Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

SONETOS

DE
ANTERO

 

 

 

 

EDITOR — STÉNIO.

COIMBRA

Dezembro 1861.

IMPRENSA LITERÁRIA.

DO EDITOR

Pela mão vos trago um vate:

                     Amigo Antero,

Aproxima-te à máquina: o retrato

Quero fique a primor. Eia! Arrepela-me

Essas bastas gadelhas cor das messes

Lá quando ao largo foge em tarde estuosa

O grande Moribundo! Ergue essa fronte!

Fita-me com esse olhar tão sobranceiro

De vivo lume cheio e puro afeto!

Inclina mais ao lado o teu sombreiro,

E assenta no quadril a mão segura

Do braço firme e leal. Estende a perna…

Deixa ficar-te assim, que estás famoso.

Dezembro 1861

STÉNIO

A João de Deus

Como há para cada latitude uma estrela, para cada estrela uma luz sua; há para cada evolução da Arte uma forma própria, única, perfeita.

A forma completa do lirismo puro é o Soneto.

A Ode, como a flor esplêndida do cáctus, abre aos quatro ventos do entusiasmo as suas pétalas brilhantes, fortes, ardentes como os voos altivos, mas seguros, do gênio que julga o espaço seu e tenta avassalar o mundo.

Aquela pompa deslumbra: mas quando o vento da tarde passar, talvez vá achá-la pendida sobre os espinhos da haste, semimorta, sem que do esplendor da manhã lhe reste mais que a túnica de purpura já desbotada, em que se envolve como uma rainha decaída no manto da sua antiga realeza.

Imaginação luxuriante, profusão de ideias, babel confusa de mil elementos encontrados — como reduzir tudo isto à unidade, ao simples?

Impossível. Aquela forma veste uma substancia: é manifestação verdadeira e exata duma evolução da Arte: mas reduzi-la à simplicidade, ninguém o pode fazer, por que a substancia daquela forma é complexa, como o mundo que a gerou. Não é o lirismo puro.

Entre o Mosteiro da Batalha e essa selva gigantesca de colunas, ogivas, abobadas, portais, chamada Catedral de Estrasburgo, há toda a diferença que vai do simples ao complexo, do belo ao grandioso.

Ora o lirismo — o lirismo puro e estreme — vive do belo e não do grande, de simplicidade e não de profusão: o sentimento é um — simples — por que é a parte eterna, imutável, divina do homem: o olho com que vemos a Deus, a mão com que lhe palpamos o seio. A inteligência, a fantasia, são complexas, profusas, múltiplas, por que são o mutável, o progressivo, a porta por onde nos entra o mundo, o pulmão com que aspiramos e respiramos o universo, o imenso.

A Catedral de Estrasburgo é a grande obra da arte humana, o trabalho de mil inteligências, o pensamento da humanidade numa época da sua vida; um Fausto de estrofes de mármore. O Mosteiro da Batalha é a tocante tradução do sentimento eterno da alma, da aspiração imutável a Deus, ao Amor-único, um Evangelho escrito a escopro e buril: uma é ainda a terra; o outro é já o céu.

Pois bem: a ode, o lirismo de cabeça, aonde se espelha o universo, será a Catedral da Meia-Idade: mas o soneto, o lirismo puro da alma, a ideia que traduz o eterno sentimento, é o Mosteiro da Batalha.

* * * * *

Por que?

Por que há uma forma para cada ideia; por que o vestido deve ajustar-se ao corpo, por que cada estatua tem o seu molde diferente.

Qual será a forma do simples? A unidade. O que corresponde ao sentimento? O simples.

Atiremos com uma peça de pano aos ombros deste nu e vejamos o que sai…

O Sentimento não se define: é indefinido; vago; misterioso; aspira, e não sabe o que quer; sonha, e não vê as visões do sonho; chora, e mal sabe o que são lágrimas; corre, e não conhece a terra que pisa; ora, e não sabe que Deus lhe escuta a prece; exulta, ri, entristece, cisma, e não conhece quem lhe deu tristeza ou alegria.

Ei-lo aí o nu, vergonhoso e timorato, fugindo a luz e o ruído, ocultando-se no fundo da alma, como em abrigo profundo o desconhecido.

