Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Obras Poéticas de Glauceste Satúrnio, de Cláudio Manuel da Costa


Edição de Referência:

A Poesia dos Inconfidentes, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1996.

Obras

De CLÁUDIO MANUEL DA COSTA, Árcade Ultramarino, chamado Glauceste Satúrnio, oferecidas ao Ilmo e Exmo Sr. D. JOSÉ LUIZ DE MENEZES ABRANCHES CASTELO BRANCO, Conde de Valadares, Comendador das Comendas de S. João da Castanheira, S. Julião de Montenegro, Sta. Maria de Viade e Sta. Maria de Locores, da Ordem de Cristo, Governador e Capitão General da Capitania das Minas Gerais etc. etc. etc.

Primus ego in Patriam mecum, modo vita supersit,

Aonio rediens deducam vértice Musas.

VIRGÍLIO, Geórgicas

Carta Dedicatória

Prólogo ao Leitor

Sonetos

Epicédio I

Epicédio II

Epicédio III

Romance

Fábula do Ribeirão do Carmo

Éclogas

Epístolas

Romances

Cançonetas

Canzonette

Cantatas

Protestação

Carta Dedicatória

ILmo E EXmo SR.,

Não é a vaidade de honrar os meus escritos o que me obriga a escrever na frente deles o grande nome de V. Excelência; nem é o empenho de prevenir a mordacidade dos críticos o que me anima a buscar tão supe­rior Mecenas. Persuado-me, com o parecer do Sulmonense, que, se a causa por sua natureza não é boa, se faz pior com o patrocínio: e pouco me devem as produções inúteis da minha ociosidade, na qual perdi ape­nas as breves horas que pude respirar de uma vida séria. A obrigação, Senhor, e o afeto são os dous fortíssimos e únicos estímulos, que promovem à presença de V. Excelência o meu estéril obséquio. Produzir ao público esta confissão é toda a minha glória.

Não se engane o mundo, se para formar o elogio de V. Excelência espera que eu entre a desenvolver a dilatada série da sua Genealogia. Eu sei que largo campo me pudera oferecer uma Ascendência que, honrando a duas Monarquias, interessou no seu sangue os Senhores Reis D. Fernando em Portugal, e D. Henrique Segundo em Castela. Depois desta ponderação, pouco importará o dizer-se que ela se tem enlaçado com as primeiras casas do Reino. Pouco importará o contar na sua Varonia os títulos e brasões de Noronha, Cascais, Vila Real, Linhares, Bragança, Monsanto, Portalegre, Caminha, Alvito, Povolide, Abranches, Ilha do Príncipe, Óbidos, Angeja e Alegrete. Bastaria apontar que a memória de tão esclarecidos Progenitores foi condecorada em dous de junho de mil setecentos e dous, na Pessoa do Senhor D. Miguel Luiz de Menezes, com o título de Conde de Valadares, título, de que V. Excelência, para honra de Portugal, é o quinto, felicíssimo e legítimo sucessor.

Eu rendo uma profunda veneração a tão ilustre Família, mas deixo esta lembrança, porque V. Excelência tão bem a deixa. Estimando por casualidade a fortuna do berço, nós o vemos fundar a maior nobreza nas ventagens do seu espírito. Virtuoso, liberal, sábio e magnífico, maior pelos merecimentos pessoais do que pelos títulos que tem, nós vemos que os Pobres o amam como seu Pai; os Políticos o atendem como seu Mestre, e os Grandes o respeitam como seu Modelo. Lisboa, enfim, e todo o Portugal publicam as suas virtudes.

Quem não admira o perfeito zelo com que V. Excelência busca em todas as cousas a honra de Deus, a glória do Rei, e o bem dos Vassalos! Quem não louva aquela generosa piedade, com que edifica os Povos, aquela prudência ilustrada, com que regula as ações, e aquela bondade natural, com que se faz universalmente amável! A quem não arrebata o gênio vasto, que brilha em V. Excelência, a penetração viva e delicada, com que tudo compreende, e a ciência dilatada, com que profundou os sistemas da moral mais sã, e da melhor política! Estas são as qualidades que formam o caráter de uma alma grande; e estas são as que distinguem um Herói do resto dos mais homens.

O SENHOR D. JOSÉ, O PRIMEIRO, digno deste nome, e digno de reinar pelos séculos, querendo mostrar a estimação que faz de um Vassalo tão distinto, confiou de V. Excelência o governo das Minas Gerais, da minha pátria, da Capitania mais importante, pois, enfim, é a mais rica.

Oh! E quantas lágrimas não atropelou V. Excelência na ocasião de deixar a Europa! Que suspiros não custou a Lisboa a inveja nobre de ver transportar-se para o Brasil o objeto maior das suas esperanças! O espaço breve de vinte e dous anos, que V. Excelência apenas contava, tinha enchido as gentes de tanta expectação, como pudera fazer recomendáveis os últimos dias de qualquer Grande. A benevolência, a piedade e a inteireza qualificavam à preciosa índole de V. Excelência, não menos no serviço do Rei, que no zelo da Religião.

Ainda, Senhor, ainda se ouvem os suspiros do Hospital, onde V. Ex­celência, com o emprego de Mordomo-Mor, eternizou a sua virtude. As provas da caridade, que acabou ali de exercitar, foram tão dignas de ad­miração, quanto maiores de todo o crédito e próprias só do seu grandio­so ânimo. Eu mesmo, eu mesmo estou vendo ainda o desordenado tro­pel de pobres, de doentes e de aflitos, que forcejavam por demorar os passos ao seu Benfeitor. Qual se desfazia em prantos! Qual com os ais embaraçava a despedida! Qual mostrando as chagas àquela mão, que as costumava curar, queria com esta lembrança atrair a compaixão! E V. Excelência cheio de bondade, e cheio de espírito, consolando a uns, be­neficiando a outros, abraçando a todos, com amor, com zelo, com pie­dade, despedindo-se, partindo, voltando... Que é o que faço! Insensivel­mente cheguei a enternecer o coração do meu Herói. Bastou uma leve imagem de ternura para abalar as suas entranhas. Eu cedo já, Senhor, eu cedo. Reserve-se à posteridade o estender o nome de V. Excelência e o eco das suas ações. Eu teria uma grande satisfação de ajuntar a minha pena a esta fama.

Felizes os habitadores das Minas! Felizes os Vassalos d'El Rei Fidelís­simo! Feliz a minha Pátria, e feliz eu, que da prudente conduta de um tão grande General devemos auspicar a nós mesmos um governo suavíssimo!

Feliz eu mil vezes que, devendo a V. Excelência a honra de consentir que passem as minhas obras debaixo da sua proteção, tenho a glória de con­fessar com o mais profundo respeito que sou

De V. Excelência

Súdito obrigadíssimo,

Cláudio Manuel da Costa

Prólogo ao Leitor

SE NÃO FOR MUITA A TUA MALDADE, sempre hás de confessar que algum agradecimento se deve a um Engenho, que desde os sertões da Capitania das Minas Gerais aspira a brindar-te com o pequeno obséquio destas Obras. Conheço que só entre as delícias do Pindo se podem nutrir aqueles espíritos, que desde o berço se destinaram a tratar as Musas: e talvez nesta certeza imaginou o Poeta desterrado que as Cícladas do mar Egeu se tinham admirado de que ele pudesse compor entre os horrores das embravecidas ondas.

Não permitiu o Céu que alguns influxos, que devi às águas do Mondego, se prosperassem por muito tempo: e destinado a buscar a Pátria, que por espaço de cinco anos havia deixado, aqui entre a grossaria dos seus gênios, que menos pudera eu fazer que entregar-me ao ócio, e sepultar-me na ignorância! Que menos, do que abandonar as fingidas Ninfas destes rios e no centro deles adorar a preciosidade daqueles metais, que têm atraído a este clima os corações de toda a Europa! Não são estas as venturosas praias da Arcádia, onde o som das águas inspirava a harmonia dos versos. Turva, e feia, a corrente destes ribeiros, primeiro que arrebate as idéias de um Poeta, deixa ponderar a ambiciosa fadiga de minerar a terra, que lhes tem pervertido as cores.

A desconsolação de não poder substabelecer aqui as delícias do Tejo, do Lima e do Mondego" me fez entorpecer o engenho dentro do meu berço, mas nada bastou para deixar de confessar a seu respeito a maior paixão. Esta me persuadiu invocar muitas vezes e a escrever a Fábula do Ribeirão do Carmo, rio o mais rico desta Capitania, que corre e dava o nome à Cidade Mariana, minha pátria, quando era Vila.

Bem creio que te não faltará que censurar nas minhas Obras, principalmente nas Pastoris onde, preocupado da comua opinião, te não há de agradar a elegância de que são ornadas. Sem te apartares deste mesmo volume, encontrarás alguns lugares que te darão a conhecer como talvez me não é estranho o estilo simples, e que sei avaliar as melhores passagens de Teócrito, Virgílio, Sanazaro e dos nossos Miranda, Bernardes, Lobo, Camões etc. Pudera desculpar-me, dizendo que o gênio me fez propender mais para o sublime: mas, temendo que ainda neste me condenes o muito uso das metáforas, bastará, para te satisfazer, o lembrar-te que a maior parte destas Obras foram compostas ou em Coimbra, ou pouco depois, nos meus primeiros anos, tempo em que Portugal apenas principiava a melhorar de gosto nas belas letras. letras. A lição dos Gregos, Franceses e Italianos, sim, me fizeram conhecer a diferença sensível dos nossos estudos dos e dos primeiros Mestres da Poesia. É infelicidade que haja de confessar que vejo e aprovo o melhor, mas sigo o contrário na execução.

Contra esta obstinação não há argumento: e sendo empresa dificultosa acomodar semelhante gênero de iguaria ao paladar de todos (porque uns o têm muito entorpecido, e outros demasiadamente delicado) contentar-me-ei com que nestas Obras haja alguma cousa que te agrade, ainda que uma grande parte te desgoste. A experiência do contrário me fará condenar o teu gênio, ou de indiscreto, se tudo aprovas, ou de invejoso se nada louvas.

AD LECTOREM

EPIGR.

Ipse sibi plaudat Naso, plaudique peroptet;

Dum videt in formas corpora versa novas:

Exige, fronde virens cingat tua tempora laurus,

Dum blandis resonas, culte Tibulle, modis:

Mœonides longum, longum sibi spondeat œvum,

Qui cecinit segetes, Arma, virumque, Maro:

Non eadem nabis repetuntur munera, Lector;

Cum tibi sim gratus, prœmia digna feram.

SONETOS

I

Para cantar de amor tenros cuidados,

Tomo entre vós, ó montes, o instrumento;

Ouvi pois o meu fúnebre lamento;

Se é, que de compaixão sois animados:

Já vós vistes, que aos ecos magoados

Do trácio Orfeu parava o mesmo vento;

Da lira de Anfião ao doce acento

Se viram os rochedos abalados.

Bem sei, que de outros gênios o Destino,

Para cingir de Apolo a verde rama,

Lhes influiu na lira estro divino:

O canto, pois, que a minha voz derrama,

Porque ao menos o entoa um peregrino,

Se faz digno entre vós também de fama.

II

Leia a posteridade, ó pátrio Rio,

Em meus versos teu nome celebrado;

Por que vejas uma hora despertado

O sono vil do esquecimento frio:

Não vês nas tuas margens o sombrio,

Fresco assento de um álamo copado;

Não vês ninfa cantar, pastar o gado

Na tarde clara do calmoso estio.

Turvo banhando as pálidas areias

Nas porções do riquíssimo tesouro

O vasto campo da ambição recreias.

Que de seus raios o planeta louro

Enriquecendo o influxo em tuas veias,

Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.

III

Pastores, que levais ao monte o gado,

Vêde lá como andais por essa serra;

Que para dar contágio a toda a terra,

Basta ver se o meu rosto magoado:

Eu ando (vós me vêdes) tão pesado;

E a pastora infiel, que me faz guerra,

É a mesma, que em seu semblante encerra

A causa de um martírio tão cansado.

Se a quereis conhecer, vinde comigo,

Vereis a formosura, que eu adoro;

Mas não; tanto não sou vosso inimigo:

Deixai, não a vejais; eu vo-lo imploro;

Que se seguir quiserdes, o que eu sigo,

Chorareis, ó pastores, o que eu choro.

IV

Sou pastor; não te nego; os meus montados

São esses, que aí vês; vivo contente

Ao trazer entre a relva florescente

A doce companhia dos meus gados;

Ali me ouvem os troncos namorados,

Em que se transformou a antiga gente;

Qualquer deles o seu estrago sente;

Como eu sinto também os meus cuidados.

Vós, ó troncos, (lhes digo) que algum dia

Firmes vos contemplastes, e seguros

Nos braços de uma bela companhia;

Consolai-vos comigo, ó troncos duros;

Que eu alegre algum tempo assim me via;

E hoje os tratos de Amor choro perjuros.

V

Se sou pobre pastor, se não governo

Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;

Se em frio, calma, e chuvas inclementes

Passo o verão, outono, estio, inverno;

Nem por isso trocara o abrigo terno

Desta choça, em que vivo, coas enchentes

Dessa grande fortuna: assaz presentes

Tenho as paixões desse tormento eterno.

Adorar as traições, amar o engano,

Ouvir dos lastimosos o gemido,

Passar aflito o dia, o mês, e o ano;

Seja embora prazer; que a meu ouvido

Soa melhor a voz do desengano,

Que da torpe lisonja o infame ruído.

VI

Brandas ribeiras, quanto estou contente

De ver nos outra vez, se isto é verdade!

Quanto me alegra ouvir a suavidade,

Com que Fílis entoa a voz cadente!

Os rebanhos, o gado, o campo, a gente,

Tudo me está causando novidade:

Oh como é certo, que a cruel saudade

Faz tudo, do que foi, mui diferente!

Recebei (eu vos peco) um desgraçado,

Que andou té agora por incerto giro

Correndo sempre atrás do seu cuidado:

Este pranto, estes ais, com que respiro,

Podendo comover o vosso agrado,

Façam digno de vós o meu suspiro.

VII

Onde estou? Este sítio desconheço:

Quem fez tão diferente aquele prado?

Tudo outra natureza tem tomado;

E em contemplá-lo tímido esmoreço.

Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço

De estar a ela um dia reclinado:

Ali em vale um monte está mudado:

Quanto pode dos anos o progresso!

Árvores aqui vi tão florescentes,

Que faziam perpétua a primavera:

Nem troncos vejo agora decadentes.

Eu me engano: a região esta não era:

Mas que venho a estranhar, se estão presentes

Meus males, com que tudo degenera!

VIII

Este é o rio, a montanha é esta,

Estes os troncos, estes os rochedos;

São estes inda os mesmos arvoredos;

Esta é a mesma rústica floresta.

Tudo cheio de horror se manifesta,

Rio, montanha, troncos, e penedos;

Que de amor nos suavíssimos enredos

Foi cena alegre, e urna é já funesta.

Oh quão lembrado estou de haver subido

Aquele monte, e as vezes, que baixando

Deixei do pranto o vale umedecido!

Tudo me está a memória retratando;

Que da mesma saudade o infame ruído

Vem as mortas espécies despertando.

IX

Pouco importa, formosa Daliana,

Que fugindo de ouvir me, o fuso tomes;

Se quanto mais me afliges, e consomes,

Tanto te adoro mais, bela serrana.

Ou já fujas do abrigo da cabana,

Ou sobre os altos montes mais te assomes,

Faremos imortais os nossos nomes,

Eu por ser firme, tu por ser tirana.

Um obséquio, que foi de amor rendido,

Bem pode ser, pastora, desprezado;

Mas nunca se verá desvanecido:

Sim, que para lisonja do cuidado,

Testemunhas serão de meu gemido

Este monte, este vale, aquele prado.

X

Eu ponho esta sanfona, tu, Palemo,

Porás a ovelha branca, e o cajado;

E ambos ao som da flauta magoado

Podemos competir de extremo a extremo.

Principia, pastor; que eu te não temo;

Inda que sejas tão avantajado

No cântico amebeu: para louvado

Escolhamos embora o velho Alcemo.

Que esperas? Toma a flauta, principia;

Eu quero acompanhar te; os horizontes

Já se enchem de prazer, e de alegria:

Parece, que estes prados, e estas fontes

Já sabem, que é o assunto da porfia

Nise, a melhor pastora destes montes.

XI

Formosa é Daliana; o seu cabelo,

A testa, a sobrancelha é peregrina;

Mas nada tem, que ver coa bela Eulina,

Que é todo o meu amor, o meu desvê-lo:

Parece escura a nove em paralelo

Da sua branca face; onde a bonina

As cores misturou na cor mais fina,

Que faz sobressair seu rosto belo.

Tanto os seus lindos olhos enamoram,

Que arrebatados, como em doce encanto,

Os que a chegam a ver, todos a adoram.

Se alguém disser, que a engrandeço tanto

Veia, para desculpa dos que choram

Veja a Eulina; e então suspenda o pranto.

XII

Fatigado da calma se acolhia

Junto o rebanho à sombra dos salgueiros;

E o sol, queimando os ásperos oiteiros,

Com violência maior no campo ardia.

Sufocava se o vento, que gemia

Entre o verde matiz dos sovereiros;

E tanto ao gado, como aos pegureiros

Desmaiava o calor do intenso dia.

Nesta ardente estação, de fino amante

Dando mostras Daliso, atravessava

O campo todo em busca de Violante.

Seu descuido em seu fogo desculpava;

Que mal feria o sol tão penetrante,

Onde maior incêndio a alma abrasava.

XIII

Nise? Nise? onde estás? Aonde espera

Achar te uma alma, que por ti suspira,

Se quanto a vista se dilata, e gira,

Tanto mais de encontrar te desespera!

Ah se ao menos teu nome ouvir pudera

Entre esta aura suave, que respira!

Nise, cuido, que diz; mas é mentira.

Nise, cuidei que ouvia; e tal não era.

Grutas, troncos, penhascos da espessura,

Se o meu bem, se a minha alma em vós se esconde,

Mostrai, mostrai me a sua formosura.

Nem ao menos o eco me responde!

Ah como é certa a minha desventura!

Nise? Nise? onde estás? aonde? aonde?

XIV

Quem deixa o trato pastoril amado

Pela ingrata, civil correspondência,

Ou desconhece o rosto da violência,

Ou do retiro a paz não tem provado.

Que bem é ver nos campos transladado

No gênio do pastor, o da inocência!

E que mal é no trato, e na aparência

Ver sempre o cortesão dissimulado!

Ali respira amor sinceridade;

Aqui sempre a traição seu rosto encobre;

Um só trata a mentira, outro a verdade.

Ali não há fortuna, que soçobre;

Aqui quanto se observa, é variedade:

Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!

XV

Formoso, e manso gado, que pascendo

A relva andais por entre o verde prado,

Venturoso rebanho, feliz gado, Que à bela

Antandra estais obedecendo;

Já de Corino os ecos percebendo

A frente levantais, ouvis parado;

Ou já de Alcino ao canto levantado,

Pouco e pouco vos ides recolhendo;

Eu, o mísero Alfeu, que em meu destino

Lamento as sem razões da desventura,

A seguir vos também hoje me inclino:

Medi meu rosto: ouvi minha ternura;

Porque o aspecto, e voz de um peregrino

Sempre faz novidade na espessura.

XVI

Toda a mortal fadiga adormecia

No silêncio, que a noite convidava;

Nada o sono suavíssimo alterava

Na muda confusão da sombra fria:

Só Fido, que de amor por Lise ardia,

No sossego maior não repousava;

Sentindo o mal, com lágrimas culpava

A sorte; porque dela se partia.

Vê Fido, que o seu bem lhe nega a sorte;

Querer enternecê-na é inútil arte;

Fazer o que ela quer, é rigor forte:

Mas de modo entre as penas se reparte;

Que à Lise rende a alma, a vida à morte:

Por que uma parte alente a outra parte.

XVII

Deixa, que por um pouco aquele monte

Escute a glória, que a meu peito assiste:

Porque nem sempre lastimoso, e triste

Hei de chorar à margem desta fonte.

Agora, que nem sombra há no horizonte,

Nem o álamo ao zéfiro resiste,

Aquela hora ditosa, em que me viste

Na posse de meu bem, deixa, que conte.

Mas que modo, que acento, que harmonia

Bastante pode ser, gentil pastora,

Para explicar afetos de alegria!

Que hei de dizer, se esta alma, que te adora,

Só costumada às vozes da agonia,

A frase do prazer ainda ignora!

XVIII

Aquela cinta azul, que o céu estende

A nossa mão esquerda, aquele grito,

Com que está toda a noite o corvo aflito

Dizendo um não sei quê, que não se entende;

Levantar me de um sonho, quando atende

O meu ouvido um mísero conflito,

A tempo, que o voraz lobo maldito

A minha ovelha mais mimosa ofende;

Encontrar a dormir tão preguiçoso

Melampo, o meu fiel, que na manada

Sempre desperto está, sempre ansioso;

Ah! queira Deus, que minta a sorte irada:

Mas de tão triste agouro cuidadoso

Só me lembro de Nise, e de mais nada.

XIX

Corino, vai buscar aquela ovelha,

Que grita lá no campo, e dormiu fora;

Anda; acorda, pastor; que sai a Aurora:

Como vem tão risonha, e tão vermelha!

Já perdi noutro tempo uma parelha

Por teu respeito; queira Deus, que agora

Não se me vá também estoutra embora;

Pois não queres ouvir, quem te aconselha.

Que sono será este tão pesado!

Nada responde, nada diz Corino:

Ora em que mãos está meu pobre gado!

Mas ai de mim! que cego desatino.

Como te hei de acusar de descuidado,

Se toda a culpa tua é meu destino!

XX

Ai de mim! como estou tão descuidado!

Como do meu rebanho assim me esqueço,

Que vendo o trasmalhar no mato espesso,

Em lugar de o tornar, fico pasmado!

Ouço o rumor que faz desaforado

O lobo nos redis; ouço o sucesso

Da ovelha, do pastor; e desconheço

Não menos, do que ao dono, o mesmo gado:

Da fonte dos meus olhos nunca enxuta

A corrente fatal, fico indeciso,

Ao ver, quanto em meu dano se executa.

Um pouco apenas meu pesar suavizo,

Quando nas serras o meu mal se escuta;

Que triste alívio! ah infeliz Daliso!

XXI

De um ramo desta faia pendurado

Veja o instrumento estar do pastor Fido;

Daquele, que entre os mais era aplaudido,

Se alguma vez nas selvas escutado.

Ser eternamente consagrado

Um ai saudoso, um fúnebre gemido;

Enquanto for no monte repetido

O seu nome, o seu canto levantado.

Se chegas a este sítio, e te persuade

A algum pesar a sua desventura,

Corresponde em afetos de piedade;

Lembra te, caminhante, da ternura

De seu canto suave; e uma saudade

Por obséquio dedica à sepultura.

XXII

Neste álamo sombrio, aonde a escura

Noite produz a imagem do segredo;

Em que apenas distingue o próprio medo

Do feio assombro a hórrida figura;

Aqui, onde não geme, nem murmura

Zéfiro brando em fúnebre arvoredo,

Sentado sabre o tosco de um penedo

Chorava Fido a sua desventura.

As lágrimas a penha enternecida

Um rio fecundou, donde manava

D'ânsia mortal a cópia derretida:

A natureza em ambos se mudava;

Abalava-se a penha comovida;

Fido, estátua da dor, se congelava.

XXIII

Tu sonora corrente, fonte pura,

Testemunha fiel da minha pena,

Sabe, que a sempre dura, e ingrata

Almena Contra o meu rendimento se conjura:

Aqui me manda estar nesta espessura,

Ouvindo a triste voz da filomena,

E bem que este martírio hoje me ordena,

Jamais espero ter melhor ventura.

Veio a dar me somente uma esperança

Nova idéia do ódio; pois sabia,

Que o rigor não me assusta, nem me cansa:

Vendo a tanto crescer minha porfia,

Quis mudar de tormento; e por vingança

Foi buscar no favor a tirania.

XXIV

Sonha em torrentes d'água, o que abrasado

Na sede ardente está; sonha em riqueza

Aquele, que no horror de uma pobreza

Anda sempre infeliz, sempre vexado:

Assim na agitação de meu cuidado

De um contínuo delírio esta alma presa,

Quando é tudo rigor, tudo aspereza,

Me finjo no prazer de um doce estado.

Ao despertar a louca fantasia

Do enfermo, do mendigo, se descobre

Do torpe engano seu a imagem fria:

Que importa pois, que a idéia alívios cobre,

Se apesar desta ingrata aleivosia,

Quanto mais rico estou, estou mais pobre.

XXV

Não de tigres as testas descarnadas,

Não de hircanos leões a pele dura,

Por sacrifício à tua formosura,

Aqui te deixo, ó Lise, penduradas:

Ânsias ardentes, lágrimas cansadas,

Com que meu rosto enfim se desfigura,

São, bela ninfa, a vítima mais pura,

Que as tuas aras guardarão sagradas.

Outro as flores, e frutos, que te envia,

Corte nos montes, corte nas florestas;

Que eu rendo as mágoas, que por ti sentia:

Mas entre flores, frutos, peles, testas,

Para adornar o altar da tirania,

Que outra vítima queres mais, do que estas?

XXVI

Não vês, Nise, este vento desabrido,

Que arranca os duros troncos? Não vês esta,

Que vem cobrindo o céu, sombra funesta,

Entre o horror de um relâmpago incendido?

Não vês a cada instante o ar partido

Dessas linhas de fogo? Tudo cresta,

Tudo consome, tudo arrasa, e infesta,

O raio a cada instante despedido.

Ah! não temas o estrago, que ameaça

A tormenta fatal; que o Céu destina

Vejas mais feia, mais cruel desgraça:

Rasga o meu peito, já que és tão ferina;

Verás a tempestade, que em mim passa;

Conhecerás então, o que é ruína.

XXVII

Apressa se a tocar o caminhante

O pouso, que lhe marca a luz do dia;

E da sua esperança se confia,

Que chegue a entrar no porto o navegante;

Nem aquele sem termo passa avante

Na longa, duvidosa e incerta via;

Nem este atravessando a região fria

Vai levando sem rumo o curso errante:

Depois que um breve tempo houver passado,

Um se verá sobre a segura areia,

Chegará o outro ao sítio desejado:

Eu só, tendo de penas a alma cheia,

Não tenho, que esperar; que o meu cuidado

Faz, que gire sem norte a minha idéia.

XXVIII

Faz a imaginação de um bem amado,

Que nele se transforme o peito amante;

Daqui vem, que a minha alma delirante

Se não distingue já do meu cuidado.

Nesta doce loucura arrebatado

Anarda cuido ver, bem que distante;

Mas ao passo, que a busco neste instante

Me vejo no meu mal desenganado.

Pois se Anarda em mim vive, e eu nela vivo,

E por força da idéia me converto

Na bela causa de meu fogo ativo;

Como nas tristes lágrimas, que verto,

Ao querer contrastar seu gênio esquivo,

Tão longe dela estou, e estou tão perto.

XXIX

Ai Nise amada! se este meu tormento,

Se estes meus sentidíssimos gemidos

Lá no teu peito, lá nos teus ouvidos

Achar pudessem brando acolhimento;

Como alegre em servir-te, como atento

Meus votos tributara agradecidos!

Por séculos de males bem sofridos

Trocara todo o meu contentamento.

Mas se na incontrastável, pedra dura

De teu rigor não há correspondência,

Para os doces afetos de ternura;

Cesse de meus suspiros a veemência;

Que é fazer mais soberba a formosura

Adorar o rigor da resistência.

XXX

Não se passa, meu bem, na noite, e dia

Uma hora só, que a mísera lembrança

Te não tenha presente na mudança,

Que fez, para meu mal, minha alegria.

Mil imagens debuxa a fantasia,

Com que mais me atormenta e mais me cansa:

Pois se tão longe estou de uma esperança,

Que alívio pode dar me esta porfia!

Tirano foi comigo o fado ingrato;

Que crendo, em te roubar, pouca vitória,

Me deixou para sempre o teu retrato:

Eu me alegrara da passada glória,

Se quando me faltou teu doce trato,

Me faltara também dele a memória.

