LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Obras Poéticas de Glauceste Satúrnio, de Cláudio Manuel da Costa
Edição de Referência:
A Poesia dos Inconfidentes, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1996.
Obras
De CLÁUDIO MANUEL DA COSTA, Árcade Ultramarino, chamado Glauceste Satúrnio, oferecidas ao Ilmo e Exmo Sr. D. JOSÉ LUIZ DE MENEZES ABRANCHES CASTELO BRANCO, Conde de Valadares, Comendador das Comendas de S. João da Castanheira, S. Julião de Montenegro, Sta. Maria de Viade e Sta. Maria de Locores, da Ordem de Cristo, Governador e Capitão General da Capitania das Minas Gerais etc. etc. etc.
Primus ego in Patriam mecum, modo vita supersit,
Aonio rediens deducam vértice Musas.
VIRGÍLIO, Geórgicas
ILmo E EXmo SR.,
Não é a vaidade de honrar os meus escritos o que me obriga a escrever na frente deles o grande nome de V. Excelência; nem é o empenho de prevenir a mordacidade dos críticos o que me anima a buscar tão superior Mecenas. Persuado-me, com o parecer do Sulmonense, que, se a causa por sua natureza não é boa, se faz pior com o patrocínio: e pouco me devem as produções inúteis da minha ociosidade, na qual perdi apenas as breves horas que pude respirar de uma vida séria. A obrigação, Senhor, e o afeto são os dous fortíssimos e únicos estímulos, que promovem à presença de V. Excelência o meu estéril obséquio. Produzir ao público esta confissão é toda a minha glória.
Não se engane o mundo, se para formar o elogio de V. Excelência espera que eu entre a desenvolver a dilatada série da sua Genealogia. Eu sei que largo campo me pudera oferecer uma Ascendência que, honrando a duas Monarquias, interessou no seu sangue os Senhores Reis D. Fernando em Portugal, e D. Henrique Segundo em Castela. Depois desta ponderação, pouco importará o dizer-se que ela se tem enlaçado com as primeiras casas do Reino. Pouco importará o contar na sua Varonia os títulos e brasões de Noronha, Cascais, Vila Real, Linhares, Bragança, Monsanto, Portalegre, Caminha, Alvito, Povolide, Abranches, Ilha do Príncipe, Óbidos, Angeja e Alegrete. Bastaria apontar que a memória de tão esclarecidos Progenitores foi condecorada em dous de junho de mil setecentos e dous, na Pessoa do Senhor D. Miguel Luiz de Menezes, com o título de Conde de Valadares, título, de que V. Excelência, para honra de Portugal, é o quinto, felicíssimo e legítimo sucessor.
Eu rendo uma profunda veneração a tão ilustre Família, mas deixo esta lembrança, porque V. Excelência tão bem a deixa. Estimando por casualidade a fortuna do berço, nós o vemos fundar a maior nobreza nas ventagens do seu espírito. Virtuoso, liberal, sábio e magnífico, maior pelos merecimentos pessoais do que pelos títulos que tem, nós vemos que os Pobres o amam como seu Pai; os Políticos o atendem como seu Mestre, e os Grandes o respeitam como seu Modelo. Lisboa, enfim, e todo o Portugal publicam as suas virtudes.
Quem não admira o perfeito zelo com que V. Excelência busca em todas as cousas a honra de Deus, a glória do Rei, e o bem dos Vassalos! Quem não louva aquela generosa piedade, com que edifica os Povos, aquela prudência ilustrada, com que regula as ações, e aquela bondade natural, com que se faz universalmente amável! A quem não arrebata o gênio vasto, que brilha em V. Excelência, a penetração viva e delicada, com que tudo compreende, e a ciência dilatada, com que profundou os sistemas da moral mais sã, e da melhor política! Estas são as qualidades que formam o caráter de uma alma grande; e estas são as que distinguem um Herói do resto dos mais homens.
O SENHOR D. JOSÉ, O PRIMEIRO, digno deste nome, e digno de reinar pelos séculos, querendo mostrar a estimação que faz de um Vassalo tão distinto, confiou de V. Excelência o governo das Minas Gerais, da minha pátria, da Capitania mais importante, pois, enfim, é a mais rica.
Oh! E quantas lágrimas não atropelou V. Excelência na ocasião de deixar a Europa! Que suspiros não custou a Lisboa a inveja nobre de ver transportar-se para o Brasil o objeto maior das suas esperanças! O espaço breve de vinte e dous anos, que V. Excelência apenas contava, tinha enchido as gentes de tanta expectação, como pudera fazer recomendáveis os últimos dias de qualquer Grande. A benevolência, a piedade e a inteireza qualificavam à preciosa índole de V. Excelência, não menos no serviço do Rei, que no zelo da Religião.
Ainda, Senhor, ainda se ouvem os suspiros do Hospital, onde V. Excelência, com o emprego de Mordomo-Mor, eternizou a sua virtude. As provas da caridade, que acabou ali de exercitar, foram tão dignas de admiração, quanto maiores de todo o crédito e próprias só do seu grandioso ânimo. Eu mesmo, eu mesmo estou vendo ainda o desordenado tropel de pobres, de doentes e de aflitos, que forcejavam por demorar os passos ao seu Benfeitor. Qual se desfazia em prantos! Qual com os ais embaraçava a despedida! Qual mostrando as chagas àquela mão, que as costumava curar, queria com esta lembrança atrair a compaixão! E V. Excelência cheio de bondade, e cheio de espírito, consolando a uns, beneficiando a outros, abraçando a todos, com amor, com zelo, com piedade, despedindo-se, partindo, voltando... Que é o que faço! Insensivelmente cheguei a enternecer o coração do meu Herói. Bastou uma leve imagem de ternura para abalar as suas entranhas. Eu cedo já, Senhor, eu cedo. Reserve-se à posteridade o estender o nome de V. Excelência e o eco das suas ações. Eu teria uma grande satisfação de ajuntar a minha pena a esta fama.
Felizes os habitadores das Minas! Felizes os Vassalos d'El Rei Fidelíssimo! Feliz a minha Pátria, e feliz eu, que da prudente conduta de um tão grande General devemos auspicar a nós mesmos um governo suavíssimo!
Feliz eu mil vezes que, devendo a V. Excelência a honra de consentir que passem as minhas obras debaixo da sua proteção, tenho a glória de confessar com o mais profundo respeito que sou
De V. Excelência
Súdito obrigadíssimo,
Cláudio Manuel da Costa
SE NÃO FOR MUITA A TUA MALDADE, sempre hás de confessar que algum agradecimento se deve a um Engenho, que desde os sertões da Capitania das Minas Gerais aspira a brindar-te com o pequeno obséquio destas Obras. Conheço que só entre as delícias do Pindo se podem nutrir aqueles espíritos, que desde o berço se destinaram a tratar as Musas: e talvez nesta certeza imaginou o Poeta desterrado que as Cícladas do mar Egeu se tinham admirado de que ele pudesse compor entre os horrores das embravecidas ondas.
Não permitiu o Céu que alguns influxos, que devi às águas do Mondego, se prosperassem por muito tempo: e destinado a buscar a Pátria, que por espaço de cinco anos havia deixado, aqui entre a grossaria dos seus gênios, que menos pudera eu fazer que entregar-me ao ócio, e sepultar-me na ignorância! Que menos, do que abandonar as fingidas Ninfas destes rios e no centro deles adorar a preciosidade daqueles metais, que têm atraído a este clima os corações de toda a Europa! Não são estas as venturosas praias da Arcádia, onde o som das águas inspirava a harmonia dos versos. Turva, e feia, a corrente destes ribeiros, primeiro que arrebate as idéias de um Poeta, deixa ponderar a ambiciosa fadiga de minerar a terra, que lhes tem pervertido as cores.
A desconsolação de não poder substabelecer aqui as delícias do Tejo, do Lima e do Mondego" me fez entorpecer o engenho dentro do meu berço, mas nada bastou para deixar de confessar a seu respeito a maior paixão. Esta me persuadiu invocar muitas vezes e a escrever a Fábula do Ribeirão do Carmo, rio o mais rico desta Capitania, que corre e dava o nome à Cidade Mariana, minha pátria, quando era Vila.
Bem creio que te não faltará que censurar nas minhas Obras, principalmente nas Pastoris onde, preocupado da comua opinião, te não há de agradar a elegância de que são ornadas. Sem te apartares deste mesmo volume, encontrarás alguns lugares que te darão a conhecer como talvez me não é estranho o estilo simples, e que sei avaliar as melhores passagens de Teócrito, Virgílio, Sanazaro e dos nossos Miranda, Bernardes, Lobo, Camões etc. Pudera desculpar-me, dizendo que o gênio me fez propender mais para o sublime: mas, temendo que ainda neste me condenes o muito uso das metáforas, bastará, para te satisfazer, o lembrar-te que a maior parte destas Obras foram compostas ou em Coimbra, ou pouco depois, nos meus primeiros anos, tempo em que Portugal apenas principiava a melhorar de gosto nas belas letras. letras. A lição dos Gregos, Franceses e Italianos, sim, me fizeram conhecer a diferença sensível dos nossos estudos dos e dos primeiros Mestres da Poesia. É infelicidade que haja de confessar que vejo e aprovo o melhor, mas sigo o contrário na execução.
Contra esta obstinação não há argumento: e sendo empresa dificultosa acomodar semelhante gênero de iguaria ao paladar de todos (porque uns o têm muito entorpecido, e outros demasiadamente delicado) contentar-me-ei com que nestas Obras haja alguma cousa que te agrade, ainda que uma grande parte te desgoste. A experiência do contrário me fará condenar o teu gênio, ou de indiscreto, se tudo aprovas, ou de invejoso se nada louvas.
AD LECTOREM
EPIGR.
Ipse sibi plaudat Naso, plaudique peroptet;
Dum videt in formas corpora versa novas:
Exige, fronde virens cingat tua tempora laurus,
Dum blandis resonas, culte Tibulle, modis:
Mœonides longum, longum sibi spondeat œvum,
Qui cecinit segetes, Arma, virumque, Maro:
Non eadem nabis repetuntur munera, Lector;
Cum tibi sim gratus, prœmia digna feram.
I
Para cantar de amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento;
Ouvi pois o meu fúnebre lamento;
Se é, que de compaixão sois animados:
Já vós vistes, que aos ecos magoados
Do trácio Orfeu parava o mesmo vento;
Da lira de Anfião ao doce acento
Se viram os rochedos abalados.
Bem sei, que de outros gênios o Destino,
Para cingir de Apolo a verde rama,
Lhes influiu na lira estro divino:
O canto, pois, que a minha voz derrama,
Porque ao menos o entoa um peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama.
II
Leia a posteridade, ó pátrio Rio,
Em meus versos teu nome celebrado;
Por que vejas uma hora despertado
O sono vil do esquecimento frio:
Não vês nas tuas margens o sombrio,
Fresco assento de um álamo copado;
Não vês ninfa cantar, pastar o gado
Na tarde clara do calmoso estio.
Turvo banhando as pálidas areias
Nas porções do riquíssimo tesouro
O vasto campo da ambição recreias.
Que de seus raios o planeta louro
Enriquecendo o influxo em tuas veias,
Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.
III
Pastores, que levais ao monte o gado,
Vêde lá como andais por essa serra;
Que para dar contágio a toda a terra,
Basta ver se o meu rosto magoado:
Eu ando (vós me vêdes) tão pesado;
E a pastora infiel, que me faz guerra,
É a mesma, que em seu semblante encerra
A causa de um martírio tão cansado.
Se a quereis conhecer, vinde comigo,
Vereis a formosura, que eu adoro;
Mas não; tanto não sou vosso inimigo:
Deixai, não a vejais; eu vo-lo imploro;
Que se seguir quiserdes, o que eu sigo,
Chorareis, ó pastores, o que eu choro.
IV
Sou pastor; não te nego; os meus montados
São esses, que aí vês; vivo contente
Ao trazer entre a relva florescente
A doce companhia dos meus gados;
Ali me ouvem os troncos namorados,
Em que se transformou a antiga gente;
Qualquer deles o seu estrago sente;
Como eu sinto também os meus cuidados.
Vós, ó troncos, (lhes digo) que algum dia
Firmes vos contemplastes, e seguros
Nos braços de uma bela companhia;
Consolai-vos comigo, ó troncos duros;
Que eu alegre algum tempo assim me via;
E hoje os tratos de Amor choro perjuros.
V
Se sou pobre pastor, se não governo
Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;
Se em frio, calma, e chuvas inclementes
Passo o verão, outono, estio, inverno;
Nem por isso trocara o abrigo terno
Desta choça, em que vivo, coas enchentes
Dessa grande fortuna: assaz presentes
Tenho as paixões desse tormento eterno.
Adorar as traições, amar o engano,
Ouvir dos lastimosos o gemido,
Passar aflito o dia, o mês, e o ano;
Seja embora prazer; que a meu ouvido
Soa melhor a voz do desengano,
Que da torpe lisonja o infame ruído.
VI
Brandas ribeiras, quanto estou contente
De ver nos outra vez, se isto é verdade!
Quanto me alegra ouvir a suavidade,
Com que Fílis entoa a voz cadente!
Os rebanhos, o gado, o campo, a gente,
Tudo me está causando novidade:
Oh como é certo, que a cruel saudade
Faz tudo, do que foi, mui diferente!
Recebei (eu vos peco) um desgraçado,
Que andou té agora por incerto giro
Correndo sempre atrás do seu cuidado:
Este pranto, estes ais, com que respiro,
Podendo comover o vosso agrado,
Façam digno de vós o meu suspiro.
VII
Onde estou? Este sítio desconheço:
Quem fez tão diferente aquele prado?
Tudo outra natureza tem tomado;
E em contemplá-lo tímido esmoreço.
Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço
De estar a ela um dia reclinado:
Ali em vale um monte está mudado:
Quanto pode dos anos o progresso!
Árvores aqui vi tão florescentes,
Que faziam perpétua a primavera:
Nem troncos vejo agora decadentes.
Eu me engano: a região esta não era:
Mas que venho a estranhar, se estão presentes
Meus males, com que tudo degenera!
VIII
Este é o rio, a montanha é esta,
Estes os troncos, estes os rochedos;
São estes inda os mesmos arvoredos;
Esta é a mesma rústica floresta.
Tudo cheio de horror se manifesta,
Rio, montanha, troncos, e penedos;
Que de amor nos suavíssimos enredos
Foi cena alegre, e urna é já funesta.
Oh quão lembrado estou de haver subido
Aquele monte, e as vezes, que baixando
Deixei do pranto o vale umedecido!
Tudo me está a memória retratando;
Que da mesma saudade o infame ruído
Vem as mortas espécies despertando.
IX
Pouco importa, formosa Daliana,
Que fugindo de ouvir me, o fuso tomes;
Se quanto mais me afliges, e consomes,
Tanto te adoro mais, bela serrana.
Ou já fujas do abrigo da cabana,
Ou sobre os altos montes mais te assomes,
Faremos imortais os nossos nomes,
Eu por ser firme, tu por ser tirana.
Um obséquio, que foi de amor rendido,
Bem pode ser, pastora, desprezado;
Mas nunca se verá desvanecido:
Sim, que para lisonja do cuidado,
Testemunhas serão de meu gemido
Este monte, este vale, aquele prado.
X
Eu ponho esta sanfona, tu, Palemo,
Porás a ovelha branca, e o cajado;
E ambos ao som da flauta magoado
Podemos competir de extremo a extremo.
Principia, pastor; que eu te não temo;
Inda que sejas tão avantajado
No cântico amebeu: para louvado
Escolhamos embora o velho Alcemo.
Que esperas? Toma a flauta, principia;
Eu quero acompanhar te; os horizontes
Já se enchem de prazer, e de alegria:
Parece, que estes prados, e estas fontes
Já sabem, que é o assunto da porfia
Nise, a melhor pastora destes montes.
XI
Formosa é Daliana; o seu cabelo,
A testa, a sobrancelha é peregrina;
Mas nada tem, que ver coa bela Eulina,
Que é todo o meu amor, o meu desvê-lo:
Parece escura a nove em paralelo
Da sua branca face; onde a bonina
As cores misturou na cor mais fina,
Que faz sobressair seu rosto belo.
Tanto os seus lindos olhos enamoram,
Que arrebatados, como em doce encanto,
Os que a chegam a ver, todos a adoram.
Se alguém disser, que a engrandeço tanto
Veia, para desculpa dos que choram
Veja a Eulina; e então suspenda o pranto.
XII
Fatigado da calma se acolhia
Junto o rebanho à sombra dos salgueiros;
E o sol, queimando os ásperos oiteiros,
Com violência maior no campo ardia.
Sufocava se o vento, que gemia
Entre o verde matiz dos sovereiros;
E tanto ao gado, como aos pegureiros
Desmaiava o calor do intenso dia.
Nesta ardente estação, de fino amante
Dando mostras Daliso, atravessava
O campo todo em busca de Violante.
Seu descuido em seu fogo desculpava;
Que mal feria o sol tão penetrante,
Onde maior incêndio a alma abrasava.
XIII
Nise? Nise? onde estás? Aonde espera
Achar te uma alma, que por ti suspira,
Se quanto a vista se dilata, e gira,
Tanto mais de encontrar te desespera!
Ah se ao menos teu nome ouvir pudera
Entre esta aura suave, que respira!
Nise, cuido, que diz; mas é mentira.
Nise, cuidei que ouvia; e tal não era.
Grutas, troncos, penhascos da espessura,
Se o meu bem, se a minha alma em vós se esconde,
Mostrai, mostrai me a sua formosura.
Nem ao menos o eco me responde!
Ah como é certa a minha desventura!
Nise? Nise? onde estás? aonde? aonde?
XIV
Quem deixa o trato pastoril amado
Pela ingrata, civil correspondência,
Ou desconhece o rosto da violência,
Ou do retiro a paz não tem provado.
Que bem é ver nos campos transladado
No gênio do pastor, o da inocência!
E que mal é no trato, e na aparência
Ver sempre o cortesão dissimulado!
Ali respira amor sinceridade;
Aqui sempre a traição seu rosto encobre;
Um só trata a mentira, outro a verdade.
Ali não há fortuna, que soçobre;
Aqui quanto se observa, é variedade:
Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!
XV
Formoso, e manso gado, que pascendo
A relva andais por entre o verde prado,
Venturoso rebanho, feliz gado, Que à bela
Antandra estais obedecendo;
Já de Corino os ecos percebendo
A frente levantais, ouvis parado;
Ou já de Alcino ao canto levantado,
Pouco e pouco vos ides recolhendo;
Eu, o mísero Alfeu, que em meu destino
Lamento as sem razões da desventura,
A seguir vos também hoje me inclino:
Medi meu rosto: ouvi minha ternura;
Porque o aspecto, e voz de um peregrino
Sempre faz novidade na espessura.
XVI
Toda a mortal fadiga adormecia
No silêncio, que a noite convidava;
Nada o sono suavíssimo alterava
Na muda confusão da sombra fria:
Só Fido, que de amor por Lise ardia,
No sossego maior não repousava;
Sentindo o mal, com lágrimas culpava
A sorte; porque dela se partia.
Vê Fido, que o seu bem lhe nega a sorte;
Querer enternecê-na é inútil arte;
Fazer o que ela quer, é rigor forte:
Mas de modo entre as penas se reparte;
Que à Lise rende a alma, a vida à morte:
Por que uma parte alente a outra parte.
XVII
Deixa, que por um pouco aquele monte
Escute a glória, que a meu peito assiste:
Porque nem sempre lastimoso, e triste
Hei de chorar à margem desta fonte.
Agora, que nem sombra há no horizonte,
Nem o álamo ao zéfiro resiste,
Aquela hora ditosa, em que me viste
Na posse de meu bem, deixa, que conte.
Mas que modo, que acento, que harmonia
Bastante pode ser, gentil pastora,
Para explicar afetos de alegria!
Que hei de dizer, se esta alma, que te adora,
Só costumada às vozes da agonia,
A frase do prazer ainda ignora!
XVIII
Aquela cinta azul, que o céu estende
A nossa mão esquerda, aquele grito,
Com que está toda a noite o corvo aflito
Dizendo um não sei quê, que não se entende;
Levantar me de um sonho, quando atende
O meu ouvido um mísero conflito,
A tempo, que o voraz lobo maldito
A minha ovelha mais mimosa ofende;
Encontrar a dormir tão preguiçoso
Melampo, o meu fiel, que na manada
Sempre desperto está, sempre ansioso;
Ah! queira Deus, que minta a sorte irada:
Mas de tão triste agouro cuidadoso
Só me lembro de Nise, e de mais nada.
XIX
Corino, vai buscar aquela ovelha,
Que grita lá no campo, e dormiu fora;
Anda; acorda, pastor; que sai a Aurora:
Como vem tão risonha, e tão vermelha!
Já perdi noutro tempo uma parelha
Por teu respeito; queira Deus, que agora
Não se me vá também estoutra embora;
Pois não queres ouvir, quem te aconselha.
Que sono será este tão pesado!
Nada responde, nada diz Corino:
Ora em que mãos está meu pobre gado!
Mas ai de mim! que cego desatino.
Como te hei de acusar de descuidado,
Se toda a culpa tua é meu destino!
XX
Ai de mim! como estou tão descuidado!
Como do meu rebanho assim me esqueço,
Que vendo o trasmalhar no mato espesso,
Em lugar de o tornar, fico pasmado!
Ouço o rumor que faz desaforado
O lobo nos redis; ouço o sucesso
Da ovelha, do pastor; e desconheço
Não menos, do que ao dono, o mesmo gado:
Da fonte dos meus olhos nunca enxuta
A corrente fatal, fico indeciso,
Ao ver, quanto em meu dano se executa.
Um pouco apenas meu pesar suavizo,
Quando nas serras o meu mal se escuta;
Que triste alívio! ah infeliz Daliso!
XXI
De um ramo desta faia pendurado
Veja o instrumento estar do pastor Fido;
Daquele, que entre os mais era aplaudido,
Se alguma vez nas selvas escutado.
Ser eternamente consagrado
Um ai saudoso, um fúnebre gemido;
Enquanto for no monte repetido
O seu nome, o seu canto levantado.
Se chegas a este sítio, e te persuade
A algum pesar a sua desventura,
Corresponde em afetos de piedade;
Lembra te, caminhante, da ternura
De seu canto suave; e uma saudade
Por obséquio dedica à sepultura.
XXII
Neste álamo sombrio, aonde a escura
Noite produz a imagem do segredo;
Em que apenas distingue o próprio medo
Do feio assombro a hórrida figura;
Aqui, onde não geme, nem murmura
Zéfiro brando em fúnebre arvoredo,
Sentado sabre o tosco de um penedo
Chorava Fido a sua desventura.
As lágrimas a penha enternecida
Um rio fecundou, donde manava
D'ânsia mortal a cópia derretida:
A natureza em ambos se mudava;
Abalava-se a penha comovida;
Fido, estátua da dor, se congelava.
XXIII
Tu sonora corrente, fonte pura,
Testemunha fiel da minha pena,
Sabe, que a sempre dura, e ingrata
Almena Contra o meu rendimento se conjura:
Aqui me manda estar nesta espessura,
Ouvindo a triste voz da filomena,
E bem que este martírio hoje me ordena,
Jamais espero ter melhor ventura.
Veio a dar me somente uma esperança
Nova idéia do ódio; pois sabia,
Que o rigor não me assusta, nem me cansa:
Vendo a tanto crescer minha porfia,
Quis mudar de tormento; e por vingança
Foi buscar no favor a tirania.
XXIV
Sonha em torrentes d'água, o que abrasado
Na sede ardente está; sonha em riqueza
Aquele, que no horror de uma pobreza
Anda sempre infeliz, sempre vexado:
Assim na agitação de meu cuidado
De um contínuo delírio esta alma presa,
Quando é tudo rigor, tudo aspereza,
Me finjo no prazer de um doce estado.
Ao despertar a louca fantasia
Do enfermo, do mendigo, se descobre
Do torpe engano seu a imagem fria:
Que importa pois, que a idéia alívios cobre,
Se apesar desta ingrata aleivosia,
Quanto mais rico estou, estou mais pobre.
XXV
Não de tigres as testas descarnadas,
Não de hircanos leões a pele dura,
Por sacrifício à tua formosura,
Aqui te deixo, ó Lise, penduradas:
Ânsias ardentes, lágrimas cansadas,
Com que meu rosto enfim se desfigura,
São, bela ninfa, a vítima mais pura,
Que as tuas aras guardarão sagradas.
Outro as flores, e frutos, que te envia,
Corte nos montes, corte nas florestas;
Que eu rendo as mágoas, que por ti sentia:
Mas entre flores, frutos, peles, testas,
Para adornar o altar da tirania,
Que outra vítima queres mais, do que estas?
XXVI
Não vês, Nise, este vento desabrido,
Que arranca os duros troncos? Não vês esta,
Que vem cobrindo o céu, sombra funesta,
Entre o horror de um relâmpago incendido?
Não vês a cada instante o ar partido
Dessas linhas de fogo? Tudo cresta,
Tudo consome, tudo arrasa, e infesta,
O raio a cada instante despedido.
Ah! não temas o estrago, que ameaça
A tormenta fatal; que o Céu destina
Vejas mais feia, mais cruel desgraça:
Rasga o meu peito, já que és tão ferina;
Verás a tempestade, que em mim passa;
Conhecerás então, o que é ruína.
XXVII
Apressa se a tocar o caminhante
O pouso, que lhe marca a luz do dia;
E da sua esperança se confia,
Que chegue a entrar no porto o navegante;
Nem aquele sem termo passa avante
Na longa, duvidosa e incerta via;
Nem este atravessando a região fria
Vai levando sem rumo o curso errante:
Depois que um breve tempo houver passado,
Um se verá sobre a segura areia,
Chegará o outro ao sítio desejado:
Eu só, tendo de penas a alma cheia,
Não tenho, que esperar; que o meu cuidado
Faz, que gire sem norte a minha idéia.
XXVIII
Faz a imaginação de um bem amado,
Que nele se transforme o peito amante;
Daqui vem, que a minha alma delirante
Se não distingue já do meu cuidado.
Nesta doce loucura arrebatado
Anarda cuido ver, bem que distante;
Mas ao passo, que a busco neste instante
Me vejo no meu mal desenganado.
Pois se Anarda em mim vive, e eu nela vivo,
E por força da idéia me converto
Na bela causa de meu fogo ativo;
Como nas tristes lágrimas, que verto,
Ao querer contrastar seu gênio esquivo,
Tão longe dela estou, e estou tão perto.
XXIX
Ai Nise amada! se este meu tormento,
Se estes meus sentidíssimos gemidos
Lá no teu peito, lá nos teus ouvidos
Achar pudessem brando acolhimento;
Como alegre em servir-te, como atento
Meus votos tributara agradecidos!
Por séculos de males bem sofridos
Trocara todo o meu contentamento.
Mas se na incontrastável, pedra dura
De teu rigor não há correspondência,
Para os doces afetos de ternura;
Cesse de meus suspiros a veemência;
Que é fazer mais soberba a formosura
Adorar o rigor da resistência.
XXX
Não se passa, meu bem, na noite, e dia
Uma hora só, que a mísera lembrança
Te não tenha presente na mudança,
Que fez, para meu mal, minha alegria.
Mil imagens debuxa a fantasia,
Com que mais me atormenta e mais me cansa:
Pois se tão longe estou de uma esperança,
Que alívio pode dar me esta porfia!
Tirano foi comigo o fado ingrato;
Que crendo, em te roubar, pouca vitória,
Me deixou para sempre o teu retrato:
Eu me alegrara da passada glória,
Se quando me faltou teu doce trato,
Me faltara também dele a memória.
XXXI
Estes os olhos são da minha amada:
Que belos, que gentis, e que formosos!
Não são para os mortais tão preciosos
Os doces frutos da estação dourada.
Por eles a alegria derramada,
Tornam-se os campos de prazer gostosos;
Em zéfiros suaves, e mimosos
Toda esta região se vê banhada;
Vinde, olhos belos, vinde; e enfim trazendo
Do rosto de meu bem as prendas belas,
Dai alívios ao mal, que estou gemendo:
Mas ah delírio meu, que me atropelas!
Os olhos, que eu cuidei, que estava vendo,
Eram (quem crera tal!) duas estrelas.
XXXII
Se os poucos dias, que vivi contente,
Foram bastantes para o meu cuidado,
Que pode vir a um pobre desgraçado,
Que a idéia de seu mal não acrescente!
Aquele mesmo bem, que me consente,
Talvez propício, meu tirano fado,
Esse mesmo me diz, que o meu estado
Se há de mudar em outro diferente.
Leve pois a fortuna os seus favores;
Eu os desprezo já; porque é loucura
Comprar a tanto preço as minhas dores:
Se quer, que me não queixe, a sorte escura,
Ou saiba ser mais firme nos rigores,
Ou saiba ser constante na brandura.
XXXIII
Aqui sobre esta pedra, áspera, e dura,
Teu nome hei de estampar, ó Francelisa,
A ver, se o bruto mármore eterniza
A tua, mais que ingrata, formosura.
Já cintilam teus olhos: a figura
Avultando já vai; quanto indecisa
Pasmou na efígie a idéia, se divisa
No engraçado relevo da escultura.
Teu rosto aqui se mostra; eu não duvido,
Acuses meu delírio, quando trato
De deixar nesta pedra o vulto erguido;
É tosca a prata, o ouro é menos grato;
Contemplo o teu rigor: oh que advertido!
Só me dá esta penha o teu retrato!
XXXIV
Que feliz fora o mundo, se perdida
A lembrança de amor, de amor a glória,
Igualmente dos gostos a memória
Ficasse para sempre consumida!
Mas a pena mais triste, e mais crescida
É ver; que em nenhum tempo é transitória
Esta de amor fantástica vitória,
Que sempre na lembrança é repetida.
Amantes, os que ardeis nesse cuidado,
Fugi de amor ao venenoso intento,
Que lá para o depois vos tem guardado.
Não vos engane o infiel contentamento;
Que esse presente bem, quando passado,
Sobrará para idéia do tormento.
XXXV
Aquele, que enfermou de desgraçado,
Não espere encontrar ventura alguma:
Que o Céu ninguém consente, que presuma,
Que possa dominar seu duro fado.
Por mais, que gire o espírito cansado
Atrás de algum prazer, por mais em suma,
Que porfie, trabalhe, e se consuma,
Mudança não verá do triste estado.
Não basta algum valor, arte, ou engenho
A suspender o ardor, com que se move
A infausta roda do fatal despenho:
E bem que o peito humano as forças prove,
Que há de fazer o temerário empenho,
Onde o raio é do Céu, a mão de Jove.
XXXVI
Estes braços, Amor, com quanta glória
Foram trono feliz na formosura!
Mas este coração com que ternura
Hoje chora infeliz esta memória!
Quanto vês, é troféu de uma vitória,
Que o destino em seu templo dependura:
De uma dor esta estampa é só figura,
Na fé oculta, no pesar notória.
Saiba o mundo de teu funesto enredo;
Por que desde hoje um coração amante
De adorar teus altares tenha medo:
Mas que empreendo, se ao passo, que constante
Vou a romper a fé do meu segredo,
Não há, quem acredite um delirante!
XXXVII
Continuamente estou imaginando,
Se esta vida, que logro, tão pesada,
Há de ser sempre aflita, e magoada,
Se como o tempo enfim se há de ir mudando:
Em golfos de esperança flutuando
Mil vezes busco a praia desejada;
E a tormenta outra vez não esperada
Ao pélago infeliz me vai levando.
Tenho já o meu mal tão descoberto,
Que eu mesmo busco a minha desventura;
Pois não pode ser mais seu desconcerto.
Que me pode fazer a sorte dura,
Se para não sentir seu golpe incerto,
Tudo o que foi paixão, é já loucura!
XXXVIII
Quando, formosa Nise, dividido
De teus olhos estou nesta distancia,
Pinta a saudade, à força de minha ânsia,
Toda a memória do prazer perdido.
Lamenta o pensamento amortecido
A tua ingrata, pérfida inconstância;
E quanto observa, é só a vil jactância
Do fado, que os troféus tem conseguido.
Aonde a dita está? aonde o gosto?
Onde o contentamento? onde a alegria,
Que fecundava esse teu lindo rosto?
Tudo deixei, ó Nise, aquele dia,
Em que deixando tudo, o meu desgosto
Somente me seguiu por companhia.
XXXIX
Breves horas, Amor, há, que eu gozava
A glória, que minha alma apetecia;
E sem desconfiar da aleivosia,
Teu lisonjeiro obséquio acreditava.
Eu só à minha dita me igualava;
Pois assim avultava, assim crescia,
Que nas cenas, que então me oferecia,
O maior gosto, o maior bem lograva;
Fugiu, faltou-me o bem: já descomposta
Da vaidade a brilhante arquitetura,
Vê-se a ruína ao desengano exposta:
Que ligeira acabou, que mal segura!
Mas que venho a estranhar, se estava posta
Minha esperança em mãos da formosura!
XL
Quem chora ausente aquela formosura,
Em que seu maior gosto deposita,
Que bem pode gozar, que sorte, ou dita,
Que não seja funesta, triste, e escura!
A apagar os incêndios da loucura
Nos braços da esperança Amor me incita:
Mas se era a que perdi, glória infinita,
Outra igual que esperança me assegura!
Já de tanto delírio me despeço;
Porque o meu precipício encaminhado
Pela mão deste engano reconheço.
Triste! A quanto chegou meu duro fado!
Se de um fingido bem não faço apreço,
Que alívio posso dar a meu cuidado!
XLI
Injusto Amor, se de teu jugo isento
Eu vira respirar a liberdade,
Se eu pudesse da tua divindade
Cantar um dia alegre o vencimento;
Não lograras, Amor, que o meu tormento,
Vítima ardesse a tanta crueldade;
Nem se cobrira o campo da vaidade
Desses troféus, que paga o rendimento:
Mas se fugir não pude ao golpe ativo,
Buscando por meu gosto tanto estrago,
Por que te encontro, Amor, tão vingativo?
Se um tal despojo a teus altares trago,
Siga a quem te despreza, o raio esquivo;
Alente a quem te busca, o doce afago.
XLII
Morfeu doces cadeias estendia,
Com que os cansados membros me enlaçava;
E quanto mal o coração passava,
Em sonhos me debuxa a fantasia.
Lise presente vi, Lise, que um dia
Todo o meu pensamento arrebatava,
Lise, que na minha alma impressa estava,
Bem apesar da sua tirania.
Corro a prendê-la em amorosos laços
Buscando a sombra, que apertar intento;
Nada vejo (ai de mim!) perco os meus passos.
Então mais acredito o fingimento:
Que ao ver, que Lise foge de meus braços,
A crê pelo costume o pensamento.
XLIII
Quem és tu? (ai de mim!) eu reclinado
No seio de uma víbora! Ah tirana!
Como entre as garras de uma tigre hircana
Me encontro de repente sufocado!
Não era essa, que eu tinha posta ao lado,
Da minha Nise a imagem soberana?
Não era . . . mas que digo! ela me engana:
Sim, que eu a vejo ainda no mesmo estado:
Pois como no letargo a fantasia
Tão cruel ma pintou, tão inconstante,
Que a vi.. .? mas nada vi; que eu nada cria.
Foi sonho; foi quimera; a um peito amante
Amor não deu favores um só dia,
Que a sombra de um tormento os não quebrante.
XLIV
Há quem confie, Amor, na segurança
De um falsíssimo bem, com que dourando
O veneno mortal, vás enganando
Os tristes corações numa esperança!
Há quem ponha inda cego a confiança
Em teu fingido obséquio, que tomando
Lições de desengano, não vá dando
Pelo mundo certeza da mudança!
Há quem creia, que pode haver firmeza
Em peito feminil, quem advertido
Os cultos não profane da beleza!
Há inda, e há de haver, eu não duvido,
Enquanto não mudar a Natureza
Em Nise a formosura, o amor em Fido.
XLV
A cada instante, Amor, a cada instante
No duvidoso mar de meu cuidado
Sinto de novo um mal, e desmaiado
Entrego aos ventos a esperança errante.
Por entre a sombra fúnebre, e distante
Rompe o vulto do alivio mal formado;
Ora mais claramente debuxado,
Ora mais frágil, ora mais constante.
Corre o desejo ao vê-lo descoberto;
Logo aos olhos mais longe se afigura,
O que se imaginava muito perto.
Faz-se parcial da dita a desventura;
Porque nem permanece o dano certo,
Nem a glória tão pouco está segura
XLVI
Não vês, Lise, brincar esse menino
Com aquela avezinha? Estende o braço;
Deixa-a fugir; mas apertando o laço,
A condena outra vez ao seu destino?
Nessa mesma figura, eu imagino,
Tens minha liberdade; pois ao passo,
Que cuido, que estou livre do embaraço,
Então me prende mais meu desatino.
Em um contínuo giro o pensamento
Tanto a precipitar-me se encaminha,
Que não vejo onde pare o meu tormento.
Mas fora menos mal esta ânsia minha,
Se me faltasse a mim o entendimento,
Como falta a razão a esta avezinha.
XLVII
Que inflexível se mostra, que constante
Se vê este penhasco! já ferido
Do proceloso vento, e já batido
Do mar, que nele quebra a cada instante!
Não vi; nem hei de ver mais semelhante
Retrato dessa ingrata, a que o gemido
Jamais pode fazer, que enternecido
Seu peito atenda às queixas de um amante.
Tal és, ingrata Nise: a rebeldia,
Que vês nesse penhasco, essa dureza
Há de ceder aos golpes algum dia:
Mas que diversa é tua natureza!
Dos contínuos excessos da porfia,
Recobras novo estímulo à fereza.
XLVIII
Traidoras horas do enganoso gosto,
Que nunca imaginei, que o possuía,
Que ligeiras passastes! mal podia
Deixar aquele bem de ser suposto.
Já de parte o tormento estava posto;
E meu peito saudoso, que isto via,
As imagens da pena desmentia,
Pintando da ventura alegre o rosto.
Desanda então a fábrica elevada,
Que o plácido Morfeu tinha erigido,
Das espécies do sono fabricada:
Então é, que desperta o meu sentido,
Para observar na pompa destroçada,
Verdadeira a ruína, o bem fingido.
XLIX
Os olhos tendo posto, e o pensamento
No rumo, que demanda, mais distante;
As ondas bate o Grego Navegante,
Entregue o leme ao mar, a vela ao vento
Em vão se esforça o harmonioso acento
Da sereia, que habita o golfo errante;
Que resistindo o espírito constante,
Vence as lisonjas do enganoso intento.
Se pois, ninfas gentis, rompe a Cupido
O arco, a flecha, o dardo, a chama acesa
De um peito entre os heróis esclarecido;
Que vem buscar comigo a néscia empresa,
Se inda mais, do que Ulisses atrevido,
Sei vencer os encantos da beleza!
L
Memórias do presente, e do passado
Fazem guerra cruel dentro em meu peito;
E bem que ao sofrimento ando já feito,
Mais que nunca desperta hoje o cuidado.
Que diferente, que diverso estado
É este, em que somente o triste efeito
Da pena, a que meu mal me tem sujeito,
Me acompanha entre aflito, e magoado!
Tristes lembranças! e que em vão componho
A memória da vossa sombra escura!
Que néscio em vós a ponderar me ponho!
Ide-vos; que em tão mísera loucura
Todo o passado bem tenho por sonho;
Só é certa a presente desventura.
LI
Adeus, ídolo belo, adeus, querido,
Ingrato bem; adeus: em paz te fica;
E essa vitória mísera publica,
Que tens barbaramente conseguido.
Eu parto, eu sigo o norte aborrecido
De meu fado infeliz: agora rica
De despojos, a teu desdém aplica
O rouco acento de um mortal gemido.
E se acaso alguma hora menos dura
Lembrando-te de um triste, consultares
A série vil da sua desventura;
Na imensa confusão de seus pesares
Acharás, que ardeu simples, ardeu pura
A vítima de uma alma em teus altares.
LII
Que molesta lembrança, que cansada
Fadiga é esta! vejo-me oprimido,
Medindo pela magoa do perdido
A grandeza da glória já passada.
Foi grande a dita sim; porem lembrada,
Inda a pena é maior de a haver perdido;
Quem não fora feliz, se o haver sido
Faz, que seja a paixão mais avultada!
Propício imaginei (é bem verdade)
O malévolo fado: oh quem pudera
Conhecer logo a hipócrita piedade!
Mas que em vão esta dor me desespera,
Se já entorpecida a enfermidade
Inda agora o remédio se pondera!
LIII
Ou já sobre o cajado te reclines,
Venturoso pastor, ou já tomando
Para a serra, onde as cabras vais chamando,
A fugir os meus ais te determines.
Lá te quero seguir, onde examines
Mais vivamente um coração tão brando;
Que gosta só de ouvir-te, ainda quando
Mais sem razão me acuses, mais crimines.
Que te fiz eu, pastor? em que condenas
Minha sincera fé, meu amor puro? A
s provas, que te dei, serão pequenas?
Queres ver, que esse monte áspero, e duro
Sabe, que és causa tu das minhas penas?
Pergunta-lhe; ouvirás, o que te juro.
LIV
Ninfas gentis, eu sou, o que abrasado
Nos incêndios de Amor, pude alguma hora,
Ao som da minha cítara sonora,
Deixar o vosso império acreditado.
Se vós, glórias de amor, de amor cuidado,
Ninfas gentis, a quem o mundo adora,
Não ouvis os suspiros, de quem chora,
Ficai-vos; eu me vou; sigo o meu fado.
