplicar. A agricultura é a melhor e mais verdadeira mãe dos povos, e, como diz Castilho, — só um povo que lhe quer, e a quer, e a serve com desenganada preferência, só esse é rico, rico sem fausto, mas sem receio de empobrecer — o trabalho da terra é a fonte de todos os outros trabalhos, e assim, não é justo que nós, que em ócio desfrutamos o trabalho do camponês, lho suavizemos em troca — com algumas gotas do balsamo da instrução?

Além disso, se trabalhamos em proveito da sua ilustração, é em proveito nosso que trabalhamos.

O cultivador, que ler, conhecerá melhor o tempo, as estações, a qualidade do torrão, da semente, o que mais convém a este ou estoutro terreno, e que espécie de grão deve lançar à terra. Com este progresso na agricultura o lavrador produzirá melhor, mais, e mais barato.

Não será, pois, também em o nosso proveito?

Ainda que não fossem eles homens, e, como tais, com igual direito a se ilustrarem, bastaria a perspectiva do próprio lucro para nos fazer cuidar deles com afinco, pois que, curando deles, de nós curamos em realidade.

VIII

Entendera Cormenin que o rustico, por ser rustico, nem por isso devia ficar privado desse pão do espírito, que é a leitura.

Partindo desta verdade, imaginou ele uma biblioteca de 200 ou 300 volumes de matéria comezinha e de fácil digestão para o povo: cada concelho possui uma destas bibliotecas dividida em tantas menores, quantas as aldeias e lugares que em si conta, e em relação a elas numeradas. Cada uma destas livrariazinhas é enviada pelo administrador do concelho ao pároco de cada aldeia, a fim dele distribuir gratuitamente os volumes a quem deles precisar e os pedir, assentando o nome de cada leitor num rol, e riscando-o à maneira, que se vier fazendo entrega dos volumes.

Depois de seis meses passados, todas as obras que compõem a livrariazinha se devem achar em casa do pároco, que a remete à aldeia que tem a Biblioteca de número imediato, recebendo em troca a que lá estava para o mesmo fim.

Passado tempo, quando cada aldeia tenha tido por espaço de seis meses cada uma das bibliotecas parciais, isto é, todos os livros do concelho por partes e por várias vezes, far-se-á troca da biblioteca toda com a do concelho seguinte, continuando sempre assim com o mesmo sistema de leitura, de sorte que em poucos anos poucos livros terão, passando por milhares de mãos e através de milhares de inteligências, feito o giro do país, e levado a instrução aos mais necessitados, sem que para isso se exijam grandes despesas.

A este alvitre, tão simples como econômico e profícuo, chamou Cormenin. — Sistema das Bibliotecas Rurais Ambulantes.

IX

A bondade de tal alvitre por si e claramente se deixa ver. Realizar o desideratum da civilização moderna — a instrução do povo — em tão grande escala, tão bem, e por tal preço, cuido que outro algum o poderá fazer melhor.

Nos primeiros anos poucos resultados bons se tirarão, porque ainda os habitadores dos nossos campos desconhecem as vantagens da leitura, mas, acostumados pelo uso, por assim dizer, aclimatados com o sistema, e maximamente, vendo os frutos que hão-de colher os que leram, dentro em breve toda a população dos campos correrá em busca de livros e será com injustiça, que o soberbo habitante da cidade lhes poderá chamar — boçais.

X

Na escolha dos livros é que se deve requerer toda a cautela, para que a instrução não degenere em leituras prejudiciais ou sem proveito.

Deverá constar cada bibliotecazinha de pequenos volumes sobre ciências naturais, medicina doméstica, livros de religião, de agricultura, de política geral, de administração, história, geografia e viagens; tudo isto escolhido por pessoa versada e idônea.

Na nossa terra, nomeadamente, deve-se curar principalmente de os procurar ou traduzir em chã linguagem das estrangeiras, escolhendo entre todos os melhores e os mais uteis.

Contudo é não acobardar, que ainda se adiam livros bons e uteis, e os que não houverem podem bem suprir-se com versões dos melhores dos outros países mais adiantados que nós, neste gênero de literatura popular.

