Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

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Monteiro Ramalho


AS RATICES

DA

RATTAZZI


O PELO NACIONAL


PORTO
TIP. DO JORNAL DA MANHÃ
215 — RUA DE S. LÁZARO — 215
1880

I

Não pensem que eu vou descarregar algumas baterias de retórica, contra uma audaciosa Maria que revestida de petulância fidalga e principesca — que é mais — divertiu-se em descalçar a luva elegante, para nos atirar à guisa de indomável simpatia, uma bombazinha de espalhafato, a qual por felicidade sua ainda lhe arrebentou na mão gentil.

Não senhores, não vou, não foi para isso que ousadamente me saí do casulo da minha nulidade.

Eu venho muito simplesmente manifestar a minha profundíssima admiração, em face do burburinho espantoso que para aí se está fazendo, por causa dum livrinho tão precioso como o Portugal à vol d'oiseau.

Realmente é-me extremamente doloroso presenciar os maus tratos que todos os dias e por todos os modos, se estão aplicando à pobre princesa, sua autora. Não posso ver isso, revolto-me, indigno-me, porque os acho não só injustos, como violentos, covardes.

A despretensiosa mulherzinha andou um ror de tempo a barafustar atrapalhadamente, no bem honroso empenho de nos tornar conhecidos lá fora, pois tinha tido inúmeras ocasiões de avaliar o quanto essa gente da Europa dá mostras de nunca ter enxergado nas cartas geográficas o nosso delicioso torrão. Ela, a quem um amor genuinamente material impelia para nós, que morria mesmo de desejos por nos cobrir carinhosamente com as páginas amorosas dum livro modesto: — ao ver-nos assim fortes e robustos quais somos, cheios de vigor, perfeitos e belos, sobretudo os do sexo forte — o que decerto mais lhe interessava — , ela entusiasmou-se grandemente, e dominada então de certo despeito também, por se ver literalmente desmentida no seu querido sonho íntimo, foi talvez por isso levada a tratar-nos um pouco mais rudemente.

Ora, a admitir-se esta hipótese, temos de confessar que é esta uma razão perfeitamente inocente, e extraordinariamente natural.

II

É, contudo, incontestável que uma enorme simpatia concebeu por nós, e tanto que não se poupou a prodigalizar aos seus mais afeiçoados, mais escolhidos, mais protegidos, e mais amados, exuberantes provas dos seus principescos sentimentos.

Ninguém, aposto!, ainda se esqueceu desses mais que famosos banquetes, a que concorreram quase todas as notabilidades nacionais, quase todos os gênios que tanto abundam neste país abençoado. E que festas não foram aquelas, ruidosas, sumptuosas, majestosas, celebradas ao som festival de atroadora algazarra de etiqueta principesca; festas em que as saudações ardentes se trocaram com as mais entusiásticas convicções que o Champanhe benéfico podia inspirar; em que os pacatos nomes portugueses foram profanamente assassinados, para cederem o lugar muito resignadamente, a outros de origens incomparavelmente mais honorificas, e significativas; finalmente, em que o delírio por vezes tomou atroadora parte em manifestações febris!

Oh! não! não é possível acreditar-se que tão amável princesa, assim prodiga, benfazeja, protetora, obsequiadora, galanteadora, tudo fizesse com intenções pérfidas, com o estulto capricho de abusar de todos os seus reconhecidos convivas, até ao ponto nefando de os disfrutar ignobilmente!...

A senhora Maria, convençam-se disso, não anda, de modo algum, de má fé conosco. Asseguro-o.

Ela trata-nos mal, convenho. Mas, porque demônio há de a gente ir logo pensar que seja puramente ela, uma pessoa tão boa, tão galante?...

Bem sabem que em toda a parte há maus... secretários, enganadores oráculos, perversos conselheiros, que podiam muito bem aproveitar o ensejo de satisfazer ódios pequeninos, ao prestar à inofensiva senhora as ajudas que ela confiadamente requisitasse dos seus estômagos recompensados.

Antes de a criminarmos, é dever geral procurar perceber na sua proza traquinas, o trilho lodoso dalgum maquiavélico denunciador.

III

Não serei eu que, não obstante, a queira já absolver peremptoriamente.

É certo que a questão está perfeitamente às escuras, e portanto o mais racional é indubitavelmente inculpar a princesa signatária, deixando em paz qualquer assoprador, que aliás tem a atenuante de ser convidado a entrar na insidiosa colaboração.

Por isso também eu agora quero atá-la só a ela, desapiedadamente, ao poste da crítica.