Ficai-vos; e sabei, que o pensamento
Vai tão livre de vós, que da saudade
Não receia abrasar-se no tormento.
Sim; que solta dos laços a vontade,
Pelo rio hei de ter do esquecimento
Este, aonde jamais achei piedade.
LV
Em profundo silêncio já descansa
Todo o mortal; e a minha triste idéia
Se estende, se dilata, se recreia
Pelo espaçoso campo da lembrança.
Fatiga-se, prossegue, em vão se cansa;
E neste vário giro, em que se enleia,
Ao duvidoso passo já receia,
Que lhe possa faltar a segurança.
Que diferente tudo está notando!
Que perplexo as imagens do perdido
Num e noutro despojo vem achando!
Este não é o templo (eu o duvido)
Assim o afirma, assim o está mostrando:
Ou morreu Nise, ou este não é Fido.
LVI
Tu, ninfa, quando eu menos penetrado
Das violências de Amor vivia isento,
Propondo-te então bela a meu tormento,
Foste doce ocasião de meu cuidado.
Roubaste o meu sossego, um doce agrado,
Um gesto lindo, um brando acolhimento
Foram somente o único instrumento,
Com que deixaste o triunfo assegurado.
Já não espero ter felicidade,
Salvo se for aquela, que confio,
Por amar-te, apesar dessa impiedade.
Em prêmio dos suspiros, que te envio,
Ou modera o rigor da crueldade,
Ou torna-me outra vez meu alvedrio.
LVII
Bela imagem, emprego idolatrado,
Que sempre na memória repetido,
Estás, doce ocasião de meu gemido,
Assegurando a fé de meu cuidado.
Tem-te a minha saudade retratado;
Não para dar alívio a meu sentido;
Antes cuido; que a mágoa do perdido
Quer aumentar coa pena de lembrado.
Não julgues, que me alento com trazer-te
Sempre viva na idéia; que a vingança
De minha sorte todo o bem perverte.
Que alívio em te lembrar minha alma alcança,
Se do mesmo tormento de não ver-te,
Se forma o desafogo da lembrança?
LVIII
Altas serras, que ao Céu estais servindo
De muralhas, que o tempo não profana,
Se Gigantes não sois, que a forma humana
Em duras penhas foram confundindo?
lá sobre o vosso cume se está rindo
O Monarca da luz, que esta alma engana;
Pois na face, que ostenta, soberana,
O rosto de meu bem me vai fingindo.
Que alegre, que mimoso, que brilhante
Ele se me afigura! Ah qual efeito
Em minha alma se sente neste instante!
Mas ai! a que delírios me sujeito!
Se quando no Sol vejo o seu semblante,
Em vós descubro ó penhas o seu peito?
LIX
Lembrado estou, ó penhas, que algum dia,
Na muda solidão deste arvoredo,
Comuniquei convosco o meu segredo,
E apenas brando o zéfiro me ouvia.
Com lágrimas meu peito enternecia
A dureza fatal deste rochedo,
E sobre ele uma tarde triste, e quêdo
A causa de meu mal eu escrevia.
Agora torno a ver, se a pedra dura
Conserva ainda intacta essa memória,
Que debuxou então minha escultura.
Que vejo! esta é a cifra: triste glória!
Para ser mais cruel a desventura,
Se fará imortal a minha história.
LX
Valha-te Deus, cansada fantasia!
Que mais queres de mim? que mais pretendes?
Se quando na esperança mais te acendes,
Se desengana mais tua porfia!
Vagando regiões de dia em dia,
Novas conquistas, e troféus empreendes:
Ah que conheces mal, que mal entendes,
Onde chega do fado a tirania!
Trata de acomodar-te ao movimento
Dessa roda volúvel, e descansa
Sobre tão fatigado pensamento.
E se inda crês no rosto da esperança,
Examina por dentro o fingimento;
E verás tempestade o que é bonança.
LXI
Deixemo-nos, Algano, de porfia;
Que eu sei o que tu és, contra a verdade
Sempre hás de sustentar, que a divindade
Destes campos é Brites, não Maria!
Ora eu te mostrarei inda algum dia,
Em que está teu engano: a novidade,
Que agora te direi, é, que a cidade
Por melhor, do que todas a avalia.
Há pouco, que encontrei lá junto ao monte
Dous pastores, que estavam conversando,
Quando passaram ambas para a fonte;
Nem falaram em Brites: mas tomando
Para um cedro, que fica bem defronte,
O nome de Maria vão gravando.
LXII
Torno a ver-vos, ó montes; o destino
Aqui me torna a pôr nestes oiteiros;
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros
Pelo traje da Côrte rico, e fino.
Aqui estou entre Almendro, entre Corino,
Os meus fiéis, meus doces companheiros,
Vendo correr os míseros vaqueiros
Atrás de seu cansado desatino.
Se o bem desta choupana pode tanto,
Que chega a ter mais preço, e mais valia,
Que da cidade o lisonjeiro encanto;
Aqui descanse a louca fantasia;
E o que té agora se tornava em pranto,
Se converta em afetos de alegria.
LXIII
Já me enfado de ouvir este alarido,
Com que se engana o mundo em seu cuidado;
Quero ver entre as peles, e o cajado,
Se melhora a fortuna de partido.
Canse embora a lisonja ao que ferido
Da enganosa esperança anda magoado;
Que eu tenho de acolher-me sempre ao lado
Do velho desengano apercebido.
Aquele adore as roupas de alto preço,
Um siga a ostentação, outro a vaidade;
Todos se enganam com igual excesso.
Eu não chamo a isto já felicidade:
Ao campo me recolho, e reconheço,
Que não há maior bem, que a soledade.
LXIV
Que tarde nasce o Sol, que vagaroso!
Parece, que se cansa, de que a um triste
Haja de aparecer: quanto resiste
A seu raio este sítio tenebroso!
Não pode ser, que o giro luminoso
Tanto tempo detenha: se persiste
Acaso o meu delírio! se me assiste
Ainda aquele humor tão venenoso!
Aquela porta ali se está cerrando;
Dela sai um pastor: outro assobia,
E o gado para o monte vai chamando.
Ora não há mais louca fantasia!
Mas quem anda, como eu, assim penando,
Não sabe, quando é noite, ou quando é dia.
LXV
Ingrata foste, Elisa; eu te condeno
A injusta sem-razão; foste tirana,
Em renderes, belíssima serrana,
A tua liberdade ao néscio Almeno.
Que achaste no seu rosto de sereno,
De belo, ou de gentil, para inumana
Trocares pela dele esta choupana,
Em que tinhas o abrigo mais ameno?
Que canto em teu louvor entoaria?
Que te podia dar o pastor pobre?
Que extremos, mais do que eu, por ti faria?
O meu rebanho estas montanhas cobre:
Eu os excedo a todos na harmonia;
Mas ah que ele é feliz! Isto lhe sobre
LXVI
Não te assuste o prodígio: eu, caminhante,
Sou uma voz, que nesta selva habito;
Chamei-me o pastor Fido; de um delito
Me veio o meu estrago; eu fui amante.
Uma ninfa perjura, uma inconstante
Neste estado me pôs: do peito aflito,
Por eterno castigo, arranco um grito,
Que desengane o peregrino errante.
Se em ti se dá piedade, ó passageiro,
(Que assim o pede a minha sorte escura)
Atende ao meu aviso derradeiro:
Lágrimas não te peço, nem ternura:
Por voto um desengano, te requeiro
Que consagres à minha sepultura.
LXVII
Não te cases com Gil, bela serrana;
Que é um vil, um infame, um desastrado;
Bem que ele tenha mais devesa, e gado,
A minha condição é mais humana.
Que mais te pode dar sua cabana,
Que eu aqui te não tenha aparelhado?
O leite, a fruta, o queijo, o mel dourado;
Tudo aqui acharás nesta choupana:
Bem que ele tange o seu rabil grosseiro,
Bem que te louve assim, bem que te adore,
Eu sou mais extremoso, e verdadeiro.
Eu tenho mais razão, que te enamore:
E se não, diga o mesmo Gil vaqueiro:
Se é mais, que ele te cante, ou que eu te chore.
LXVIII
Apenas rebentava no oriente
A clara luz da aurora, quando Fido,
O repouso deixando aborrecido,
Se punha a contemplar no mal, que sente.
Vê a nuvem, que foge ao transparente
Anúncio do crepúsculo luzido;
E vê de todo em riso convertido
O horror, que dissipara o raio ardente.
Por que (diz) esta sorte, que se alcança
Entre a sombra, e a luz, não sinto agora
No mal, que me atormenta, e que me cansa?
Aqui toda a tristeza se melhora:
Mas eu sem o prazer de uma esperança
Passo o ano, e o mês, o dia, a hora.
LXIX
Se à memória trouxeres algum dia,
Belíssima tirana, ídolo amado,
Os ternos ais, o pranto magoado,
Com que por ti de amor Alfeu gemia;
Confunda-te a soberba tirania,
O ódio injusto, o violento desagrado,
Com que atrás de teu olhos arrastado
Teu ingrato rigor o conduzia.
E já que enfim tão mísero o fizeste,
Vê-lo-ás, cruel, em prêmio de adorar-te,
Vê-lo-ás, cruel, morrer; que assim quiseste.
Dirás, lisonjeando a dor em parte:
Fui-te ingrata, pastor; por mim morreste;
Triste remédio a quem não pode amar-te!
LXX
Breves horas, que em rápida porfia
Ides seguindo infausto movimento,
Oh como o vosso curso foi violento,
Quando soubestes, que eu vos possuía!
Já crédito vos dava; porque via
Avultar meu feliz contentamento:
Que é mui fácil num triste estar atento
Aos enganos, que pinta a fantasia.
Logrou-se o vosso fim; que foi levar-me
Da falsa glória, do fingido gosto A
o cume, donde venho a despenhar-me:
Assim a lei do fado tem disposto,
Que haja o instantâneo bem de lisonjear-me;
Por que o estrago, me diga, que é suposto.
LXXI
Eu cantei, não o nego, eu algum dia
Cantei do injusto amor o vencimento;
Sem saber, que o veneno mais violento
Nas doces expressões falso encobria.
Que amor era benigno, eu persuadia
A qualquer coração de amor isento;
Inda agora de amor cantara atento,
Se lhe não conhecera a aleivosia.
Ninguém de amor se fie: agora canto
Somente os seus enganos; porque sinto,
Que me tem destinado estrago tanto.
De seu favor hoje as quimeras pinto:
Amor de uma alma é pesaroso encanto;
Amor de um coração é labirinto.
LXXII
Já rompe, Nise, a matutina aurora
O negro manto, com que a noite escura,
Sufocando do Sol a face pura,
Tinha escondido a chama brilhadora.
Que alegre, que suave, que sonora,
Aquela fontezinha aqui murmura!
E nestes campos cheios de verdura
Que avultado o prazer tanto melhora!
Só minha alma em fatal melancolia,
Por te não poder ver, Nise adorada,
Não sabe inda, que coisa é alegria;
E a suavidade do prazer trocada,
Tanto mais aborrece a luz do dia,
Quanto a sombra da noite lhe agrada.
LXXIII
Quem se fia de Amor, quem se assegura
Na fantástica fé de uma beleza,
Mostra bem, que não sabe, o que é firmeza,
Que protesta de amante a formosura.
Anexa a qualidade de perjura
Ao brilhante esplendor da gentileza,
Mudável é por lei da natureza,
A que por lei de Amor é menos dura.
Deste, ó Fábio, que vês, desordenado,
Ingrato proceder se é que examinas
A razão, eu a tenho decifrado:
São as setas de Amor tão peregrinas,
Que esconde no gentil o golpe irado;
Para lograr pacífico as ruínas.
LXXIV
Sombrio bosque, sítio destinado
À habitação de um infeliz amante,
Onde chorando a mágoa penetrante
Possa desafogar o seu cuidado;
Tudo quieto está, tudo calado;
Não há fera, que grite; ave, que cante;
Se acaso saberás, que tens diante
Fido, aquele pastor desesperado!
Escuta o caso seu: mas não se atreve
A erguer a voz; aqui te deixa escrito
No tronco desta faia em cifra breve:
Mudou-se aquele bem; hoje é delito
Lembrar-me de Marfisa; era mui leve:
Não há mais, que atender; tudo está dito.
LXXV
Clara fonte, teu passo lisonjeiro
Pára, e ouve-me agora um breve instante;
Que em paga da piedade o peito amante
Te será no teu curso companheiro.
Eu o primeiro fui, fui o primeiro,
Que nos braços da ninfa mais constante
Pude ver da fortuna a face errante
Jazer por glória de um triunfo inteiro.
Dura mão, inflexível crueldade
Divide o laço, com que a glória, a dita
Atara o gosto ao carro da vaidade:
E para sempre a dor ter n'alma escrita,
De um breve bem nasce imortal saudade,
De um caduco prazer mágoa infinita.
LXXVI
Enfim te hei de deixar, doce corrente
Do claro, do suavíssimo Mondego;
Hei de deixar-te enfim; e um novo pego
Formará de meu pranto a cópia ardente.
De ti me apartarei; mas bem que ausente,
Desta lira serás eterno emprego;
E quanto influxo hoje a dever-te chego,
Pagará de meu peito a voz cadente.
Das ninfas, que na fresca, amena estância
Das tuas margens úmidas ouvia,
Eu terei sempre n'alma a consonância;
Desde o prazo funesto deste dia
Serão fiscais eternos da minha ânsia
As memórias da tua companhia.
LXXVII
Não há no mundo fé, não há lealdade;
Tudo é, ó Fábio, torpe hipocrisia;
Fingido trato, infame aleivosia
Rodeiam sempre a cândida amizade.
Veste o engano o aspecto da verdade;
Porque melhor o vício se avalia:
Porém do tempo a mísera porfia,
Duro fiscal, lhe mostra a falsidade.
Se talvez descobrir-se se procura
Esta de amor fantástica aparência,
É como à luz do Sol a sombra escura:
Mas que muito, se mostra a experiência,
Que da amizade a torre mais segura
Tem a base maior na dependência!
LXXVIII
Campos, que ao respirar meu triste peito
Murcha, e seca tornais vossa verdura,
Não vos assuste a pálida figura,
Com que o meu rosto vedes tão desfeito.
Vós me vistes um dia o doce efeito
Cantar do Deus de Amor, e da ventura;
Isso já se acabou; nada já dura;
Que tudo à vil desgraça está sujeito.
Tudo se muda enfim: nada há, que seja
De tão nobre, tão firme segurança,
Que não encontre o fado, o tempo, a inveja.
Esta ordem natural a tudo alcança;
E se alguém um prodígio ver deseja,
Veja meu mal, que só não tem mudança.
LXXIX
Entre este álamo, o Lise, e essa corrente,
Que agora estão meus olhos contemplando,
Parece, que hoje o céu me vem pintando
A mágoa triste, que meu peito sente.
Firmeza a nenhum deles se consente
Ao doce respirar do vento brando;
O tronco a cada instante meneando,
A fonte nunca firme, ou permanente.
Na líquida porção, na vegetante
Cópia daquelas ramas se figura
Outro rosto, outra imagem semelhante:
Quem não sabe, que a tua formosura
Sempre móvel está, sempre inconstante,
Nunca fixa se viu, nunca segura?
LXXX
Quando cheios de gosto, e de alegria
Estes campos diviso florescentes,
Então me vêm as lágrimas ardentes
Com mais ânsia, mais dor, mais agonia.
Aquele mesmo objeto, que desvia
Do humano peito as mágoas inclementes,
Esse mesmo em imagens diferentes
Toda a minha tristeza desafia.
Se das flores a bela contextura
Esmalta o campo na melhor fragrância,
Para dar uma idéia da ventura;
Como, ó Céus, para os ver terei constância,
Se cada flor me lembra a formosura
Da bela causadora de minha ânsia?
LXXXI
Junto desta corrente contemplando
Na triste falta estou de um bem que adoro;
Aqui entre estas lágrimas, que choro,
Vou a minha saudade alimentando.
Do fundo para ouvir-me vem chegando
Das claras hamadríades o coro;
E desta fonte ao murmurar sonoro,
Parece, que o meu mal estão chorando.
Mas que peito há de haver tão desabrido,
Que fuja à minha dor! que serra, ou monte
Deixará de abalar-se a meu gemido!
Igual caso não temo, que se conte;
Se até deste penhasco endurecido
O meu pranto brotar fez uma fonte.
LXXXII
Piedosos troncos, que a meu terno pranto
Comovidos estais, uma inimiga
E quem fere o meu peito, é quem me obriga
A tanto suspirar, a gemer tanto.
Amei a Lise; é Lise o doce encanto,
A bela ocasião desta fadiga;
Deixou-me; que quereis, troncos, que eu diga
Em um tormento, em um fatal quebranto?
Deixou-me a ingrata Lise: se alguma hora
Vós a vêdes talvez, dizei, que eu cego
Vos contei... mas calai, calai embora.
Se tanto a minha dor a elevar chego,
Em fé de um peito, que tão fino adora,
Ao meu silêncio o meu martírio entrego.
LXXXIII
Polir na guerra o bárbaro gentio,
Que as leis quase ignorou da natureza,
Romper de altos penhascos a rudeza,
Desentranhar o monte, abrir o rio;
Esta a virtude, a glória, o esforço, o brio
Do Russiano Herói, esta a grandeza,
Que igualou de Alexandre a fortaleza,
Que venceu as desgraças de Dario:
Mas se a lei do heroísmo se procura,
Se da virtude o espírito se atende,
Outra idéia, outra máxima o segura:
Lá vive, onde no ferro não se acende;
Vive na paz dos povos, na brandura:
Vós a ensinais, ó Rei; em vós se aprende.
LXXXIV
Apre Giano il gran Tempio; orrido, e nero,
Tutto scomposto 'l crin, Marte s'adira;
Ecco l'armi, l'insegne; ecco s'aggira
Con torbidi ruggiti 'l Leon Ibero:
Lascia i freddi Trioni 'l Duce altero;
Viene sopra di noi la strage, e l'ira;
Altro, fuor che vendetta, non respira
Il Ebro audace, il Rhodano guerriero:
Par, che già d'Acheronte in sulle spume,
Del Dio feroce lampeggiando il volto,
Vaghe schiere d'Eroi varcano il fiume;
Oh Dei! tutto è in terrore il mondo accolto:
Ma che auspizio è mai questo! contro il Nume,
D'Andrada sol, d'Andrada il nome ascolto.
LXXXV
Sposi felici, per la vostra face
Splenda di Portugal provido il Nume;
Portando a noi la sospirata pace,
Della Madre d'Amor fra l'auree piume.
Fatte, che a pro di noi la Diva audace
L'empia ruota suspenda: entro il suo fiume
Spirar non vegga il vostro amor verace
Il Domator de le Tartaree spume.
Vivete in dolce nodo: altre faville
Il ciel non fecondo cosi giocondo;
Amor, che l'inspiró, Amor nutrille.
Sorger vegg'io dal talamo fecondo
Fra mille gioie, fra trionfi mille
E gloria a Portugal, e gloria al mondo.
LXXXVI
Di così degno Eroe la Regia fronte
Cinga d'eterno allor, chi virtù ama:
Che il ciel la gloria sua per altro chiama:
Sentier, che guida a più sicuro monte.
Non di Parnaso, non d'audace fonte
I fiori, ed i cristalli alla sua fama
Omaggio esser potran; ciascun, che brama
I suoi merti lodar, lodi à più pronte.
Voto faccia di voglia assai sincera,
Dell'anima tributo sia la fede;
Questa victima ei solo ama, ei la spera.
Non più l'Eróe, mortali, da voi chiede;
Il non sprezar la vostra fé sì vera,
È de tributi vostri ampia mercede.
LXXXVII
Sorpreso de così sonori accenti,
Non ho ragion, che basti, ó Vate degno,
A consecrare al tuo discreto ingegno
Questi voti, non so, se assai cadenti.
Udir credei a intempestivi eventi
Tutto il Pindo sonar, si che a tal segno
Forse non dubitai del crudo regno
Frenasse Orpheo gli spiriti inclementi.
Questa dal mondo poi giammai probata
Beltà da labri tuoi abbia l'ardore
D'en sì rozzo paese essere amata.
Ed io pur non avrò culto maggiore,
Che render vada alla tua Musa grata,
Fuor di quel del silenzio fido onore.
LXXXVIII
Non ho valor, che basti; io corro in vano
A ricoprirmi del pesante scudo;
Senza armi 'l sen, senza armi 'l cor ignudo
S'abbandona al tuo strale, Amor insano.
Idolo mio, che m'offre in volto umano
Beltà quasi divina, al petto rudo
Si soave gli porge il velen crudo,
Che orror non ho nel venerar la mano.
Reggi 'l colpo; la strage io non pavento;
Ti daranno, crudel, poca victoria
La mia ruina, il mio duol, il mio tormento.
Saremmo entrambi esempi a grata istoria,
Tu mostrando il tuo tardo pentimento,
Io nel martin trovando la mia gloria.
LXXXIX
Misera rimembranza, che mai tenti!
Perché venirmi tormentando ancora!
Non m'accordar, ti chiedo, la dolce ora
De'primi miei suavissimi contenti.
Furono brevi; e sono così lenti
I passi tuoi, che nella grata Aurora
Del mio piacer, io ritrovai tallora,
In sembianza di gioia i miei tormenti.
Ah non lasciasti mai la spiaggia aprica,
Per gime in grembo al procelloso flutto,
Allor, che si mostrò la sorte amica.
Non sarebbe il mio ben per lei distrutto;
Né avrei nel alma una crudel fatica,
Che tutto afflige, e che sconsola tutto.
XC
Esci d'ingano, o Nice; io non t'adoro;
Chi ti parla così, parla sincero;
Mi piace 'l volto tuo; mi piace, è vero;
Ma non mi punse Amor col'strale d'oro.
Piangon gl'amanti ovunque; i voti loro
Sono tributi d'immortal pensiero:
Or vedi; io son tranquillo, io sono altero,
Io non sento fatica, ed ho ristoro.
O non è amore, o pur, s'amor si chiama,
D'ogni d'amor martiro l'ordin muta,
Ch'in tanti cuori 'l suo trionfo acclama;
Ma che mai vanta l'alma d'asoluta!
Ricanterò: Questa alma altro non brama,
Che nel incendio tuo restar perduta.
XCI
Non parlarmi d'amor, ingrata Nice;
Ch'io non ho già per te questi pensieri:
Credulo a tanti affetti lusinghieri
T'adorai, non te 'l nego; ero infelice:
Il vecchio disinganno or odo; ei dice:
Folle che sei! come adorar gl'alteri
Transporti puoi d'affanni così fieri?
Ei parla; ed i suoi detti ascoltar lice.
Saggio dunque 'l rimprovero del cuore
Nel più vivo lo stampo, ed il consiglio
Per seguitar, o Nice, ho gran valore:
Angel sarò, che fuor del cauto artiglio
Per fuggire a tuoi lacci andrò, Amore,
Portando in fronte il volto del periglio.
XCII
Dolci compagni miei, dolce mia cura,
Consolate 'l mio duol; se pur vi piace
Rendermi quella sospirata pace,
Che mi toglie crudel la mia sventura.
Senza la vostra compagnia oscura
Parmi del Sol la scintillante face;
Sul'orme vostre 'l mio pensier seguace
Tutto ciò, ch'e diletto, odia, e scongiura.
Altro ciel, altre genti, astri infelici
Mi sforzano a veder: mi fu ribelle
La mia sorte; e son tutti miei nemici.
Ma se vedervi più negan le stelle,
Vi priego almen pe'suoi bei lumi, Amici,
Curate la mia Nice, e le sue agnelle.
XCIII
Dolci parole, or più non siete quelle:
Nice, a cui piacqui un giorno, or mi deride;
E le pupille sue, un tempo fide,
Or sono a danni miei barbare stelle.
Più costante, che incontro alle procelle
Scoglio, che urtano i venti, e le onde infide,
Quanto più col rigor crudel m'uccide,
Tanto ardo più per le sue luci belle.
Quell'ira sua, cred'io, dell'amor mio
Alimento è tal volta, e dell'imparo,
Per strugermi a suoi rai, nov'arti anch'io.
Pur non veggo 'l Destin, con me si avaro,
Se del suo sdegno a stimol così rio
Sento l'incendio, Amor, esser più chiaro.
XCIV
Non lasciarmi, crudel; quella, ch'io rendo,
Victima volontaria dal mio cuore
È ben degna di te, se pur l'amore,
Se pur il premio tuo non ti contendo.
Io senza speme alla tua luce attendo,
Come Clicie tallor: se del maggiore
Pianeta ogn'un'adora lo splendore,
Senza ch'il raggio l'urte, 'l va sieguendo.
Ma tu fuggi, crudel! Ah! non son io
Inteso a divorarti, o mostro, o fiera;
Placcarti voglio con il pianto mio.
Se pur muoverti ancor l'alma non spera,
Questo, barbara (oimè!) questo desio
Pera, ma innanzi a tuoi bell'occhi pera.
XCV
Del tuo Fileno alla incerata avena
Ferma, Nice crudel, ferma le piante;
Mentre in tua lode 'l Pastorello amante
Dolce fa risonar la selva amena.
Vedi, come di gioia in questa arena
Tutto par ch'innamore 'l tuo sembiante,
Il feroce Leon, la Tigre errante,
Il mar, che freme, il ciel, che ne balena.
Di sopra questo sasso ah ben vegg'io
Giungersi intorno a me del tuo bel nome
Al eco amato di Protheo la gregge:
Tutto vien'ad udirmi; è pieno il rio
De gl'umidi abitanti; e (non so come)
Altra legge non han, che la tua legge.
XCVI
Erra d'intorno a me l'ombra onorata
Di quella dolce, incantatrice Donna,
Che cinta or de più lucida corona
Splende fra gl'Astri alla mia fede ingrata.
Io la riveggo in torvo aspetto irata;
Or m'accusa, or mi siegue, or m'abbandona;
L'orribil voce mi spaventa, e sona,
Come fiamma di Giove in ciel vibrata.
Qual misero destin (o Dei!) qual forte
Amor mi dié! veggo la face mia,
Fuggo, tremo, m'aghiaccio, e non son forte:
M'accordo allor, che al fianco in ogni via
La seguitai: o quanto, Amor, la morte
Quanto fa, quanto mutta, quanto oblia!
XCVII
Questo, che la mia Musa oggi a te rende,
Indegno omaggio di beltà si rara,
Non lo sdegnar, ti chiedo, o Nice cara,
Nice, di ch'il bel volto il cor m'accende.
Di merti tuoi quel, ch'il mio canto prende,
Onorato argomento (o legge amara!)
D'umili voci alla cadenza avara
Non si concede, fugge, e se difende:
Desti nel alme poi la meraviglia
Dei nome tuo quel dissonante accento,
Che preziosi i miei voti mi consiglia:
A così dolce indulto andrò contento,
Se tu di Citheréa, di Giove figlia,
Non disapprovi, ó Nice, 'l mio concento.
XCVIII
Destes penhascos fez a natureza
O berço, em que nasci! oh quem cuidara,
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!
Amor, que vence os tigre por empresa
Tomou logo render-me; ele declara
Contra o meu coração guerra tão rara,
Que não me foi bastante a fortaleza.
Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,
A que dava ocasião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engano:
Vós, que ostentais a condição mais dura,
Temei, penhas, temei; que Amor tirano,
Onde há mais resistência, mais se apura.
XCIX
Parece, ou eu me engano, que esta fonte
De repente o licor deixou turvado;
O céu, que estava limpo, e azulado,
Se vai escurecendo no horizonte:
Por que não haja horror, que não aponte
O agouro funestíssimo, e pesado,
Até de susto já não pasta o gado;
Nem uma voz se escuta em todo o monte.
Um raio de improviso na celeste
Região rebentou; um branco lírio
Da cor das violetas se reveste;
Será delírio! não, não é delírio.
Que é isto, pastor meu? que anúncio é este?
Morreu Nise (ai de mim!) tudo é martírio.
C
Musas, canoras musas, este canto
Vós me inspirastes, vós meu tenro alento
Erguestes brandamente àquele assento
Que tanto, ó musas, prezo, adoro tanto.
Lágrimas tristes são, mágoas, e pranto,
Tudo o que entoa o músico instrumento;
Mas se o favor me dais, ao mundo atento
Em assunto maior farei espanto.
Se em campos não pisados algum dia
Entra a ninfa, o pastor, a ovelha, o touro,
Efeitos são da vossa melodia;
Que muito, ó musas, pois, que em fausto agouro
Cresçam do pátrio rio à margem fria
A imarcescível hera, o verde louro!
À morte do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Gomes Freire de Andrada, Conde de Bobadela, Governador e Capitão General do Rio de janeiro e Minas, etc etc etc
A ti me chego, ó Mausoléu sagrado,
De um alto Herói depósito adorado,
Permite que aos impulsos do gemido,
Das lágrimas, dos ais, corra advertido
A venerar as cinzas que sepultas.
Sei que ambicioso uma relíquia ocultas
Do mais raro Varão, que aponta a história
Nos eternos volumes da memória.
Daquele, que proposto como espelho
De uma inteira virtude, no conselho,
Na execução, mostrou que unir sabia
As leis da temperança e da valia,
Sustentando por modo estranho e raro
Do Monarca o amor, do povo o amparo.
Sei que guardas (eu digo) nas entranhas
O generoso braço, que às campanhas
Deu assombro e terror; sei (porque tudo
Explique de uma vez) que no horror mudo
Desse cofre soberbo a estranha dita
De um Andrada imortal se deposita;
Que no busto fatal a estampa grata
Do mais distinto Freire se retrata;
Que se guarda e se adora a imagem bela
Desse Conde feliz de Bobadela.
Ao romper o clamor das tristes vozes,
Ao soltar estas cláusulas velozes,
Oh! qual eco de dor, de pena, e pranto
Se vê corresponder a impulso tanto!
Em lágrimas se rompe o peito aflito:
De sombras veste o Céu; ao triste grito
Soluça o ar, os elementos gemem;
Todos da terra os fundamentos tremem;
E parece que a fúnebre saudade
Não encontra na vasta imensidade
De um mundo, que compreende, aquela esfera,
Que para o desafogo achar quisera.
Mas que muito, que ao lúgubre gemido
Se altere e cresça o universal ruído,
Se perde Portugal, se o mundo perde
Aquela sempre firme, sempre verde
Rama da heroicidade transtagana!
Se enfim de toda a glória lusitana
Um só Herói, que enchera o fasto inteiro,
Hoje vem a jazer por derradeiro
Deste calado horror no abrigo triste!
Aqui todo o valor de Marte assiste;
Aqui jaz todo o alento da piedade;
Aqui o desempenho da lealdade,
O magnífico, o sábio, o reto, o ativo,
O liberal, constante, discursivo,
Prudente, valeroso: ah! que a tal brado
Confunde-se a razão, pasma o cuidado!
Amplificar a esplêndida figura
De seus dotes quisera; abra a escultura
Dos pórticos a Fama; os olhos entrem;
Registem as estampas; reconcentrem
A longa admiração: desde a corrente
Do cristalino Tejo, oh! que valente
Neste quadro respira! Aqui, tingindo
Do sangue ibero as preciosas veias,
Roxas tornando as pálidas areias,
Une de Portugal ao cetro egrégio
Tantos novos troféus; o privilégio
De seu braço imortal quanto se aclama,
Quando em Campo Maior o cinge a rama,
Por triunfar co'as lusitanas Quinas!
Tu, soberba Castela, entre as ruínas
De teus muros o choras, o teu susto
Lá lhe soube tecer o louro augusto,
Com que apesar de tanto pranto e mágoas,
Enobreceu do Guadiana as águas.
Esse ferro, que agora dependura
Tinto de sangue a Fama, te assegura,
Aflito Portugal, as leis e o trono.
Da tua permanência o eterno abono
Deves àquela espada; ela se ensaia
Nos ilustres Avós: qual em Cambaia
O seu nome deixou! qual em Quiloa
Debuxa o seu brasão! Lá vive em Goa
A memória do sangue: honrado emblema
São de tanta virtude em nobre lema,
Entre as chamas dos bélicos alfanjes,
As ânsias do Indo, as lágrimas do Ganges.
Feliz, ó Portugal, feliz mil vezes
Tu, que para esplendor dos Portugueses
Deste ferro a memória tens guardado!
Se queres ser no mundo respeitado
Pela virtude, outro brasão não tomes,
Que ser Pátria dos Freires e dos Gomes.
Quem haverá que a competir se atreva,
Quando (porque imortal ouvir se deva)
Desde o teu berço este pregão respire!
Eu te prometo que por mais que gire
O Planeta da luz, outro portento,
Outra estirpe maior em todo o alento
Da fama se não logre: aqui se estende,
Aqui se alcança, aqui se compreende
Tudo quanto por glória, e por vaidade,
Engrandece o esplendor da heroicidade.
Mil séculos, e mil se tem passado,
Desde que o Céu com próvido cuidado
Vem lavrando a feliz genealogia
De Varões tão fiéis: a Monarquia
Os honra no solar de Bobadela
Em um Nuno, um Bermudes, um Fruela,
Um Rodrigo, um Forjaz, Peres, Fernandes,
Um Mendes, um Pauzona, e outros Grandes,
Que apontam com espíritos sublimes
A Desidério, Rei dos Longobardos.
Estes os imortais progenitores,
Que intimando no exemplo dos suores
A imitação de um Freire, em glória estranha
Enchem a Portugal, a Itália, e Espanha,
As Barras inculcando por divisa
No brasão, que o seu nome soleniza.
Mas como em um só quadro me detenho,
Admirando o valor, se o desempenho
De outras tantas virtudes tem chegado
A encher da Fama o generoso brado!
Fale a acorde harmonia, com que o vejo
Temperando o governo: aqui do Tejo
A Nau soberba se desata, aonde
O valeroso espírito se esconde,
Que ao antártico clima foi mandado
A governar todo o País dourado.
Este é das Minas, este o áureo hemisfério,
Nobre porção do lusitano Império:
Aqui, ó Rei, ao meu Herói confias
As rédeas do governo. De teus dias
A dilatar o esplêndido progresso
Terias outro abono! Eu não conheço
Vê qual desinteresse o acredita
Digno de teu favor: entre a esquisita
Cópia de tanto Ofir, a prata, o ouro,
O topázio, as safiras, o tesouro
Dos diamantes, que a terra desentranha,
Não sabem conceber a empresa estranha
De atrair-lhe a ambição; ao seu desprezo
Serve apenas de objeto o raio aceso
Do precioso metal; a alma se cria
Com tão nobre, louvável rebeldia,
Que nada menos a molesta e cansa
Que sustentar a sólida aliança
Que fez com a justiça: este progresso
Ganha em teu peito o luminoso apreço
De um vassalo fiel, nele guardando
De três governos repartido o mando
O Rio de Janeiro lhe obedece;
De São Paulo o empório reconhece
A alta moderação; e as Minas douro
Se esclarecem, tecendo o fausto agouro.
Mas oh! e com que inteiro movimento
A propagar do cetro o régio aumento,
Apesar do trabalho, a mão se aplica,
Quando o peso se dobra, ou se triplica!
Como a sagrada lei primeiro objeto
É da sua intenção, o alto projeto
De encher a obrigação do cargo ilustre
Quanto na execução lhe esforça o lustre!
De Nêmesis, parece que a balança
Nunca teve outro ponto; a segurança
Do fiel observou tão finamente,
Que se o digno se alegra, o delinqüente
Não acusa o castigo: a pena, o prêmio,
Achando na justiça igual o grêmio,
Saíam dentre as mãos tão bem pesados,
Que se viram talvez equivocados
O prazer e a dor: louva o aflito
A justa punição do seu delito;
E chora o benemérito, no susto
De não ser imortal Herói tão justo
Pronto o despacho, a súplica atendida,
Castigada a maldade, agradecida
A retidão, a idéia vigilante
Não conhece repouso um só instante:
Enfim o seu descanso, o seu sossego
É só a instância do zeloso emprego.
Oh! que estranha se inculca a nobre idéia
Deste saudoso Herói! Tanto de Astréia
O espírito igualou, que ao Rei, ao povo
Soube conciliar por modo novo.
O vasto empório das douradas Minas
Por mim o falará: quando mais finas
Se derramam as lágrimas no imposto
De uma capitação, clama o desgosto
De um País decadente; e ao seu gemido
Se enternece piedoso o esclarecido,
O generoso Herói: ao Soberano
Conduz a queixa, representa o dano.
Chega o remédio pela mão piedosa,
Ministra do favor; menos penosa
Já se modera a imposição: contente
Já ri o povo, já se alegra a gente.
Lisonjeiro o prazer cada um descobre,
Os pequenos, o grande, o rico, o pobre.
Ó alma grande! Ó alma esclarecida!
Digna de ser guardada, ser nutrida
Na pompa dos Elísios, entre os belos
Espíritos dos Élios, dos Metelos,
Dos Cipiões, Temístocles, Zopiros
E outros, que em felicíssimos retiros
Gozando estão as auras lisonjeiras,
Em prêmio desse amor, com que as primeiras
Fadigas de um solícito cuidado
Pelo Rei, pela Pátria hão consagrado.
Estes os frutos são dessa doutrina,
Que bebeste na cândida oficina
De uma ética inata: ali se alcança
Aquela inalterável confiança,
Que em ti sabes firmar, mostrando ao mundo,
Com desprezo da inveja, o mais profundo,
Positivo esplendor, que te reserva,
Superior à emulação proterva.
Que importa que de estrada dissonante,
Seguindo outros talvez o curso errante,
Assegurar pertendam sobre o trono
De um alto valimento o régio abono,
Se essa idéia injustíssima que os guia,
Estragando os desígnios, algum dia
Fará gemer com lástima importuna
O mal seguro alento da fortuna!
A idéia mais feliz de ser aceito
À vontade de um Rei é ter o peito
Sempre animado de um constante impulso
De amar o que for justo: este acredita
Ao servo, que obedece; felicita
Ao Rei, que manda; este assegura a fama;
Este extingue a calúnia, e apaga a chama,
De um ânimo perverso, que atropela
O precioso ardor de uma alma bela.
Pelos degraus desta feliz escada,
Subiste, ó Freire excelso: ao braço, à espada,
Ou na civil Minerva, ou na Castrense,
Há um Rei, que as fadigas te compense.
Triplica-te o governo; honra-te o cargo;
Teus méritos confessa; um campo largo
Aos prêmios abre; a General te chama;
Te fia os seus exércitos; te aclama
Na régia comissão seu substituto.
De tão alta virtude o egrégio fruto
Respira enfim no esplêndido apelido,
Título grande, sim; mas tão devido,
Que inda que teus serviços ornar venha,
Cuido que a régia mão não desempenha.
Não te faz grande o Rei: a ti te deves
A glória de ser grande; tu te atreves
Somente a te exceder; outro ao Monarca
Deva o título egrégio, que o demarca
Entre os Grandes por Grande; em ti louvado
Só pode ser o haver-te declarado.
Mas que muito, que a tanto Herói assista
Este influxo feliz, se ele conquista
Com seus braços o Céu! ele desata
Com a mão liberal a cópia grata
De tantos cabedais: é confiado
Menos o soldo, para o nobre estado,
Que para sustentar com régio empenho
Do coração devoto o desempenho.
A dispêndios do ardor, que a alma respira,
Ali aquele pórtico se admira,
Por onde se abre ao mundo a excelsa entrada
De uma casa, que a Deus é consagrada.
Têm de Teresa as religiosas filhas
Ali um santo abrigo: as maravilhas
De um zelo nunca visto ali se inculcam.
Buscas o Autor da nobre arquitetura?
Queres saber quem ergue essa estrutura,
O dórico, o coríntio frontispício?
Esse mármore o diga: mas o indício
Na pedra se não grava: oh! que a piedade
Lhe encurtou esse alento na vaidade!
Foi providência, não foi erro: ignora
Esse mármore egrégio a mão que o fora
Desentranhando desde a terra dura,
Que o erguera e polira. O Herói procura
Que se esconda o seu nome. Em glória tanta
O seu mesmo silêncio é quem o canta.
Vê que o dogma evangélico encomenda
Que a direita co'a esquerda não se entenda:
E esta máxima tanto a Freire agrada,
Que até com Deus a deixa praticada.
Deu a Deus só por Deus: ao padrão sobra
Saber que a Deus é consagrada a obra.
E quem (oh! Céus!), quem há que não presuma
Educado este espírito na suma,
Penitente fadiga dos desertos!
Quem há que estes estímulos despertos
Não julgue na Tebaida mais austera!
Mas oh! quanto a virtude mais se esmera,
Lá cultivada desde a tenra idade,
Entre a perversa, mísera vaidade
Da militar licença, onde se apura
Toda a relaxação, toda a soltura!
Outro talvez de escola, que é tão fera,
Razão de seus escândalos trouxera:
Só acha Gomes da virtude a chama
No mavórcio exercício; ali se inflama
Na alta meditação de um pensamento,
Que só em Deus contempla o fundamento
De toda a humana glória: na vigia,
Nos sítios, nos ataques, na porfia
Dos choques, dos assédios, lá protesta
Que a mão é só de Deus; nada lhe resta
Que esperar de si mesmo: neste estudo
Tudo se logra, se prospera tudo.
Não me suspenda deste templo o objeto;
Discorra a admiração: o ardente afeto,
Com que se entrega ao Céu, que bem se explica
Nessas casas de Deus! ele se aplica
A Protetor da caridade santa.