XI

Alguns livros há, assentei eu, que estão no caso de percorrerem a estrada de tal missão: originais portugueses uns; outros vertidos na nossa língua das estrangeiras. E que muito importa essa diferença? já disse alguém que o gênio não tinha pátria: um bom livro, que apareça hoje, já amanhã falará todas as línguas, e será lido com ardor por todos, quantos eles são, os povos cultos do globo.

Dalguns livros sei eu, que satisfazem as exigências: poucos em verdade são eles, mas bons, mas boníssimos: quase todos conhecidos e animados do público; alguns não tanto; a todos o nome do autor lhes é caução. Folgo de ter falado neles um pouco de longo, porque tão bons são, que lhes desejara ainda mais carinhos, mais difusão por entre o povo. Com eles quisera eu se começasse a obra civilizadora das — Bibliotecas Rurais.

XII

Aquele, que primeiro convém que o povo leia e releia, e por ele seja mui manuseado, mui meditado, tem em si a própria recomendação: vem assignado por nome português e dos maiores. Dele disse Castilho — aquele que em alguns parágrafos pretender julgar uma obra tão cheia, tão variada, tão germinal toda ela, como é este livro, provaria, ou que não a lera, ou que não era digno de a ler. Nós a lemos, a relemos, temo-la ainda aberta, e aberta a deixaremos sobre a mesa para nossas meditações.

    Seu título é:

Estudos sobre a reforma em Portugal

POR

J. F. Henriques Nogueira

Não é um livro; é uma obra.

G. Planche.

I

O livro cujo valor apregoamos, e ao qual outorgamos um primeiro e eminente lugar na nossa ora ideal — mas tão realizável bibliotecazinha popular, — é digno de tal ocupar, sendo que entre todos é ele o mais útil e acomodado à inteligência do nosso povo — ainda mal — tão inculto, tão por mondar de cardos e ruins ervas, e, o que pior é, com tão pouca esperança de próximo e útil cultivo.

O autor do livro, como bom filosofo, cura menos do que é, ou pode ser, do que indaga o que em sã razão devera existir: e ao tempo que, em sucinto mas substancial quadro, alevanta o rude trabalhador ao nível de seus direitos, não se mostra remisso no estudo dos deveres que se lhe opõem; acrescendo ainda um catecismo acabado dos meios de realização duns e de satisfação dos outros. Ajuntai ainda uma expressão clara, por correta; uma viveza toda meridional de imagens; um finíssimo tacto ou, por assim dizer, um como faro mui mimoso no descobrimento dos males sob que geme a sociedade, e a mão segura em alvitrar meios de pronto remédio; e em limitadas frases havereis o livro.

II

Diz modestissimamente o autor, que o livro não é mais do que a seleção de pequeninos estudos acerca desta ou destoutra reforma. Sobremodo maior é o seu merecimento, e em conta de maior obra o tenho eu. É um sistema de organização social completo e cheio; resumo, conciso sim, mas germinal das reformas, que há mister um povo e uma sociedade já gastos. Dai-me população e território, que meios de organizar um governo no livro os acho eu todos; mas governo racional, filosófico sem que seja irreligioso (e é este o dizer verdadeiro da palavra); governo, finalmente como o deve ser um no século dezenove.

Se desejais um testemunho do seu bem querer, lede com que tocante singeleza resume ele, em poucas palavras, o seu credo político e social, onde, a par do grande reformador, deparareis com o poeta e com o cidadão honesto, e amante da sua pátria.

III

Eis os termos em que se expressa:

— Quisera que, num país como o nosso emancipado por cruentos esforços da tutela humilhante, egoísta e sanguinária da monarquia absoluta, cansado do regímen espoliador, traiçoeiro e faccioso da monarquia constitucional, necessitado de restaurar as forças perdidas em lutas estéreis e de cicatrizar feridas, que ainda gotejam, ávido, enfim, de gozar as doçuras da liberdade, por que tanto há sofrido; quisera que o governo do estado fosse feito pelo povo e para o povo, sob a forma nobre, filosófica e prestigiosa de — Republica.

— Quisera que o poder supremo, emanado do voto universal, residisse na assembleia dos representantes do povo e que o poder executivo fosse confiado a um ministério de três membros, nomeados pela assembleia.