Foi debaixo desta pesada impressão, que quando o indignado clamor público me atirou às mãos o famigerado livro, eu senti-me dominar prodigiosamente por uma explosiva raiva contra a trocista audaciosa, a quem votei logo uma aversão repleta de patriotismo. Pois que! Era assim que a generosa escritora se dignava atirar-nos para o foco deslumbrante da civilização moderna, para Paris!?... Era de mais; tive ganas de ir ter com ela, para desafrontar cavalheirescamente a ultrajada dignidade nacional.

Mas passados os momentos de arrebatamento intempestivo, aquela retratação formal e categórica que já estava fantasiando exigir-lhe, foi conscienciosamente substituída pela mais franca e sonora gargalhada, que jamais eu dei!

Pois é lá razoável que alguém dê importância aos devaneios fantasiosos da sr.ª Maria! Naturalmente aborrecida da sua vida aventureira, empregou as pequeninas horas vagas a expandir sobre o papel, — indefeso por seu mal, que bem envergonhado se havia de achar — as tiradas portentosas da sua imaginação fértil, aproveitando de passagem alguns improvisos humorísticos, com que habilmente quis apimentar a sua já muito frisante crítica — isto concedendo que seja ela a verdadeira autora. Foi amontoando com abundancia tudo quanto lhe pareceu mais interessante, mais pitoresco até; socorreu-se de vez em quando a quaisquer «documentos autorizados», e afinal ofereceu-nos inocentemente esse mimo admirável, que tanto tem irritado os ânimos indígenas.

IV

Em vista disto, é uma dor d'alma dar sete tostões pelo engraçado livro, que não se perdia nada em ser despoticamente condenado a qualquer emprego higienicamente mais utilitário.

Eu já disse que a bomba temerária que ela pretendeu arremessar-nos, estalou-lhe extemporaneamente nas mãos, por felicidade sua. Assim é, com efeito.

Porque se ela se não ferisse, toda queimada pela sua pólvora adocicada, não atrairia de tal forma as desveladas atenções públicas, que se apressaram humanitariamente em ir a socorrê-la, cuidando-a com liberalidade extremosa — comprando-lhe descuidosamente a perola do seu livro.

Um tal acaso quis que os nossos boníssimos corações fossem poderosamente cativados, pela infeliz vítima duma leviandade desculpável. E de fato, estou em dizer desassombradamente que não há de ter a mínima razão de queixa, da nossa solícita caridade, e do nosso arrebatado amor do próximo.

Tamanha parece ter sido a dor pelo mal-aventurado acontecimento, que para cristãmente se prodigalizar consolador alívio à princesa inexperta, tantos exemplares da sua obra foram avidamente comprados, que por pouco ela não ficou esgotada!

Vejam quanto é sempre conveniente, apelar para os sentimentos misericordiosos dum povo de tradições fagueiras, como a nossa!...

A popularizada Maria também noutra qualquer parte podia assim ser alcançada por lamentável desastre, e contudo arriscava-se a que ninguém fizesse caso das suas comoventes lamurias, deixando-a placidamente debater-se, ainda porventura para castigo da sua criancice pouco conforme com a idade comprometedora, nas agonias cruéis de queimaduras terríveis. E então grande seria o seu desgosto ao ver-se desatendida — tendo de guardar os seus industriosos livros.

Mas nós fizemos enorme barulho caritativo, despojando-nos virtuosamente em seu benefício...

V

Ora isto pode ser tudo quanto quiserem, menos razoável, coerente.

Pois se já se sabia que magoando-lhe ferozmente as mãos atrevidas, a nossa caridade proverbial corria logo em seu auxílio com piedoso fervor, para que demônio é que a maltrataram assim, à respeitável Laetizia? Vontade única de lhe serem amavelmente uteis.

Demais, eu acredito, seja embora ingenuidade, que sua alteza recém-casada não conseguiu mais com o seu livro, do que mostrar pretensiosamente os dotes fecundos dum humorismo banal, com que quis amortalhar por sarcasmo pungente, os nossos, hábitos e os nossos homens — e as nossas mulheres também. Mas isto foi impensadamente feito, dum feitio enojante, com umas ideias espirituosas que nos enchem de compaixão pela sua obcecada produtora!

Os disparates disformes sucedem-se numa correria talmente vertiginosa, que a gente chega a perdê-los de vista, sem mesmo lhes poder prestar as devidas homenagens.

A sr.ª Solms achou-nos por cá escondidinhos no nosso impagável cantinho; achou-nos talvez originais ou primitivos; admitiu à custa dos suculentos jantares, muitos turibuladores gratuitos, que a informaram, decerto com minuciosa nudez, dos nossos costumes, encapados brutalmente em exageros de ridículo, e vai ela toma sorrateiramente os seus apontamentos, reúne cuidadosamente as graçolas grosseiras e chatas dos seus galanteadores, faz incondicional aquisição de tudo o que lhe contaram de mesquinho, rebaixador, e infamante — o que está perfeitamente no gênio nacional — e presenteia finalmente a publicidade com o produto curioso de todas as monstruosidades que lhe ensinaram.

