Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

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ANTERO DE QUENTAL

MANIFESTO DOS ESTUDANTES DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

À OPINIÃO ILUSTRADA DO PAÍS

1862-1863

BARCELOS

Tipografia da Aurora do Cavado

Editor — R. V.

1896

Tiragem apenas de 100 exemplares:

20 em papel de linho,

80 em papel d'algodão.

N.º___

O Visconde de S. Jeronimo, Basílio Alberto de Sousa Pinto, por longos anos lente da Faculdade de Direito na Universidade, era seu reitor, e já desde tempos, no ano letivo de 1862 a 1863. O antigo liberal de 1820, deputado às Constituintes de 1821, esquecera, parece, nos fins de sua vida, os princípios com que a inaugurara na cena política, e tornara-se profundamente antipático à Academia, sobre a qual fazia pesar todo o rigor da obsoleta legislação universitária, a mais incongruente, tirânica e injustificável de todas as legislações, cujos artigos draconianos têm resistido a todas as evoluções da ciência do direito e a todas as conquistas da civilização, recordação ominosa, tétrica e fúnebre das idades inquisitoriais.

E conhecendo bem o Visconde de S. Jeronimo a existência dessa antipatia, e que de dia para dia se ia ela exacerbando, rasgando cada vez mais fundo abismo insuperável entre a Academia e ele, em lugar de algo fazer para a diminuir, se não extinguir, punha todo o seu empenho no contrário provocando em tudo e por tudo, sempre que para isso se lhe deparava ensejo, o exaspero dos ânimos dos estudantes.

A tal ponto se foram, em essa maneira, apurando as cousas, que deliberada a grande maioria da Academia a dar ao reitor um testemunho bem solene e frisante de sua incompatibilidade com este, para realização dele foi aprazado o dia 8 de dezembro de 1862, por ocasião da solene distribuição dos prêmios aos estudantes laureados da Universidade, para a qual, desde longuíssima data, destinado e consagrado o dia 8 de dezembro em que a igreja comemora a Conceição de Maria, decretada por D. João 4.º Padroeira do Reino, e Protetora da Universidade.

Efetivamente nesse dia inteiramente apinhada de estudantes a vastíssima sala dos Capelos, onde a solenidade da distribuição dos prêmios se soe realizar, apenas o Visconde de S. Jeronimo começou de falar, na sua qualidade de reitor, inteiramente se evacuou o amplo recinto de todos os estudantes, que o enchiam, voltando-lhe as costas a imensa mole de batinas, que reunida no pátio da Universidade, entusiásticos vivas soltou à liberdade.

O eco imenso que deste notabilíssimo acontecimento então ressoou em toda a Coimbra e naturalmente se repercutiu por todo o reino, e as apreciações diversas que dele foram feitas, motivaram o Manifesto dos estudantes de Coimbra à opinião ilustrada do país, impresso e profusamente distribuído. Elaborou-o Antero de Quental, e este o motivo por que o trazemos a esta coleção de seus trabalhos dispersos.

Rodrigo Velloso

MANIFESTO DOS ESTUDANTES DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

À OPINIÃO ILUSTRADA DO PAÍS

1862-1863

Ao Governo, aos homens desinteressados e liberais desta terra, vamos dar razão do nosso procedimento. Oiçam-nos. Pedimos um quarto de hora de atenção: não é muito que ao prazer e ao interesse se roubem alguns minutos para atender à voz da mocidade de um país. Essa voz parte d'alma: é a voz da eterna justiça.

Todo o facto pede uma explicação. Se o acontecimento é grave, graves devem ser os motivos que o produziram; e, mais que ninguém, homens novos, quando deliberam, podem sim enganar-se, mas a intenção é sempre generosa e nobre.

Pergunta-se hoje em Coimbra, pergunta-se por todo o país: — Que querem os Estudantes da Universidade de Coimbra? Que significa a evacuação da sala dos Capelos no dia 8 de dezembro de 1862? Que protesto é esse duma corporação contra o seu chefe?

Os Estudantes não são meia dúzia de crianças turbulentas que, numa hora de galhofa, se combinem para pregar uma peça engraçada; tantos homens não só intendem, como um bando de rapazes de escola, só com o fim de se divertirem à custa de uma coisa muito séria. Não foi, pois, o prurido da infância o motor daquele acontecimento. Esta hipótese nem se discute. O bom senso da nação rejeita-a como uma ofensa feita a si mesma na pessoa dos seus melhores filhos.

Os Estudantes não são, tão pouco, instrumentos cegos de vinganças pessoais, trabalhando à luz do dia, mas movidos por um braço oculto na sombra. São instrumentos sim, mas da própria causa. O braço que os impele não vem de cima, nem vem de baixo o impulso que os leva. Escutam a voz da consciência e obram.

Os estudantes não são díscolos, amotinadores, facciosos ou assassinos. Pois o leite que se bebe no seio das mães, transformar-se-ia em veneno ao primeiro sorvo do ar de Coimbra? Pois estará tão gangrenado este país que o seu coração — um coração de vinte anos — só abrigue ódios e trevas? orgulho e miséria? Pois será esta a esperança do futuro? Ah! a nação também é mãe; não pode caluniar seus filhos.