— Quisera que a administração da justiça corresse imparcial, rápida e gratuita; que os serviços feitos ao país tivessem uma recompensa condigna; que os crimes achassem correção em vez de vingança, e que a pena de morte, vestígio máximo da barbaridade, fosse abolida.

— Quisera que a guarda nacional, milícia gratuita, que não obriga o cidadão a abandonar as suas ocupações, constituísse o grosso da força armada; e que o exército subsidiário se reduzisse unicamente aos corpos científicos.

— Quisera que a despesa publica fosse inferior à receita; que se proscrevesse o ruinoso sistema das dívidas; e que a aplicação dos rendimentos do Estado fosse inteiramente produtiva, ilustrada e filantrópica.

— Quisera que a rede tributaria, que ameaça de estancar o país, ficasse reduzida a um só imposto progressivo sobre a renda, cobrado sem despesa e realizado sem ágio.

— Quisera que os capitais, pela barateza do juro, auxiliassem a produção, em lugar de absorverem a maior e melhor parte de seus lucros.

— Quisera que o direito à subsistência pelo trabalho tivesse nas oficinas, colônias e obras públicas, uma útil garantia; que o trabalho das mulheres ganhasse uma área mais vasta, e que fosse melhor retribuído.

— Quisera que a Agricultura, a Industria fabril e o Comércio recebessem do estado uma desvelada proteção, como fontes principais da riqueza.

— Quisera que as estradas, os canais, as barras, e em geral, todos os meios de viação merecessem a preferência no extenso capitulo das nossas necessidades.

— Quisera que a comunicação do pensamento não achasse obstáculos; e que o correio fosse inteiramente gratuito, tanto para as cartas como para os escritos periódicos.

— Quisera que os órfãos, os doentes e os inválidos, que dependem da caridade pública, encontrassem nas casas de misericórdia lenitivo para os seus males; e que se franqueassem a todos os operários as instituições econômicas e preventivas da miséria.

— Quisera que os cuidados exercidos sobre a saúde publica conseguissem minorar e extinguir, se tanto fosse possível, as causas de infecção, que vão minando gradualmente a robustez das gerações.

— Quisera que o derramamento da instrução chegasse às ultimas camadas sociais; que a imprensa publica se tornasse um instrumento de progresso; e que o estado protegesse o talento abandonado, que a falta de cultura não deixa medrar.

— Quisera que a religião de nossos pais não servisse de escudo a interesses egoístas e mundanos, mas que acompanhasse o progresso da humanidade; que os bispos fossem, como noutros tempos, eleitos pelo povo; e que os párocos se elevassem à altura de mestres e de moralizadores.

— Quisera que os interesses da localidade fossem atendidos primeiro do que tudo; que o território se dividisse para todos os efeitos em grandes e bem regidos municípios; e que as aldeias tivessem os melhoramentos indispensáveis ao bem comum dos moradores.

— Quisera que a associação, origem de maravilhas, se estendesse a todas as classes da sociedade e principalmente àquelas que vivem do seu salário.

— Quisera que a família, instituição primitiva e santa, não apresentasse o quadro odioso dos direitos de primogenitura, que dão a uns filhos a regalia de senhores, em quanto conservam outros na humilhação de servos.

— Quisera que a propriedade, direito natural e civilizador, se estendesse ao maior número de indivíduos; e que para completar a liberdade da terra se permitisse a remissão de todos os encargos que a oneram.

— Quisera, por último, que Portugal, como povo pequeno e oprimido, mas cônscio e zeloso da sua dignidade, procurasse na — Federação — com os outros povos peninsulares a força, a importância, e a verdadeira independência que lhe faltam na sua tão escarnecida nacionalidade...


Não há querer mais nobre, aspirações mais santas; a par do grande filosofo, haverá aí quem desconheça o poeta e o humanitário?

IV

Economista profundo, é um poeta e pensador; o ilustre democrata, à maneira que nos apresenta uma das suas muitas, mas boníssimas reformas, não pode, precipitando o tempo pela imaginação, deixar de nos entoar um de seus hinos tão entusiastas, tão intimamente consoladores de esperança no futuro para o pobre, o desvalido proletário.