Hoje poucos deixarão já de ser concordes nisto, e por consequência, bem que fora de tempo, lamenta-se à uma a prodigiosa popularidade que se dispensou ao interessante livreco.

VI

Porém antes de chegar a este louvável e conveniente apuro, já a sensível honra nacional havia calorosamente protestado contra as difamantes leviandades de Madame, com gestos de indignação soberana, enchendo o espaço amedrontado de brados enérgicos e furiosos, de reclamações ribombantes, uma violenta tempestade prodiga de trovões atroadores, e gravida de raios vingativos.

Ainda mesmo sob o transparente disfarce das réplicas cheias de espírito, daquele espírito português pesado e forte sem subtilidades, os jornais em que elas se escreveram por dias sucessivos, bem faziam compreender que mais eram desafrontas acintosas, ervadas de ressentimentos fúteis, do que pura e simplesmente um recambio bem entendido de tosas frisantes, com a vantagem excelentíssima de serem escudadas pela justiça do despique franco, mas jovial, ou melhor ainda — trocista, singelamente.

Assim, que diabo! satisfizemos talvez a nossa vaidade beliscada, mas não fomos precisamente, verdadeiramente, gente de espírito.!

E querendo absolutamente estatelar a sr.ª Maria Rattazzi nas lamas salpicantes da gargalhada sarcasta, apenas lhe obtivemos à nossa custa, um mais lisonjeiro resultado para o sucesso imprevisto da sua obra, que da mesma forma se viu imediatamente rodeada de importância, com que a sua afortunada autora naturalmente nunca havia sonhado!...

É o caso de dar corda para se enforcar.

Quem sabe a estas horas o que ela estará pensando de todo este espalhafato jornalístico, que se tem agitado tempestuosamente em crescendo de protestos vigorosos contra as suas diatribes pérfidas...

Não posso saber; mas talvez não fosse totalmente despropositado o presumir que se esteja rindo com a melhor vontade do mundo, de tantos adjetivos instigadores, empregados com desperdício.

VII

E, já que infelizmente não podemos fazer outra coisa, suponhamos que o famigerado livro da celebérrima princesa se apresentava aí um dia com o seu risinho de escândalo picante, a desafiar com descaramento canalha os altaneiros brios patrióticos, inchados eternamente de glórias — passadas...

Ninguém fazia caso. Os jornais anunciariam no estilo proverbial estafado, a sua obsequiosa recepção, limitando-se a imprimir-lhe ligeiramente um qualquer dichote, simples de desprezo.

Consequência inevitável? Um silêncio fúnebre: — a morte fulminante do livro audaz; um bem entendido espancamento moral aplicado fleumaticamente sobre a autora pedante do dito, e sobretudo o mais formal e esmagador desagravo da dignidade lusitana.

Haveria com certeza muita gente que o lesse em família: — sorria-se desdenhosamente dum tal montão de inexatidões absurdas, mas com um desdém frio, e ao cabo de algumas horas de leitura, talvez se enojasse ao ponto de o pôr de lado; lamentando apenas aqueles tantos reis que nele empregara irrefletidamente, por curiosidade.

Mas assim, com um tal barulho!... Era uma avidez pasmosa, da parte de todos, em ler desde a primeira à última página, a maravilhosa obra da principesca Maria — na asneira.

Falava-se dela em toda a parte, no teatro, na rua, no clube, no grêmio, em família, de visita; em toda a sorte de conversações. A sua deleitosa leitura suscitou frequentemente largas, acaloradas discussões: uns apoiavam destemidamente as opiniões desmascaradas da princesa, talvez os informadores; outros protestavam energicamente, fazendo retórica furibunda, com gestos tradutores da incalculável indignação, que o seu límpido amor pátrio lhes sugeria.

Em suma, por fim, ainda hoje, é do bom tom falar do livro da Rattazi!...

VIII

Continuemos a imaginar os resultados inestimáveis daquele silêncio funestamente desatendido, por uma leviandade inqualificável...

A sr.ª Maria Laetizia, Solms, Rattazzi e Rutte, e não sei que mais, quando os inúmeros exemplares do seu livro vieram para o explorado Portugal, havia de forçosamente segui-lo passo a passo, com o seu terno afeto maternal, a ver com inexcedível cuidado o que lhe poderia acontecer. Suponho bem ser este um ponto que não pode admitir duvida, porque todos nós nos interessamos vivamente pelo que mais ou menos nos diz respeito, tanto mais quando o objeto é, como o supracitado livro, filho querido das nossas entranhas. (Não esquecer com isto que nunca fêmeas podem conceber, sem o respectivo auxílio produtor dos machos).