Com seu fervor congregações levanta,
Onde aos pobres assista. O Pão Sagrado
Se ministra aos enfermos; acha o aflito
No cárcere o favor, para o delito
Se deputa Advogado; ao morto acode
Com o supremo ofício a mão piedosa.
Tu, Vila Rica, tu, a mais saudosa,
Nessa casa de Deus, que hoje sustentas,
O choras, o suspiras, o lamentas.
Tu o choras, ó mundo: mas que digo!
O Céu o chora, o Céu: que o braço amigo
Não fez mais grato o mundo, que fizera
Agradecido o Céu: ele quisera
Este Herói imortal; a lei sagrada
Da Providência, a lei sempre adorada
É quem o rouba da ventura nossa,
Quem de nós o separa, sem que possa
Suspender-se a si mesma: é Providência;
Mas que digo! é decreto; é obediência.
E quem sabe se lá no eterno seio
Das idades futuras (não o creio),
Quem sabe se apesar da estranha inveja
Outra alma tornará, onde se veja,
Para consolação desta ânsia aguda,
A virtude exemplar, que aqui se estuda!
Em que tão largos séculos prepara
O Céu uma alma grande! O Tejo o diga
Se de Heróis lusitanos na fadiga
Deu à Fama, em idade dilatada,
Outro Freire, outro Gomes, outro Andrada.
Consolação pesada eu te proponho,
Ó Reino, em tal memória: sei que choras
Os breves dias, as ligeiras horas,
Que lhe cortou o próvido destino.
Ah! se o viras no susto intercadente
Do mortal desalento! o pranto infausto
Se convertera em júbilo. O holocausto
De uma alma pura ele feliz votava
Ao Criador eterno, e se abraçava
Com a celeste imagem de Teresa.
Dos amigos, dos servos a tristeza
Em melhor sorte converter queria.
O alento pouco e pouco se extinguia;
E seguro da empresa... ah! que emudeço!
Eu pasmo; eu tremo; eu choro; eu desfaleço.
Já roto, já quebrado o nobre escudo,
Guarda o Gênio o brasão: entre o horror mudo
O Templo de Teresa já demanda
Conduzido o cadáver; surda e branda
Se ouve a harmonia do tambor guerreiro;
Arrastam-se as bandeiras; pregoeiro
É o rouco metal; o pó sulfúreo
Em salvas se dispende: uma ânsia interna
A pompa funeral rege e governa.
Cingido dos Brandões, que a mágoa sofre,
Prossegue logo em um dourado cofre
O ilustre coração. Oh! quanto é digno
De respirar eterno o ardor benigno
Que o nutriu, que o gerou! penhor sagrado,
Do caráter de um Freire fiel traslado!
Deva ao bálsamo, deva o benefício
De triunfar do infausto precipício
Dos anos, nele achando a atividade,
Que não pôde encontrar na humanidade.
Não pode, excelso Herói, não pode esta ânsia
Permitir mais esforços à constância.
A registar de todo não me atrevo
O Templo, que busquei; a cifra escrevo,
porque o mundo jamais de ti se esqueça:
Aqui jaz... mas que digo! aqui começa
A nascer a virtude: não se apaga
Uma ilustre memória; não se estraga
Uma excelsa relíquia; antes mais templos
Se produzem da vida dos exemplos.
Oh! que enganadamente solicito
Achar letra que explique aquele invicto
Espírito, que choro: em vão se atenda
O risco, que lavrei. Tudo se emenda,
Tudo já se desfaz. Se o néscio intento
Eternizar procura o monumento,
Seja túmulo o mundo. A cobertura
Seja o Céu: honre a esplêndida figura
Das faixas toda a luz, a impulso tanto,
Suspiro o fogo, e oceano o pranto.
Seu potius
Pro tumulo ponas orbem, pro tegmine coelum.
Sidera pro facibus, pro lacrimis maria.
À morte de Salício
Espírito imortal, tu que rasgando
Essa esfera de luzes, vais pisando
Do fresco Elísio a região bendita,
Se nesses campos, onde a glória habita,
Centro do gosto, do prazer estância,
Entrada se permite à mortal ânsia
De uma dor, de um suspiro descontente,
Se lá relíquia alguma se consente
Desta cansada, humana desventura,
Não te ofendas, que a vítima tão pura,
Que em meus ternos soluços te ofereço,
Busque seguir-te, por lograr o preço
Daquela fé, que há muito consagrada
Nas aras da amizade foi jurada.
Bem sabes, que o suavíssimo perfume,
Que arder pode do amor no casto lume,
Os suores não são deste terreno,
Que odorífero sempre, e sempre ameno,
Em coalhadas porções Chipre desata:
Mais que os tesouros, que feliz recata
A arábica região, amor estima
Os incensos, que a fé, que a dor anima,
Abrasados no fogo da lembrança.
Esta pois a discreta segurança,
Com que chega meu peito saudoso,
A acompanhar teu passo venturoso,
Oh sempre suspirado, sempre belo,
Espírito feliz: a meu desvelo
Não negues, eu te rogo, que constante
Viva a teu lado sombra vigilante.
Inda que estejas de esplendor cercada,
Alma feliz, na lúcida morada,
Que na pompa dos raios luminosa
Pises aquela esfera venturosa,
Que a teu merecimento o Céu destina;
Nada impede, que a chama peregrina
De uma saudade aflita, e descontente,
Te assista acompanhando juntamente.
Antes razão será, que debuxada
Em meu tormento aquela flor prostrada,
Sol em teus resplendores te eternizes,
E Clície em minha mágoa me divises;
Entre raios crescendo, entre lamentos,
Em mim a dor, em ti os luzimentos.
Se porém a infestar da Elísia esfera
A contínua, brilhante primavera
Chegar só pode o lastimoso rosto
Deste meu triste, fúnebre desgosto,
Eu desisto do empenho, em que deliro;
E as asas encurtando a meu suspiro,
Já não consinto, que seu vôo ardente
A acompanhar-te suba diligente:
Antes no mesmo horror, na sombra escura
Da minha inconsolável desventura
Eu quero lastimar meu fado tanto,
Que sufocado em urnas de meu pranto,
A tão funesto, líquido dispêndio,
A chama apague deste ardente incêndio.
Indigno sacrifício de uma pena,
Que chega a perturbar a paz serena
De umas almas, que em campos de alegria
Gozam perpétua luz, perpétuo dia;
Que adorando a concórdia, desconhecem
Os sustos, que da inveja os braços tecem;
Que ignoram o rigor do frio inverno;
E que em brando concerto, em jogo alterno
Gozam toda a suavíssima carreira
De uma sorte risonha, e lisonjeira.
Ali, entre os favônios mais suaves,
A consonância ofenderei das aves,
Que arrebatando alegres os ouvidos,
Discorrem entre os círculos luzidos
De toda a vegetante, amena estância.
Ali pois as memórias de minha ânsia
Não entrarão, Salício: que não quero
Ser contigo tão bárbaro, e tão fero,
Que um bem, em cuja posse estás ditoso,
Triste magoe, infeste lastimoso.
Cá vivera comigo a minha pena,
Penhor inextinguível, que me ordena
A sempre viva, e imortal lembrança.
Ela me está propondo na vingança
De meu fado inflexível, ó Salício,
Aquele infausto, trágico exercício,
Que os humanos progressos acompanha.
Quem cuidara, que fosse tão estranha,
Tão pérfida, tão ímpia a força sua,
Que maltratar pudesse a idade tua,
Adornada não só daquele raio,
Que anima a flor, que se produz em maio;
Mas inda de frutíferos abonos,
Que antecipa a cultura dos outonos!
Cinco lustros o Sol tinha dourado
(Breves lustros enfim, Salício amado),
Quando o fio dos anos encolhendo,
Foi Átropos a teia desfazendo:
Um golpe, e outro golpe preparava:
Para empregá-lo a força lhe faltava;
Que mil vezes a mão, ou de respeito,
De mágoa, ou de temor, não pôs o efeito.
Desatou finalmente o peregrino
Fio, que já tecera. Ah se ao destino
Pudera embaraçar nossa piedade!
Não te glories, trágica deidade,
De um triunfo, que levas tão precioso:
Desar é de teu braço indecoroso;
Que inda que a fúria tua o tem roubado,
A nossa dor o guarda restaurado.
Vive entre nós ainda na memória,
A que ele nos deixou, eterna glória;
Dispêndios preciosos de um engenho,
Ou já da natureza desempenho,
Ou para a nossa dor só concedido.
Salício, o pastor nosso, tão querido,
Prodígio foi no raro do talento,
Sobre todo o mortal merecimento;
E prodígio também com ele agora
Se faz a mágoa, que o lastima e chora.
A lutuosa vítima do pranto
Melhor, que o imarcescível amaranto,
Te cerca, ó alma grande, a urna triste;
O nosso sentimento aqui te assiste,
Em nênias entoando magoadas
Hinos saudosos, e canções pesadas.
Quiséramos na campa, que te cobre,
Bem que o tormento ainda mais se dobre,
Gravar um epitáfio, que declare,
Quem o túmulo esconde; e bem que apare
Qualquer engenho a pena, em nada atina.
Vive outra vez: das cinzas da ruína
Ressuscita, ó Salício; dita; escreve;
Seja o epitáfio teu: a cifra breve
Mostrará no discreto, e no polido,
Que é Salício, o que aqui vive escondido.
À morte apressada de um Amigo
Comigo falas; eu te escuto; eu vejo
Quanto apesar de meu letargo, e pejo,
Me intentas persuadir, ó sombra muda,
Que tudo ignora quem te não estuda.
Há poucas horas que um ativo alento
Te dirigia o ardente movimento,
E em breve instante (oh! dor!), em breve instante
Se torna em luto o resplendor brilhante.
Arrebatado em vão te solicito
Por qualquer parte que se estenda o grito,
E aos ecos, ao clamor, que aos troncos passa
(Funestíssimo aviso da desgraça)
Apenas fala, apenas me responde
O desengano, que esta penha esconde.
Mas como em te encontrar minha ânsia tarda,
Se só este penhasco é quem te guarda!
Ele a saudade tua recomenda,
Ele me escute, pois, ele me atenda.
Mármore bruto, que em teu seio encobres
Triste despojo de relíquias pobres,
Eu me chego a escutar-te: a ouvir-te venho,
Talvez de tanto ardor no heróico empenho,
Ao crédito maior esta alma aspira.
Se enlaçado nas redes da mentira
Amei té agora o meu profundo sono,
De tanto anúncio ao peregrino abono,
Eu quero despertar: volta a falar-me,
Ó dura penha, eu quero aconselhar-me
Contigo mesmo. Que lições prudentes
Hoje me estás ditando! Oh! que eloqüentes
Falam as sombras, os horrores falam,
Quando os alentos, quando as vozes calam!
EPICÉDIO III
À morte apressada de um Amigo
Comigo falas; eu te escuto; eu vejo
Quanto apesar de meu letargo, e pejo,
Me intentas persuadir, ó sombra muda,
Que tudo ignora quem te não estuda.
Há poucas horas que um ativo alento
Te dirigia o ardente movimento,
E em breve instante (oh! dor!), em breve instante
Se torna em luto o resplendor brilhante.
Arrebatado em vão te solicito
Por qualquer parte que se estenda o grito,
E aos ecos, ao clamor, que aos troncos passa
(Funestíssimo aviso da desgraça)
Apenas fala, apenas me responde
O desengano, que esta penha esconde.
Mas como em te encontrar minha ânsia tarda,
Se só este penhasco é quem te guarda!
Ele a saudade tua recomenda,
Ele me escute, pois, ele me atenda.
Mármore bruto, que em teu seio encobres
Triste despojo de relíquias pobres,
Eu me chego a escutar-te: a ouvir-te venho,
Talvez de tanto ardor no heróico empenho,
Ao crédito maior esta alma aspira.
Se enlaçado nas redes da mentira
Amei té agora o meu profundo sono,
De tanto anúncio ao peregrino abono,
Eu quero despertar: volta a falar-me,
Ó dura penha, eu quero aconselhar-me
Contigo mesmo. Que lições prudentes
Hoje me estás ditando! Oh! que eloqüentes
Falam as sombras, os horrores falam,
Quando os alentos, quando as vozes calam!
Dentro sepultas desse cofre infausto
De Aônio o resplendor, o lustre, o fausto.
Debaixo jaz dessa fatal dureza
Aquele ativo engenho, que a destreza
De Minerva poliu; o que esgotara
D'alta jurisprudência a luz mais rara.
Aqui sepultas, ó penhasco duro
(Tudo te digo), aquele Amigo puro,
Que ausente de minha alma hoje me ordena
A companhia só da minha pena.
No teu silêncio encontro o desengano
Do caduco esplendor do alento humano.
Tu me dizes quão pouco ao mundo importa
Esta cansada vida que suporta
Das fadigas o peso intolerável.
Venturoso Baixel em golfo instável
Me finges, me figuras: brando o vento
Ordenava a carreira; solto o alento
Das velas respirava a Nau segura;
Tranqüilo o mar com próspera brandura
Sustentava o seu peso: no acidente
De ingrata tempestade de repente
Se escandeliza o Céu; o mar se altera;
Rompem-se as velas; pela crespa esfera
Vaga perplexo o lenho, absorto vaga;
Já perde o rumo, e infeliz naufraga.
E que se espera entre a fatal ruína?
Que mais se espera? Se da luz benigna
Se desperdiça o breve auxílio, ao menos
Enquanto a nós os Zéfiros serenos
Nos influem propícios, indeciso
Não vacile o discurso; o obséquio, o riso
Deste mísero golfo se aproveite,
Abominando os vícios, e o deleite
De tanto ardor profano: a razão venha,
E vendo que no abismo se despenha,
De seus mesmos horrores triunfante,
Sobre tanto desmaio o ardor constante
Da antiga Babilônia, que se estraga,
Novos alentos das ruínas traga.
Tudo, ó bruto penhasco, me insinua
O teu mesmo silêncio, a sombra tua.
E pois te encontro agora tão propício,
Só te quero rogar o benefício
De que ao triste cadáver alguma hora
A ânsia ardente com que esta alma o chora,
Por último favor, lhe comuniques.
Peço-te que de todo o certifiques
Do muito que o lastimo; e se há piedade
Nessa estranha região, chegue a saudade
Que te consagro, ô extremoso Amigo,
Sempre a viver, sempre a morrer contigo.
Ao senhor José Gomes de Araújo, Desembargador do Porto,
Provedor da Real Fazenda, e Vedor Geral da Gente de Guerra na
Capitania das Minas Gerais etc etc etc
Sábio, e reto Ministro, aquela idéia
Que eu formo desse espírito, alguma hora
Há de chegar a dispensar-se ao mundo,
Inda que em sombras de uma imagem tosca.
Ver-se-á que quanto a mão do Rei Augusto
Mais liberal, mais pródiga vos honra,
Tanto o mérito vosso os mesmos prêmios
Acredita, enobrece, e condecora.
Entregue à vossa direção prudente
Foi o Erário Real; e apenas louva
A fortuna este bem, já vos admira
Cingir no Porto a Senatoria Toga.
Estes os louros são que vos prepara
Vossa egrégia virtude, que se de outra
Estranha mão brotassem produzidos,
Não seria a ventagem tão preciosa.
Do Real Decreto as cláusulas, que atendo,
Desta mesma verdade hoje me informam:
Ele nos insinua que os serviços
Com este novo ascenso se coroam.
Outro, que aos cargos do Conselho assiste,
Vigilante Ministro, assim o abona,
Quando nos diz que do interesse régio
Vossa atenção se preocupa toda.
Mas que muito, que o crédito daqueles
Assim vos busque, assim vos corresponda,
Se por vós, ó Ministro esclarecido,
Falam cheias de alento as mesmas obras!
Seguindo os vossos passos, desde quando
Pisais das Minas as montanhas toscas,
Que cousa há que não seja testemunho
Do zelo, que distingue as ações vossas?
Diga-o do Sabará na régia casa,
Onde do Erário se regula a soma,
Aquela perspicácia nunca vista,
Aquela sempre vigilância pronta.
Velando pelo Rei, que segurança
Não têm os seus Direitos! menor sombra
Não pode subsistir no engano indigno,
Da maldade uma vez cerrada a porta.
Este o teatro foi, onde a virtude
Mil padrões erigiu à vossa glória,
Acreditando em diligências graves
Do serviço real vossa pessoa.
Sem temer as distâncias e os perigos
Por ásperos sertões, empresa heróica,
Desde lá vos conduz a ver os matos,
Onde o Paracatu seu termo logra.
Ali provendo em equilíbrio tudo
Quanto acredita da Justiça as normas,
Desprezastes as calúnias, e somente
Deste à verdade a subsistência própria.
Vencidas neste giro (quem tal crera!)
Mais de trezentas léguas, a derrota
Terminais, respirando sem fadiga,
Ao ver que pelo Rei ela se abona.
Não bem cerraste os destinados dias
Do cargo de Intendente, já sem nota,
Que infame à residência, o Rei vos chama,
Já da Fazenda o Tribunal vos goza.
E para seres com maior ornato
Exposto a nossos olhos, vos coloca
Na Junta da Bahia, entre os que a Beca
Distingue, ilustra, qualifica, aprova.
Agora se outro alento me assistira,
Eu descrevera as peregrinas provas
Que fizeste avultar, juntando àquelas
Que a Fama em tanto giro admira absorta.
Eu dera a conhecer que neste emprego
Resplendeceu vossa virtude, posta
No mais distinto grau: dissera ao mundo
Que em vós do Erário se duplica a força.
A força se duplica: pois se aquele
Sustenta o Reino dispendido, a nova,
Interessante economia quanto
O zela mais, é certo, o aumenta, e dobra.
A prática piedosa, bem que inteira,
De uma exação ceder faz a demora
Dos devedores; e arrecada o Cofre
Quanto a avareza em subterfúgios forra.
O excesso das despesas se refreia,
O menos útil se modera e poupa;
O mesmo, que faltava, agora cuido,
Não só não falta já, antes já sobra.
Revolvem-se esquecidos monumentos
Que o tempo sepultava em cinza morta;
E porque tudo ao Régio Erário sirva,
Por eles se entra em recenseio às contas.
Oh! e que frutos deste exame tira
A Fazenda do Rei! quantos se encontram
Erros, e vícios, da maldade efeitos!
Se este se averigua, este se nota.
Nunca das Minas o País dourado
Com tão crescidas, avultadas somas,
Honrando o real selo os cofres, pôde
Ver tão soberba a lusitânia Frota.
Não só do Tribunal junto à fadiga,
Vos aplicais, Senhor, mas vos remonta
Novo cuidado a investigar os passos,
Que abre o extravio por estranhas bocas.
Pela Comarca, aonde os verdes campos
Têm do Sapucaí banhado as ondas,
Atravessais, entregue ao real serviço,
Os sertões, que inda as feras mal povoam.
Os caminhos do engano só trilhados,
Por vós pisados são, por vós se cortam.
Servem ao vosso zelo, ao vosso exame,
O fundo rio, a serra mais medonha.
Nada vos horroriza, nada embarga
A ilustre diligência, bem que aborta
Fúrias o Inverno, cóleras o Tempo,
Rotos os Céus em tempestades grossas.
Vedor Geral, fiada a vosso arbítrio
A comissão da empresa mais custosa,
Com quanta reflexão vos encontramos
Regulando as reclutas para as Tropas!
Atende-se à pobreza, ao desamparo,
Com a clemência a retidão se informa:
A tudo consultais dando os ouvidos
À Viúva, ao Irmão, ao Pai, à Esposa.
Mas que muito, Ministro inimitável,
Que muito obreis assim, se a vossa própria
Língua confessa que ao serviço régio,
Não o interesse, só vos chama a honra!
O amor só da virtude é que dirige
Iguais a vossa idéia as vossas obras,
Conhecendo que é ela de si mesma
O prêmio que mais val, que mais importa.
Por isso inda que ao mérito distinto
Falte a retribuição, só vos consola
Aquela sempre máxima adorável
Que o Pai da Liberdade amava em Roma.
Contenta-se Catão que a estátua sua
No Capitólio entre outras se não ponha,
Porque pergunte absorto o passageiro:
Quem é o que a Catão nega esta glória?
Tendes na fantasia sempre impressas
As imagens do sonho que ainda aponta
De Massinissa a Corte, quando ao Filho
De Cipião se mostra a esfera toda.
Ali se vos descobre que a primeira
Obrigação de um ânimo, que adora
O esplendor da virtude, é que somente
Se ame o seu Rei, a Pátria se socorra.
Daqui vem que é acerto tudo quanto
Imaginais, ou emprendeis; sufoca
A desgraça por vós o seu partido:
Tudo serve ao prazer, tudo à lisonja.
Oh! mil vezes feliz aquele exemplo
Que de vós se deriva! Se estudiosa
A virtude pudera retratar-vos,
Quantas ao mundo repartira cópias!
Nelas ensaiaria para as Becas
Ilustres Magistrados; menos pompa
Trajaram sobre a Fama outros Consultos,
De que o corpo jurídico blasona.
Os Flávios, os Hermógenes, os Élios,
Os Pérsios, os Papírios, os Mendonças,
Os Pegas, os Macedos, os Pereiras
Perderão junto a vós a glória toda.
Vós com justiça igual desempenhando
De sábio o nome, entre virtudes outras,
Sois afável, pacífico, prudente,
Sois liberal, benévolo; isto sobra.
Assim dais a saber que o vosso peito
Alenta aquele sangue, que se adora,
De um Pai, de quem no emprego, que ocupara,
Há de ser imortal sempre a memória.
Assim mostrais que ramo florescente
Sois de um Irmão, que em dotes, em pessoa,
Enobrece do Reino Lusitano
Tudo o que o cetro em seus domínios doura.
Porque entre as perfeições que vos ilustram,
Ainda a mais acidental, concorra,
Até mostrais o quanto a natureza
Se desempenha em vós, quando vos forma.
Cheios de atividade os olhos, dentro
Dos corações, nos dão não sei que mostras
De uma alma dominante: o que vos busca,
Ao respeito, ao agrado igual se dobra.
Mas que debalde a examinar me empenho
Os vossos atributos! Se se agoura
Pelos princípios o progresso, quanto,
Quanto o destino na esperança aponta!
Que comissões, que empresas vos auspica
O fausto lusitano! Ah! cerre embora,
Cerre a porta o futuro, porque a tanto
Não sobe a inculta lira, a Musa rouca.
FÁBULA DO RIBEIRÃO DO CARMO
SONETO
A vós, canoras ninfas, que no amado
Berço viveis do plácido Mondego,
Que sois da minha lira doce emprego,
Inda quando de vós mais apartado;
A vós do pátrio rio em vão cantado
O sucesso infeliz eu vos entrego;
E a vítima estrangeira, com que chego,
Em seus braços acolha o vosso agrado.
Vêde a história infeliz, que Amor ordena,
Jamais de fauno ou de pastor ouvida,
Jamais cantada na silvestre avena.
Se ela vos desagrada, por sentida,
Sabei, que outra mais feia em minha pena
Se vê entre estas serras escondida.
Aonde levantado Gigante, a quem tocara,
Por decreto fatal de Jove irado,
A parte extrema, e rara
Desta inculta região, vive Itamonte,
Parto da terra, transformado em monte;
De uma penha, que esposa
Foi do invicto Gigante,
Apagando Lucina a luminosa,
A lâmpada brilhante,
Nasci; tendo em meu mal logo tão dura,
Como em meu nascimento, a desventura.
Fui da florente idade
Pela cândida estrada
Os pés movendo com gentil vaidade;
E a pompa imaginada
De toda a minha glória num só dia
Trocou de meu destino a aleivosia.
Pela floresta, e prado
Bem polido mancebo,
Girava em meu poder tão confiado,
Que até do mesmo Febo
Imaginava o trono peregrino
Ajoelhado aos pés do meu destino.
Não ficou tronco, ou penha,
Que não desse tributo
A meu braço feliz; que já desdenha,
Despótico, absoluto,
As tenras flores, as mimosas plantas,
Em rendimentos mil, em glórias tantas.
Mas ah! Que Amor tirano
No tempo, em que a alegria
Se aproveitava mais do meu engano;
Por aleivosa via
Introduziu cruel a desventura,
Que houve de ser mortal, por não ter cura.
Vizinho ao berço caro,
Aonde a pátria tive,
Vivia Eulina, esse prodígio raro,
Que não sei, se ainda vive,
Para brasão eterno da beleza,
Para injúria fatal da natureza.
Era Eulina de Aucolo
A mais prezada filha;
Aucolo tão feliz, que o mesmo
Apolo se lhe prostra, se humilha
Na cópia da riqueza florescente,
Destro na lira, no cantar ciente.
De seus primeiros anos
Na beleza nativa,
Humilde Aucolo, em ritos não profanos,
A bela ninfa esquiva
Em voto ao sacro Apolo consagrara;
E dele em prêmio tantos dons herdara.
Três lustros, todos d'ouro,
A gentil formosura,
Vinha tocando apenas, quando o louro,
Brilhante Deus procura
Acreditar do pai o culto atento,
Na grata aceitação do rendimento.
Mais formosa de Eulina
Respirava a beleza;
De ouro a madeixa rica, e peregrina
Dos corações faz presa;
A cândida porção da neve bela
Entre as rosadas faces se congela.
Mas inda, que a ventura
Lhe foi tão generosa,
Permite o meu destino, que uma dura,
Condição rigorosa
Ou mais aumente enfim, ou mais ateie
Tanto esplendor; para que mais me enleie.
Não sabe o culto ardente
De tantos sacrifícios
Abrandar o seu nume: a dor veemente,
Tecendo precipícios,
Já quase me chegava a extremo tanto,
Que o menor mal era o mortal quebranto.
Vendo inútil o empenho
De render-lhe a fereza,
Busquei na minha indústria o meu despenho:
Com ingrata destreza
Fiei de um roubo (oh mísero delito!)
A ventura de um bem, que era infinito.
Sabia eu, como tinha
Eulina por costume,
(Quando o maior planeta quase vinha
Já desmaiando o lume,
Para dourar de luz outro horizonte)
Banhar-se nas correntes de uma fonte.
A fugir destinado
Com o furto precioso,
Desde a pátria, onde tive o berço amado;
Recolhi numeroso
Tesouro, que roubara diligente
A meu pai, que de nada era ciente.
Assim pois prevenido
De um bosque à fonte perto,
Esperava o portento apetecido
Da ninfa; e descoberto
Me foi apenas, quando (oh dura empresa!)
Chego; abraço a mais rara gentileza.
Quis gritar; oprimida
A voz entre a garganta
Apolo? diz, Apol... a voz partida
Lhe nega forca tanta:
Mas ah! Eu não sei como, de repente
Densa nuvem me põe do bem ausente.
Inutilmente ao vento
Vou estendendo os braços:
Buscar nas sombras o meu bem intento:
Onde a meus ternos laços. . .!
Onte te escondes, digo, amada Eulina?
Quem tanto estrago contra mim fulmina?
Mas ia por diante;
Quando entre a nuvem densa
Aparecendo o corpo mais brilhante,
Eu vejo (oh dor imensa!)
Passar a bela ninfa, já roubada
Do Númen, a quem fora consagrada.
Em seus braços a tinha
O louro Apolo presa;
E já ludíbrio da fadiga minha,
Por amorosa empresa,
Era despojo da deidade ingrata
O bem, que de meus olhos me arrebata.
Então já da paciência
As rédeas desatadas,
Toco de meus delírios a inclemência:
E de todo apagadas
Do acerto as luzes, busco a morte ímpia,
De um agudo punhal na ponta fria.
As entranhas rasgando,
E sobre mim caindo,
Na funesta lembrança soluçando,
De todo confundindo
Vou a verde campina; e quase exangue
Entro a banhar as flores de meu sangue.
Inda não satisfeito
O Númen soberano,
Quer vingar ultrajado o seu respeito;
Permitindo em meu dano.
Que em pequena corrente convertido
Corra por estes campos estendido.
E para que a lembrança
De minha desventura
Triunfe sabre a trágica mudança
Dos anos, sempre pura,
Do sangue, que exalei, ó bela Eulina,
A cor inda conservo peregrina.
Porém o ódio triste
De Apolo mais se acende;
E sobre o mesmo estrago, que me assiste,
Maior ruína empreende:
Que chegando a ser ímpia uma deidade,
Excede toda a humana crueldade.
Por mais desgraça minha,
Dos tesouros preciosos
Chegou notícia, que eu roubado tinha,
Aos homens ambiciosos;
E crendo em mim riquezas tão estranhas,
Me estão rasgando as míseras entranhas.
Polido o ferro duro
Na abrasadora chama
Sobre os meus ombros bate tão seguro,
Quem nem a dor, que clama,
Nem o estéril desvelo da porfia
Desengana a ambiciosa tirania.
Ah mortais! Até quando
Vos cega o pensamento!
Que máquinas estais edificando
Sobre tão louco intento?
Como nem inda no seu reino imundo
Vive seguro o Báratro profundo!
Idolatrando a ruína
Lá penetrais o centro,
Que Apolo não banhou, nem viu Lucina;
E das entranhas dentro
Da profanada terra,
Buscais o desconcerto, a fúria, a guerra.
Que exemplos vos não dita
Do ambicioso empenho
De Polidoro a mísera desdita!
Que perigo o lenho,
Que entregastes primeiro ao mar salgado,
Que desenganos vos não tem custado!
Enfim sem esperança,
Que alívio me permita,
Aqui chorando estou minha mudança;
E a enganadora dita,
Para que eu viva sempre descontente,
Na muda fantasia está presente.
Um murmurar sonoro
Apenas se me escuta;
Que até das mesmas lágrimas, que choro,
A Deidade Absoluta
Não consente ao clamor, se esforce tanto,
Que mova à compaixão meu terno pranto.
Daqui vou descobrindo
A fábrica eminente
De uma grande cidade; aqui polindo
A desgrenhada frente,
Maior espaço ocupo dilatado,
Por dar mais desafogo a meu cuidado.
Competir não pretendo
Contigo, ó cristalino
Tejo, que mansamente vais correndo:
Meu ingrato destino
Me nega a prateada majestade,
Que os muros banha da maior cidade.
As ninfas generosas,
Que em tuas praias giram,
Ó plácido Mondego, rigorosas
De ouvir-me se retiram;
Que de sangue a corrente turva, e feia
Teme Ericina, Aglaura, e Deiopéia.
Não se escuta a harmonia
Da temperada avena
Nas margens minhas; que a fatal porfia
Da humana sede ordena,
Se atenda apenas o ruído horrendo
Do tosco ferro, que me vai rompendo.
Porém se Apolo ingrato
Foi causa deste enleio,
Que muito, que da Musa o belo trato
Se ausente de meu seio,
Se o deus, que o temperado coro tece,
Me foge, me castiga, e me aborrece!
Enfim sou, qual te digo,
O Ribeirão prezado,
De meus engenhos a fortuna sigo;
Comigo sepultado
Eu choro o meu despenho; eles sem cura
Choram também a sua desventura.
ÉCLOGA I *
OS MAIORAIS DO TEJO
Montano, Corebo, Lise e Laura
Eu canto os dous Pastores
Que o Tejo cristalino
Na bela margem viu: canto o divino
Assunto dos amores,
Que de inveja, e de agrado
O céu, a terra, o mar tem namorado.
Também das Ninfas belas,
Que Amor viu abrasadas,
Os números entôo: se entre aquelas
Cadências delicadas,
Rude o som de meu canto
Se faz digno, Senhor, de obséquio tanto.
Tu do semblante augusto,
Tu da frente serena,
Infante generoso, invicto, e justo,
Enquanto soa a avena,
Teu magnânimo alento
Comunica a meu débil, rouco acento.
E Tu, que os teus altares,
Princesa soberana,
Dilatas na extensão de ambos os mares;
Que Tétis, mais que humana,
Em melhor hemisfério,
Te adotas do Brasil o grande Império;
Enquanto montes d'ouro,
Brilhante pedraria,
Desde o Rio da Prata ao Tejo louro
A América te envia,
Lá dessa glória suma,
A ouvir os meus votos te acostuma.
Aonde o Tejo claro
Seus braços mais estende,
Onde a corrente, em círculo mais raro,
Grande parte comprende
Daquela alta Cidade,
Régio solar da lusa Majestade;
Dum lado e doutro lado
Se estende uma campina,
Em que traz a pascer o manso gado
Tanto a formosa Eulina,
A filha de Silvano,
Como o destro Corebo, o fiel Montano.
Em uma tarde, quando
Os músicos Pastores
Ao som da acorde flauta recitando
Estavam seus amores,
Nas vozes, que afinavam,
Deste modo a cantar se preparavam:
COR. Já que estamos, Montano, neste monte,
Sem outra companhia, enquanto o gado,
Buscando as doces águas dessa fonte,
Vem concorrendo dum, e doutro lado,
Aqui deste salgueiro,
Sentados junto à sombra, eu te requeiro,
Torna-me a repetir aquela história,
Que toda esta minha alma encheu de glória.
MON. Dos nossos Maiorais a grande festa,
Corebo, quem a viu jamais se farta
De a contar: mas enquanto a fresca sesta
A nós se chega, enquanto o Sol se aparta,
Tomando a flauta doce,
O caso contarei; mas ah! se fosse
Minha voz tão suave, e tão divina,
Como aquela que pede ação tão digna!
COR. Toma o teu instrumento: ele é tão brando,
Que se inda agora Títiro vivera,
Porque melhor pudesse ir entoando,
No canto de Amarílis o quisera.
Parece que os rochedos
Se abalam já do centro; os arvoredos,
A habitação deixando da espessura,
Vêm prontos a escutar tanta brandura.
MON. Efeitos são daquele heróico objeto,
Que eu tomo nos meus versos: maravilha
Não é que possa tanto o grande afeto
Com que o meu rendimento o voto humilha;
A história prodigiosa
Escuta, Pastor meu; ouve a ditosa
União dessas almas, que tem dado
À memória do mundo um tal cuidado.
O dia venturoso
Para nós se chegava,
O dia em que no carro luminoso
O Sol mais abrasava:
De riso, e de alegria
O Céu, a terra, o mundo se cobria.
Mais que nunca suaves,
Ao despertar da Aurora,
De ramo em ramo as sonorosas aves,
Sobre os campos de Flora,
Alegres vêm saudando
Da fresca manhã bela o rosto brando.
As árvores copadas
Orvalho cristalino
Derramam sobre a relva: restauradas
A influxo peregrino,
Do inverno, que as rendera,
Formam as flores nova primavera.
Os Gênios da espessura
Então mais concertados
Andam mostrando anúncios da ventura.
Vêem-se os campos cercados
De avisos superiores,
Mandados desde o Céu para os Pastores.
Um salgueiro, que havia
Deixado a pompa verde,
De repente (oh! assombro!) se vestia
Das folhas que em vão perde,
E em prodígios maiores
As mesmas folhas deram logo flores.
Duas rolas, cantando
Naquela sovereira,
Docemente se estavam namorando:
Uma, e outra ligeira,
Com suave reclamo,
De folha em folha vão, de ramo em ramo.
Por entre o trigo louro
Discorre um vento brando,
Qual nunca se sentiu: um branco touro,
Entre os outros brincando,
Três vezes nessa praia,
A correr à porfia os mais ensaia.
Até dessa ribeira,
Que nos fica vizinha,
Se viu chegar à praia derradeira
Um Delfim, o qual tinha
Sobre a escama enlaçadas
As ramas de coral, ao Sol coalhadas.
O mar vinha trazendo
De conchas esquisitas
Uma grande abundância: estão-se vendo
Pérolas infinitas,
Que no centro ocultava,
Que de gosto talvez o mar as dava.
De Pã e de Himeneu,
Deidades soberanas,
Se escuta publicar o alto troféu;
As glórias, mais que humanas,
Os Pastores entoam,
As sacras Divindades apregoam.
Estão por toda a parte
As tochas incendidas
De Himeneu: o festejo se reparte
Entre as Ninfas luzidas,
Cercando em roda as teias
Náiades, Hamadríades, Napéias.
Podem ver-se os Silvanos,
Os Sátiros das covas
Deixar o triste abrigo: mais que ufanos,
Em seus hinos e trovas,
Com tal contentamento,
Que enchiam de alegria o mesmo vento.
Qual fiando a memória
Ao corpulento cedro,
Por triunfo da nunca vista glória,
Lavra o nome de PEDRO:
Qual compete à porfia,
Nas faias entalhando o de MARIA.
Os nomes venturosos
Se lêem por toda a parte:
Trabalham por fazê-los mais ditosos
A natureza e arte,
Porque nos troncos cresçam,
Porque nos mesmos troncos reverdeçam.
Dametas e Corroo,
Os músicos Pastores,
Que entre nós têm louvor quase divino,
Entoando os amores
Da Ninfa e caro Esposo,
Um cântico disseram portentoso.
Aqui sobre estes troncos
Uma letra se atende,
Composta por Alcino; inda entre os broncos
Debuxos se comprende,
E diz: "Chega-te, Amigo";
Mas, não: escuta tu; porque eu a digo.
Cor. Ao longe eu vejo; espera, meu Montano,
Eu vejo aparecer, ao que imagino,
O meu bem, se talvez me não engano:
Sim, a bela Pastora, o peregrino
Encanto desta vida.
Ela é: oh! que júbilo convida
A face alegre, a vista deliciosa
De Ninfa tão gentil, e tão formosa!
MON. Qual vem com ela, atende, a branca Laura,
Do coro enfim das Náiades o mimo!
Formosa é Lise, sim, formosa Aglaura;
Mais que todas formosa a Laura estimo.
Cantando vêm as belas,
Arrastando a seu cântico as estrelas;
Ouçamos o que dizem: mas eu creio
Que de chegar aqui terão receio.
Esta mata frondosa, esta espessura
Comodidade dão, onde escondidos
As podernos ouvir; e tu, procura
Que Lise não perceba os teus gemidos.
Enquanto elas cantando
Para nós descuidadas vêm chegando,
Ao número amabeu nos ajustemos,
E juntos os seus hinos alternemos.
Entenderão que os Sátiros das covas
Sua voz acompanham, ou que as penhas
Repetem desde longe aquelas trovas,
Que elas entoam lá; não te detenhas,
Entra nesta espessura,
Que as Ninfas vêm já perto: ah! que ventura!
Que glória para nós não esperada
Trouxe a sorte esta vez menos pesada!
COR. lá não tardo a seguir-te; porém temo
Que fôssemos já vistos: é mui alto
Aquele oiteiro. Desgraçado extremo
De um infeliz, pois tudo é sobressalto!
Não sei se dessa gruta
Seja melhor buscar a estância bruta,
Ou se melhor aparecer-lhes seja.
MON. A quem não matará da sorte a inveja!
Já Laura me divisa: o seu aceno
Me deu já a entender que me descobre.
COR. Lise me viu com rosto mais sereno,
É acertado que me não soçobre.
Cheguemos desde agora,
Cheguemos a encontrá-las: erro fora
Tão rústica mostrar a natureza,
Que se negue um Pastor a uma beleza.
MON. Se vens, Ninfa, buscando o verde prado,
Para lhe dar prazeres e alegria,
Tem dó também de um peito magoado,
Que vive só da pena e da agonia.
COR. Se o pensamento teu vem conduzido,
Divina Lise, a rogos de minha ânsia,
Eu te quero seguir, que o meu gemido
Te busca sempre com maior constância.
LAUR. Montano, o digno assunto de meu canto
Lugar me não consente, para ouvir-te;
Deixa, Pastor amado, deixa o pranto;
Pronta me hás de encontrar, pronta a servir-te.
LIS. Agora é lei forçosa de meu gosto,
Corebo meu, que tomes o instrumento;
Deixa as mágoas, Pastor, deixa o desgosto
E vem acompanhando o nosso acento.
MON. Não és tu a cruel, que em tanta idade
Jamais ouviste um dia os meus gemidos?
COR. De tua, mais que bárbara impiedade,
Como abrandou meu rogo esses ouvidos?
LAUR. Montano, não porfies: em meus ecos
Atende o peregrino objeto amado,
A cujo doce acento os troncos secos,
Os mármores talvez tenho abalado.
Eu trago de memória a cantilena
Que Corino compôs, quando o seguia
Dametas, o Pastor, que a doce avena
No cântico amabeu soar fazia.
Lise, e mais eu a vínhamos agora
Repetindo; e tão bela se mostrava,
Que no acorde trinar da voz sonora
A alma atrás do canto arrebatava.
LIS. Corebo apode ouvir, pois que presente
Não esteve à função do Himeneu santo:
Ele nos acompanhe juntamente,
Pois tanta suavidade tem no canto.
MON. O Céu essa fortuna lhe guardava,
Porque há pouco a Corebo eu repetia
A grande história, e quase se apressava
A lê-la nesse tronco, aonde a via.
Agora folgarei de acompanhar-te,
E para que de ti mais o mereça,
Este cajado toma, aonde em parte
Reconhecer teu mérito pareça.
Obra foi do divino Alcimedonte;
De flores o engastou; onde a mão dobra,
Vê como as pedras une destramente,
Variando a cor: tu viste melhor obra?
COR. Pois eu, Lise gentil, inda que ponha
Quantos gados, e campos eu possua,
Nada te venho a dar, porque é vergonha
Que outra coisa te dê, quando a alma é tua.
A parelha melhor do meu rebanho,
Aquela que é de pele remendada,''?
A flauta com que agora te acompanho,
Tudo enfim te darei, se tudo agrada.
LAUR. Árvores (eu começo) deste oiteiro,
Que enverdecendo estais na primavera,
Chegai a ouvir meu canto lisonjeiro.
