Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

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ACÚRCIO CORREIA DA SILVA

DOR E LUZ

(VERSOS DUM SEMINARISTA)

Tip. França Amado

Coimbra.

ÍNDICE

Meu Pai, Minha Mãe

Carta aos meus condiscípulos

Faustino (Dedicatória)

Tardes

Aos anjos da poesia

Jornada Trágica

Os miseráveis

Os rebelados

Cavadores

Os mendigos

Os poetas

O tuberculoso

Orfãozinhos

Noivos

O boémio

Noiva morta

O doido

Os filósofos

Figuras antigas

Evocações

Ao pé da Luz

Oração

Em paz

MEU PAI,

MINHA MÃE...

Pedindo-vos a benção, comovidamente, com lágrimas nos olhos, ofereço-vos este livrinho — o meu primeiro livro...

Acúrcio.

CARTA AOS MEUS CONDISCÍPULOS

Maio de 1912.

Rapazes.

Estes versos, que agora vos ofereço, repoisam há cinco meses, no fundo da minha gaveta, misturados com muitos outros, que eu de há muito para lá venho lançando, como farrapos do meu coração ardente, como pétalas caídas da minha alma de rapaz.

Não contava publica-los, como não conto publicar uma grandíssima parte desta versalhada desconexa, que aqui se me amontoa pelas gavetas da minha mesinha de estudante, e na qual repousam, adormecidas ou mortas, tantas aspirações ingénuas, tantas ilusões airadas, tantas tristezas ignoradas, intimas...

Mas nós vamos distanciar-nos, ó rapazes! Vamos para muito longe uns dos outros, e — sei lá! — talvez para sempre. É a obra bendita da evangelização social que nos solicita, nos chama.

E já que assim tem de ser, eu queria deixar-vos, antes do apartamento, alguma coisa, — uma recordação — por que mais tarde vos lembrásseis, lá muito ao longe, deste rapaz trigueiro, desgrenhado, de faces escavacadas e fundos olhos erradios, que convosco viveu por aqui a mesma vida, a mesma juventude, as mesmas aspirações de evangelização e amor.

Eu queria deixar-vos alguma coisa, ó companheiros, e escolhi para isso estes versos, que, há meses, no esmorecer doentio e suave do último outono, dediquei à chorada memoria dum nosso camarada, dum nosso amigo, dum nosso condiscípulo morto...

Foram escritos de um jacto, em momentos de febre dolorosa, em quinze dias de vigília doente, pelas horas tenebrosas em que vós dormíeis, rapazes.

Ai! — quantas vezes, enquanto a pena me escorregava vertiginosa pelo papel, chegavam até mim, soluçantes, fugidias, as plangências brandas das serenatas doridas, que cantavam lá embaixo, ao pé do Mondego, Estrada-da-Beira além, o grande, o doloroso funeral das ilusões!

E a pena corria, corria sempre, numa vertigem febril...

Hoje, lendo os meus versos de então, sinto que vibram neles dois gritos enfeixados, unidos: — um grito de angustia amarga e um grito ardente de esperança.

Eu não sou um pessimista, amigos, porque sou um crente. O pessimismo frio e cético não deve ter cabida nos nossos peitos de Seminaristas. Por isso, nos meus pobres versos não rugem trenos desesperados, — suspiram antífonas de esperança... — Esperança na Luz Divina, na Misericórdia Suprema.

Porque o mundo confrange-se na Dor e quase não tem coragem para fitar os Céus, a ver se lhe sorri a esperança nos olhos tristes de Cristo. Ai! — os mais atormentados são os descridos de Jesus!

Eles, que espedaçaram a Cruz e cuspiram às faces pálidas do Mártir do Calvário o escarro de mil insultos, — cantaram ditirambos à Ciência e beijaram à Razão as pernas fuliginosas das barricadas rebéis. E são eles que proclamam hoje a realidade da Dor, — da Dor condição da vida, sem uma estrela a fulgir na noite do nosso destino...

«Para qualquer lado que o nosso olhar se dirija, — escreve um revoltado, o radical Sebastião Faure, — não se encontra senão dor... O sofrimento está em toda a parte, visita o castelo assim como a cabana, mas apresenta-se sob aspectos que se transformam constantemente, e, através de incessantes migrações, metamorfoseia-se até ao infinito. A vida não passa de um longo martírio, desde o primeiro vagido da criança até ao último suspiro do moribundo. O tormento prende o berço ao tumulo. A alegria de viver não é mais do que uma frase... Um aborrecimento enorme se apossou da humanidade. O furioso aquilão curva todas as árvores da floresta, desde o carvalho ao canavial. Da mesma sorte sopra sobre a terra desolada um misto de miséria material, intelectual e moral, que faz inclinar todas as cabeças, — a dos grandes como a dos pequenos, a dos poderosos como a dos fracos, as frontes altivas como as humildes. O martelo do sofrimento, sem nunca parar, esmaga gerações; o cancro da Dor alastra sobre a Humanidade as suas chagas horríveis.» (Sebastião Faure — A Dor Universal).

Estas palavras, rapazes, são dum ateu, dum revoltado. Exprimem perfeitamente, numa cruel amargura, o desalento completo da orgulhosa Razão em face dos sofrimentos da mísera Humanidade. São os homens da Desordem vencidos perante a Dor.

Pois bem, Seminaristas! Nós, — os filhos da Ordem, os homens brandos da Paz, — somos chamados a derramar nesse cancro universal a luz divina da esperança.

Sabemos de há muito tempo, antes que os negativistas o proclamassem desesperadamente, angustiosamente, sabemos de há muito tempo, — porque o Evangelho o diz, — que «a felicidade não é deste mundo.» Mas sabemos também que na alma da Humanidade soará perenemente a música celeste daquela amorável promessa de Jesus: — «Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.»

Na verdade, a Humanidade atravessa um estádio doloroso, trágico. Nuvens densas escurecem o céu, e as almas confrangem-se numa penumbra abafadiça, soturna. Esta penumbra é rasgada, a espaços, por clarões lívidos, deslumbrantes, que estonteiam e cegam. Estes lívidos clarões são as cintilas da Ciência.

Mas estes clarões não bastam. Precisamos de mais luz, — de luz serena, benéfica, — para as almas amarguradas.

Acima destas nuvens cortadas dos relâmpagos das ideias, sacudidas pelo trovão das revoltas, — há um espaço mais sereno, com horizontes mais largos, com claridades mais vivas, mais serenas, mais tranquilas. Nós queremos esse espaço, buscamos esse horizonte, desejamos essa luz...

*

«Amai-vos uns aos outros como irmãos...» — Foi este o preceito novo, que Jesus impôs aos seus discípulos.

Já que vamos para o mundo, hasteie-se em nossas mãos o lábaro da Paz.