Daqui, até que apareça à luz do dia, vestido e um pouco próprio para a sociedade, ainda tímido e saudoso de retiro, sim, mas, finalmente, já um tanto desafrontado e senhor de si; desde que o tirem do seu abrigo, até o trazerem para a assembleia dos homens, por quantas transformações, por quantas fases, por quantas mãos não passará ele?!..

Vejamos como se veste o nu, para conhecermos que vestido lhe vai melhor.

Assim:

O Sentimento é o que há em nós de mais irrefletido, mais fatal (ainda que, por outro lado, mais livre) na alma do homem, é — o instinto da alma — Quando o poeta sentiu, na primeira noute em que ergueu ao céu os olhos do espírito, agitar-se-lhe dentro o hospede estranho, ficou como que alheio ao mundo e a si, e mal soube da visita do desconhecido.

Mas, quando uma e outra vez e muitas vezes, sentiu tomarem-lhe a mão e levarem-no pelos espaços ideais a novos e estranhos mundos, olhou em roda, por ver a face ao guia misterioso. Não o viu; mas, no silêncio da noute ouviu dentro de si um sussurro brando e sumido como o da água entre os arbustos, como confidencia de amores dita baixinho e em segredo.

E então prestou o ouvido e escutou.

* * * * *

O que significa isto? o que é este inclinar-se do poeta sobre o fundo da sua alma, interrogando-lhe os ecos, escutando-lhe as vozes que lá dentro murmuram mal-distintas?

É o homem que começa a ter consciência do sentimento:

É a inteligência querendo penetrar n'alma:

É o dedo que se põe sobre o coração, para lhe sentir o pulsar:

É o poeta que se interroga.

E o nu oculta-se, disfarça-se, foge, não se deixa apanhar; mas o olhar perscrutador segue-o por toda a parte, vai-lhe em cima a cada retirada, fita-o nos cantos mais obscuros, e não podendo segurá-lo, ao menos estuda-lhe as feições, toma-lhe os modos, aprende-lhe os jeitos, escuta-lhe as falas e, juntando tudo isto, forma um todo, mais ou menos semelhante, mais ou menos disforme, mas, em todo o caso, retrato que vai pendurar na câmara mais bela, mais escolhida da casa, como no melhor lugar do oratório se guarda a relíquia mais sagrada.

Primeira transformação, pois, do sentimento. O poeta toma conhecimento do que lhe vai n'alma: estuda-se no íntimo: tem consciência dos fatos instintivos do espírito: e a inteligência retrata, como pode, esse estranho que lhe entrou em casa, a quem quer por força conhecer.

A inteligência forma ideia do sentimento.

* * * * *

Eis aí o nosso nu trazido à praça.

Desde que se apossou dele a inteligência, não parece o mesmo: assaltam-no estranhas veleidades, caprichos desconhecidos. Ele o cismador, o solitário, recorda-se do vae soli e lembra-se de comunicar com o mundo, de se mostrar um pouco à luz do dia.

Caro lhe custa o: capricho! Quanto não perdeu ele já com passar de sentimento ao estado de ideia! Quanto não perderá agora passando de ideia a fato!

O seu belo todo já o vimos desfigurado no retrato que inábil fotógrafo lhe tirou: desse pouco, que lhe resta, lá vai ainda perder o melhor, lá se vai envolver na forma, lá vai cobrir-se com vestido… ele… o nu

Por que é preciso vesti-lo; e toda a questão está nisto. Vesti-lo! pois o que tinha ele de melhor senão a sua nudez, a liberdade de movimentos, tão indefinidos, tão vagos, tão belos?!..

Tudo isto lhe vai cobrir o detestável vestido.

O sentimento é o misterioso, o escuro, o vago:

A inteligência, o claro, o preciso, o definido.

Para combinar estes dous termos, quanta dificuldade e, o que é pior, quanto perdido!

Mas ao menos a ideia, sendo já tão má, pode, ainda assim, existir denudada: mas a forma! a forma! não só é clara, precisa, mas, mais que tudo, é vestido.