A evacuação da sala dos Capelos no dia 8 de dezembro de 1862, o protesto da Academia contra o Reitor da Universidade deve, como todo o facto, ter um motivo e um fim. Partido de uma corporação onde o país reconhece o melhor, o mais puro de seu sangue, deve, mais que nenhum, ter um motivo justo, um fim grave e elevado.

Os que sobre nós lançam o estigma de amotinadores são esses os primeiros a reconhecê-lo. Pois se assim não fosse, se contra si não temessem a justiça da nossa causa, com que motivo adulterar os factos para depois os combater? Quem calunia, quem cria um fantasma para ter a estéril glória de o derrubar ante os olhos do país, é que teme lutar com a verdade, é que sabe que o venceria a verdade, se a confessasse.

Porque os factos foram adulterados. Debaixo da capa do anônimo fomos caluniados por cobardes que à luz do dia não se atrevem a dar com o seu nome garantia às suas palavras. Julgou a boa fé dos nossos vinte anos que em questão tão grave sobrenadaria a justiça e a verdade acima da onda lamacenta do interesse pessoal, da calúnia, das misérias duma ou doutra facção.

Foi ainda um engano. A boa fé do jornalismo do país foi também ludibriada. Quiseram desacreditá-lo, desacreditando-nos, fazendo-lhe repetir o que a malevolência de alguém lhe segredou em hora de estulta inspiração.

Como homens, filhos desta época de liberdade, lamentamos que uma instituição que amamos, porque é a educadora dos povos, a mãe das nações livres, que a imprensa fosse enganada por falsos informadores e, ainda sem o querer, mentisse uma vez à sua missão. Mas, como membros de uma corporação, é do nosso dever, é da nossa honra aceitar a luva que nos lançam, e esclarecer a opinião, salvando desta injustiça a imprensa portuguesa.

Os Estudantes saíram da sala dos Capelos, mas não saíram amotinados. Viraram somente costas a um homem que não amam nem respeitam, porque se não sabe fazer nem respeitado nem amado. Ficar é que seria crime, porque fora uma baixeza.

Os Estudantes, reunidos no terreiro da Universidade, deram vivas à independência, vivas à liberdade, mas não tumultuaram, não se revolucionaram, não deram morras, não pediram a cabeça de ninguém; por que os Estudantes sabem que a cabeça de qualquer homem é sagrada; por que nossas mães não nos ensinaram a soletrar em seus olhos a religião do amor, para nós virmos aqui transformarmo-nos em bandidos e homicidas, e a essa religião transformá-la em lei de morte.

A nós corar-nos-iam as faces de vergonha por este povo, se em Portugal um só homem ousasse tal acreditar.

Não se pediu a morte de ninguém, não se perturbou um ato solene com vozes nem tumultos. Evacuou-se uma sala com o sossego que tal evacuação comporta. Depois — fora, no meio da praça deram-se vivas à liberdade por que não sabíamos ainda aqui que esta palavra tivesse sido riscada, por ordem do Geral dos jesuítas, do dicionário político desta nação.

Que infâmia cometeram os Estudantes da Universidade, saindo duma sala onde não podiam ficar, sob pena de ouvirem cousas desagradáveis para o seu brio, da boca de um homem que se compraz em os amesquinhar?

Que crime cometeram, num país liberal, os filhos dos homens do Mindelo, dando vivas à liberdade?

Sabemos manifestar-nos contra uma autoridade, nos limites da ordem e da lei. Ordem e lei, em terra de livres, não são círculo tão estreito que se não possa dar um passo sem lhes sair logo da periferia.

É esta a verdade. Para a restabelecer temos ainda voz que se erga, fale e se escute em todos os Ângulos desta terra. Falamos: que nos oiça a nação: que a nação são nossos pais, são nossas mães, é o coração de nossas famílias, e aos vinte anos não se aprendeu ainda a linguagem da mentira para falar a um pai e a uma mãe. A verdade é esta. Que se levante alguém e, arrojando a máscara vilã do anônimo, se atreva a desmentir-nos!

Eis o facto. Agora os motivos dele.

Que tem o Reitor da Universidade que mereça tal desaprovação?

Respondam por nós os jornais do país que, há três anos, não cessam de registrar em suas colunas factos sobre factos, iniquidades e misérias. Respondam as representações, os pedidos de justiça, que cada ato seu tem promovido. Responda o corpo catedrático, onde raras vozes amigas encontra a apoiá-lo. Responda a retidão de nossas intenções, — de nós, que o acusamos, que somos moços, e não erguemos a voz contra um homem sem razão, sem muita razão.

Pode supor-se que o corpo docente da Universidade, que devemos julgar prudente e ilustrado; que a mocidade portuguesa, que abriga no coração tanta retidão e justiça; que o jornalismo, eco da opinião pública; que ciência, nobreza de intenções, prudência e ilustração: que tanta gente, e da melhor, em tão diversos sítios, sem se passarem palavra, sem um fim qualquer, se conspire e combine contra um homem, o acuse e guerreie... e que esse homem não tenha dado motivo a esta declaração de guerra? Pode supor-se isto?