Que os maus praguejem, blasfemem: que os maus nos amaldiçoem. Que venham sobre nós os insultos e os escarros, as ameaças e a morte! Ergamos nós para o Alto os nossos olhos tranquilos, e sejam as nossas palavras como um orvalho do Céu a refrigerar este vulcão onde as flores da pureza se fanam amarguradamente, desconsoladamente...

Vai florindo a primavera.

Na folhagem enflorada dos castanheiros do Recreio, as rolas cantam suspirosamente a celebração festiva dos misteriosos noivados...

Por esses campos fora, olhai que festas agrestes, olhai que esteira de flores...

E é à vista deste deslumbramento que o mundo se desespera impiamente, alucinadamente, nos torvelinhos da Dor...

É que o vício alastra, e ódios rugem surdamente, e o desespero aumenta!

*

Ó Seminaristas, — ó Seminaristas de Portugal!

Operários de Jesus, nós devemos ir, mundo além, a semear nas almas a Paz, a Fé nas inteligências, o Amor nos corações.

Não odiemos ninguém. Ninguém! — Porque os que parecem maus não passam, as mais das vezes, de uns néscios, inconscientes, irresponsáveis.

 — Olhai aquele que passa... Nervoso, cartolo teso a escorregar pras sobrancelhas, bigodeiras repontonas, revirando uns olhitos pardos, de través, em ares de superioridade ratona, para os que o saúdam...

É um anticlerical confesso e professo. Amaldiçoa a padralhada com berros de capado. Ri de Cristo e arrota liberdade. Come bem. Digere bem. Um felizardo, no entanto. Mas ide falhar-lhe em padres... Cai Troia. Contorce-se, blasfema, barafusta com acionados de possesso.

Rabisca tropos pelas gazetas e escrevinha, nas horas vagas, brochuras contra os jesuítas... — Quer esmagar a infame com Voltaire; com Diderot desejaria enforcar o último rei nas tripas do último padre, e com Falstaff beberricar boas pingas e ingerir presuntos. Que ele não conhecerá Voltaire, nem Diderot, nem Falstaff... — Arremeda-os mal.

E afinal, coitado, é um pobre diabo... Um bom rapaz. Adora a mulher e os filhos. Tem coração. Será um imbecil... Será. Mas que temos nós com isso? O mal é dele. E o ridículo, o pior mal...

Perdoai-lhes, Senhor, que não sabem o que fazem... — Ali vai outro, — um torturado de alma. Vive na revolta e para a revolta. Cogita em sedições e sonha com barricadas.

E afinal é um ótimo rapaz, uma bela alma. Mal empregado coração em não se enlevar num ideal de amor! E quantos pelo mundo assim, coitados, quantos...

 — Outro que passa... Um operário. Vai negro das forjas, mãos nervudas em sacudidelas bruscas, a ameaçar. É filho dessa raça obscura, que dá vida, que dá seiva ao mundo em troca de migalhas, em troca da miséria.

Nos seus olhos sangrentos, erradios, fosforeja o clarão trágico das revoltas vingadoras...

Vamos até ele, ó rapazes. Aos operários, ó Seminaristas! Dêmos-lhe o ósculo da Paz, num grande abraço de fraternidade, da fraternidade cristã.

Que eles se ajoelhem aos pés da Cruz, do Operário-Deus, do Carpinteiro-Divino. Lancemos uma gota de orvalho àquele desespero ardente...

E eles terão a esperança.

 — Outro ainda. Um nulo. Olhai que olhar aquele... Olhar mortiço, sem expressão, sem vida. É um mártir... — mártir dos próprios vícios. Assa-lhe as carnes, requeima-lhe o aguado sangue a febre das luxúrias desvairadas, das execráveis torpezas, das verde-negras abominações.

Não tem um ideal, uma esperança, um norte.

É um morto, coitado...

 — E aquelas? Quem são elas que passam saracoteando-se, e olhando para nós com uns trejeitos equívocos de deslavada gaiatice? — São as loureiras. Pobres raparigas, pobres escravas!

Porque elas são escravas. Da escravatura branca, que Victor Hugo chora e amaldiçoa.

E lá vão elas, tresloucadas, delambidas, de arcaboiços podres desengonçando-se entre chitas baratas, a vender sorrisos, a dizer torpezas.

Que se lhes há-de fazer? Enxovalha-las mais? que façam isso os maus. Nós somos discípulos de Jesus.

Jesus, que lia nos corações, porque era Deus, sabia fazer dessa lama pedras preciosas, dessas larvas dos bordéis fazia Ele anjos castos. Fitando-as com os seus olhos muito tristes, muito tristes e compadecidos, transformava as Madalenas em anjos místicos, puríssimos, e as pobres Samaritanas em missionarias do Céu...

Mas é que Ele era Deus, e lia no fundo das almas, e nascera de uma Virgem por causa dos pecadores.

Desgraçada a sociedade em que a mulher se corrompe. É o Amor que desce do seu trono azul e santo onde Deus o colocara, é o sentimento que se embota e morre, é a alma que rasteja e já não pode alevantar-se ao alto...

E a prostituição corrói tudo!

As virgens da Lusitânia, os anjos de Portugal, as filhas da nossa Raça, já não esperam nem creem no embotado coração dos homens. E vão sentar-se, coitaditas, a chorar, esmorecidas, nas solidões lutuosas, quando se não entregam — ai! quantas vezes... — desvairadamente, ao turbilhonar do vício, prostituindo-se, perdendo-se!

E o mundo ri, ri de tudo. Da dor resignada que santifica, do amor santo que perfuma, da crença que anima e salva.

E os vates cantam o vício, paixões desvairadas, egoísmos truculentos, abomináveis luxúrias...

E a miséria desalenta os operários rudes, que passam esfrangalhados, enfarruscados de carvão, descridos, desesperados, erguendo para os céus os braços cabeludos, em crispações de ameaças.

É a fome, é a peste, é a guerra, — a trindade trágica devastando as almas!

Ó Seminaristas do meu País, ó meus camaradas, meus amigos! — Abramos résteas de esperança nesta caligem da Dor! Vamos por aí fora, — corações abertos, almas compadecidas, — a fazer nos desesperados a sementeira do Amor...

Ai quem dera nesta sociedade um banho espiritual da caridade do doce anjo de Assis, daquele seráfico espelho do enternecido Jesus...

Ergamos a Cruz bem alto! Que os homens vejam o Cristo, o Divino Mártir, o Deus sofredor das inenarráveis dores. E vereis que das suas chagas vermelhas radiarão pras dores sociais résteas benditas de esperança, santos perfumes de amor...

Seminário de Coimbra.

Vosso do coração

Acúrcio Correia da Silva.

À CHORADA MEMORIA

DO MEU BONDOSO AMIGO E CONDISCÍPULO

JOAQUIM FERREIRA FAUSTINO

ESTES MEUS VERSOS,

COM AS MINHAS LÁGRIMAS E PERPETUA SAUDADE...

Faustino.