LIS. Eu canto aquela Ninfa que pudera
Dar vida às tenras flores, alma às plantas,
Como Vênus às rosas já fizera.
MON. Branda corrente, tu que o gosto encantas,
Um retrato me pintas nessa fonte
Do primoroso Céu de graças tantas.
COR. Eu vi quando desciam desse monte
As Ninfas na formosa companhia,
Com o canto alegrando este Horizonte.
LAUR. De gosto os cabritinhos nesse dia
Deixaram de buscar o suco amado,
Esquecidos das mães na relva fria.
Lis. O trovão que soava deste lado
Agouro era somente da ventura;
Uivar se não ouvia o lobo irado.
MON. O mocho não grasnava na segura
Rama daquele choupo, onde outras vezes
Grasnar se ouvira pela noite escura.
COR. A ti se há de cortar das nossas reses
A vítima perpétua; o sacrifício
De nosso humilde voto não desprezes.
LAUR. Do culto de uni Pastor pequeno indício,
Eu tenho de trazer-te o mel dourado,
Se tanto à minha súplica és propício.
Lis. De própria mão o fruto sazonado
Eu colherei, levando juntamente
Dous recentais, que tenho aparelhado.
MON. Se estou ao som da flauta anal cadente
Ensaiando esta voz desconcertada,
É para a dedicar a ti somente.
Coi. Se apascento esta rústica manada,
É por ver se entre a mísera pobreza
De uni Pastor inda há cousa, que te agrada.
LAUR. Não foi Glauce formosa; a gentileza
Da linda Galatéia já não deve
Da nossa acorde flauta ser empresa.
Lis. Por ti já me parece escura a neve,
Não é tão encarnada a fresca rosa,
A comparar-se a ti nada se atreve.
MON. Derivada do Céu prole formosa
De Jove, que respiras do semblante,
Sobre a vida mortal, luz miais preciosa.
COR. Ah! quanta glória deste laço amante
Se espera conseguir! A paz do mundo,
A dita dos mortais por ti se cante.
LAUR. Para apertar o vínculo jucundo,
O sangue traz o fio, Amor o tece;
Assim se lavra o tálamo fecundo.
Lis. Nesta amena campina reverdece,
A memória dos Reis, segredo raro
Que de Mântua o Pastor saber merece.
MON. Logra Amor o triunfo mais preclaro,
Que junta a Majestade à formosura;
Não precisa a virtude de outro amparo.
COR. Tu és do nosso Jove imagem pura,
Ao grande Deus do Céu bem te pareces
Nesta alma toda afagos e ternura.
LAUR. Tu, Ninfa, entre as mais Deusas só mereces
Este obséquio que agora satisfaço,
Que entre elas sobre todas resplendeces.
LIS. Será sempre imortal o terno laço,
Que o não pode cortar a morte feia,
Nem da fortuna o movimento escasso.
Mon. Feliz foi o agouro; nem se creia
Que me engana de louca a fantasia,
Ou que o meu pensamento me recreia.
COR. Eu o vi nessa estampa que luzia
Na outra parte do Céu sobre a direita,
E n'alma trago impressa a profecia.
LAUR. A memória feliz nesta alma aceita,
Fixa sempre se guarda, sempre pura,
Qual não pode acabar a sorte estreita.
Lis. Uma palma triunfal ao Céu segura
Se via remontar, que se enlaçava
Das ramas de uma vide; uma escritura
Desta sorte o segredo declarava.
SONETO
Se este Tronco adorado dos Pastores
Do tempo está zombando tão robusto,
Esta vide enlaçada ao Tronco augusto
Fará que os seus brasões sejam maiores.
Brotando frutos, sazonando flores,
Se verá triunfar do fado injusto,
Sem que da lei mortal se atreva o susto
A profanar seus claros resplendores.
Feliz do pátrio Tejo, o áureo terreno,
Que Amor quis, que dispôs a sorte avara,
Fosse de árvores tais o sítio ameno.
Quanta ventura, quanto bem declara
Este sinal, que pinta o Céu sereno!
Oh! Tronco generoso! Oh! Planta rara!
COR. Depois que abrasa o Sol a seca terra,
Não é tão agradável para as plantas
O chuveiro do Céu, que os ares cerra,
Qual foi para a minha alma, quando cantas,
Ouvir na tua flauta a doce história,
Com que tu me arrebatas e me encantas.
Na bela competência desta glória,
Quem me dera passar a noite, e dia,
Sem trazer outra coisa na memória!
MON. Contigo, caro Amigo, eu gostaria
De consumir o tempo, mas o gado
Anda correndo solto a relva fria.
Algum se acolhe ao mato emaranhado;
Fugiu-me o meu Baroso; já não vejo
Onde se foi meter o meu Bargado.
COR. Eu vou juntar as cabras, que desejo
Não trepem sobre aquela penha dura,
Que fica lá fronteira ao manso Tejo.
Adeus, Montano, adeus, que é noite escura.
Aqui cessava o canto
Dos músicos Pastores:
E se do teu influxo a esforço tanto
Imito estes Cantores,
Tu, generoso Infante,
Faze que as tuas glórias sempre cante.
Verás que ao nosso rio,
Verás que ao campo nosso,
Sentado junto ao álamo sombrio,
Se tanto acaso posso,
Em suave harmonia,
O teu nome repito noite e dia.
ECLOGA II *
FILENO
Na margem deleitosa
Do cristalino Tejo,
Sentado um Pescador, a pobre rede
Enquanto tem nas praias estendida ,
Ao longe uma harmonia
Nunca ouvida jamais, ao longe escuta
Um canto tão sonoro,
Que nem Glauco suave, nem o cego
Amante da formosa Galatéia,
De Sicília entoou na branca areia.
Corino era que vinha
Da aldeia já voltando, onde o pescado
A vender estivera; ali no povo
Uma notícia achou, a qual em trovas,
Por um Pastor discreto
Ordenadas ao som da acorde avena,
Trazia para o mar, quando aos ouvidos
Foi mais próximo o som.
Eu, que atendia,
Estas doces cadências percebia.
Que alegria, que gosto
Ao mundo comunica
O nosso Maioral O grato rosto
Do júbilo se explica
Pela voz dos Pastores,
Títiro e Alcimedon, grandes cantores.
Os campos neste dia
Se cobrem de verdura:
Pasta o gado contente a relva fria,
E na verde espessura
Novo contentamento
Desterra toda a sombra do tormento.
Os Sátiros das covas,
Deixando o caro abrigo,
Do seu rendido amor vêm a dar provas:
Eles trazem consigo
De Ninfas delicadas
Igualmente as mais belas e engraçadas.
Em concertados hinos
Soa toda a floresta:
Pastores mais gentis, mais peregrinos,
Concorrendo na festa
Do Maioral, oh! quanto
Agradável se faz seu doce canto!
Um louva a providência
Com que a tudo consulta;
Outro aplaude entre todos a excelência
Com que o seu gênio avulta,
Tornando venturosos
Deste campo os
Pastores mais ditosos.
Já torna ao nosso mundo
Aquela idade de ouro;
O campo sem cultura já fecundo
Produz o trigo louro.
Tudo está melhorado:
A montanha, a campina, o vale, o prado.
A nós torna a inocência
Do século primeiro:
Torna a justiça, as Graças, a Clemência,
Que do tempo grosseiro
Desterra a maldade.
Oh! feliz estação! Oh! doce idade!
Assim cantava, quando
Ao chegar o seu barco
Junto à margem frondosa
Um pouco se calou; eis entretanto
Dos versos que lhe ouvia,
Aplicando uma parte ao tosco alento
Da flauta piscatória, desta sorte
A seu modo dispunha,
Das praias onde estava,
Fileno, o Pescador que o escutava.
SONETO
Assim como o Pastor, também o pobre,
O rude Pescador lá desde a praia,
Onde primeiro o Sol nas ondas raia,
Do seu voto a inocência não encobre.
Se ele cantando alegre se descobre
Talvez à sombra da copada faia,
Igual o nosso canto aqui se ensaia
Ao sussurro do mar, que a penha cobre.
Pode render ao Rei talvez Corino
Desde a rústica choça o branco leite,
O mel dourado, o pomo peregrino;
Mas espero eu também que ele me aceite
A rama de coral, que por tão fino
A coroa lhe esmalte, o cetro enfeite.
ÉCLOGA III
ALBANO
Louva-se a pacificação da guerra, mediante a direção do Ilustríssimo e
Excelentíssimo Senhor Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de
Oeiras, Primeiro Ministro de Portugal etc
Oferecida ao mesmo Senhor
Juxta illud Ovid. Trist./Si poteris vacuo tradi.
Ilmo e ExmoSr.,
Entrou em Roma o Pastor de Mântua, e dos benefícios que lá recebera, tirou a conseqüência de que devia adorar por Deus ao seu Augusto a. Continuou com o gênio dos montes a fazer estimável a flauta,e não tardou a equivocar entre os louvores de Augusto as glórias de Polião. Transportado aos agouros da felicidade prometida, levou o pensamento à dureza dos carvalhos; deles disse: viria tempo em que das suas veias nasceria a torrente do mel suave) b.
Estes dous lugares do Poeta Latino são, Excelentíssimo senhor, os que deram alento à minha Musa, para fazer chegar à presença de V. Excelência a Écloga de Albano. Eu não distingo se canto de Augusto, se de Polião: sei que é constante ao mundo, deveu Portugal na presente guerra todos os princípios da sua inexplicável felicidade à direção prudentíssima d. V. Excelência.
Não é este o único argumento que se nos tem dado do zelo, da vigilância, da atividade que a nosso benefício respira em todas as distintas ações de V. Excelência. O seu Ministério felicíssimo foi para nós uma nova idade de ouro, que fez produzir a terra sem fadiga; tornou inocentes os gênios, restituiu ao mundo a Justiça. Estes são os frutos que s. comparam ao mel; onde tudo é delícia, e tudo suavidade.
Refletindo no precioso sobrenome de V. Excelência, do que noto, e do que admiro, tomo, Senhor, a certeza de estar em tudo cumprida a profecia do Mantuano c. E mendigando do Poeta português as expressões, com que disse:
Enquanto do seguro azambujeiro
Nos Pastores de Luso houver cajado,
passo, com as mais ajustadas circunstâncias, a cantar a segurança da Monarquia Portuguesa, enquanto do seio d. um carvalho frutificar o mel que fertiliza os campos.
Oh! e que matéria de agouros felicíssimos me não prometem as inescrutáveis máximas da alta enciclopédia de V. Excelência! Que glórias, que benefícios não assegura a Portugal o seu adorável Ministério! Falem calcados de frotas os mares: diga-o cheia de fábricas a terra d. Até aqui se adorava o estranho; agora já s. faz desperdício do próprio: amou-se a esterilidade; já se não estima a abundância. Época mil vezes gloriosa aquela que do nome de V. Excelência puder ostentar a vaidade!
Este argumento, Excelentíssimo Senhor, era mais digno da cítara dos Homeros que da rudeza da minha flauta, Teçam outros as Epopéias dos preciosos louvores que a V. Excelência se devem: eu pedirei às Musas que por mim o digam, já que eu não posso e.
Saio dos montes; vivo na incultura; comunico a rusticidade: não é muito que tudo o que concebo seja dissonância, e seja barbarismo tudo o que pronuncio. V. Excelência atenda ao meu ânimo, e não se ofenda do obséquio. Talvez que não sem acordo buscasse o gênio do campo, quem pertende na simplicidade do estilo acreditar a inocência do voto. Deus guarde a V. Excelência, etc..
D. V. Excelência
O mais humilde servo,
Cláudio Manuel da Costa
ALBANO
Salício, Alcino, Melibeu
De Alcino e de Salício,
Aqueles dous cantores,
Que da voz e da flauta no exercício,
Dão assunto aos Pastores,
Benigno Apolo ordena
Que eu repita o que ouvi, na doce avena.
Tu, Musa, que ensaiada
À sombra dos salgueiros,
Esta inculta região viste animada
Dos ecos lisonjeiros,
Um novo empenho agora
Comigo entoe a lira mais sonora.
As iras de Amarílis,
De Lícida os extremos
Basta já de cantar, basta de Fílis:
Cousas dignas cantemos,
Dignas pela grandeza
De estampar-se dos cedros na dureza.
Para estender meu brado,
Igual àquele empenho,
Que eu concebo no assunto levantado,
Não basta ao tosco engenho
Nem esforço, nem arte,
Se vós no canto meu não tendes parte.
Vós, Conde, que cingido
De verdes resplendores,
Sobre a fama levais o vôo erguido,
Que do peito em ardores
A virtude alentando,
O nome à eternidade ides mandando.
Vós, que de alta grandeza
Brotando ramo ilustre,
Devendo tanto esmalte à natureza,
Maior aumento, e lustre
Buscais ao sangue egrégio
De cada ação que obrais no fasto régio.
Se as fortunadas horas,
Que à minha flauta entrego,
De vós, Senhor, são dignas, as sonoras
Dríadas do Mondego,
Vos prometo que eu veja
Cheias por mim duma amorosa inveja.
De Meandro e Caístro
Cessarão as memórias;
Do Douro ao Ganges, e do Tejo ao Istro,
As lusitanas glórias
Levará o meu canto,
Se o pátrio Ribeirão me inspira tanto;
Ouvi do grande Albano
Que bem o nome soa:
Ouvi, que se no exemplo não me engano,
Alcino vos pregoa:
De vós, Herói distinto,
As cores tiro, com que a Albano pinto
A tarde já caía;
E o sol mais temperado
Seu rosto dentro da água recolhia
Quando num verde prado
Salício se avistava
Com Alcino, que acaso ali chegava.
Distante está do Tejo
O sítio peregrino;
E bem que a Alcino atrás do seu desejo
Conduzira o destino
A ver da Corte o estado,
Para o campo outra vez tinha voltado.
Largas horas havia
Que estavam praticando
Em Laura e Dinamene; na porfia,
De conversa mudando,
Salício assim se avança,
E Alcino de escutá-lo se não cansa:
SAL. Conta-nos o que ouviste, o que notaste,
Alcino meu, naquela grande Corte
Para onde há tanto tempo te apartaste.
Explica-nos, Pastor, o como a sorte
Assim se melhorou; que já se ausenta
Do nosso campo a guerra, a fome, a morte.
Deus sabe quanto susto esta tormenta
Fez aqui entre nós, ao ver que vinha
O inimigo com mão dura e violenta.
Esses campos dalém, dizem que tinha
Destruído e arrasado; sem que nada
Lhe contivesse fúria tão daninha.
Todos se foram pondo em retirada,
Salvando cada qual por modo estranho,
Aquele o fato seu, este a manada.
Eu, que estava esperando mal tamanho,
Não quis daqui fugir, porque a pobreza
Me não dá que perder, choça ou rebanho.
Tu sabes que não sei o que é riqueza;
Que passo aqui contente noite, e dia,
Zombando da ambição e da avareza.
Nisto agora conheço a primazia
Que levo aos meus Serranos: eles tremem;
Eu faço do inimigo zombaria.
ALC. No mal comum, Salício, todos gemem,
E se tu de fortuna hoje melhoras,
Não escarneças tanto dos que temem.
De melhor condição acaso foras,
Se o lobo matador aqui chegasse
A tingir no teu sangue as mãos traidoras?
Imaginas que só se contentasse
Co'a pobreza do fato? Que somente
Os cabritos comesse, ou os roubasse?
Desgraçado de ti, que és inocente!
Foras tu por onde eu andei girando,
Tu viras o que vai por essa gente.
Tu viras um filhinho soluçando
Pelo Pai, que lhe morre; o outro viras
Por falta de sustento andar chorando.
Lá vão as sementeiras: que te admiras!
Tudo levou o fogo; o campo verde
Foi posto do inimigo às cruéis iras.
Que importa, que este mais devesas herde?
Que aquele mais possua, se no estrago
Cada um à proporção seu tanto perde?
Eu perco mais que todos, porque trago
Apenas o meu fato a salvamento,
Que a mudança me deu este bom pago.
Cuidei achar melhor acolhimento
Nos Pastores da serra; andei errado
Em deixar deste campo o doce assento.
Depois passei-me à Corte, a ver o estado
Das cousas, como lá se governavam:
Ah! Que de quanto vi, fiquei pasmado.
SAL. Não te falo no tempo em que pastavam
Teus gados sobre a serra; eu sei que tudo
Perdeste, como os mais que lá se achavam.
Mas depois que passou teu gênio rudo
A amparar-se da Corte, é que eu quisera
Saber o que lucraste neste estudo.
ALC. Inda que outra ventagem não tivera,
Muitas vezes feliz a minha dita
Em ver o meu Albano conhecera.
SAL. Quem é o teu Albano? Aonde habita?
Que gênio, condição, ou qualidade
Tanto assim entre os nossos o acredita?
Não sai Pastor daqui para a Cidade,
Que em voltando de lá dele não conte
Cousas dignas de grande novidade.
ALC. E crês tu que no vale, bosque, ou monte
Vivirá tronco, ou penha, que algum dia
As memórias de Albano não aponte?
Qual de nós escapara à morte fria?
Quem tornara a ver mais sua devesa?
Quem seu gado, ou currais inda acharia,
Se este Pai dos Serranos com presteza
Não acudira a bem do nosso amparo,
A vencer do inimigo a fortaleza?
Corria ensangüentado o Tejo claro:
Ia levando a espada cortadora
Tudo o que se encontrava sem reparo.
Não houve noite, ou dia, instante, ou hora,
Que algum grande sucesso se não visse,
Ou no ferro, ou na chama abrasadora.
Miseráveis vaqueiros! Quem subisse
Sobre aquela alta serra, ah! como creio,
Que o coração em lágrimas partisse!
Oh! como nada farta o sangue alheio
Àquele a quem conduz sua maldade,
A que obre sem vergonha, honra, nem freio!
Como se quebra a fé, ou lealdade
Só pela vil cobiça! Da virtude
Não se faz caso já, nem da verdade.
SAL. Bem que o teu pensamento nisso estude,
Sempre verás, Alcino, como é certo
Só vive co'a justiça um gênio rude.
SAL. Eu te sigo, Pastor; canta a excelência
Do grande Albano teu; aqui sentado
Inspira-me também essa influência.
O número amabeu é concertado;
Quero-te acompanhar; vá de certame:
Tu porás a sanfona, eu o cajado.
Mas lá vem Melibeu; justo é que o chame,
Para louvado ser desta porfia;
Ele do nosso canto faça exame.
MEL. A tempo chego enfim, que não queria;
Pois jamais foi meu gosto em arte ou prenda
Mostrar que entre vós outros mais sabia;
Mas se não decidir esta contenda,
Ao menos pronto estou para escutar-vos;
Cantai, que tendes já quem vos atenda.
ALC. Não tenho medo algum de disputar-vos
A palma entre vós outros; porque venho
Da Corte, e trago um canto que ensinar-vos.
Nele se conta o mal, a guerra, o empenho,
Que infestou toda a terra: o estilo é novo,
Mui diverso do nosso, obra de engenho.
Não o sabe cantar qualquer do povo;
Algum somente cortesão polido
E que o canta por lá....
SAL. Pois eu o aprovo.
MEL. Não eu; que não me entendo co'ruído
De vozes estrangeira; mas vá feito;
Sempre para escutar aplico o ouvido.
ALC. Aqui nesta cortiça ao modo e jeito
Do nosso campo eu a cortei: entanto
Que eu digo o meu, tu, lê o teu conceito,
E acompanha, Salício, o novo canto.
ALC. "Musas do monte Mênalo, que um dia
Com suave harmonia
Cantastes brando o peito
De Dafne, o Pastor claro;
Melhorando o conceito,
Fazei que o tempo avaro
Só traga na memória
O nome soberano,
A nunca vista glória
Do meu sublime, do meu grande Albano.
SAL. Do meu sublime, do meu grande Albano,
Vereis, se não me engano,
Que este monte repete
O esforço mais que humano;
Aquele, que compete
Na pompa e na grandeza
Ao tronco mais luzido,
Que alenta a natureza,
Que o Céu tem produzido,
Para ser nestes montes adorado.
ALC. Para ser nestes montes adorado,
Por ele é renovado
Da selva dodonéia
O oráculo sagrado:
De Nêmesis e Astréia,
Com tanta segurança,
Oh! como ele sustenta
A espada e a balança!
Com providência atenta,
Oh! como ampara ao bom, ao mau castiga!
SAL. Oh! como ampara ao bom, ao mau castiga!
Por ele, é bem se diga,
Que torna a idade d'ouro.
A terra sem fadiga
Produz o trigo louro;
Prodígio que invejava
De Mântua o Pastor belo,
Quando viu que brotava
Com próvido desvelo
O mel dourado dos carvalhos duros.
ALC. O mel dourado dos carvalhos duros,
Os campos mal seguros,
A nosso benefício,
Faz que brotem maduros
Seus frutos já sem vício:
Ele as fúrias quebranta
Do bárbaro, que vinha
Com avareza tanta,
Que já pisado tinha
Quanto erguera a fadiga, e o trabalho.
SAL. Quanto erguera afadiga, e o trabalho,
O abrigo, o agasalho,
Tudo a nós restitui.
A fecundar o orvalho
Os campos continue;
Saia a cortar a terra
O lavrador aflito,
Que já fugiu a guerra;
Já se não ouve o grito
Da miséria, da fome, da penúria.
ALC. Da miséria, da fome, da penúria.
Já se desterra a injúria.
O ferro que aos arados
Servira, o troca a fúria
Em dardos aguçados;
Mas já com melhor sorte
São da vida instrumentos,
Instrumentos da morte.
Oh! que grandes portentos!
Que arte feliz do nosso grande Albano!
SAL. Que arte feliz do nosso grande Albano!
Armada em nosso dano
A gente, que costuma
Usar do torpe engano,
Porque tudo consuma,
Entrava aferro e fogo
Quanto banhara o Tejo;
Mas desmaiando logo
O malvado desejo,
Tudo foi confusão, tudo foi susto.
ALC. Tudo foi confusão, tudo foi susto,
Quando no assalto injusto
Se viu pela campanha O espírito robusto,
Que lá da Pátria estranha
Em nosso auxílio veio;
E mais que a armada gente,
Vence o dano, e o receio
O aviso providente
Daquele Herói, que o Reino governava.
SAL. Daquele Herói, que o Reino governava,
A nós se dispensava
A direção, o acerto:
A tudo consultava,
Vendo crescer o aperto.
Não há fútil empenho
A que não sirva a idéia,
A que não sirva o engenho:
O seu conselho enfreia
Do inimigo o furor, do ferro a ira.
ALC. Do inimigo o furor, do ferro a ira.
Por ele enfim respira
Da Paz no doce laço
O Reino, que se vira
No fúnebre ameaço:
Ao som do bronze rudo
Já foge o inimigo;
Tudo se aplaca, tudo
Torna ao sossego antigo.
Oh! doce Paz! Oh! Íris da tormenta!
SAL. Oh! doce Paz...!"
MEL. Tem mão, Salício, atenta:
Bem que se escute há uma hora, não me agrada
Essa vossa cantiga, tão violenta.
Alguém há de cuidar que é frase inchada
Daquela que lá se usa entre essa gente,
Que julga que diz muito, e não diz nada.
O nosso humilde gênio não consente
Que outra poisa se diga mais que aquilo
Que só convém ao espírito inocente.
A frase pastoril, o fraco estilo
Da flauta e da sanfona, antes de tudo,
Será digno que Albano chegue a ouvi-lo.
Se Alpino tem lá feito o seu estudo
Nesses versos que traz, nós cá cantemos
Ao nosso modo; inda que seja rudo.
SAL. Vá feito, Melibeu; é bem pensemos
Em que não desmereça o nosso canto
A pobre condição com que nascemos.
ALC. Nada, Amigos, me pode agradar tanto
Como os versos que trago de memória,
De que se faz na Corte um grande espanto.
Deus sabe o que custou que eu toda a história
Conservasse de por: outro não teve
Dentro em tão poupo tempo tanta glória.
Laurênio, quantos dias não esteve
A aprendê-los comigo! A bela Anarda,
Que empenho por sabê-los me não deve!
MEL. Pois olha tu, Alpino, se não tarda
De acordar-se a lembrança, eu te asseguro,
Vejas pousa melhor, que um tronco guarda.
SAL. Queres talvez mostrar-lhe aquele duro
Salgueiro, onde outro dia descreveste
De Amarílis o nome, sempre puro?
MEL. Não é este o meu verso, não é este.
ALC. Pois é acaso a letra decantada
Que fizeste ao teu bem, e ontem a leste?
MEL. Tampouco.
SAL. É a de Angélica adorada,
Aquela cantilena que começa
"Onde te esconderás?..."
MEL. Não. É errada
A vossa presunção: não se arremessa
Tão longe da razão meu desatino,
Que assunto tão diverso agora peça.
O verso, que mostrar-vos determino
É um que, há poucos dias a esta parte,
Cortou sobre um carvalho o velho Albino.
Cheios d'engenho são, d'idéia e d'arte:
Inda bem se não sabe o seu assunto,
Ou fala com Apolo, ou co'deus Marte.
SAL. Pois anda, Melibeu; contigo junto
Vou ver esse carvalho: anda, caminha,
Vamos, que já mais nada te pergunto.
ALC. Quase que de seguir-vos eu não tinha:
Pois cá no coração me está batendo
Que a cantiga não é melhor que a minha.
MEL. "Pastores, os que andais lá sobre a serra,
Apascentando as pobres ovelhinhas,
A quem vem perseguindo a dura guerra,
Desde a gente distante às mais vizinhas:
Se abrasa o fogo, se não guarda a terra
Iguais vossas herdades, pomo as minhas,
Comigo consolai o vosso pranto,
Que eu perco mais que vós, ou perco tanto.
Eu também fui senhor de uma manada
Que enchia estes currais: o pampo amigo
Também me dava a fruta sazonada,
As castanhas, a uva, a pêra, o figo;
Veio (quem crera tal!) com mão armada
Sobre nós o faminto do inimigo;
Tudo afogo levou; pôs tudo aferro;
A mim me coube apenas um desterro.
Desde o Douro ao Mondego não havia
Nem gado, nem curral que não gemesse.
Tudo vinha arrasando a tirania
Encoberta na forma de interesse.
Quem de tamanho mal escaparia,
Se o grande Deus do Céu não protegesse
A gente lusitana, a gente santa,
Que para o seu brasão a cruz levanta!
Ele nos concedeu com mão piedosa
Uma alta Divindade em nosso amparo,
Que fez segura a sorte duvidosa
E a todo o nosso dano pôs reparo.
Já fugiu a tormenta tenebrosa;
Já resplendece o Céu sereno e claro;
Feliz, ó Portugal, feliz mil vezes
O destino dos povos portugueses!
Por esta Divindade entrou a cura
Do contágio fatal, que o Reino via:
A sua atividade é que segura
Toda a conservação da Monarquia.
Assim como o Piloto em noite escura
Vence com arte, e modo a névoa fria,
Seguindo sempre o rumo, assim se assenta
Que ele soube guiar-nos na tormenta.
Não sei como chamar-lhe deva agora;
Sei que o Deus há de ser dos portugueses,
A quem co’a machadinha cortadora
Se hão de sacrificar as nossas reses.
Dia não haverá, instante, ou hora,
Que seu nome não cantem nossos meses.
Digam uns que é Apolo, outros que é Marte,
No engenho, no valor, no esforço, e n'arte.
Quem faz fugir a gente castelhana,
Quem à França também põe duro freio,
Há de estender a terra lusitana
Até chegar além do berço alheio.
O meu gado, se a idéia não me engana,
Eu pertendo levá-lo sem receio
Por campos nunca vistos, nem pisados,
Que estão da verde relva carregados.
Plantarei novas vinhas onde tenha
O grosso cabedal, que a Corte estima:
Terei mil sementeiras, com que venha
A ser maior que todos os do Lima.
Esta gralha, que canta, é que me empenha;
Este sinal do Céu é que me anima:
Tudo serve de agouro, porque em tudo
Anda a minha razão fazendo estudo.
Eu vejo que por esta Divindade
O mar se vê de frotas oprimido;
Que, sem que do estrangeiro a droga agrade,
Nos dá o Reino pão, dá o vestido:
Tudo fica entre nós, sem que a vaidade
O tenha de outras gentes recebido.
Já não vem a roubar-nos o pirata
Que daqui nos levava o ouro, a prata.
Não só gira o comércio que a firmeza
Dos Reinos assegura: premiado
Se levanta com brio e fortaleza
Do sono e da preguiça o vil Soldado.
Tudo já é valor, tudo é destreza
No cobarde igualmente, e no esforçado.
Oh! quanto pode a direção prudente!
Um forte Rei faz forte a toda gente.
ALC. Por certo, Melibeu, não me atrevera
A cantar junto a ti, se essa cantiga,
Antes de ta escutar, ouvido houvera.
Justo parece, Amigos, que se diga:
Não pode competir coca flauta agreste
Tudo o que desconhece a idade antiga.
SAL. O canto é tão divino, tão celeste,
Que eu nunca de escutá-lo me fartara.
Oh! que cousas tão belas que disseste!
De Títiro a harmonia doce e rara
Assim se imita bem, quando sentado
Ao Deus, que vira em Roma, lá cantara.
ÉCLOGA IV *
LÍSIA
Se é certo que inda vive a doce avena
Que chorou Coridon, chorou Amintas,
Tu me tens de escutar, ó Selva amena.
Eu por entre estas sombras mal distintas,
Ao resplendor da Lua, que aparece,
Quero que tu comigo o meu mal sintas.
Agora pois que o vento se enfraquece,
Que o sussurro do mar está mais brando,
Que o ar se acalma, o campo se entristece,
Inclina o teu ouvido: eu entoando
A minha fraca voz, agreste e triste,
Estarei minhas mágoas recitando.
Dura consolação! A quem assiste
Um fado tão cruel, outra esperança
Não tem mais do que a queixa em que persiste.
Como posso apagar esta lembrança
Daquele grande bem que eu discorria,
Que jamais poderia ter mudança!
Quem, fortuna (ai de mim!), quem me diria
Que havia de vir tempo, em que faltasse
Aquela doce união, em que eu vivia!
Quando Lísia cuidou que lhe roubasse
A sorte desigual a Sílvio amado,
Sílvio, que outro não há que mais amasse!
Que ditoso não via o meu cuidado
Na posse de um tesouro, onde segura
Tinha a sorte o meu bem depositado!
Aqui sobre esta penha onde murmura
A onda mais quebrada, quantas vezes
Me não pus a cantar minha ventura!
Sacrifício lhe fiz das minhas reses;
Para ele colhi somente o fruto
Que o Sol sazona nos dourados meses.
Tudo o que leva o campo, eu em tributo
Mil vezes lhe rendi: ah! como agora
O meu rosto não posso ver enxuto!
Deixou-me Sílvio; sim, Sílvio, que fora
Distinto Maioral destas campinas,
Glória de Lísia, por quem Lísia chora.
Deixou-me: mas por quem! Se é que inda atinas,
Saudoso coração, nesta tormenta,
Explica de meu pranto as ânsias finas.
Deixou-me por aquela que se ostenta
Com o nome de Rica; a que sepulta
Em seu seio os tesouros que sustenta.
Deixou-me por aquela que se oculta
Na parte mais distante, porque eu tenha
Inda mais que sentir na dor que avulta.
Ah! E como é possível que me venha
Uma constância tal, que, instando a mágoa,
A formar minhas queixas me detenha!
Os olhos de saudade rasos d'água
Que mais hão de fazer que estar chorando
A sem-razão de tão penosa frágua!
Vós, campos, que me vistes já gozando
A delícia do meu contentamento,
Ide-vos pouco a pouco desmaiando.
Não espereis jamais o luzimento
Que Sílvio aqui vos deu: Sílvio vos falta;
De Sílvio não há mais que o sentimento.
Buscou outra campina; outra se exalta
Na glória de o gozar: ah! que em vão geme
Dentro em meu coração mágoa tão alta!
Mas que debalde agora a boca treme!
Que debalde se agrava a ânsia minha!
De que contra o meu fado a voz blasfema!
Se a glória me roubaram que eu mantinha,
Contra o fado, contra essa que hoje invejo,
A queixa, a acusação só me convinha.
Infeliz seja sempre o teu desejo,
Ó ingrata inimiga, e a ventura
Não encontres) amais sem mágoa, ou pejo.
Teus campos não se cubram de verdura,
O dia te amanheça carregado,
A noite sempre feia, sempre escura!
Consuma a peste vil teu nédio gado,
Nunca tenhas Pastor, que o guarde, ou zele
Do lobo que o procura esfamiado.
Pise o chuvoso inverno e atropele
As tuas sementeiras; leve o rio
Quantas herdades tens à margem dele.
Nunca te ampare o álamo sombrio
Com suas verdes folhas: tudo seja
Contágio na Pastora e no armentio.
Caia... porém que digo! A minha inveja
Aonde me arrebata! E não conheço
Que há mais alto preceito que me reja!
Acaso, quando Sílvio não mereço,
Não sei, que ele se ausenta: porque manda
Sobre a vontade sua um alto excesso!
Acaso outra rival ele demanda,
Sem que o destine a lei da obediência,
A lei que o dividiu de Lísia branda?
Pois Sílvio falte enfim: ache a influência
Da estrela mais propícia essa, que agora
Se alenta de meu bem na dura ausência.
Risonha lhe amanheça sempre a aurora,
Serena a noite; o gado não lamente
Sem cura o mal, o dano sem melhora.
Jamais chegue a levar a grossa enchente
Seus frutos carregados; noite e dia
Vele o cão sobre a ovelha, ande contente.
Deixou-me Sílvio; sim, Sílvio, que fora
Distinto Maioral destas campinas,
Glória de Lísia, por quem Lísia chora.
Deixou-me: mas por quem! Se é que inda atinas,
Saudoso coração, nesta tormenta,
Explica de meu pranto as ânsias finas.
Deixou-me por aquela que se ostenta
Com o nome de Rica; a que sepulta
Em seu seio os tesouros que sustenta.
Deixou-me por aquela que se oculta
Na parte mais distante, porque eu tenha
Inda mais que sentir na dor que avulta.
Ah! E como é possível que me venha
Uma constância tal, que, instando a mágoa,
A formar minhas queixas me detenha!
Os olhos de saudade rasos d'água
Que mais hão de fazer que estar chorando
A sem-razão de tão penosa frágua!
Vós, campos, que me vistes já gozando
A delícia do meu contentamento,
Ide-vos pouco a pouco desmaiando.
Não espereis jamais o luzimento
Que Sílvio aqui vos deu: Sílvio vos falta;
De Sílvio não há mais que o sentimento.
Buscou outra campina; outra se exalta
Na glória de o gozar: ah! que em vão geme
Dentro em meu coração mágoa tão alta!
Mas que debalde agora a boca treme!
Que debalde se agrava a ânsia minha!
De que contra o meu fado a voz blasfema!
Se a glória me roubaram que eu mantinha,
Contra o fado, contra essa que hoje invejo,
A queixa, a acusação só me convinha.
Infeliz seja sempre o teu desejo,
Ó ingrata inimiga, e a ventura
Não encontres) amais sem mágoa, ou pejo.
Teus campos não se cubram de verdura,
O dia te amanheça carregado,
A noite sempre feia, sempre escura!
Consuma a peste vil teu nédio gado,
Nunca tenhas Pastor, que o guarde, ou zele
Do lobo que o procura esfamiado.
Pise o chuvoso inverno e atropele
As tuas sementeiras; leve o rio
Quantas herdades tens à margem dele.
Nunca te ampare o álamo sombrio
Com suas verdes folhas: tudo seja
Contágio na Pastora e no armentio.
Caia... porém que digo! A minha inveja
Aonde me arrebata! E não conheço
Que há mais alto preceito que me reja!
Acaso, quando Sílvio não mereço,
Não sei, que ele se ausenta: porque manda
Sobre a vontade sua um alto excesso!
Acaso outra rival ele demanda,
Sem que o destine a lei da obediência,
A lei que o dividiu de Lísia branda?
Pois Sílvio falte enfim: ache a influência
Da estrela mais propícia essa, que agora
Se alenta de meu bem na dura ausência.
Risonha lhe amanheça sempre a aurora,
Serena a noite; o gado não lamente
Sem cura o mal, o dano sem melhora.
Jamais chegue a levar a grossa enchente
Seus frutos carregados; noite e dia
Vele o cão sobre a ovelha, ande contente.
ÉCLOGA V *
ARÚNCIO
Frondoso e Alcino
Fron. Em vão te estás cansando o dia inteiro,
Alcino, em perguntar, que significa
Este, que vês cortar, triste letreiro:
Ele não é debalde: aqui se explica
Tudo, quanto há de grande, novo, e raro,
Na pobre aldeia, e na cidade rica.
Nada pode escapar do golpe avaro...
(Diz cifra breve): agora entende;
Que deste dito o assunto eu não declaro.
Alc. Se o meu juízo o caso compreende,
Essa letra, que entalhas, e que admiro,
Com a morte de Arúncio fala, ou prende.
Fron. Ah! Que arrancas um mísero suspiro
Do centro de minha alma; o nome amado
Me faz deixar a vida, que respiro.
Alc. Eu bem via, que estava o teu cuidado,
Frondoso meu, lembrando a triste morte
Desse caro pastor, tão estimado.
Fron. E quando esperas tu, que o fatal corte,
Que de mim separou tão doce amigo,
Possa romper de amor o laço forte!
Primeiro se verá nascer o trigo
No céu; dará primeiro a terra estrelas,
Que tenha esta lembrança algum perigo.
Alc. Triste, e funesto caso! As ninfas belas
Do pátrio Ribeirão tanto choraram,
Que inda alívio não há, nem gosto entre elas.
Os gados largos dias não pastaram;
E mugindo à maneira de sentidos,
A pele sobre os ossos encostaram.
Os mochos pelas faias estendidos
Enchendo a terra, e céu de mil agouros,
Espalharam tristíssimos grasnidos.
Os campos, que té ali se viam louros
Com o matiz vistoso das searas,
Perderam de repente seus tesouros.
Fron. Esses sinais, Alcino, se reparas,
Dizem cousa maior, que sentimentos
Consagrados da morte sobre as aras.
Quando há mostras no céu, quando há portentos
Na terra, algum segredo há, não sei onde,
Que não é para humanos pensamentos.
Ao meu conhecimento não se esconde
A grandeza do golpe: mas alcanço,
Que a tanta perda a dor não corresponde.
De te buscar exemplos me não canso;
Só te lembro porém, que o tronco duro
Faz mais estrago que o arbusto manso.
Alc. O que queres dizer, eu conjeturo:
No vime, e no carvalho há igual ruína:
Igual a conseqüência eu não seguro.
Aquele cai sem dano, este destina
Fatal estrago a tudo, o que está posto
Debaixo dele. É isto? Ora imagina.
Fron. Jove aparte de nós tanto desgosto:
Baste, para avivar nossa saudade,
O ser cortado em flor aquele rosto.
Contente-se da morte a crueldade
Em nos levar com passo tão ligeiro
Uma tão bela, tão mimosa idade.
Roubou-nos um pastor, que era o primeiro
Entre os nossos do monte; ele nos dava
As justas leis no campo, e no terreiro.
Ele as dúvidas nossas concertava;
E sendo maioral, por arte nova,
Com respeito o agrado temperava.
De mil virtudes suas nos deu prova;
Sempre a bem dirigindo os nossos passos.
Oh quanto esta lembrança a dor renova!
Alc. Ai! E com quanta mágoa nos teus braços
Eu vi, Frondoso meu, que Arúncio esteve
Desatando da vida os doces laços!
Fron. Meu pensamento, Amigo, não se atreve
A lembrar-se (ai de mim!) da mortal hora.
Em que vi acabar vida tão breve.
Quem fora duro seixo, ou bronze fora,
Para animar agora na lembrança
Aquela imagem, com que esta alma chora!
Eu vi, Alcino, eu vi, que na mudança
Que do caduco e eterno bem fazia,
A alma tinha cheia de esperança.
Tudo, o que era mortal, aborrecia:
A cópia dos seus gados, o cajado,
(Bem que era de ouro fino) em nada havia.
Em vão o molestava o doce estado
Da honra, e da grandeza: a Jove entregue
O espírito seguia outro cuidado.
Mas ai, Alcino! A voz já não prossegue;
Que tudo, o que a memória vem trazendo,
Receio, Amigo, que a matar-me chegue.
Alc. As ninfas do Mondego estou já vendo
Descerem para nós com triste pranto.
Ou eu me engano, ou elas vêm dizendo:
Se do lírio, da murta, e do amaranto
Cercada deve ser a sepultura
De Arúncio, a nós nos toca ofício tanto.
Nós o criamos, com feliz ternura,
Dando-lhe o mel, e o leite: a nós nos toca
Mandar o corpo belo à terra dura.
Fron. De outro lado igualmente se provoca
O Tejo (onde ele viu a luz primeira):
E as ninfas do centro úmido convoca.
A mim só se me deve a glória inteira
(Fala o soberbo Tejo) eu o demando:
Minha há de ser esta honra derradeira.
Aqui lhe estou uma urna preparando,
Coberta de um cipreste; onde a memória
Seu nome viverá sempre guardando.
Por mais que voe a idade transitória,
Nunca se há de apagar aquele afeto,
Que de Arúncio consagro à triste história.
Durarás entre nós, Pastor discreto,
Renovando a lembrança de Corino,
Que da nossa saudade é inda objeto:
Ele te deu o ser; tu peregrino
Retrato de seus dotes, consolavas
Nosso desejo, tão constante, e fino.