A inspiração é tanta, a crença é tão forte, a fé é tão viva, que bastas vezes o tomaríeis por um desses profetas que nos pinta a antiguidade, a anatematizar os maus, de sobre esboroadas minas, a aviventar no coração dos bons a emurchecida esperança em melhores tempos e mais cristãos.

Ao ver tantas promessas de ventura, muitos, de incrédulos, se negarão a dar-lhes fé; muitos lhe chamarão sonhos febris dum sentido cismar de poeta; mas nenhum se atreverá a apodá-los de veneno ou de maldade. Muitos dirão com o poeta:

Vãos desejos, talvez: mas bons de certo.

Mas nenhum terá força de lhes lançar o anátema terrível, com que, verdade é, o século sói pagar as ideias boas e nobres.

Quiçá cedo é, para difundir a vontade de reformas: seja; que o não é: quem acampa nos arraiais longínquos e desertos do futuro, e o aguarda sereno e firme na sua fé, tem uma nobre missão: — a de abrir e esclarecer, sentinela do porvir, a estrada da nova era; que outros, vagarosos, de prudentes, só mais tarde pisarão.

Não é tarde; que o mundo foge no infinito do espaço e caminha direito às regiões encobertas do futuro; e, quando o século aperta o passo, não há face de verdadeiro democrata, que deva pejar-se de o acompanhar neste caminhar providencial.

Se é sonho, a sonhar por sonhar mais val’, como diz Pelletan, o sonho que diz a tudo quanto sofre cá na terra:

— Levanta-te, e espera! do que o que lhe repete: — Sofre, que para o teu mal não há salvação nem lenitivo!

FELICIDADE PELA AGRICULTURA

POR

António Feliciano de Castilho

Da terra saímos;

à terra volvemos:

A terra nos veste,

nos traz, nos mantem.

Quem mais do que a terra

merece os extremos,

Que obtém dos bons filhos

a próvida mãe?

A. F. de Castilho

I

Eis agora aqui um livro, que, em meio da geral fermentação de tumultuosas paixões e ambições imoderadas que agitam as nossas modernas sociedades; em meio deste lamentável estado de geral descontentamento e desgosto de que todos mais ou menos somos vítimas; quando, segundo judiciosamente observa Aimé Martin, o artista descrê da arte, o padre de Deus, o mancebo do futuro, e até a mulher do amor, e nem um só tem o menor vislumbre de esperança na felicidade com que ainda pode topar no estado que lhe deparou a providencia; eis agora — digo eu — um livro que, em meio de tudo isto, nos promete essa almejada felicidade, que nos aponta o como a poderemos alcançar, que o prova — e o que mais é — não fala em referência aos grandes, aos poderosos, aos que por si tem todos os dons da fortuna, mas ao pobre, ao desvalido, ao que chora e sofre em meio das trevas da ignorância, da miséria, quase, direi, da servidão.

É mister ser-se um grande poeta — poeta de muito crer e muito esperar, — para poder lançar um olhar seguro por sobre todas essas populações miseráveis dos nossos campos — órfãs da moderna civilização — palpar-lhes todas as feridas, ouvir-lhes todos os queixumes, conhecer todo o fundo de seus males, e vir depois ainda crente, mais crente talvez do que nunca, entoar um hino de esperança e felicidade para esses que por cruel ironia só lhes respondem com lágrimas e gemidos.

II

É que o poeta recebeu de Deus o condão mago de ler na noite de arredado futuro; de ver luz e muita luz aonde outros só veem trevas; flores de amor e de vida, aonde para muitos só brotam os goivos do sepulcro.

Esse lê bem, que assim lê em letras de ouro páginas de esperança e felicidade no grande livro dos destinos da humanidade.

Crê e espera — mas não lhe vem só do coração — de seu condão de poeta — essa crença e essa esperança. — Estudou, pensou, viu muito pelos olhos de sua inteligência, e neste estudo firmou ele em grande parte essa crença, que lhe dá a força de prometer ainda felicidade e muita felicidade para os campos, para os habitadores dos campos e para todos por via deles.

«Aconselhar a agricultura ao povo, diz o autor, é aconselhar-lhe a própria felicidade».