Novembro de 1911.

Nesta quadra tão triste, de uma tristeza tão linda, veio a Morte roubar-te ao nosso convívio, ó amigo, ao nosso curso, ó condiscípulo!

É romântica, de um lirismo infinito e doce, uma morte assim, sob os raios agonizantes deste sol outoniço...

À noite, sentado à minha mesinha de estudante, depois de estudar as minhas lições ( — noites beatificas; luar e estrelas; paz infinita nos céus e paz nas coisas dormentes...) — pensei em ti. Muita vez, meu desditoso amigo. E orei pela tua alma...

Depois, a horas mortas, surgiram-me no cérebro escandecido mil impressões dolorosas — como litanias esfarrapadas do folhido agonizante...

O anjo da poesia abriu a asa branca, e deu-me um beijo de febre. E eu cantei...

Os meus versos? — Aqui os tens. São a expressão da vida. Tristes, amargos e tristes, como as antífonas roucas dos mendigos aos portais dos milionários...

Bem sei que tu não os lês. Ninguém os lerá talvez...

Ou antes, ninguém os lerá senão tu... Que importa? — Hei-de lê-los eu, mais tarde, sozinho, quando já for velho (Ai! — se lá chegar...)

Este ramilhetinho de floritas bravias há-de ter um perfume sempre novo para a minha alma alanceada... E talvez então eu chore, com estes meus olhos míopes, hoje tão secos de febre!

Já não há luar. Nuvens e chuva... O vento geme lá fora, ali nos castanheiros (nos nossos castanheiros, ó Faustino!) o Dies irae das tempestades eternas...

Ai! o vento... — É bem a expressão formidável do desespero do mundo.

Ao menos eu tenho a paz, a paz bendita, nesta minha alma ardente, sonhadora. Bendito sejas, meu Deus.

É meia noite... Vou rezar por ti.

Acúrcio.

I

TARDES

    Olhai que tardes estas!

Tardes de outono, tardes de agonia...

Começa o novo sono das florestas...

Deixai dormir os robles e as giestas,

    Que acordarão um dia.

Lá desliza o Mondego a murmurar

As doces melopeias do passado,

(Que hoje só ele as pode relembrar...)

 — Lendas de antigas moiras a cantar

Idílios de outras eras, ao luar

Ou à radiosa luz do sol doirado...

Lá desliza o Mondego a murmurar...

Só podem perceber-lhe as melopeias

As ervinhas rasteiras e as areias...

Olhai os desgrenhados salgueirais,

Curvados a cismar por sobre as águas...

Parecem trovadores medievais,

Chorando em velhas rimas novas mágoas...

Nas cordilheiras pardas e distantes

Adensam-se uns vapores transparentes,

Doirados, luminosos, flutuantes,

Sobre as carquejas ásperas, dormentes...

Na poeira luminosa do sol-pôr

Agacham-se quietinhas, silenciosas,

Dormindo num beatífico torpor,

A casaria, as árvores, as rosas...

Há uma indescritível atonia

Nas vagas tintas que o sol-pôr produz,

 — Como um grande soluço de agonia,

Que lentamente se tornasse em luz...

Andam no ar acentos vagabundos

    De fados lacrimosos,

Como endechas de poetas moribundos,

Ao luar, pelos ermos lutuosos...

    Olhai que tardes estas...

Tardes de outono, tardes de agonia...

Vai dormir o carvalho das florestas

    Para acordar um dia...

II

AOS ANJOS DA POESIA!...

Ó anjos da poesia, ó cândidas beldades,

Irmãs dos querubins, — ó núncias do Céu,

Que me acenais ao longe, ao fundo das idades,

Cantando heroicamente as velhas potestades

Nas cordas triunfais da lira de Tirteu,

E soluçando doces, místicas saudades

Nas cordas pastoris da citara de Orfeu...

Que outrora, celebrando os feitos dos guerreiros

Em versos festivais, homéricos, divinos,

Andastes a cantar p’los flóridos outeiros

Da Grécia sonhadora, e à sombra dos loureiros,

Sentadas nos ilhéus dos golfos azulinos;

E andastes a gravar na casca dos olmeiros

Uns versos amorosos, brandos, pequeninos...

Que voastes para a Itália, e andastes com Virgílio

Por sobre o Mar-Egeu, à flor das ondas lisas;

E chorastes com ele as lágrimas do exílio;

E lhe fechastes, morto, o veludíneo cílio

Daquele olhar, que viu tão largo sem balizas...

E assististes talvez ao magico concilio

Das líricas vestais, das virgens Pitonisas

Vós que inspirastes Tasso e o formidável Dante,

Sentado a meditar ao pé das catedrais,

Levando-o pela mão a ver a casta amante,

A cândida Beatriz, que deslizava hiante

Na trágica mudez dos giros infernais...

Falastes com Petrarca à réstea flutuante

Das noites de luar, das noites medievais...

Que destes alma e vida aos versos de Camões,

O indómito guerreiro, o excelso trovador;

Que lhe inspirastes doces, trémulas canções,

Nas grutas orientais, nos ermos, nas soidões,

 — Canções cheias de fogo e trágicas de dor;

Vós que haveis insuflado aos grandes corações

Os carmes da tragédia e os cânticos do amor...

Ó anjos da poesia, ó cândidas beldades,

De tranças luminosas, loiras como o trigo,

Que me acenais ao longe, ao fundo das idades,

Cantando heroicamente as velhas potestades

Na cítara de Homero — o olímpico mendigo...

Eu canto o sofrimento, e as crenças, e as saudades,

Ó líricas beldades ideais, sede comigo...

III

JORNADA TRÁGICA

    A vida é uma colina

Cheia de escuras e fragosas sendas,

E emergindo da tépida neblina

Das ilusões, dos sonhos e das lendas...

Vinde comigo, ó férvidos amantes

Da Verdade, da Paz, do Bem, da Glória...

Vamos subi-la, — heroicos viandantes,

De olhos fitos nas páginas da História...

Ó pálidos poetas desgrenhados,

    Que andais, à luz do luar,

A percorrer atalhos ignorados,

Esfarrapando sonhos, a cantar...

Eu quero vos mostrar serenamente,

Como um asceta antigo, solitário,

    A perspectiva ingente

    Da vida — este Calvário...

IV

OS MISERÁVEIS

Tendes olhos de ver. Olhai... — Ao fundo,

Nas bocas tenebrosas das cavernas,

Não vislumbrais um turbilhão imundo

De larvas, num grasnido gemebundo

Feito de raiva e maldições eternas?

 — São os ladrões, ferozes valdevinos,

Cujo instinto são ódios e sangueiras!

Alta noite, os seus olhos de assassinos

Fosforejam bravios, reptilinos,

Entre as sarças das velhas carvalheiras...