XXXI

Estes os olhos são da minha amada:

Que belos, que gentis, e que formosos!

Não são para os mortais tão preciosos

Os doces frutos da estação dourada.

Por eles a alegria derramada,

Tornam-se os campos de prazer gostosos;

Em zéfiros suaves, e mimosos

Toda esta região se vê banhada;

Vinde, olhos belos, vinde; e enfim trazendo

Do rosto de meu bem as prendas belas,

Dai alívios ao mal, que estou gemendo:

Mas ah delírio meu, que me atropelas!

Os olhos, que eu cuidei, que estava vendo,

Eram (quem crera tal!) duas estrelas.

XXXII

Se os poucos dias, que vivi contente,

Foram bastantes para o meu cuidado,

Que pode vir a um pobre desgraçado,

Que a idéia de seu mal não acrescente!

Aquele mesmo bem, que me consente,

Talvez propício, meu tirano fado,

Esse mesmo me diz, que o meu estado

Se há de mudar em outro diferente.

Leve pois a fortuna os seus favores;

Eu os desprezo já; porque é loucura

Comprar a tanto preço as minhas dores:

Se quer, que me não queixe, a sorte escura,

Ou saiba ser mais firme nos rigores,

Ou saiba ser constante na brandura.

XXXIII

Aqui sobre esta pedra, áspera, e dura,

Teu nome hei de estampar, ó Francelisa,

A ver, se o bruto mármore eterniza

A tua, mais que ingrata, formosura.

Já cintilam teus olhos: a figura

Avultando já vai; quanto indecisa

Pasmou na efígie a idéia, se divisa

No engraçado relevo da escultura.

Teu rosto aqui se mostra; eu não duvido,

Acuses meu delírio, quando trato

De deixar nesta pedra o vulto erguido;

É tosca a prata, o ouro é menos grato;

Contemplo o teu rigor: oh que advertido!

Só me dá esta penha o teu retrato!

XXXIV

Que feliz fora o mundo, se perdida

A lembrança de amor, de amor a glória,

Igualmente dos gostos a memória

Ficasse para sempre consumida!

Mas a pena mais triste, e mais crescida

É ver; que em nenhum tempo é transitória

Esta de amor fantástica vitória,

Que sempre na lembrança é repetida.

Amantes, os que ardeis nesse cuidado,

Fugi de amor ao venenoso intento,

Que lá para o depois vos tem guardado.

Não vos engane o infiel contentamento;

Que esse presente bem, quando passado,

Sobrará para idéia do tormento.

XXXV

Aquele, que enfermou de desgraçado,

Não espere encontrar ventura alguma:

Que o Céu ninguém consente, que presuma,

Que possa dominar seu duro fado.

Por mais, que gire o espírito cansado

Atrás de algum prazer, por mais em suma,

Que porfie, trabalhe, e se consuma,

Mudança não verá do triste estado.

Não basta algum valor, arte, ou engenho

A suspender o ardor, com que se move

A infausta roda do fatal despenho:

E bem que o peito humano as forças prove,

Que há de fazer o temerário empenho,

Onde o raio é do Céu, a mão de Jove.

XXXVI

Estes braços, Amor, com quanta glória

Foram trono feliz na formosura!

Mas este coração com que ternura

Hoje chora infeliz esta memória!

Quanto vês, é troféu de uma vitória,

Que o destino em seu templo dependura:

De uma dor esta estampa é só figura,

Na fé oculta, no pesar notória.

Saiba o mundo de teu funesto enredo;

Por que desde hoje um coração amante

De adorar teus altares tenha medo:

Mas que empreendo, se ao passo, que constante

Vou a romper a fé do meu segredo,

Não há, quem acredite um delirante!

XXXVII

Continuamente estou imaginando,

Se esta vida, que logro, tão pesada,

Há de ser sempre aflita, e magoada,

Se como o tempo enfim se há de ir mudando:

Em golfos de esperança flutuando

Mil vezes busco a praia desejada;

E a tormenta outra vez não esperada

Ao pélago infeliz me vai levando.

Tenho já o meu mal tão descoberto,

Que eu mesmo busco a minha desventura;

Pois não pode ser mais seu desconcerto.

Que me pode fazer a sorte dura,

Se para não sentir seu golpe incerto,

Tudo o que foi paixão, é já loucura!

XXXVIII

Quando, formosa Nise, dividido

De teus olhos estou nesta distancia,

Pinta a saudade, à força de minha ânsia,

Toda a memória do prazer perdido.

Lamenta o pensamento amortecido

A tua ingrata, pérfida inconstância;

E quanto observa, é só a vil jactância

Do fado, que os troféus tem conseguido.

Aonde a dita está? aonde o gosto?

Onde o contentamento? onde a alegria,

Que fecundava esse teu lindo rosto?

Tudo deixei, ó Nise, aquele dia,

Em que deixando tudo, o meu desgosto

Somente me seguiu por companhia.

XXXIX

Breves horas, Amor, há, que eu gozava

A glória, que minha alma apetecia;

E sem desconfiar da aleivosia,

Teu lisonjeiro obséquio acreditava.

Eu só à minha dita me igualava;

Pois assim avultava, assim crescia,

Que nas cenas, que então me oferecia,

O maior gosto, o maior bem lograva;

Fugiu, faltou-me o bem: já descomposta

Da vaidade a brilhante arquitetura,

Vê-se a ruína ao desengano exposta:

Que ligeira acabou, que mal segura!

Mas que venho a estranhar, se estava posta

Minha esperança em mãos da formosura!

XL

Quem chora ausente aquela formosura,

Em que seu maior gosto deposita,

Que bem pode gozar, que sorte, ou dita,

Que não seja funesta, triste, e escura!

A apagar os incêndios da loucura

Nos braços da esperança Amor me incita:

Mas se era a que perdi, glória infinita,

Outra igual que esperança me assegura!

Já de tanto delírio me despeço;

Porque o meu precipício encaminhado

Pela mão deste engano reconheço.

Triste! A quanto chegou meu duro fado!

Se de um fingido bem não faço apreço,

Que alívio posso dar a meu cuidado!

XLI

Injusto Amor, se de teu jugo isento

Eu vira respirar a liberdade,

Se eu pudesse da tua divindade

Cantar um dia alegre o vencimento;

Não lograras, Amor, que o meu tormento,

Vítima ardesse a tanta crueldade;

Nem se cobrira o campo da vaidade

Desses troféus, que paga o rendimento:

Mas se fugir não pude ao golpe ativo,

Buscando por meu gosto tanto estrago,

Por que te encontro, Amor, tão vingativo?

Se um tal despojo a teus altares trago,

Siga a quem te despreza, o raio esquivo;

Alente a quem te busca, o doce afago.

XLII

Morfeu doces cadeias estendia,

Com que os cansados membros me enlaçava;

E quanto mal o coração passava,

Em sonhos me debuxa a fantasia.

Lise presente vi, Lise, que um dia

Todo o meu pensamento arrebatava,

Lise, que na minha alma impressa estava,

Bem apesar da sua tirania.

Corro a prendê-la em amorosos laços

Buscando a sombra, que apertar intento;

Nada vejo (ai de mim!) perco os meus passos.

Então mais acredito o fingimento:

Que ao ver, que Lise foge de meus braços,

A crê pelo costume o pensamento.

XLIII

Quem és tu? (ai de mim!) eu reclinado

No seio de uma víbora! Ah tirana!

Como entre as garras de uma tigre hircana

Me encontro de repente sufocado!

Não era essa, que eu tinha posta ao lado,

Da minha Nise a imagem soberana?

Não era . . . mas que digo! ela me engana:

Sim, que eu a vejo ainda no mesmo estado:

Pois como no letargo a fantasia

Tão cruel ma pintou, tão inconstante,

Que a vi.. .? mas nada vi; que eu nada cria.

Foi sonho; foi quimera; a um peito amante

Amor não deu favores um só dia,

Que a sombra de um tormento os não quebrante.

XLIV

Há quem confie, Amor, na segurança

De um falsíssimo bem, com que dourando

O veneno mortal, vás enganando

Os tristes corações numa esperança!

Há quem ponha inda cego a confiança

Em teu fingido obséquio, que tomando

Lições de desengano, não vá dando

Pelo mundo certeza da mudança!

Há quem creia, que pode haver firmeza

Em peito feminil, quem advertido

Os cultos não profane da beleza!

Há inda, e há de haver, eu não duvido,

Enquanto não mudar a Natureza

Em Nise a formosura, o amor em Fido.

XLV

A cada instante, Amor, a cada instante

No duvidoso mar de meu cuidado

Sinto de novo um mal, e desmaiado

Entrego aos ventos a esperança errante.

Por entre a sombra fúnebre, e distante

Rompe o vulto do alivio mal formado;

Ora mais claramente debuxado,

Ora mais frágil, ora mais constante.

Corre o desejo ao vê-lo descoberto;

Logo aos olhos mais longe se afigura,

O que se imaginava muito perto.

Faz-se parcial da dita a desventura;

Porque nem permanece o dano certo,

Nem a glória tão pouco está segura

XLVI

Não vês, Lise, brincar esse menino

Com aquela avezinha? Estende o braço;

Deixa-a fugir; mas apertando o laço,

A condena outra vez ao seu destino?

Nessa mesma figura, eu imagino,

Tens minha liberdade; pois ao passo,

Que cuido, que estou livre do embaraço,

Então me prende mais meu desatino.

Em um contínuo giro o pensamento

Tanto a precipitar-me se encaminha,

Que não vejo onde pare o meu tormento.

Mas fora menos mal esta ânsia minha,

Se me faltasse a mim o entendimento,

Como falta a razão a esta avezinha.

XLVII

Que inflexível se mostra, que constante

Se vê este penhasco! já ferido

Do proceloso vento, e já batido

Do mar, que nele quebra a cada instante!

Não vi; nem hei de ver mais semelhante

Retrato dessa ingrata, a que o gemido

Jamais pode fazer, que enternecido

Seu peito atenda às queixas de um amante.

Tal és, ingrata Nise: a rebeldia,

Que vês nesse penhasco, essa dureza

Há de ceder aos golpes algum dia:

Mas que diversa é tua natureza!

Dos contínuos excessos da porfia,

Recobras novo estímulo à fereza.

XLVIII

Traidoras horas do enganoso gosto,

Que nunca imaginei, que o possuía,

Que ligeiras passastes! mal podia

Deixar aquele bem de ser suposto.

Já de parte o tormento estava posto;

E meu peito saudoso, que isto via,

As imagens da pena desmentia,

Pintando da ventura alegre o rosto.

Desanda então a fábrica elevada,

Que o plácido Morfeu tinha erigido,

Das espécies do sono fabricada:

Então é, que desperta o meu sentido,

Para observar na pompa destroçada,

Verdadeira a ruína, o bem fingido.

XLIX

Os olhos tendo posto, e o pensamento

No rumo, que demanda, mais distante;

As ondas bate o Grego Navegante,

Entregue o leme ao mar, a vela ao vento

Em vão se esforça o harmonioso acento

Da sereia, que habita o golfo errante;

Que resistindo o espírito constante,

Vence as lisonjas do enganoso intento.

Se pois, ninfas gentis, rompe a Cupido

O arco, a flecha, o dardo, a chama acesa

De um peito entre os heróis esclarecido;

Que vem buscar comigo a néscia empresa,

Se inda mais, do que Ulisses atrevido,

Sei vencer os encantos da beleza!

L

Memórias do presente, e do passado

Fazem guerra cruel dentro em meu peito;

E bem que ao sofrimento ando já feito,

Mais que nunca desperta hoje o cuidado.

Que diferente, que diverso estado

É este, em que somente o triste efeito

Da pena, a que meu mal me tem sujeito,

Me acompanha entre aflito, e magoado!

Tristes lembranças! e que em vão componho

A memória da vossa sombra escura!

Que néscio em vós a ponderar me ponho!

Ide-vos; que em tão mísera loucura

Todo o passado bem tenho por sonho;

Só é certa a presente desventura.

LI

Adeus, ídolo belo, adeus, querido,

Ingrato bem; adeus: em paz te fica;

E essa vitória mísera publica,

Que tens barbaramente conseguido.

Eu parto, eu sigo o norte aborrecido

De meu fado infeliz: agora rica

De despojos, a teu desdém aplica

O rouco acento de um mortal gemido.

E se acaso alguma hora menos dura

Lembrando-te de um triste, consultares

A série vil da sua desventura;

Na imensa confusão de seus pesares

Acharás, que ardeu simples, ardeu pura

A vítima de uma alma em teus altares.

LII

Que molesta lembrança, que cansada

Fadiga é esta! vejo-me oprimido,

Medindo pela magoa do perdido

A grandeza da glória já passada.

Foi grande a dita sim; porem lembrada,

Inda a pena é maior de a haver perdido;

Quem não fora feliz, se o haver sido

Faz, que seja a paixão mais avultada!

Propício imaginei (é bem verdade)

O malévolo fado: oh quem pudera

Conhecer logo a hipócrita piedade!

Mas que em vão esta dor me desespera,

Se já entorpecida a enfermidade

Inda agora o remédio se pondera!

LIII

Ou já sobre o cajado te reclines,

Venturoso pastor, ou já tomando

Para a serra, onde as cabras vais chamando,

A fugir os meus ais te determines.

Lá te quero seguir, onde examines

Mais vivamente um coração tão brando;

Que gosta só de ouvir-te, ainda quando

Mais sem razão me acuses, mais crimines.

Que te fiz eu, pastor? em que condenas

Minha sincera fé, meu amor puro? A

s provas, que te dei, serão pequenas?

Queres ver, que esse monte áspero, e duro

Sabe, que és causa tu das minhas penas?

Pergunta-lhe; ouvirás, o que te juro.

LIV

Ninfas gentis, eu sou, o que abrasado

Nos incêndios de Amor, pude alguma hora,

Ao som da minha cítara sonora,

Deixar o vosso império acreditado.

Se vós, glórias de amor, de amor cuidado,

Ninfas gentis, a quem o mundo adora,

Não ouvis os suspiros, de quem chora,

Ficai-vos; eu me vou; sigo o meu fado.

Ficai-vos; e sabei, que o pensamento

Vai tão livre de vós, que da saudade

Não receia abrasar-se no tormento.

Sim; que solta dos laços a vontade,

Pelo rio hei de ter do esquecimento

Este, aonde jamais achei piedade.

LV

Em profundo silêncio já descansa

Todo o mortal; e a minha triste idéia

Se estende, se dilata, se recreia

Pelo espaçoso campo da lembrança.

Fatiga-se, prossegue, em vão se cansa;

E neste vário giro, em que se enleia,

Ao duvidoso passo já receia,

Que lhe possa faltar a segurança.

Que diferente tudo está notando!

Que perplexo as imagens do perdido

Num e noutro despojo vem achando!

Este não é o templo (eu o duvido)

Assim o afirma, assim o está mostrando:

Ou morreu Nise, ou este não é Fido.

LVI

Tu, ninfa, quando eu menos penetrado

Das violências de Amor vivia isento,

Propondo-te então bela a meu tormento,

Foste doce ocasião de meu cuidado.

Roubaste o meu sossego, um doce agrado,

Um gesto lindo, um brando acolhimento

Foram somente o único instrumento,

Com que deixaste o triunfo assegurado.

Já não espero ter felicidade,

Salvo se for aquela, que confio,

Por amar-te, apesar dessa impiedade.

Em prêmio dos suspiros, que te envio,

Ou modera o rigor da crueldade,

Ou torna-me outra vez meu alvedrio.

LVII

Bela imagem, emprego idolatrado,

Que sempre na memória repetido,

Estás, doce ocasião de meu gemido,

Assegurando a fé de meu cuidado.

Tem-te a minha saudade retratado;

Não para dar alívio a meu sentido;

Antes cuido; que a mágoa do perdido

Quer aumentar coa pena de lembrado.

Não julgues, que me alento com trazer-te

Sempre viva na idéia; que a vingança

De minha sorte todo o bem perverte.

Que alívio em te lembrar minha alma alcança,

Se do mesmo tormento de não ver-te,

Se forma o desafogo da lembrança?

LVIII

Altas serras, que ao Céu estais servindo

De muralhas, que o tempo não profana,

Se Gigantes não sois, que a forma humana

Em duras penhas foram confundindo?

lá sobre o vosso cume se está rindo

O Monarca da luz, que esta alma engana;

Pois na face, que ostenta, soberana,

O rosto de meu bem me vai fingindo.

Que alegre, que mimoso, que brilhante

Ele se me afigura! Ah qual efeito

Em minha alma se sente neste instante!

Mas ai! a que delírios me sujeito!

Se quando no Sol vejo o seu semblante,

Em vós descubro ó penhas o seu peito?

LIX

Lembrado estou, ó penhas, que algum dia,

Na muda solidão deste arvoredo,

Comuniquei convosco o meu segredo,

E apenas brando o zéfiro me ouvia.

Com lágrimas meu peito enternecia

A dureza fatal deste rochedo,

E sobre ele uma tarde triste, e quêdo

A causa de meu mal eu escrevia.

Agora torno a ver, se a pedra dura

Conserva ainda intacta essa memória,

Que debuxou então minha escultura.

Que vejo! esta é a cifra: triste glória!

Para ser mais cruel a desventura,

Se fará imortal a minha história.

LX

Valha-te Deus, cansada fantasia!

Que mais queres de mim? que mais pretendes?

Se quando na esperança mais te acendes,

Se desengana mais tua porfia!

Vagando regiões de dia em dia,

Novas conquistas, e troféus empreendes:

Ah que conheces mal, que mal entendes,

Onde chega do fado a tirania!

Trata de acomodar-te ao movimento

Dessa roda volúvel, e descansa

Sobre tão fatigado pensamento.

E se inda crês no rosto da esperança,

Examina por dentro o fingimento;

E verás tempestade o que é bonança.

LXI

Deixemo-nos, Algano, de porfia;

Que eu sei o que tu és, contra a verdade

Sempre hás de sustentar, que a divindade

Destes campos é Brites, não Maria!

Ora eu te mostrarei inda algum dia,

Em que está teu engano: a novidade,

Que agora te direi, é, que a cidade

Por melhor, do que todas a avalia.

Há pouco, que encontrei lá junto ao monte

Dous pastores, que estavam conversando,

Quando passaram ambas para a fonte;

Nem falaram em Brites: mas tomando

Para um cedro, que fica bem defronte,

O nome de Maria vão gravando.

LXII

Torno a ver-vos, ó montes; o destino

Aqui me torna a pôr nestes oiteiros;

Onde um tempo os gabões deixei grosseiros

Pelo traje da Côrte rico, e fino.

Aqui estou entre Almendro, entre Corino,

Os meus fiéis, meus doces companheiros,

Vendo correr os míseros vaqueiros

Atrás de seu cansado desatino.

Se o bem desta choupana pode tanto,

Que chega a ter mais preço, e mais valia,

Que da cidade o lisonjeiro encanto;

Aqui descanse a louca fantasia;

E o que té agora se tornava em pranto,

Se converta em afetos de alegria.

LXIII

Já me enfado de ouvir este alarido,

Com que se engana o mundo em seu cuidado;

Quero ver entre as peles, e o cajado,

Se melhora a fortuna de partido.

Canse embora a lisonja ao que ferido

Da enganosa esperança anda magoado;

Que eu tenho de acolher-me sempre ao lado

Do velho desengano apercebido.

Aquele adore as roupas de alto preço,

Um siga a ostentação, outro a vaidade;

Todos se enganam com igual excesso.

Eu não chamo a isto já felicidade:

Ao campo me recolho, e reconheço,

Que não há maior bem, que a soledade.

LXIV

Que tarde nasce o Sol, que vagaroso!

Parece, que se cansa, de que a um triste

Haja de aparecer: quanto resiste

A seu raio este sítio tenebroso!

Não pode ser, que o giro luminoso

Tanto tempo detenha: se persiste

Acaso o meu delírio! se me assiste

Ainda aquele humor tão venenoso!

Aquela porta ali se está cerrando;

Dela sai um pastor: outro assobia,

E o gado para o monte vai chamando.

Ora não há mais louca fantasia!

Mas quem anda, como eu, assim penando,

Não sabe, quando é noite, ou quando é dia.

LXV

Ingrata foste, Elisa; eu te condeno

A injusta sem-razão; foste tirana,

Em renderes, belíssima serrana,

A tua liberdade ao néscio Almeno.

Que achaste no seu rosto de sereno,

De belo, ou de gentil, para inumana

Trocares pela dele esta choupana,

Em que tinhas o abrigo mais ameno?

Que canto em teu louvor entoaria?

Que te podia dar o pastor pobre?

Que extremos, mais do que eu, por ti faria?

O meu rebanho estas montanhas cobre:

Eu os excedo a todos na harmonia;

Mas ah que ele é feliz! Isto lhe sobre

LXVI

Não te assuste o prodígio: eu, caminhante,

Sou uma voz, que nesta selva habito;

Chamei-me o pastor Fido; de um delito

Me veio o meu estrago; eu fui amante.

Uma ninfa perjura, uma inconstante

Neste estado me pôs: do peito aflito,

Por eterno castigo, arranco um grito,

Que desengane o peregrino errante.

Se em ti se dá piedade, ó passageiro,

(Que assim o pede a minha sorte escura)

Atende ao meu aviso derradeiro:

Lágrimas não te peço, nem ternura:

Por voto um desengano, te requeiro

Que consagres à minha sepultura.

LXVII

Não te cases com Gil, bela serrana;

Que é um vil, um infame, um desastrado;

Bem que ele tenha mais devesa, e gado,

A minha condição é mais humana.

Que mais te pode dar sua cabana,

Que eu aqui te não tenha aparelhado?

O leite, a fruta, o queijo, o mel dourado;

Tudo aqui acharás nesta choupana:

Bem que ele tange o seu rabil grosseiro,

Bem que te louve assim, bem que te adore,

Eu sou mais extremoso, e verdadeiro.

Eu tenho mais razão, que te enamore:

E se não, diga o mesmo Gil vaqueiro:

Se é mais, que ele te cante, ou que eu te chore.

LXVIII

Apenas rebentava no oriente

A clara luz da aurora, quando Fido,

O repouso deixando aborrecido,

Se punha a contemplar no mal, que sente.

Vê a nuvem, que foge ao transparente

Anúncio do crepúsculo luzido;

E vê de todo em riso convertido

O horror, que dissipara o raio ardente.

Por que (diz) esta sorte, que se alcança

Entre a sombra, e a luz, não sinto agora

No mal, que me atormenta, e que me cansa?

Aqui toda a tristeza se melhora:

Mas eu sem o prazer de uma esperança

Passo o ano, e o mês, o dia, a hora.

LXIX

Se à memória trouxeres algum dia,

Belíssima tirana, ídolo amado,

Os ternos ais, o pranto magoado,

Com que por ti de amor Alfeu gemia;

Confunda-te a soberba tirania,

O ódio injusto, o violento desagrado,

Com que atrás de teu olhos arrastado

Teu ingrato rigor o conduzia.

E já que enfim tão mísero o fizeste,

Vê-lo-ás, cruel, em prêmio de adorar-te,

Vê-lo-ás, cruel, morrer; que assim quiseste.

Dirás, lisonjeando a dor em parte:

Fui-te ingrata, pastor; por mim morreste;

Triste remédio a quem não pode amar-te!

LXX

Breves horas, que em rápida porfia

Ides seguindo infausto movimento,

Oh como o vosso curso foi violento,

Quando soubestes, que eu vos possuía!

Já crédito vos dava; porque via

Avultar meu feliz contentamento:

Que é mui fácil num triste estar atento

Aos enganos, que pinta a fantasia.

Logrou-se o vosso fim; que foi levar-me

Da falsa glória, do fingido gosto A

o cume, donde venho a despenhar-me:

Assim a lei do fado tem disposto,

Que haja o instantâneo bem de lisonjear-me;

Por que o estrago, me diga, que é suposto.

LXXI

Eu cantei, não o nego, eu algum dia

Cantei do injusto amor o vencimento;

Sem saber, que o veneno mais violento

Nas doces expressões falso encobria.

Que amor era benigno, eu persuadia

A qualquer coração de amor isento;

Inda agora de amor cantara atento,

Se lhe não conhecera a aleivosia.

Ninguém de amor se fie: agora canto

Somente os seus enganos; porque sinto,

Que me tem destinado estrago tanto.

De seu favor hoje as quimeras pinto:

Amor de uma alma é pesaroso encanto;

Amor de um coração é labirinto.

LXXII

Já rompe, Nise, a matutina aurora

O negro manto, com que a noite escura,

Sufocando do Sol a face pura,

Tinha escondido a chama brilhadora.

Que alegre, que suave, que sonora,

Aquela fontezinha aqui murmura!

E nestes campos cheios de verdura

Que avultado o prazer tanto melhora!

Só minha alma em fatal melancolia,

Por te não poder ver, Nise adorada,

Não sabe inda, que coisa é alegria;

E a suavidade do prazer trocada,

Tanto mais aborrece a luz do dia,

Quanto a sombra da noite lhe agrada.

LXXIII

Quem se fia de Amor, quem se assegura

Na fantástica fé de uma beleza,

Mostra bem, que não sabe, o que é firmeza,

Que protesta de amante a formosura.

Anexa a qualidade de perjura

Ao brilhante esplendor da gentileza,

Mudável é por lei da natureza,

A que por lei de Amor é menos dura.

Deste, ó Fábio, que vês, desordenado,

Ingrato proceder se é que examinas

A razão, eu a tenho decifrado:

São as setas de Amor tão peregrinas,

Que esconde no gentil o golpe irado;

Para lograr pacífico as ruínas.

LXXIV

Sombrio bosque, sítio destinado

À habitação de um infeliz amante,

Onde chorando a mágoa penetrante

Possa desafogar o seu cuidado;

Tudo quieto está, tudo calado;

Não há fera, que grite; ave, que cante;

Se acaso saberás, que tens diante

Fido, aquele pastor desesperado!

Escuta o caso seu: mas não se atreve

A erguer a voz; aqui te deixa escrito

No tronco desta faia em cifra breve:

Mudou-se aquele bem; hoje é delito

Lembrar-me de Marfisa; era mui leve:

Não há mais, que atender; tudo está dito.

LXXV

Clara fonte, teu passo lisonjeiro

Pára, e ouve-me agora um breve instante;

Que em paga da piedade o peito amante

Te será no teu curso companheiro.

Eu o primeiro fui, fui o primeiro,

Que nos braços da ninfa mais constante

Pude ver da fortuna a face errante

Jazer por glória de um triunfo inteiro.

Dura mão, inflexível crueldade

Divide o laço, com que a glória, a dita

Atara o gosto ao carro da vaidade:

E para sempre a dor ter n'alma escrita,

De um breve bem nasce imortal saudade,

De um caduco prazer mágoa infinita.

LXXVI

Enfim te hei de deixar, doce corrente

Do claro, do suavíssimo Mondego;

Hei de deixar-te enfim; e um novo pego

Formará de meu pranto a cópia ardente.

De ti me apartarei; mas bem que ausente,

Desta lira serás eterno emprego;

E quanto influxo hoje a dever-te chego,

Pagará de meu peito a voz cadente.

Das ninfas, que na fresca, amena estância

Das tuas margens úmidas ouvia,

Eu terei sempre n'alma a consonância;

Desde o prazo funesto deste dia

Serão fiscais eternos da minha ânsia

As memórias da tua companhia.

LXXVII

Não há no mundo fé, não há lealdade;

Tudo é, ó Fábio, torpe hipocrisia;

Fingido trato, infame aleivosia

Rodeiam sempre a cândida amizade.

Veste o engano o aspecto da verdade;

Porque melhor o vício se avalia:

Porém do tempo a mísera porfia,

Duro fiscal, lhe mostra a falsidade.

Se talvez descobrir-se se procura

Esta de amor fantástica aparência,

É como à luz do Sol a sombra escura:

Mas que muito, se mostra a experiência,

Que da amizade a torre mais segura

Tem a base maior na dependência!