Veremos se o alvitre é tão bom como se apregoa, se não cegou o poeta a própria inspiração.

III

Retemperados pelas águas lustrais dum novo Jordão, por esse baptismo de fogo e sangue, pelo qual à Providencia aprouve fazer-nos passar, como iniciação nos umbrais do templo da liberdade, que a custo íamos conquistando, de tal arte nos cegou a novidade da conquista, tão afanosos nos mostramos no empenho de a bem guardar, que de todo nos esquecemos de que não é ela o fim único (como se já supôs) dos humanos destinos, mas antes um como meio de alcançarmos outros progressos; um primeiro passo, dentre os muitos que ainda temos a dar: uma mera iniciação para aqueles que assentam o seu campo nos ainda mui desertos arraiais do futuro.

Argos vigilantes, perdemo-nos enlevados na contemplação do tesouro, que assim nos traz presa a vista e a alma, sem nos lembrarmos, que em volta a esse pomo de ouro, que com tanto amor guardamos, outras e muito formosíssimas flores se definham e morrem, sem que produzam fruto, à mingua talvez duma gota d'água, com que — a haver boa vontade — se lhes poderia dar vida às raízes sequiosas.

A agricultura, com ser a mais esperançosa para bom fruto, de todas essas flores, que vão murchando no pó ao minguar-lhes o alimento, é por ventura de todas elas a que mais sofre, e a quem mais se recusa esse alento e essa proteção, de que por tantos títulos nos é credora.

IV

Mal de nós, que já nos ficam bem atrás esses tempos em que os grandes homens da maior nação se não envergonhavam de serem encontrados, em meio do rude trabalho das lides agrícolas, por um povo inteiro, que também se não pejava de os ali vir procurar, para os exaltar aos mais altos cargos da republica; e em que esses heróis, lavradores, depondo a toga da ditadura, depois da pátria salva, se sentiam orgulhosos e felizes em voltarem cobertos de louros para o trabalho de seus campos, que em meio haviam deixado!

Já vão longe esses tempos; e todavia a terra, a «Alma mater» dos antigos não cessa de nos abrir o seu seio carinhoso, de nos chamar, de nos sorrir, de nos convidar com todos os seus perfumes, com todas as suas verduras, com todos os seus matizes de mil flores.

Mãe extremosa não conhece filhos ingratos e inconstantes; a todos gerou e a todos há de envolver. Se chora, encobre-nos os prantos; e, em dias de tribulação, lá a temos sempre, que nos estende os braços com afeto indizível, que nos consola, nos acaricia e nos melhora, até que por fim, orgulhosos da própria grandeza, renegamos a mãe que nos deu o ser, e nos afastamos dela, com desprezo, como se não fosse a ela e só a ela, que toda essa grandeza se deve atribuir!...

V

Com efeito, só por ignorância ou por desmedido ou mal fundado orgulho, se pode conceber tal desprezo e tal ingratidão.

A arte de domar a terra, para dela extrairmos aquilo de que mais carecemos na vida, não pode de certo ser apodada de rude, nem menos de desprezível.

Tão velha como o homem, como as suas primeiras necessidades, é-lhe a sua antiguidade segura garantia de excelência e de nobreza; desprezível ninguém de boa fé lhe poderia chamar, sendo que todas as ciências a veneram e cortejam, entre si disputando qual delas lhe prestará maiores serviços.

As cidades, que assombram os campos com seus templos, colunas, praças, grandeza e luxo; os exércitos, que os assolam, impelidos pelo gênio destruidor das batalhas; essas cidades ambulantes, que levam dum mundo ao outro os produtos de todos os climas: todas essas maravilhas de grandeza e inteligência humana, tudo isto saiu dos campos, tudo isto por lá se criou; tudo isto há de muitas vezes, nas longas horas de atribulação e de angustia, lembrar-se com saudade da humilde mas pacifica choça, donde primeiro desabrochara à luz do sol; tudo isto há de deixar de existir, de mover-se, de tumultuar, há de esquecer por fim, que eles hão de continuar ainda, por muito tempo, depois do homem talvez, a vicejar, a florir, a frutificar, sempre belos e sempre risonhos, agora e depois, como no primeiro dia da criação!