Pelas trevas, ao som dos temporais,

Quando os ventos ululam nas florestas,

Vão agrupar-se às portas dos casais,

Afiando os mortíferos punhais,

Coçando-os pelas mãos nervosas, lestas...

 — São também vagabundos, — os ciganos,

De barbaças intonsas e nojentas,

Esguedelhados, rotos e marranos,

De testa cancerosa envolta em panos,

Escorrendo matérias fedorentas...

Coitados! Em magotes pelas praças,

Para colher esmolas miseráveis,

Esbracejam ridículas negaças

E rouquejam exóticas chalaças,

Retorcendo as bocarras execráveis...

Pobres ciganos! De olhos estoirados,

Pernas podres e faces caboucadas,

Lá vão a correr mundo, atormentados,

De estômago vazio e pés pisados

Dos duros pedregulhos das estradas...

São inda as torturadas das rameiras,

As pobres raparigas sem pudor,

Que se espojam nas frígidas lameiras,

Ao sol, à chuva, às rijas ventaneiras,

Sem alma, sem destino, sem amor!

São míseros farrapos encharcados

No lodo da torpeza verminada!

Ah! homens, egoístas derrancados!

E ainda vos julgais civilizados,

Ó luxuriosa, estupida manada!

Não lastimais as pobres meretrizes,

Que andam na lama, a chafurdar de rojo?

Chamai à dignidade as infelizes!

 — Ó rapazes, tapemos os narizes;

Sigamos para cima. Isto faz nojo!

V

OS REBELADOS

Quedai-vos. Escutai... Eu oiço (ao certo!)

        Rugidos formidáveis,

Quais se o Inferno se abrisse aqui perto

E vomitasse do bocal aberto

O brado dos tormentos infindáveis...

Já sei, já sei... — É a estranha turbamulta

        Dos homens revoltados,

Que salta, brame, despedaça, insulta,

Como uma formidável catapulta

Feita de homens bravios, desvairados...

São revolucionários contorcidos

        Em grossos turbilhões,

De olhos raivosos, trágicos, ardidos,

Agitando no ar balsões erguidos

Ao sol sangrento das rebeliões.

Filhos do ódio, filhos da desgraça,

        Não têm amor nem esperança!

Esguedelhados, negros, pela praça,

Rangendo os dentes, gritam a quem passa:

 — Vingança, só vingança, só vingança!

Deixá-los trovejar pelos outeiros...

        Oh! Deus lhes mande a paz!

Subamos mais acima, ó companheiros...

(Outono... — Olhai que lindo tempo faz...)

VI

CAVADORES

Ao longe — vedes? — os cavadores,

Filhos do campo, filhos da leiva,

De olhos escuros e cismadores,

Olhos ingénuos de trovadores...

 — Cantam os campos, cantam as flores,

        Cantam a seiva...

Por horas mortas (céu estrelado...)

        Eles lá vão

Lavrar a terra, guiar o arado,

De olhar bondoso e resignado

Posto nos olhos do manso gado,

        Posto no chão...

Vem as chuvadas, as inverneiras;

Rugem os rios, incham ribeiras;

Alagam campos, alagam leiras...

        Vede a desgraça!

Que há-de ele fazer? — De olhar dorido,

Mal almoçado, pior vestido,

Senta-se à porta, esmorecido,

        A ver quem passa...

Vem o calor do sol doirado

        Queimar-lhe o pão!

Que há-de ele fazer, o desgraçado

Do lavrador? — Vai pró eirado,

De aspeto triste, de olhar pasmado,

Cismar na vida, descorçoado,

        Queixo na mão...

Estala a guerra; levam-lhe o filho.

Crescem os ratos, trincam-lhe o milho...

 — Oh! forte praga de ratazanas! —

Branqueja a neve, ruge a nortada...

Lá vai a telha desmantelada

Das alpendradas mais das choupanas!

Ouvide ainda maior desgraça...

Tinha uma filha, — que doce graça

        De rapariga...

Nas largas noites, junto à fogueira,

Lume bendito sobre a lareira,

Ela fiava (gentil fiandeira...)

O linho branco da sua estriga...

Até ao tardo cantar do galo

 — Não imaginam, — era um regalo

O pai velhinho vê-la fiar...

Rufam chuveiros fortes lá fora...

(Ai! Anjo Bento, Nossa Senhora

Seja co'os que andam a esta hora

Sob’las águas turbas do mar!)

Ela era a vida da sua vida;

Ela era o lume do seu olhar,

 — Lume bendito que n'alma brilha.

Como ele lhe queria — rola querida

Nem temos nada que admirar,

        Porque era filha...

Mas sucedeu que em certo dia

(Dia aziago... Ele nem podia

Pensar em tal de olhos enxutos!)

Passou por lá um rapazão...

(Grande patife! Grande ladrão!)

Leva-lhe a sua consolação:

Rouba-lhe a filha, e em troca então

Deixou-lhe a dor, — só dor e lutos!

Malditos sejam os valdevinos

Que andam as jovens a desonrar!

Santos velhinhos, boas famílias,

Guardai dos lobos as vossas filhas

        Dentro do lar...

Vede a desgraça enorme e crua

Do paciente do lavrador!

        — Triste batalha! —

Que há-de ele fazer? Que vida a sua!

Que há-de ele fazer na sua dor?!

O Pai-do-Céu o ajude e valha...

*

Bons lavradores! Chorando ou rindo,

Dizem que vida assim não há...

Vamos, rapazes, vamos subindo;

        Deixai-os lá...

VII

OS MENDIGOS

Sentados pelas orlas dos caminhos,

Olhai os lacrimosos pobrezinhos...

Doentes, velhos, rotos, corcovados,

Alforjes para os ombros, resignados,

Pernas secas, cambaias, retorcidas,

Contando-se uns aos outros suas vidas,

 — Olhai que inigualáveis odisseias...

Aquelas engelhadas caras feias,

Escaveiradas, sujas, com barbaça,

Contraem-se num rictus de desgraça

Riscado pelo dedo da miséria...

Sob a abóbada azul, celeste, etérea,

Sem palácios, sem camas, sem pousadas,

Desde o sol-posto à luz das alvoradas,

Percorrem várias terras a pedir

Côdeas de pão...

                 à noite vão dormir

Sobre a palha dos velhos alpendrais,

Juntamente cos ratos e os pardais,

E cos escrofulosos canzarrões

(Expulsos da cozinha p’los patrões)

Repartindo com eles das esmolas,

Que tiram lentamente das sacolas...

E comem de uma vez jantar e ceia...

Ainda assim vós não fazeis ideia

Como eles são felizes, os mendigos...

No estio vão deitar-se pelos trigos,

De bandulhos pró ar, a meditar

Nas velhas aventuras, ao luar,

Dos tempos da bizarra mocidade,

De que inda têm uns restos de saudade...

Rastejam pela terra as salamandras;

Chilreiam delambidas as calhandras,

Picando por ali o loiro grão...