LXXVIII

Campos, que ao respirar meu triste peito

Murcha, e seca tornais vossa verdura,

Não vos assuste a pálida figura,

Com que o meu rosto vedes tão desfeito.

Vós me vistes um dia o doce efeito

Cantar do Deus de Amor, e da ventura;

Isso já se acabou; nada já dura;

Que tudo à vil desgraça está sujeito.

Tudo se muda enfim: nada há, que seja

De tão nobre, tão firme segurança,

Que não encontre o fado, o tempo, a inveja.

Esta ordem natural a tudo alcança;

E se alguém um prodígio ver deseja,

Veja meu mal, que só não tem mudança.

LXXIX

Entre este álamo, o Lise, e essa corrente,

Que agora estão meus olhos contemplando,

Parece, que hoje o céu me vem pintando

A mágoa triste, que meu peito sente.

Firmeza a nenhum deles se consente

Ao doce respirar do vento brando;

O tronco a cada instante meneando,

A fonte nunca firme, ou permanente.

Na líquida porção, na vegetante

Cópia daquelas ramas se figura

Outro rosto, outra imagem semelhante:

Quem não sabe, que a tua formosura

Sempre móvel está, sempre inconstante,

Nunca fixa se viu, nunca segura?

LXXX

Quando cheios de gosto, e de alegria

Estes campos diviso florescentes,

Então me vêm as lágrimas ardentes

Com mais ânsia, mais dor, mais agonia.

Aquele mesmo objeto, que desvia

Do humano peito as mágoas inclementes,

Esse mesmo em imagens diferentes

Toda a minha tristeza desafia.

Se das flores a bela contextura

Esmalta o campo na melhor fragrância,

Para dar uma idéia da ventura;

Como, ó Céus, para os ver terei constância,

Se cada flor me lembra a formosura

Da bela causadora de minha ânsia?

LXXXI

Junto desta corrente contemplando

Na triste falta estou de um bem que adoro;

Aqui entre estas lágrimas, que choro,

Vou a minha saudade alimentando.

Do fundo para ouvir-me vem chegando

Das claras hamadríades o coro;

E desta fonte ao murmurar sonoro,

Parece, que o meu mal estão chorando.

Mas que peito há de haver tão desabrido,

Que fuja à minha dor! que serra, ou monte

Deixará de abalar-se a meu gemido!

Igual caso não temo, que se conte;

Se até deste penhasco endurecido

O meu pranto brotar fez uma fonte.

LXXXII

Piedosos troncos, que a meu terno pranto

Comovidos estais, uma inimiga

E quem fere o meu peito, é quem me obriga

A tanto suspirar, a gemer tanto.

Amei a Lise; é Lise o doce encanto,

A bela ocasião desta fadiga;

Deixou-me; que quereis, troncos, que eu diga

Em um tormento, em um fatal quebranto?

Deixou-me a ingrata Lise: se alguma hora

Vós a vêdes talvez, dizei, que eu cego

Vos contei... mas calai, calai embora.

Se tanto a minha dor a elevar chego,

Em fé de um peito, que tão fino adora,

Ao meu silêncio o meu martírio entrego.

LXXXIII

Polir na guerra o bárbaro gentio,

Que as leis quase ignorou da natureza,

Romper de altos penhascos a rudeza,

Desentranhar o monte, abrir o rio;

Esta a virtude, a glória, o esforço, o brio

Do Russiano Herói, esta a grandeza,

Que igualou de Alexandre a fortaleza,

Que venceu as desgraças de Dario:

Mas se a lei do heroísmo se procura,

Se da virtude o espírito se atende,

Outra idéia, outra máxima o segura:

Lá vive, onde no ferro não se acende;

Vive na paz dos povos, na brandura:

Vós a ensinais, ó Rei; em vós se aprende.

LXXXIV

Apre Giano il gran Tempio; orrido, e nero,

Tutto scomposto 'l crin, Marte s'adira;

Ecco l'armi, l'insegne; ecco s'aggira

Con torbidi ruggiti 'l Leon Ibero:

Lascia i freddi Trioni 'l Duce altero;

Viene sopra di noi la strage, e l'ira;

Altro, fuor che vendetta, non respira

Il Ebro audace, il Rhodano guerriero:

Par, che già d'Acheronte in sulle spume,

Del Dio feroce lampeggiando il volto,

Vaghe schiere d'Eroi varcano il fiume;

Oh Dei! tutto è in terrore il mondo accolto:

Ma che auspizio è mai questo! contro il Nume,

D'Andrada sol, d'Andrada il nome ascolto.

LXXXV

Sposi felici, per la vostra face

Splenda di Portugal provido il Nume;

Portando a noi la sospirata pace,

Della Madre d'Amor fra l'auree piume.

Fatte, che a pro di noi la Diva audace

L'empia ruota suspenda: entro il suo fiume

Spirar non vegga il vostro amor verace

Il Domator de le Tartaree spume.

Vivete in dolce nodo: altre faville

Il ciel non fecondo cosi giocondo;

Amor, che l'inspiró, Amor nutrille.

Sorger vegg'io dal talamo fecondo

Fra mille gioie, fra trionfi mille

E gloria a Portugal, e gloria al mondo.

LXXXVI

Di così degno Eroe la Regia fronte

Cinga d'eterno allor, chi virtù ama:

Che il ciel la gloria sua per altro chiama:

Sentier, che guida a più sicuro monte.

Non di Parnaso, non d'audace fonte

I fiori, ed i cristalli alla sua fama

Omaggio esser potran; ciascun, che brama

I suoi merti lodar, lodi à più pronte.

Voto faccia di voglia assai sincera,

Dell'anima tributo sia la fede;

Questa victima ei solo ama, ei la spera.

Non più l'Eróe, mortali, da voi chiede;

Il non sprezar la vostra sì vera,

È de tributi vostri ampia mercede.

LXXXVII

Sorpreso de così sonori accenti,

Non ho ragion, che basti, ó Vate degno,

A consecrare al tuo discreto ingegno

Questi voti, non so, se assai cadenti.

Udir credei a intempestivi eventi

Tutto il Pindo sonar, si che a tal segno

Forse non dubitai del crudo regno

Frenasse Orpheo gli spiriti inclementi.

Questa dal mondo poi giammai probata

Beltà da labri tuoi abbia l'ardore

D'en sì rozzo paese essere amata.

Ed io pur non avrò culto maggiore,

Che render vada alla tua Musa grata,

Fuor di quel del silenzio fido onore.

LXXXVIII

Non ho valor, che basti; io corro in vano

A ricoprirmi del pesante scudo;

Senza armi 'l sen, senza armi 'l cor ignudo

S'abbandona al tuo strale, Amor insano.

Idolo mio, che m'offre in volto umano

Beltà quasi divina, al petto rudo

Si soave gli porge il velen crudo,

Che orror non ho nel venerar la mano.

Reggi 'l colpo; la strage io non pavento;

Ti daranno, crudel, poca victoria

La mia ruina, il mio duol, il mio tormento.

Saremmo entrambi esempi a grata istoria,

Tu mostrando il tuo tardo pentimento,

Io nel martin trovando la mia gloria.

LXXXIX

Misera rimembranza, che mai tenti!

Perché venirmi tormentando ancora!

Non m'accordar, ti chiedo, la dolce ora

De'primi miei suavissimi contenti.

Furono brevi; e sono così lenti

I passi tuoi, che nella grata Aurora

Del mio piacer, io ritrovai tallora,

In sembianza di gioia i miei tormenti.

Ah non lasciasti mai la spiaggia aprica,

Per gime in grembo al procelloso flutto,

Allor, che si mostrò la sorte amica.

Non sarebbe il mio ben per lei distrutto;

Né avrei nel alma una crudel fatica,

Che tutto afflige, e che sconsola tutto.

XC

Esci d'ingano, o Nice; io non t'adoro;

Chi ti parla così, parla sincero;

Mi piace 'l volto tuo; mi piace, è vero;

Ma non mi punse Amor col'strale d'oro.

Piangon gl'amanti ovunque; i voti loro

Sono tributi d'immortal pensiero:

Or vedi; io son tranquillo, io sono altero,

Io non sento fatica, ed ho ristoro.

O non è amore, o pur, s'amor si chiama,

D'ogni d'amor martiro l'ordin muta,

Ch'in tanti cuori 'l suo trionfo acclama;

Ma che mai vanta l'alma d'asoluta!

Ricanterò: Questa alma altro non brama,

Che nel incendio tuo restar perduta.

XCI

Non parlarmi d'amor, ingrata Nice;

Ch'io non ho già per te questi pensieri:

Credulo a tanti affetti lusinghieri

T'adorai, non te 'l nego; ero infelice:

Il vecchio disinganno or odo; ei dice:

Folle che sei! come adorar gl'alteri

Transporti puoi d'affanni così fieri?

Ei parla; ed i suoi detti ascoltar lice.

Saggio dunque 'l rimprovero del cuore

Nel più vivo lo stampo, ed il consiglio

Per seguitar, o Nice, ho gran valore:

Angel sarò, che fuor del cauto artiglio

Per fuggire a tuoi lacci andrò, Amore,

Portando in fronte il volto del periglio.

XCII

Dolci compagni miei, dolce mia cura,

Consolate 'l mio duol; se pur vi piace

Rendermi quella sospirata pace,

Che mi toglie crudel la mia sventura.

Senza la vostra compagnia oscura

Parmi del Sol la scintillante face;

Sul'orme vostre 'l mio pensier seguace

Tutto ciò, ch'e diletto, odia, e scongiura.

Altro ciel, altre genti, astri infelici

Mi sforzano a veder: mi fu ribelle

La mia sorte; e son tutti miei nemici.

Ma se vedervi più negan le stelle,

Vi priego almen pe'suoi bei lumi, Amici,

Curate la mia Nice, e le sue agnelle.

XCIII

Dolci parole, or più non siete quelle:

Nice, a cui piacqui un giorno, or mi deride;

E le pupille sue, un tempo fide,

Or sono a danni miei barbare stelle.

Più costante, che incontro alle procelle

Scoglio, che urtano i venti, e le onde infide,

Quanto più col rigor crudel m'uccide,

Tanto ardo più per le sue luci belle.

Quell'ira sua, cred'io, dell'amor mio

Alimento è tal volta, e dell'imparo,

Per strugermi a suoi rai, nov'arti anch'io.

Pur non veggo 'l Destin, con me si avaro,

Se del suo sdegno a stimol così rio

Sento l'incendio, Amor, esser più chiaro.

XCIV

Non lasciarmi, crudel; quella, ch'io rendo,

Victima volontaria dal mio cuore

È ben degna di te, se pur l'amore,

Se pur il premio tuo non ti contendo.

Io senza speme alla tua luce attendo,

Come Clicie tallor: se del maggiore

Pianeta ogn'un'adora lo splendore,

Senza ch'il raggio l'urte, 'l va sieguendo.

Ma tu fuggi, crudel! Ah! non son io

Inteso a divorarti, o mostro, o fiera;

Placcarti voglio con il pianto mio.

Se pur muoverti ancor l'alma non spera,

Questo, barbara (oimè!) questo desio

Pera, ma innanzi a tuoi bell'occhi pera.

XCV

Del tuo Fileno alla incerata avena

Ferma, Nice crudel, ferma le piante;

Mentre in tua lode 'l Pastorello amante

Dolce fa risonar la selva amena.

Vedi, come di gioia in questa arena

Tutto par ch'innamore 'l tuo sembiante,

Il feroce Leon, la Tigre errante,

Il mar, che freme, il ciel, che ne balena.

Di sopra questo sasso ah ben vegg'io

Giungersi intorno a me del tuo bel nome

Al eco amato di Protheo la gregge:

Tutto vien'ad udirmi; è pieno il rio

De gl'umidi abitanti; e (non so come)

Altra legge non han, che la tua legge.

XCVI

Erra d'intorno a me l'ombra onorata

Di quella dolce, incantatrice Donna,

Che cinta or de più lucida corona

Splende fra gl'Astri alla mia fede ingrata.

Io la riveggo in torvo aspetto irata;

Or m'accusa, or mi siegue, or m'abbandona;

L'orribil voce mi spaventa, e sona,

Come fiamma di Giove in ciel vibrata.

Qual misero destin (o Dei!) qual forte

Amor mi dié! veggo la face mia,

Fuggo, tremo, m'aghiaccio, e non son forte:

M'accordo allor, che al fianco in ogni via

La seguitai: o quanto, Amor, la morte

Quanto fa, quanto mutta, quanto oblia!

XCVII

Questo, che la mia Musa oggi a te rende,

Indegno omaggio di beltà si rara,

Non lo sdegnar, ti chiedo, o Nice cara,

Nice, di ch'il bel volto il cor m'accende.

Di merti tuoi quel, ch'il mio canto prende,

Onorato argomento (o legge amara!)

D'umili voci alla cadenza avara

Non si concede, fugge, e se difende:

Desti nel alme poi la meraviglia

Dei nome tuo quel dissonante accento,

Che preziosi i miei voti mi consiglia:

A così dolce indulto andrò contento,

Se tu di Citheréa, di Giove figlia,

Non disapprovi, ó Nice, 'l mio concento.

XCVIII

Destes penhascos fez a natureza

O berço, em que nasci! oh quem cuidara,

Que entre penhas tão duras se criara

Uma alma terna, um peito sem dureza!

Amor, que vence os tigre por empresa

Tomou logo render-me; ele declara

Contra o meu coração guerra tão rara,

Que não me foi bastante a fortaleza.

Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,

A que dava ocasião minha brandura,

Nunca pude fugir ao cego engano:

Vós, que ostentais a condição mais dura,

Temei, penhas, temei; que Amor tirano,

Onde há mais resistência, mais se apura.

XCIX

Parece, ou eu me engano, que esta fonte

De repente o licor deixou turvado;

O céu, que estava limpo, e azulado,

Se vai escurecendo no horizonte:

Por que não haja horror, que não aponte

O agouro funestíssimo, e pesado,

Até de susto já não pasta o gado;

Nem uma voz se escuta em todo o monte.

Um raio de improviso na celeste

Região rebentou; um branco lírio

Da cor das violetas se reveste;

Será delírio! não, não é delírio.

Que é isto, pastor meu? que anúncio é este?

Morreu Nise (ai de mim!) tudo é martírio.

C

Musas, canoras musas, este canto

Vós me inspirastes, vós meu tenro alento

Erguestes brandamente àquele assento

Que tanto, ó musas, prezo, adoro tanto.

Lágrimas tristes são, mágoas, e pranto,

Tudo o que entoa o músico instrumento;

Mas se o favor me dais, ao mundo atento

Em assunto maior farei espanto.

Se em campos não pisados algum dia

Entra a ninfa, o pastor, a ovelha, o touro,

Efeitos são da vossa melodia;

Que muito, ó musas, pois, que em fausto agouro

Cresçam do pátrio rio à margem fria

A imarcescível hera, o verde louro!

EPlCÉDIO I

À morte do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Gomes Freire de Andrada, Conde de Bobadela, Governador e Capitão General do Rio de janeiro e Minas, etc etc etc

A ti me chego, ó Mausoléu sagrado,

De um alto Herói depósito adorado,

Permite que aos impulsos do gemido,

Das lágrimas, dos ais, corra advertido

A venerar as cinzas que sepultas.

Sei que ambicioso uma relíquia ocultas

Do mais raro Varão, que aponta a história

Nos eternos volumes da memória.

Daquele, que proposto como espelho

De uma inteira virtude, no conselho,

Na execução, mostrou que unir sabia

As leis da temperança e da valia,

Sustentando por modo estranho e raro

Do Monarca o amor, do povo o amparo.

Sei que guardas (eu digo) nas entranhas

O generoso braço, que às campanhas

Deu assombro e terror; sei (porque tudo

Explique de uma vez) que no horror mudo

Desse cofre soberbo a estranha dita

De um Andrada imortal se deposita;

Que no busto fatal a estampa grata

Do mais distinto Freire se retrata;

Que se guarda e se adora a imagem bela

Desse Conde feliz de Bobadela.

Ao romper o clamor das tristes vozes,

Ao soltar estas cláusulas velozes,

Oh! qual eco de dor, de pena, e pranto

Se vê corresponder a impulso tanto!

Em lágrimas se rompe o peito aflito:

De sombras veste o Céu; ao triste grito

Soluça o ar, os elementos gemem;

Todos da terra os fundamentos tremem;

E parece que a fúnebre saudade

Não encontra na vasta imensidade

De um mundo, que compreende, aquela esfera,

Que para o desafogo achar quisera.

Mas que muito, que ao lúgubre gemido

Se altere e cresça o universal ruído,

Se perde Portugal, se o mundo perde

Aquela sempre firme, sempre verde

Rama da heroicidade transtagana!

Se enfim de toda a glória lusitana

Um só Herói, que enchera o fasto inteiro,

Hoje vem a jazer por derradeiro

Deste calado horror no abrigo triste!

Aqui todo o valor de Marte assiste;

Aqui jaz todo o alento da piedade;

Aqui o desempenho da lealdade,

O magnífico, o sábio, o reto, o ativo,

O liberal, constante, discursivo,

Prudente, valeroso: ah! que a tal brado

Confunde-se a razão, pasma o cuidado!

Amplificar a esplêndida figura

De seus dotes quisera; abra a escultura

Dos pórticos a Fama; os olhos entrem;

Registem as estampas; reconcentrem

A longa admiração: desde a corrente

Do cristalino Tejo, oh! que valente

Neste quadro respira! Aqui, tingindo

Do sangue ibero as preciosas veias,

Roxas tornando as pálidas areias,

Une de Portugal ao cetro egrégio

Tantos novos troféus; o privilégio

De seu braço imortal quanto se aclama,

Quando em Campo Maior o cinge a rama,

Por triunfar co'as lusitanas Quinas!

Tu, soberba Castela, entre as ruínas

De teus muros o choras, o teu susto

Lá lhe soube tecer o louro augusto,

Com que apesar de tanto pranto e mágoas,

Enobreceu do Guadiana as águas.

Esse ferro, que agora dependura

Tinto de sangue a Fama, te assegura,

Aflito Portugal, as leis e o trono.

Da tua permanência o eterno abono

Deves àquela espada; ela se ensaia

Nos ilustres Avós: qual em Cambaia

O seu nome deixou! qual em Quiloa

Debuxa o seu brasão! Lá vive em Goa

A memória do sangue: honrado emblema

São de tanta virtude em nobre lema,

Entre as chamas dos bélicos alfanjes,

As ânsias do Indo, as lágrimas do Ganges.

Feliz, ó Portugal, feliz mil vezes

Tu, que para esplendor dos Portugueses

Deste ferro a memória tens guardado!

Se queres ser no mundo respeitado

Pela virtude, outro brasão não tomes,

Que ser Pátria dos Freires e dos Gomes.

Quem haverá que a competir se atreva,

Quando (porque imortal ouvir se deva)

Desde o teu berço este pregão respire!

Eu te prometo que por mais que gire

O Planeta da luz, outro portento,

Outra estirpe maior em todo o alento

Da fama se não logre: aqui se estende,

Aqui se alcança, aqui se compreende

Tudo quanto por glória, e por vaidade,

Engrandece o esplendor da heroicidade.

Mil séculos, e mil se tem passado,

Desde que o Céu com próvido cuidado

Vem lavrando a feliz genealogia

De Varões tão fiéis: a Monarquia

Os honra no solar de Bobadela

Em um Nuno, um Bermudes, um Fruela,

Um Rodrigo, um Forjaz, Peres, Fernandes,

Um Mendes, um Pauzona, e outros Grandes,

Que apontam com espíritos sublimes

A Desidério, Rei dos Longobardos.

Estes os imortais progenitores,

Que intimando no exemplo dos suores

A imitação de um Freire, em glória estranha

Enchem a Portugal, a Itália, e Espanha,

As Barras inculcando por divisa

No brasão, que o seu nome soleniza.

Mas como em um só quadro me detenho,

Admirando o valor, se o desempenho

De outras tantas virtudes tem chegado

A encher da Fama o generoso brado!

Fale a acorde harmonia, com que o vejo

Temperando o governo: aqui do Tejo

A Nau soberba se desata, aonde

O valeroso espírito se esconde,

Que ao antártico clima foi mandado

A governar todo o País dourado.

Este é das Minas, este o áureo hemisfério,

Nobre porção do lusitano Império:

Aqui, ó Rei, ao meu Herói confias

As rédeas do governo. De teus dias

A dilatar o esplêndido progresso

Terias outro abono! Eu não conheço

Vê qual desinteresse o acredita

Digno de teu favor: entre a esquisita

Cópia de tanto Ofir, a prata, o ouro,

O topázio, as safiras, o tesouro

Dos diamantes, que a terra desentranha,

Não sabem conceber a empresa estranha

De atrair-lhe a ambição; ao seu desprezo

Serve apenas de objeto o raio aceso

Do precioso metal; a alma se cria

Com tão nobre, louvável rebeldia,

Que nada menos a molesta e cansa

Que sustentar a sólida aliança

Que fez com a justiça: este progresso

Ganha em teu peito o luminoso apreço

De um vassalo fiel, nele guardando

De três governos repartido o mando

O Rio de Janeiro lhe obedece;

De São Paulo o empório reconhece

A alta moderação; e as Minas douro

Se esclarecem, tecendo o fausto agouro.

Mas oh! e com que inteiro movimento

A propagar do cetro o régio aumento,

Apesar do trabalho, a mão se aplica,

Quando o peso se dobra, ou se triplica!

Como a sagrada lei primeiro objeto

É da sua intenção, o alto projeto

De encher a obrigação do cargo ilustre

Quanto na execução lhe esforça o lustre!

De Nêmesis, parece que a balança

Nunca teve outro ponto; a segurança

Do fiel observou tão finamente,

Que se o digno se alegra, o delinqüente

Não acusa o castigo: a pena, o prêmio,

Achando na justiça igual o grêmio,

Saíam dentre as mãos tão bem pesados,

Que se viram talvez equivocados

O prazer e a dor: louva o aflito

A justa punição do seu delito;

E chora o benemérito, no susto

De não ser imortal Herói tão justo

Pronto o despacho, a súplica atendida,

Castigada a maldade, agradecida

A retidão, a idéia vigilante

Não conhece repouso um só instante:

Enfim o seu descanso, o seu sossego

É só a instância do zeloso emprego.

Oh! que estranha se inculca a nobre idéia

Deste saudoso Herói! Tanto de Astréia

O espírito igualou, que ao Rei, ao povo

Soube conciliar por modo novo.

O vasto empório das douradas Minas

Por mim o falará: quando mais finas

Se derramam as lágrimas no imposto

De uma capitação, clama o desgosto

De um País decadente; e ao seu gemido

Se enternece piedoso o esclarecido,

O generoso Herói: ao Soberano

Conduz a queixa, representa o dano.

Chega o remédio pela mão piedosa,

Ministra do favor; menos penosa

Já se modera a imposição: contente

Já ri o povo, já se alegra a gente.

Lisonjeiro o prazer cada um descobre,

Os pequenos, o grande, o rico, o pobre.

Ó alma grande! Ó alma esclarecida!

Digna de ser guardada, ser nutrida

Na pompa dos Elísios, entre os belos

Espíritos dos Élios, dos Metelos,

Dos Cipiões, Temístocles, Zopiros

E outros, que em felicíssimos retiros

Gozando estão as auras lisonjeiras,

Em prêmio desse amor, com que as primeiras

Fadigas de um solícito cuidado

Pelo Rei, pela Pátria hão consagrado.

Estes os frutos são dessa doutrina,

Que bebeste na cândida oficina

De uma ética inata: ali se alcança

Aquela inalterável confiança,

Que em ti sabes firmar, mostrando ao mundo,

Com desprezo da inveja, o mais profundo,

Positivo esplendor, que te reserva,

Superior à emulação proterva.

Que importa que de estrada dissonante,

Seguindo outros talvez o curso errante,

Assegurar pertendam sobre o trono

De um alto valimento o régio abono,

Se essa idéia injustíssima que os guia,

Estragando os desígnios, algum dia

Fará gemer com lástima importuna

O mal seguro alento da fortuna!

A idéia mais feliz de ser aceito

À vontade de um Rei é ter o peito

Sempre animado de um constante impulso

De amar o que for justo: este acredita

Ao servo, que obedece; felicita

Ao Rei, que manda; este assegura a fama;

Este extingue a calúnia, e apaga a chama,

De um ânimo perverso, que atropela

O precioso ardor de uma alma bela.

Pelos degraus desta feliz escada,

Subiste, ó Freire excelso: ao braço, à espada,

Ou na civil Minerva, ou na Castrense,

Há um Rei, que as fadigas te compense.

Triplica-te o governo; honra-te o cargo;

Teus méritos confessa; um campo largo

Aos prêmios abre; a General te chama;

Te fia os seus exércitos; te aclama

Na régia comissão seu substituto.

De tão alta virtude o egrégio fruto

Respira enfim no esplêndido apelido,

Título grande, sim; mas tão devido,

Que inda que teus serviços ornar venha,

Cuido que a régia mão não desempenha.

Não te faz grande o Rei: a ti te deves

A glória de ser grande; tu te atreves

Somente a te exceder; outro ao Monarca

Deva o título egrégio, que o demarca

Entre os Grandes por Grande; em ti louvado

Só pode ser o haver-te declarado.

Mas que muito, que a tanto Herói assista

Este influxo feliz, se ele conquista

Com seus braços o Céu! ele desata

Com a mão liberal a cópia grata

De tantos cabedais: é confiado

Menos o soldo, para o nobre estado,

Que para sustentar com régio empenho

Do coração devoto o desempenho.

A dispêndios do ardor, que a alma respira,

Ali aquele pórtico se admira,

Por onde se abre ao mundo a excelsa entrada

De uma casa, que a Deus é consagrada.

Têm de Teresa as religiosas filhas

Ali um santo abrigo: as maravilhas

De um zelo nunca visto ali se inculcam.

Buscas o Autor da nobre arquitetura?

Queres saber quem ergue essa estrutura,

O dórico, o coríntio frontispício?

Esse mármore o diga: mas o indício

Na pedra se não grava: oh! que a piedade

Lhe encurtou esse alento na vaidade!

Foi providência, não foi erro: ignora

Esse mármore egrégio a mão que o fora

Desentranhando desde a terra dura,

Que o erguera e polira. O Herói procura

Que se esconda o seu nome. Em glória tanta

O seu mesmo silêncio é quem o canta.

Vê que o dogma evangélico encomenda

Que a direita co'a esquerda não se entenda:

E esta máxima tanto a Freire agrada,

Que até com Deus a deixa praticada.

Deu a Deus só por Deus: ao padrão sobra

Saber que a Deus é consagrada a obra.

E quem (oh! Céus!), quem há que não presuma

Educado este espírito na suma,

Penitente fadiga dos desertos!

Quem há que estes estímulos despertos

Não julgue na Tebaida  mais austera!

Mas oh! quanto a virtude mais se esmera,

Lá cultivada desde a tenra idade,

Entre a perversa, mísera vaidade

Da militar licença, onde se apura

Toda a relaxação, toda a soltura!

Outro talvez de escola, que é tão fera,

Razão de seus escândalos trouxera:

Só acha Gomes da virtude a chama

No mavórcio  exercício; ali se inflama

Na alta meditação de um pensamento,

Que só em Deus contempla o fundamento

De toda a humana glória: na vigia,

Nos sítios, nos ataques, na porfia

Dos choques, dos assédios, lá protesta


Que a mão é só de Deus; nada lhe resta

Que esperar de si mesmo: neste estudo

Tudo se logra, se prospera tudo.

Não me suspenda deste templo o objeto;

Discorra a admiração: o ardente afeto,

Com que se entrega ao Céu, que bem se explica

Nessas casas de Deus! ele se aplica

A Protetor da caridade santa.

Com seu fervor congregações levanta,

Onde aos pobres assista. O Pão Sagrado

Se ministra aos enfermos; acha o aflito

No cárcere o favor, para o delito

Se deputa Advogado; ao morto acode

Com o supremo ofício a mão piedosa.

Tu, Vila Rica, tu, a mais saudosa,

Nessa casa de Deus, que hoje sustentas,

O choras, o suspiras, o lamentas.

Tu o choras, ó mundo: mas que digo!