VI

A indústria e o comércio, os dois mais poderosos e mais incansáveis agentes e criadores da riqueza das nações, lá tem nos campos alicerce, lá foram buscar à agricultura todas as forças com que operam, todas as galas de que se revestem.

O ferro, com que o homem fabricou novos órgãos, para ajudar os que a natureza lhe dera; o carvão, com o auxílio do qual centuplica as suas forças; lá lhos tinha a terra guardados no seu seio, como mãe carinhosa: o linho, de que fabrica os vestidos que o revestem, também já lourejou pela encosta de suas colinas: o madeiro, que recurvado sulca as ondas em busca de novos mundos, também orgulhoso e gigante se ergueu outrora no meio de suas florestas: o grão, que o nutre; o fruto, que o delicia; o vinho, que lhe dá mais vida e alegria; tudo isto também por lá cresceu e medrou, tudo isto de lá saiu.

A ciência, a mais nobre de todas as ciências de Deus, porque é a ciência do infinito — a astronomia — também lá vai nos campos buscar a sua origem: lá nasceu entre humildes pastores, lá se desenvolveu, até que o homem das cidades, orgulhoso já de sua grandeza, a veio usurpar aos que primeiro a descobriram, para, no remanso do gabinete, ou no terraço do observatório lhe dar ainda maior desenvolvimento.

A geometria — por ventura mãe da astronomia, também nos campos tem seu berço.

Todas as artes lá vão buscar as matérias com que operam, muitas também as suas melhores inspirações.

VII

Como essas cidras maravilhosas da fabula, que, rudes na forma e ingratas ao paladar, em si continham porém tanta formosura, tanta matéria de bem para o mortal feliz a quem dado fosse o abri-las, como elas é também rude e áspera a agricultura na forma e pouco prometedora de prodígios.

Mas para quem bem a essência lhe for especular, para quem, com entranhável amor, a cultivar, para quem, com mãos prodigas, lhe souber dar afagos e carinhos, para esse, semelhante à cidra fabulosa, tem ela um seio rico de muito afeto, de muita matéria de felicidade e beleza, para esse, será ela sempre a amante extremosa, a mãe procriadora de prodígios sem conta.

Qual há, porém, vara magica de fada, que — trocando-a — a chame à vida, a faça abrir ao sorriso e ao amor, lhe dê que do seio amigo brotem todas essas flores de ventura, que lhe sabemos e ela nos promete, mas que sem estranho auxilio não podem desabrochar nem medrar?

Eis aí o problema: mas eis também no livro a resolução, a vara de mago condão, a panaceia universal para os males, sob que geme esta boa terra de Portugal.

VIII

É a associação mãe de tais prodígios, de tantos benefícios, fonte perene e inesgotável, que apregoar-lhe valor e necessidade, além de desnecessário, fora loucura quase rematada.

Com efeito, hoje, à luz do século XIX, quando é orgulho e timbre de toda a ciência o perscrutar bem fundo a alma, a inteligência e o corpo humano, procurando aí todas as leis da sua natureza, para nelas — e só nelas — se estribarem teorias e instituições, hoje desatino seria buscar ainda provas para aquilo, que delas menos carece, sendo que a sociabilidade é, de todas as leis naturais, aquela que mais exuberantemente demonstram as teorias da ciência, e a mais que todas inexorável e severa logica dos factos.

A muitas destas leis pode desobedecer o homem, contra outras se pode totalmente revoltar, mas contra esta, por sem dúvida o tenho, seria tal atentado, que assento jamais poderá realizar-se.

Subtraí os homens — um só momento que seja — ao seu influxo benéfico, e para logo os vereis amesquinhar-se, quando não desaparecer da face da terra.

Condição primaria de sua existência e progresso, há de com ele mais e mais desenvolver-se, que não há aí decreto de rei da terra — fora ele Cesar ou Napoleão — que ouse derrogar o decreto do Eterno!...

IX

É pois a associação o cumprimento duma lei natural.

Na progressiva evolução dessa lei e a par dela, vejo eu caminhar a humanidade; desenvolver-se, se se ela cumpre; estacar, se para; definhar, se esmorece; seguindo-a sempre e ressentindo-se de suas menores alterações.