Que pacífica, ideal consolação

A existência deles descuidada:

 — Pedir, rezar, comer, dormir... Mais nada.

Tardes mornas...

                 As nuvens, pelo azul,

São flotilhas, que vogam para o sul,

Em demanda das Índias encantadas

Onde vivem sereias, silfos, fadas...

No outono, passam líricas manhãs

Ferrando os dentes podres nas maçãs;

E em tardes murmurosas vão-se pôr

Nos ermos, murmurando com fervor

As perfumadas orações antigas

Ensinadas p’las mães (pobres mendigas,

Que o bom Deus desde há muito já lá tem...)

Oh! Nunca esquecem orações de mãe...

Chilreiam cotovias nos valados...

Nas largas noites invernais, coitados,

É que eles sofrem gelos e frieiras!

Por horas mortas, quando as ventaneiras

Lhes fogem cos colmados das cabanas,

Abandonam a enxerga das choupanas,

E vão-se recostar pelos portais

Aonde o frio os mortifica mais!

O vento ulula rouquidões e pragas...

Andam no ar escuridões pressagas,

Que põem calafrios na espinha...

Maldita chuva! — Quanto mais se aninha

O pobrezinho, mais se ensopa e alaga!

Ó santa primavera, Deus te traga...

Primavera! Que tardes deleitosas

Andam no ar ondulações radiosas,

Exalações miríficas das flores...

Que perfusão esplêndida de cores

E os pobres, pelas tardes perfumosas,

Coroam-se de mirtos e de rosas,

E atafulham de rosas a sacola...

Santa abundância, abençoada esmola

A tua, ó primavera do Senhor...

 — Alvorada de rosas e de amor...

VIII

OS POETAS

        Acima companheiros!

Alegres como airadas borboletas,

Visitemos os pálidos poetas,

Que andam a cismar entre os loureiros...

        Seu vulto aos céus se alteia...

Vede-os, rapazes, vede-os... — São aqueles

De olhar ardente! — Vede-os, como eles

Trazem nos olhos o clarão da ideia!

        Nas faces desmaiadas

Veem-se indícios da vigília estoica,

Que passam a cantar em rima heroica

As antigas batalhas porfiadas...

        Seus olhos amoráveis

Andam tristes, vermelhos de chorar,

Em noites silenciosas, ao luar,

As desgraças dos povos miseráveis...

        Espíritos do bem,

«Almas de fogo, que um vil mundo encerra»

Como os denominou quem foi na terra

Entre os maiores trovador também...

        Ó pálidos poetas,

Eu vos saúdo, ó almas desditosas,

Cantores das batalhas ou das rosas,

Coroados de lauréis ou de violetas...

IX

O TUBERCULOSO

Além, sentado à sombra das ramadas,

        No musgo dum rochedo,

Cisma um jovem de faces desmaiadas

        Tão magro que põe medo...

É o tísico. Nos olhos encovados,

        Doridos de sofrer,

Vê-se a resignação dos desgraçados

        Cansados de viver...

Sussurra a aragem fria pelas heras

        Um canto gemebundo,

Como a música etérea das Esferas

        Nos âmbitos do mundo...

Caem as folhas mortas, retorcidas,

        Revelhas pela relva;

E as avezinhas calam-se, transidas

        De frio, pela selva...

Desmaia ao longe o sol... — Que tardes estas

        De mágoas tão profundas!

Andam no ar exalações funestas

        Das rosas moribundas...

Coas chuvas engrossaram as ribeiras.

        Lá passam a gemer,

Levando os esqueletos das roseiras,

        Que acabam de morrer...

Erguem-se ao ar as ramas desnudadas

        Das árvores agrestes;

E as aves vão piar desconsoladas

        à sombra dos ciprestes...

Os ciprestes! — Só eles com o inverno

        Não perdem o vigor...

Bem mostram que no mundo é sempiterno

        O sofrimento, — a Dor!

A tosse (ei-lo a tossir!) Rasga-lhe o peito

        Em bruscas convulsões,

Arrancando-lhe o sangue já desfeito

        Dos pútridos pulmões!

A infância, a mocidade... — esperanças mortas...

        Como isso já lá vai!

Assim expiram ilusões absortas

        No hálito dum ai!...

Pobre tísico! — Os olhos encovados,

        Doridos de sofrer,

Fitam as coisas, brandos, resignados,

        Dispostos a morrer...

X

ORFÃOZINHOS

Crianças — olhai-as — perto,

Desmaiaditas a rir...

Nos olhos um céu aberto,

Nos lábios rosas a abrir...

Não têm mãe, não têm lume.

Sua lareira é o caminho,

 — Como ninhadita implume,

Morta a mãe longe do ninho.

Crianças que não tem lar

Onde o carinho reluz

Nunca aprenderão a amar,

 — São como as rosas sem luz...

Oiço dizer que as crianças

(Anjos de olhar manso e puro...)

São chilreantes esp'ranças

Dum deslumbrante futuro...

Mas estas, que a rua cria,

Magrizelas, definhadas,

 — Quem me assegura que um dia

Não hão-de ser desgraçadas?

Crianças órfãs, sem mãe,

Já nascem com sua cruz,

Como nasceu em Belém

O Deus Menino, Jesus...

 — «São rosas a abrir mimosas

As criancinhas...» — Pois sim!

Só se nós chamarmos rosas

Às florinhas do alecrim...

XI

NOIVOS

        Além cismam dois noivos,

Fitando ao longe a curva azul do céu

Cuns olhos muito tristes, como goivos

À flor duma ilusão que já morreu...

        Quem pode adivinhar

As coisas em que cismam, que mistério?

 — Pensam na nostalgia do luar,

Beijocando os rosais do cemitério...

        Ouvide: — Ela, a sorrir,

Pergunta com brandura:

«Quem primeiro de nós irá dormir

        Naquela sepultura?...»

XII

O BOÉMIO

Cai sobre as coisas um luar de prata,

Luar bendito, que enlanguesce, enleia...

Vem ao longe uma airada serenata,

Soluçando uma antiga melopeia...

Lá vem o tocador. É um vadio,

De guitarra chorosa ao tiracolo...

Passa as noites cantando pelo frio

Cantigas de saudade e desconsolo...

É um boémio, dos parias desgraçados,

De olhos profundos, vagos, erradios

Que vivem a cantar pelos eirados,

E morrem afogados pelos rios...

É dessa raça antiga, vagabunda,

Que atravessava todas as nações

Composta de uma incrível barafunda

De cómicos, mendigos e ladrões...

Ei-lo, — o rebento dessas raças mortas,

(Esparge-se o luar na solidão...)

Cantarolando à lua, pelas portas,

Cantigas de saudade e de paixão...

XIII

NOIVA MORTA...

Num sonho angustioso, eu vi passar por entre as oliveiras desoladas um caixão branco, com muitas fitas roxas...