O Céu o chora, o Céu: que o braço amigo

Não fez mais grato o mundo, que fizera

Agradecido o Céu: ele quisera

Este Herói imortal; a lei sagrada

Da Providência, a lei sempre adorada

É quem o rouba da ventura nossa,

Quem de nós o separa, sem que possa

Suspender-se a si mesma: é Providência;

Mas que digo! é decreto; é obediência.

E quem sabe se lá no eterno seio

Das idades futuras (não o creio),

Quem sabe se apesar da estranha inveja

Outra alma tornará, onde se veja,

Para consolação desta ânsia aguda,

A virtude exemplar, que aqui se estuda!

Em que tão largos séculos prepara

O Céu uma alma grande! O Tejo o diga

Se de Heróis lusitanos na fadiga

Deu à Fama, em idade dilatada,

Outro Freire, outro Gomes, outro Andrada.

Consolação pesada eu te proponho,

Ó Reino, em tal memória: sei que choras

Os breves dias, as ligeiras horas,

Que lhe cortou o próvido destino.

Ah! se o viras no susto intercadente

Do mortal desalento! o pranto infausto

Se convertera em júbilo. O holocausto

De uma alma pura ele feliz votava

Ao Criador eterno, e se abraçava

Com a celeste imagem de Teresa.

Dos amigos, dos servos a tristeza

Em melhor sorte converter queria.

O alento pouco e pouco se extinguia;

E seguro da empresa... ah! que emudeço!

Eu pasmo; eu tremo; eu choro; eu desfaleço.

Já roto, já quebrado o nobre escudo,

Guarda o Gênio o brasão: entre o horror mudo

O Templo de Teresa já demanda

Conduzido o cadáver; surda e branda

Se ouve a harmonia do tambor guerreiro;

Arrastam-se as bandeiras; pregoeiro

É o rouco metal; o pó sulfúreo

Em salvas se dispende: uma ânsia interna

A pompa funeral rege e governa.

Cingido dos Brandões, que a mágoa sofre,

Prossegue logo em um dourado cofre

O ilustre coração. Oh! quanto é digno

De respirar eterno o ardor benigno

Que o nutriu, que o gerou! penhor sagrado,

Do caráter de um Freire fiel traslado!

Deva ao bálsamo, deva o benefício

De triunfar do infausto precipício

Dos anos, nele achando a atividade,

Que não pôde encontrar na humanidade.

Não pode, excelso Herói, não pode esta ânsia

Permitir mais esforços à constância.

A registar de todo não me atrevo

O Templo, que busquei; a cifra escrevo,


porque o mundo jamais de ti se esqueça:

Aqui jaz... mas que digo! aqui começa

A nascer a virtude: não se apaga

Uma ilustre memória; não se estraga

Uma excelsa relíquia; antes mais templos

Se produzem da vida dos exemplos.

Oh! que enganadamente solicito

Achar letra que explique aquele invicto

Espírito, que choro: em vão se atenda

O risco, que lavrei. Tudo se emenda,

Tudo já se desfaz. Se o néscio intento

Eternizar procura o monumento,

Seja túmulo o mundo. A cobertura

Seja o Céu: honre a esplêndida figura

Das faixas toda a luz, a impulso tanto,

Suspiro o fogo, e oceano o pranto.

Seu potius

Pro tumulo ponas orbem, pro tegmine coelum.

Sidera pro facibus, pro lacrimis maria.

EPICÉDIO II

À morte de Salício

Espírito imortal, tu que rasgando

Essa esfera de luzes, vais pisando

Do fresco Elísio a região bendita,

Se nesses campos, onde a glória habita,

Centro do gosto, do prazer estância,

Entrada se permite à mortal ânsia

De uma dor, de um suspiro descontente,

Se lá relíquia alguma se consente

Desta cansada, humana desventura,

Não te ofendas, que a vítima tão pura,

Que em meus ternos soluços te ofereço,

Busque seguir-te, por lograr o preço

Daquela fé, que há muito consagrada

Nas aras da amizade foi jurada.

Bem sabes, que o suavíssimo perfume,

Que arder pode do amor no casto lume,

Os suores não são deste terreno,

Que odorífero sempre, e sempre ameno,

Em coalhadas porções Chipre desata:

Mais que os tesouros, que feliz recata

A arábica região, amor estima

Os incensos, que a fé, que a dor anima,

Abrasados no fogo da lembrança.

Esta pois a discreta segurança,

Com que chega meu peito saudoso,

A acompanhar teu passo venturoso,

Oh sempre suspirado, sempre belo,

Espírito feliz: a meu desvelo

Não negues, eu te rogo, que constante

Viva a teu lado sombra vigilante.

Inda que estejas de esplendor cercada,

Alma feliz, na lúcida morada,

Que na pompa dos raios luminosa

Pises aquela esfera venturosa,

Que a teu merecimento o Céu destina;

Nada impede, que a chama peregrina

De uma saudade aflita, e descontente,

Te assista acompanhando juntamente.

Antes razão será, que debuxada

Em meu tormento aquela flor prostrada,

Sol em teus resplendores te eternizes,

E Clície em minha mágoa me divises;

Entre raios crescendo, entre lamentos,

Em mim a dor, em ti os luzimentos.

Se porém a infestar da Elísia esfera

A contínua, brilhante primavera

Chegar só pode o lastimoso rosto

Deste meu triste, fúnebre desgosto,

Eu desisto do empenho, em que deliro;

E as asas encurtando a meu suspiro,

Já não consinto, que seu vôo ardente

A acompanhar-te suba diligente:

Antes no mesmo horror, na sombra escura

Da minha inconsolável desventura

Eu quero lastimar meu fado tanto,

Que sufocado em urnas de meu pranto,

A tão funesto, líquido dispêndio,

A chama apague deste ardente incêndio.

Indigno sacrifício de uma pena,

Que chega a perturbar a paz serena

De umas almas, que em campos de alegria

Gozam perpétua luz, perpétuo dia;

Que adorando a concórdia, desconhecem

Os sustos, que da inveja os braços tecem;

Que ignoram o rigor do frio inverno;

E que em brando concerto, em jogo alterno

Gozam toda a suavíssima carreira

De uma sorte risonha, e lisonjeira.

Ali, entre os favônios mais suaves,

A consonância ofenderei das aves,

Que arrebatando alegres os ouvidos,

Discorrem entre os círculos luzidos

De toda a vegetante, amena estância.

Ali pois as memórias de minha ânsia

Não entrarão, Salício: que não quero

Ser contigo tão bárbaro, e tão fero,

Que um bem, em cuja posse estás ditoso,

Triste magoe, infeste lastimoso.

Cá vivera comigo a minha pena,

Penhor inextinguível, que me ordena

A sempre viva, e imortal lembrança.

Ela me está propondo na vingança

De meu fado inflexível, ó Salício,

Aquele infausto, trágico exercício,

Que os humanos progressos acompanha.

Quem cuidara, que fosse tão estranha,

Tão pérfida, tão ímpia a força sua,

Que maltratar pudesse a idade tua,

Adornada não só daquele raio,

Que anima a flor, que se produz em maio;

Mas inda de frutíferos abonos,

Que antecipa a cultura dos outonos!

Cinco lustros o Sol tinha dourado

(Breves lustros enfim, Salício amado),

Quando o fio dos anos encolhendo,

Foi Átropos a teia desfazendo:

Um golpe, e outro golpe preparava:

Para empregá-lo a força lhe faltava;

Que mil vezes a mão, ou de respeito,

De mágoa, ou de temor, não pôs o efeito.

Desatou finalmente o peregrino

Fio, que já tecera. Ah se ao destino

Pudera embaraçar nossa piedade!

Não te glories, trágica deidade,

De um triunfo, que levas tão precioso:

Desar é de teu braço indecoroso;

Que inda que a fúria tua o tem roubado,

A nossa dor o guarda restaurado.

Vive entre nós ainda na memória,

A que ele nos deixou, eterna glória;

Dispêndios preciosos de um engenho,

Ou já da natureza desempenho,

Ou para a nossa dor só concedido.

Salício, o pastor nosso, tão querido,

Prodígio foi no raro do talento,

Sobre todo o mortal merecimento;

E prodígio também com ele agora

Se faz a mágoa, que o lastima e chora.

A lutuosa vítima do pranto

Melhor, que o imarcescível amaranto,

Te cerca, ó alma grande, a urna triste;

O nosso sentimento aqui te assiste,

Em nênias entoando magoadas

Hinos saudosos, e canções pesadas.

Quiséramos na campa, que te cobre,

Bem que o tormento ainda mais se dobre,

Gravar um epitáfio, que declare,

Quem o túmulo esconde; e bem que apare

Qualquer engenho a pena, em nada atina.

Vive outra vez: das cinzas da ruína

Ressuscita, ó Salício; dita; escreve;

Seja o epitáfio teu: a cifra breve

Mostrará no discreto, e no polido,

Que é Salício, o que aqui vive escondido.

EPICÉDIO III

À morte apressada de um Amigo

Comigo falas; eu te escuto; eu vejo

Quanto apesar de meu letargo, e pejo,

Me intentas persuadir, ó sombra muda,

Que tudo ignora quem te não estuda.

Há poucas horas que um ativo alento

Te dirigia o ardente movimento,

E em breve instante (oh! dor!), em breve instante

Se torna em luto o resplendor brilhante.

Arrebatado em vão te solicito

Por qualquer parte que se estenda o grito,

E aos ecos, ao clamor, que aos troncos passa

(Funestíssimo aviso da desgraça)

Apenas fala, apenas me responde

O desengano, que esta penha esconde.

Mas como em te encontrar minha ânsia tarda,

Se só este penhasco é quem te guarda!

Ele a saudade tua recomenda,

 Ele me escute, pois, ele me atenda.

Mármore bruto, que em teu seio encobres

Triste despojo de relíquias pobres,

Eu me chego a escutar-te: a ouvir-te venho,

Talvez de tanto ardor no heróico empenho,

Ao crédito maior esta alma aspira.

Se enlaçado nas redes da mentira

Amei té agora o meu profundo sono,

De tanto anúncio ao peregrino abono,

Eu quero despertar: volta a falar-me,

Ó dura penha, eu quero aconselhar-me

Contigo mesmo. Que lições prudentes

Hoje me estás ditando! Oh! que eloqüentes

Falam as sombras, os horrores falam,

Quando os alentos, quando as vozes calam!

EPICÉDIO III

À morte apressada de um Amigo

Comigo falas; eu te escuto; eu vejo

Quanto apesar de meu letargo, e pejo,

Me intentas persuadir, ó sombra muda,

Que tudo ignora quem te não estuda.

Há poucas horas que um ativo alento

Te dirigia o ardente movimento,

E em breve instante (oh! dor!), em breve instante

Se torna em luto o resplendor brilhante.

Arrebatado em vão te solicito

Por qualquer parte que se estenda o grito,

E aos ecos, ao clamor, que aos troncos passa

(Funestíssimo aviso da desgraça)

Apenas fala, apenas me responde

O desengano, que esta penha esconde.

Mas como em te encontrar minha ânsia tarda,

Se só este penhasco é quem te guarda!

Ele a saudade tua recomenda,

Ele me escute, pois, ele me atenda.

Mármore bruto, que em teu seio encobres

Triste despojo de relíquias pobres,

Eu me chego a escutar-te: a ouvir-te venho,

Talvez de tanto ardor no heróico empenho,

Ao crédito maior esta alma aspira.

Se enlaçado nas redes da mentira

Amei té agora o meu profundo sono,

De tanto anúncio ao peregrino abono,

Eu quero despertar: volta a falar-me,

Ó dura penha, eu quero aconselhar-me

Contigo mesmo. Que lições prudentes

Hoje me estás ditando! Oh! que eloqüentes

Falam as sombras, os horrores falam,

Quando os alentos, quando as vozes calam!

Dentro sepultas desse cofre infausto

De Aônio o resplendor, o lustre, o fausto.

Debaixo jaz dessa fatal dureza

Aquele ativo engenho, que a destreza

De Minerva poliu; o que esgotara

D'alta jurisprudência a luz mais rara.

Aqui sepultas, ó penhasco duro

(Tudo te digo), aquele Amigo puro,

Que ausente de minha alma hoje me ordena

A companhia só da minha pena.

No teu silêncio encontro o desengano

Do caduco esplendor do alento humano.

Tu me dizes quão pouco ao mundo importa

Esta cansada vida que suporta

Das fadigas o peso intolerável.

Venturoso Baixel em golfo instável

Me finges, me figuras: brando o vento

Ordenava a carreira; solto o alento

Das velas respirava a Nau segura;

Tranqüilo o mar com próspera brandura

Sustentava o seu peso: no acidente

De ingrata tempestade de repente

Se escandeliza  o Céu; o mar se altera;

Rompem-se as velas; pela crespa esfera

Vaga perplexo o lenho, absorto vaga;

Já perde o rumo, e infeliz naufraga.

E que se espera entre a fatal ruína?

Que mais se espera? Se da luz benigna

Se desperdiça o breve auxílio, ao menos

Enquanto a nós os Zéfiros serenos

Nos influem propícios, indeciso

Não vacile o discurso; o obséquio, o riso

Deste mísero golfo se aproveite,

Abominando os vícios, e o deleite

De tanto ardor profano: a razão venha,

E vendo que no abismo se despenha,

De seus mesmos horrores triunfante,

Sobre tanto desmaio o ardor constante

Da antiga Babilônia, que se estraga,

Novos alentos das ruínas traga.

Tudo, ó bruto penhasco, me insinua

O teu mesmo silêncio, a sombra tua.

E pois te encontro agora tão propício,

Só te quero rogar o benefício

De que ao triste cadáver alguma hora

A ânsia ardente com que esta alma o chora,

Por último favor, lhe comuniques.

Peço-te que de todo o certifiques

Do muito que o lastimo; e se há piedade

Nessa estranha região, chegue a saudade

Que te consagro, ô extremoso Amigo,

Sempre a viver, sempre a morrer contigo.

ROMANCE

Ao senhor José Gomes de Araújo, Desembargador do Porto,

Provedor da Real Fazenda, e Vedor Geral da Gente de Guerra na

Capitania das Minas Gerais etc etc etc

Sábio, e reto Ministro, aquela idéia

Que eu formo desse espírito, alguma hora

Há de chegar a dispensar-se ao mundo,

Inda que em sombras de uma imagem tosca.

Ver-se-á que quanto a mão do Rei Augusto

Mais liberal, mais pródiga vos honra,

Tanto o mérito vosso os mesmos prêmios

Acredita, enobrece, e condecora.

Entregue à vossa direção prudente

Foi o Erário Real; e apenas louva

A fortuna este bem, já vos admira

Cingir no Porto a Senatoria Toga.

Estes os louros são que vos prepara

Vossa egrégia virtude, que se de outra

Estranha mão brotassem produzidos,

Não seria a ventagem tão preciosa.

Do Real Decreto as cláusulas, que atendo,

Desta mesma verdade hoje me informam:

Ele nos insinua que os serviços

Com este novo ascenso se coroam.

Outro, que aos cargos do Conselho assiste,

Vigilante Ministro, assim o abona,

Quando nos diz que do interesse régio

Vossa atenção se preocupa toda.

Mas que muito, que o crédito daqueles

Assim vos busque, assim vos corresponda,

Se por vós, ó Ministro esclarecido,

Falam cheias de alento as mesmas obras!

Seguindo os vossos passos, desde quando

Pisais das Minas as montanhas toscas,

Que cousa há que não seja testemunho

Do zelo, que distingue as ações vossas?

Diga-o do Sabará na régia casa,

Onde do Erário se regula a soma,

Aquela perspicácia nunca vista,

Aquela sempre vigilância pronta.

Velando pelo Rei, que segurança

Não têm os seus Direitos! menor sombra

Não pode subsistir no engano indigno,

Da maldade uma vez cerrada a porta.

Este o teatro foi, onde a virtude

Mil padrões erigiu à vossa glória,

Acreditando em diligências graves

Do serviço real vossa pessoa.

Sem temer as distâncias e os perigos

Por ásperos sertões, empresa heróica,

Desde lá vos conduz a ver os matos,

Onde o Paracatu seu termo logra.

Ali provendo em equilíbrio tudo

Quanto acredita da Justiça as normas,

Desprezastes as calúnias, e somente

Deste à verdade a subsistência própria.

Vencidas neste giro (quem tal crera!)

Mais de trezentas léguas, a derrota

Terminais, respirando sem fadiga,

Ao ver que pelo Rei ela se abona.

Não bem cerraste os destinados dias

Do cargo de Intendente, já sem nota,

Que infame à residência, o Rei vos chama,

Já da Fazenda o Tribunal vos goza.

E para seres com maior ornato

Exposto a nossos olhos, vos coloca

Na Junta da Bahia, entre os que a Beca

Distingue, ilustra, qualifica, aprova.

Agora se outro alento me assistira,

Eu descrevera as peregrinas provas

Que fizeste avultar, juntando àquelas

Que a Fama em tanto giro admira absorta.

Eu dera a conhecer que neste emprego

Resplendeceu vossa virtude, posta

No mais distinto grau: dissera ao mundo

Que em vós do Erário se duplica a força.

A força se duplica: pois se aquele

Sustenta o Reino dispendido, a nova,

Interessante economia quanto

O zela mais, é certo, o aumenta, e dobra.

A prática piedosa, bem que inteira,

De uma exação ceder faz a demora

Dos devedores; e arrecada o Cofre

Quanto a avareza em subterfúgios forra.

O excesso das despesas se refreia,

O menos útil se modera e poupa;

O mesmo, que faltava, agora cuido,

Não só não falta já, antes já sobra.

Revolvem-se esquecidos monumentos

Que o tempo sepultava em cinza morta;

E porque tudo ao Régio Erário sirva,

Por eles se entra em recenseio às contas.

Oh! e que frutos deste exame tira

A Fazenda do Rei! quantos se encontram

Erros, e vícios, da maldade efeitos!

Se este se averigua, este se nota.

Nunca das Minas o País dourado

Com tão crescidas, avultadas somas,

Honrando o real selo os cofres, pôde

Ver tão soberba a lusitânia Frota.

Não só do Tribunal junto à fadiga,

Vos aplicais, Senhor, mas vos remonta

Novo cuidado a investigar os passos,

Que abre o extravio por estranhas bocas.

Pela Comarca, aonde os verdes campos

Têm do Sapucaí banhado as ondas,

Atravessais, entregue ao real serviço,

Os sertões, que inda as feras mal povoam.

Os caminhos do engano só trilhados,

Por vós pisados são, por vós se cortam.

Servem ao vosso zelo, ao vosso exame,

O fundo rio, a serra mais medonha.

Nada vos horroriza, nada embarga

A ilustre diligência, bem que aborta

Fúrias o Inverno, cóleras o Tempo,

Rotos os Céus em tempestades grossas.

Vedor Geral, fiada a vosso arbítrio

A comissão da empresa mais custosa,

Com quanta reflexão vos encontramos

Regulando as reclutas para as Tropas!

Atende-se à pobreza, ao desamparo,

Com a clemência a retidão se informa:

A tudo consultais dando os ouvidos

À Viúva, ao Irmão, ao Pai, à Esposa.

Mas que muito, Ministro inimitável,

Que muito obreis assim, se a vossa própria

Língua confessa que ao serviço régio,

Não o interesse, só vos chama a honra!

O amor só da virtude é que dirige

Iguais a vossa idéia as vossas obras,

Conhecendo que é ela de si mesma

O prêmio que mais val, que mais importa.

Por isso inda que ao mérito distinto

Falte a retribuição, só vos consola

Aquela sempre máxima adorável

Que o Pai da Liberdade amava em Roma.

Contenta-se Catão que a estátua sua

No Capitólio entre outras se não ponha,

Porque pergunte absorto o passageiro:

Quem é o que a Catão nega esta glória?

Tendes na fantasia sempre impressas

As imagens do sonho que ainda aponta

De Massinissa a Corte, quando ao Filho

De Cipião se mostra a esfera toda.

Ali se vos descobre que a primeira

Obrigação de um ânimo, que adora

O esplendor da virtude, é que somente

Se ame o seu Rei, a Pátria se socorra.

Daqui vem que é acerto tudo quanto

Imaginais, ou emprendeis; sufoca

A desgraça por vós o seu partido:

Tudo serve ao prazer, tudo à lisonja.

Oh! mil vezes feliz aquele exemplo

Que de vós se deriva! Se estudiosa

A virtude pudera retratar-vos,

Quantas ao mundo repartira cópias!

Nelas ensaiaria para as Becas

Ilustres Magistrados; menos pompa

Trajaram sobre a Fama outros Consultos,

De que o corpo jurídico blasona.

Os Flávios, os Hermógenes, os Élios,

Os Pérsios, os Papírios, os Mendonças,

Os Pegas, os Macedos, os Pereiras

Perderão junto a vós a glória toda.

Vós com justiça igual desempenhando

De sábio o nome, entre virtudes outras,

Sois afável, pacífico, prudente,

Sois liberal, benévolo; isto sobra.

Assim dais a saber que o vosso peito

Alenta aquele sangue, que se adora,

De um Pai, de quem no emprego, que ocupara,

Há de ser imortal sempre a memória.

Assim mostrais que ramo florescente

Sois de um Irmão, que em dotes, em pessoa,

Enobrece do Reino Lusitano

Tudo o que o cetro em seus domínios doura.

Porque entre as perfeições que vos ilustram,

Ainda a mais acidental, concorra,

Até mostrais o quanto a natureza

Se desempenha em vós, quando vos forma.

Cheios de atividade os olhos, dentro

Dos corações, nos dão não sei que mostras

De uma alma dominante: o que vos busca,

Ao respeito, ao agrado igual se dobra.

Mas que debalde a examinar me empenho

Os vossos atributos! Se se agoura

Pelos princípios o progresso, quanto,

Quanto o destino na esperança aponta!

Que comissões, que empresas vos auspica

O fausto lusitano! Ah! cerre embora,

Cerre a porta o futuro, porque a tanto

Não sobe a inculta lira, a Musa rouca.

FÁBULA

FÁBULA DO RIBEIRÃO DO CARMO

SONETO

A vós, canoras ninfas, que no amado

Berço viveis do plácido Mondego,

Que sois da minha lira doce emprego,

Inda quando de vós mais apartado;

A vós do pátrio rio em vão cantado

O sucesso infeliz eu vos entrego;

E a vítima estrangeira, com que chego,

Em seus braços acolha o vosso agrado.

Vêde a história infeliz, que Amor ordena,

Jamais de fauno ou de pastor ouvida,

Jamais cantada na silvestre avena.

Se ela vos desagrada, por sentida,

Sabei, que outra mais feia em minha pena

Se vê entre estas serras escondida.

Aonde levantado Gigante, a quem tocara,

Por decreto fatal de Jove irado,

A parte extrema, e rara

Desta inculta região, vive Itamonte,

Parto da terra, transformado em monte;

De uma penha, que esposa

Foi do invicto Gigante,

Apagando Lucina a luminosa,

A lâmpada brilhante,

Nasci; tendo em meu mal logo tão dura,

Como em meu nascimento, a desventura.

Fui da florente idade

Pela cândida estrada

Os pés movendo com gentil vaidade;

E a pompa imaginada

De toda a minha glória num só dia

Trocou de meu destino a aleivosia.

Pela floresta, e prado

Bem polido mancebo,

Girava em meu poder tão confiado,

Que até do mesmo Febo

Imaginava o trono peregrino

Ajoelhado aos pés do meu destino.

Não ficou tronco, ou penha,

Que não desse tributo

A meu braço feliz; que já desdenha,

Despótico, absoluto,

As tenras flores, as mimosas plantas,

Em rendimentos mil, em glórias tantas.

Mas ah! Que Amor tirano

No tempo, em que a alegria

Se aproveitava mais do meu engano;

Por aleivosa via

Introduziu cruel a desventura,

Que houve de ser mortal, por não ter cura.

Vizinho ao berço caro,

Aonde a pátria tive,

Vivia Eulina, esse prodígio raro,

Que não sei, se ainda vive,

Para brasão eterno da beleza,

Para injúria fatal da natureza.

Era Eulina de Aucolo

A mais prezada filha;

Aucolo tão feliz, que o mesmo

Apolo se lhe prostra, se humilha

Na cópia da riqueza florescente,

Destro na lira, no cantar ciente.

De seus primeiros anos

Na beleza nativa,

Humilde Aucolo, em ritos não profanos,

A bela ninfa esquiva

Em voto ao sacro Apolo consagrara;

E dele em prêmio tantos dons herdara.

Três lustros, todos d'ouro,

A gentil formosura,

Vinha tocando apenas, quando o louro,

Brilhante Deus procura

Acreditar do pai o culto atento,

Na grata aceitação do rendimento.

Mais formosa de Eulina

Respirava a beleza;

De ouro a madeixa rica, e peregrina

Dos corações faz presa;

A cândida porção da neve bela

Entre as rosadas faces se congela.

Mas inda, que a ventura

Lhe foi tão generosa,

Permite o meu destino, que uma dura,

Condição rigorosa

Ou mais aumente enfim, ou mais ateie

Tanto esplendor; para que mais me enleie.

Não sabe o culto ardente

De tantos sacrifícios

Abrandar o seu nume: a dor veemente,

Tecendo precipícios,

Já quase me chegava a extremo tanto,

Que o menor mal era o mortal quebranto.

Vendo inútil o empenho

De render-lhe a fereza,

Busquei na minha indústria o meu despenho:

Com ingrata destreza

Fiei de um roubo (oh mísero delito!)

A ventura de um bem, que era infinito.

Sabia eu, como tinha

Eulina por costume,

(Quando o maior planeta quase vinha

Já desmaiando o lume,

Para dourar de luz outro horizonte)

Banhar-se nas correntes de uma fonte.

A fugir destinado

Com o furto precioso,

Desde a pátria, onde tive o berço amado;

Recolhi numeroso

Tesouro, que roubara diligente

A meu pai, que de nada era ciente.

Assim pois prevenido

De um bosque à fonte perto,

Esperava o portento apetecido

Da ninfa; e descoberto

Me foi apenas, quando (oh dura empresa!)

Chego; abraço a mais rara gentileza.

Quis gritar; oprimida

A voz entre a garganta

Apolo? diz, Apol... a voz partida

Lhe nega forca tanta:

Mas ah! Eu não sei como, de repente

Densa nuvem me põe do bem ausente.

Inutilmente ao vento

Vou estendendo os braços:

Buscar nas sombras o meu bem intento:

Onde a meus ternos laços. . .!

Onte te escondes, digo, amada Eulina?

Quem tanto estrago contra mim fulmina?

Mas ia por diante;

Quando entre a nuvem densa

Aparecendo o corpo mais brilhante,

Eu vejo (oh dor imensa!)

Passar a bela ninfa, já roubada

Do Númen, a quem fora consagrada.

Em seus braços a tinha

O louro Apolo presa;

E já ludíbrio da fadiga minha,

Por amorosa empresa,

Era despojo da deidade ingrata

O bem, que de meus olhos me arrebata.

Então já da paciência

As rédeas desatadas,

Toco de meus delírios a inclemência:

E de todo apagadas

Do acerto as luzes, busco a morte ímpia,

De um agudo punhal na ponta fria.

As entranhas rasgando,

E sobre mim caindo,

Na funesta lembrança soluçando,

De todo confundindo

Vou a verde campina; e quase exangue

Entro a banhar as flores de meu sangue.

Inda não satisfeito

O Númen soberano,

Quer vingar ultrajado o seu respeito;

Permitindo em meu dano.

Que em pequena corrente convertido

Corra por estes campos estendido.

E para que a lembrança

De minha desventura

Triunfe sabre a trágica mudança

Dos anos, sempre pura,

Do sangue, que exalei, ó bela Eulina,

A cor inda conservo peregrina.

Porém o ódio triste

De Apolo mais se acende;

E sobre o mesmo estrago, que me assiste,

Maior ruína empreende:

Que chegando a ser ímpia uma deidade,

Excede toda a humana crueldade.