Procuremos pois ao sentimento, pelo menos, vestidura que o não tolha, que lhe não encubra as belezas, que o deixe senhor de si; finalmente, vestido que lhe vá bem, e esse só pode ser um — Escolhamos:

* * * * *

Aí temos pois o sentimento reduzido a ideia, à procura de forma.

Vejamos as transformações por que passou para, em vista delas, lhe escolhermos uma própria.

A inteligência, tomando conhecimento do sentimento, caminhou gradualmente; primeiro um lado, depois outro; agora esta face e logo aquela: assim se foi a ideia desenhando até que juntas essas partes se formou um todo, a unidade.

Contudo essas partes são homogêneas, como homogêneos são os ramos que se ajuntam num tronco comum: é como se um pintor estudasse uma cabeça — ora de perfil, depois de face, o olhar, o rir, o lábio, a fronte, tudo por sua vez, e ultimamente então fizesse o retrato.

Assim, pois, a forma deve ser também uma só; talhada de uma única peça; da mesma natureza; mas que comece por cobrir bem cada parte, e depois cubram todo e o envolva.

* * * * *

E que há no soneto? Uma unidade perfeita: desenha-se cada ideia parcial de per si, mas não tão independente das outras que não haja entre elas relação, até que a final, juntando tudo num só se apresenta por todos os lados simultaneamente, como em resumo, o fecho — chave de ouro!

Daí, unidade. E simplicidade? Toda: as partes conservam estreito laço entre si: é só um sentimento, só uma a ideia; não são várias, mas vários lados: a unidade final funde-os num todo.

Resumindo;

O sentimento desenha-se de perfil, aos poucos, gradualmente;

A forma acompanha essa evolução: segue-o em cada manifestação parcial.

Desenha-se, por fim, todo e forma-se dele ideia precisa ou, pelo menos, completa;

A forma amolda-se a esta reconstrução, e resume-o igualmente, como que fundindo as partes no todo.

O sentimento é um;

À forma, pela precisão, a que apresenta maior unidade.

É simples;

Ainda a estreiteza dela não permite abraçar mais que o preciso: tudo o que for estranho, rejeita-o por que o não pode conter.

* * * * *

Esta é pois, a forma lírica por excelência: o manto alvo e casto com que tem de se envolver, para ver o dia, aquelas partes mais pudicas, mais melindrosas, mais puras da alma.

Fazer do soneto o molde aonde o cérebro despeje o que concebe independente da alma; as visões da fantasia, apenas; é desconhecer-lhe a natureza, é dar à boémia das praças públicas o vestido, a cintura da virgem.

Esta é a forma superior do lirismo do coração.

Nela tem vindo todos os grandes poetas vasar o que tinham de mais puro na alma, quando, muita vez, cansados, talvez exaustos de imaginação e de ideia, sentiam, todavia, transbordar-lhe o coração, como se tivesse, semelhante ao lago que recebe e nunca vasa, muito e muito ainda para dar, mas que, à falta de quem lho receba, guardasse secreto em si.

Recebeu-lhes, então, o balsamo mais puro de suas almas esta forma generosa e profunda. Dante, Miguel Ângelo, Shakespeare, Camões, admiram-se nas grandes, nas imensas manifestações de suas inteligências, o Inferno, S. Pedro, Otelo, Lusíadas: mas conhecê-los, amá-los, só aonde esta forma bela e pura lhes prestou molde aonde vasassem os sentimentos mais íntimos de suas almas. Ali, admira-se o Artista, mas aqui ama-se o Poeta: ali arrebata-nos o entusiasmo, mas aqui rebentam-nos as lágrimas.

Os Lusíadas são a epopeia dum povo; ser-lhe-ão também epitáfio quando com a sua mão Deus lhe apagar o nome dentre as nações. Mas qual há poema de sofrimento que iguale este final do soneto CLXXVII.

Triste o que espera! triste o que confia!

Aonde há epitáfio, que melhor narre às gerações a vida pelo amor daquela alma nobre, do que este (XIX):

Alma minha gentil que te partiste…

Os Lusíadas são a epopeia do povo: mas a epopeia do Poeta é aquele livrinho apenas lembrado dos Sonetos.