Era ao sol-posto. Pelo céu, uns farrapitos de nuvens, roxeadas pelo sol agonizante, pareciam goivos sepulcrais a desfolharem-se amarguradamente, desconsoladamente...

Atrás do caixão carpiam-se muitas virgens, vestidas de luto, olhos ardidos pelas lágrimas...

E eu disse para as virgens:

Ó virgens, quem é aquela

Que levam pra sepultura?

Virgens, virgens! Quem é ela,

Tão nova e tão sem-ventura?!

E as virgens, desgrenhadas, lacrimosamente responderam-me:

É a linda morgadinha,

Que levam a enterrar...

Morreu ontem, à noitinha,

Ao despontar do luar...

Era a mais rica e mais bela,

Mais enlevada de amor;

E morreu... Que sorte a dela!

Não faz ideia, senhor...

De que valeu ser tão cheia

De inteligência e beleza?!

Chora tudo lá na aldeia:

Que tristeza! Que tristeza...

Cismava nos áureos planos

Do seu próximo noivado:

E fez só dezoito anos

Pelo setembro passado...

Mais infeliz nunca vi!

Em vez de noivar, morreu...

O bom Deus qui-la pra Si:

Levou-a da terra ao Céu.

Ela era o anjo da graça,

Sempre a sorrir e a cantar...

Tudo passa! tudo passa...

Morreu! — Deixai-nos chorar.

Em noites de escamisadas,

Que se faziam p’la aldeia,

Soltava canções airadas,

Ao clarão da lua cheia...

Tardes mornas de novenas,

Quando íamos enfloradas,

Como irisadas falenas,

Como rolas desvairadas...

Ela era a flor da alegria,

Boca rubra, olhar de luz...

Roubou-a a morte sombria!

Roubou-a... Jesus! Jesus!

Chorai, ó brancas falenas;

Chorai, brisas murmurosas;

Chorai, ó rolas serenas;

Chorai, relvas; chorai rosas...

De que nos vale a beleza,

Que a Morte pode roubar?!

Ai! — que vida, que tristeza.

É só penar, só penar!

E eu, muito comovido, muito triste, disse às virgens, com lágrimas na voz:

Tendes razão, raparigas...

Que valem sonhos, encantos,

Loucas ilusões antigas?...

Tudo se desfaz em prantos!

Aquela tenra florita,

Desfolhada pela morte...

 — Não lhe choreis a desdita.

Não pranteeis sua sorte...

Pois, donzelas, quem nos diz

A nós — corações airados,

Que ela não foi a feliz,

E nós os desventurados?...

Pois, afinal, esta vida,

Mesmo à luz ideal do amor,

Sempre incerta e combalida,

 — O que é ela, senão dor?!

Uma tristeza mortal

Repassa as nossas folganças...

Ai! cachopas, ai! crianças,

Nem é bom falar em tal...

Quando ides pras romarias,

Entre murtas e alamedas,

Como doidas cotovias,

Chilreando airadas, ledas,

Não pensais nesta agonia,

Que nos punge o coração...

 — Levais a alma irradia,

Ceguinha p’la ilusão...

Mas à noite, junto ao leito,

Cismais, à luz do luar,

Em tanto sonho desfeito...

E desatais a chorar!

A vida é uma dor infinda!

Por isso eu vos digo a vós

Que essa defunta tão linda

Foi mais feliz do que nós...

É dela a paz celestial.

(Olhai que faces de arcanjo...)

Morreu santa, virginal,

Santa e pura como um anjo

*

Ó tisicas lacrimosas,

Que à tardinha, a passear,

‘Sfalfadítas de chorar,

Dizeis queixumes às rosas...

Tendes saudades da vida?

Para quê? — Não vale a pena...

Gozareis a paz querida

Da celeste luz serena...

E o luar irá beijar

As vossas campas musgosas.

Que doce amigo o luar,

Ó tísicas lacrimosas...

*

E vós, cachopas, que assim

Pranteais a que morreu,

Não soluceis, porque enfim

Ela é um anjo no Céu...

E olhai: — se a desonra um dia

Vos tem de vir, (Vossa mãe

Morreria de agonia...)

 — Mais vale morrerdes também

E as virgens, acenando-me um adeus, sufocadas pelas lágrimas, lá foram seguindo o caixão, como anjos do desespero, soluçando em coro:

Chorai, ó rolas serenas;

Chorai, brisas murmurosas;

Chorai, ó brancas falenas;

Chorai, relvas; chorai, rosas...

Chorai, estrelas cadentes

Como lágrimas de luz...

Chorai, ó águas correntes...

Ai! Jesus! Jesus! Jesus!

XIV

O DOIDO

Olhai ao longe os ervaçais distantes,

Vereis uma figura desvairada,

Esbracejando rábida na estrada

Com maneiras sinistras, delirantes...

É um louco enrodilhado em panos rotos,

Que anda por aí fugido aos manicómios:

Tem fome; vai, por isso, aos gafanhotos,

E, se os encontra, apanha-os e come-os.

Iroso, magro, sujo, esguedelhado,

Passando a urrar por entre as oliveiras,

É a relíquia talvez dum revoltado,

Que pregou sedições pelas ladeiras...

Vede-o... De olhos bravios e sangrentos,

De mão crispada para os céus erguida,

 — É bem a sombra trágica da vida,

Que vaga pelo mundo, a passos lentos...

Quando na rama ululam ventaneiras,

E a chuva tamborila nas vidraças,

Passeia, em noite escura, p’las ladeiras,

Profetizando trágicas desgraças...

Vagueia pelo campo, a horas-mortas,

E a adormece nas encruzilhadas,

Quando os sapos, de negras pernas tortas,

Rastejam pelas rosas orvalhadas...

Convive cos fantasmas vagabundos,

Entre as sombras dos altos carvalhais...

Por isso sabe os mistérios profundos

Dos sombrios destinos dos mortais...

E há quem o visse, em horas tormentosas,

Ao lívido clarão das trovoadas,

Sentado sobre as rochas alterosas,

De longas cabeleiras desgrenhadas...

Vai passear de noite ao cemitério

A trautear umas toadas lentas,

Como se um velho vínculo funério

O prendesse às ossadas fedorentas...

Se acaso os sinos dobram a defuntos,

O doido rompe em fundo soluçar,

Resmungando nuns místicos assuntos,

Que acabam num raivoso praguejar.

É amigo dos bichos e das rosas...

De manhã vai colhê-las orvalhadas,

E ajunta-as num monte, às chapeladas,

Como se fossem pedras preciosas...

Como vedes, seu rosto é negro, horrífico!

No verão, quando o sol arde nas ladeiras,

Vai-se deitar nas cálidas torreiras,

E adormece num sono beatífico...

Para fugir aos negros manicómios,

Esconde-se nos úmidos esgotos;

Se tem fome, procura gafanhotos,

      Apanha-os e come-os...