Por mais desgraça minha,

Dos tesouros preciosos

Chegou notícia, que eu roubado tinha,

Aos homens ambiciosos;

E crendo em mim riquezas tão estranhas,

Me estão rasgando as míseras entranhas.

Polido o ferro duro

Na abrasadora chama

Sobre os meus ombros bate tão seguro,

Quem nem a dor, que clama,

Nem o estéril desvelo da porfia

Desengana a ambiciosa tirania.

Ah mortais! Até quando

Vos cega o pensamento!

Que máquinas estais edificando

Sobre tão louco intento?

Como nem inda no seu reino imundo

Vive seguro o Báratro profundo!

Idolatrando a ruína

Lá penetrais o centro,

Que Apolo não banhou, nem viu Lucina;

E das entranhas dentro

Da profanada terra,

Buscais o desconcerto, a fúria, a guerra.

Que exemplos vos não dita

Do ambicioso empenho

De Polidoro a mísera desdita!

Que perigo o lenho,

Que entregastes primeiro ao mar salgado,

Que desenganos vos não tem custado!

Enfim sem esperança,

Que alívio me permita,

Aqui chorando estou minha mudança;

E a enganadora dita,

Para que eu viva sempre descontente,

Na muda fantasia está presente.

Um murmurar sonoro

Apenas se me escuta;

Que até das mesmas lágrimas, que choro,

A Deidade Absoluta

Não consente ao clamor, se esforce tanto,

Que mova à compaixão meu terno pranto.

Daqui vou descobrindo

A fábrica eminente

De uma grande cidade; aqui polindo

A desgrenhada frente,

Maior espaço ocupo dilatado,

Por dar mais desafogo a meu cuidado.

Competir não pretendo

Contigo, ó cristalino

Tejo, que mansamente vais correndo:

Meu ingrato destino

Me nega a prateada majestade,

Que os muros banha da maior cidade.

As ninfas generosas,

Que em tuas praias giram,

Ó plácido Mondego, rigorosas

De ouvir-me se retiram;

Que de sangue a corrente turva, e feia

Teme Ericina, Aglaura, e Deiopéia.

Não se escuta a harmonia

Da temperada avena

Nas margens minhas; que a fatal porfia

Da humana sede ordena,

Se atenda apenas o ruído horrendo

Do tosco ferro, que me vai rompendo.

Porém se Apolo ingrato

Foi causa deste enleio,

Que muito, que da Musa o belo trato

Se ausente de meu seio,

Se o deus, que o temperado coro tece,

Me foge, me castiga, e me aborrece!

Enfim sou, qual te digo,

O Ribeirão prezado,

De meus engenhos a fortuna sigo;

Comigo sepultado

Eu choro o meu despenho; eles sem cura

Choram também a sua desventura.

ÉCLOGAS

ÉCLOGA I *

OS MAIORAIS DO TEJO

Montano, Corebo, Lise e Laura

Eu canto os dous Pastores

Que o Tejo cristalino

Na bela margem viu: canto o divino

Assunto dos amores,

Que de inveja, e de agrado

O céu, a terra, o mar tem namorado.

Também das Ninfas belas,

Que Amor viu abrasadas,

Os números entôo: se entre aquelas

Cadências delicadas,

Rude o som de meu canto

Se faz digno, Senhor, de obséquio tanto.

Tu do semblante augusto,

Tu da frente serena,

Infante generoso, invicto, e justo,

Enquanto soa a avena,

Teu magnânimo alento

Comunica a meu débil, rouco acento.

E Tu, que os teus altares,

Princesa soberana,

Dilatas na extensão de ambos os mares;

Que Tétis, mais que humana,

Em melhor hemisfério,

Te adotas do Brasil o grande Império;

Enquanto montes d'ouro,

Brilhante pedraria,

Desde o Rio da Prata ao Tejo louro

A América te envia,

Lá dessa glória suma,

A ouvir os meus votos te acostuma.

Aonde o Tejo claro

Seus braços mais estende,

Onde a corrente, em círculo mais raro,

Grande parte comprende

Daquela alta Cidade,

Régio solar da lusa Majestade;

Dum lado e doutro lado

Se estende uma campina,

Em que traz a pascer o manso gado

Tanto a formosa Eulina,

A filha de Silvano,

Como o destro Corebo, o fiel Montano.

Em uma tarde, quando

Os músicos Pastores

Ao som da acorde flauta recitando

Estavam seus amores,

Nas vozes, que afinavam,

Deste modo a cantar se preparavam:

COR. Já que estamos, Montano, neste monte,

Sem outra companhia, enquanto o gado,

Buscando as doces águas dessa fonte,

Vem concorrendo dum, e doutro lado,

Aqui deste salgueiro,

Sentados junto à sombra, eu te requeiro,

Torna-me a repetir aquela história,

Que toda esta minha alma encheu de glória.

MON. Dos nossos Maiorais a grande festa,

Corebo, quem a viu jamais se farta

De a contar: mas enquanto a fresca sesta

A nós se chega, enquanto o Sol se aparta,

Tomando a flauta doce,

O caso contarei; mas ah! se fosse

Minha voz tão suave, e tão divina,

Como aquela que pede ação tão digna!

COR. Toma o teu instrumento: ele é tão brando,

Que se inda agora Títiro vivera,

Porque melhor pudesse ir entoando,

No canto de Amarílis o quisera.

Parece que os rochedos

Se abalam já do centro; os arvoredos,

A habitação deixando da espessura,

Vêm prontos a escutar tanta brandura.

MON. Efeitos são daquele heróico objeto,

Que eu tomo nos meus versos: maravilha

Não é que possa tanto o grande afeto

Com que o meu rendimento o voto humilha;

A história prodigiosa

Escuta, Pastor meu; ouve a ditosa

União dessas almas, que tem dado

À memória do mundo um tal cuidado.

O dia venturoso

 Para nós se chegava,

O dia em que no carro luminoso

O Sol mais abrasava:

De riso, e de alegria

O Céu, a terra, o mundo se cobria.

Mais que nunca suaves,

Ao despertar da Aurora,

De ramo em ramo as sonorosas aves,

Sobre os campos de Flora,

Alegres vêm saudando

Da fresca manhã bela o rosto brando.

As árvores copadas

Orvalho cristalino

Derramam sobre a relva: restauradas

A influxo peregrino,

Do inverno, que as rendera,

Formam as flores nova primavera.

Os Gênios da espessura

Então mais concertados

Andam mostrando anúncios da ventura.

Vêem-se os campos cercados

De avisos superiores,

Mandados desde o Céu para os Pastores.

Um salgueiro, que havia

Deixado a pompa verde,

De repente (oh! assombro!) se vestia

Das folhas que em vão perde,

E em prodígios maiores

As mesmas folhas deram logo flores.

Duas rolas, cantando

Naquela sovereira,

Docemente se estavam namorando:

Uma, e outra ligeira,

Com suave reclamo,

De folha em folha vão, de ramo em ramo.

Por entre o trigo louro

Discorre um vento brando,

Qual nunca se sentiu: um branco touro,

Entre os outros brincando,

Três vezes nessa praia,

A correr à porfia os mais ensaia.

Até dessa ribeira,

Que nos fica vizinha,

Se viu chegar à praia derradeira

Um Delfim, o qual tinha

Sobre a escama enlaçadas

As ramas de coral, ao Sol coalhadas.

O mar vinha trazendo

De conchas esquisitas

Uma grande abundância: estão-se vendo

Pérolas infinitas,

Que no centro ocultava,

Que de gosto talvez o mar as dava.

De Pã e de Himeneu,

Deidades soberanas,

Se escuta publicar o alto troféu;

As glórias, mais que humanas,

Os Pastores entoam,

As sacras Divindades apregoam.

Estão por toda a parte

As tochas incendidas

De Himeneu: o festejo se reparte

Entre as Ninfas luzidas,

Cercando em roda as teias

Náiades, Hamadríades, Napéias.

Podem ver-se os Silvanos,

Os Sátiros das covas

Deixar o triste abrigo: mais que ufanos,

Em seus hinos e trovas,

Com tal contentamento,

Que enchiam de alegria o mesmo vento.

Qual fiando a memória

Ao corpulento cedro,

Por triunfo da nunca vista glória,

Lavra o nome de PEDRO:

Qual compete à porfia,

Nas faias entalhando o de MARIA.

Os nomes venturosos

Se lêem por toda a parte:

Trabalham por fazê-los mais ditosos

A natureza e arte,

Porque nos troncos cresçam,

Porque nos mesmos troncos reverdeçam.

Dametas e Corroo,

Os músicos Pastores,

Que entre nós têm louvor quase divino,

Entoando os amores

Da Ninfa e caro Esposo,

Um cântico disseram portentoso.

Aqui sobre estes troncos

Uma letra se atende,

Composta por Alcino; inda entre os broncos

Debuxos se comprende,

E diz: "Chega-te, Amigo";

Mas, não: escuta tu; porque eu a digo.

Cor. Ao longe eu vejo; espera, meu Montano,

Eu vejo aparecer, ao que imagino,

O meu bem, se talvez me não engano:

Sim, a bela Pastora, o peregrino

Encanto desta vida.

Ela é: oh! que júbilo convida

A face alegre, a vista deliciosa

De Ninfa tão gentil, e tão formosa!

MON. Qual vem com ela, atende, a branca Laura,

Do coro enfim das Náiades o mimo!

Formosa é Lise, sim, formosa Aglaura;

Mais que todas formosa a Laura estimo.

Cantando vêm as belas,

Arrastando a seu cântico as estrelas;

Ouçamos o que dizem: mas eu creio

Que de chegar aqui terão receio.

Esta mata frondosa, esta espessura

Comodidade dão, onde escondidos

As podernos ouvir; e tu, procura

Que Lise não perceba os teus gemidos.

Enquanto elas cantando

Para nós descuidadas vêm chegando,

Ao número amabeu nos ajustemos,

E juntos os seus hinos alternemos.

Entenderão que os Sátiros das covas

Sua voz acompanham, ou que as penhas

Repetem desde longe aquelas trovas,

Que elas entoam lá; não te detenhas,

Entra nesta espessura,

Que as Ninfas vêm já perto: ah! que ventura!

Que glória para nós não esperada

Trouxe a sorte esta vez menos pesada!

COR. lá não tardo a seguir-te; porém temo

Que fôssemos já vistos: é mui alto

Aquele oiteiro. Desgraçado extremo

De um infeliz, pois tudo é sobressalto!

Não sei se dessa gruta

Seja melhor buscar a estância bruta,

Ou se melhor aparecer-lhes seja.

MON. A quem não matará da sorte a inveja!

Já Laura me divisa: o seu aceno

Me deu já a entender que me descobre.

COR. Lise me viu com rosto mais sereno,

É acertado que me não soçobre.

Cheguemos desde agora,

Cheguemos a encontrá-las: erro fora

Tão rústica mostrar a natureza,

Que se negue um Pastor a uma beleza.

MON. Se vens, Ninfa, buscando o verde prado,

Para lhe dar prazeres e alegria,

Tem dó também de um peito magoado,

Que vive só da pena e da agonia.

COR. Se o pensamento teu vem conduzido,

Divina Lise, a rogos de minha ânsia,

Eu te quero seguir, que o meu gemido

Te busca sempre com maior constância.

LAUR. Montano, o digno assunto de meu canto

Lugar me não consente, para ouvir-te;

Deixa, Pastor amado, deixa o pranto;

Pronta me hás de encontrar, pronta a servir-te.

LIS. Agora é lei forçosa de meu gosto,

Corebo meu, que tomes o instrumento;

Deixa as mágoas, Pastor, deixa o desgosto

E vem acompanhando o nosso acento.

MON. Não és tu a cruel, que em tanta idade

Jamais ouviste um dia os meus gemidos?

COR. De tua, mais que bárbara impiedade,

Como abrandou meu rogo esses ouvidos?

LAUR. Montano, não porfies: em meus ecos

Atende o peregrino objeto amado,

A cujo doce acento os troncos secos,

Os mármores talvez tenho abalado.

Eu trago de memória a cantilena

Que Corino compôs, quando o seguia

Dametas, o Pastor, que a doce avena

No cântico amabeu soar fazia.

Lise, e mais eu a vínhamos agora

Repetindo; e tão bela se mostrava,

Que no acorde trinar da voz sonora

A alma atrás do canto arrebatava.

LIS. Corebo apode ouvir, pois que presente

Não esteve à função do Himeneu santo:

Ele nos acompanhe juntamente,

Pois tanta suavidade tem no canto.

MON. O Céu essa fortuna lhe guardava,

Porque há pouco a Corebo eu repetia

A grande história, e quase se apressava

A lê-la nesse tronco, aonde a via.

Agora folgarei de acompanhar-te,

E para que de ti mais o mereça,

Este cajado toma, aonde em parte

Reconhecer teu mérito pareça.

Obra foi do divino Alcimedonte;

De flores o engastou; onde a mão dobra,

Vê como as pedras une destramente,

Variando a cor: tu viste melhor obra?

COR. Pois eu, Lise gentil, inda que ponha

Quantos gados, e campos eu possua,

Nada te venho a dar, porque é vergonha

Que outra coisa te dê, quando a alma é tua.

A parelha melhor do meu rebanho,

Aquela que é de pele remendada,''?

A flauta com que agora te acompanho,

Tudo enfim te darei, se tudo agrada.

LAUR. Árvores (eu começo) deste oiteiro,

Que enverdecendo estais na primavera,

Chegai a ouvir meu canto lisonjeiro.

LIS. Eu canto aquela Ninfa que pudera

Dar vida às tenras flores, alma às plantas,

Como Vênus às rosas já fizera.

MON. Branda corrente, tu que o gosto encantas,

Um retrato me pintas nessa fonte

Do primoroso Céu de graças tantas.

COR. Eu vi quando desciam desse monte

As Ninfas na formosa companhia,

Com o canto alegrando este Horizonte.

LAUR. De gosto os cabritinhos nesse dia

Deixaram de buscar o suco amado,

Esquecidos das mães na relva fria.

Lis. O trovão que soava deste lado

Agouro era somente da ventura;

Uivar se não ouvia o lobo irado.

MON. O mocho não grasnava na segura

Rama daquele choupo, onde outras vezes

Grasnar se ouvira pela noite escura.

COR. A ti se há de cortar das nossas reses

A vítima perpétua; o sacrifício

De nosso humilde voto não desprezes.

LAUR. Do culto de uni Pastor pequeno indício,

Eu tenho de trazer-te o mel dourado,

Se tanto à minha súplica és propício.

Lis. De própria mão o fruto sazonado

Eu colherei, levando juntamente

Dous recentais, que tenho aparelhado.

MON. Se estou ao som da flauta anal cadente

Ensaiando esta voz desconcertada,

É para a dedicar a ti somente.

Coi. Se apascento esta rústica manada,

É por ver se entre a mísera pobreza

De uni Pastor inda há cousa, que te agrada.

LAUR. Não foi Glauce formosa; a gentileza

Da linda Galatéia já não deve

Da nossa acorde flauta ser empresa.

Lis. Por ti já me parece escura a neve,

Não é tão encarnada a fresca rosa,

A comparar-se a ti nada se atreve.

MON. Derivada do Céu prole formosa

De Jove, que respiras do semblante,

Sobre a vida mortal, luz miais preciosa.

COR. Ah! quanta glória deste laço amante

Se espera conseguir! A paz do mundo,

A dita dos mortais por ti se cante.

LAUR. Para apertar o vínculo jucundo,

O sangue traz o fio, Amor o tece;

Assim se lavra o tálamo fecundo.

Lis. Nesta amena campina reverdece,

A memória dos Reis, segredo raro

Que de Mântua o Pastor  saber merece.

MON. Logra Amor o triunfo mais preclaro,

Que junta a Majestade à formosura;

Não precisa a virtude de outro amparo.

COR. Tu és do nosso Jove imagem pura,

Ao grande Deus do Céu bem te pareces

Nesta alma toda afagos e ternura.

LAUR. Tu, Ninfa, entre as mais Deusas só mereces

Este obséquio que agora satisfaço,

Que entre elas sobre todas resplendeces.

LIS. Será sempre imortal o terno laço,

Que o não pode cortar a morte feia,

Nem da fortuna o movimento escasso.

Mon. Feliz foi o agouro; nem se creia

Que me engana de louca a fantasia,

Ou que o meu pensamento me recreia.

COR. Eu o vi nessa estampa que luzia

Na outra parte do Céu sobre a direita,

E n'alma trago impressa a profecia.

LAUR. A memória feliz nesta alma aceita,

Fixa sempre se guarda, sempre pura,

Qual não pode acabar a sorte estreita.

Lis. Uma palma triunfal ao Céu segura

Se via remontar, que se enlaçava

Das ramas de uma vide; uma escritura

Desta sorte o segredo declarava.

SONETO

Se este Tronco adorado dos Pastores

Do tempo está zombando tão robusto,

Esta vide enlaçada ao Tronco augusto

Fará que os seus brasões sejam maiores.

Brotando frutos, sazonando flores,

Se verá triunfar do fado injusto,

Sem que da lei mortal se atreva o susto

A profanar seus claros resplendores.

Feliz do pátrio Tejo, o áureo terreno,

Que Amor quis, que dispôs a sorte avara,

Fosse de árvores tais o sítio ameno.

Quanta ventura, quanto bem declara

Este sinal, que pinta o Céu sereno!

Oh! Tronco generoso! Oh! Planta rara!

COR. Depois que abrasa o Sol a seca terra,

Não é tão agradável para as plantas

O chuveiro do Céu, que os ares cerra,

Qual foi para a minha alma, quando cantas,

Ouvir na tua flauta a doce história,

Com que tu me arrebatas e me encantas.

Na bela competência desta glória,

Quem me dera passar a noite, e dia,

Sem trazer outra coisa na memória!

MON. Contigo, caro Amigo, eu gostaria

De consumir o tempo, mas o gado

Anda correndo solto a relva fria.

Algum se acolhe ao mato emaranhado;

Fugiu-me o meu Baroso; já não vejo

Onde se foi meter o meu Bargado.

COR. Eu vou juntar as cabras, que desejo

Não trepem sobre aquela penha dura,

Que fica lá fronteira ao manso Tejo.

Adeus, Montano, adeus, que é noite escura.

Aqui cessava o canto

Dos músicos Pastores:

E se do teu influxo a esforço tanto

Imito estes Cantores,

Tu, generoso Infante,

Faze que as tuas glórias sempre cante.

Verás que ao nosso rio,

Verás que ao campo nosso,

Sentado junto ao álamo sombrio,

Se tanto acaso posso,

Em suave harmonia,

O teu nome repito noite e dia.

ECLOGA II *

FILENO

Na margem deleitosa

Do cristalino Tejo,

Sentado um Pescador, a pobre rede

Enquanto tem nas praias estendida ,

Ao longe uma harmonia

Nunca ouvida jamais, ao longe escuta

Um canto tão sonoro,

Que nem Glauco suave, nem o cego

Amante da formosa Galatéia,

De Sicília entoou na branca areia.

Corino era que vinha

Da aldeia já voltando, onde o pescado

A vender estivera; ali no povo

Uma notícia achou, a qual em trovas,

Por um Pastor discreto

Ordenadas ao som da acorde avena,

Trazia para o mar, quando aos ouvidos

Foi mais próximo o som.

Eu, que atendia,

Estas doces cadências percebia.

Que alegria, que gosto

Ao mundo comunica

O nosso Maioral O grato rosto

Do júbilo se explica

Pela voz dos Pastores,

Títiro e Alcimedon, grandes cantores.

Os campos neste dia

Se cobrem de verdura:

Pasta o gado contente a relva fria,

E na verde espessura

Novo contentamento

Desterra toda a sombra do tormento.

Os Sátiros das covas,

Deixando o caro abrigo,

Do seu rendido amor vêm a dar provas:

Eles trazem consigo

De Ninfas delicadas

Igualmente as mais belas e engraçadas.

Em concertados hinos

Soa toda a floresta:

Pastores mais gentis, mais peregrinos,

Concorrendo na festa

Do Maioral, oh! quanto

Agradável se faz seu doce canto!

Um louva a providência

Com que a tudo consulta;

Outro aplaude entre todos a excelência

Com que o seu gênio avulta,

Tornando venturosos

Deste campo os

 Pastores mais ditosos.

Já torna ao nosso mundo

Aquela idade de ouro;

O campo sem cultura já fecundo

Produz o trigo louro.

Tudo está melhorado:

A montanha, a campina, o vale, o prado.

A nós torna a inocência

Do século primeiro:

Torna a justiça, as Graças, a Clemência,

Que do tempo grosseiro

Desterra a maldade.

Oh! feliz estação! Oh! doce idade!

Assim cantava, quando

Ao chegar o seu barco

Junto à margem frondosa

Um pouco se calou; eis entretanto

Dos versos que lhe ouvia,

Aplicando uma parte ao tosco alento

Da flauta piscatória, desta sorte

A seu modo dispunha,

Das praias onde estava,

Fileno, o Pescador que o escutava.

SONETO

Assim como o Pastor, também o pobre,

O rude Pescador lá desde a praia,

Onde primeiro o Sol nas ondas raia,

Do seu voto a inocência não encobre.

Se ele cantando alegre se descobre

Talvez à sombra da copada faia,

Igual o nosso canto aqui se ensaia

Ao sussurro do mar, que a penha cobre.

Pode render ao Rei talvez Corino

Desde a rústica choça o branco leite,

O mel dourado, o pomo peregrino;

Mas espero eu também que ele me aceite

A rama de coral, que por tão fino

A coroa lhe esmalte, o cetro enfeite.

ÉCLOGA III

ALBANO

Louva-se a pacificação da guerra, mediante a direção do Ilustríssimo e

Excelentíssimo Senhor Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de

Oeiras, Primeiro Ministro de Portugal etc

Oferecida ao mesmo Senhor

Juxta illud Ovid. Trist./Si poteris vacuo tradi.

Ilmo e ExmoSr.,

Entrou em Roma o Pastor de Mântua, e dos benefícios que lá recebera, tirou a conseqüência de que devia adorar por Deus ao seu Augusto a. Continuou com o gênio dos montes a fazer estimável a flauta,e não tardou a equivocar entre os louvores de Augusto as glórias de Polião. Transportado aos agouros da felicidade prometida, levou o pensamento à dureza dos carvalhos; deles disse: viria tempo em que das suas veias nasceria a torrente do mel suave) b.

Estes dous lugares do Poeta Latino são, Excelentíssimo senhor, os que deram alento à minha Musa, para fazer chegar à presença de V. Excelência a Écloga de Albano. Eu não distingo se canto de Augusto, se de Polião: sei que é constante ao mundo, deveu Portugal na presente guerra todos os princípios da sua inexplicável felicidade à direção prudentíssima d. V. Excelência.

Não é este o único argumento que se nos tem dado do zelo, da vigilância, da atividade que a nosso benefício respira em todas as distintas ações de V. Excelência. O seu Ministério felicíssimo foi para nós uma nova idade de ouro, que fez produzir a terra sem fadiga; tornou inocentes os gênios, restituiu ao mundo a Justiça. Estes são os frutos que s. comparam ao mel; onde tudo é delícia, e tudo suavidade.

Refletindo no precioso sobrenome de V. Excelência, do que noto, e do que admiro, tomo, Senhor, a certeza de estar em tudo cumprida a profecia do Mantuano c. E mendigando do Poeta português as expressões, com que disse:

Enquanto do seguro azambujeiro

Nos Pastores de Luso houver cajado,

passo, com as mais ajustadas circunstâncias, a cantar a segurança da Monarquia Portuguesa, enquanto do seio d. um carvalho frutificar o mel que fertiliza os campos.

Oh! e que matéria de agouros felicíssimos me não prometem as inescrutáveis máximas da alta enciclopédia de V. Excelência! Que glórias, que benefícios não assegura a Portugal o seu adorável Ministério! Falem calcados de frotas os mares: diga-o cheia de fábricas a terra d. Até aqui se adorava o estranho; agora já s. faz desperdício do próprio: amou-se a esterilidade; já se não estima a abundância. Época mil vezes gloriosa aquela que do nome de V. Excelência puder ostentar a vaidade!

Este argumento, Excelentíssimo Senhor, era mais digno da cítara dos Homeros que da rudeza da minha flauta, Teçam outros as Epopéias dos preciosos louvores que a V. Excelência se devem: eu pedirei às Musas que por mim o digam, já que eu não posso e.

Saio dos montes; vivo na incultura; comunico a rusticidade: não é muito que tudo o que concebo seja dissonância, e seja barbarismo tudo o que pronuncio. V. Excelência atenda ao meu ânimo, e não se ofenda do obséquio. Talvez que não sem acordo buscasse o gênio do campo, quem pertende na simplicidade do estilo acreditar a inocência do voto. Deus guarde a V. Excelência, etc..

D. V. Excelência

O mais humilde servo,

Cláudio Manuel da Costa

ALBANO

Salício, Alcino, Melibeu

De Alcino e de Salício,

Aqueles dous cantores,

Que da voz e da flauta no exercício,

Dão assunto aos Pastores,

Benigno Apolo ordena

Que eu repita o que ouvi, na doce avena.

Tu, Musa, que ensaiada

À sombra dos salgueiros,

Esta inculta região viste animada

Dos ecos lisonjeiros,

Um novo empenho agora

Comigo entoe a lira mais sonora.

As iras de Amarílis,

De Lícida os extremos

Basta já de cantar, basta de Fílis:

Cousas dignas cantemos,

Dignas pela grandeza

De estampar-se dos cedros na dureza.

Para estender meu brado,

Igual àquele empenho,

Que eu concebo no assunto levantado,

Não basta ao tosco engenho

Nem esforço, nem arte,

Se vós no canto meu não tendes parte.

Vós, Conde, que cingido

De verdes resplendores,

Sobre a fama levais o vôo erguido,

Que do peito em ardores

A virtude alentando,

O nome à eternidade ides mandando.

Vós, que de alta grandeza

Brotando ramo ilustre,

Devendo tanto esmalte à natureza,

Maior aumento, e lustre

Buscais ao sangue egrégio

De cada ação que obrais no fasto régio.

Se as fortunadas horas,

Que à minha flauta entrego,

De vós, Senhor, são dignas, as sonoras

Dríadas do Mondego,

Vos prometo que eu veja

Cheias por mim duma amorosa inveja.

De Meandro e Caístro

Cessarão as memórias;

Do Douro ao Ganges, e do Tejo ao Istro,

As lusitanas glórias

Levará o meu canto,

Se o pátrio Ribeirão me inspira tanto;

Ouvi do grande Albano

Que bem o nome soa:

Ouvi, que se no exemplo não me engano,

Alcino vos pregoa:

De vós, Herói distinto,

As cores tiro, com que a Albano pinto

A tarde já caía;

E o sol mais temperado

Seu rosto dentro da água recolhia

Quando num verde prado

Salício se avistava

Com Alcino, que acaso ali chegava.

Distante está do Tejo

O sítio peregrino;

E bem que a Alcino atrás do seu desejo

Conduzira o destino

A ver da Corte o estado,

Para o campo outra vez tinha voltado.

Largas horas havia

Que estavam praticando

Em Laura e Dinamene; na porfia,

De conversa mudando,

Salício assim se avança,

E Alcino de escutá-lo se não cansa:

SAL. Conta-nos o que ouviste, o que notaste,

Alcino meu, naquela grande Corte

Para onde há tanto tempo te apartaste.

Explica-nos, Pastor, o como a sorte

Assim se melhorou; que já se ausenta

Do nosso campo a guerra, a fome, a morte.

Deus sabe quanto susto esta tormenta

Fez aqui entre nós, ao ver que vinha

O inimigo com mão dura e violenta.

Esses campos dalém, dizem que tinha

Destruído e arrasado; sem que nada

Lhe contivesse fúria tão daninha.

Todos se foram pondo em retirada,

Salvando cada qual por modo estranho,

Aquele o fato seu, este a manada.

Eu, que estava esperando mal tamanho,

Não quis daqui fugir, porque a pobreza

Me não dá que perder, choça ou rebanho.

Tu sabes que não sei o que é riqueza;

Que passo aqui contente noite, e dia,

Zombando da ambição e da avareza.