Aquele caro irmão, que tanto amavas,
Aônio, digo, aquele, a quem devias
Toda a felicidade, que gozavas,
Hoje lamenta teus saudosos dias;
Hoje chora comigo: eu lhe desejo
Alívio a tão cansadas agonias.
Alc. Oh! Contente-se embora o claro Tejo
De haver ao mundo dado, quem lhe ganha
Fama, e nome a seu reino assaz sobejo.
Contente-se o Mondego, que na estranha
Ventura de educá-lo, deu ao mundo,
Quem lhe soube adquirir glória tamanha.
O fado, que conhece inda o mais fundo,
Quer, que guarde seu corpo a turva areia
De outro rio, mais triste, e mais profundo.
Do rio, que seu curso não refreia
Até chegar, onde entra a grande costa,
Que banha do Brasil salgada veia.
Rio das Velhas se chama (se reposta
Buscamos nos antigos, a pintura
Das dórcades na história se vê posta).
Os primeiros, que entraram na espessura
Dos ásperos sertões, dizem, que acharam
Três bárbaras, já velhas, nesta altura.
Fron. Das três Parcas melhor eles tomaram
O nome desse rio; se é verdade,
Que elas a vida humana governaram.
Triste sejas, ó rio: a divindade
De Apolo, que em ti cria o amável ouro,
Se aparte do teu seio em toda a idade.
Não sejas da ambição rico tesouro:
Girar se vejam sobre as praias tuas
Os brancos cisnes não, aves d'agouro.
Do inverno as enxurradas levem cruas
As sementeiras, que teus campos criam:
Deixem só sobre a terra as pedras nuas.
Os pobres navegantes, que se fiam
Dessas funestas águas, desde agora
Conheçam a traição, que não temiam.
Alc. E contra quem, Frondoso, inda em tal hora
Se armam as pragas tuas! Um delírio
Só para extremo tal desculpa fora.
Se Jove é quem nos manda este martírio,
Soframos o seu golpe: ao pastor belo
Derramemos em cima o goivo, o lírio.
O nosso Ribeirão traz o modelo
Do enterro, que dispõe: nós entretanto
Demos a conhecer nosso desvelo.
Envolto o corpo em um cândido manto,
Que distingue de Deus o brasão nobre,
Aqui se oferece para o nosso pranto.
Enquanto pois o corpo a terra cobre,
Seguindo o teu princípio deixa, Amigo,
Que um voto lhe consagre um pastor pobre,
Um voto, que se escreva em seu jazigo.
Soneto
Nada pode escapar do golpe avaro,
Alcino meu que a Parca endurecida
Corta igualmente os fios de uma vida
Ao pastor pobre, ao cortesão preclaro.
Cresça embora esse tronco altivo, e raro,
Ostentação fazendo mais luzida;
Viva embora entre humilde, entre abatida,
Essa planta, a que o nome em vão declaro.
Tudo há de achar o fim: bem que a vaidade
Em uma, e outra glória faça estudo,
Nada escapa à fatal voracidade.
Eu, que chego a pensá-lo, fico mudo;
E só tiro por certa esta verdade:
Que, se Arúncio acabou, acaba tudo.
ÉCLOGA VI
SULINO
Ao campo alegremente concorria
Da parte mais vizinha, e mais distante,
Dos Pastores do Erro a companhia.
Às portas dos currais o vigilante
Perro guardava o bem seguro gado,
Latindo ao resplendor da Lua errante.
Si fogos todo o sítio iluminado
Tornava clara luz a sombra feia
Do gesto melancólico, e pesado.
Vinham chegando de uma, e outra aldeia
As flautas sonorosas, cujo acento
O campo todo em júbilos recreia.
Trazia ao mundo o Sol com passo lento
O dia, em que do Ebro os moradores
Celebravam de Terce o nascimento.
Terce, que glória fora dos Pastores,
Que naquela ameníssima ribeira
Assunto foi de todos os cantores.
Ninfa, de cuja graça lisonjeira
No venturoso engano Alceio preso,
De Pastor se tornou penha grosseira.
Que de um desdém no ingrato fogo aceso
Por mercê foi dos Deuses transformado,
Depois de ser de Tirce vil desprezo.
Este penedo ali assinalado
Era do Ebro a trágica memória,
Da devoção silvestre respeitado.`
E da Ninfa cruel a viva história
Celebravam Pastores, que aprendiam
A ter de um peito bárbaro a vanglória.
Um templo para culto lhe erigiam,
E ornavam dele a fábrica elegante
Ingratos monumentos que esculpiam.
De Alfeu mostra a parede o curso amante,
Que de Artesas o cândido tesouro
Segue no cristalino passo errante.
Negando a mão a Febo, a seu desdouro,
Vê-se em rama o cabelo enverdecendo,
De Anfriso a Ninfa transformada em louro."
Tremulamente ao ar se está movendo
A Semideusa convertida em cana,
Atrás de si o hirsuto amante vendo.
Enfim outras memórias de inumana
Condição um Pastor destro, e polido
Na fábrica esculpira soberana.
Já se escutava o músico ruído
Das sanfonas, das flautas, dos cantores,
Em que está todo o campo repartido:
Dispunham vários jogos os Pastores,
Por prêmio consentindo ao que ganhasse
Cajados de destríssimos lavores.
Porque melhor o baile concertasse,
Na bela chusma das Pastoras vinha
Antandra, que por guia as governasse.
Era Antandra a mais bela, e como tinha,
Mais do que as outras, coração ingrato,
Só em matar de amores se entretinha.
Soava o canto harmonioso, e grato,
Entoando em o número cadente
Memórias do Pastor, desprezo, e trato.
O baile percebendo tristemente,
Ao longe estava Eulino recostado
Sobre uma penha, aflito e descontente.
A Antandra amava, e seu maior cuidado
Era Antandra, Pastora que distante
Vive do campo seu, do seu montado.
Vendo-a presente o desprezado amante,
E não podendo achar benigno efeito
No esquivo coração, chora constante.
Desde o penhasco, em lágrimas desfeito,
Vendo bailar a cândida Pastora,
Que amor ateia em seu rendido peito,
Ingrata Ninfa, diz, se a quem te adora
Fazes vaidade de ser ímpia e dura,
Que val a uma alma quanto geme, e chora?
A tanto chega já minha loucura,
Que hoje é no campo a infeliz notícia
A qualquer que de mim saber procura.
Só por tornar-te a condição propícia,
É desprezo suave de meu gosto,
Quanto é do campo mimo, ou é delícia.
Entregue sempre a meu fatal desgosto
Vejo vagar (sem nele ter cuidado)
O meu rebanho, ao voraz lobo exposto.
Que mais queres, cruel, de um desgraçado,
Que uma alma tendo só para render-te,
Uma alma a teu rigor tem consagrado!
De meus ais eu pudera aqui trazer-te
Por testemunha toda esta montanha,
Se esperara a ventura de mover-te.
Mas o teu gênio, que a piedade estranha,
Só prezaria ter esta certeza,
Por dar a teu rigor glória tamanha.
Conta porém por mais distinta empresa
Um coração, que tem maior vaidade,
Quando mais nobre vítima despreza.
Eu clamarei, ó Ninfa, aos Céus piedade,
Que pois de Alcemo hoje a memória existe,
Sendo motivo à mísera saudade.
Tempo virá, que de meu fado triste
Emendado se veja o influxo escuro,
Que a um fino amor nem inda o Céu resiste.
Algum penhasco, ou algum tronco duro
Amor fará que só conserve o nome
De Eulino, porque a Antandra amou tão puro.
Por mais que a sombra vença, o sono dome
O ardor de uma lembrança, eu te prometo
Que, ouvindo Antandra, o mundo injúria tome.
Não serás tu, idolatrado objeto,
Como já noutra idade Tirce fora,
Por não pagar de Alcemo o amante afeto.
Entre nós hoje amor se não ignora,
Como naquela mais ingrata idade,
Que a mais tirana era a melhor Pastora.
Pintava-se modéstia a crueldade,
E se atendia com maior decência
A que não se inclinava a ter piedade.
Então o ser ingrata era inocência,
E ao laço de Himeneu se sujeitava
Uma alma, sem de amor sentir violência.
Hoje mais glória é ter uma alma escrava;
Hoje o trazer um coração sujeito
É bem que aquele século ignorava.
Só de um Pastor se vê o nobre efeito
Em tributar à sua amada bela
Doces obséquios de seu fino peito;
Render-lhe o cordeirinho, que mais zela,
Entre os seus recentais, ter-lhe guardado
O mimo, em que mais gosto empregasse ela;
Oferecer o leite, o mel dourado,
A fruta saborosa e a cestinha
De rosas, que colheu no verde prado;
Da sua amada (ai bela Antandra minha!)
Gostosa obrigação é a coroa
Tecer-lhe de uma e outra ramazinha;
Deve ornar-lhe o cajado, e se ele entoa
Entre as Pastoras algum hino, enquanto
Erra o seu gado, o seu amor pregoa.
Mas eu, que néscio advirto, obséquio tanto
A quem, nada ignorando do que eu sinto,
Desprezo faz de meu saudoso pranto!
Se só na idéia minhas glórias pinto,
Que é o que estou sonhando, ou o que pertendo,
Se a tudo o que te digo te estás rindo?
Oh! Não me vejas sempre estar gemendo,
Ampare-me este alento que a constância
Nos longes da esperança vem trazendo.
Sufoque-se o tumulto de minha ânsia,
Se pode haver em tão fatal tormento
Quem me encaminhe, Amor, à tolerância.
Não dê mais meu cansado pensamento
Tanto esforço ao pesar: essa inimiga Veja-te,
Amor, cantar o vencimento;
E os teus triunfos por despojo siga.
ÉCLOGA VII
FIDO
Aonde um verde monte
De sombra está servindo à cristalina,
Sonora, e clara fonte
Do Mondego suavíssimo, a divina
Causa de seu gemido
Mísero conduzia ao pastor Fido.
Depois que o alto cume
Pisara já suspenso, e fatigado,
Porque respire o lume
Que dentro tem no peito recatado,
Sobre um duro rochedo
Imagem se sentou do horror, do medo.
À parte logo pondo
O encurvado arrimo, descansando
Na mão a testa, o estrondo
Do vento, que sossegue, então rogando,
Ergueu a voz: atento
A ouvi-lo parou mais brando o vento.
A ouvir seus clamores
Correi, ó penhas, suspendei-vos, águas;
Que os fúnebres rumores
Que vão formando de seu peito as mágoas,
Neste sítio ferindo,
Em terno som piedade estão pedindo.
Ouvi; que já começa
Do aflito peito a ir desentranhando
As justas queixas dessa
Perjura Ninfa, em cujo rosto brando,
Em cujo doce agrado
Amor os seus venenos tem guardado.
FIDO. Formosíssima Almena (e não duvido
Que o ser cruel somente hoje te agrade),
Este cansado e último gemido
Ouve, e modera um pouco a crueldade;
Daqui donde divisa o triste Fido
O templo dessa ingrata Divindade,
Te vem a consagrar, pérfida Almena,
Puras vítimas não, sim mortal pena.
Aquele rosto afável de alegria,
Que invejaram mil vezes as estrelas,
De mudo horror se cobre, e de agonia,
Que tu de todo o enlutas, e atropelas.
A fé que me juravas algum dia,
Tudo estragado está, porque daquelas
Prometidas um -tempo, firmes glórias,
Só vivem (ai de mim!) tristes memórias.
Aquela branca mão em que apertando
Tomavas minha mão, se não te esquece,
Que ditas não me esteve assegurando,
Que agora tudo, infiel, se desvanece!
Ora o Céu, ora a terra provocando,
Costumavas jurar, e te parece
Que tudo na memória inda não dura?
Ah! Pastora inimiga! Ah! vil, perjura!
Dizias-me: "Verás, ó Fido amado,
Primeiro produzir esta montanha
Estrelas, e pascer o manso gado
Sobre estas águas onde o Sol se banha;
Verás esse alto monte levantado
Tornar-se em vale humilde; e mais estranha
Cousa ainda verás, eu não duvido,
Primeiro do que Almena ingrata a Fido.
Nada se tem mudado: o ser inteiro
No Céu, na terra e monte inda se adverte;
Só teu peito infiel ao lisonjeiro
Influxo de meu dano se perverte.
Estranha cousa é só ver que o primeiro,
Antigo amor em ódio se converte;
Que se trocaram, pérfida, os amores
Em iras, em violências, em rigores.
Oh! quem esta traição imaginara,
Que as promessas falíssemos não crera!
Mas se o imenso amor me não cegara,
Certamente, perjura, eu o fizera.
Que dor não é o ver que a Ninfa cara
Aos braços de outro amante se rendera!
Que dor não é, que mágoa, que tormento!
Ah! que falta valor ao sofrimento!
Com que impaciência (ó Céus!) estou notando
A torpe laço ingratamente unida
Aquela gentil face, aquele brando
Gesto alegre de Ninfa tão fingida.
Eu a vi nos meus braços respirando
O alento que animava a minha vida;
Fabrica hoje cruel da alheia sorte
O instrumento fatal da minha morte.
Que bem por mais horror da pena minha
Parece que me fala aquele monte!
Que bem esta corrente aqui vizinha
Me está pedindo que meus males conte!
Mas se ela a glória viu que então eu tinha,
E se tu me invejaste, ó clara fonte,
Medi por ela a mágoa de perdê-la:
Vereis qual é maior, se a pena, ou ela.
Ah! Pastora! Um tão puro sacrifício
Tu desprezas assim! Quem te assegura
Que não sabe emendar um precipício
O horror de minha grande desventura?
Se tem a sorte mísero exercício
Numa vida infeliz, que pouco dura,
Eu lhe quero roubar tanta vitória:
Seja de Fido a lastimosa glória.
Disse, e sobre a alta penha
Erguendo-se, da fúria arrebatado,
No rio se despenha,
Que de horror, ou de susto então parado,
Vê o pálido amante
Entre as ânsias da morte agonizante.
Ao sucesso acudia
Algano, que de longe o divisara:
Apressado corria;
Mas a cega ambição da Parca avara
De seu golpe violento
Já fazia despojo o doce alento.
O pescador Algano,
Que a causa deste mal não ignorava,
Ali de tanto dano
Um funesto padrão em letras grava,
E nelas deixa impresso
O triste caso, o infeliz sucesso.
SONETO
Ninfas, que sobre a espuma prateada
Do Mondego suavíssimo, cantando,
Brandas queixas ao Zéfiro estais dando,
Com que fica a campina magoada;
Esta pira que vedes levantada
À memória daquele Pastor brando,
De fúnebres ciprestes coroando,
Deixai eternamente venerada.
É de Fido, ó Deidades: bem notória
A troncos, plantas, mármores e flores
Tem sido neste campo a sua história.
Vós, que as iras gemeis, sentis rigores,
Fazei somente assuntos da memória
De Fido as tristes lágrimas, e amores.
POLIFEMO
ÉCLOGA VIII
Ó linda Galatéia,
Que tantas vezes quantas
Essa úmida morada busca Febo,
Fazes por esta areia,
Que adore as tuas plantas
O meu fiel cuidado: já que Erebo
As sombras descarrega sobre o mundo,
Deixa o reino profundo:
Vem, ó Ninfa, a meus braços;
Que neles tece Amor mais ternos laços.
Vem, ó Ninfa adorada;
Que Ácis enamorado,
Para lograr teu rosto precioso,
Bem que tanto te agrada,
Tem menos o cuidado,
Menos sente a fadiga, e o rigoroso,
Implacável rumor, que eu n'alma alento.
Nele o merecimento .
Minha dita assegura;
Mas ah! que ele de mais tem a ventura.
Esta frondosa faia
A qualquer hora (ai triste!)
Me observa neste sítio vigilante:
Vizinho a esta praia
Em uma gruta assiste,
Quem não pode viver de ti distante.
Pois de noite, e de dia
Ao mar, ao vento às feras desafia
A voz do meu lamento:
Ouvem-me as feras, ouve o mar, e o vento.
Não sei, que mais pretendes.
Desprezas meu desvelo;
E excedendo o rigor da crueldade,
Com a chama do zelo
O coração me acendes:
Não é assim cruel a divindade.
Abranda extremo tanto;
Vem a viver nos mares do meu pranto:
Talvez sua ternura
Te faça a natureza menos dura.
E se não basta o excesso
De amor para abrandar-te,
Quanto rebanho vês cobrir o monte,
Tudo, tudo ofereço;
Esta obra do divino Alcimedonte,
Este branco novilho,
Daquela parda ovelha tenro filho,
De dar-te se contenta,
Quem guarda amor, e zelos apascenta.
ÉCLOGA IX
LAURA
Enfim, belos amores,
Doce consolação dos meus sentidos,
Trocaram-se em rigores
As finezas de Laura: ânsias, gemidos
Ocupam hoje a parte que algum dia
A imagem alentava da alegria.
Sem glória o peito amante
Se vai rendendo a um fúnebre delírio,
Sentindo a cada instante
Aflita a idéia do fatal martírio.
Oh! quanto aflige, Amor, oh! quanto cansa
De um bem perdido a mísera lembrança!
Buscando o desafogo
Ao mal veemente, subo a um alto monte,
Do qual diviso logo
As belas margens dessa clara fonte,
Que em pródiga corrente, em fértil veia,
Anima os verdes campos de Amaltéia.
Ali sobre um rochedo,
Próprio sítio da minha desventura,
Que de horror, e de medo
O tempo veste, a sombra desfigura,
Cujo eterno segredo não altera
Racional criatura, ou bruta fera;
Sentado tristemente,
Muda estátua da dor, em vivos ecos,
Convoco ternamente,
Ao som de meu suspiro, os troncos secos,
As mudas penhas, as mimosas plantas,
Que me venham ouvir em mágoas tantas:
Vós, lhes digo, sonoras,
Doces águas do plácido Mondego,
Que vedes as traidoras
Faces gentis do meu amado emprego;
Que vendo estais meu terno rendimento,
Pois vos duplica as águas meu lamento;
Vós, troncos generosos,
Imagens insensíveis de meu dano,
Que a laços enganosos
Talvez fostes arrimo, em vosso engano
Podeis, ó troncos, já ter alegria,
Que a um infeliz alenta a companhia.
Vós, mudas penhas, triste
Figura da constância de meu peito,
Onde o retrato existe
Daquele objeto, por quem já desfeito
Meu fino pranto desperdiço agora,
Mármore duro, penha vividora;
Ouvi-me vós, vós, me escutai, que eu louco
Busco atenção nos brutos insensíveis.
Não é meu mal tão pouco,
Que não possa fazer em vós possíveis
A compaixão, a mágoa, e a piedade,
Tanto pode da dor a atividade.
Convosco, ó penhas duras,
Mil vezes o meu bem comunicava.
Tu, Rio, inda o murmuras;
Seu nome nesta penha se gravava;
Ali conserva ainda no horror bronco
O nome de meu bem aquele tronco.
Eu mesmo venturoso
Neste retiro à muda soledade
Comuniquei gostoso
Aquela singular felicidade,
Que, para dilatar minha ânsia fina,
Só no fim me mostrou o que é ruína.
Dizia-vos: eu amo
A mais bela, a mais rara gentileza,
Por quem tanto me inflamo,
Que todo o bem o coração despreza;
Corresponde-se grata a meus ardores;
Feliz sou eu, felizes meus amores.
Inveja eu de Cupido,
Emulação gentil dos Astros ela:
Em zelos incendido
Gemia Amor, chorava cada estrela
O seu desprezo: mas (oh! triste fado!)
Vingou-se Amor; o Céu se tem vingado.
De vítima profana
Manchou-se o altar sagrado; da firmeza
Cedeu a desumana,
A perjura, a inconstante gentileza;
E foram suas vozes (oh! tormento!)
Fáceis lisonjas do ligeiro vento.
Afável, carinhosa
(Mas que digo!), infiel, falsa, fingida,
Já procura enganosa
Outro Pastor: e a seu favor convida
Um néscio amante, a quem talvez espera
Na glória, que hoje goza, a ruína fera.
Para desvanecer-te,
Ó enganado amante, bem discorro,
Que se chego a dever-te
Inteira fé das penas, em que morro,
Verás dessa inimiga a vil mudança,
E inda eu de ser feliz tenho esperança!
Eu me vi levantado
Ao mais soberbo cume dessa dita,
E medi despenhado
A distância (ai de mim!), que era infinita;
Como podes julgar, que advirto louco
Na mesma glória, que perdi há pouco.
Essa mesma, que agora
Branda te acolhe, te recebe afável,
Já me entregou uma hora
A rela mão, dizendo: nunca instável
Tu me verás, Pastor, a experiência
Mostrou bem desigual correspondência.
Mais feliz te contemplo,
Do que fui, porque tens a minha sorte,
Onde seguro exemplo
Tema a tua ventura; o peito forte,
Oh! não a creia não; que eu quando a cria,
Mil vetes cada hora me mentia.
Quem emendar pudera
O sacrílego impulso da vontade,
Quando rompi a austera,
Segura condição da liberdade,
Sempre isenta de amor! Mas que resisto!
Só o fizera, não te havendo visto.
Goza, goza esse emprego,
Que tanto o teu cuidado te desvela;
É digno, não o nego;
Desempenha o teu gosto, mas, ó bela,
Vê, lhe não guies a fortuna escura
Pelos passos da minha desventura.
Ah! bárbara beleza,
Produzida nos montes de Ampelusa!
Nasceste entre a fereza
Da mágica Medéia, ou de Medusa ?
Bebeste, dite, a natureza insana
Da líbica serpente, ou tigre hircana?
Mas que exemplares trago
De injusta tirania? O tigre fero
Talvez o brando afago
Humilde reconhece; eu desespero,
Ingrata, que, por ser mais feia a culpa,
Um exemplo sequer te não desculpa.
Repara convencida
Naquela amante vide, que enlaçada
Este tronco convida
À mais suave união; vê apertada
A débil planta, como se fizesse
Em cada folha uma prisão, que tece.
Nada verás, perjura,
Que imagens da constância, e da firmeza
Te não proponha: oh! dura,
Vil condição da feminil beleza!
Tu só, tu só estragas com jactância
O natural ditame da constância.
Tudo tem destroçado
Da vil mudança a sem-ratão injusta;
E eu triste, cansado
Da violenta paixão, quanto me custa,
Quanto, quanto a lembrança fatigada
De uma dor tão profunda, e tão pesada!
Quisera (ai doce emprego!)
Que nunca despertara o estrondo infame;
E a pena, a que me entrego,
Jamais te acuse, ingrata, jamais clame,
Porque no esquecimento da mudança
Conheças, que inda é minha esta vingança.
E vós, as que me ouvistes,
Mudas penhas, em vosso escuro seio
Sepultai estes tristes
Ecos, que a minha dor expulsar veio:
Não deis sinal algum de minhas mágoas,
Caducos troncos, e mimosas águas.
ÉCLOGA X
ANGÉLICA
Frondélio e Umbrano
FRON. Valha-me o Céu; e como estou pasmado
De ver quão brevemente
Um Pastor que mostrava tanto aviso,
Que era aqui respeitado
Da nossa pastoril, sincera gente,
Pelo mancebo de melhor juízo,
Em louco transformado, o campo todo
Admira, de tal modo,
Que já fogem de ouvir seu triste enredo
Alguns de compaixão, outros de medo!
Ah! grande Umbrano! E quem entenderia
Que a desatino tanto
Uma alma conduzia Amor injusto!
Quem seu golpe creria
De tal vigor, de tal esforço, quanto
Neste Pastor se emprega a tanto custo!
À margem desse lago, macilento,
Pálido e sem alento,
Anda girando este infeliz amante,
Absorto sempre, e sempre delirante.
Que loucuras a idéia fatigada
Não persuade a um triste
Na saudosa lembrança do perdido!
A alma, que estampada
Traz a imagem do bem, que mal resiste
Da infausta pena ao fúnebre ruído!
Deste Pastor tão belo bem sabemos,
Com que finos extremos
De Angélica adorava o doce encanto!
A sua ausência é causa de seu pranto.
Mas bem que ouvir ingratos desatinos
Mais parece impiedade
Que compaixão que alente humano peito,
A ouvir os peregrinos
Desconcertos me chego, que a saudade
Dita em seu coração, de amor desfeito.
Agora que tem posto
Dentro do lago os olhos, e o desgosto
No semblante se vê mais declarado,
Chegar-me quero a ouvir o seu cuidado.
UMBR. Não são águas mimosas
Estas correntes, não; eu nelas vejo
As desfolhadas rosas
Das faces de meu bem: o meu desejo
Com enganosa tinta
Esta glória nas águas me não pinta.
Vós, olhos, que serenos
Representais as lúcidas estrelas,
Que suaves venenos
Alimentando estais nas faces belas! Venenos, que bebidos
Sempre hidrópicos têm os meus sentidos.
Enredados cabelos,
De donde Amor me despediu as setas,
Fostes a meus desvelos
As correntes mais doces, e inquietas,
Que em mãos de suavidade
Me prendem para sempre a liberdade.
Choras? Ou te estás rindo?
Se choras, a saudade te agradeço;
Se te ris, eu sentindo
Fico o mal desta ausência, que padeço.
Quem fora premiado
Em tão ilustre fé, em tal cuidado!
Aqui vagando vivo
À margem deste lago, aqui discorro
Confuso, e pensativo,
Buscando sempre a causa porque morro:
O seu divino rosto
O Céu, por consolar-me, aqui tem posto.
Dentro desta corrente
Habita a minha Angélica; o semblante
Rico e resplendecente,
Aqui vejo nesta água a cada instante.
Em Ninfa transformada,
Aqui quis eleger sua morada.
Mil vezes no despenho
Me lembra Alfeu rendido e namorado;
A segui-lo me empenho,
E me impede, não sei se Amor, se o Fado;
Buscara a sua sorte,
Mas dele não invejo mais que a morte.
Consolação pesada
É seguir este alívio; se não gozo
A face delicada,
Termo de meu destino venturoso,
Quanto o ver me atormenta
Que o mesmo, que possuo, se me ausenta!
Nesse lago do Averno
É bem sabido como um desgraçado
Vive em tormento eterno,
Só por lhe ser (oh! dura lei!) negado
O licor da corrente,
E o pomo que se mostra florescente.
Retrata o meu martírio
De Tântalo infeliz a desventura:
Qual lhe chama delírio,
Qual excesso da dor! Mas se a loucura
Vem tão discretamente,
Louco me espere sempre toda a gente.
FRON. Não há, nem pode haver mais desconcerto
Que o deste infausto amante:
Quão grande é o poder da fantasia!
Julgar que tem tão perto
Aquele bem, que vive tão distante,
Delírio é só da mísera porfia.
Imagina presente o bem amado
O triste desgraçado
(Ah! ditosa loucura!). Pois na idéia
Trazes aquele alento, que recreia.
Porém (oh! que delírio a alma alcança!)
Como nunca o destino
Nos conduz para o bem de uma ventura!
Pacífica bonança
Encontrara este amante peregrino,
Se obrasse uma hora igual a sorte escura:
Mas para mais desgosto
Todo o prazer na idéia está disposto,
E seu tormento infiel por derradeiro
Tanto é mais duro, quanto verdadeiro!
A noite vem caindo, eu me retiro:
Pois querer dar sossego
A quem tem no seu erro o seu descanso,
Que é tirania, infiro,
Só natural a um coração tão cego,
Que ignora o desconcerto que eu alcanço.
Que triste anda um amante,
A quem traz seu cuidado delirante!
Pois para ser maior sua agonia,
Tem todo o seu prazer na fantasia!
ÉCLOGA XI
DILATO
Daliso, Algano, Agrário e Eulina
DAL. Deixa-me: não admito, Algano amado,
Sossego algum no mísero acidente
De tão profunda dor, mal tão pesado.
Como queres que chegue a estar contente,
Vendo tão malograda aquela idade
Do meu Pastor, do meu Salício ausente!
Tu sabes que nos laços da amizade
Mais estreita, mais fina, e mais segura,
Única em nós havia uma vontade:
Do gênio à suavidade, e à brandura
Me conformava eu tanto, que violência
Me faz em não levar-me a morte dura.
Que fico eu cá fazendo nesta ausência,
Se haver não pode alívio que conforte
A grave dor da minha impaciência!
Errou o golpe bárbaro da morte:
A inveja bem mostrou no desacerto,
Podendo em duas vidas ser mais forte.
Ai! doce Algano meu! E que concerto
Pode achar o discurso naufragante
Deste dano fatal no golfo incerto!
Roubou-me a Parca de meu peito amante
Um bem tão precioso, que na terra
Não espero ver outro semelhante.
Sabes que entre os Pastores desta serra
Era o meu bom Salício o mais amado
De todos quantos a montanha encerra.
Era do velho Alfemo respeitado;
Ele nos recordava cada dia
De Salício as ações, gênio, e agrado.
Quando entre nós algum certame havia,
Este sábio Pastor com arte e modo,
Os duvidosos casos resolvia.
Em concorrendo o nosso campo todo,
Era Salício a flor: nesta lembrança
A sofrer tanto mal não me acomodo.
Em todo o baile, em todo o jogo, ou dança,
Que convidasse o gênio da floresta,
Ele excedia sempre a esperança .
ALG. Não sei, Daliso meu, que lei é esta,
Tão dura, tão cruel, que em nosso dano,
Na parte mais mimosa é mais molesta.
Há poucos dias que ao Pastor Montano
Lhe morreu uma ovelha, a mais formosa,
De quantas lhe tragara o lobo hircano.
Bem sabes que entre todas mais vistosa
Era dos dois novilhos a parelha
Que eu tinha; e deu-lhe a peste venenosa.
Esta de cor dourada desde a orelha
De inveja aqui trazia os mais Pastores:
Morreu uma; e ficou outra mais velha.
Bem vemos nós do campo os moradores,
Que no ano em que é Ceres mais fecunda,
Dando mais abundância aos lavradores;
Quando o terreno fertilmente inunda
Na cópia das searas carregadas,
Onde o agricultor seus dotes funda;
Então, ou vêm as águas mais pesadas,
Ou vem o Sol ardente, e tudo morre,
Ficando as plantas pelo chão prostradas.
Esta disposição, se se discorre,
Daliso, com acerto e com prudência,
Que é só mistério oculto, à idéia ocorre;
Mistério que não vê mortal ciência,
Que não alcança humana conjectura,
Por lei da inescrutável providência.
DAL. Algano, assim será: porém que cura
Queres, que tenha um golpe tão violento,
Que me roubou tão breve uma ventura!
Se alheio de si mesmo o entendimento
O que vê não compreende, nem alcança,
Como há de agora discorrer atento!
Eu vejo, Amigo, a mísera lembrança
Da que eu imaginava glória minha,
Prostrada a base infiel da segurança.
Que fosse eterno tanto bem convinha,
Ou que durar pudesse mais idade,
Segundo os raros dotes que em si tinha.
Para que nos vem dar felicidade
Jove, o grande senhor da humana vida,
Se há de acabar com tanta brevidade!
Entregar-nos uma alma enriquecida
De prendas tão gentis, só para efeito
Pode ser de lograda e possuída.
ALG. Quanto nesse discurso erra o conceito!
E sempre nessa crédula ignorância
O desengano achamos mais estreito.
Chamarmos nosso bem é vã jactância,
Que entre nós, os mortais, só é precioso
O inestimável dote da constância.
Tudo é de Jove: em trono luminoso,
Ele as maiores graças nos dispensa,
Se a nós se inclina o rosto seu piedoso.
Dos seus raios despede a chama intensa,
E quando nos parece que é castigo,
O faz por nosso bem, não por ofensa.
Bem lhe podemos crer o rosto amigo,
Inda quando em vingança do inocente
O imaginamos nós mais inimigo.
Este segredo a nós não é patente:
E se o fora, faltara a divindade
E o privilégio a Jove onipotente.
Não cabe na mortal calamidade
Exceder tanta mísera fraqueza,
E menos nesta vil rusticidade.
Aqui notamos só como a fereza
Do lobo, animal feio, monstro indigno,
Ofende a ovelha, que a inocência preza.
Vemos aquele gênio mais maligno,
Que está cheio de frutos abundantes,
Entre todos havido por mais digno:
Não são as suas prendas tão brilhantes,
Que ofusquem o maior merecimento
De outros, que vimos abatidos antes.
Jove, que lá criou o firmamento,
A certos Astros deu mais resplendores,
Deixando a outros menos luzimento.
DAI.. Discorres muito livre as tuas dores:
O teu pesar, a tua pena, e mágoa
Desconhece estes míseros horrores.
A pena inconsolável, que na frágua
Da memória me aumenta a desventura,
Mal se sufoca em dons dilúvios d'água.
Ai! Salício infeliz! Ai! morte dura!
Como pode esquecer tua lembrança
A quem te consagrava fé tão pura!
Minha saudade tomará vingança
Dessa pérfida, infame tirania,
Que de afligir os homens não se cansa.
Aqui entre estas penhas à porfia
Hei de chorar, Amigo, a tua morte,
Té se abalar a mesma serrania.
Será de minha dor, será tão forte
Aquele impulso, com que eu fira as brenhas,
Que as mesmas feras à piedade exorte.
Os Faunos nesses côncavos das penhas
Hão de escutar meu fúnebre gemido,
Clamando em vão por ti, que ouvir me venhas.
Que deixes esse trono apetecido,
Aonde estás sentado em teu descanso,
E me seja teu rosto concedido.
Que venhas escutar com gesto manso
Aquela minha lira descontente,
Que tanto em afiná-la hoje me canso;
Confessavas um tempo, Amigo ausente,
Que o meu canto sonoro e lisonjeiro
Só abrandava a tua mágoa ardente.
Mas ah! que nesse trono derradeiro,
Neste centro de luzes mal ouvido,
O meu canto será tosco e grosseiro.
Quebrar te quero, em vão de mim possuído,
Instrumento infeliz: que me aproveita
Da torpe voz o dissonante ruído?
Ah! Se foras aquela voz eleita,
Para trazer do Tártaro a formosa
Deidade, cujo pacto Jove aceita!
Se foras tão feliz, tão poderosa,
Que outra vez repusesses nesta esfera
Do meu Salício a alma venturosa!
Não acabara a verde primavera
Destes campos: nas árvores, nas flores,
Se não vira a campina tão austera.
Ao domínio dos rústicos Pastores
Obedecendo, a cabra, a ovelha, o touro
Pastaram, dando gosto aos guardadores:
Não mostraria tudo infausto agouro,
Os Gênios não andaram todos tristes,
Febo não escondera os raios d'ouro.
ALG. No teu lamento, Amigo, em vão persistes:
Porque não é Salício inda o primeiro,
Que do Lete às ribeiras baixar vistes.
Em cada faia enfim, cada salgueiro
Se lê um epitáfio a qualquer morto:
Discorre, e assim verás o campo inteiro.
No comum sentimento ache conforto
O mal comunicado; o teu gemido
Assim do alívio se recolha ao porto!
DAL. Ai! Algano!... porém se o meu ouvido
Se não engana, eu ouço desta parte
Um canto harmonioso e mui sentido.
ALG. Eu estava também para avisar-te
Da minha suspensão: daqui mais alto
Podemos ver, se queres levantar-te.
DAL. Ai! que diviso já de alentos falto
O velho Agrário, e a consorte amada,
Eulina, a quem rendera o sobressalto!
São de Salício os Pais: oh! lei pesada
Da morte crua! Que fatal desgosto
Se vê na face de ambos magoada!
Ele no Céu os olhos tem já posto;
Ela de grave mágoa combatida
Abaixa à terra o peregrino rosto.
ALG. O funesto espetáculo convida
A romper, caro Amigo, o peito em pranto,
E a consumir em seu tormento a vida.
Não há pena maior, nem dor, que tanto
Possa agravar a humana desventura.
Quem viu golpe maior, maior quebranto!
Afogam-se meus olhos de ternura,
Meu coração em mil pedaços feito
Chora o golpe cruel da sorte dura.
Ouçamos o seu canto: mas que peito
Pode haver tão constante, e endurecido!
Eu não me exponho a lance tão estreito.
Adeus, Daliso: em vão compadecido
Me atrevo a consolar-te; antes discorro
Que vim buscar mais causa a meu gemido.
DAL. Também, Amigo, eu a seguir-te corro:
Mas que faço, infeliz! Onde pertendo
Esconder esta mágoa, com que morro!
Já os amados Pais a voz erguendo,
Vão consolando a pena: os seus pesares
Também co'a minha dor irão tecendo.
Que bem de compaixão ferindo os ares,
Acompanhar o espírito saudoso
Sabem do pranto seu nos ternos mares!
Que fado tão cruel, tão rigoroso!
AGRAR. A mísera fortuna
Não maldigas, Esposa, que a suprema
Sagrada mão não sofre a dor blasfema.
Ignorante e importuna,
Acusa de impiedade
Disposições da eterna Divindade.
Vive a humana fraqueza
De Júpiter sujeita ao raio ativo;
E de seu braço o golpe executivo
Empregando a fereza,
Bem que o efeito descobre,
A providência suma nos encobre.
Salício, o nosso amado,
Penhor da casta fé, querida Eulina,
Eu bem vejo, Consorte peregrina,
Que era do nosso agrado
Digno objeto: mas este,
Que o Céu nos rouba, foi penhor celeste.
É livre aos lavradores
Recolherem do campo a sua planta:
Ninguém disso se admira, nem se espanta;
E só nas nossas dores
Nos confunde que leve
Jove o que é seu, e em nós guardado teve.
De Jove era criatura
Salício, o nosso filho; Jove o guia
A eterna luz, à eterna Monarquia,
Aonde em paz segura,
Aquela alma ditosa
Zombe da nossa sorte lastimosa.
EULIN. Jamais contentamento,
Alegria ou prazer será loucura,
Que eu espere na minha desventura:
Porque perdido o alento,
Na falta de Salício,
Só lhe faço da pena sacrifício.
Sacrifício violento,
Se bem que enternecido; pois de todo
A chorar esta perda me acomodo,
Sem que do meu tormento
Outro alívio pertenda
Mais que o termo fatal desta contenda.
Que vença o meu martírio
Só espero; e lhe cedo voluntária
Qualquer constância, ou força temerária,
Que em meu néscio delírio,
Me persuada alento
Sobre tão porfiado sentimento.
AGRAR. Que debalde procuro
Consolar-te, querida, se conheço
Que delira também no mesmo excesso
O meu tormento duro!
Ah! Salício! Ah! memória!
Faltaste-me, faltou-me toda a glória.
EULIN. Enquanto na floresta
Der alma a primavera às tenras flores;
Enquanto o seco outono aos lavradores,
Com mão nunca molesta, Conceder carregadas
As searas que o Sol deixou douradas.
AGRAR. Enquanto na montanha
Pela fresca manhã a aurora bela
Espalhar os orvalhos que congela;
E na verde campanha
Brotarem socorridas
As plantas do calor amortecidas.
EULIN. Enquanto neste monte
Se ouvirem os balidos saudosos
Dos tenros cabritinhos, e sequiosos
Buscando apura fonte
Deste sítio sombrio
As ribeiras descerem desse rio.
AGUAR. Não verás, filho amado,
Adorado meu bem, caro Salício,
Não verás este amante sacrifício
Torpemente apagado
Por despojo violento,
Com que se orne o altar do esquecimento.
EULIN. Verás a minha pena,
Ó sempre inestimável, filho amado,
Agitando o rumor do meu cuidado,
Até que em paz serena,
Presente à tua vista,
Na tua amada companhia assista.
ÉCLOGA XII
AMARILIS
Salício, Frondélio, Amarílis e Feliza
A fúnebre harmonia,
Dissonante lamento
Dos estragos de Amor, escuta um dia,
Adorada ocasião de meu tormento;
E em mísera figura,
Verás do teu Pastor a desventura.
Daliso sou, que canto
De Salício a desdita;
A ver se deixo, pela voz do pranto,
A minha mágoa duramente escrita,
Tomando a sombra alheia,
Por não fazer a mágoa inda mais feia.
Em um bosque sombrio,
Funesto sítio escuro,
Levado do seu louco desvario,
Salício, a quem o duro,
Ingrato fado havia
Roubado em Amarilis a alegria;
Apascentava o gado
De si tão esquecido,
Que todo pelas serras espalhado,
Qual ficava perdido,
Qual entre as garras era
Despojo triste da maligna fera.
Enquanto o Sol guiando
Para o berço das águas
O luminoso carro vai girando,
Coberto o rosto, e cheio enfim de mágoas,
Em si mesmo atendendo,
Assim falando vai, assim dizendo:
SAL. Aonde vou guiando o meu rebanho,
Pobre de mim, sem tino e sem cautela,
Por tão escuro bosque, sítio estranho!
Como perdida a minha amada bela,
Me conduz meu tormento a esta estância,
Se apenas o segredo habita nela!
Acaso o desafogo de minha ânsia
Acharei entre os troncos e penedos,
Que são imagens da maior constância!
Acaso estes sombrios arvoredos
Poderão divertir a infausta história
Dos, que Amor me teceu, tristes enredos!
Malfeito, que o tumulto da memória
Recobre algum sossego, quando lida
Com as lembranças da passada glória.
Tão viva n'alma a dor desta ferida
Está, que há de igualar da eternidade
A larga série, a duração comprida;
E o pensamento meu, que se persuade
De querer apagar da idéia a chama,
Cada vez mais se cobre de saudade.
Não se desmaia assim, de quem bem ama,
O extremoso afeto; o fogo ativo
Com imortal ardor o peito inflama.