Um é o monumento da nação; outro o do homem: os Lusíadas escreveu-os o

Soldado; mas foi o poeta quem chorou os Sonetos.

Quem fala ai em colunas e estatuas? Camões não se vê, não se funde, não se palpa: sente-se! Que melhor retrato, que maior estatua quereis de que estes versos (CX):

E vou de dia em dia, de ano em ano,

Após um não sei que, após um nada,

Que, quanto mais me chego, menos vejo.

Depois desta, que ele por suas mãos fundiu, ninguém lhe vá tirar as feições!

* * * * *

Esta grande forma estava perdida: sumiu-a um dia Bocage, em meio do delírio dalguma orgia poética, e, tão longe a arrojou, que bem custoso foi achá-la depois. Lembrou-se ainda dela, já quando as grandes sombras lhe vinham do céu descendo sobre a alma, a envolvê-la, para que no caminho não pudesse olhar a terra e perdesse de todo a lembrança deste desterro.

Foi sublime aquela reminiscência! mas a troco de quantos esquecimentos não veio ela?!

Achou-a, depois, um homem — um poeta — digo poeta, por que o esquecimento do seu nome é, nesta terra, a sua melhor coroa: a glória aqui é ser esquecido, por que poetas — poetas não há cá quem os entenda…

João de Deus restituiu-nos o Soneto como ele é, como deve ser: a — forma superior do lirismo — Sem este laço através dos tempos, quem poderia achar aquela forma, para no-la restituir em toda a sua pureza? Certo que não seriam os Castilhos, nem os Lemos, nem…

De Camões até hoje é grande o salto: só alma gémea da do amante de Natércia, poderia assim transpor o abismo de três séculos. É-o. à terra fecundada por Camões custou-lhe a conceber tamanho monstro! Gemeu nas dores e na fronte do poeta bem se divisam angustias que a mãe deu em legado ao filho, e as maiores ainda que lhe deixou seu Pai… mas, João de Deus! quem renegará seu Pai?!

Dezembro 1861.

AD AMIGOS.

Ó voi, ch'avete gl'intelleti sani,

Mirate lá dottrina che s'asconde

Sotto in velame degli versi strani.

DANTE. Inferno.

I.

Ignoto Deo

Que beleza mortal se te assemelha,

Ó sonhada visão desta alma ardente!

Que refletes em mim teu brilho ingente,

Lá como em mar de anil o sol se espelha?

O mundo é grande! e esta ânsia me aconselha

A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,

Vou pelo mundo a ver o Deus clemente

Mas a ara só lhe encontro… nua e velha.

Não é mortal o que eu em ti adoro.

Que és tu aqui? olhar de piedade,

Gota de mel em taça de venenos.

Ah lágrima das lágrimas que choro!

Ah sonho dos meus sonhos! Se és verdade,

Descobre-te, visão, no céu ao menos!

II.

A M. C.
 

Não busco nesta vida glória ou fama:

Das turbas que me imporia o vão ruído?

Hoje deus, e amanhã já esquecido,

Como esquece o clarão de extinta chama!

Foco, que a luz em torno não derrama,

Tal é essa ventura; eco perdido,

Quanto mais se chamou, mais escondido

Fugiu e se esqueceu de quem o chama.

Cada flor dessa croa é um engano,

Como a nuvem das tardes ilusória,

Como o mistério vão dum vão arcano.

Mas c’roe-me tua mão a fronte inglória,

Cinge-me tu o louro soberano…

Verás, verás então se amo essa glória!

III.

Ignoto Deo

Meus dias vão correndo vagarosos

Sem prazer e sem dor, e mais parece

Que este foco int’rior antes fenece

Do que brilha com raios luminosos.

É bela a vida e os anos são formosos,

E nunca ao peito amante amor falece…

Mas, se a beleza aqui nos aparece,

Outra alembra de mais perfeitos gozos.

Minha alma, ó Deus! a outros céus aspira:

Prende-a um instante mundanal beleza,

Mas outra a pátria é por que suspira.

Porem do pressentir dá-me a certeza,

Dá-ma! e contrito — embora a dor me fira —

Eu sempre bendirei essa tristeza!

IV.