Nisto agora conheço a primazia

Que levo aos meus Serranos: eles tremem;

Eu faço do inimigo zombaria.

ALC. No mal comum, Salício, todos gemem,

E se tu de fortuna hoje melhoras,

Não escarneças tanto dos que temem.

De melhor condição acaso foras,

Se o lobo matador aqui chegasse

A tingir no teu sangue as mãos traidoras?

Imaginas que só se contentasse

Co'a pobreza do fato? Que somente

Os cabritos comesse, ou os roubasse?

Desgraçado de ti, que és inocente!

Foras tu por onde eu andei girando,

Tu viras o que vai por essa gente.

Tu viras um filhinho soluçando

Pelo Pai, que lhe morre; o outro viras

Por falta de sustento andar chorando.

Lá vão as sementeiras: que te admiras!

Tudo levou o fogo; o campo verde

Foi posto do inimigo às cruéis iras.

Que importa, que este mais devesas herde?

Que aquele mais possua, se no estrago

Cada um à proporção seu tanto perde?

Eu perco mais que todos, porque trago

Apenas o meu fato a salvamento,

Que a mudança me deu este bom pago.

Cuidei achar melhor acolhimento

Nos Pastores da serra; andei errado

Em deixar deste campo o doce assento.

Depois passei-me à Corte, a ver o estado

Das cousas, como lá se governavam:

Ah! Que de quanto vi, fiquei pasmado.

SAL. Não te falo no tempo em que pastavam

Teus gados sobre a serra; eu sei que tudo

Perdeste, como os mais que lá se achavam.

Mas depois que passou teu gênio rudo

A amparar-se da Corte, é que eu quisera

Saber o que lucraste neste estudo.

ALC. Inda que outra ventagem não tivera,

Muitas vezes feliz a minha dita

Em ver o meu Albano conhecera.

SAL. Quem é o teu Albano? Aonde habita?

Que gênio, condição, ou qualidade

Tanto assim entre os nossos o acredita?

Não sai Pastor daqui para a Cidade,

Que em voltando de lá dele não conte

Cousas dignas de grande novidade.

ALC. E crês tu que no vale, bosque, ou monte

Vivirá tronco, ou penha, que algum dia

As memórias de Albano não aponte?

Qual de nós escapara à morte fria?

Quem tornara a ver mais sua devesa?

Quem seu gado, ou currais inda acharia,

Se este Pai dos Serranos com presteza

Não acudira a bem do nosso amparo,

A vencer do inimigo a fortaleza?

Corria ensangüentado o Tejo claro:

Ia levando a espada cortadora

Tudo o que se encontrava sem reparo.

Não houve noite, ou dia, instante, ou hora,

Que algum grande sucesso se não visse,

Ou no ferro, ou na chama abrasadora.

Miseráveis vaqueiros! Quem subisse

Sobre aquela alta serra, ah! como creio,

Que o coração em lágrimas partisse!

Oh! como nada farta o sangue alheio

Àquele a quem conduz sua maldade,

A que obre sem vergonha, honra, nem freio!

Como se quebra a fé, ou lealdade

Só pela vil cobiça! Da virtude

Não se faz caso já, nem da verdade.

SAL. Bem que o teu pensamento nisso estude,

Sempre verás, Alcino, como é certo

Só vive co'a justiça um gênio rude.

SAL. Eu te sigo, Pastor; canta a excelência

Do grande Albano teu; aqui sentado

Inspira-me também essa influência.

O número amabeu é concertado;

Quero-te acompanhar; vá de certame:

Tu porás a sanfona, eu o cajado.

Mas lá vem Melibeu; justo é que o chame,

Para louvado ser desta porfia;

Ele do nosso canto faça exame.

MEL. A tempo chego enfim, que não queria;

Pois jamais foi meu gosto em arte ou prenda

Mostrar que entre vós outros mais sabia;

Mas se não decidir esta contenda,

Ao menos pronto estou para escutar-vos;

Cantai, que tendes já quem vos atenda.

ALC. Não tenho medo algum de disputar-vos

A palma entre vós outros; porque venho

Da Corte, e trago um canto que ensinar-vos.

Nele se conta o mal, a guerra, o empenho,

Que infestou toda a terra: o estilo é novo,

Mui diverso do nosso, obra de engenho.

Não o sabe cantar qualquer do povo;

Algum somente cortesão polido

 E que o canta por lá....

SAL. Pois eu o aprovo.

MEL. Não eu; que não me entendo co'ruído

De vozes estrangeira; mas vá feito;

Sempre para escutar aplico o ouvido.

ALC. Aqui nesta cortiça ao modo e jeito

Do nosso campo eu a cortei: entanto

Que eu digo o meu, tu, lê o teu conceito,

E acompanha, Salício, o novo canto.

ALC. "Musas do monte Mênalo, que um dia

Com suave harmonia

Cantastes brando o peito

De Dafne, o Pastor claro;

Melhorando o conceito,

Fazei que o tempo avaro

Só traga na memória

O nome soberano,

A nunca vista glória

Do meu sublime, do meu grande Albano.

SAL. Do meu sublime, do meu grande Albano,

Vereis, se não me engano,

Que este monte repete

O esforço mais que humano;

Aquele, que compete

Na pompa e na grandeza

Ao tronco mais luzido,

Que alenta a natureza,

Que o Céu tem produzido,

Para ser nestes montes adorado.

ALC. Para ser nestes montes adorado,

Por ele é renovado

Da selva dodonéia

O oráculo sagrado:

De Nêmesis e Astréia,

Com tanta segurança,

Oh! como ele sustenta

A espada e a balança!

Com providência atenta,

Oh! como ampara ao bom, ao mau castiga!

SAL. Oh! como ampara ao bom, ao mau castiga!

Por ele, é bem se diga,

Que torna a idade d'ouro.

A terra sem fadiga

Produz o trigo louro;

Prodígio que invejava

De Mântua o Pastor belo,

Quando viu que brotava

Com próvido desvelo

O mel dourado dos carvalhos duros.

ALC. O mel dourado dos carvalhos duros,

Os campos mal seguros,

A nosso benefício,

Faz que brotem maduros

Seus frutos já sem vício:

Ele as fúrias quebranta

Do bárbaro, que vinha

Com avareza tanta,

Que já pisado tinha

Quanto erguera a fadiga, e o trabalho.

SAL. Quanto erguera afadiga, e o trabalho,

O abrigo, o agasalho,

Tudo a nós restitui.

A fecundar o orvalho

Os campos continue;

Saia a cortar a terra

O lavrador aflito,

Que já fugiu a guerra;

Já se não ouve o grito

Da miséria, da fome, da penúria.

ALC. Da miséria, da fome, da penúria.

Já se desterra a injúria.

O ferro que aos arados

Servira, o troca a fúria

Em dardos aguçados;

Mas já com melhor sorte

São da vida instrumentos,

Instrumentos da morte.

Oh! que grandes portentos!

Que arte feliz do nosso grande Albano!

SAL. Que arte feliz do nosso grande Albano!

Armada em nosso dano

A gente, que costuma

Usar do torpe engano,

Porque tudo consuma,

Entrava aferro e fogo

Quanto banhara o Tejo;

Mas desmaiando logo

O malvado desejo,

Tudo foi confusão, tudo foi susto.

ALC. Tudo foi confusão, tudo foi susto,

Quando no assalto injusto

Se viu pela campanha O espírito robusto,

Que lá da Pátria estranha

Em nosso auxílio veio;

E mais que a armada gente,

Vence o dano, e o receio

O aviso providente

Daquele Herói, que o Reino governava.

SAL. Daquele Herói, que o Reino governava,

A nós se dispensava

A direção, o acerto:

A tudo consultava,

Vendo crescer o aperto.

Não há fútil empenho

A que não sirva a idéia,

A que não sirva o engenho:

O seu conselho enfreia

Do inimigo o furor, do ferro a ira.

ALC. Do inimigo o furor, do ferro a ira.

Por ele enfim respira

Da Paz no doce laço

O Reino, que se vira

No fúnebre ameaço:

Ao som do bronze rudo

Já foge o inimigo;

Tudo se aplaca, tudo

Torna ao sossego antigo.

Oh! doce Paz! Oh! Íris da tormenta!

SAL. Oh! doce Paz...!"

MEL. Tem mão, Salício, atenta:

Bem que se escute há uma hora, não me agrada

Essa vossa cantiga, tão violenta.

Alguém há de cuidar que é frase inchada

Daquela que lá se usa entre essa gente,

Que julga que diz muito, e não diz nada.

O nosso humilde gênio não consente

Que outra poisa se diga mais que aquilo

Que só convém ao espírito inocente.

A frase pastoril, o fraco estilo

Da flauta e da sanfona, antes de tudo,

Será digno que Albano chegue a ouvi-lo.

Se Alpino tem lá feito o seu estudo

Nesses versos que traz, nós cá cantemos

Ao nosso modo; inda que seja rudo.

SAL. Vá feito, Melibeu; é bem pensemos

Em que não desmereça o nosso canto

A pobre condição com que nascemos.

ALC. Nada, Amigos, me pode agradar tanto

Como os versos que trago de memória,

De que se faz na Corte um grande espanto.

Deus sabe o que custou que eu toda a história

Conservasse de por: outro não teve

Dentro em tão poupo tempo tanta glória.

Laurênio, quantos dias não esteve

A aprendê-los comigo! A bela Anarda,

Que empenho por sabê-los me não deve!

MEL. Pois olha tu, Alpino, se não tarda

De acordar-se a lembrança, eu te asseguro,

Vejas pousa melhor, que um tronco guarda.

SAL. Queres talvez mostrar-lhe aquele duro

Salgueiro, onde outro dia descreveste

De Amarílis o nome, sempre puro?

MEL. Não é este o meu verso, não é este.

ALC. Pois é acaso a letra decantada

Que fizeste ao teu bem, e ontem a leste?

MEL. Tampouco.

SAL. É a de Angélica adorada,

Aquela cantilena que começa

"Onde te esconderás?..."

MEL. Não. É errada

A vossa presunção: não se arremessa

Tão longe da razão meu desatino,

Que assunto tão diverso agora peça.

O verso, que mostrar-vos determino

É um que, há poucos dias a esta parte,

Cortou sobre um carvalho o velho Albino.

Cheios d'engenho são, d'idéia e d'arte:

Inda bem se não sabe o seu assunto,

Ou fala com Apolo, ou co'deus Marte.

SAL. Pois anda, Melibeu; contigo junto

Vou ver esse carvalho: anda, caminha,

Vamos, que já mais nada te pergunto.

ALC. Quase que de seguir-vos eu não tinha:

Pois cá no coração me está batendo

Que a cantiga não é melhor que a minha.

MEL. "Pastores, os que andais lá sobre a serra,

Apascentando as pobres ovelhinhas,

A quem vem perseguindo a dura guerra,

Desde a gente distante às mais vizinhas:

Se abrasa o fogo, se não guarda a terra

Iguais vossas herdades, pomo as minhas,

Comigo consolai o vosso pranto,

Que eu perco mais que vós, ou perco tanto.

Eu também fui senhor de uma manada

Que enchia estes currais: o pampo amigo

Também me dava a fruta sazonada,

As castanhas, a uva, a pêra, o figo;

Veio (quem crera tal!) com mão armada

Sobre nós o faminto do inimigo;

Tudo afogo levou; pôs tudo aferro;

A mim me coube apenas um desterro.

Desde o Douro ao Mondego não havia

Nem gado, nem curral que não gemesse.

Tudo vinha arrasando a tirania

Encoberta na forma de interesse.

Quem de tamanho mal escaparia,

Se o grande Deus do Céu não protegesse

A gente lusitana, a gente santa,

Que para o seu brasão a cruz levanta!

Ele nos concedeu com mão piedosa

Uma alta Divindade em nosso amparo,

Que fez segura a sorte duvidosa

E a todo o nosso dano pôs reparo.

Já fugiu a tormenta tenebrosa;

Já resplendece o Céu sereno e claro;

Feliz, ó Portugal, feliz mil vezes

O destino dos povos portugueses!

Por esta Divindade entrou a cura

Do contágio fatal, que o Reino via:

A sua atividade é que segura

Toda a conservação da Monarquia.

Assim como o Piloto em noite escura

Vence com arte, e modo a névoa fria,

Seguindo sempre o rumo, assim se assenta

Que ele soube guiar-nos na tormenta.

Não sei como chamar-lhe deva agora;

Sei que o Deus há de ser dos portugueses,

A quem co’a machadinha cortadora

Se hão de sacrificar as nossas reses.

Dia não haverá, instante, ou hora,

Que seu nome não cantem nossos meses.

Digam uns que é Apolo, outros que é Marte,

No engenho, no valor, no esforço, e n'arte.

Quem faz fugir a gente castelhana,

Quem à França também põe duro freio,

Há de estender a terra lusitana

Até chegar além do berço alheio.

O meu gado, se a idéia não me engana,

Eu pertendo levá-lo sem receio

Por campos nunca vistos, nem pisados,

Que estão da verde relva carregados.

Plantarei novas vinhas onde tenha

O grosso cabedal, que a Corte estima:

Terei mil sementeiras, com que venha

A ser maior que todos os do Lima.

Esta gralha, que canta, é que me empenha;

Este sinal do Céu é que me anima:

Tudo serve de agouro, porque em tudo

Anda a minha razão fazendo estudo.

Eu vejo que por esta Divindade

O mar se vê de frotas oprimido;

Que, sem que do estrangeiro a droga agrade,

Nos dá o Reino pão, dá o vestido:

Tudo fica entre nós, sem que a vaidade

O tenha de outras gentes recebido.

Já não vem a roubar-nos o pirata

Que daqui nos levava o ouro, a prata.

Não só gira o comércio que a firmeza

Dos Reinos assegura: premiado

Se levanta com brio e fortaleza

Do sono e da preguiça o vil Soldado.

Tudo já é valor, tudo é destreza

No cobarde igualmente, e no esforçado.

Oh! quanto pode a direção prudente!

Um forte Rei faz forte a toda gente.

ALC. Por certo, Melibeu, não me atrevera

A cantar junto a ti, se essa cantiga,

Antes de ta escutar, ouvido houvera.

Justo parece, Amigos, que se diga:

Não pode competir coca flauta agreste

Tudo o que desconhece a idade antiga.

SAL. O canto é tão divino, tão celeste,

Que eu nunca de escutá-lo me fartara.

Oh! que cousas tão belas que disseste!

De Títiro a harmonia doce e rara

Assim se imita bem, quando sentado

Ao Deus, que vira em Roma, lá cantara.

ÉCLOGA IV *

LÍSIA

Se é certo que inda vive a doce avena

Que chorou Coridon, chorou Amintas,

Tu me tens de escutar, ó Selva amena.

Eu por entre estas sombras mal distintas,

Ao resplendor da Lua, que aparece,

Quero que tu comigo o meu mal sintas.

Agora pois que o vento se enfraquece,

Que o sussurro do mar está mais brando,

Que o ar se acalma, o campo se entristece,

Inclina o teu ouvido: eu entoando

A minha fraca voz, agreste e triste,

Estarei minhas mágoas recitando.

Dura consolação! A quem assiste

Um fado tão cruel, outra esperança

Não tem mais do que a queixa em que persiste.

Como posso apagar esta lembrança

Daquele grande bem que eu discorria,

Que jamais poderia ter mudança!

Quem, fortuna (ai de mim!), quem me diria

Que havia de vir tempo, em que faltasse

Aquela doce união, em que eu vivia!

Quando Lísia cuidou que lhe roubasse

A sorte desigual a Sílvio amado,

Sílvio, que outro não há que mais amasse!

Que ditoso não via o meu cuidado

Na posse de um tesouro, onde segura

Tinha a sorte o meu bem depositado!

Aqui sobre esta penha onde murmura

A onda mais quebrada, quantas vezes

Me não pus a cantar minha ventura!

Sacrifício lhe fiz das minhas reses;

Para ele colhi somente o fruto

Que o Sol sazona nos dourados meses.

Tudo o que leva o campo, eu em tributo

Mil vezes lhe rendi: ah! como agora

O meu rosto não posso ver enxuto!

Deixou-me Sílvio; sim, Sílvio, que fora

Distinto Maioral destas campinas,

Glória de Lísia, por quem Lísia chora.

Deixou-me: mas por quem! Se é que inda atinas,

Saudoso coração, nesta tormenta,

Explica de meu pranto as ânsias finas.

Deixou-me por aquela que se ostenta

Com o nome de Rica; a que sepulta

Em seu seio os tesouros que sustenta.

Deixou-me por aquela que se oculta

Na parte mais distante, porque eu tenha

Inda mais que sentir na dor que avulta.

Ah! E como é possível que me venha

Uma constância tal, que, instando a mágoa,

A formar minhas queixas me detenha!

Os olhos de saudade rasos d'água

Que mais hão de fazer que estar chorando

A sem-razão de tão penosa frágua!

Vós, campos, que me vistes já gozando

A delícia do meu contentamento,

Ide-vos pouco a pouco desmaiando.

Não espereis jamais o luzimento

Que Sílvio aqui vos deu: Sílvio vos falta;

De Sílvio não há mais que o sentimento.

Buscou outra campina; outra se exalta

Na glória de o gozar: ah! que em vão geme

Dentro em meu coração mágoa tão alta!

Mas que debalde agora a boca treme!

Que debalde se agrava a ânsia minha!

De que contra o meu fado a voz blasfema!

Se a glória me roubaram que eu mantinha,

Contra o fado, contra essa que hoje invejo,

A queixa, a acusação só me convinha.

Infeliz seja sempre o teu desejo,

Ó ingrata inimiga, e a ventura

Não encontres) amais sem mágoa, ou pejo.

Teus campos não se cubram de verdura,

O dia te amanheça carregado,

A noite sempre feia, sempre escura!

Consuma a peste vil teu nédio gado,

Nunca tenhas Pastor, que o guarde, ou zele

Do lobo que o procura esfamiado.

Pise o chuvoso inverno e atropele

As tuas sementeiras; leve o rio

Quantas herdades tens à margem dele.

Nunca te ampare o álamo sombrio

Com suas verdes folhas: tudo seja

Contágio na Pastora e no armentio.

Caia... porém que digo! A minha inveja

Aonde me arrebata! E não conheço

Que há mais alto preceito que me reja!

Acaso, quando Sílvio não mereço,

Não sei, que ele se ausenta: porque manda

Sobre a vontade sua um alto excesso!

Acaso outra rival ele demanda,

Sem que o destine a lei da obediência,

A lei que o dividiu de Lísia branda?

Pois Sílvio falte enfim: ache a influência

Da estrela mais propícia essa, que agora

Se alenta de meu bem na dura ausência.

Risonha lhe amanheça sempre a aurora,

Serena a noite; o gado não lamente

Sem cura o mal, o dano sem melhora.

Jamais chegue a levar a grossa enchente

Seus frutos carregados; noite e dia

Vele o cão sobre a ovelha, ande contente.

Deixou-me Sílvio; sim, Sílvio, que fora

Distinto Maioral destas campinas,

Glória de Lísia, por quem Lísia chora.

Deixou-me: mas por quem! Se é que inda atinas,

Saudoso coração, nesta tormenta,

Explica de meu pranto as ânsias finas.

Deixou-me por aquela que se ostenta

Com o nome de Rica; a que sepulta

Em seu seio os tesouros que sustenta.

Deixou-me por aquela que se oculta

Na parte mais distante, porque eu tenha

Inda mais que sentir na dor que avulta.

Ah! E como é possível que me venha

Uma constância tal, que, instando a mágoa,

A formar minhas queixas me detenha!

Os olhos de saudade rasos d'água

Que mais hão de fazer que estar chorando

A sem-razão de tão penosa frágua!

Vós, campos, que me vistes já gozando

A delícia do meu contentamento,

Ide-vos pouco a pouco desmaiando.

Não espereis jamais o luzimento

Que Sílvio aqui vos deu: Sílvio vos falta;

De Sílvio não há mais que o sentimento.

Buscou outra campina; outra se exalta

Na glória de o gozar: ah! que em vão geme

Dentro em meu coração mágoa tão alta!

Mas que debalde agora a boca treme!

Que debalde se agrava a ânsia minha!

De que contra o meu fado a voz blasfema!

Se a glória me roubaram que eu mantinha,

Contra o fado, contra essa que hoje invejo,

A queixa, a acusação só me convinha.

Infeliz seja sempre o teu desejo,

Ó ingrata inimiga, e a ventura

Não encontres) amais sem mágoa, ou pejo.

Teus campos não se cubram de verdura,

O dia te amanheça carregado,

A noite sempre feia, sempre escura!

Consuma a peste vil teu nédio gado,

Nunca tenhas Pastor, que o guarde, ou zele

Do lobo que o procura esfamiado.

Pise o chuvoso inverno e atropele

As tuas sementeiras; leve o rio

Quantas herdades tens à margem dele.

Nunca te ampare o álamo sombrio

Com suas verdes folhas: tudo seja

Contágio na Pastora e no armentio.

Caia... porém que digo! A minha inveja

Aonde me arrebata! E não conheço

Que há mais alto preceito que me reja!

Acaso, quando Sílvio não mereço,

Não sei, que ele se ausenta: porque manda

Sobre a vontade sua um alto excesso!

Acaso outra rival ele demanda,

Sem que o destine a lei da obediência,

A lei que o dividiu de Lísia branda?

Pois Sílvio falte enfim: ache a influência

Da estrela mais propícia essa, que agora

Se alenta de meu bem na dura ausência.

Risonha lhe amanheça sempre a aurora,

Serena a noite; o gado não lamente

Sem cura o mal, o dano sem melhora.

Jamais chegue a levar a grossa enchente

Seus frutos carregados; noite e dia

Vele o cão sobre a ovelha, ande contente.

ÉCLOGA V *

ARÚNCIO

Frondoso e Alcino

Fron. Em vão te estás cansando o dia inteiro,

Alcino, em perguntar, que significa

Este, que vês cortar, triste letreiro:

Ele não é debalde: aqui se explica

Tudo, quanto há de grande, novo, e raro,

Na pobre aldeia, e na cidade rica.

Nada pode escapar do golpe avaro...

(Diz cifra breve): agora entende;

Que deste dito o assunto eu não declaro.

Alc. Se o meu juízo o caso compreende,

Essa letra, que entalhas, e que admiro,

Com a morte de Arúncio fala, ou prende.

Fron. Ah! Que arrancas um mísero suspiro

Do centro de minha alma; o nome amado

Me faz deixar a vida, que respiro.

Alc. Eu bem via, que estava o teu cuidado,

Frondoso meu, lembrando a triste morte

Desse caro pastor, tão estimado.

Fron. E quando esperas tu, que o fatal corte,

Que de mim separou tão doce amigo,

Possa romper de amor o laço forte!

Primeiro se verá nascer o trigo

No céu; dará primeiro a terra estrelas,

Que tenha esta lembrança algum perigo.

Alc. Triste, e funesto caso! As ninfas belas

Do pátrio Ribeirão tanto choraram,

Que inda alívio não há, nem gosto entre elas.

Os gados largos dias não pastaram;

E mugindo à maneira de sentidos,

A pele sobre os ossos encostaram.

Os mochos pelas faias estendidos

Enchendo a terra, e céu de mil agouros,

Espalharam tristíssimos grasnidos.

Os campos, que té ali se viam louros

Com o matiz vistoso das searas,

Perderam de repente seus tesouros.

Fron. Esses sinais, Alcino, se reparas,

Dizem cousa maior, que sentimentos

Consagrados da morte sobre as aras.

Quando há mostras no céu, quando há portentos

Na terra, algum segredo há, não sei onde,

Que não é para humanos pensamentos.

Ao meu conhecimento não se esconde

A grandeza do golpe: mas alcanço,

Que a tanta perda a dor não corresponde.

De te buscar exemplos me não canso;

Só te lembro porém, que o tronco duro

Faz mais estrago que o arbusto manso.

Alc. O que queres dizer, eu conjeturo:

No vime, e no carvalho há igual ruína:

Igual a conseqüência eu não seguro.

Aquele cai sem dano, este destina

Fatal estrago a tudo, o que está posto

Debaixo dele. É isto? Ora imagina.

Fron. Jove aparte de nós tanto desgosto:

Baste, para avivar nossa saudade,

O ser cortado em flor aquele rosto.

Contente-se da morte a crueldade

Em nos levar com passo tão ligeiro

Uma tão bela, tão mimosa idade.

Roubou-nos um pastor, que era o primeiro

Entre os nossos do monte; ele nos dava

As justas leis no campo, e no terreiro.

Ele as dúvidas nossas concertava;

E sendo maioral, por arte nova,

Com respeito o agrado temperava.

De mil virtudes suas nos deu prova;

Sempre a bem dirigindo os nossos passos.

Oh quanto esta lembrança a dor renova!

Alc. Ai! E com quanta mágoa nos teus braços

Eu vi, Frondoso meu, que Arúncio esteve

Desatando da vida os doces laços!

Fron. Meu pensamento, Amigo, não se atreve

A lembrar-se (ai de mim!) da mortal hora.

Em que vi acabar vida tão breve.

Quem fora duro seixo, ou bronze fora,

Para animar agora na lembrança

Aquela imagem, com que esta alma chora!

Eu vi, Alcino, eu vi, que na mudança

Que do caduco e eterno bem fazia,

A alma tinha cheia de esperança.

Tudo, o que era mortal, aborrecia:

A cópia dos seus gados, o cajado,

(Bem que era de ouro fino) em nada havia.

Em vão o molestava o doce estado

Da honra, e da grandeza: a Jove entregue

O espírito seguia outro cuidado.

Mas ai, Alcino! A voz já não prossegue;

Que tudo, o que a memória vem trazendo,

Receio, Amigo, que a matar-me chegue.

Alc. As ninfas do Mondego estou já vendo

Descerem para nós com triste pranto.

Ou eu me engano, ou elas vêm dizendo:

Se do lírio, da murta, e do amaranto

Cercada deve ser a sepultura

De Arúncio, a nós nos toca ofício tanto.

Nós o criamos, com feliz ternura,

Dando-lhe o mel, e o leite: a nós nos toca

Mandar o corpo belo à terra dura.

Fron. De outro lado igualmente se provoca

O Tejo (onde ele viu a luz primeira):

E as ninfas do centro úmido convoca.

A mim só se me deve a glória inteira

(Fala o soberbo Tejo) eu o demando:

Minha há de ser esta honra derradeira.

Aqui lhe estou uma urna preparando,

Coberta de um cipreste; onde a memória

Seu nome viverá sempre guardando.

Por mais que voe a idade transitória,

Nunca se há de apagar aquele afeto,

Que de Arúncio consagro à triste história.

Durarás entre nós, Pastor discreto,

Renovando a lembrança de Corino,

Que da nossa saudade é inda objeto:

Ele te deu o ser; tu peregrino

Retrato de seus dotes, consolavas

Nosso desejo, tão constante, e fino.

Aquele caro irmão, que tanto amavas,

Aônio, digo, aquele, a quem devias

Toda a felicidade, que gozavas,

Hoje lamenta teus saudosos dias;

Hoje chora comigo: eu lhe desejo

Alívio a tão cansadas agonias.

Alc. Oh! Contente-se embora o claro Tejo

De haver ao mundo dado, quem lhe ganha

Fama, e nome a seu reino assaz sobejo.

Contente-se o Mondego, que na estranha

Ventura de educá-lo, deu ao mundo,

Quem lhe soube adquirir glória tamanha.

O fado, que conhece inda o mais fundo,

Quer, que guarde seu corpo a turva areia

De outro rio, mais triste, e mais profundo.

Do rio, que seu curso não refreia

Até chegar, onde entra a grande costa,

Que banha do Brasil salgada veia.

Rio das Velhas se chama (se reposta

Buscamos nos antigos, a pintura

Das dórcades na história se vê posta).

Os primeiros, que entraram na espessura

Dos ásperos sertões, dizem, que acharam

Três bárbaras, já velhas, nesta altura.

Fron. Das três Parcas melhor eles tomaram

O nome desse rio; se é verdade,

Que elas a vida humana governaram.

Triste sejas, ó rio: a divindade

De Apolo, que em ti cria o amável ouro,

Se aparte do teu seio em toda a idade.