Leva da morte o golpe executivo,
Para os campos do Elísio a luz inteira
Do fino amor, que n'alma arde tão vivo:
Lá dizem que se estende uma ribeira,
Por onde andam as almas vagabundas,
Seguindo a sorte ingrata ou lisonjeira.
Tu, brando rio, mansamente inundas
Os férteis campos, onde a oposta via
O passo inclina às regiões profundas.
Neste País saudoso, a luz do dia,
Perpétua sempre, sempre vigilante,
Põe em desterro as sombras da agonia.
Se pois só lá descansa um triste amante,
Se nem ainda a mesma morte apaga
O voto fiel de um coração constante,
Como é possível que eu à idéia traga
O delírio infeliz, de que alguma hora
Alívio tenha minha infausta chaga!
Morra minha loucura: que eu já agora
Seguir-te espero, ó peregrino enleio
De um coração, de uma alma que te adora.
Perdido o tino, e da razão o freio
Torpemente estragado, me disponho
A viver sempre de pesares cheio.
Toda a glória, e prazer terei por sonho,
E crendo só na minha desventura,
Já no meu dano a ponderar me ponho.
Dar não quero a meu mal outra mais cura,
Que trazer sempre impresso na lembrança
Todo o passado bem, toda a ventura.
Vamos pois recordando esta mudança;
E não me esqueça do suave alento,
Que achei de Amor na plácida bonança.
Quero esse bem lembrar ao pensamento,
Em cujo ser depositado eu via,
Cruel Amor, o teu contentamento.
Vamos desentranhar da cinza fria
As imagens do gosto, que apagadas
Têm do destino a dura aleivosia.
Que peregrina em tudo... Ah! que embargadas
São minhas vozes de um Pastor que chega,
E vem talvez seguindo-me as pisadas.
Quanto comigo é a fortuna cega!
Pois até este bem da soledade,
Somente porque é bem, gozar me nega.
Debalde é esperar que haja piedade,
Que vai da sorte o mísero progresso
Abrindo sempre o seio da crueldade.
Quem será? È Frondélio: eu o conheço;
Importuno Pastor, inda que amigo;
Já não posso esconder-me: eu lhe apareço.
FRON. Valha-me o Céu, Salício! que inimigo,
Que ingrato, que maligno influxo é este,
Que tanto é contumaz em teu castigo!
Não é preciso que eu te manifeste
A forçosa razão que me acompanha
Para o sentir: há muito que a soubeste.
Tem assombrado a toda esta montanha
Este semblante teu tão carregado,
Coberto de uma dor e mágoa estranha.
Vaga sem guarda o teu faminto gado,
Feito dos lobos inocente presa,
Pelos agrestes matos espalhado.
Foges de todo o trato, e até te pesa
Que um amigo os teus passos vá seguindo,
Por saber a razão dessa tristeza.
Fala, dize; que tens? Que estás sentindo?
Mas tu dás um suspiro, e emudecendo
Co'a face sobre o peito vais caindo!
Explica-te comigo; eu estou vendo
Que esperas que os teus males nos declare
De alguma grande dor o estrago horrendo.
SAL. Primeiro a doce vida desampare
Este fraco despojo que hoje anima,
Que eu de outro algum, senão de ti, me ampare.
Se o ver-me, caro Amigo, te lastima,
Arranca-me esta vida, que eu não quero
Um bem, que sem ventura não se estima.
Eu morro; eu enlouqueço; eu desespero:
E só da morte dura o horror maligno
É, Frondélio, a piedade que hoje espero.
Já me entrego de todo ao desatino:
Pois a tanto pesar, a tanto susto,
Alívio algum não há, bem que imagino.
Nada faço empenar; a tanto custo
Quero morrer, Amigo; arranca, arranca
Este meu coração: é justo, é justo.
FRON. Se a corrente da mágoa não se estanca,
Pela falta talvez do desafogo,
Por negar-te a piedade a porta franca,
Comigo estale embora o ardente fogo
Que recatas zeloso: ao doce efeito,
Menos ativa a mágoa verás logo.
SAL. Quero falar, Frondélio; mas desfeito
O coração em lágrimas, desmaia
Balbuciente a língua, a voz no peito.
FRON. Cobra sossego um pouco; e enquanto raia
O sol já menos quente nessa esfera,
Para falar-me o teu valor ensaia.
SAL. Custoso me será; mas ouve, espera,
Escuta, meu Frondélio: ah! quanto é duro
Sentir de uma lembrança a lei severa!
Perdoa-me, Amarílis; eu te juro
Que amor sim, não a falta de decoro
Rompe de meu silêncio o voto puro:
Eu te respeito enfim, te amo, e te adoro.
Conheces a Amarílis,
A Pastora mimosa,
Mais bela do que Almeja, e mais que Fílis,
Amarílis formosa,
Meu ídolo adorado,
Filha de Alfemo, glória deste prado?
Lembras-te quantas vezes
Convidando a floresta
Às belas noites dos dourados meses,
A pompa manifesta
De seus dotes se via,
E cada vez mais bela parecia?
Acordas-te de quando,
Numa noite daquelas,
Uma flor para o jogo ela tomando,
Colhida entre as mais belas,
Fingindo que eu ganhara,
Risonha me entregou a Ninfa clara?
Aqui, Frondélio amado,
O giro principia
De meu ingrato, meu injusto fado:
Tomou naquele dia
Por sua empresa a sorte
Lavrar na minha glória a minha morte.
A inveja macilenta,
Filha do monstro indigno,
Começou a espalhar com mão violenta
O bárbaro, o maligno,
Contagioso veneno,
Que hoje é causa das mágoas em que peno.
No bosque, prado, e vale,
Não há quem de Salício
Depois daquele dia já não fale:
Daquela flor no indício
Já conhecido, o engano
Se faz universal para meu dano.
A romper-se começa
Pouco e pouco o segredo,
Enquanto a bela Ninfa, que travessa
De nada tinha medo,
Nutria os meus amores
Com o doce alimento dos favores.
Ah! quem, Frondélio, agora
Lembrar-se não pudera
Daquela dita, aquela enganadora
Glória, que detivera
Toda a minha ventura
Sobre a base gentil da formosura!
Mas se está meu tormento
Tão patente, e tão claro,
Quero lembrar o meu contentamento.
Cegamente reparo
Em dar maior valia
No decoro ao pesar, do que à alegria.
Recolhiam-se os raios
Ao centro cristalino
Desse eterno Planeta; a seus desmaios
Sucedia o benigno
Influxo de Diana,
Êmula de Amarilis soberana.
A estas horas, quando
Ao sono se rendia
O velho Alfemo, a Ninfa o véu tomando,
A um jardim descia,
Aonde alegre Flora
Espalha as águas, que uma fonte chora.
Tu, dize, tu, mimosa,
Sonora fontezinha,
Que regas a campina deliciosa
Que pisa a Ninfa minha,
Tu, dize aquela glória,
Se inda a guardas impressa na memória.
Dizei-o vós, ó plantas,
Vós o dizei, ó flores;
Que vós testemunhastes vezes quantas,
Propícia a meus amores,
Amarilis, a bela,
No vosso campo pareceu estrela.
Mas não digais; e antes
Discretamente atentas,
Observai sempre os votos vigilantes,
Que as leis da dor violentas
Têm de todo estragado
No recato infeliz de meu cuidado.
Pois que a dita alcançaste,
Ouve, Frondélio, a pena;
Tu mesmo o meu pesar desafiaste;
Teu respeito me ordena,
Ou a amizade tua,
A que te faça narração tão crua.
Esta glória gozava,
Amigo, quando a inveja
Aos ouvidos de Alfemo se avançava;
E como ver deseja
Vivamente o seu dano,
No descuido da Ninfa tece o engano.
Compreende o delito;
Acusa a ligeireza;
E com ímpio rigor lhe tem perscrito
Que em um cárcere presa
Pague a culpa que eu tenho
De a ter rendido ao amoroso empenho.
Vê, considera, e dize
Com quanta dor, com quanta
Suportará minha alma este castigo!
Lembrar-me glória tanta
Perdida em um instante!
Ah! que dor tão cruel a um peito amante!
Estar na minha idéia
Pintando a tirania,
Que oprime a bela Ninfa! A alma cheia
De angústia, e de agonia,
Em tanto sentimento,
Sufoca-se no horror do pensamento.
Como há de estar aquela,
Formosa como o dia,
Cerrada em sombra escura?
Como a bela Imagem da alegria,
No fúnebre aposento,
Dormirá entre os sustos do tormento!
Ora a fineza minha
De cobarde acusando,
Ora a piedade, que em minha alma tinha,
De ingrata condenando;
Tudo oposto em meu dano,
Convertida a esperança em desengano!
Ah! Quando em tal discorro,
Frondélio meu, a vida
Me enfada e me aborrece; expiro, e morro
Entre a confusa lida
De tão profunda pena,
Que injusto Amor em meu martírio ordena.
Vê tu quanto hei perdido,
E quanto enfim me resta!
De Amarílis o encanto apetecido,
A minha dor funesta,
A glória, a dita, o gosto,
A desventura, a mágoa, e o desgosto.
FRON. Na verdade, Salício, o teu sucesso
Notável compaixão me tem devido.
Sei onde chega o bárbaro progresso
De uma dor na lembrança do perdido;
Porém não devo desculpar o excesso
A tempo, que parece o teu gemido
Algum remédio tem: vê, discorramos;
Podemo-lo aplicar, se acaso o achamos.
SAL. Pertendes que nos laços da esperança
Outra vez, caro Amigo, a vida ponha!
Queres que entre as ruínas da mudança
Para novo tormento me disponha!
Hei de ser como aquele que a bonança
No meio da tormenta acaso sonha,
E os olhos desatando o sono amigo,
Se acha infeliz no centro do perigo?
Já não creio que pode haver ventura
Para o pobre Salício decretada;
Salvo se vem com máscara perjura
A desgraça impiamente disfarçada:
Eu, que em tantos triunfos vi segura
A glória, que hoje é sombra, é fumo, é nada,
Posso esperar que torne a minha dita?
Quem tão grande loucura inda acredita!
FRON. Se em laço de Himeneu o velho Alfemo
Te une à bela Amarílis, eu confio
Que passando um extremo a outro extremo
Não terás de culpar teu fado impio.
SAL. Ah! Que nessa lembrança, Amigo, gemo;
Pois é néscia loucura, é desvario
Aspirar um Pastor humilde, e pobre,
À ventura de um bem tão rico, e nobre.
O que faz o tormento mais dobrado
É ver a lei sagrada do decoro,
Impondo-me um silêncio tão pesado
No que sofro, suspiro, peno, e choro:
Eu, um triste Pastor, triste o meu gado;
Ela, Pastora de um divino coro;
Não pode haver igual correspondência;
Sempre temo os excessos da violência.
Mas se Amor é das almas harmonia,
Que o peito escuta, o ouvido não entende,
Esperar posso ainda que algum dia
Seja pago este amor que assim me acende.
Mas enquanto a soberba tirania
De Alfemo os meus gemidos não atende,
Como alívio terei, como descanso?
Como andarei com gesto alegre, e manso?
FRON. Sítio sei eu, de donde me parece
Que suposto Amarílis presa esteja,
Pode ser, se de ti se não esquece,
Que inda chegue a escutar-te, e que te veja.
SAL. Guia-me tu, Frondélio: qual é esse
Venturoso retiro, oculto à inveja?
Eu quero vê-lo: vamos, vai diante.
FRON. Vem; e não te demores um instante.
Vês este vale? Para aquele assento
Fica um pequeno oiteiro, e se divisa
Vizinha a ele a choça, o aposento
De Alfemo, de Amarílis, e Feliza.
SAL. Sagrado sítio a meu gemido atento,
Se é que amparas propício a quem te pisa,
Mostra a minha Amarílis: dize aonde
Amarílis, meu bem, em ti se esconde.
FRON. Que mais queres? Aquela é a beleza
Da tua amada Ninfa: o seu semblante
Coberto está de fúnebre tristeza.
SAL. Triste vem: que pesar a um pobre amante!
Alguém viu, como eu vi, a gentileza
Daquele rosto, mais que a luz brilhante,
Mais bela do que a rosa matutina,
Engraçada, gentil e peregrina!
FRON. A seu lado Feliza está sentada,
Ambas na história triste discorrendo:
Talvez de teus amores magoada
A formosa Amarílis vai dizendo.
SAL. Escuta: nesta estância retirada
Irei o que ambas dizem percebendo;
Ah! Que um ai Amarílis deu sentida!
Triste fadiga! Lastimosa vida!
AMAR. Mal haja a feminil loucura minha,
Que de um homem na falsa ligeireza
Imaginou firmeza.
Mal haja o cego monstro que me tinha
Na louca fantasia debuxado
Tão belo o meu cuidado,
Para comprar meu desengano agora
Nas mãos da experiência roubadora.
Habitar esta sombra, ver o dia,
Cheia a alma de horror, de assombro o peito,
Trazer sempre sujeito
O coração à vil melancolia,
Oh! quanto me atormenta, Amor, oh! quanto!
Ah! mísero quebranto,
Fiscal de meu amante rendimento!
Só porque soube amar, sinto o tormento.
Estas eram, Salício fementido,
As lágrimas que eu vi banhar teu rosto!
Artifício disposto,
A contrastar o Nume desabrido
De minha condição! Ah! se eu não fora
Tão crédula à traidora,
Lisonjeira eficácia de teu pranto,
Engenhosa em meu mal não fora tanto.
Quantas vezes, ingrato, esta montanha
Girando por buscar-me à calma, ao frio,
Com generoso brio,
Vieste para empresa tão estranha!
Quantas a noite te deixou no prado!
Quantas o rosto amado
Da Aurora te encontrou, pérfido amante,
Às portas desta choça vigilante!
Que inventos não achaste peregrinos,
Para me contrastar! Que cedro, ou faia,
Que ao tempo não desmaia,
Não guarda ainda os sonorosos hinos,
Que na bem temperada, acorde avena,
Para tecer-me a pena,
Entoaste depois em meu tormento,
O veneno ocultando no instrumento!
FEL. Amarílis, o tempo tem mostrado
Que a palavra do amante apenas dura,
Enquanto da ventura
Corre propício o giro acelerado.
Verás, Irmã, mudar-se aquele outeiro
De seu lugar primeiro,
Que se veja nos homens algum dia
Segura a fé que um deles prometia.
SAL. Onde, Frondélio meu, me hás conduzido?
Que ao escutar da minha amada a queixa,
Tão magoado me deixa
A constante razão de seu gemido,
Que ao passo que igualando o seu estrago
Lhe recompenso, e pago
O martírio que o fado lhe destina,
É maior que o seu mal minha ruína.
Quero que ela me veja: eu lhe apareço.
Que importa aventurar-me a seus rigores,
Se chegam minhas dores
Do último golpe ao lastimoso excesso!
Se hei de morrer distante à sua vista,
Onde é força resista,
Por lograr este bem da morte ao laço,
Vá-se o temor, o susto, o embaraço.
FRON. Chega-te muito embora: arrependido
Já de minha piedade, bem me pesa
De que a tua tristeza
Encontre aqui motivo mais crescido.
Mal haja a compaixão que enganadora
Me persuadiu que uma hora
Quartada a tua pena, quebraria
(Presente o bem, que adoras) a porfia.
AMAR. Se a fantasia acaso não me engana,
E a luz já menos firme no Horizonte,
Vizinho a este monte
Vejo um vulto chegar deforma humana.
FEL. Se de meu triste horror não é pintura,
Nele se me figura,
Amarílis, presente o teu Salício.
AMAR. Será: oh! que funesto precipício!
SAL. Salício sou, querida, não te espantes;
Se bem que de meus males a aspereza,
Qual nunca a vil fereza
Igualou da fortuna nos amantes,
Mudado tem de todo a humana forma:
E este corpo se informa
Da mágoa, dos pesares, da amargura,
Das sombras, da aflição, da desventura.
Tão outro enfim me vejo do que fora,
Que uma estátua da pena me contemplo,
Dos martírios exemplo
Me proponho à vingança; esta alma ignora
O uso da razão; se bem, querida,
Ao passo que duvida
Minha alma, se do corpo o moto ordena,
Conheço que só vivo para a pena.
Vivo só para a pena; e também vivo
Para sempre te amar, Ninfa formosa.
Consulta esta amorosa,
Viva estampa de Amor; no fogo ativo
Verás a tua imagem que respeita
Tão pura e tão perfeita,
A minha adoração, verás prostrado
A teu desprezo duro o meu cuidado.
AMAR. Inda a meus olhos vens, pérfido amante,
As traições escondendo em teu gemido?
Tu, monstro fementido,
Tu, coração mais duro que diamante,
Escândalo e horror destas montanhas!
Nas ásperas entranhas
Da Hircânia o humor primeiro achar pudeste,
Onde a fereza indômita bebeste.
Crês que inda, ingrato, o cego desatino
De meu primeiro amor me tem cerrada
Na ilusão adorada
De acreditar-te verdadeiro e fino?
Vens privar-me do alívio que ainda gozo
No desterro penoso,
Sendo força que alívio considere,
Quando ver- te, cruel, jamais espere!
Vens protestar finezas? Que esperança
Tão delirante e louca desordena
A face tão serena
Dessa tibieza tua? Vai, descansa,
Segue o sossego teu; deixa que eu triste,
Na mágoa que me assiste,
Deva à piedade tua o grande excesso
De escusar-me este horror com que faleço.
SAL. Não venho, amada, não, porque tirano
Fiscal de teu martírio me imagines;
Só para que me ensines
A vencer de meu fado o desumano,
Ingrato giro, venho; da firmeza,
Da fé que guardo ilesa,
Eu venho assegurar-te a chama ativa,
Mais fina, cada vez mais pura, e viva.
AMAR. Vai-te, inimigo, vai: o desamparo,
Em que viva me tens, morta me deixa:
Verás que a minha queixa
Fora de mim não busca outro reparo.
O desengano meu, que me acompanha,
Será de tão estranha,
Tão inflexível sorte, última cura.
Fora de mim não quero outra ventura.
Desta só breve luz, que me permite
(Por melhor ver a sombra macilenta)
Um Pai, que me atormenta,
Aflita gozarei, pondo limite
Neste oculto retiro ao meu cuidado.
Memórias do passado
Entrada não terão neste aposento,
Habitação da sombra e do tormento.
FEL. Ausentou-se Amarílis: ah! Que errado
A contrastar, Salício, se aventura
De uma paixão tão dura
A posse, que em seu peito tem tomado!
Mal haja o monstro cego que mantinha,
Irmã querida minha,
Teu enganoso passo, onde tão crua
Vejas a face da desgraça tua.
Mas enquanto o volúvel movimento
Dessa Deusa inconstante não descansa,
À rapida mudança
Me conformo do giro seu violento.
Já agora seguir quero o curso ingrato
De seu ligeiro trato;
Se pode ainda o fado pôr baliza
Aos casos de Amarílis e Feliza.
SAL. Onde foges, cruel? Onde, adorada,
Belíssima ocasião de meu gemido,
Ocultas essa face delicada?
Em que tenho, Amarílis, delinqüido?
Por que fazendo agravo da fineza
Me ordenas um rigor tão desabrido?
Foi crime o adorar tua beleza?
Seria: mas o Céu só é culpado
Num delito (ai de mim!) que não me pesa:
Ele deixou em ti recopilado
De seus astros a face peregrina,
A pompa de seu rosto prateado.
Ele por influência nos destina
A adoração de um bem, cuja luz pura
A liberdade em cárceres domina.
Se minha estrela pois, infausta e escura,
Me conduz a teus olhos, destinada
Vítima de tão rara formosura,
Aos Céus há de chamar minha ânsia irada
Porque dando-me amor tão peregrino,
Me ordenaram fortuna tão pesada.
Injusto, ó Céu, comigo te imagino:
Ou não fora Amarílis tão querida,
Ou fora mais feliz o meu destino.
Mas se era todo o bem da minha vida
Aquela rara idéia da beleza,
Aquela formosura tão crescida,
Como injuriando o obséquio da fineza,
Inda resiste meu cansado alento
Aos assaltos da pérfida fereza!
Quero encurtar da vida o passo lento,
A desgraça igualando, que Anaxarte
Testemunhou no fúnebre instrumento.
Terás, bela Amarílis, terás parte
Na minha ingrata sorte: eu o consinto
Pela glória que tenho de adorar-te.
Frondélio meu, do triste labirinto
Em que já sufocada está minha alma,
Resgata este despojo tão distinto.
Nesta, que os membros gira, mortal calma,
Já nada me consola; nada quero,
Mais que em fé deste Amor render-lhe a palma.
FRON. Sossega, meu Salício; eu ainda espero
Que daquela que vês, ingrata, e dura,
Possa ver o semblante menos fero.
Do tempo a direção branda e madura
Tudo sabe mudar; a natureza É vária;
e em variar sempre é segura.
Amarílis, que bárbara despreza
O teu suspiro agora (eu o discorro),
Há de um dia ceder dessa aspereza.
SAL. Ah! Que pede meu mal outro socorro
Mais pronto, mais ligeiro: eu imagino
Que te contenta, Amigo, o ver que eu morro.
Sim, meu Frondélio, sim: que onde tão fino
De Amor se ateia o fogo, outro concerto
Não há mais, do que um cego desatino.
Quando não foi de Amor no golfo incerto
A paixão, o delírio, e a loucura,
O norte, que conduz ao desacerto!
Apenas escapou da força dura
De Amor a liberdade, que anda atada
À direção de uma prudência pura.
Jove, o senhor da esplêndida morada,
Deixa do eterno Olimpo a estância amena,
E deixa a Divindade abandonada;
De Europa, Dânae, Leda, e mais Almena,
Vê como foi despojo aquele raio,
Que a soberba de Encélado condena.
Em quantos desatinos faz ensaio
Aquele ativo incêndio, que nos peitos
Imprime Amor com um mortal desmaio?
Gira esses campos; vê os seus efeitos
Tão raros, que estampados na memória
Nunca do tempo se verão desfeitos.
Mas esta de Amor bárbara vitória
Há de crescer mais peregrina, e rara
Na que pertendo dar-lhe, imortal glória.
Tudo já me roubou a sorte avara:
Nenhum bem eu espero já, perdida
A melhor glória, que o meu peito amara.
Aqui quero acabar, Frondélio, a vida,
Dando novas memórias, que este monte
Respeitará na idade mais crescida.
Girando Eco saudosa este Horizonte,
Eu espero que ainda em rouco acento
A minha infausta história ao mundo conte.
Horrorizando a todo o pensamento
Vivirei, aos amantes desatinos
Mil desenganos dando em meu tormento.
E trazendo em lembrança os peregrinos
Excessos de um amor, no bosque inculto
Serei assunto a números divinos.
De hirsutos Faunos no retiro oculto,
Permitida a saudosa cantilena,
Logrará meu amor perene culto.
E tu, por desafogo à minha pena,
Enquanto meu espírito tornado
Em cisne voa à região serena,
Ao triste caminhante encomendado
Um padrão erguerás compadecido,
Naquele monte agreste e descalvado.
Nele fique por último esculpido:
"Aqui jaz... (diga assim a cifra breve)
Salício, por amante perseguido.
Foi infeliz: seja-lhe a terra leve."
Isto dizia, quando,
Já desmaiado o alento,
Nos braços de Frondélio descansando
O peso triste, em fé do sentimento,
Apenas um gemido
Despediu na lembrança do perdido.
Então o Sol ausente
Aos pousos convidava;
Já de pastar a relva florescente
O seu rebanho cada qual chamava;
Frondélio era um penedo,
Triste, mudo, pasmado, absorto, e quedo.
ECLOGA XIII
SILVIO
Sílvio e Algano
ALG. Que é isto, Sílvio? Aqui tão solitário
À sombra deste freixo! Já não vejo
Na tua companhia o amado Agrário,
Pastor tão belo, que no fresco Tejo
O repete a saudade a cada instante,
Por onde quer que gire a vista errante,
Vales correndo, atravessando serras!
Como também da nossa companhia
Tu, a quem tanto amamos, te desterras,
Com tão triste e fatal melancolia,
Que tudo já teu mal tem estranhado,
Os Pastores, o monte, e o mesmo gado!
Tão diferente estás, tão outro admiro
O teu gênio, Pastor, e o teu aspecto,
Que cuido, neste fúnebre retiro,
Do fado injusto o bárbaro decreto
Te há de usurpar a vida, se entregando
Toda a alma ao sentimento, em ócio brando
Não divertes a mágoa; e se alivia
Qualquer pena, que a um mísero atormenta,
Do amigo, que lhe assiste, a companhia,
Aqui me tens, Pastor; comigo alenta
Essa dor; bem que a vejo tão profunda,
Que temo que este alívio mais confunda.
Que mal, ó Sílvio, foi tão penetrante,
Que este penhasco imóvel da constância
Pôde abalar? Que dor há, que quebrante
Um peito, aonde nunca a mortal ânsia,
O cuidado impaciente, a mágoa aflita
Entrar puderam? Cuido que esquisita
Causa tens para tal: se é que a funesta,
Dura ausência daquele Pastor caro
Teu coração amante assim molesta,
Não chores, não, ó Sílvio: pois reparo
Que em todos nós geral é a saudade,
E o mal comum alívio persuade.
Não eras tu aquele, que ocupando
Entre os Pastores o lugar primeiro,
Em doce estilo os versos entoando,
Te fazias ao monte lisonjeiro?
Que de vezes as árvores e os montes,
As duras penhas, as sonoras fontes,
Correndo atrás do canto que entoavas,
Te vimos atrair, sendo verdade
Então o que tu mesmo nos contavas
Da harmoniosa e cadente suavidade
Do Músico feliz, que já houvera,
Cuja voz os Delfins render soubera!
Agora já dos versos esquecido,
Que alternaste contente, só lembrado
Da insuportável mágoa do sentido,
Tão entregue te vejo a teu cuidado,
Que já não soa o lírico instrumento:
Antes ali de um choupo corpulento,
Como se ele de tédio te servira,
Na tosca rama o vejo estar pendente.
E tu (ai triste!), como se ferira
Teu coração um íntimo acidente,
Confuso estás, pasmado, mudo, absorto,
E menos vivo ainda, do que morto!
Que tens, Pastor? A causa me declara,
Se da minha amizade enfim te fias;
De tão grande tristeza eu desejara
Dar-te todo o prazer; e se porfias
Em ir dobrando a dor, maior excesso
Tens na imaginação; eu te confesso
Que daqui não me aparto, enquanto a dura
Paixão, que te maltrata e te exaspera,
Me não matar também. Ouve; procura
Suavizar, Amigo, a pena fera;
Ou conta-me sequer: na mesma história
Que aviva a dor, diverte-se a memória.
SIL. Quem senão tu, Algano, quem pudera,
Senão tu, que os meus passos sempre alcanças,
Achar-me nesta soledade austera,
Onde me conduziu entre esperanças
De alívio não, mas sim, de cruel morte,
Do incerto fado o duvidoso norte!
Aqui estava eu só; e se podia
Haver algum prazer, que inda lograsse
Na desigual fortuna, eu te diria,
Sem que nisso o teu trato desprezasse,
Que nenhum outro fora, mas somente
Seria o estar só, e não ver gente.
Mas já que tu vieste, e pode tanto
Comigo a tua súplica, a corrente
Suspenderei um pouco ao largo pranto;
Enquanto rompo a dor que o peito sente,
Sabe, Pastor amigo, que me custa
Dizer-te a minha queixa: mas se é justa
Esta expressão, escuta o desafogo,
Que entre os largos espaços da saudade
Descobriu o martírio; e só te rogo,
Se alguma compaixão te persuade
Este horroroso, mísero progresso,
Culpa a causa, desculpa-me o excesso.
Querendo lisonjear-me por tais modos,
Tu mesmo a agravar vens a ferida.
Que importa ser geral a mágoa em todos,
Se em quem mais ama a pena é mais crescida!
Agrário, sim, de todos era amado;
Porém de mim foi quase idolatrado:
A qualquer hora, ou fosse noite, ou dia,
Nos vias sempre juntos: a freqüência,
O cuidado, o desvelo e a porfia
De um grande amor é certa conseqüência;
Se Agrário ao monte alguma vez faltava,
Também de Sílvio a ausência se notava.
Fosse de amor segredo, ou simpatia,
Que influi cada estrela na criatura,
Vi-o uma vez; e desde aquele dia
Larga amizade em nós se fez segura.
Podes de seu amor ter por certeza,
Que em mim quase venceu a natureza.
Um gênio me assistia solitário
Até então, de sorte que somente
O doce trato do fiel Agrário
Me fez comunicável entre a gente.
Entre todos vivi; mas ocupado
De Agrário era somente o meu cuidado.
Como não pode haver bem tão seguro
Que o não estrague a bárbara mudança,
No mar incerto do destino escuro,
Tornou-se horror a plácida bonança.
Interpôs-se uma ausência, com que abrindo
O caminho à saudade, consumindo
Esta constância foi, que me animava,
Que tu me louvas tanto: já de todo
Eu, que do fado nada receava,
A arrastar o seu carro me acomodo,
Prostrado já, desfeito e destruído
O templo, que à vaidade tinha erguido.
ALG. Bem vejo, Sílvio; a causa do tormento
É justa: eu sei, Amigo, que a amizade
Não se atreve a abrandar-te o sentimento,
E é ofensa o alívio, que persuade.
Mas se nos longes vês de uma esperança
O bem que choras, ó Pastor, descansa;
Que se a dita não pode estar segura,
O mesmo é a desgraça: igual Astréia
Ao peso da balança mede e apura
Tanto o que aflige, como o que recreia.
Aqui tens o instrumento; dá-me o gosto
De ouvir os versos, que aí tens composto.
SíL. Na casca deste tronco, onde feria
Mais livremente a ponta deste estilo,
Ao meu Agrário uns versos escrevia;
Duro tormento; e tu queres ouvi-lo!
Mui diferentes são do antigo estado;
É triste o estro; o gênio é magoado.
Não são os que Fileno me ensinava,
A louvar de Amarílis a divina
Beleza, que outro tempo me arrastava:
São porém os que a mágoa hoje me ensina
A lisonjear meu mal: mas se tu queres,
Ouve, que eu leio os tristes caracteres.
Caro Pastor ausente,
Que o teu retrato deixas na lembrança,
Por lograr-te presente,
Quem na memória mais tormento alcança,
Com que contentamento eu te asseguro
No centro d'alma o meu afeto puro!
Tão louca é, e tão cega
De amor a natureza, que sabendo
Que o alívio, a que se entrega,
O seu maior martírio está tecendo,
Gostoso o segue, e adorando o estrago
De ver que o logra, vive muito pago.
Qual aspid se afigura
A lembrança do ausente, que lhe assiste;
Pois entre a pompa escura,
Como entre a flor, o seu veneno triste
Se forja, se alimenta, se fabrica;
E em vez de alívio, morte comunica.
A morte, digo: oh! antes
O encurvado ferro separara
O alento; mas constantes
Os espíritos (pena inda mais rara!),
Como alegres, do mal atormentados,
Na mesma pena vivem obstinados.
Estes discursos forma
Não a razão (que toda está perdida);
A dor, que se conforma
Com a causa, trazendo repetida
A lembrança do bem, é que discorre;
E idéia de outro bem lhe não ocorre.
Contempla as prendas raras
De um Pastor, que na rústica palestra,
Tu, monte, assinalaras
Entre todos distinto, quando a destra
Barra jogava, ou quando mais ativo
Corria atrás de um tigre fugitivo.
Adverte o gênio belo,
Com que o geral agrado concilia,
Podendo ser modelo
De quantos dons a natureza cria:
Lembra-te do sonoro, acorde acento,
Com que entoava o métrico instrumento.
Porém onde me guia
A cansada memória, se conheço
Que está minha agonia
Na mesma frágua, onde os alívios peço!
Destrua-se a memória: acabe embora
Lembrança, que me aflige a toda a hora.
ALG. De teu canto foi tal a suavidade,
Que enchendo de prazer este arvoredo,
Tornou alegre a mesma soledade
Que estava de horror cheia, e mais de medo:
Moveu-se aquele tronco de piedade;
Abalou-se este rústico penedo;
Não será de teu mal o rigor tanto,
Que o não mova também teu doce canto.
SIL. Para lisonja de meu triste dano,
Essa expressão, bem vejo que retrata
Não teu conhecimento, amado Algano,
Mas teu amor, que tão fiel me trata.
Se as duras queixas de meu mal tirano
Ouvir tua atenção, cousa é tão grata,
O coração, que cheio está de pena,
Repetir outras mais inda me ordena.
ALG. Bem te quisera ouvir: mas estou vendo
Que já o pardo crepúsculo do dia,
Por entre as serras ásperas rompendo,
A luz espalha pela sombra fria.
Já o ferro do arado vem gemendo;
Os bois tornam à mísera porfia;
E todos os Pastores despertando,
Da pobre choça as portas vão cerrando.
SiL. Bem sinto que me dês tal novidade,
Porque eu vivo de sorte em meu tormento,
Que inda que despertasse a claridade,
Distinguir não pudera o luzimento.
Mas já que este sucesso te persuade
Que a sorte até me quarta o sentimento,
Por não lograr um bem, vamos: mas onde
O meu rebanho (ai mísero!) se esconde?
Não sei por onde pasta o triste gado,
Que eu ontem neste monte apascentava:
Tanto me arrebatou o meu cuidado,
Que nem de mim, nem dele me lembrava;
Vai tu, Algano; cerca deste lado,
Que eu vou bater aquela mata brava,
Onde o trilho é talvez mais perigoso.
Anda; busca o Bargado, e o Baroso.
ÉCLOGA XIV
ALCINO
Em região distante,
Aonde o Sol dourado
Mal os raios estende sobre os montes,
Em um sítio funesto e carregado,
Alcino, que de Tisne foi amante,
Dos olhos duas fontes
Derramava em seu líquido lamento,
Dura e precisa lei do seu tormento.
A rústica floresta
Apenas habitada
Era do rude gênio dos Pastores,
A quem a dope flauta desagrada,
A quem o baile, o jogo mais molesta.
Os suaves Amores
Não param a esputar Ninfas mimosas,
De adorno inculto, sem louvor, formosas.
Turvo e feio, um ribeiro
0 campo dividia
Por entre as penhas com medonho estrondo.
A vista se assustava, quando via
Baixar seu curso de um soberbo oiteiro,
Os troncos descompondo,
As profundas raízes arrancando,
Por onde a crespa enchente o vai levando.
Se os olhos levantava
Às altas serranias,
O peito de uma nuvem de tristeza
(Qual se vira da noite as sombras frias),
Ansioso em triste luto se ocupava:
E sempre a chama acesa
Da memória propunha o nem perdido,
Para maior verdugo do sentido.
Nesta cansada vida
Se achava aquele amante
Pastor, que já nas margens florescentes
Do Mondego guiara o gado errante,
Trocado o antigo nem na infausta lida
De fadigas veementes,
Transformando-se em pena aquele gosto,
Que em braços da ventura o teve posto.
A um penhasco, que os ares
Igualava na altura,
Uma tarde subia o pobre Alcino.
Ali, depois que a sua desventura
Chorando esteve em dons amargos mares,
Seu louco desatino
Rompe o silêncio gravemente mudo,
E para ouvi-lo suspendeu-se tudo:
Alegres praias, úmidas ribeiras
Do Mondego, que plácido discorre,
Que do olmo a copa em raias lisonjeiras
Com a sombra suavíssima socorre;
Vós, que pelas campinas mais grosseiras,
Que hoje o meu gado sei ventura corre,
Trocadas fostes, quando a inveja tinha
Postos os olhos na fortuna minha;
Mimosas águas, delicioso hospício
De Ninfas, que na espuma prateada
Fazendo estão gostoso desperdício
De uma beleza docemente amada;
Vós, que ouvis de Paleio e de Salício
A flauta brandamente temperada,
Quando um a rede estende, o outro colhe
Em seus currais o gado, que recolhe;
Dizei-me vós se acaso aquele pranto,
Com que estou a chorar esta saudade,
Tem tanto impulso, tem esforço tanto,
Que vos empenhe a conceber piedade.
Dizei-me vós se aquele amado encanto,
Que laço foi de minha fiel vontade,
Vive alegrando essa mimosa esfera,
Como no pampo faz a primavera.
Dizei-me se entre os rústicos Pastores
Na floresta o rebanho inda apascenta;
Se ainda ornada de vistosas flores
Ela entre todas mais gentil se ostenta;
Qual foi o emprego enfim de seus amores,
Quando o mísero Alcino se lamenta;
Alcino, queda sua formosura
Desterrado suspira sem ventura.
Dizei-me se inda cresce na beleza:
Porque, segundo meu cuidado via,
Cheguei a imaginar que a natureza
Mil perfeições lhe dava pada dia:
Vendo-a eu, muitas vezes a alma presa
Em tanta gentileza se sentia;
Crescendo a admiração, logo encontrava
Beleza, que de novo se admirava.
Dizei-me se ao cair da fresca tarde
Sai a gozar do vento que respira,
Quando o maior Planeta menos arde,
Quando aos currais o gado se retira.
Se do seu belo encanto faz alarde,
Sentada à sombra do álamo, onde ouvira
Muitas vezes os ecos de meu pranto,
Nas vozes sentidíssimas do canto.
Dizei-me se inclinando suavemente
Os ouvidos ao toque lisonjeiro,
De algum Pastor esputa a voz cadente,
Que o gado guia desde o crespo oiteiro.
Se alguma compaixão se lhe persente,
Girando os olhos, pomo no primeiro
Movimento do nosso amor ouvia,
Ou quando olhava, ou quando me atendia.
Porém vós vos calais: Ah! que a distância,
Ninfas do brando Rio, vos impede
Ouvir os tristes ecos de minha ânsia,
Que a mortal agonia tanto expede.
Sem dúvida a ruína da constância,
Que a mim me prometeu, Ninfas, vos pede
Este silêncio. Ah! quanto em uma ausência
Periga a mais segura persistência!
Mas se tanto em vós pode a lei sagrada
Do modesto decoro, e à singeleza
De vossos corações somente agrada
Encobrir as traições dessa beleza,
Minha alma, que nas fráguas abrasada
De tanto ardente amor suspira acesa,
Vingança clamará, dando o segredo
Ao bosque escuro, ao fúnebre arvoredo.
Aqui me esputará esta corrente,
Que despenhada os duros troncos banha:
Ouça-me este penhasco, aonde ausente
Me vejo a lamentar traição tamanha.
Tenha este Rio enfim sempre presente,
Presente sempre tenha esta montanha
De Tisbe ingrata a pérfida memória,
De Alcino amante a lastimosa história.
E aqui desta alta penha
(Que se remonta aos ares), de um amante
Sempre firme e constante,
A quem seu mal despenha,
Da mais infiel Pastora na mudança,
Se recomenda a mísera lembrança;
Sabei, ó rochas duras,
Que de quantas o Céu alenta e cria,
Tão belas pomo o dia,
Perfeitas criaturas,
Nenhuma é, do que Tisbe, mais formosa,
E nenhuma também mais aleivosa.
BELISA E AMARÍLIS
ÉCLOGA XV
Corebo e Palemo.
Cor. Agora, que do alto vem caindo
A noite aborrecida, e só gostosa
Para quem o seu mal está sentindo;
Repitamos um pouco a trabalhosa
Fadiga do passado; e neste assento
Gozemos desta sombra deleitosa.
O brando respirar do manso vento
Por entre as frescas ramas, a doçura
Dessa fonte, que move o passo lento;
A doce quietação dessa espessura,
O silêncio das aves, tudo, amigo,
Ouvir a nossa mágoa hoje procura.
Principia, Palemo; que eu contigo
À memória trarei, quanto deixamos
No sossego feliz do estado antigo.
Que esperas, caro amigo? Sós estamos:
Bem podemos falar: porque os extremos
De nossa dor só nós testemunhamos.
Pal. Não vi depois, que o monte discorremos,
Há tantos anos, sempre atrás do gado,
Noite tão clara, como a que hoje temos:
Mas muito estranho ser de teu agrado,
Que despertemos inda a cinza fria
Da lembrança do tempo já passado.
Oh! não sei, o que pedes: bom seria,
Que desse qualquer bem não cobre alento
O estrondo, que talvez adormecia.
Loucura é despertar no pensamento
O fogo extinto já de uma memória:
Não sabes, quanto é bárbaro o tormento.
Em nos lembrarmos da perdida glória
Nada mais conseguimos, que ao gemido
Dar novo impulso na passada história.
Não se desperte o mísero ruído;
Que veremos, amigo, o desengano
De um bem caduco, de um prazer fingido.
Cor. Debalde é a cautela; que o tirano,
Contínuo atormentar de uma lembrança
Não o pode abrandar o esforço humano.
Vê, como o teu ardor em vão se cansa;
E quanto mais te negas a meu rogo,
Despertas mais dos fados a mudança.
Buscar no esquecimento o desafogo
É não saber, que neste infausto empenho
Se ateia da memória mais o fogo.
Pal. Diga-o minha alma: porque nela tenho
Impressa sempre a imagem de uma dita,
Em que firmava o gesto o desempenho.
Recompensa uma dor quase infinita
A grandeza do bem; a minha história
Deixando em vivo sangue n'alma escrita.
Quero estragar mil vezes a memória,
Meu amado Corebo, e a cada instante
Torna mais viva a imagem de uma glória.
Oh tirana pensão de um peito amante!
Que só fora feliz, se a água bebera
(Quando perde o seu bem) do Lete errante;
Se na idéia pintada não trouxera
A contínua lembrança de um veneno,
Que Amor dissimulado oferecera.