De maneira que sua alteza — sua excelência atualmente, e ainda aqui se revela a sua nenhuma vaidade... — havia de portanto procurar logo nos jornais portugueses, conhecer as impressões que ele inspirava.

Com o sucedido, é mais que natural, como já tive ocasião de pressagiar aqui mesmo, que sua excelência se risse expansivamente da nossa ingenuidade quase infantil, saboreando com as maiores doçuras os recentes favos de mel da respectiva lua, que por pouco a não alumia mais vezes do que a sua colega planeta o faz à terra.

Mas se ela se desse todos os dias à ímproba maçada de consultar os ditos jornais, e os achasse sempre muito caladinhos, mudos e sérios, sem caírem na tolice inaudita de lhe popularizar o nome — oh! então é que deveria ser bom vê-la, mesmo que fosse à vol d'oiseau!...

Se bem que já não seja das mais notáveis frescuras, murchava completamente, e repeliria furiosamente horrorizada, os supracitados favos.

O editor parisiense, esse — desgraçado! — bradaria percorrendo agitado o seu estabelecimento pacifico, à imitação de Henrique IV.

 — Ventre — gris!

E maldiria nos seus justos furores do negócio mal afortunado, as rabinices literárias das princesas idiotas.

IX

Sim! hei de sempre maldizer todos os que desprezaram aquele impagável silêncio desprezado.

Porém o mal está feito, irremediavelmente feito; nós prestamo-nos gostosamente duas vezes às gargalhadas feminis duma frívola colecionadora de apontamentos producentes, e agora caminhamos aí por essas ruas já impávidos, cheios de satisfação de nós mesmos, soberbos...

O que resta agora, para se sustentar uma tola questão eterna, é que sua excelência, já despida burguesmente das galas de princesa, escreva também um folheto em resposta aos nossos, e aos artigos verrinosos que a nossa imprensa teve a generosidade de lhe conceder. Gostava de ver isso, só para ter ocasião de apreciar até onde podem chegar os furores dos brios pátrios... O que posso asseverar francamente é que o feliz editor publicava-lho logo, com reconhecimento enorme, certo da boa pechincha que lhe caía em casa, e mandando imediatamente para Lisboa metade da edição — ou mais.

Ora, naturalmente quem se tiver entregue ao ingrato trabalho de me ter lido, dirá — no caso de concordar comigo — , assim com uns ares de censura.

 — Mas porque demônio não vieram, você ou quaisquer outros mais autorizados, prevenir o mau passo errado que se estava dando.

Foram uns cínicos, uns perversos, que vendo como os ânimos em geral ferviam ardentemente, não se apressarão em atirar-lhes um pouco d'água fria...

Eu por mim folgo sem dúvida de não ouvir essas recriminações, porque se o acaso quisesse que sim, teria que por minha vez imitar o belo tipo do Mefistófeles, perguntando-lhes com uma das suas boas gargalhadas, sabem? — num sarcasmo de efeito:

 — Então os senhores decididamente não têm senso comum?...

X

Por conclusão, devo já agora preveni-los de uma coisa, porque talvez ainda não tivessem dado.

Se continuarem muito exaltados contra sua excelência, não sabem quem estimará muito isso, por lhe ser duma grandíssima conveniência?

É — que ela me perdoe! — a ex.ma sr.ª D. Guiomar Torrezão, que terá excelente ensejo de fazer também esgotar os exemplares da sua preciosa tradução.

Bem sei que as letras pátrias iam sofrer muito com essa perda, mas eu apesar de tudo que aí fica dito, ou antes de acordo com isso, preferia que ela nunca visse a luz da publicidade.

E não creia s. ex.ª que eu lhe queira mal, lá isso não. É... por causa dos brios pátrios, com quem se deve ter ainda mais consideração do que com as letras supracitadas, suas irmãs de nome.

Porque o que nos valeu foi eles não saberem francês quase geralmente. Se soubessem arriscava-se a ousada princesa a já não existir a estas horas, não chegando talvez a poder contrair as suas recentes núpcias.

Ora dar-lhe agora a obra em português é um perigo muito grande, porque caso algum esforçado lusitano queira desafrontar a sua pátria ofendida, encontra na sua frente... um marido!

Nada, seja patriota, minha senhora, não queira desgraçar-nos.


Em todo o caso eu apelo para o lápis privilegiado de R. Bordallo Pinheiro para que no caso de reincidências, aplique uma boa escovadela ao pelo nacional.

Desculpe-me ele o conselho, que só tem por fim levá-lo a fazer uma boa ação.

FIM
 

PREÇO 100 RS.