Não sejas da ambição rico tesouro:

Girar se vejam sobre as praias tuas

Os brancos cisnes não, aves d'agouro.

Do inverno as enxurradas levem cruas

As sementeiras, que teus campos criam:

Deixem só sobre a terra as pedras nuas.

Os pobres navegantes, que se fiam

Dessas funestas águas, desde agora

Conheçam a traição, que não temiam.

Alc. E contra quem, Frondoso, inda em tal hora

Se armam as pragas tuas! Um delírio

Só para extremo tal desculpa fora.

Se Jove é quem nos manda este martírio,

Soframos o seu golpe: ao pastor belo

Derramemos em cima o goivo, o lírio.

O nosso Ribeirão traz o modelo

Do enterro, que dispõe: nós entretanto

Demos a conhecer nosso desvelo.

Envolto o corpo em um cândido manto,

Que distingue de Deus o brasão nobre,

Aqui se oferece para o nosso pranto.

Enquanto pois o corpo a terra cobre,

Seguindo o teu princípio deixa, Amigo,

Que um voto lhe consagre um pastor pobre,

Um voto, que se escreva em seu jazigo.

Soneto

Nada pode escapar do golpe avaro,

Alcino meu que a Parca endurecida

Corta igualmente os fios de uma vida

Ao pastor pobre, ao cortesão preclaro.

Cresça embora esse tronco altivo, e raro,

Ostentação fazendo mais luzida;

Viva embora entre humilde, entre abatida,

Essa planta, a que o nome em vão declaro.

Tudo há de achar o fim: bem que a vaidade

Em uma, e outra glória faça estudo,

Nada escapa à fatal voracidade.

Eu, que chego a pensá-lo, fico mudo;

E só tiro por certa esta verdade:

Que, se Arúncio acabou, acaba tudo.

ÉCLOGA VI

SULINO

Ao campo alegremente concorria

Da parte mais vizinha, e mais distante,

Dos Pastores do Erro a companhia.

Às portas dos currais o vigilante

Perro guardava o bem seguro gado,

Latindo ao resplendor da Lua errante.

Si fogos todo o sítio iluminado

Tornava clara luz a sombra feia

Do gesto melancólico, e pesado.

Vinham chegando de uma, e outra aldeia

As flautas sonorosas, cujo acento

O campo todo em júbilos recreia.

Trazia ao mundo o Sol com passo lento

O dia, em que do Ebro os moradores

Celebravam de Terce o nascimento.

Terce, que glória fora dos Pastores,

Que naquela ameníssima ribeira

Assunto foi de todos os cantores.

Ninfa, de cuja graça lisonjeira

No venturoso engano Alceio preso,

De Pastor se tornou penha grosseira.

Que de um desdém no ingrato fogo aceso

Por mercê foi dos Deuses transformado,

Depois de ser de Tirce vil desprezo.

Este penedo ali assinalado

Era do Ebro a trágica memória,

Da devoção silvestre respeitado.`

E da Ninfa cruel a viva história

Celebravam Pastores, que aprendiam

A ter de um peito bárbaro a vanglória.

Um templo para culto lhe erigiam,

E ornavam dele a fábrica elegante

Ingratos monumentos que esculpiam.

De Alfeu mostra a parede o curso amante,

Que de Artesas o cândido tesouro

Segue no cristalino passo errante.

Negando a mão a Febo, a seu desdouro,

Vê-se em rama o cabelo enverdecendo,

De Anfriso a Ninfa transformada em louro."

Tremulamente ao ar se está movendo

A Semideusa convertida em cana,

Atrás de si o hirsuto amante vendo.

Enfim outras memórias de inumana

Condição um Pastor destro, e polido

Na fábrica esculpira soberana.

Já se escutava o músico ruído

Das sanfonas, das flautas, dos cantores,

Em que está todo o campo repartido:

Dispunham vários jogos os Pastores,

Por prêmio consentindo ao que ganhasse

Cajados de destríssimos lavores.

Porque melhor o baile concertasse,

Na bela chusma das Pastoras vinha

Antandra, que por guia as governasse.

Era Antandra a mais bela, e como tinha,

Mais do que as outras, coração ingrato,

Só em matar de amores se entretinha.

Soava o canto harmonioso, e grato,

Entoando em o número cadente

Memórias do Pastor, desprezo, e trato.

O baile percebendo tristemente,

Ao longe estava Eulino recostado

Sobre uma penha, aflito e descontente.

A Antandra amava, e seu maior cuidado

Era Antandra, Pastora que distante

Vive do campo seu, do seu montado.

Vendo-a presente o desprezado amante,

E não podendo achar benigno efeito

No esquivo coração, chora constante.

Desde o penhasco, em lágrimas desfeito,

Vendo bailar a cândida Pastora,

Que amor ateia em seu rendido peito,

Ingrata Ninfa, diz, se a quem te adora

Fazes vaidade de ser ímpia e dura,

Que val a uma alma quanto geme, e chora?

A tanto chega já minha loucura,

Que hoje é no campo a infeliz notícia

A qualquer que de mim saber procura.

Só por tornar-te a condição propícia,

É desprezo suave de meu gosto,

Quanto é do campo mimo, ou é delícia.

Entregue sempre a meu fatal desgosto

Vejo vagar (sem nele ter cuidado)

O meu rebanho, ao voraz lobo exposto.

Que mais queres, cruel, de um desgraçado,

Que uma alma tendo só para render-te,

Uma alma a teu rigor tem consagrado!

De meus ais eu pudera aqui trazer-te

Por testemunha toda esta montanha,

Se esperara a ventura de mover-te.

Mas o teu gênio, que a piedade estranha,

Só prezaria ter esta certeza,

 Por dar a teu rigor glória tamanha.

Conta porém por mais distinta empresa

Um coração, que tem maior vaidade,

Quando mais nobre vítima despreza.

Eu clamarei, ó Ninfa, aos Céus piedade,

Que pois de Alcemo hoje a memória existe,

Sendo motivo à mísera saudade.

Tempo virá, que de meu fado triste

Emendado se veja o influxo escuro,

Que a um fino amor nem inda o Céu resiste.

Algum penhasco, ou algum tronco duro

Amor fará que só conserve o nome

De Eulino, porque a Antandra amou tão puro.

Por mais que a sombra vença, o sono dome

O ardor de uma lembrança, eu te prometo

Que, ouvindo Antandra, o mundo injúria tome.

Não serás tu, idolatrado objeto,

Como já noutra idade Tirce fora,

Por não pagar de Alcemo o amante afeto.

Entre nós hoje amor se não ignora,

Como naquela mais ingrata idade,

Que a mais tirana era a melhor Pastora.

Pintava-se modéstia a crueldade,

E se atendia com maior decência

A que não se inclinava a ter piedade.

Então o ser ingrata era inocência,

E ao laço de Himeneu se sujeitava

Uma alma, sem de amor sentir violência.

Hoje mais glória é ter uma alma escrava;

Hoje o trazer um coração sujeito

É bem que aquele século ignorava.

Só de um Pastor se vê o nobre efeito

Em tributar à sua amada bela

Doces obséquios de seu fino peito;

Render-lhe o cordeirinho, que mais zela,

Entre os seus recentais, ter-lhe guardado

O mimo, em que mais gosto empregasse ela;

Oferecer o leite, o mel dourado,

A fruta saborosa e a cestinha

De rosas, que colheu no verde prado;

Da sua amada (ai bela Antandra minha!)

Gostosa obrigação é a coroa

Tecer-lhe de uma e outra ramazinha;

Deve ornar-lhe o cajado, e se ele entoa

Entre as Pastoras algum hino, enquanto

Erra o seu gado, o seu amor pregoa.

Mas eu, que néscio advirto, obséquio tanto

A quem, nada ignorando do que eu sinto,

Desprezo faz de meu saudoso pranto!

Se só na idéia minhas glórias pinto,

Que é o que estou sonhando, ou o que pertendo,

Se a tudo o que te digo te estás rindo?

Oh! Não me vejas sempre estar gemendo,

Ampare-me este alento que a constância

Nos longes da esperança vem trazendo.

Sufoque-se o tumulto de minha ânsia,

Se pode haver em tão fatal tormento

Quem me encaminhe, Amor, à tolerância.

Não dê mais meu cansado pensamento

Tanto esforço ao pesar: essa inimiga Veja-te,

Amor, cantar o vencimento;

E os teus triunfos por despojo siga.

ÉCLOGA VII

FIDO

Aonde um verde monte

De sombra está servindo à cristalina,

Sonora, e clara fonte

Do Mondego suavíssimo, a divina

Causa de seu gemido

Mísero conduzia ao pastor Fido.

Depois que o alto cume

Pisara já suspenso, e fatigado,

Porque respire o lume

Que dentro tem no peito recatado,

Sobre um duro rochedo

Imagem se sentou do horror, do medo.

À parte logo pondo

O encurvado arrimo, descansando

Na mão a testa, o estrondo

Do vento, que sossegue, então rogando,

Ergueu a voz: atento

A ouvi-lo parou mais brando o vento.

A ouvir seus clamores

Correi, ó penhas, suspendei-vos, águas;

Que os fúnebres rumores

Que vão formando de seu peito as mágoas,

Neste sítio ferindo,

Em terno som piedade estão pedindo.

Ouvi; que já começa

Do aflito peito a ir desentranhando

As justas queixas dessa

Perjura Ninfa, em cujo rosto brando,

Em cujo doce agrado

Amor os seus venenos tem guardado.

FIDO. Formosíssima Almena (e não duvido

Que o ser cruel somente hoje te agrade),

Este cansado e último gemido

Ouve, e modera um pouco a crueldade;

Daqui donde divisa o triste Fido

O templo dessa ingrata Divindade,

Te vem a consagrar, pérfida Almena,

Puras vítimas não, sim mortal pena.

Aquele rosto afável de alegria,

Que invejaram mil vezes as estrelas,

De mudo horror se cobre, e de agonia,

Que tu de todo o enlutas, e atropelas.

A que me juravas algum dia,

Tudo estragado está, porque daquelas

Prometidas um -tempo, firmes glórias,

Só vivem (ai de mim!) tristes memórias.

Aquela branca mão em que apertando

Tomavas minha mão, se não te esquece,

Que ditas não me esteve assegurando,

Que agora tudo, infiel, se desvanece!

Ora o Céu, ora a terra provocando,

Costumavas jurar, e te parece

Que tudo na memória inda não dura?

Ah! Pastora inimiga! Ah! vil, perjura!

Dizias-me: "Verás, ó Fido amado,

Primeiro produzir esta montanha

Estrelas, e pascer o manso gado

Sobre estas águas onde o Sol se banha;

Verás esse alto monte levantado

Tornar-se em vale humilde; e mais estranha

Cousa ainda verás, eu não duvido,

Primeiro do que Almena ingrata a Fido.

Nada se tem mudado: o ser inteiro

No Céu, na terra e monte inda se adverte;

Só teu peito infiel ao lisonjeiro

Influxo de meu dano se perverte.

Estranha cousa é só ver que o primeiro,

Antigo amor em ódio se converte;

Que se trocaram, pérfida, os amores

Em iras, em violências, em rigores.

Oh! quem esta traição imaginara,

Que as promessas falíssemos não crera!

Mas se o imenso amor me não cegara,

Certamente, perjura, eu o fizera.

Que dor não é o ver que a Ninfa cara

Aos braços de outro amante se rendera!

Que dor não é, que mágoa, que tormento!

Ah! que falta valor ao sofrimento!

Com que impaciência (ó Céus!) estou notando

A torpe laço ingratamente unida

Aquela gentil face, aquele brando

Gesto alegre de Ninfa tão fingida.

Eu a vi nos meus braços respirando

O alento que animava a minha vida;

Fabrica hoje cruel da alheia sorte

O instrumento fatal da minha morte.

Que bem por mais horror da pena minha

Parece que me fala aquele monte!

Que bem esta corrente aqui vizinha

Me está pedindo que meus males conte!

Mas se ela a glória viu que então eu tinha,

E se tu me invejaste, ó clara fonte,

Medi por ela a mágoa de perdê-la:

Vereis qual é maior, se a pena, ou ela.

Ah! Pastora! Um tão puro sacrifício

Tu desprezas assim! Quem te assegura

Que não sabe emendar um precipício

O horror de minha grande desventura?

Se tem a sorte mísero exercício

Numa vida infeliz, que pouco dura,

Eu lhe quero roubar tanta vitória:

Seja de Fido a lastimosa glória.

Disse, e sobre a alta penha

Erguendo-se, da fúria arrebatado,

No rio se despenha,

Que de horror, ou de susto então parado,

Vê o pálido amante

Entre as ânsias da morte agonizante.

Ao sucesso acudia

Algano, que de longe o divisara:

Apressado corria;

Mas a cega ambição da Parca avara

De seu golpe violento

Já fazia despojo o doce alento.

O pescador Algano,

Que a causa deste mal não ignorava,

Ali de tanto dano

Um funesto padrão em letras grava,

E nelas deixa impresso

O triste caso, o infeliz sucesso.

SONETO

Ninfas, que sobre a espuma prateada

Do Mondego suavíssimo, cantando,

Brandas queixas ao Zéfiro estais dando,

Com que fica a campina magoada;

Esta pira que vedes levantada

À memória daquele Pastor brando,

De fúnebres ciprestes coroando,

Deixai eternamente venerada.

É de Fido, ó Deidades: bem notória

A troncos, plantas, mármores e flores

Tem sido neste campo a sua história.

Vós, que as iras gemeis, sentis rigores,

Fazei somente assuntos da memória

De Fido as tristes lágrimas, e amores.

POLIFEMO

ÉCLOGA VIII

Ó linda Galatéia,

Que tantas vezes quantas

Essa úmida morada busca Febo,

Fazes por esta areia,

Que adore as tuas plantas

O meu fiel cuidado: já que Erebo

As sombras descarrega sobre o mundo,

Deixa o reino profundo:

Vem, ó Ninfa, a meus braços;

Que neles tece Amor mais ternos laços.

Vem, ó Ninfa adorada;

Que Ácis enamorado,

Para lograr teu rosto precioso,

Bem que tanto te agrada,

Tem menos o cuidado,

Menos sente a fadiga, e o rigoroso,

Implacável rumor, que eu n'alma alento.

Nele o merecimento .

Minha dita assegura;

Mas ah! que ele de mais tem a ventura.

Esta frondosa faia

A qualquer hora (ai triste!)

Me observa neste sítio vigilante:

Vizinho a esta praia

Em uma gruta assiste,

Quem não pode viver de ti distante.

Pois de noite, e de dia

Ao mar, ao vento às feras desafia

A voz do meu lamento:

Ouvem-me as feras, ouve o mar, e o vento.

Não sei, que mais pretendes.

Desprezas meu desvelo;

E excedendo o rigor da crueldade,

Com a chama do zelo

O coração me acendes:

Não é assim cruel a divindade.

Abranda extremo tanto;

Vem a viver nos mares do meu pranto:

Talvez sua ternura

Te faça a natureza menos dura.

E se não basta o excesso

De amor para abrandar-te,

Quanto rebanho vês cobrir o monte,

Tudo, tudo ofereço;

Esta obra do divino Alcimedonte,

Este branco novilho,

Daquela parda ovelha tenro filho,

De dar-te se contenta,

Quem guarda amor, e zelos apascenta.

ÉCLOGA IX

LAURA

Enfim, belos amores,

Doce consolação dos meus sentidos,

Trocaram-se em rigores

As finezas de Laura: ânsias, gemidos

Ocupam hoje a parte que algum dia

A imagem alentava da alegria.

Sem glória o peito amante

Se vai rendendo a um fúnebre delírio,

Sentindo a cada instante

Aflita a idéia do fatal martírio.

Oh! quanto aflige, Amor, oh! quanto cansa

De um bem perdido a mísera lembrança!

Buscando o desafogo

Ao mal veemente, subo a um alto monte,

Do qual diviso logo

As belas margens dessa clara fonte,

Que em pródiga corrente, em fértil veia,

Anima os verdes campos de Amaltéia.

Ali sobre um rochedo,

Próprio sítio da minha desventura,

Que de horror, e de medo

O tempo veste, a sombra desfigura,

Cujo eterno segredo não altera

Racional criatura, ou bruta fera;

Sentado tristemente,

Muda estátua da dor, em vivos ecos,

Convoco ternamente,

Ao som de meu suspiro, os troncos secos,

As mudas penhas, as mimosas plantas,

Que me venham ouvir em mágoas tantas:

Vós, lhes digo, sonoras,

Doces águas do plácido Mondego,

Que vedes as traidoras

Faces gentis do meu amado emprego;

Que vendo estais meu terno rendimento,

Pois vos duplica as águas meu lamento;

Vós, troncos generosos,

Imagens insensíveis de meu dano,

Que a laços enganosos

Talvez fostes arrimo, em vosso engano

Podeis, ó troncos, já ter alegria,

Que a um infeliz alenta a companhia.

Vós, mudas penhas, triste

Figura da constância de meu peito,

Onde o retrato existe

Daquele objeto, por quem já desfeito

Meu fino pranto desperdiço agora,

Mármore duro, penha vividora;

Ouvi-me vós, vós, me escutai, que eu louco

Busco atenção nos brutos insensíveis.

Não é meu mal tão pouco,

Que não possa fazer em vós possíveis

A compaixão, a mágoa, e a piedade,

Tanto pode da dor a atividade.

Convosco, ó penhas duras,

Mil vezes o meu bem comunicava.

Tu, Rio, inda o murmuras;

Seu nome nesta penha se gravava;

Ali conserva ainda no horror bronco

O nome de meu bem aquele tronco.

Eu mesmo venturoso

Neste retiro à muda soledade

Comuniquei gostoso

Aquela singular felicidade,

Que, para dilatar minha ânsia fina,

Só no fim me mostrou o que é ruína.

Dizia-vos: eu amo

A mais bela, a mais rara gentileza,

Por quem tanto me inflamo,

Que todo o bem o coração despreza;

Corresponde-se grata a meus ardores;

Feliz sou eu, felizes meus amores.

Inveja eu de Cupido,

Emulação gentil dos Astros ela:

Em zelos incendido

Gemia Amor, chorava cada estrela

O seu desprezo: mas (oh! triste fado!)

Vingou-se Amor; o Céu se tem vingado.

De vítima profana

Manchou-se o altar sagrado; da firmeza

Cedeu a desumana,

A perjura, a inconstante gentileza;

E foram suas vozes (oh! tormento!)

Fáceis lisonjas do ligeiro vento.

Afável, carinhosa

(Mas que digo!), infiel, falsa, fingida,

Já procura enganosa

Outro Pastor: e a seu favor convida

Um néscio amante, a quem talvez espera

Na glória, que hoje goza, a ruína fera.

Para desvanecer-te,

Ó enganado amante, bem discorro,

Que se chego a dever-te

Inteira fé das penas, em que morro,

Verás dessa inimiga a vil mudança,

E inda eu de ser feliz tenho esperança!

Eu me vi levantado

Ao mais soberbo cume dessa dita,

E medi despenhado

A distância (ai de mim!), que era infinita;

Como podes julgar, que advirto louco

Na mesma glória, que perdi há pouco.

Essa mesma, que agora

Branda te acolhe, te recebe afável,

Já me entregou uma hora

A rela mão, dizendo: nunca instável

Tu me verás, Pastor, a experiência

Mostrou bem desigual correspondência.

Mais feliz te contemplo,

Do que fui, porque tens a minha sorte,

Onde seguro exemplo

Tema a tua ventura; o peito forte,

Oh! não a creia não; que eu quando a cria,

Mil vetes cada hora me mentia.

Quem emendar pudera

O sacrílego impulso da vontade,

Quando rompi a austera,

Segura condição da liberdade,

Sempre isenta de amor! Mas que resisto!

Só o fizera, não te havendo visto.

Goza, goza esse emprego,

Que tanto o teu cuidado te desvela;

É digno, não o nego;

Desempenha o teu gosto, mas, ó bela,

Vê, lhe não guies a fortuna escura

Pelos passos da minha desventura.

Ah! bárbara beleza,

Produzida nos montes de Ampelusa!

Nasceste entre a fereza

Da mágica Medéia, ou de Medusa ?

Bebeste, dite, a natureza insana

Da líbica serpente, ou tigre hircana?

Mas que exemplares trago

De injusta tirania? O tigre fero

Talvez o brando afago

Humilde reconhece; eu desespero,

Ingrata, que, por ser mais feia a culpa,

Um exemplo sequer te não desculpa.

Repara convencida

Naquela amante vide, que enlaçada

Este tronco convida

À mais suave união; vê apertada

A débil planta, como se fizesse

Em cada folha uma prisão, que tece.

Nada verás, perjura,

Que imagens da constância, e da firmeza

Te não proponha: oh! dura,

Vil condição da feminil beleza!

Tu só, tu só estragas com jactância

O natural ditame da constância.

Tudo tem destroçado

Da vil mudança a sem-ratão injusta;

E eu triste, cansado

Da violenta paixão, quanto me custa,

Quanto, quanto a lembrança fatigada

De uma dor tão profunda, e tão pesada!

Quisera (ai doce emprego!)

Que nunca despertara o estrondo infame;

E a pena, a que me entrego,

Jamais te acuse, ingrata, jamais clame,

Porque no esquecimento da mudança

Conheças, que inda é minha esta vingança.

E vós, as que me ouvistes,

Mudas penhas, em vosso escuro seio

Sepultai estes tristes

Ecos, que a minha dor expulsar veio:

Não deis sinal algum de minhas mágoas,

Caducos troncos, e mimosas águas.

ÉCLOGA X

ANGÉLICA

Frondélio e Umbrano

FRON. Valha-me o Céu; e como estou pasmado

De ver quão brevemente

Um Pastor que mostrava tanto aviso,

Que era aqui respeitado

Da nossa pastoril, sincera gente,

Pelo mancebo de melhor juízo,

Em louco transformado, o campo todo

Admira, de tal modo,

Que já fogem de ouvir seu triste enredo

Alguns de compaixão, outros de medo!

Ah! grande Umbrano! E quem entenderia

Que a desatino tanto

Uma alma conduzia Amor injusto!

Quem seu golpe creria

De tal vigor, de tal esforço, quanto

Neste Pastor se emprega a tanto custo!

À margem desse lago, macilento,

Pálido e sem alento,

Anda girando este infeliz amante,

Absorto sempre, e sempre delirante.

Que loucuras a idéia fatigada

Não persuade a um triste

Na saudosa lembrança do perdido!

A alma, que estampada

Traz a imagem do bem, que mal resiste

Da infausta pena ao fúnebre ruído!

Deste Pastor tão belo bem sabemos,

Com que finos extremos

De Angélica adorava o doce encanto!

A sua ausência é causa de seu pranto.

Mas bem que ouvir ingratos desatinos

Mais parece impiedade

Que compaixão que alente humano peito,

A ouvir os peregrinos

Desconcertos me chego, que a saudade

Dita em seu coração, de amor desfeito.

Agora que tem posto

Dentro do lago os olhos, e o desgosto

No semblante se vê mais declarado,

Chegar-me quero a ouvir o seu cuidado.

UMBR. Não são águas mimosas

Estas correntes, não; eu nelas vejo

As desfolhadas rosas

Das faces de meu bem: o meu desejo

Com enganosa tinta

Esta glória nas águas me não pinta.

Vós, olhos, que serenos

Representais as lúcidas estrelas,

Que suaves venenos

Alimentando estais nas faces belas! Venenos, que bebidos

Sempre hidrópicos têm os meus sentidos.

Enredados cabelos,

De donde Amor me despediu as setas,

Fostes a meus desvelos

As correntes mais doces, e inquietas,

Que em mãos de suavidade

Me prendem para sempre a liberdade.

Choras? Ou te estás rindo?

Se choras, a saudade te agradeço;

Se te ris, eu sentindo

Fico o mal desta ausência, que padeço.

Quem fora premiado

Em tão ilustre fé, em tal cuidado!

Aqui vagando vivo

À margem deste lago, aqui discorro

Confuso, e pensativo,

Buscando sempre a causa porque morro:

O seu divino rosto

O Céu, por consolar-me, aqui tem posto.

Dentro desta corrente

Habita a minha Angélica; o semblante

Rico e resplendecente,

Aqui vejo nesta água a cada instante.

Em Ninfa transformada,

Aqui quis eleger sua morada.

Mil vezes no despenho

Me lembra Alfeu rendido e namorado;

A segui-lo me empenho,

E me impede, não sei se Amor, se o Fado;

Buscara a sua sorte,

 Mas dele não invejo mais que a morte.

Consolação pesada

É seguir este alívio; se não gozo

A face delicada,

Termo de meu destino venturoso,

Quanto o ver me atormenta

Que o mesmo, que possuo, se me ausenta!

Nesse lago do Averno

É bem sabido como um desgraçado

Vive em tormento eterno,

Só por lhe ser (oh! dura lei!) negado

O licor da corrente,

E o pomo que se mostra florescente.

Retrata o meu martírio

De Tântalo infeliz a desventura:

Qual lhe chama delírio,

Qual excesso da dor! Mas se a loucura

Vem tão discretamente,

Louco me espere sempre toda a gente.

FRON. Não há, nem pode haver mais desconcerto

Que o deste infausto amante:

Quão grande é o poder da fantasia!

Julgar que tem tão perto

Aquele bem, que vive tão distante,

Delírio é só da mísera porfia.

Imagina presente o bem amado

O triste desgraçado

(Ah! ditosa loucura!). Pois na idéia

Trazes aquele alento, que recreia.

Porém (oh! que delírio a alma alcança!)

Como nunca o destino

Nos conduz para o bem de uma ventura!

Pacífica bonança

Encontrara este amante peregrino,

Se obrasse uma hora igual a sorte escura:

Mas para mais desgosto

Todo o prazer na idéia está disposto,

E seu tormento infiel por derradeiro

Tanto é mais duro, quanto verdadeiro!

A noite vem caindo, eu me retiro:

Pois querer dar sossego

A quem tem no seu erro o seu descanso,

Que é tirania, infiro,

Só natural a um coração tão cego,

Que ignora o desconcerto que eu alcanço.

Que triste anda um amante,

A quem traz seu cuidado delirante!

Pois para ser maior sua agonia,

Tem todo o seu prazer na fantasia!

ÉCLOGA XI

DILATO

Daliso, Algano, Agrário e Eulina

DAL. Deixa-me: não admito, Algano amado,

Sossego algum no mísero acidente

De tão profunda dor, mal tão pesado.

Como queres que chegue a estar contente,

Vendo tão malograda aquela idade

Do meu Pastor, do meu Salício ausente!

Tu sabes que nos laços da amizade

Mais estreita, mais fina, e mais segura,

Única em nós havia uma vontade:

Do gênio à suavidade, e à brandura

Me conformava eu tanto, que violência

Me faz em não levar-me a morte dura.

Que fico eu cá fazendo nesta ausência,

Se haver não pode alívio que conforte

A grave dor da minha impaciência!

Errou o golpe bárbaro da morte:

A inveja bem mostrou no desacerto,

Podendo em duas vidas ser mais forte.

Ai! doce Algano meu! E que concerto

Pode achar o discurso naufragante

Deste dano fatal no golfo incerto!

Roubou-me a Parca de meu peito amante

Um bem tão precioso, que na terra

Não espero ver outro semelhante.

Sabes que entre os Pastores desta serra

Era o meu bom Salício o mais amado

De todos quantos a montanha encerra.

Era do velho Alfemo respeitado;

Ele nos recordava cada dia

De Salício as ações, gênio, e agrado.

Quando entre nós algum certame havia,

Este sábio Pastor com arte e modo,

Os duvidosos casos resolvia.

Em concorrendo o nosso campo todo,

Era Salício a flor: nesta lembrança

A sofrer tanto mal não me acomodo.

Em todo o baile, em todo o jogo, ou dança,

Que convidasse o gênio da floresta,

Ele excedia sempre a esperança .

ALG. Não sei, Daliso meu, que lei é esta,

Tão dura, tão cruel, que em nosso dano,

Na parte mais mimosa é mais molesta.