Ah! Que soluço, amigo, estalo, e peno;
Quando me lembra a hora, em que o tirano
Fado roubou-me estado tão sereno.
Cor. Caminhas, ó Palemo, de teu dano
Como insensível: Vês, que não tem modo
Da funesta lembrança o golpe insano.
Pal. Bem me advertes, Corebo: eu me acomodo
Ao pensamento teu; e divertida
Fique a memória minha já de todo.
Cor. Ao cântico sonoro te convida
Esta flauta, que é fama em nós guardada,
Que foi de Alfeu um tempo possuída.
Pal. Eu a tomo, e com ela se te agrada,
Alterno o verso; e seja aquele, que antes
Cantamos lá na nossa retirada.
Cor. Se me lembra, assim era: Vinde, errantes
Sombras, a sufocar-nos: porque a inveja
É só fiscal dos míseros amantes.
Pal. Ficai, belas ovelhas: assim seja
Convosco mais propício o duro fado;
Que pastor mais feliz vos guie, e reja.
Cor. Aqui te deixo, rústico cajado;
Que algum tempo, apesar do empenho cego,
De ninguém, só de mim, foste logrado.
Pal. Tu, Amarílis, adorado emprego,
Toma conta de duas ovelhinhas,
Que mais que todas amo: eu tas entrego.
Cor. Verás, Belisa, entre essas prendas minhas,
Que eu teci junto às margens dessa fonte,
De vime desigual duas cestinhas.
Pal. De ti, que ficas pois, saudoso monte,
Me despeço; e talvez sem esperança
De tornar a ver mais este horizonte.
Cor. Ficai-vos em pacífica bonança,
Ó ninfas; que perdido o vosso agrado,
Me ausento a lamentar tanta mudança.
Pal. Adeus, pastores; vós, que em doce estado
Tantas vezes nos bailes, na floresta
Me vistes sempre alegre, e sossegado;
Cor. De vós me aparta agora a lei funesta;
E o tormento, a que esta alma está rendida,
Bem o meu sentimento manifesta.
Pal. Hei de trazer na idéia sempre unida
A imagem de Amarílis, que venero,
E que estimo inda mais, que a própria vida.
Cor. Alegria jamais nenhuma espero;
Antes nesta saudosa soledade,
Por último remédio, a morte quero.
Pal. Adeus, bela Amarílis; a vontade,
Por ser único bem, levo abrasada
Na chama inextinguível da saudade.
Cor. Adeus, Belisa; adeus, ninfa adorada:
Veja-se neste campo eternamente
A tua formosura celebrada.
Pal. Basta já de cantar: que do oriente
Já rompe o Sol vermelho; e o manso gado
Os balidos esforça de impaciente.
As nuvens vão correndo; e a este lado
O resplendor se vê, com que a Aurora
Vai escondendo o rosto magoado.
Das lágrimas saudosas com que chora
Se derrama o orvalho; aves, e plantas
Despertam, levantando a voz sonora.
Cor. Eu guiarei o gado se tu cantas:
Que prosseguindo tu, de meu tormento
O excesso ao menos, e o rigor quebrantas.
Não me negues, se podes, esse alento.
PESCADORES
ÉCLOGA XVI
Alicuto e Marino
Já vinha a manhã clara
Dourando os horizontes,
E os empinados montes
Com a rosada luz, que os prateara,
Mostravam na campina
O lírio, o goivo, a rosa, e a bonina.
Nas ondas cintilava
O rosto luminoso,
Com que de Cíntia o esposo
A pobre terra clara luz mandava,
Formando um transparente,
Na verde relva, resplendor luzente.
Ambos os pescadores,
Alicuto e Marino,
A quem o Deus Menino
Ateou na água o fogo dos amores,
As redes recolhiam;
E de bastante peixe o barco enchiam.
A praia procurando
Vinham tão mansamente,
Que nem o mar se sente
Ferido de um, e outro remo brando,
Quando do seu destino
Começou a queixar-se assim Marino.
Alicuto o acompanha
Coa sonora harmonia,
Que, há tempos, aprendia
De um pastor, que viera da montanha;
E a seu modo vertendo
Para a ninfa do mar, ia dizendo.
Mar. Se assim como a manhã clara, e brilhante
É da minha adorada o belo rosto,
Como naufraga o peito vacilante,
No incerto mar de um fúnebre desgosto!
Eu vejo, que se alegram neste instante
Cheios de glória, de prazer, e gosto,
Este mar, esta praia, esta ribeira:
Só não há cousa, que alegrar me queira.
Alic. Deiopéia adorada, a luz do dia,
Como funesta nasce a um desgraçado!
Quanto me foi suave a noite fria,
Tanto o rosto da Aurora me é pesado:
O silêncio da noite dirigia
O sossego também de meu cuidado;
E apenas foge o horror da sombra escura,
Quando mais viva toco a desventura.
Mar. Que importa, que em contínua sentinela
Eu ande os crespos mares descobrindo,
Se ingrata sempre a luz da minha estrela
Me vai desses teus olhos dividindo!
O vento, que suave entesa a vela,
A meu ligeiro barco a estrada abrindo,
Solícito me guia a esta praia;
Onde sem ver-te o coração desmaia.
Alic. Três dias há, que giro, amada minha,
Desesperado nesta mortal ânsia
De ver o prêmio, que guardado tinha
A meu peito fiel tua inconstância.
Outra ventura, outra mercê convinha,
De tanto amor, à fatigada instância
E quando o não mereça na verdade,
Quem há, que não te estranhe a falsidade!
Mar. Abrasadas as ondas deste pego
Tenho já com meus ais, com meus suspiros;
Ele me escuta; eu cada vez mais cego
Acuso a sem-razão de teus retiros.
De meus males ao passo, que o navego,
O peso sente, e se revolve em giros;
E até as brutas penhas mais pesadas
Estão de meu tormento magoadas.
Alic. Qual o peixe inocente, que enganado
Bebe no curvo anzol a morte feia,
Sem ver, que o pescador lhe tem armado
Escondida prisão, em que se enleia;
Ou qual o navegante, que enlevado
No canto está da pérfida sereia;
E prova sem cautela a morte dura
Entre os penhascos, onde o mar murmura.
Mar. Qual foge o grande monstro, que o mar cria,
Do arpão ferido, em sangue o mar banhando;
Quando cuida, que escapa à morte fria,
O alento pouco, e pouco vai deixando;
O destro pescador, que a presa fia
Do agudo ferro, a linha então largando,
Quando de todo já exangue o sente,
O barco chega, e o colhe mais contente.
Alic. Tal eu, doce inimiga, sem cautela
Adorava a traição de um falso engano,
Que no teu rosto, ó sempre ingrata, e bela.
Sonhe dissimular Amor tirano
Acreditando aquela indústria, aquela
Mal escondida imagem de meu dano,
Imaginei, que o que era aleivosia,
De um fino, e puro coração nascia.
Mar. Não de outra sorte a bárbara destreza
Dessa homicida mão, dessa alma ingrata,
Depois de assegurar minha firmeza,
De mim se ausenta, e com rigor me mata:
Ah! quanto temo, ninfa, que a fereza
De tua condição, que assim me trata,
Nestas ondas em penha convertida,
Pague o delito de roubar-me a vida!
Alic. De que serve, que eu traga do mar fundo,
A preço de fadiga tão pesada,
Esta, que em tal excesso estima o mundo,
Rama, que fora d'água é encarnada?
De que serve; que lá do mais profundo
Venha oferecer-te a pérola engraçada,
Se encontro sem-razões, iras, rigores?
Se os teus desprezos sempre são maiores?
Mar. Para trazer-te o peixe delicado,
No rio escondo as nassas, ninfa minha;
E ao levantar seu peso desejado,
Vejo saltar a truta e a tainha:
Não me fica também no mar salgado
O retorcido búzio, e a conchinha;
Que supondo ser cousa, que te agrade,
Tudo te vem render minha vontade.
Alic. Em pensamentos mil eu me desfaço,
Ao ver traição tão bárbara, e tão crua;
Rompo o vestido, o corpo despedaço
Quando me lembra a falsidade tua:
Loucuras mil, mil desatinos faço,
Sem pejo, e sem vergonha; em pele nua
Corro esta praia, giro esta ribeira;
E ninguém há, que socorrer me queira.
Mar. Mas que é isto, Alicuto? O nosso canto
Quase que vai passando a impaciência.
Alic. Que há de ser, se o meu mísero quebranto
Se apodera de mim com tal violência?
Mar. Mal haja o ter amor, que pode tanto.
Alic. Mal haja o conhecer uma inclemência.
Mar. Que intentar-lhe fugir é desatino.
Alic. Que assim o sinto eu, e tu, Marino.
Mar. Temos chegado ao porto: larga o remo;
Salta na praia tu; que eu aqui fico;
A ver, se vejo a ninfa, por quem gemo,
E a quem as minhas lágrimas dedico.
Alic. Não fiques não, Marino: porque temo
Maior mágoa; que a dor, que sacrifico.
Carreguemos o peixe; que na aldeia
Talvez estejam Glauce; e Deiopéia.
Assim se acomodavam; E o peixe dividindo
Entre ambos, vão subindo
Um levantado oiteiro, a que chegavam,
Deixando entanto posta
No barco a vara, a rede ao Sol exposta.
ÉCLOGA XVII
Lisi.
Laurênio e Lise
LAUR. Aqui tens, minha Lise, o teu vaqueiro,
Que vem pelo calor do Sol ardente,
A suspirar por ti o dia inteiro.
Com a glória, meu bem, de ter presente
A meus olhos a tua formosura,
Passo de pesaroso a estar contente.
Toda esta noite vi tua figura
Em uma sombra vã, que me fingia
A minha inconsolável desventura.
Só nisto fui feliz: porque te via
Tão branda, tão suave, como aquela
Que a natureza em outra convertia.
Abracei-te, Pastora; e tu, mais bela,
Mais compassiva, ouviste o meu lamento,
Tornando venturosa a minha estrela.
Lis. Bem puderas, Laurênio, desse intento
Desvanecer-te já; pois é sabido
Que não posso atender a teu tormento.
Tu conheces mui bem que em meu sentido
Só vive aquela lei, que me sujeita
A não ser livre, como tenho sido.
LAUR. Eu conheço: mas sei que n'alma aceita
Pode ser a fineza de um serrano,
Que adora uma Pastora tão perfeita.
Se entre os amantes teus é só Montano
O ditoso senhor de um tal tesouro,
De que anda entre nós outros tão ufano:
Soprou-lhe a sorte com melhor agouro,
Que o seu gado não foi de mais estima,
Nem o cajado seu de prata, ou ouro.
É um tosco vaqueiro, que de cima
Da serra aqui desceu: nós o alcançamos
Em tempo de Natércia, tua prima.
De bois uma só junta lhe contamos,
Quando entrou neste campo: triste, e pobre,
Aqui fez uma choça entre estes ramos.
Agora o seu rebanho os vales cobre:
Talvez que o fazer mal isso lhe desse,
E que co'alheio bem hoje os seus dobre.
Miserável daquele que os perdesse!
Que ele, só porque é rico, teve a dita
De que tão bela mão teu Pai lhe desse.
Oh! muitas vezes condição maldita
Esta, que fez no mundo diferença
Entre aquele que tem, ou necessita!
Lis. Laurênio, o meu decoro não dispensa
Nessa prática tua: a honestidade
Tem a mais leve sombra por ofensa.
Inda que o meu Pastor te não agrade,
Ou seja murmurada a minha sorte,
É sua esta minha alma, esta vontade.
A lei que me prendeu, somente a morte
A pode desatar: culpa o destino,
Que eu tenho sobre mim poder mais forte.
LAUR. Pois nem sequer, meu bem, meu desatino
Te chega a merecer uma esperança,
De ser pago algum dia amor tão fino?
Lis. Não emprendas de mim mais segurança
Que aquela que te dou: ao Céu protesto
Que em meu obrar não há de haver mudança.
E tu, se me não queres ser molesto,
Deixa de repetir-me essa loucura:
Pois viste o meu desgosto manifesto.
LAUR. Ó bárbara, ó cruel, ó ímpia, ó dura!
Que, em vez de agradecer-me, te conspiras
Contra uma alma que amar-te só procura.
Se quem te ama merece as tuas iras,
Quem pode estar seguro desses raios,
Que contra tantos mil, cruel, atiras?
Só quem não vê, nem morre nos ensaios
Do cego Deus de Amor. Tudo te adora:
Que em tudo influi Amor os seus desmaios.
Eu só (triste de mim!), eu só, Pastora,
Te adoro mais que todos: que Amor cego
Quis que eu dos tiros seus vítima fora.
Lá desde as verdes margens do Mondego,
Fez Amor que na lira eu me ensaiasse
Para cantar de ti, meu belo emprego.
Mas ah! tirano Amor! quem te arrancasse
Essas asas, com que teu vôo elevas?
Quem arco, aljava, e flechas te quebrasse!
Como é possível, Monstro, que te atrevas
A pôr teu pensamento em tanta altura,
Para cair depois no horror das trevas?
Que bem se diz que vens da massa dura
Do Ródope, ou do Mauro! Que bem creio
Ignoras, cego Amor, nossa brandura!
Tu me condenas a chorar sem freio
Por aquela que zomba do meu pranto;
Que farta o seu rigor do sangue alheio!
Lis. Ah! Não, Laurênio, não: não passe a tanto
Esse ingrato delírio: eu inda espero
Que tenha a tua dor algum quebranto.
Apouco apouco me entra o golpe fero
A traspassar esta alma; bem que ignoro
Se é piedade, se amor o que pondero.
Verei se sem ofensa do decoro
Posso achar algum modo de pagar-te
Esse suspiro teu, esse teu choro.
Em todo aquele alento, aquela parte,
Que da casta prisão se julgue isenta,
Eu prometo, Laurênio, de estimar-te.
ai: leva esta esperança, e te contenta.
ÉCLOGA XVIII
FRANCELIÇA
Menalca e Lícida
Lic. Queres, Menalca amigo, que sentados
Debaixo destes álamos um pouco
Entremos a cantar nossos cuidados?
MEN. E crês, Lícida meu, que sou tão louco,
Que me anime a fazer-te companhia
Ao som da minha flauta, que é tão rouco?
Se em outra idade, Amigo, eu o fazia,
Ou Francelisa a flauta me animava,
Ou desculpa nos anos merecia.
Líc. Enfada-me o teu modo: eu esperava
Achar-te, Amigo, menos enfadonho,
Lembrando do que um tempo em nós passava.
MEN. Queres que torne a entrar naquele sonho
Da néscia mocidade? Ah! que do inverno
Já um novo retrato em mim componho.
Imito já no branco ao cisne terno:
E daquelas vaidades longe o engano,
Com estas cãs maduras me governo.
Já fiz gala, já fiz alegre, e ufano,
Gosto de jogo e bailes: mas agora
Vivo só de escutar o desengano.
Lic. Estou pronto a ouvir-te; inda que fora
Importuno a meus anos, bem quisera
Ouvir de um velho a música sonora.
Canta o que te agradar; mas considera
Que me alegrara muito se os amores
Da tua Francelisa ouvir pudera.
MEN. Eu tomo a flauta; e tu, canta os louvores
Também da tua Nise, que algum dia
Foi adorado emprego dos Pastores.
Lic. Já esta alma os suspiros desafia:
Já entro a perguntar onde encontrar-te
Pode de meus clamores a porfia.
Nise? Nise? Meu bem? Ah! De qual arte
A flauta se afinava, que o lamento
Afável a meu rogo soube achar-te!
Este mesmo suavíssimo instrumento,
Este mesmo entoou aquele canto,
Que tanto foi de teu contentamento.
Na montanha se ouviu, com grande espanto,
A vez primeira que soou, nascida
A branda voz das fráguas de meu pranto.
MEN. Que direi eu também da despedida
Que fiz da minha cítara! Ao desprezo
Lançando-a já de todo aborrecida.
O peito, que de amor ardia aceso,
Acudia a emendar o que entoava
Em diversas paixões a um tempo preso.
Que busco, infausta lira?... já clamava.
Vem adorada lira... " de outro modo,
A mesma cantilena já trocava.
Líc. Ao vale, ao monte, ao bosque, ao campo todo,
Por Nise só pergunto...
MEN. Na mudança,
A meu martírio o cântico acomodo.
Lic. Entro na festa, baile, jogo, ou dança:
Se não vejo de Nise a gentileza,
Minha alma um só instante não descansa.
MEN. Tanto por Francelisa esta alma preza
Morrer depuro amor, que o vale, o monte
Assombrados deixou minha fineza.
Testemunha me seja aquela fonte,
Onde estive a chorar toda uma tarde,
Que não me apareceu ali defronte.
Líc. O incontrastável ímpeto com que arde
Este meu coração, diga-o Montano,
Que um dia me chamou fraco e cobarde.
Disse-me que não deve um peito humano
Render-se com tal força ao golpe indigno
Com que nas almas fere Amor tirano.
MEN. Foi o primeiro amor: tem o destino
De cada um forjado aquele laço,
Que obra a seu tempo com rigor maligno.
Pastoras desprezei; pouco embaraço
Achava numa e noutra; escarnecia
Daquele, que acusava a Amor escasso.
Líc. Vês tu, no despertar da Aurora fria,
O gosto com que os pássaros e as flores
Saúdam docemente o novo dia?
Assim, não de outra sorte, os meus ardores
Ao vê-la tão gentil a cada instante...
MEN. A cada instante crescem meus amores.
De um tronco sempre verde e vegetante
Sobre a cortiça dura, em um letreiro,
Ali gravado o nome...
Líc. O gado errante,
Perdido, e sem Pastor, sobre este oiteiro
Mil vezes o deixei: desta montanha
O sabe inda o mais rude pegureiro.
MEN. Não mais, Lícida; basta: é cousa estranha
Esta ânsia, que em mim vês; entende,
Amigo, Que está zombando assim quem te acompanha.
Líc. Tu zombas, quando eu choro?
MEN. Em vão prossigo,
Lembrando-me de um bem que é já passado:
Leve-o quem tudo o mais levou consigo.
Seja tua esta flauta; este cajado
Toma, Pastor, também; se esta alma queres,
Recebe-a; mas suporta o seu cuidado.
LÍC. Feliz Menalca, tu, no que proferes;
Se o tempo já te deve desenganos,
Que eu te acredite, Amigo, não esperes:
A Amor só vence a morte, não os anos.
Écloga XIX
VIDA NO CAMPO
Ó doce soledade!
Ó pátria do descanso
Da paz e da concórdia
Grosseira habitação, tosco palácio!
Quantos a meus delírios
Tu ditas desenganos,
Oráculos fazendo
Das árvores, dos troncos, dos penhascos!
Não fere os meus ouvidos
O estrondo cansado,
Que levanta a lisonja,
Junto aos pórticos d'ouro em régio Paço:
A macilenta inveja
Não derrama o contágio
Nas inocentes almas,
Que são de seu furor mísero estrago.
Dos olhos se retira
O objeto sempre ingrato
Dos que suspiram mudos,
Em vez do prêmio, as sem-razões do dano.
Aqui tem a virtude
Erguido o seu teatro,
E nas rústicas cenas
Aqui mostra a pobreza os aparatos.
As mal seguras canas
Que move o vento brando,
Da pobre rede tecem
Ao mísero Pastor o abrigo caro.
Colhida a tenra fruta
Vem de seu próprio ramo
A adornar a choupana,
Em vez dos altos capitéis dourados.
O sítio venturoso!
Quanto te invejo, quanto!
Ditoso quem possui
O suave prazer de teu descanso!
Se tu bem alcançaras,
Pastor, um bem tão raro,
Não cessara o teu culto
De consagrar obséquios ao teu fado.
Infeliz o que envolto
No tráfego inumano
Da aborrecida corte
Só vê da confusão o rosto infausto.
Imagina do amigo
Seguir os doces laços,
E a torpe aleivosia
Lhe abre o sepulcro onde buscou o amparo.
Se o valimento encontra,
Teme, com justo espanto,
Quanto é grande a subida,
Que o despenho também seja mais alto.
Não há fronte segura
Que enfim dissimulando
Não veja os seus afetos,
Como a flor entre os áspides ingratos.
Ah! mede, Pastor belo,
O bem que alcanças: tanto
Dar-te não pode a corte;
Só pode a soledade deste campo.
ÉGLOGA XX
LIRA
Aqui deste salgueiro
Pendente ficarás, ó lira minha!
Tu que foste primeiro,
Enquanto a Amor convinha,
Alívio de meus males,
Ferindo os montes, abalando os vales.
De todo já deixada,
Nem sequer nas imagens da memória
Vivirás retratada;
De tanta antiga glória,
Se consultada fores,
As delícias aponta nos horrores.
Será língua eloqüente
A mesma face macilenta: o rosto
De meu mal inclemente,
Pela voz do desgosto,
Com a muda harmonia
Poderá declarar minha agonia.
De Aracne o enredo escuro,
Em ti as débeis linhas estendendo,
Cubra teu centro impuro,
Que, acorde respondendo
Do verso as consonâncias,
Tantas vezes ouviu as minhas ânsias.
Gênio funesto inspire
Sempre em teu dano, e por maior tristeza
De ti não se retire
A fúnebre aspereza
Daquele horror maligno,
Que os passos acompanha a meu destino.
Ludíbrio sejas feio
De todos os Pastores deste monte:
O meu infausto enleio
Teu mudo gesto conte
De um triste e desgraçado
Tosco instrumento, inútil, desprezado.
E se lá quando o dia,
Desmaiando-se o Sol, ao mar se ausenta,
Lá na tarde sombria,
Lisarda, que se ostenta
Destes campos senhora,
Baixar acaso, dando inveja a Flora;
Seu vestígio dourado,
Mais belo do que os goivos e açucenas,
Se inclinar seu cuidado
A este centro de penas,
E aqui te achar pendente,
Triste lira, deixada e descontente;
Quando chegue curiosa,
Sem horror de te ver, ao tronco duro,
A Ninfa mais formosa,
Leia o epitáfio escuro,
Que em fúnebre letreiro
Guardará para sempre este salgueiro.
Breves vozes a história
Explicarão da minha desventura,
Quando empenhe a memória
Desta tão ímpia e dura
Beleza, em vão amada,
Em vão de meus extremos contrastada:
Aqui vivo (este o lema
Que no fúnebre tronco fique escrito)
Para que sempre gema
O tormento infinito
De perder uma ingrata,
Que perjura, e cruel me ofende, e mata.
EPISTOLA I
ALCINO A FILENO
A vós, Pastor distante,
Bem que presente sempre na lembrança,
Saúde envia Alcino, que a vingança
Da fortuna inconstante,
Do bárbaro destino,
Chora na própria terra peregrino.
Se a flauta mal cadente
Entoa agora o verso harmonioso,
Sabei, me comunica este saudoso
Influxo a dor veemente,
Não o gênio suave,
Que ouviste já no acento agudo, e grave.
Entorpeceu-se o canto,
E a Musa tristemente enrouquecida
Se viu, depois que a sorte desabrida
Trocou o doce encanto,
Das Ninfas do Mondego,
Pelo deste retiro inculto emprego.
Como presente vejo,
Fileno, para estrago da memória,
Aquele doce bem, que a maior glória
Formava a meu desejo!
Como na estampa grata
Da lembrança o perdido se retrata!
Pela margem frondosa
Desse, que corre, vagaroso rio,
Quantas vezes, Pastor, a calma, o frio
Vencemos na gostosa,
Alegre sociedade,
Que alentava do canto a suavidade!
Quantas vezes rompendo
Das claras águas a corrente fria,
Das Ninfas do Mondego a companhia
A ouvir se estava erguendo,
Por entre a espuma bela,
Que uma hora se desfaz, e outra congela!
Quantas vezes parava
A doce Filomena o triste acento,
E do álamo frondoso (enquanto o vento
As folhas meneava)
Os números ouvia,
Que a nossa acorde flauta repetia!
Que mudança importuna
Hoje diverso faz o gênio antigo!
Negando à Musa o generoso abrigo
Da plácida fortuna,
Porque habite uma estância,
Em que só vive a pena, a mágoa, a ânsia!
O gênio antes festivo,
Pronto no baile, jogo, e na floresta,
Quanto se oprime, quanto se molesta
Ao golpe executivo
Do fado, que tem posto
Tanto empenho em tecer o meu desgosto!
O seu giro, ó Fileno,
Não seja em vosso dano assim violento:
Discorra só no bem, no obséquio atento,
Porque no mais ameno
Campo, e entre os Pastores,
Vos consagre Amarílis seus amores.
Não erre o vosso gado,
Qual vaga o meu, sem dono: antes contente
Paste do campo a relva florescente.
O pomo sazonado
Colhei; e na floresta
Tende fortuna mais ditosa que esta.
E se no prado ou monte
Pastor vive, que guarde inda a memória
Da minha triste, lastimosa história,
Dizei-lhe vós que conte
O seu verso canoro
Meu caso triste no silvestre coro.
A minha tosca avena
Sempre há de respirar na atividade
Da, que me arde no peito, ímpia saudade:
E creio, à minha pena,
Se há de ver algum dia
Respirar estes bosques alegria.
FILENO A ALGANO
EPÍSTOLA II
Depois, Algano amado,
Que por mais verde, e plácido terreno,
Deixaste o sítio ameno,
Onde alegre pascia o manso gado,
Tomou minha saudade
Triste posse no horror da soledade.
De todos os pastores
Foi mui sentida a tua ausência dura:
Que o bem de uma ventura
Se se perde, inda os mesmos moradores
Da choça, que os abriga,
Sabem sentir: oh quanto a dor obriga!
Pouco importa a cultura,
E agudeza maior do pensamento:
Que a força do tormento
Sobre a mesma rudeza o estrago apura;
E quem melhor discorre,
É, quem buscando alívio, menos morre.
Talvez mais lisonjeia
Esta no meu pesar néscia jactância;
Por ser minha ignorância
Alimento, em que a mágoa mais se ateia:
Que a ser mais entendido,
Não fora o meu tormento tão crescido.
Não somente o efeito
De tão ingrato mal em nós sentimos;
Mas, se bem advertimos,
Tudo ao grande pesar ficou sujeito:
Que fez a ausência tua
A saudade em nós razão comua.
O rio, que algum dia
Líquida habitação das ninfas era,
A cor, que a primavera
Nestes frondosos álamos vestia,
Tudo perde o seu brio:
Não tem o álamo cor, ninfas o rio.
Não se ouvem já sonoras,
(Quando argüindo o adúltero condena),
Queixas da Filomena;
E até do tempo as carregadas horas
Correm mais dilatadas;
E parece, que a dor as faz pesadas.
É tudo horror; é tudo
Uma pálida imagem da tristeza.
Habita esta aspereza
O fúnebre silêncio, o assombro mudo:
Que tanto pode, tanto
De tua ausência o mísero quebranto.
Ah meu Algano caro,
Doce consolação do campo ameno!
O teu triste Fileno
Busca debalde alívio: que o reparo
Da saudade está posto
Na imagem só de teu alegre rosto:
Não só o seu alento,
Porém inda dos campos a alegria,
A clara luz do dia,
Das aves o canoro, e doce acento,
E quanto tem mudado
Da tua ausência o desumano estado.
Apressa, apressa o passo,
Com que hoje alegras as regiões do Tejo;
Rompe já o embaraço,
Que se interpõe à vista do desejo:
E possa alegre ver-te,
Algano meu, quem sabe merecer-te.
EPÍSTOLA III
DALISO A SALÍCIO
A vós, Pastor amado,
Que lá do pátrio rio
Nas frescas praias, úmidas ribeiras
(Qual debaixo de um álamo sombrio
Títiro, que abrasado
De Amarílis suspira), as lisonjeiras
Horas lograis, no métrico exercício,
Propício seja o fado, ou impropício;
Saúde vos deseja
E plácido descanso
Daliso, o Pastor triste, cujo emprego
É mal tocada lira e gado manso,
Que nem maligna inveja,
Nem êmula porfia em seu sossego
Altera, atravessando o bosque inculto,
Desde o monte frondoso ao vale oculto.
Aquela harmoniosa,
Nunca no bosque ouvida,
Cítara, que regia o vosso canto,
Com que ativo desejo me convida
À pena mais saudosa!
Se souberas, Salício amado, quanto
Me chega a arrebatar aquele acento,
Duvidareis vós mesmo do tormento.
Então vi sem mentira,
Ou fabuloso engano,
Possível o que Alfemo nos contava
Do amante, que do Averno desumano,
Ao som da acorde lira,
A já perdida esposa resgatava.
O vosso canto, Amigo, se quisera,
O mesmo inferno adormecer pudera.
Não duvidei que houvesse
Acento tão divino,
Que enternecendo o bárbaro pirata
Fiasse todo o bem do seu destino
A um Delfim, que pudesse,
Rompendo as ondas que esse mar desata,
Conduzir de Arion a amada vida,
Sobre os ombros, à praia apetecida.
Tudo possível cria;
Que aquele acorde acento,
Que arrebatando a idéia contemplava,
De vossa voz no doce movimento,
Dar ao mundo podia
Exemplos de prodígio: oh! qual rasgava
Nunca imitado canto o vento leve!
Como o Zéfiro a ouvi-lo se deteve!
Crede-me: eu, suspirando
Mil vezes a ventura
De ver-vos, a um Pastor dessa montanha
Perguntava por vós; e a doce cura
Do desejo buscando
Da notícia, que tinha em nada estranha,
Da que notei, feliz realidade,
Maior motivo achava à saudade
Quando verei, dizia,
Um Pastor tão amado,
Que no baile, na dança, na carreira,
Ou perseguindo a fera, sempre ao lado
Por companheiro via?
Oh! Queira o brando fado, a sorte queira
Que esta tão larga, tão cruel distância,
Não venha a perverter sua constância.
Hidrópico, meu peito
Sempre ver-vos suspira;
E por lisonja desta ausência dura,
Ao doce e acorde som da vossa lira,
Invoca o terno efeito.
Fazei que eu logre o bem desta ventura,
Enquanto fica com atento aviso,
Para servir-vos, o pastor Daliso.
EPÍSTOLA IV
MELISO A SALÍCIO
Ao duro tronco atado,
O Grego enganador da Ninfa bela,
Ouvindo o som daquela
Consonância do coro levantado,
Foge à ruína, teme o precipício.
Mas se o canto, Salício,
Que alternastes no verso harmonioso,
No golfo perigoso
Das úmidas Deidades se entoara,
Do acorde acento à suavidade rara,
Que alegre cederia
Ulisses aos encantos da harmonia!
Hidrópico, bebendo
A líquida corrente, nunca tanto
Se vê, com o quebranto
Do sol ardente, o gado que descendo
Vem de unia e outra parte da floresta.
Quanto se manifesta
Ansioso o meu desejo, achando agora
A lisonja sonora
Desse canto, Salício, que respira
Tão doce, que por mais que a alma ferira
O impulso harmonioso,
Sempre o meu peito suspirara ansioso.
Oh! ditoso salgueiro
Aquele, Pastor belo, em que pendente
A cítara cadente,
No silêncio me viu por derradeiro,
Enquanto choro a vossa ausência dura!
Quanto maior ventura
É ver da solitária sombra fria
A perdida alegria,
O gosto desmaiado expor brilhante,
Mais risonho esta vez o seu semblante,
Bem como a tenebrosa
Noite, que a luz do Sol faz mais formosa!
Do músico instrumento
O espírito té agora sufocado,
Bebeu mais esforçado
O que respira, harmonioso alento:
Deva-se tanto obséquio à saudade.
De Pã a Divindade,
Que uniu primeiro a cera à débil cana,
Nunca tão soberana
A voz ergueu; nem lá no Idálio monte,
Ao murmurar feliz do Xanto, a fonte
Respirou tão suave,
De Enone bela no tormento grave.
Só vós, Pastor querido,
As sombras desterrando da tristeza,
Podeis lograr a empresa
De sufocar os ecos do gemido,
Com tão acorde, sonoroso excesso!
A tanto bem confesso
Que do campo os prodígios celebrados
Serão mal comparados,
Inda quando a memória os eternize
Pelos troncos das faias, bem que avise
Um e outro letreiro
Qual o segundo foi, qual o primeiro.
Se pois é de Salício
Tão poderosa a voz; se a mão tão destra,
No jogo, na palestra,
Tem a glória maior; se no exercício
Do canto o verde louro ele consegue,
Salício não me negue,
Que desigual a competência fica,
Quando a seguir se aplica
Do mísero Meliso a mal pulsada
Cítara, que é somente acompanhada
De Faunos da espessura,
Não de branca Napéia, ou Ninfa pura.
Turva, e feia, a corrente
Deste ribeiro nosso não habita
Dríada, que repita
Em branda voz o número cadente:
Que tudo nele triste fez o fado.
Ditoso aquele estado
Em que, pobre pastor, me contentava
A terra, que lavrava,
O gado, que a pastar guiava errante
Desta montanha àquela: ah! que inconstante
Fortuna em mim figura
De Melibeu a triste desventura!
Mas eu cuido que vejo
Aquela carregada sombra feia,
De gosto, que recreia,
(Se não mo finge a imagem do desejo),
Ir a face vestindo já mais clara.
Oh! que mudança rara
Estou nesta ribeira contemplando!
Pouco e pouco dourando
Se vai o escuro vale, e o alto monte:
Nova chama ilumina este Horizonte.
Tanto gosto se deve
Do sonoro Salício ao canto leve.
Vivei, ó Pastor grato,
E o vosso campo eternamente seja
Dos Elísios inveja,
Ditosa cópia, plácido retrato
Daquele que o Pastor pisou de Anfriso:
E vivei para glória de Meliso.
EPÍSTOLA V
EURILO A ALCIDO
Recebo, Alcido amado,
O transunto feliz, o delicado,
Numeroso desenho
Do vosso belo, peregrino engenho.
Nele respira aquela suavidade
Com que outro tempo a délfica Deidade,
Pelas ribeiras do saudoso Anfriso,
Tornava todo o monte de improviso,
De Tebaida alegre, Chipre amena,
Centro da mágoa, habitação da pena.
A imagem da saudade retratada
Qual se descobre aos ecos animada
Da vossa acorde lira!
Ali geme, ali chora, ali suspira
O rosto macilento,
Reclinando com brando movimento
Já sobre a mão, já enxugando o pranto,
Que os olhos vertem com mortal quebranto.
Menos suave, menos elegante
Pintou o Português a frágua amante
Em que Vênus dispunha aos Lusitanos
A dourada lisonja dos enganos,
Quando aos olhos descobre a feliz Ilha,
Do mar d'Atlante oculta maravilha.
Mas que muito respire tão ativo
O fogo da saudade executivo,
Se da razão no intrínseco conceito
Bebe a força eficaz do agudo efeito!
É sempre menos dura
A pena, que na rústica cultura
Ao Pastor acompanha,
Na choça, no redil, que aquela estranha
Paixão que segue o cortesão polido,
Na civil sociedade introduzido.
Assim o vosso engenho agudo, e raro
Concebe em grande excesso o estrago avaro
Do saudoso tormento;
Dando-lhe tanto mais crescido alento
Que ao vigor do discurso, ponderada,
É em vós a saudade mais pesada.
Oh! se a guerra implacável que se acende
Por dentro de minha alma, e que se estende
Pelo campo espaçoso da lembrança
Pudera retratar-vos, que mudança
Tão contrária, tão fúnebre, tão dura
Em mim veríeis da fortuna escura!
Aquele aspecto afável da alegria,
Que o coração brotava, quando via
Presente em vós o bem que adora tanto,
Apenas pelas cláusulas do pranto,
Pelas sílabas mudas do gemido,
Hoje publica o fúnebre ruído,
Que ergue a dor nas imagens da memória,
Tentando em sombras a passada glória.
O confuso girar de meu cuidado
Encontro vivamente retratado
Em um baixel vagando, que sem norte
Guia com vária sorte
A onda impetuosa
No golfo Egeu, soprando a tormentosa
Fúria dos ventos, que na estranha guerra
O crespo Eolo no penhasco encerra.
Mas cesse de meu mal aquela ativa,
Tirana agitação, que se deriva
Do tormento fatal da vossa ausência;
Já parece desmaio esta violência,
Quando do vosso espírito suave
A bela produção canora e grave
Enche os ares de acorde melodia,
Que arrebata de todo a fantasia.
Dos nossos fiéis amigos, que a lembrança
Vossa com tão gostoso excesso alcança,
Testemunho a plausível recompensa,
Enviando-vos dum a cópia imensa
Desses de Apolo gratos desperdícios,
Doutro, intérpretes sendo os sacrifícios,
Que repete nas chamas da saudade
A vossa em tudo cândida amizade.
Mas desta, que deixaste tão saudosa
Ribeira em outro tempo venturosa,
Quando animada do sonoro acento
Do vosso acorde, harmônico instrumento,
Como é possível que eu traslade as vozes
Que entre os ais e suspiros mais velozes,
Me estão recomendando a cada instante
As lembranças do seu obséquio amante?
Ela me pede (que discreto rogo!)
Que aquele generoso, ardente fogo,
Em que por vós se abrasa, vos refira;
E que outra vez do vosso plectro e lira
(Por que a pena sufoque, extinga a ânsia)
O toque busque, empenhe a consonância.
Eu o suplico assim, meu caro Alcido,
E a vossos pés rendido
Ofereço a vontade, com que posso
Dizer que sou fiel amigo vosso.
EPISTOLA VI
SÍLVIO A ALGANO
Pedis-me, Algano, que do meu destino
O enredo peregrino
Vos conte, desde o dia em que, deixada
A pobre choça, a habitação amada,
Para tão triste mal, tão cruel guerra,
Deixei esta montanha, e aquela serra
Busquei, onde jamais o manso gado
Havia apascentado
Daliso nem Alfemo,
Pastores que nas prendas eu não temo
Que competir-lhes possa
Cousa alguma, a não ser a glória vossa.
Ai! quanto, caro Amigo,
Esta obediência custa! Mas se digo
Que me sufoca a voz o sentimento
De uma ardente paixão, o meu tormento
Só na vossa amizade,
Que a compaixão promete, a atrocidade
Moderar pode de um profundo dano,
Que no íntimo arcano
De meu aflito peito,
Não menos que o respeito,
Amor tem encerrado.
Este Monstro vendado,
Gigante, que sem pôr sobre a grandeza
De um monte o outro monte, a redondeza
Do Olimpo tem prostrado,
E ao soberano Jove despojado
Do raio fulminante;
Este estrago incessante,
A quem valor não basta, nem escudo,
Porque tudo destrói, e estraga tudo,
Sendo a sua impiedade
Verdugo infiel da pobre liberdade;
E o mísero alvedrio,
Perdida a glória, despojado o brio,
Serve de ornar com precipício infausto
De seu triunfante carro o ardente fausto;
Naquele dia, Algano, em que apartada
Do rebanho a melhor, a mais amada,
Branca, e tenra ovelhinha,
Solícito me tinha,
Levou-me o Monstro cego,
Desde as úmidas margens do Mondego,
Habitação gostosa,
Ou já pela corrente deliciosa,
Ou pela verde sombra dos salgueiros,
Por ásperos oiteiros
Levou-me o Monstro cego. Entenderias
A cada instante, Algano,
Vendo iminente o dano
E a face da ruína tão presente,
Que aquele escuro sítio era somente
Ou de enigmas depósito sombrio,
Ou túmulo fatal do sono frio.
Ali não florescia o lírio brando,
Nem ovelha pastando
Ali se divisava;
De estéril produção da pedra brava
A terra se cobria.
Um risco, e outro risco discorria
Assim o meu cuidado,
E Amor já tão ligado
A seu carro fatal me tinha, que, indo
A noite as asas sobre o monte abrindo,
Da sombra carregada
Nada me acobardava: porque nada
Poder tão raro tinha, e tão ativo,
Como de Amor o raio executivo.
Depois enfim que a Aurora
Foi acendendo a tocha brilhadora
Do luminoso Febo,
Diviso de Corebo
O campo dilatado;
Corebo, esse Pastor tão nomeado,
Não só pela riqueza,
Mas inda pela graça e gentileza
Das Ninfas e Pastoras,
De sítio tão feliz habitadoras.
Pelo prado e floresta,
Cada uma tão gentil se manifesta,
Que não há fresca rosa
Que possa competir-lhes por formosa.
Cobertas andam todas de um pelico
Mais cândido e mais rico
Que a pele de um arminho esbranquiçado:
Por um e outro lado
Tecem as flores belas,
Qual mostra o firmamento áureas estrelas.
Porém maior espanto
É ver o cajadinho, que com tanto
Capricho vão movendo;
Ora sobre ele tendo
A branca mão, ora encostando a face,
Em que Amor era força se abrasasse.
Ovelhas vêm guiando,
E em vário som cantando
Os míseros amores
De Ninfas e Pastores,
Que naquela floresta
Viu a sorte funesta,
Ou o soberbo fado,
Em venturoso, ou infeliz estado.
Não há Ninfa mimosa,
A quem de Amor a seta venenosa
Não penetrasse o peito.
De Corebo o respeito
A todas sufocava:
Cada uma o que sentia mais calava,
Porque o Pastor tirano,
Por zelo ou crueldade (ai! caro Algano!)
A todas tinha posto
Violenta escravidão na lei do gosto.
Daliso desterrado
Gemia a infausta pena de um cuidado,
Que para o sentimento
Vivo tem na memória o seu tormento;
Anfriso sem ventura
Suspirava a perdida formosura
Em cárcere cruel, que em dura pena
Corebo, o pastor bárbaro, lhe ordena,
Imaginando ser culpa, que infama,
Arder de Amor na venturosa chama.