XV

OS FILÓSOFOS

É tempo de seguirmos para cima,

        Rapazes; vamos lá:

Que o tempo é um tesoiro que se estima,

Pois é pra isso que o bom Deus o dá.

De olhos profundos, a fitar o chão,

E quedos, quais bramânicos teósofos,

Há uns vultos ali, na solidão,

Imersos em letal meditação...

        Olhai, — são os filósofos.

Os rostos secos, magros de cismar,

Cobrem-nos sórdidas barbaças feias;

Vê-se nos olhos fúlgidos brilhar

        O fogo das ideias...

P’la estrada da nevoenta antiguidade

Vem já de muito longe essa legião,

Esquadrinhando com sofreguidão

        O rastro da Verdade...

No céu da Grécia antiga, — azul, profundo,

Cintila com olímpico clarão

A tríade infindável da Razão,

Iluminando os ângulos do mundo:

 — Aristóteles, Sócrates, Platão...

Esses gênios enormes, admiráveis,

Esses homens de fundos olhos virgens,

Empregaram esforços formidáveis

Por descobrir os Fins mais as Origens...

E algo eles fizeram com efeito:

 — Legaram-nos a nós muitas verdades,

Como grânulos de oiro imperfeito,

Refulgindo na noite das Idades...

Nesse tempo, porém, não viera ainda

Do misterioso Empíreo esse clarão

Pedido tantas vezes por Platão:

 — A voz de Deus com a Verdade infinda

Que rompesse as caligens da Razão...

........................................

Olhai-os hoje ainda... — Olhos erráticos,

Fitos não sei em que visões distantes,

Parecem velhos ermitães lunáticos,

Leitores de alfarrábios esquipáticos,

Sepultos na poeira das estantes...

Surge agora a grandíssima questão,

Que eles (coitados...) querem resolver

Depressa, quanto antes, — bem ou mal...

É a questão do nosso coração,

Deste vago e nostálgico sofrer

Que eles designam Dor Universal...

Este mal, — esta dor, este martírio,

Pertence essencialmente ao coração

Como pertence às pétalas do lírio

Aquela cor tão linda de paixão...

Porém não acreditam, e pretendem

Que o homem, de nascença, é imaculado

Como as viçosas pétalas, que estendem

As açucenas para o sol doirado...

E assim andam tentando realizar

Cá sobre a terra a plena felicidade,

Pondo o homem na peanha dum altar,

Fazendo dele uma auto divindade...

E o mundo, no mais vil materialismo,

Desfaz-se numa infanda corrução,

E, guiado pela rédea do Egoísmo,

Precipita-se no fundo dum abismo

        Onde arde um cataclismo,

Onde rouqueja a fulva sedição!

E passa à flor das coisas a gemer

 — Qual bocejo de quem acorda tarde —

O tédio genial de Schopenhauer,

O imenso pessimismo de Leopardi...

De olhos profundos, a fitar o chão,

Esfíngicos como índicos teósofos,

Olhai os cismadores da soidão,

Em filosófica meditação...

Coitados dos filósofos!

XVI

FIGURAS ANTIGAS

Mais dois passos acima, só dois passos,

E atingiremos a região querida

Onde palpita já, sob os espaços,

        A luz da eterna vida...

Aplainam-se de rosas os caminhos

À luz dum sol mais vivo e triunfal;

Como que ouvimos músicas de ninhos

        Nas franças do sarça!...

Há uma paz bendita, religiosa,

Nesta zona altaneira da colina...

Que esplêndida paisagem majestosa

        Coa vista se domina...

Passam ao longe as sombras vagarosas

Dos domador's dos povos e dos p'rigos,

Erguendo-se das páginas nublosas

        Dos chronicons antigos...

Vede-os... Guerreiros e legisladores,

Caudilhos triunfais das velhas raças,

Olhando para o mundo, ameaçadores,

        De níveas barbaças...

Moisés — esse gigante — ao longe, olhai,

(Aspeto decidido, audaz, profundo...)

Das cristas chamejantes do Sinai

        Falando para o mundo.

Em duas pedras ergue a Lei impressa,

Apregoando-a irado, trovejante!

Os relâmpagos nimbam-lhe a cabeça

        Num halo deslumbrante...

 — Avante para a vida, para a glória,

De encontro aos Filisteus, aos Moabitas

E acendem-se na esperança da vitória

        Os seus Israelitas...

E em marcha heroica, triunfal, radiosa,

Pisando os areais, eles lá vão

Em demanda da terra pampanosa

        Da santa Promissão...

XVII

EVOCAÇÕES...

Eu vislumbro uns estranhos personagens,

Arrastando umas rusticas roupetas

Por sob os toldos verdes das folhagens...

        Olhai... São os Profetas.

Morreram já há muito, escalavrados

Pelas fomes e austeras penitências

Nos desertos, p’los cardos dos valados,

Ao frio, à chuva e às tórridas ardências.

Fitai-os — De cabelos desgrenhados

E grandes barbas brancas, luzidias,

Bracejam pelos cerros, inspirados

P’lo sopro genial das profecias...

É o velho Jeremias, lastimando,

Nos plainos verdoengos de Siquém,

O insondável abismo formidando

Onde vê mergulhar Jerusalém!

Ai! — Na sua lamúria contristada,

Lamúria de tristeza, de desgosto,

E bem toda uma Raça desgraçada,

        Que chora o seu sol-posto...

*

Ó líricas aldeias da Judeia,

Ó rústicos trigais de Zabulom,

Ó árvores florais da Galileia,

Ó águas murmurosas do Sarom...

 — Ó aldeias humildes, aninhadas

Nas encostas, por entre os palmeirais,

Que adormeceis em horas repousadas

Sob o luar das noites orientais...

 — Ó trigais lourejantes, ondulados

Pelas tépidas brisas perfumosas,

Que passam, beijocando nos valados

As corolas balsâmicas das rosas...

Ó árvores escuras, sussurrantes...

Ó airosas e múrmuras palmeiras,

Que dais sombra aos cansados viandantes

        Roídos das poeiras...

Ó águas do Jordão, águas sagradas,

Que rolais sobre a areia, lez-à-lez,

Suspirando umas místicas baladas

        Do tempo de Moisés...

        — Ó coisas orientais...

Ó brancas pombas que arrolais tão bem,

Ó hortos, ó jardins, ó olivais,

        Ó lírios de Belém!

Eu quero ouvir as lástimas antigas

Dos Juízes, dos Reis mais dos Profetas

De longas barbas brancas como estrigas,

De olhos pisados, roxos quais violetas...

Contai-me essas antigas penitências,

Essas heroicas orações estranhas,

Que murmuravam sobre as eminências

        Das ásperas montanhas...

Cantai-me as melopeias contristadas

Das cândidas mulheres bibliais,

Quando iam, ao clarão das alvoradas,

        Pra ceifa dos trigais...