E é de razão, porque, a ser o fim do homem na terra o desenvolvimento de suas faculdades, que outra há mais nobre e importante; que mais influa nos seus destinos que esta lei da sociabilidade?

Por ela se pode aferir o grau de civilização deste ou destoutro povo porque aí onde mais o homem se estreitar com o homem, aonde mais de um irmão ajudar o outro irmão, aí também mais o espírito tenderá a elevar-se — e de feito se há-de elevar — elevação que toda se desata em muita ciência, muito bem e muita ventura.

Reconhecidos estes princípios, reconhecidos — quase direi — demasiadamente, houve quem deles se possuísse a ponto de neles querer buscar todo um sistema de organização social.

Desvairou-os o amor dum princípio, o conhecimento duma lei natural, por ventura a ignorância de muitas outras; e, encarando o homem por lado restrito, quiseram o desenvolvimento duma faculdade à custa das outras todas.

Não quer isto porém a harmonia, essa outra lei de Deus, que tem de presidir — como revelando-a — a toda a criação.

É mister que a todas as faculdades seja dado um máximo desenvolvimento; mas é mister também que cada uma, ao alargar a sua esfera, não vá calcar outras, a quem igual direito assiste...

X

Por que é lei da natureza humana a liberdade, porque deve o homem responder por suas ações, não quer a boa justiça, não quer a boa razão, que à força — que não com a arma da persuasão — se lhe imponha o cumprimento duma obrigação qualquer, fora ela tão santa, tão prescrita por Deus, tão filha da natureza do mesmo homem como esta da sociabilidade.

Assim, é com a liberdade e só pela liberdade, que tem de efetuar-se este grande pensamento da associação, este grande abraço que obedecendo às leis do próprio ser, tem de — no futuro — dar homens e povos, estreitando cada vez mais os laços que os unem, e centuplicando forças, simpatias e vida.

Problema longo tempo agitado, dá-lhe hoje a ciência cabal resolução. Desde que esta, desprezando teorias incertas e imaginosas, foi buscar como base de seu estudo, para aí fazer alicerce seguro, aos princípios que tinha de formular, a natureza do ser, a quem todos tinham de ser aplicados; desde essa ocasião ganha estava a causa da liberdade.

Podem oferecer-se-lhe mil estorvos, levantar-se contra ela as maiores tormentas, que ela, através de tudo, lá há-de ir sempre seguindo seu caminho, ganhando o terreno palmo a palmo sobre os seus adversários, e libertando o homem cada vez mais do jugo da miséria, da escravidão e do embrutecimento.

XI

Associação e Liberdade: são estas as duas ideias salvadoras — e só elas — que, uma pela outra completando-se, podem levar a bom fim as nossas modernas sociedades.

Associação livre — eis o que em nome da ciência podemos afoutos responder a esses nobres, mas desvairados, sonhadores de utopias, que na fé de uma imaginosa organização social, toda artificio humano, que não segundo as leis do natural organismo, e em nome das santas esperanças e fraternais aspirações, que em abundância lhes enchem as almas generosas, nos prometem, há meio século, o progresso da perfeita felicidade — porventura mais do que ao homem é dado esperar na terra.

XII

A ciência toma o facto, especula-lhe a essência e natureza, observa-lhe as relações, e de tudo deduz as leis que lhe presidem. Pode desimpedidamente apresentá-las à luz do dia, e para o futuro concluir afoutamente do passado; pode e deve-o, que outra não é sua missão.

Mas o que muita vez o frio cálculo e análise refletida deixam por mesquinho ou vulgar, sem daí tirarem matéria para considerações, toma-o para si o coração sensível do poeta; pela imaginação o nobilita e engrandece, na mente lhe forma a robusta estatura; até que aparece em fim gigante de crescidas forças, esse que ainda há pouco, de mesquinho e pigmeu, nem sequer atraía as vistas do investigador curioso.

É assim que a imaginação e a análise, a ciência e a inspiração, uma pela outra se completam, trabalhando cada qual na esfera que por natureza lhe compete, e para fim comum — a Verdade, concorrendo uma e outra na medida de suas forças e aptidões.