A M. E.
 

Terra do exilo! Aqui também as flores

Tem perfume e matiz; também vicejam

Rosas no prado e pelo prado adejam

Zéfiros brandos suspirando amores:

Também cá tem a terra seus primores;

Pelos vales as fontes rumorejam;

Tem a noute seus sopros, que a bafejam,

E o céu tem sua luz e seus ardores.

Em toda a natureza há amor e cantos,

Em toda a natureza Deus se encerra…

E contudo esta é a causa de meus prantos!

Eu sou bem como a flor que não descerra

Em clima alheio. Que importam teus encantos?

Não és, terra do exilio, a minha terra!

V.

A Alberto Telles.

Só! — Ao ermita sozinho na montanha

Visita-o Deus e dá-lhe confiança:

O nauta, que o tufão aos polos lança,

Ainda espera um sopro que o céu tenha!

Só! — Mas quem se assenta em riba estranha,

Longe dos seus, lá tem inda a lembrança:

E inda no peito deixa Deus a esp’rança

A quem à noute chora em erma penha.

Só! — Não o é quem possui na terra um laço

 — Um que seja — que o prenda a este fadário,

Uma crença, uma esp’rança… e inda um cuidado.

Mas cruzar — indif’rente — inertes braços,

Mas passar — entre turbas — solitário,

Isto é ser só, é ser abandonado.

VI.

A Santos Valente.

Estreita é do prazer na vida a taça:

Largo, como o oceano é largo e fundo,

E, como ele, em venturas infecundo,

O cálix amargoso da desgraça.

E contudo nossa alma, quando passa

No p’regrinar da vida pelo mundo,

Prazer só pede à vida, amor fecundo,

Com esta única esp’rança só se abraça.

É lei de Deus este aspirar imenso…

E contudo a ilusão impôs à vida,

E manda buscar luz, e dá-nos treva!

Ah! se Deus acendeu um foco intenso

De amor e dor em nós, na ardente lida,

Por que a miragem cria… ou por que a leva?

VII.

A Florido Telles.

Quando comparo glória ou ouro ou fama

 — Venturas que em si tem oculto o dano —

Com aquele outro afeto soberano,

Que amor se diz e é luz de pura chama,

Vejo que são bem como arteira dama

Que sob o honesto riso, esconde o engano,

E quem as segue como esse que ufano,

Por ir traz do prazer, deixa quem o ama.

Do orgulho vem aquele estranho gozo

E a glória dele só nos vem do orgulho,

Por que só na vaidade tem a palma:

Tem na paixão seu brilho mais formoso

E das paixões, também, some-o o marulho…

Mas a glória de amor… essa vem d'alma!

VIII.

A M. C.

Pôs-te Deus sobre a fronte a mão pod’rosa!

O que fada o poeta e o soldado

Pousou em ti o olhar de amor velado

E disse-te! «mulher, vai! sê formosa.»

E tu, descendo na onda harmoniosa,

Pousaste neste solo angustiado

 — Estrela envolta num clarão sagrado,

Do teu olhar de amor na luz radiosa —

Ah!… quem sou eu, para poder mer’cer-te?

Deu-te o Senhor, mulher! o que é vedado,

Anjo! deu-te o Senhor um mundo à parte.

E a mim, a quem deu olhos para ver-te,

Sem poder mais… cá mim o que me há dado?

Voz pra cantar, uma alma para amar-te!

IX.

Ignoto Deo.

Um dilúvio de luz cai da montanha:

Eis o dia! eis o sol! o esposo amado!

Onde há, por toda a terra, um só cuidado

Que não dissipe a luz que o mundo banha?

Flor, viração, e prado, e erma penha,

Revolto mar ou golfo sossegado,

Onde há hi ser de Deus tão olvidado

Pra que alivio do céu o céu não tenha?

 — Deus é Pai! Pai de toda a criatura:

E a todo o ser o seu amor assiste:

De seus filhos o mal sempre é lembrado —

 — Ah! se Deus a seus filhos dá ventura.

Nesta hora santa… e eu — só — posso ser triste…

Serei filho, mas filho abandonado!

X.

Ad amicos.

 

PROPTER SOLATIUM.