Se assim fosse, se a nação supusesse tal do que tem melhor em si... que ideia formaríamos então da opinião pública, da moral deste país?

É uma hipótese que se não discute. Estranho caso, em verdade, é encontrar na história o fado de um homem grande, menosprezado, acusado injustamente por tudo quanto tem em si de melhor uma nação. Será o Reitor da Universidade o Colombo que nós todos desconheçamos?... Que lhe responda a consciência.

Mas não é só contra o Reitor, o sr. Doutor Basílio Alberto de Souza Pinto, que nos manifestamos, contra a autoridade que não cumpre com o dever da justiça, o primeiro e único que lhe impõe o seu cargo. Há aqui mais alguma cousa, e alguma cousa pior. Gememos sob o jugo de uma legislação iniqua, porque é velha; necessariamente injusta, porque é confusa. Cumpre ao Reitor adoçar-lhe o rigor, e, no meio da liberdade que tal confusão lhe dá, escolher sempre em harmonia com a ideia do século, que é a Justiça.

É isso que ele não compreende, é isso que ele não quer; e é contra isto que nós protestamos.

Se uma vez não aplica a lei, se muitas vezes é o arbítrio o seu único código, é isto mau. Mas quando trata de a cumprir, quando é justo, como executor da lei, porque se escuda com ela, incarnar em si todo o rigor da velha instituição, tirar-lhe as últimas consequências, ter na sua mão uma espada, e, podendo escolher entre o gume e as costas, preferir o gume... isto é pior, por que isto é péssimo.

A manifestação contra o Reitor da Universidade é também protesto contra a iniquidade duma legislação atrasada de três séculos, porque este Reitor simboliza todo o rigor dessa lei, porque consubstancia em si tudo quanto há de mau na instituição.

A lei pesa sobre nossas cabeças com o peso de muitos anos, mas o Reitor carrega ainda, com todo o peso da sua mão, sobre o já enorme da lei, e quer-nos esmagar sob a pressão imensa dos anos e do rigor ainda.

Um e outro jugo nos é odioso; contra ambos protestamos.

O Reitor que deu lugar a vermos, em toda a sua fealdade, a injustiça da instituição, abriu caminho a que, manifestando-nos contra ele, nos manifestássemos contra ela também.

São esses os nossos motivos. É este o duplo sentido do nosso protesto.

Em quanto ao fim é claro, depois disto, qual ele seria.

Substituir a voz dos oprimidos, forte porque parte dum coração torturado, à voz da imprensa — essa defensora dos que sofrem, sim, mas que não pode erguer-se tanto, porque não pede em causa própria. O jornal fala, mas como quem discute; perde-se-lhe a voz no meio do tumultuar dos muitos interesses que por aí se agitam. Nós falamos, com o brado dos oprimidos, que todos escutam, que todos devem escutar, porque ninguém negará aos filhos dos herói do Mindelo e do Porto, ainda pálidos pelo sangue que seus pais perderam, regando a árvore da liberdade, ninguém lhes negará, nesta terra de Portugal, o direito de pedir que lhes aliviem o jugo duma lei de opressão e espionagem, que corrompe porque rebaixa e envilece; uma lei velha de séculos, que aqui se esconde temendo a luz da nossa era, a luz do progresso; uma lei que viu e tratou os jesuítas e o poder absoluto; uma lei contemporânea da Inquisição!

Que querem, pois, os Estudantes da Universidade de Coimbra?

Vamos responder a esta última pergunta.

Os Estudantes querem a reforma de um processo inquisitorial; garantias de justiça; que se seja julgado e condenado como homem, como cidadão dum estado livre, e não como relapso fugido aos cárceres do Santo-ofício; que a igualdade perante a lei seja uma realidade aqui, e não risível fantasmagoria; que nos julguem homens desapaixonados, e não os que mais estão no declive escorregadio das vinganças; que se distinga entre ciência e costumes, e acabe por uma vez essa pena infamante que, com um traço negro de tinta, mata a reputação, o futuro de uma vida em começo, quando, muita vez também, não mata o coração de uma família.

Que querem os Estudantes da Universidade?

Que se indague tudo da ciência, que é patrimônio de todos, e nada da vida particular, que é asilo individual e inviolável; que por detrás da cadeira do ensino se não lobrigue o olho do esbirro; que se faça progredir a ciência, e se deixe a moral desenvolver-se por si.

Que querem os Estudantes da Universidade?

Justiça! Um olhar de pai desse Portugal, velho que por todos os lados se remoça, e só teima em esquecer no frio esmirrador da meia-idade... quem? os melhores de seus filhos!

Justiça! Um raio de sol também para nós, desse sol de liberdade e progresso que luz para todo o século, e só a nós nos deixa nas trevas do passado. Um lugar no banquete das garantias-liberais, que nos é devido, porque essa liberdade custou o sangue de nossos pais, o nosso sangue! Garantias para quem quer ser livre, digno e justo; auxilio a estes escravos que querem, um dia, ser homens e cidadãos.