São (ou antes deverem ser) duas irmãs queridas e extremosas, em obra comum, empregando desvelos e cuidados; nunca, como até hoje, rivais, que por um mesmo amor, e em nome da mesma causa, se detestam e guerreiam.

XIII

É destes dous elementos — ciência e inspiração — que brotam as nobres ideias e grandes verdades, que por vezes têm mudado a face de uma civilização, quando, em vez de uma à outra se mostrarem hostis para fim comum se têm dado mãos amigas.

Nas porfiosas lutas políticas do século, em que — mais ou menos — todos temos sido atores ou espectadores, se encontra clara prova e exemplo manifesto da proposição que aventamos.

Por longo tempo trabalharam em bandos opostos e à sombra de vario pendão os modernos representantes desses bons princípios, uns e outros prometendo-nos felicidade, mas cada qual em nome de mui diferente divindade; até que, passados que foram os tempos de mais escandecida luta e acalorada discussão, a mesma força da verdade os trouxe a si; e a comum e amigável união lhes soube chamar os ânimos discordes.

Ambos em parte transviados, a ambos contudo assistiam também em parte princípios de verdade. Inimigos, seriam sempre viajantes perdidos em densas trevas, cada vez a se afastarem mais das veredas trilhadas; reconciliados, um ao outro se guiam e ajudam, com as luzes e forças próprias, em nome duma longa amizade no futuro, postas em comum.

E de feito, não é hoje que, no meio dessa plêiade ilustre de generosos espíritos, que anelando ansiosos por um melhor futuro, trabalham afanosos para alivio e engrandecimento dos que choram; não é hoje que entre eles se encontrarão rivalidades de escola, mas indignas de homens, ao bem dos homens votados.

São hoje irmãos. Os erros de cada qual, ao despirem-se dos velhos rancores, sacrificaram-nos no altar da nova aliança; e dentre as cinzas impuras, que o vento dispersa ao longe, saiu — nova Fênix — a flor imarcescível da verdade eterna.

XIV

Associação e Liberdade dissera eu serem essas duas ideias aonde se depara mais verdade e que, ambas fundidas em factos, podem dar fruto mais sazonado e proveitoso; o leito por onde plácida pode correr, demandando seu termo, a torrente — ora revolta e turbada por mil encontrados elementos que aí se revolvem e guerreiam — da vida das modernas sociedades.

E como não seria assim, se ramos frondosos de árvore, que no coração do homem tem fundas as raízes — a própria natureza, têm por fim, entrelaçando-se estreitamente e em mutuo amplexo apertando-se, ampararem-se e defenderem-se uns a outros, porque assim reciprocamente se protejam no crescer e no frutificar? Se são ara sacrossanta aonde os ânimos discordes em busca da verdade — mas que d'alma a buscam, tem de vir pactuar a aliança, queimando aí, em holocausto incruento, o fel de paixões ruins e desamoráveis ¿como poderão elas, por estranho desapego e ingratidão mentir ao que, em nome de futuro melhor, nos prometem, e a que, na fé desse almejado futuro prestamos crença e esperança ilimitadas?

Não podem. Quanto à inteligência e coração do homem se revela uma verdade, tão rica de evidencia, tão prometedora de consolações, não pode «Aquele» que ao espírito a revelara deixá-la sem que pela revelação dos factos receba confirmação e com ela foros de inconfutável.

Uma ideia assim nunca mente.

XV

Descendo das subidas regiões da abstração ao campo mais árido e abrolhoso — mas porventura mais útil, das realidades, da teoria aos factos; o livro, cujo bom espírito por todos quiséramos difundido, como vaso de balsamo suave, que a todos vai ungindo e perfumando, apontando alvitres, que destes bons princípios descendem testemunhando não escasso cabedal de saber, — testifica também aquilatado amor pela ciência e pelos homens; que em muito conta o amor e o entusiasmo para o descobrimento da verdade.

De tantos e tão bons alvitramentos, quantos o livro encerra, um há que, como base de sistema, os resume em si, donde todos descendem, ponto culminante, centro em volta do qual, satélites a lhe refletirem o brilho, volteiam todos os outros, compartilhando com ele a verdade e préstimo com que é dotado.

É este o projecto das «Associações Agrícolas».

Fim