Renasço, amigos, vivo! há pouco ainda

Disse ao viver «afunde-te no nada!»

E já, bem vedes, surjo à luz dourada

 — No lábio o rir, no peito esp’rança infinda —

Ah, flor da vida! flor viçosa e linda!

Envolto na mortalha regelada

Do pensar — perdão! — foste olvida…

Flor do sentir e crer e amar… bem-vinda!

A vida! como a sinto, ardente, imensa!

Não única! tomando a imensidade!

Livre! perante Deus surgindo forte!

Que amor! que luz! que pira, vasta, intensa!

Plenitude! harmonia! realidade!

Mas melhor que tudo isto é sempre a morte.

XI.

A M.C.

No céu! se há céu pra os olhos de quem chora,

Céu, para o peito de quem sofre tanto…

Se há voz de amor, e amor há puro e santo

 — Chama que brilha, mas que não devora…

No céu! se uma alma nesse espaço mora,

Que a prece escuta e enxuga o nosso pranto;

Se há Pai, que estenda sobre nós o manto

Do amor piedoso… que eu não sinto agora:

No céu, ó virgem! findarão meus males;

Hei-de ter vida (por que mais pareço

Sofrer a vida, que lograr favores)

Ali, ó lírio dos celestes vales!

 — Tendo seu fim — terão o seu começo,

Para não mais findar, nossos amores.

XII.

A José Felix dos Santos.

Sempre o futuro! sempre! e o presente

Nunca! Que seja esta hora em que se existe

De incerteza e de dor sempre a mais triste,

E só nos farte a esp’rança um bem ausente!

O futuro! Que importa? se inclemente

Essa hora em que a esp’rança nos consiste,

Chega… é presente… e só à dor assiste?!

Assim, onde é a esp’rança que não mente?

Desventura ou delírio? O que procuro,

 — Se me foge — é miragem enganosa,

 — Se me espera — pior, espetro impuro.

Assim a vida passa vagarosa:

O presente a aspirar sempre ao futuro,

O futuro uma sombra mentirosa.

XIII.

A H. C.

 

OB MAESTITIAM.

Por que descrês, mulher, do amor, da vida?

Por que esse Hermon transformas em Calvário?

Por que deixas que, aos poucos, do sudário

Te aperte o seio a dobra umedecida?

Que visão te fugiu, que assim perdida

Buscas em vão neste ermo solitário?

Que fatal maldição, destino vário,

Te faz trazer a fronte ao chão pendida?

Nenhuma! Todo o bem em ti assiste;

Deus, em penhor, te deu a formosura,

Uma benção do céu traz-te cada hora;

E descrês do viver?! E eu, pobre e triste,

Que só no teu olhar leio a ventura,

Se tu descrês, em que hei-de eu crer agora?…

XIV.

A Alberto Sampaio.

Não me fales de glória: é outro o altar

Onde queimo piedoso o meu incenso,

E, amimado de fogo mais intenso,

De fé mais viva, vou sacrificar.

Que vai a glória, diz! pra se adorar

 — Fumo, que sobre o abismo anda suspenso —

Que vislumbre nos dá do amor imenso?

Esse amor que venturas faz gozar?

Ha outro, mais celeste, mais eterno,

Que, se o busco com fé, não quer fugir-me,

Nem dá, em vez de gozo, negro inferno.

Só esse hei-de buscar, e confundir-me

Na essência do amor, puro, sempiterno…

Quero só nesse fogo consumir-me!

XV.

Ignoto Deo

Vai-te, na asa negra da desgraça,

Pensamento de Amor, sombra duma hora,

Que estreitei tantos sec’los, vai-te — embora! —

Como nuvem que o vento impele… e passa.

Que arrojemos de nós quem mais se abraça,

Com mais ânsia, à nossa alma! e quem devora

Dessa alma o sangue, com que mais vigora,

Como amigo comungue à mesma taça!

Que se torne impossível a esp’rança,

E nunca a dor (que sempre o mal assiste)

E seja única esp’rança a desventura!…

Se em silêncio sofrer fora vingança!…

Envolve-te em ti mesmo, ó alma triste,

Talvez que sem esp’rança haja ventura!…

XVI.