Eu, que os exemplos via
De tanto estrago e tanta tirania,
Em Galatéia pondo o pensamento,
Adorava por glória o meu tormento.
Tão bela era a Pastora, que somente
Ela fazia o campo estar contente.
Nos seus olhos Amor depositava
Um veneno tão doce, que, se olhava,
Atrás do seu ligeiro movimento,
Levava os corações e o pensamento.
Porém já de meu peito terno e brando
A dor fera e cruel me está chamando
A que, Algano, vos conte
Os suspiros que ao céu, ao vale, ao monte,
Inutilmente dados,
Foram da ingrata Ninfa desprezados.
A ânsia continuava,
Prosseguia o gemido, não cessava
Meu excessivo pranto:
Mas a dispêndio tanto,
Compravam meus ardores
Ingratas sem-razões, duros rigores.
Um mês quase corria,
E esperanças de um dia, e outro dia
Guiavam meu desvelo
Atrás do seu rigor, só por vencê-lo.
Ah! quem vozes tivera,
Algano meu, que referir pudera
Qual foi o excesso então daquele dia,
Quando cedendo à força da porfia
De um coração, que entre rigores arde,
Intérpretes seus olhos numa tarde,
Fez de não sei que incógnita piedade,
Que recatava menos a vontade!
Desde então... mas que emprendo!
Logo Amor aleivoso um golpe horrendo
Contra mim fulminou, roubando a glória
De tão alta vitória:
De Corebo à notícia,
Fez que chegasse o júbilo, a delícia
Que provava minha alma. O Pastor fero,
Mais cruel, mais severo,
A pena repartindo
Entre dous corações, ao gesto lindo
Da Ninfa mais mimosa
Ordena uma tristeza rigorosa;
E a mim, por maior pena,
Um desterro duríssimo me ordena.
Deixei-a desmaiada,
Triste, desconsolada,
Seu riso convertido em vivo pranto:
E eu (triste de mim!) martírio tanto
Suporto neste fúnebre retiro,
Que a meus ais, a meu pranto, a meu suspiro,
Enterneço os rochedos,
Movo as feras, os troncos e os penedos.
Quem me dissera, Algano,
Que o fado desumano,
Fingindo-se propício,
Me encaminhava a tanto precipício!
E já que foi tão duro,
Que com rosto perjuro
Me pôde conceder um breve instante
De alegria, e de gosto ao peito amante,
Que causa teve o fado
Para me não levar trás meu cuidado,
Conspirando a fereza
De Corebo cruel contra a firmeza
De minha adoração, deixando afável
Do golpe inexorável
Da Parca enfurecida,
Extinto o meu amor na minha vida?
Mas ah! Que em não matar-me,
O fado mais cruel se quis mostrar-me:
Assim mais se acredita
A fúria que meu peito debilita:
Pois louco e delirante
Vivo sempre em tormento. Astro inconstante,
Maligno, desigual, sempre em meu dano
(Ai, caríssimo Algano!) Ordenará que eu seja
Vítima do rigor, e mais da inveja.
L I S E
ROMANCE I
Pescadores do Mondego,
Que girais por essa praia,
Se vós enganais o peixe,
Também Lise vos engana.
Vós ambos sois pescadores;
Mas com diferença tanta,
Vós ao peixe armais com redes,
Ela co'olhos vos arma.
Vós rompeis o mar undoso:
Para assegurar a caça;
Ela aqui no porto espera,
Para lograr a filada.
Vós dissimulais o enredo,
Fingindo no anzol a traça;
Ela vos expõe patentes
As redes, com que vos mata.
Vós perdeis a noite, e dia
Em contínua vigilância;
Ela em um só breve instante
Consegue a presa mais alta.
Guardai-vos, pois, pescadores,
Dos olhos dessa tirana;
Que para troféus de Lise
Despojos de Alcemo bastam.
Enquanto as ondas ligeiras
Desta corrente tão clara
Inundarem mansamente
Estes álamos, que banham;
Eu espero, que a memória
O conserve nestas águas,
Por padrão dos desenganos,
Por triunfo de uma ingrata.
E na frondosa ribeira
Deste rio, triste a alma
Girará sempre avisando,
Quem lhe soube ser tão falsa.
ANTANDRA
ROMANCE II
Pastora do branco arminho,
Não me sejas tão ingrata:
Que quem veste de inocente,
Não se emprega em matar almas.
Deixa o gado, que conduzes;
Não o guies à montanha:
Porque em poder de uma fera,
Não pode haver segurança.
Mas ah! Que o teu privilégio,
É louco, quem não repara:
Pois suavizando o martírio,
Obrigas mais, do que matas.
Eu fugirei; eu, pastora,
Tomarei somente as armas;
E hão de conspirar comigo
Todo o campo, toda a praia.
Tenras ovelhas,
Fugi de Antandra;
Que é flor fingida,
Que áspides cria, que venenos guarda.
ALTÉIA
ROMANCE III
Aquele pastor amante,
Que nas úmidas ribeiras
Deste cristalino rio
Guiava as brancas ovelhas;
Aquele, que muitas vezes
Afinando a doce avena,
Parou as ligeiras águas,
Moveu as bárbaras penhas;
Sobre uma rocha sentado
Caladamente se queixa:
Que para formar as vozes,
Teme, que o ar as perceba.
Os olhos levanta, e busca
Desde o tosco assento aquela
Distância, aonde, discorro,
Que tem a origem da pena:
E depois que esmorecidos
Da dor os olhos, na imensa
Explicação do tormento,
Sufocada a luz, se cegam;
Só às lágrimas recorre,
Deixando-se ouvir apenas
Daquelas árvores mudas,
Daquela mimosa relva!
Com torpe aborrecimento
A companhia despreza
Dos pastores, e das ninfas;
Nada quer; tudo o molesta.
Erguido sabre o penhasco
Já vê, se é grande a eminência:
Por que busque o fim da vida,
Na violência de uma queda.
Já louco se precipita;
E já se suspende: a mesma
Apetência do tormento
Maior tormento lhe ordena.
Pastores, vêde a Daliso;
Vede o estado qual seja
De um pastor, que em outro tempo
Glória destes montes era:
Vêde, como sem cuidado
Pastar pelos montes deixa
As ovelhas oferecidas
As iras de qualquer fera.
Vêde, como desta rama,
Que fúnebre está, suspensa
Deixou a lira, que há pouco,
Pulsava pela floresta.
Vêde, como já não gosta
Da barra, dança, e carreira;
E ao pastoril exercício
De todo já se rebela.
Segundo o volto, que neste
Rústico penedo ostenta,
Cuido, que o fizeram louco Desprezos da bela Altéia.
A N A R D A
ROMANCE IV
Aonde levas, pastora,
Essas tenras ovelhinhas?
Que para seu mal lhes basta
O seres tu, quem as guia.
Acaso vão para o vale,
Ou para a serra vizinha?
Vão acaso para o monte,
Que lá mais distante fica?
Vão porventura, pastora,
A beber as cristalinas,
Doces águas, que discorrem
Por entre estas verdes silvas?
Ah! Quem sabe, triste gado,
Onde a maior homicida
Dos corações, e das almas,
Convosco agora caminha!
Presumir, que cuidadosa
Vos conduz à serra altiva,
Imaginar, que à ribeira
Vos vai levando propícia;
Não o posso, não o posso;
Quando a conjetura avisa,
Que mal as ovelhas guarda;
Quem as almas traz perdidas.
Porém se a vossa ventura
De mais nobre se acredita,
Se podeis vencer de Anarda . . .
A condição sempre esquiva;
Ela vos conduza: os passos
Segui da minha inimiga;
Enquanto para cantá-la
Meu instrumento se afina.
Mais que Títiro suave,
Aqui sentado à sombria
Copa desta verde faia,
Chorarei as penas minhas.
Farei, com que soe o bosque
A seu nome: esta campina,
Vereis, como só de Anarda
A doce glória respira;
Essas árvores, e troncos
Concorrendo à harmonia
Do meu canto, Orfeu nos vales,
Cuidarão, que ressuscita.
Eu repetirei contente
A cantilena, que tinha
Com Alcimedon composto,
Quando no monte vivia.
Direi aquelas cadências,
Que à casca de uma cortiça
Encomendou meu cuidado,
De meu sangue com a tinta.
Pastora (se bem me lembra
Assim meu verso dizia),
Mais branca, que a mesma nove,
Mais bela, do que a bonina;
Eu sou, quem estas ribeiras,
Sou, quem estes campos pisa,
Atrás de uma alma, que roubas,
Tão presa, como rendida.
Não te peco, que ma entregues:
Porque quem ta sacrifica,
De meu voluntário culto
Faz ostentação mais fina:
Quero só, que ma não deixes,
Que a não desampares; inda
Quando de Letes saudoso
Vires a margem sombria.
Mais seguro, e mais constante,
Que aquela mimosa ninfa,
Que no côncavo das penhas,
Por lei do destino, habita.
Eco serei destas rochas,
Aonde os clamores firam
Dos corações, que se queixam,
Das almas, que se lastimam.
Assim, cândidas ovelhas,
Assim clamarei: sozinhas
Correi embora contentes
O vale, o monte, a campina.
À LIRA DESPREZO
Que busco, infausta lira,
Que busco no teu canto,
Se ao mal, que cresce tanto,
Alívio me não dás?
A alma, que suspira,
Já foge de escutar-te:
Que tu também és parte
De meu saudoso mal.
II
Tu foste (eu não o nego)
Tu foste em outra idade
Aquela suavidade,
Que Amor soube adorar;
De meu perdido emprego
Tu foste o engano amado:
Deixou-me o meu cuidado;
Também te hei de deixar.
III
Ah! De minha ânsia ardente
Perdeste o caro império:
Que já noutro hemisfério
Me vejo respirar.
O peito já não sente
Aquele ardor antigo:
Porque outro norte sigo,
Que fino amor me dá.
IV
Amei-te (eu o confesso)
E fosse noite, ou dia,
Jamais tua harmonia
Me viste abandonar.
Qualquer penoso excesso,
Que atormentasse esta alma,
A teu obséquio em calma
Eu pude serenar.
V
Ah! Quantas vezes, quantas
Do sono despertando,
Doce instrumento brando,
Te pude temperar!
Só tu (disse) me encantas;
Tu só, belo instrumento,
Tu és o meu alento;
Tu o meu bem serás.
VI
Vai-te; que já não quero,
Que devas a meu peito
Aquele doce efeito,
Que me deveste já.
Contigo já mais fero
Só trato de quebrar-te:
Também hás de ter parte
No estrago de meu mal.
VII
Não saberás desta alma
Segredos, que sabias,
Naqueles doces dias,
Que Amor soube alentar.
Se aquela ingrata calma
Foi só tormenta escura,
Na minha desventura
Também naufragarás.
VIII
Nise, que a cada instante
Teu números ouvia,
Ou fosse noite, ou dia,
Jamais não te ouvirá.
Cansado o peito amante
Somente ao desengano
O culto soberano
Pretende tributar.
IX
De todo enfim deixada
No horror deste arvoredo,
Em ti seu tosco enredo Aracne tecerá.
Em paz se fique a amada,
Por quem teu canto inspiras;
E tu, que a paz me tiras,
Também te fica em paz.
A LIRA PALINÓDIA
Vem, adorada Lira,
Inspira-me o teu canto:
Só tu a impulso tanto
Todo o prazer me dás.
Já a alma não suspira;
Pois chega a escutar-te:
De todo, ou já em parte
Vai-se ausentando o mal.
II
Não cuides, que te nego
Tributos de outra idade:
A tua suavidade
Eu sei inda adorar;
Desse perdido emprego
Eu busco o encanto amado;
Amando o meu cuidado,
Jamais te hei de deixar.
III
Vê, de meu fogo ardente,
Qual é o ativo império:
Que em todo este hemisfério
Se atende respirar.
O coração, que sente
Aquele incêndio antigo,
No mesmo mal, que sigo,
Todo o favor me dá.
IV
Se tanto bem confesso,
Ou seja noite, ou dia,
Jamais essa harmonia
Espero abandonar.
Não há de a tanto excesso,
Não há de, não, minha alma
Desta amorosa calma
Meus olhos serenar.
V
Ah! Quantas ânsias, quantas
Agora despertando,
A teu impulso brando
Eu venho a temperar!
No gosto, em que me encantas,
Suavíssimo instrumento,
Em ti só busco o alento;
Que eterno me serás.
VI
Contigo partir quero
As mágoas de meu peito;
Quanto diverso efeito,
Do que provaste já!
Não cuides, que sou fero;
Porque já quis quebrar-te:
No meu delírio em parte
Desculpa tem meu mal.
VII
Se tu só de minha alma
O caro amor sabias,
Contigo só meus dias
Eterno hei de alentar.
Bem que ameace a calma
Fatal tormenta escura,
Da minha desventura
Jamais naufragarás.
VIII
Clamar a cada instante
O nome, que me ouvia,
Ou seja noite, ou dia,
O bosque me ouvirá.
Bem, que a meu culto amante
Resista o desengano,
O voto soberano
Te espero tributar.
IX
Não temas, que deixada
Te ocupe este arvoredo,
Onde meu triste enredo
O fado tecerá;
Conhece, ó Lira amada,
O afeto, que me inspiras;
Na mesma paz, que tiras
Me dás a melhor paz.
FILENO A NISE
Despedida de
Glauceste Satúrnio
Pastor Árcade, Romano, Ultramarino
I
Adeus, ídolo amado
Adeus, que o meu destino
Me leva peregrino
A não te ver jamais.
Sei que é tormento ingrato,
Deixar teu fino trato:
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
II
Tu ficas; eu me ausento;
E nesta despedida,
Se não se acaba a vida,
É só por mais penar.
De tanto mal, e tanto
Alívio é só o pranto:
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
III
Quantas memórias, quantas,
Agora despertando,
Me vêm acompanhando,
Por mais me atormentar!
Faria o esquecimento
Menor o meu tormento:
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
IV
Girando esta montanha,
Os sítios estou vendo,
Aonde Amor tecendo
Seu doce enredo está.
Aqui me ocorre a fonte,
Ali me lembra o monte:
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
V
Sentado junto ao rio,
Me lembro, fiel Pastora,
Daquela feliz hora,
Que n'alma impressa está.
Que triste eu tinha estado,
Ao ver teu rosto irado!
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
VI
De Fílis, de Lisarda,
Aqui entre desvelos,
Me pede amantes zelos
A causa de meu mal.
Alegre o seu semblante
Se muda a cada instante:
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
VII
Aqui colhendo flores,
Mimosa a Ninfa cara,
Um ramo me prepara,
Talvez por me agradar.
Anarda ali se agasta,
Daliso aqui se afasta:
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
VIII
Tudo isto na memória
(Oh! bárbara crueldade!),
À força da saudade,
Amor me pinta já.
Rendido desfaleço
De tanta dor no excesso:
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
IX
O mais, que aumenta a mágoa,
É ter sempre o receio
De que outro amado enleio
Teu peito encontrará.
Amante nos teus braços,
Quem sabe, se outros laços...
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
X
Por onde quer que gires,
Desta alma, que te adora,
Ah! lembra-te, Pastora,
Que já te soube amar.
Verás em meu tormento
Perpétuo sentimento:
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
XI
Lá desde o meu desterro,
Verás que esta corrente
Te vem fazer presente
A ânsia de meu mal.
Verás que em meu retiro
Só gemo, só suspiro:
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
XII
As Ninfas que se escondem
Lá dentro do seu seio,
De meu querido enleio
O nome hão de escutar.
No bem desta lembrança,
Alívio a alma alcança:
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
XIII
Ah! Deva-te meu pranto,
Em tão fatal delírio,
Que pagues meu martírio
Em prêmio de amor tal.
Mereça um mal sem cura
Lograr esta ventura:
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
XIV
E se por fim, Pastora,
Duvidas de minha ânsia,
Se em ti não há constância,
Minha alma o vingará.
Farei que o Céu se abrande
Aos ais de uma ânsia grande:
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
XV
Terás em minha pena,
Com passo vigilante,
A minha sombra errante,
Sem nunca te deixar.
Terás... Ah! belo emprego!
Não temas; eu sossego:
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
NISE A FILENO
Resposta de
Eureste Fenício
Pastor Árcade, Romano, Ultramarino
I
Em vão, Fileno amado,
Acusas teu destino,
Se foges peregrino,
Por me não ver jamais.
Viste-me, falso, ingrato,
Presa a teu doce trato:
E tu, que assim me viste,
Partiste
A respirar!
II
Dizias: "eu me ausento".
Foi esta a despedida,
Que toda a minha vida
Me há de fazer penar.
Entre martírio tanto
Eu me desfiz em pranto:
E tu, que assim me viste,
Partiste
A respirar!
III
Oh! quantas vezes, quantas,
Do sono despertando,
Te vou acompanhando,
Por não me atormentar!
Não há esquecimento,
Que abrande o meu tormento:
E tu, que assim me viste,
Partiste
A respirar!
IV
No prado e na montanha,
Saudosa hoje estou vendo
O engano, que tecendo
A minha idéia está.
Baixei contigo à fonte;
Subi contigo ao monte:
E tu, que assim me viste,
Partiste
A respirar!
V
Ao som do manso rio,
Nise, fiel Pastora,
Chorando a toda hora
A tua ausência está.
Que triste eu tinha estado,
Ao ver teu rosto irado!
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
VI
Nem Fílis, nem Lisarda,
Que foram teus desvelos,
Me podem já dar zelos,
Nem já me fazem mal.
Só teu cruel semblante
Me lembra a cada instante:
E tu, que assim me viste,
Partiste
A respirar!
VII
Fileno as belas flores
A Nise amada, e cara,
Já agora não prepara;
Já não quer agradar.
Comigo Amor se agasta;
O meu Pastor se afasta:
E tu, que assim me viste,
Partiste
A respirar!
VIII
Conservo na memória
A tua crueldade;
Nem sei como a saudade
Me não tem morta já.
Mas ah! que desfaleço,
Chorando em tal excesso:
E tu, que assim me viste,
Partiste
A respirar!
IX
Crescendo a minha mágoa,
Se aumenta o meu receio,
Que entregue a novo enleio
Talvez te encontrará.
Que vezes nos meu braços
Eu te formei os laços!
E tu, que assim me viste,
Partiste
A respirar!
X
Por mais que ausente gires
De Nise, que te adora,
Não hás de achar Pastora
Que mais te saiba amar.
Vê bem a que tormento
Me obriga o sentimento:
E tu, que assim me viste,
Partiste
A respirar!
XI
Aqui posta em desterro,
Ao som desta corrente,
Sempre terei presente
A causa de meu mal.
E tu nesse retiro
Desprezas meu suspiro:
E tu, que assim me viste,
Partiste
A respirar!
XII
Até de mim se escondem
As Ninfas no seu seio;
Pois teu fingido enleio
Não querem escutar.
No bem desta lembrança,
Alívio a alma alcança:
Mas quando é que tu viste
Um triste
Respirar!
XIII
Conheço que o meu pranto
Passou a ser delírio:
Pois meu cruel martírio
Chega a extremo tal.
Mas como há de ter cura,
Quem nasce sem ventura!
E tu, que assim me viste,
Partiste
A respirar!
XIV
Talvez outra Pastora,
Zombando de tua ânsia,
Da falta de constância
Em ti me vingará.
Malfeito que se abrande,
Vendo rigor tão grande:
E tu, que assim me viste,
Partiste
A respirar!
XV
Verás na minha pena,
Que sempre vigilante,
Por todo o campo errante,
Jamais te hei de deixar.
E tu... ah! louco emprego
De quem não tem sossego!
E tu, que assim me viste,
Partiste
A respirar!
CANZONETTE
IL PASTORE A NICE
Canzonetta di
Glauceste Saturnio
Pastore Arcade, Romano, Ultramarino
I
Dove, mia Nice, dove,
Dove trovarti spero
Nel lido, a cui straniero
Mi trasse ingrato Amor!
Chiedendo ai tronchi, ai sassi,
In vano io volgo i passi:
E solo sento (o Dio!)
Che perdo anch'io
Il cor.
II
Il fior veggo nel prato;
E negli affanni miei,
Ah! Quest', io dico (o Dei!),
Nice sarà talor.
Le tue pupille belle,
Credo che son le stelle:
E solo sento (o Dio!)
Che perdo anch'io
Il cor.
NICE A IL PASTORE
Risposta di
Ninfeo Callidità
Pastore Arcade, Romano, Ultramarino
I
Addio, Pastor. Ma dove
Così longent ti spero;
Se fuor di me straniero
Tu vai fuggendo amor!
Addio. Io piango ai sassi,
Men sordi, che i tuoi passi.
Ah! Che nel dirti addio,
Già non è mio
Il cor!
II
Al bosco, al monte, al prato,
Spargo i sospiri miei;
E in vano spargo (o Dei!)
I miei sospir talor.
Veggo le sfere belle;
Non veggo le mie stelle:
Ah! che nel dirti addio,
Già non è mio
Il cor!
III
Del monte alla foresta
Mal cieco Amor mi guida,
Dove più dolce arrida
Il Cielo al mio dolor.
Vola di pianta in pianta
L'augel, che scherza, e canta:
E solo sento (o Dio!)
Che perdo anch'io
Il cor.
IV
Nel mio sospiro amante
Altro il dolor non dice,
Che dove, dov'è Nice,
Che non la trovo ancor!
Eco, ch'il sasso asconde,
Per lei nepur risponde:
E solo sento (o Dio!)
Che perdo anch'io
Il cor.
V
Tutto per me s'oscura,
La terra, il mare, il Cielo,
Il sangue è freddo gelo;
Tutto mi fà terror.
Nessuno a dolor tanto
Sa trattenermi'l pianto:
E solo sento (o Dio!)
Che perdo anch'io
Il cor.
VI
Il tenero mio voto
Grato, mio ben, ti sia:
Tu puoi col alma mia
Far più superbo Amor.
III
La greggia alla foresta
Non guido, né mi guida;
Nepure il fiore arrida:
Che tutto ha il mio dolor.
Mustia si fé la pianta;
Mai più l'auge) non canta:
Ah! che nel dirti addio,
Già non è mio
Il cor!
IV
Torna, spietato amante,
Torna: mal il cor mi dice,
Che tu lasciasti Nice,
Che te scordasti ancor.
Perchè, crudel t'ascondi?
Perchè non mi rispondi?
Ah! che nel dirti addio,
Già non è mio
Il cor!
V
Non temo l'onda oscura,
Non temo il mare, il Cielo:
Per te, mio ben, mi gelo;
Per te sento terror.
Vedi che a dolor tanto
Mi sto sfogando in pianto:
Ah! che nel dirti addio,
Già non è mio
Il cor!
VI
Non olvidar quel voto;
Presente ognor ti sia:
Ah! Si. Dell'alma mia
Tu fosti'l solo amor.
Tu puoi... ma sudo in vano
Nel culto, in cui m'affanno:
E solo sento (o Dio!)
Che perdo anch'io
Il cor.
VII
Or mi rammento, o cara,
Di quel felice stato,
Che dolce, innamorato,
M'accolse il tuo favor.
Di tanti beni, e tanti
Or nascono i miei pianti: E solo sento (o Dio!)
Che perdo anch'io
Il cor.
VIII
Chi sa, qual altro amante,
Chi sa, qual più felice,
Della mia bella Nice
S'accenda allo splendor!
Dei miei crudi sospetti
Non veggo i mesti oggetti:
E solo sento (o Dio!)
Che perdo anch'io
Il cor.
IX
Chi sa dove s'annida,
Nel mar, nel cielo, o terra!
Chi sa dove se serra
Quel candido tesor!
Per lei (crudel tormento!)
Per lei morir mi sento:
E solo sento (o Dio!)
Che perdo anch'io
Il cor.
Tu fosti... io fuggo in vano
Il duolo, in cui m'affanno:
Ah! Che nel dirti addio,
Già non è mio
Il cor!
VII
Non olvidar che cara
Ti fui nel dolce stato,
Che fido, innamorato,
T'accolse il mio favor.
Di tanti amori, e tanti,
Son premio questi pianti:
Ah! che nel dirti addio,
Già non è mio
Il cor!
VIII
Chi sa, tiranno amante,
Se alla rival felice,
L'abbandonata Nice
Invidia il suo splendor!
Chi sa, se i miei sospetti
Tardano i cari oggetti!
Ah! che nel dirti addio,
Già non é mio
Il cor!
IX
Farò, se pur s'annida
L'indegna in Cielo, o in terra,
Se il mio tesoro serra,
Mi renda il mio tesor.
Farò... crudel tormento,
Per cui morir mi sento!
Farò... ma come (o Dio!)
Se non è mio
Il cor!
NICE A IL PASTORE
Risposta di
Ninfejo Calistide
Pastore Arcade, Romano, Ultramarino
I
Addio, Pastor. Ma dove
Cosi lontan ti spero;
Se fuor di me straniero
Tu vai fuggindo amor!
Addio. Io piango ai sassi,
Men sordi, che i tuoi passi.
Ah! Che nel dirti addio,
Già non è mio
Il cor!
II
Al bosco, al monte, al prato,
Spargo i sospiri miei;
E in vano spargo (o Dei!)
I miei sospir talor.
Veggo le sfere belle;
Non veggo le mie stelle:
Ah! che nel dirti addio,
Già non è mio
Il cor!
III
Del monte alla foresta
Mal cieco Amor mi guida,
Dove più dolce arrida
Il Cielo al mio dolor.
Vola di pianta in pianta
L'augel, che scherza, e canta:
E solo sento (o Dio!)
Che perdo anch'io
Il cor.
IV
Nel mio sospiro amante
Altro il dolor non dice,
Che dove, dov'è Nice,
Che non la trovo ancor!
Eco, ch'il sasso asconde,
Per lei nepur risponde:
E solo sento (o Dio!)
Che perdo anch'io
Il cor.
V
Tutto per me s'oscura,
La terra, il mare, il Cielo,
Il sangue è freddo gelo;
Tutto mi fà terror.
Nessuno a dolor tanto
Sa trattenermi'l pianto:
E solo sento (o Dio!)
Che perdo an ch'io
Il cor.
VI
Il tenero mio voto
Grato, mio ben, ti sia:
Tu puoi col alma mia
Far più superbo Amor.
III
La greggia alla foresta
Non guido, né mi guida;
Nepure il flore arrida:
Che tutto ha il mio dolor.
Mustia si fé la pianta;
Mai più l'augel non canta:
Ah! che nel dirti addio,
Già non è mio
Il cor!
IV
Torna, spietato amante,
Torna: mal il cor mi dice,
Che tu lasciasti Nice,
Che te scordasti ancor.
Perchè, crudel t'ascondi?
Perchè non mi rispondi?
Ah! che nel dirti addio,
Già non è mio
Il cor!
V
Non temo l'onda oscura,
Non temo il mare, il Cielo:
Per te, mio ben, mi gelo;
Per te sento terror.
Vedi che a dolor tanto
Mi sto sfogando in pianto:
Ah! che nel dirti addio,
Già non è mio
Il cor!
VI
Non olvidar quel voto;
Presente ognor ti sia:
Ah! Si. Dell'alma mia
Tu fosti'l solo amor.
Tu puoi... ma sudo in vano
Nel culto, in cui m'affanno:
E solo sento (o Dio!)
Che perdo anch'io
Il cor.
VII
Or mi rammento, o cara,
Di quel felice stato,
Che dolce, innamorato,
M'accolse il tuo favor.
Di tanti beni, e tanti
Or nascono i miei pianti:
E solo sento (o Dio!)
Che perdo anch'io
Il cor.
VIII
Chi sa, quai altro amante,
Chi sa, quai più felice,
Della mia bella Nice
S'accenda allo splendor!
Dei miei crudi sospetti
Non veggo i mesti oggetti:
E solo sento (o Dio!)
Che perdo anch'io
Il cor.
IX
Chi sa dove s'annida,
Nel mar, nel cielo, o terra!
Chi sa dove se serra
Quel candido tesor!
Per lei (crudel tormento!)
Per lei morir mi sento:
E solo sento (o Dio!)
Che perdo anch'io
Il cor.
Tu fosti... io fuggo in vano
Il duolo, in cui m'affanno:
Ah! Che nel dirti addio,
Già non è mio
Il cor!
VII
Non olvidar che cara
Ti fui nel dolce stato,
Clic fado, innamorato,
T'accolse il mio favor.
Di tanti amori, e tanti,
Son premio questi pianti:
Ah! che nel dirti addio,
Già non è mio
Il cor!
VIII
Chi sa, tiranno amante,
Se alla rival felice,
L'abbandonata Nice
Invidia il suo splendor!
Chi sa, se i miei sospetti
Tardano i cari oggetti!
Ah! che nel dirti addio,
Già non é mio
Il cor!
IX
Farò, se pur s'annida
L'indegna in Cielo, o in terra,
Se il mio tesoro serra,
Mi renda il mio tesor.
Farò... crudel tormento,
Per cui morir mi sento!
Fard... ma corne (o Dio!)
Se non è mio
Il cor!
NICE
I
Ah ch'io mi sento
D'Amor ferito!
Non sono ardito,
Parlar non so.
Mi vinse Amore
Crudo, tiranno;
Per questo affanno
Valor non ho.
Nice crudele,
Tu sei l'ardore
Ch'inspira Amore
Entro il mio cor.
II
Lascia ch'io solo,
Nel mio martire,
Vada a morire
Senza pietà.
Amor lo chiede,
Chiedelo il mio
Crudel desio
Di più penar.
Tu non sai, Nice,
Qual sia il vanto,
Che nel mio pianto
Amor mi dà.
III
Folle chi crede
Trovar fermezza
Nella crudezza
D'una beltà.
Or da sé scaccia,
Or a sé chiama,
Altro non brama,
Che'l variar.
Lo so per prova:
Tu, Nice bella,
Tu sol sei quella
Ch'instrutto m'ha.
IV
Ombra onorata
Della mia face,
Lasciami in pace,
S'ai pur pietà.
Io riconosco
Il tuo sembiante:
Ei pur amante
Nell'alma sta.
Ah quai m'accusi!
Qual mi condanni!
Mi fan gl'affanni Già delirar.
O PASTOR DIVINO
CANTATA I
Fé. Esperança.
Fé. Onde, Enigma adorado,
Onde guias perplexo,
Confuso, e pensativo
Da minha idéia o vacilante curso?
Esp. Que sombras, que portentos
Encobres a meus olhos,
Ó ignorado arcano,
Que lá dessa distancia
Inspiras de teu raio esforço ativo?
Fé. Eu vejo, que rompendo
Da noite o manto escuro
Vem cintilando a chama,
Que sobre o mundo todo a luz derrama.
Esp. Eu vejo, que do Oriente
A luminosa estrela,
Que os passos encaminha,
Quase a buscar a terra se avizinha.
Coro
Chegai, pastores,
Vinde contentes;
Que o novo sol Já resplandece.
Oh que glória, que dita, que gosto
Nestes campos se vê respirar!
Fé. É esta a flor mimosa,
Que da Vara bendita,
Venturosa, jucunda,
Da raiz de Jessé brota fecunda!
Esp. É este o pastor belo,
Que o rebanho espalhado
Vem acaso buscar!
É este aquele,
Que por montes, e vales
Conduz a tenra ovelha,
E mais que a própria vida,
Ama o rebanho seu!
É este aquele,
Que as ovelhas conhece e a seu preceito
Obedecendo belas,
Também o seu Pastor conhecem elas!
Fé. Eu o tinha alcançado,
De enigmáticas sombras na figura,
Unigênito Filho
Do Eterno Criador.
O Filho amado
De Abrão o testifica;
Esp. Jacó o compreende,
Abel o explica.
Ambas. Brandas ninfas, que no centro
Habitais dessa corrente,
Vinde ao novo sol nascente
Vosso obséquio tributar.
Fé. Já do monte descendo
Vem o pobre pastor: de brancas flores,
Ou já grinaldas, ou coroas tece,
E ao novo Deus contente as oferece.
Esp. Já de lírios, e rosas,
Pela glória, que alcança,
Animada a Esperança se coroa;
E alegres hinos de prazer entoa.
Coro
Chegai, pastores,
Vinde contentes;
Que o novo sol Já resplandece.
Oh que glória, que dita, que gosto
Nestes campos se vê respirar!
Fé. Aquele tenro,
Cordeiro amado,
Sacrificado Por nosso amor,
Esp. Sobre seus ombros
Conduz aceso
O duro peso Do pecador.
Fé. Nascido infante
Ao mundo aflito
Nosso delito Paga em amor.
Esp. Oh recompensa
Do bem perdido!
Oh do gemido
Prêmio maior!
Ambas. Vem, Pastor belo;
Vem a meus braços;
Vem; que teus passos
Seguindo vou.
Fé. Mas ah! Que de prazer, e de alegria
Respirar posso apenas. Todo o campo
Florescente se vê. Estão cobertos
Os claros horizontes
De nova luz, de novo sol os montes.
Esp. Melhor luz não espere
Ver o mundo jamais.
Concorram todos
A este luminoso
Assento; aonde habita
Aquele sol, que a vida ressuscita.
Fé. Vem, sol peregrino, De nós suspirado;
Esp. Vem, Filho adorado De Deus imortal.
Coro
Chegai, pastores,
Vinde contentes;
Que o novo sol
Já resplandece.
Oh que glória, que dita, que gosto
Nestes campos se vê respirar!
CANTATA II
LA SS. VERGINE
Oh degli Astri, e del Ciel Regina Augusta!
Tu, ch'al mondo cadente
La salute portasti, ed il sacrato,
Antidoto felice della colpa,
Nel tuo seno di grazie il più fecondo;
Tu, che donasti al mondo
Quell'adorato Figlio,
Che a pro di noi vesti l'umana spoglia;
Quello, che vendicò l'infausta doglia,
Che l'inesperto Adamo
Comune a noi senza ristoro piange,
Tu sei quella, ch'io chiamo,
Bella Madre d'Amor, ma d'Amor degno,
De si gran Madre venturoso pegno.
Io t'adoro, io t'amo, o cara,
Sacra Vergine, ch 'il Cielo
Dona a noi, involta in velo,
Di Colomba, che innocente
L'ali spiega, al Ciel s'en va.
Cosi dolce, amante Sposo
Le sue braccia apre in un giorno:
Vieni, dice, o mio soggiorno,
Tu, che porti ogni beltà.
GALATÉIA
CANTATA III
Galatéia, Acis.
Ácis. Galatéia adorada,
Mais cândida e mais bela,
Que a neve congelada,
Que a clara luz da matutina estrela;
Mais, do que o Sol, formosa;
Não digo lírio já, não digo rosa.
Gal. Ácis idolatrado,
Pastor mais peregrino,
Que quanto ostenta o prado,
Quanto banha d'Aurora o humor divino;
Pois junto às tuas cores
Não tem o prado cor, não têm as flores.
Ácis. Ácis é, quem saudoso
Corre desta ribeira
Todo o campo espaçoso,
Buscando, ó bela Ninfa, a lisonjeira,
Doce vista, que tanto
De Amor ateia o suspirado encanto.
Gal. Desde o azul império,
Que rege o áureo Tridente,
Por todo este hemisfério,
Galatéia te busca impaciente;
E amante nos seus braços
Te prepara de amor gostosos laços.
Ácis. Vem ouvir-me um instante;
Que em mim tudo é ternura.
Do bárbaro Gigante
Não temas, não a pálida figura:
Que o tem seu triste fado,
Tanto como infeliz, desenganado.
Vem, ó Ninfa ditosa,
Vem, vem;
Que em ti Amor guarda
Todo o meu bem.
Gal. Oh! Firam teus ouvidos
Meus saudosos clamores;
Mereçam meus gemidos
Mover a sem-razão dos teus rigores;
Já que tão docemente
Sempre ao meu coração estás presente.
Vem, ó Pastor querido,
Vem, vem;
Que em ti Amor guarda
Todo o meu bem.
CANTATA IV
LISE
Sobre a Cantata antecedente
Na sorte, Lise amada,
Do misero Gigante,
Que triste de meu fado se traslada
O fúnebre semblante!
Ao ver a copia do Ciclope infausto,
Respiram de meu peito iguais ardores.
Os zelosos furores
Que dentro n'alma sinto,
Como em lâmina triste escrevo, e pinto.
Zeloso ele, e eu zeloso,
Ambos sentimos um igual extremo.
Mais ai! fado aleivoso!
Que infeliz, inda mais que Polifemo,
Me queixo. Ele a ocasiâo de seu ciúme
Sufoca, estraga, desalenta, e mata;
E eu de uma alma ingrata
Sinto o desprezo, e nâo extingo o lume,
Pois sempre desprezado,
Vivo aflito, infeliz, desesperado.
Se em mim, pois, se em Polifemo
Influiu a mesma estrela,
Aqui tens, ô Lise bela,
Uma côpia de meu mal.
Mas ai! Lise! Quanto sinto!
Bem que nesta copia o pinto,
Nada iguala o original!
CANTATA V
NISE
Não vejas, Nise Amada,
A tua gentileza
No cristal dessa fonte. Ela te engana:
Pois retrata o suave,
E encobre o rigoroso. Os olhos belos
Volta, volta a meu peito:
Verâs, tirana, em mil pedaços feito
Gemer um coração; verás uma alma
Ansiosa suspirar; verás um rosto
Cheio de pena, cheio de desgosto.
Observa bem, contempla
Toda a mísera estampa. Retratada
Em uma cópia viva
Verás distinta, e pura,
Nise cruel, a tua formosura.
Não te engane, bela Nise,
O cristal da fonte amena;
Que essa fonte é mui serena,
É mui brando esse cristal.
Se assim como vês teu rosto,
Viras, Nise, os seus efeitos,
Pode ser que em nossos peitos
O tormento fosse igual.
CANTATA VI
PALEMO E LISE
Epitalâmica
Oh! quanto, Lise! oh! quanto!
Quanto alentam teus olhos
Ao mísero Palemo! Já três dias
O mar anda girando. Em tua ausência,
Saudoso, tem movido as bravas ondas.
Aos peixes tem chegado
O clamor de seus ais. Ah! Se tu viras,
Qual foi o seu lamento,
Não foras mais cruel que o mar, que o vento.
Eu o vi ( não te engano)
Sem acordo entregar o frágil barco
Ao arbítrio das ondas. Poucos passos
De uma rocha fatal já se apartava,
A morrer se apressava,
Quando eu, que no seu rumo ia seguindo,
Palemo? (lhe gritei) olha, Palemo:
Desvia dessa penha a vela, o remo.
Mas fosse providência, acaso fosse,
A outra parte a onda
O seu barco voltou. Já perguntado
Me torna o Pastor caro: Eu entendia
Que a penha, em que Nicandro me falava,
Era Lise somente, que eu buscava
Lise, a rocha desumana,
Lise, o bem, que tanto adora;
Por quem vivo, por quem choro,
Por quem ando a suspirar.
Ah! Se corro a morrer nela,
Venha a bárbara ferida,
Que esta morte só é vida,
Porque é Lise quem a dá.
Mas não é isto engano! O infausto agouro
De todo se apartou. Tornou-se em calma
O mar tempestuoso; o vento irado
Já suave respira; esta ribeira
De alegria se veste; um doce encanto
Nos álamos, nos freixos,
Que estão fazendo sombra as verdes ondas,
Comunica a harmonia
Dos pássaros que cantam. Que gostosa
Meneia as brandas folhas
A aura lisonjeira! Dentre as ramas,
Ah! como fere o raio sobre as águas,
Tornando prateadas
As cristalinas veias! Finge a sombra
Outro bosque nas ondas, e parece
Que outras aves no mar em competência
Formando estão suavíssima cadência.
E que alegre entretanto
Esta praia se vê! Que grande cópia
De redes se derrama! Em cada parte
Se senta um Pescador; bailes, e jogos
Se atendem na ribeira; ao doce aviso
Das vizinhas Aldeias
Vem o povo chegando. É grande o dia;
Grande anúncio é de gosto. Mas que muito,
Se neste feliz dia
De Lise, e de Palemo
Se premeia a virtude! Um terno laço
Ao Pescador amante
A Ninfa delicada
Neste dia assegura. Ah! queira o Fado,
Propício queira o Céu
A chama fecundar deste himeneu.
Forme das almas belas
Amor o seu tesouro;
E com as setas douro
Se veja triunfar.
De pérolas tributo
Lhe renda a fértil onda;
O mar lhe não esconda
A rama do coral.
Protesta o Autor que somente por adorno da Poesia usou das palavras Deuses, Numes, Divindades, Agouros etc e outras expressões dissonantes aos dogmas da Santa Madre Igreja de Roma: o que tudo sujeita a sua correção, como verdadeiro Católico etc.
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
* Nas Reais Núpcias dos Sereníssimos Príncipes, a Senhora D. Maria, Princesa do Brasil, e o Senhor Infante D. Pedro.
* Aos anos d’El-Rei.
a Nanque erit ille mihi semper Deus: illius aram / Saepe tener nostrisab ovilibus imbuet agnus.
b Et durae quercus sudabunt roscida mella.
c Teque adeo decus hoc aevi, te consule, inibit / Pollio, ut incipient magni procedere menses.
d Omnis feret omnia tellus.
e Dicite, Pierides: non omnia possumus omnes.
* Ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Conde de Valadares, partindo de Lisboa para Vila Rica, a capital das Minas Gerais.
* À morte do Senhor José Gomes de Araújo, Desembargador do Porto, que morreu nos sertões do Rio das Velhas, no emprego de Provedor da Fazenda Real da Capitania das Minas Gerais.