Falai-me dessa Virgem toda luz,

Da mística alegria dessa Mãe,

Quando em seus braços recebeu Jesus

        Na Lapa de Belém...

Falai-me dos grosseiros sacerdotes,

Dos magros e barbudos Fariseus,

E desse esgrouviado Iscariotes,

        Que ousou trair um Deus!

Falai-me de Jesus e seus martírios,

Do seu último gesto de perdão,

        Ó águas do Jordão,

Ó urzes do Calvário, ó roxos lírios...

XVIII

AO PE DA LUZ

Subimos o montículo da Vida...

        Somos chegados. Paremos.

Descobri-vos, rapazes, e ajoelhemos

        Ante a Cruz além erguida...

Envolta numa auréola luminosa,

No topo da existência, ergue-se a Cruz:

 — Tribuna inigualável, majestosa,

        De onde nos fala Jesus...

Cercam-na as almas místicas dos crentes

Num círculo de prantos e orações;

Sobre as rosas astrais dos corações

Vêm os anjos curvar-se reverentes...

Corações, que são rosas redolentes

Abertas nos jardins das solidões,

Sob o influxo das doces radiações

Dos olhos de Jesus meigos e ardentes.

Ó santas almas bem-aventuradas,

Aos pés chagosos de Jesus prostradas,

Dai-me um lugar humilde ao vosso lado...

Ando a correr a via dolorosa

Do mundo, deste mundo desgraçado,

Que me tortura a alma suspirosa...

*

Rapazes! Que encontrastes vós no mundo,

Senão desgostos, lágrimas, saudade?...

Há um cancro antiquíssimo e profundo.

        Que rói a Humanidade...

Esse cancro nojento, pustuloso,

Esse herpe roedor e mal curado,

De onde escorre um pus negro, venenoso,

        — É o cancro do Pecado!

Esse cancro maldito dá vertigens!

Alastra pela praça, pelos lares;

Corrói as carnes lácteas das virgens,

        E cria os lupanares!

Agacha-se nos leitos conjugais;

E açulando odientos vitupérios,

Desvaira, cega, os corações leais

        E faz os adultérios!

Desenvolvendo instintos de cobiça,

Instintos indomáveis, maus, ferinos,

Reprime e calca o Bem, cega a Justiça,

        E forma os assassinos!

Desvaira as corrompidas gerações,

E, derrancando ódios pelas terras,

Lança os povos nas bruscas sedições:

        Fomenta e acende as guerras!

Cancro que é o Mal, é o vício, é o ódio, é o fel,

Fervendo sob o disco azul dos céus...

É o filho predileto de Lusbel,

De garras encrespadas contra Deus!

Dele nasce este pélago de dores,

Este indeciso mal-estar geral,

Que os mil e um profanos pensadores

Hão designado — Dor Universal!...

Ninguém acha o remédio, ó Deus, ninguém!

.......................................

Ó meus amigos, ajoelhai e ouvi:

Remédio deste mal só Deus o tem...

Olhai a Cruz, olhai... — Reside ali.

Ali, naquele Cristo ensanguentado,

De chagas rubras como rosas vivas,

Erguendo ao alto o rosto escalavrado,

Lançando aos homens vistas compassivas...

Ali, naquele Cristo moribundo,

Pregado nos braçais daquela Cruz,

Abrindo o coração sangrento ao mundo,

Em labaredas místicas de luz...

Ali, naquele Cristo de olhos virgens

Fitos nos longes verdes da devesa

Mergulhada nas hórridas caligens

Da formidável dor da Natureza...

*

Ó pombas de Belém, voai em bando...

Espedaçai os corações de dor

À vista do mistério formidando

        Da morte do Senhor!

Ó pombas de Belém, voai em bando...

Chorai, ó violetas de Jessé;

Chorai, ó madressilvas, ó martírios;

Chorai, ó roseirais de Nazaré;

Chorai, ó palmeirais; chorai, ó lírios!

Chorai, ó violetas de Jessé...

Chorai, ó almas bíblicas, antigas...

Ó sombras dos Juízes, dos Profetas;

Ó noivas a cismar entre as espigas,

Pisando as relvas verdes e as violetas!

Chorai, ó almas bíblicas, antigas...

*

Eu queria soluçar em verso brando

O martírio sem nome, formidando,

Do bom Jesus, — do Deus e Senhor nosso...

Para chorar suplicio tão ferino

Eu queria ter um estro ideal, divino...

        Queria... Mas não posso!

XIX

ORAÇÃO

Já que atingimos a mansão da Luz,

Prostremo-nos a orar ante Jesus...

*

Ó Criador das estrelas,

Que fulgem p’lo céu além!

Fizeste coisas tão belas,

 — Faze-nos santos também...

Indescritíveis torturas

Lancinam os corações!

Pois estes são sepulturas

De mil mortas ilusões...

Tuas bênçãos perfumadas

São para os nossos martírios

Qual rocio das alvoradas

Pras urnas roxas dos lírios...

Minha pobre alma de poeta

A Ti se acolhe, Jesus...

Como airada borboleta,

Fujo das Trevas pra Luz...

Das tuas chagas, meu Bem,

Pende a minha imensa esp'rança,

Como de uns beijos de mãe

Pende a vida da criança...

Há uma dor infinita

Na alma da Humanidade:

Pois o mundo hoje gravita

Entre a dor e a impiedade!...

Quem pudera, oh! — quem pudera,

Sob o céu azul, profundo,

Ver florir a primavera

Da crença geral no mundo...

Faze Tu, ó Deus clemente,

(Basta só um teu olhar...)

De cada homem um crente,

De cada peito um altar...

Pois não fizeste as estrelas,

Que palpitam, céu além?...

Se fazes coisas tão belas,

Faze-nos santos também...

XX

EM PAZ...

E tu, ó meu bom amigo

Das agras lides do estudo,

Foste em busca de outro abrigo

 — Para ti findou-se tudo!

Finda-se tudo no mundo

Pras almas santas, louçãs,

Que ao Mistério azul, profundo,

Vão pedir outras manhãs...

Fugiste da noite escura

Pra célica luz vivaz!

Descansa na sepultura,

Amigo, descansa em paz.

Olha as folhas a cair

Dos carvalhos desolados:

Vai a Natura dormir

Sob os gelos branqueados...

Pelas noites de inverneira

Hás-de ouvir, na terra fria,

Os mugidos de agonia,

Que soluça a ventaneira...

E em noites de serenada.

As humanas ilusões

Hão-de cantar à toada

Dos bandolins e violões...

Como leite a flutuar

No sono doce das coisas,

Cairá brando o luar

Sobre a tristeza das loisas...

Ouvirás ao longe o brado

Das serranilhas cantadas

No luar de algum eirado,

Ao chorar das guitarradas...

É o sonho da vida airada,

O brando sonho fugaz...

Mas tu, ó meu camarada,

Deixa-os lá... — Descansa em paz!

FIM