A Q. M. Q.

Fica-te em paz! não pode a mão do homem

Partir o seio à arveloa queixosa,

Quando o canto soltou, e a voz chorosa

Ergueu lá contra as magoas que a consomem.

Respeito o teu sacrário: embora tomem

Por orgulho o respeito; eu colho a rosa

Mas não a flor modesta e melindrosa,

Que se oculta entre as mais… e que as mais somem.

Mais que amor tenho crença: essa existência

Pede-me um culto por que dera a vida,

Por que dou esta dor, que aqui se encerra.

Mulher! mulher! de que valera a essência,

A essência pura, a uma alma que é descrida?…

Fica-te em paz: fique eu com minha guerra!

XVII.

Ignoto Deo.

Corre aos braços da mãe o filho amado;

 — Por olvidar, volvendo a sua história —

Corre à mente do inf’liz doce memória;

Corre à luz dum olhar o olhar buscado:

Vem o alivio animar peito magoado;

Corre o forte a buscar na morte a glória;

Desfeita do viver sombra ilusória,

Foge o espírito livre ao céu ansiado;

Tudo busca quem o ama: a luz dourada

Busca do seu viver, como no escuro

Quem avista uma luz lhe vai ao encontro.

Só tu, ventura! uma vez sonhada;

Só tu, sombra de amor! que em vão procuro,

Só tu, foges de mim, só não te encontro!

XVIII.

Ignoto Deo.

Esp’remos no Senhor! Ele há tornado

Em suas mãos a massa inerte e fria

Da matéria impotente e num só dia,

Luz, movimento, ação, tudo lhe há dado.

Ele ao que é pobre d'alma há tributado

Carinho e amor; Ele conduz à via

Segura quem lhe foge e se extravia,

Quem um momento só não o há lembrado.

E a mim, que aspiro a Ele, a mim que o amo,

Que tenho vida em mim, que anseio o brilho,

Há-de negar-me o termo deste anseio?

Buscou quem o não quis; é a mim, que o chamo,

Há-de fugir-me, como a ingrato filho?

Oh Deus! Senhor! meu Pai! espero! eu creio!

XIX.

A João de Deus.

Se é lei que rege o escuro pensamento

Lutar — em vão — à cata da verdade,

Em vez da luz achar a escuridade,

Ser uma queda nova cada invento;

É lei também, (embora grão tormento)

Buscar, sempre buscar a claridade,

E só ter como certa realidade

O que nos mostra claro o entendimento.

Em tanta confusão, em tanto engano,

O que há-de a alma escolher? se crê, duvida;

Se procura, só acha… o desatino.

Só Deus pode acudir em tanto dano:

Alimente-se a esp’rança doutra vida,

Seja a terra degredo, o céu destino.

XX.

Ignoto Deo

Senhor! eu sou teu filho! eu sou aquele

Que tanta vez pecou, porém, contrito,

Tanta vez tem erguido a ti o grito

Da águia que o tufão no alto compele.

E a águia sofre também, como ave imbele,

E mais que ela (que põe mais alto o fito)

Mas da águia, que lutou, o brado aflito.

Senhor! o teu ouvido não repele.

Eu não caio, meu Deus, sem ter lutado;

Fraco sou, por que sou de barro e limo,

Porem na tua Lei medito e sismo.

E eu sou teu filho! A um filho desgraçado

Que há-de um pai recusar? Oh, dá-me arrimo,

Estende-me tua mão por sobre o abismo.

XXI.

A Germano Meirelles.

Só males são reais, só dor existe;

Prazeres só os gera a fantasia;

Em nada — um imaginar — o bem consiste;

Anda o mal em cada hora, e instante, e dia.

Se buscamos o que é, o que devia

Por natureza ser não nos assiste;

Se fiamos num bem, que a mente cria,

Que outro remédio há hi senão ser triste?

Quem consigo pudesse que não vira,

Que esta vida nos sonhos lhe passasse…

Mas, no que se não vê, labor perdido!

Quem fora tão ditoso que olvidasse…

Mas nem seu mal com ele ali dormira,

Que sempre o mal pior é ter nascido!