Há poucos dias que ao Pastor Montano

Lhe morreu uma ovelha, a mais formosa,

De quantas lhe tragara o lobo hircano.

Bem sabes que entre todas mais vistosa

Era dos dois novilhos a parelha

Que eu tinha; e deu-lhe a peste venenosa.

Esta de cor dourada desde a orelha

De inveja aqui trazia os mais Pastores:

Morreu uma; e ficou outra mais velha.

Bem vemos nós do campo os moradores,

Que no ano em que é Ceres mais fecunda,

Dando mais abundância aos lavradores;

Quando o terreno fertilmente inunda

Na cópia das searas carregadas,

Onde o agricultor seus dotes funda;

Então, ou vêm as águas mais pesadas,

Ou vem o Sol ardente, e tudo morre,

Ficando as plantas pelo chão prostradas.

Esta disposição, se se discorre,

Daliso, com acerto e com prudência,

Que é só mistério oculto, à idéia ocorre;

Mistério que não vê mortal ciência,

Que não alcança humana conjectura,

Por lei da inescrutável providência.

DAL. Algano, assim será: porém que cura

Queres, que tenha um golpe tão violento,

Que me roubou tão breve uma ventura!

Se alheio de si mesmo o entendimento

O que vê não compreende, nem alcança,

Como há de agora discorrer atento!

Eu vejo, Amigo, a mísera lembrança

Da que eu imaginava glória minha,

Prostrada a base infiel da segurança.

Que fosse eterno tanto bem convinha,

Ou que durar pudesse mais idade,

Segundo os raros dotes que em si tinha.

Para que nos vem dar felicidade

Jove, o grande senhor da humana vida,

Se há de acabar com tanta brevidade!

Entregar-nos uma alma enriquecida

De prendas tão gentis, só para efeito

Pode ser de lograda e possuída.

ALG. Quanto nesse discurso erra o conceito!

E sempre nessa crédula ignorância

O desengano achamos mais estreito.

Chamarmos nosso bem é vã jactância,

Que entre nós, os mortais, só é precioso

O inestimável dote da constância.

Tudo é de Jove: em trono luminoso,

Ele as maiores graças nos dispensa,

Se a nós se inclina o rosto seu piedoso.

Dos seus raios despede a chama intensa,

E quando nos parece que é castigo,

O faz por nosso bem, não por ofensa.

Bem lhe podemos crer o rosto amigo,

Inda quando em vingança do inocente

O imaginamos nós mais inimigo.

Este segredo a nós não é patente:

E se o fora, faltara a divindade

E o privilégio a Jove onipotente.

Não cabe na mortal calamidade

Exceder tanta mísera fraqueza,

E menos nesta vil rusticidade.

Aqui notamos só como a fereza

Do lobo, animal feio, monstro indigno,

Ofende a ovelha, que a inocência preza.

Vemos aquele gênio mais maligno,

Que está cheio de frutos abundantes,

Entre todos havido por mais digno:

Não são as suas prendas tão brilhantes,

Que ofusquem o maior merecimento

De outros, que vimos abatidos antes.

Jove, que lá criou o firmamento,

A certos Astros deu mais resplendores,

Deixando a outros menos luzimento.

DAI.. Discorres muito livre as tuas dores:

O teu pesar, a tua pena, e mágoa

Desconhece estes míseros horrores.

A pena inconsolável, que na frágua

Da memória me aumenta a desventura,

Mal se sufoca em dons dilúvios d'água.

Ai! Salício infeliz! Ai! morte dura!

Como pode esquecer tua lembrança

A quem te consagrava fé tão pura!

Minha saudade tomará vingança

Dessa pérfida, infame tirania,

Que de afligir os homens não se cansa.

Aqui entre estas penhas à porfia

Hei de chorar, Amigo, a tua morte,

se abalar a mesma serrania.

Será de minha dor, será tão forte

Aquele impulso, com que eu fira as brenhas,

Que as mesmas feras à piedade exorte.

Os Faunos nesses côncavos das penhas

Hão de escutar meu fúnebre gemido,

Clamando em vão por ti, que ouvir me venhas.

Que deixes esse trono apetecido,

Aonde estás sentado em teu descanso,

E me seja teu rosto concedido.

Que venhas escutar com gesto manso

Aquela minha lira descontente,

Que tanto em afiná-la hoje me canso;

Confessavas um tempo, Amigo ausente,

Que o meu canto sonoro e lisonjeiro

Só abrandava a tua mágoa ardente.

Mas ah! que nesse trono derradeiro,

Neste centro de luzes mal ouvido,

O meu canto será tosco e grosseiro.

Quebrar te quero, em vão de mim possuído,

Instrumento infeliz: que me aproveita

Da torpe voz o dissonante ruído?

Ah! Se foras aquela voz eleita,

Para trazer do Tártaro a formosa

Deidade, cujo pacto Jove aceita!

Se foras tão feliz, tão poderosa,

Que outra vez repusesses nesta esfera

Do meu Salício a alma venturosa!

Não acabara a verde primavera

Destes campos: nas árvores, nas flores,

Se não vira a campina tão austera.

Ao domínio dos rústicos Pastores

Obedecendo, a cabra, a ovelha, o touro

Pastaram, dando gosto aos guardadores:

Não mostraria tudo infausto agouro,

Os Gênios não andaram todos tristes,

Febo não escondera os raios d'ouro.

ALG. No teu lamento, Amigo, em vão persistes:

Porque não é Salício inda o primeiro,

Que do Lete às ribeiras baixar vistes.

Em cada faia enfim, cada salgueiro

Se lê um epitáfio a qualquer morto:

Discorre, e assim verás o campo inteiro.

No comum sentimento ache conforto

O mal comunicado; o teu gemido

Assim do alívio se recolha ao porto!

DAL. Ai! Algano!... porém se o meu ouvido

Se não engana, eu ouço desta parte

Um canto harmonioso e mui sentido.

ALG. Eu estava também para avisar-te

Da minha suspensão: daqui mais alto

Podemos ver, se queres levantar-te.

DAL. Ai! que diviso já de alentos falto

O velho Agrário, e a consorte amada,

Eulina, a quem rendera o sobressalto!

São de Salício os Pais: oh! lei pesada

Da morte crua! Que fatal desgosto

Se vê na face de ambos magoada!

Ele no Céu os olhos tem já posto;

Ela de grave mágoa combatida

Abaixa à terra o peregrino rosto.

ALG. O funesto espetáculo convida

A romper, caro Amigo, o peito em pranto,

E a consumir em seu tormento a vida.

Não há pena maior, nem dor, que tanto

Possa agravar a humana desventura.

Quem viu golpe maior, maior quebranto!

Afogam-se meus olhos de ternura,

Meu coração em mil pedaços feito

Chora o golpe cruel da sorte dura.

Ouçamos o seu canto: mas que peito

Pode haver tão constante, e endurecido!

Eu não me exponho a lance tão estreito.

Adeus, Daliso: em vão compadecido

Me atrevo a consolar-te; antes discorro

Que vim buscar mais causa a meu gemido.

DAL. Também, Amigo, eu a seguir-te corro:

Mas que faço, infeliz! Onde pertendo

Esconder esta mágoa, com que morro!

Já os amados Pais a voz erguendo,

Vão consolando a pena: os seus pesares

Também co'a minha dor irão tecendo.

Que bem de compaixão ferindo os ares,

Acompanhar o espírito saudoso

Sabem do pranto seu nos ternos mares!

Que fado tão cruel, tão rigoroso!

AGRAR. A mísera fortuna

Não maldigas, Esposa, que a suprema

Sagrada mão não sofre a dor blasfema.

Ignorante e importuna,

Acusa de impiedade

Disposições da eterna Divindade.

Vive a humana fraqueza

De Júpiter sujeita ao raio ativo;

E de seu braço o golpe executivo

Empregando a fereza,

Bem que o efeito descobre,

A providência suma nos encobre.

Salício, o nosso amado,

Penhor da casta fé, querida Eulina,

Eu bem vejo, Consorte peregrina,

Que era do nosso agrado

Digno objeto: mas este,

Que o Céu nos rouba, foi penhor celeste.

É livre aos lavradores

Recolherem do campo a sua planta:

Ninguém disso se admira, nem se espanta;

E só nas nossas dores

Nos confunde que leve

Jove o que é seu, e em nós guardado teve.

De Jove era criatura

Salício, o nosso filho; Jove o guia

A eterna luz, à eterna Monarquia,

Aonde em paz segura,

Aquela alma ditosa

Zombe da nossa sorte lastimosa.

EULIN. Jamais contentamento,

Alegria ou prazer será loucura,

Que eu espere na minha desventura:

Porque perdido o alento,

Na falta de Salício,

Só lhe faço da pena sacrifício.

Sacrifício violento,

Se bem que enternecido; pois de todo

A chorar esta perda me acomodo,

Sem que do meu tormento

Outro alívio pertenda

Mais que o termo fatal desta contenda.

Que vença o meu martírio

Só espero; e lhe cedo voluntária

Qualquer constância, ou força temerária,

Que em meu néscio delírio,

Me persuada alento

Sobre tão porfiado sentimento.

AGRAR. Que debalde procuro

Consolar-te, querida, se conheço

Que delira também no mesmo excesso

O meu tormento duro!

Ah! Salício! Ah! memória!

Faltaste-me, faltou-me toda a glória.

EULIN. Enquanto na floresta

Der alma a primavera às tenras flores;

Enquanto o seco outono aos lavradores,

Com mão nunca molesta, Conceder carregadas

As searas que o Sol deixou douradas.

AGRAR. Enquanto na montanha

Pela fresca manhã a aurora bela

Espalhar os orvalhos que congela;

E na verde campanha

Brotarem socorridas

As plantas do calor amortecidas.

EULIN. Enquanto neste monte

Se ouvirem os balidos saudosos

Dos tenros cabritinhos, e sequiosos

Buscando apura fonte

Deste sítio sombrio

As ribeiras descerem desse rio.

AGUAR. Não verás, filho amado,

Adorado meu bem, caro Salício,

Não verás este amante sacrifício

Torpemente apagado

Por despojo violento,

Com que se orne o altar do esquecimento.

EULIN. Verás a minha pena,

Ó sempre inestimável, filho amado,

Agitando o rumor do meu cuidado,

Até que em paz serena,

Presente à tua vista,

Na tua amada companhia assista.

ÉCLOGA XII

AMARILIS

Salício, Frondélio, Amarílis e Feliza

A fúnebre harmonia,

Dissonante lamento

Dos estragos de Amor, escuta um dia,

Adorada ocasião de meu tormento;

E em mísera figura,

Verás do teu Pastor a desventura.

Daliso sou, que canto

De Salício a desdita;

A ver se deixo, pela voz do pranto,

A minha mágoa duramente escrita,

Tomando a sombra alheia,

Por não fazer a mágoa inda mais feia.

Em um bosque sombrio,

Funesto sítio escuro,

Levado do seu louco desvario,

Salício, a quem o duro,

Ingrato fado havia

Roubado em Amarilis a alegria;

Apascentava o gado

De si tão esquecido,

Que todo pelas serras espalhado,

Qual ficava perdido,

Qual entre as garras era

Despojo triste da maligna fera.

Enquanto o Sol guiando

Para o berço das águas

O luminoso carro vai girando,

Coberto o rosto, e cheio enfim de mágoas,

Em si mesmo atendendo,

Assim falando vai, assim dizendo:

SAL. Aonde vou guiando o meu rebanho,

Pobre de mim, sem tino e sem cautela,

Por tão escuro bosque, sítio estranho!

Como perdida a minha amada bela,

Me conduz meu tormento a esta estância,

Se apenas o segredo habita nela!

Acaso o desafogo de minha ânsia

Acharei entre os troncos e penedos,

Que são imagens da maior constância!

Acaso estes sombrios arvoredos

Poderão divertir a infausta história

Dos, que Amor me teceu, tristes enredos!

Malfeito, que o tumulto da memória

Recobre algum sossego, quando lida

Com as lembranças da passada glória.

Tão viva n'alma a dor desta ferida

Está, que há de igualar da eternidade

A larga série, a duração comprida;

E o pensamento meu, que se persuade

De querer apagar da idéia a chama,

Cada vez mais se cobre de saudade.

Não se desmaia assim, de quem bem ama,

O extremoso afeto; o fogo ativo

Com imortal ardor o peito inflama.

Leva da morte o golpe executivo,

Para os campos do Elísio a luz inteira

Do fino amor, que n'alma arde tão vivo:

Lá dizem que se estende uma ribeira,

Por onde andam as almas vagabundas,

Seguindo a sorte ingrata ou lisonjeira.

Tu, brando rio, mansamente inundas

Os férteis campos, onde a oposta via

O passo inclina às regiões profundas.

Neste País saudoso, a luz do dia,

Perpétua sempre, sempre vigilante,

Põe em desterro as sombras da agonia.

Se pois só lá descansa um triste amante,

Se nem ainda a mesma morte apaga

O voto fiel de um coração constante,

Como é possível que eu à idéia traga

O delírio infeliz, de que alguma hora

Alívio tenha minha infausta chaga!

Morra minha loucura: que eu já agora

Seguir-te espero, ó peregrino enleio

De um coração, de uma alma que te adora.

Perdido o tino, e da razão o freio

Torpemente estragado, me disponho

A viver sempre de pesares cheio.

Toda a glória, e prazer terei por sonho,

E crendo só na minha desventura,

Já no meu dano a ponderar me ponho.

Dar não quero a meu mal outra mais cura,

Que trazer sempre impresso na lembrança

Todo o passado bem, toda a ventura.

Vamos pois recordando esta mudança;

E não me esqueça do suave alento,

Que achei de Amor na plácida bonança.

Quero esse bem lembrar ao pensamento,

Em cujo ser depositado eu via,

Cruel Amor, o teu contentamento.

Vamos desentranhar da cinza fria

As imagens do gosto, que apagadas

Têm do destino a dura aleivosia.

Que peregrina em tudo... Ah! que embargadas

São minhas vozes de um Pastor que chega,

E vem talvez seguindo-me as pisadas.

Quanto comigo é a fortuna cega!

Pois até este bem da soledade,

Somente porque é bem, gozar me nega.

Debalde é esperar que haja piedade,

Que vai da sorte o mísero progresso

Abrindo sempre o seio da crueldade.

Quem será? È Frondélio: eu o conheço;

Importuno Pastor, inda que amigo;

Já não posso esconder-me: eu lhe apareço.

FRON. Valha-me o Céu, Salício! que inimigo,

Que ingrato, que maligno influxo é este,

Que tanto é contumaz em teu castigo!

Não é preciso que eu te manifeste

A forçosa razão que me acompanha

Para o sentir: há muito que a soubeste.

Tem assombrado a toda esta montanha

Este semblante teu tão carregado,

Coberto de uma dor e mágoa estranha.

Vaga sem guarda o teu faminto gado,

Feito dos lobos inocente presa,

Pelos agrestes matos espalhado.

Foges de todo o trato, e até te pesa

Que um amigo os teus passos vá seguindo,

Por saber a razão dessa tristeza.

Fala, dize; que tens? Que estás sentindo?

Mas tu dás um suspiro, e emudecendo

Co'a face sobre o peito vais caindo!

Explica-te comigo; eu estou vendo

Que esperas que os teus males nos declare

De alguma grande dor o estrago horrendo.

SAL. Primeiro a doce vida desampare

Este fraco despojo que hoje anima,

Que eu de outro algum, senão de ti, me ampare.

Se o ver-me, caro Amigo, te lastima,

Arranca-me esta vida, que eu não quero

Um bem, que sem ventura não se estima.

Eu morro; eu enlouqueço; eu desespero:

E só da morte dura o horror maligno

É, Frondélio, a piedade que hoje espero.

Já me entrego de todo ao desatino:

Pois a tanto pesar, a tanto susto,

Alívio algum não há, bem que imagino.

Nada faço empenar; a tanto custo

Quero morrer, Amigo; arranca, arranca

Este meu coração: é justo, é justo.

FRON. Se a corrente da mágoa não se estanca,

Pela falta talvez do desafogo,

Por negar-te a piedade a porta franca,

Comigo estale embora o ardente fogo

Que recatas zeloso: ao doce efeito,

Menos ativa a mágoa verás logo.

SAL. Quero falar, Frondélio; mas desfeito

O coração em lágrimas, desmaia

Balbuciente a língua, a voz no peito.

FRON. Cobra sossego um pouco; e enquanto raia

O sol já menos quente nessa esfera,

Para falar-me o teu valor ensaia.

SAL. Custoso me será; mas ouve, espera,

Escuta, meu Frondélio: ah! quanto é duro

Sentir de uma lembrança a lei severa!

Perdoa-me, Amarílis; eu te juro

Que amor sim, não a falta de decoro

Rompe de meu silêncio o voto puro:

Eu te respeito enfim, te amo, e te adoro.

Conheces a Amarílis,

A Pastora mimosa,

Mais bela do que Almeja, e mais que Fílis,

Amarílis formosa,

Meu ídolo adorado,

Filha de Alfemo, glória deste prado?

Lembras-te quantas vezes

Convidando a floresta

Às belas noites dos dourados meses,

A pompa manifesta

De seus dotes se via,

E cada vez mais bela parecia?

Acordas-te de quando,

Numa noite daquelas,

Uma flor para o jogo ela tomando,

Colhida entre as mais belas,

Fingindo que eu ganhara,

Risonha me entregou a Ninfa clara?

Aqui, Frondélio amado,

O giro principia

De meu ingrato, meu injusto fado:

Tomou naquele dia

Por sua empresa a sorte

Lavrar na minha glória a minha morte.

A inveja macilenta,

Filha do monstro indigno,

Começou a espalhar com mão violenta

O bárbaro, o maligno,

Contagioso veneno,

Que hoje é causa das mágoas em que peno.

No bosque, prado, e vale,

Não há quem de Salício

Depois daquele dia já não fale:

Daquela flor no indício

Já conhecido, o engano

Se faz universal para meu dano.

A romper-se começa

Pouco e pouco o segredo,

Enquanto a bela Ninfa, que travessa

De nada tinha medo,

Nutria os meus amores

Com o doce alimento dos favores.

Ah! quem, Frondélio, agora

Lembrar-se não pudera

Daquela dita, aquela enganadora

Glória, que detivera

Toda a minha ventura

Sobre a base gentil da formosura!

Mas se está meu tormento

Tão patente, e tão claro,

Quero lembrar o meu contentamento.

Cegamente reparo

Em dar maior valia

No decoro ao pesar, do que à alegria.

Recolhiam-se os raios

Ao centro cristalino

Desse eterno Planeta; a seus desmaios

Sucedia o benigno

Influxo de Diana,

Êmula de Amarilis soberana.

A estas horas, quando

Ao sono se rendia

O velho Alfemo, a Ninfa o véu tomando,

A um jardim descia,

Aonde alegre Flora

Espalha as águas, que uma fonte chora.

Tu, dize, tu, mimosa,

Sonora fontezinha,

Que regas a campina deliciosa

Que pisa a Ninfa minha,

Tu, dize aquela glória,

Se inda a guardas impressa na memória.

Dizei-o vós, ó plantas,

Vós o dizei, ó flores;

Que vós testemunhastes vezes quantas,

Propícia a meus amores,

Amarilis, a bela,

No vosso campo pareceu estrela.

Mas não digais; e antes

Discretamente atentas,

Observai sempre os votos vigilantes,

Que as leis da dor violentas

Têm de todo estragado

No recato infeliz de meu cuidado.

Pois que a dita alcançaste,

Ouve, Frondélio, a pena;

Tu mesmo o meu pesar desafiaste;

Teu respeito me ordena,

Ou a amizade tua,

A que te faça narração tão crua.

Esta glória gozava,

Amigo, quando a inveja

Aos ouvidos de Alfemo se avançava;

E como ver deseja

Vivamente o seu dano,

No descuido da Ninfa tece o engano.

Compreende o delito;

Acusa a ligeireza;

E com ímpio rigor lhe tem perscrito

Que em um cárcere presa

Pague a culpa que eu tenho

De a ter rendido ao amoroso empenho.

Vê, considera, e dize

Com quanta dor, com quanta

Suportará minha alma este castigo!

Lembrar-me glória tanta

Perdida em um instante!

Ah! que dor tão cruel a um peito amante!

Estar na minha idéia

Pintando a tirania,

Que oprime a bela Ninfa! A alma cheia

De angústia, e de agonia,

Em tanto sentimento,

Sufoca-se no horror do pensamento.

Como há de estar aquela,

Formosa como o dia,

Cerrada em sombra escura?

Como a bela Imagem da alegria,

No fúnebre aposento,

Dormirá entre os sustos do tormento!

Ora a fineza minha

De cobarde acusando,

Ora a piedade, que em minha alma tinha,

De ingrata condenando;

Tudo oposto em meu dano,

Convertida a esperança em desengano!

Ah! Quando em tal discorro,

Frondélio meu, a vida

Me enfada e me aborrece; expiro, e morro

Entre a confusa lida

De tão profunda pena,

Que injusto Amor em meu martírio ordena.

Vê tu quanto hei perdido,

E quanto enfim me resta!

De Amarílis o encanto apetecido,

A minha dor funesta,

A glória, a dita, o gosto,

A desventura, a mágoa, e o desgosto.

FRON. Na verdade, Salício, o teu sucesso

Notável compaixão me tem devido.

Sei onde chega o bárbaro progresso

De uma dor na lembrança do perdido;

Porém não devo desculpar o excesso

A tempo, que parece o teu gemido

Algum remédio tem: vê, discorramos;

Podemo-lo aplicar, se acaso o achamos.

SAL. Pertendes que nos laços da esperança

Outra vez, caro Amigo, a vida ponha!

Queres que entre as ruínas da mudança

Para novo tormento me disponha!

Hei de ser como aquele que a bonança

No meio da tormenta acaso sonha,

E os olhos desatando o sono amigo,

Se acha infeliz no centro do perigo?

Já não creio que pode haver ventura

Para o pobre Salício decretada;

Salvo se vem com máscara perjura

A desgraça impiamente disfarçada:

Eu, que em tantos triunfos vi segura

A glória, que hoje é sombra, é fumo, é nada,

Posso esperar que torne a minha dita?

Quem tão grande loucura inda acredita!

FRON. Se em laço de Himeneu o velho Alfemo

Te une à bela Amarílis, eu confio

Que passando um extremo a outro extremo

Não terás de culpar teu fado impio.

SAL. Ah! Que nessa lembrança, Amigo, gemo;

Pois é néscia loucura, é desvario

Aspirar um Pastor humilde, e pobre,

À ventura de um bem tão rico, e nobre.

O que faz o tormento mais dobrado

É ver a lei sagrada do decoro,

Impondo-me um silêncio tão pesado

No que sofro, suspiro, peno, e choro:

Eu, um triste Pastor, triste o meu gado;

Ela, Pastora de um divino coro;

Não pode haver igual correspondência;

Sempre temo os excessos da violência.

Mas se Amor é das almas harmonia,

Que o peito escuta, o ouvido não entende,

Esperar posso ainda que algum dia

Seja pago este amor que assim me acende.

Mas enquanto a soberba tirania

De Alfemo os meus gemidos não atende,

Como alívio terei, como descanso?

Como andarei com gesto alegre, e manso?

FRON. Sítio sei eu, de donde me parece

Que suposto Amarílis presa esteja,

Pode ser, se de ti se não esquece,

Que inda chegue a escutar-te, e que te veja.

SAL. Guia-me tu, Frondélio: qual é esse

Venturoso retiro, oculto à inveja?

Eu quero vê-lo: vamos, vai diante.

FRON. Vem; e não te demores um instante.

Vês este vale? Para aquele assento

Fica um pequeno oiteiro, e se divisa

Vizinha a ele a choça, o aposento

De Alfemo, de Amarílis, e Feliza.

SAL. Sagrado sítio a meu gemido atento,

Se é que amparas propício a quem te pisa,

Mostra a minha Amarílis: dize aonde

Amarílis, meu bem, em ti se esconde.

FRON. Que mais queres? Aquela é a beleza

Da tua amada Ninfa: o seu semblante

Coberto está de fúnebre tristeza.

SAL. Triste vem: que pesar a um pobre amante!

Alguém viu, como eu vi, a gentileza

Daquele rosto, mais que a luz brilhante,

Mais bela do que a rosa matutina,

Engraçada, gentil e peregrina!

FRON. A seu lado Feliza está sentada,

Ambas na história triste discorrendo:

Talvez de teus amores magoada

A formosa Amarílis vai dizendo.

SAL. Escuta: nesta estância retirada

Irei o que ambas dizem percebendo;

Ah! Que um ai Amarílis deu sentida!

Triste fadiga! Lastimosa vida!

AMAR. Mal haja a feminil loucura minha,

Que de um homem na falsa ligeireza

Imaginou firmeza.

Mal haja o cego monstro que me tinha

Na louca fantasia debuxado

Tão belo o meu cuidado,

Para comprar meu desengano agora

Nas mãos da experiência roubadora.

Habitar esta sombra, ver o dia,

Cheia a alma de horror, de assombro o peito,

Trazer sempre sujeito

O coração à vil melancolia,

Oh! quanto me atormenta, Amor, oh! quanto!

Ah! mísero quebranto,

Fiscal de meu amante rendimento!

Só porque soube amar, sinto o tormento.

Estas eram, Salício fementido,

As lágrimas que eu vi banhar teu rosto!

Artifício disposto,

A contrastar o Nume desabrido

De minha condição! Ah! se eu não fora

Tão crédula à traidora,

Lisonjeira eficácia de teu pranto,

Engenhosa em meu mal não fora tanto.

Quantas vezes, ingrato, esta montanha

Girando por buscar-me à calma, ao frio,

Com generoso brio,

Vieste para empresa tão estranha!

Quantas a noite te deixou no prado!

Quantas o rosto amado

Da Aurora te encontrou, pérfido amante,

Às portas desta choça vigilante!

Que inventos não achaste peregrinos,

Para me contrastar! Que cedro, ou faia,

Que ao tempo não desmaia,

Não guarda ainda os sonorosos hinos,

Que na bem temperada, acorde avena,

Para tecer-me a pena,

Entoaste depois em meu tormento,

O veneno ocultando no instrumento!

FEL. Amarílis, o tempo tem mostrado

Que a palavra do amante apenas dura,

Enquanto da ventura

Corre propício o giro acelerado.

Verás, Irmã, mudar-se aquele outeiro

De seu lugar primeiro,

Que se veja nos homens algum dia

Segura a fé que um deles prometia.

SAL. Onde, Frondélio meu, me hás conduzido?

Que ao escutar da minha amada a queixa,

Tão magoado me deixa

A constante razão de seu gemido,

Que ao passo que igualando o seu estrago

Lhe recompenso, e pago

O martírio que o fado lhe destina,

É maior que o seu mal minha ruína.

Quero que ela me veja: eu lhe apareço.

Que importa aventurar-me a seus rigores,

Se chegam minhas dores

Do último golpe ao lastimoso excesso!

Se hei de morrer distante à sua vista,

Onde é força resista,

Por lograr este bem da morte ao laço,

Vá-se o temor, o susto, o embaraço.

FRON. Chega-te muito embora: arrependido

Já de minha piedade, bem me pesa

De que a tua tristeza

Encontre aqui motivo mais crescido.

Mal haja a compaixão que enganadora

Me persuadiu que uma hora

Quartada a tua pena, quebraria

(Presente o bem, que adoras) a porfia.

AMAR. Se a fantasia acaso não me engana,

E a luz já menos firme no Horizonte,

Vizinho a este monte

Vejo um vulto chegar deforma humana.

FEL. Se de meu triste horror não é pintura,

Nele se me figura,

Amarílis, presente o teu Salício.

AMAR. Será: oh! que funesto precipício!

SAL. Salício sou, querida, não te espantes;

Se bem que de meus males a aspereza,

Qual nunca a vil fereza

Igualou da fortuna nos amantes,

Mudado tem de todo a humana forma:

E este corpo se informa

Da mágoa, dos pesares, da amargura,

Das sombras, da aflição, da desventura.

Tão outro enfim me vejo do que fora,

Que uma estátua da pena me contemplo,

Dos martírios exemplo

Me proponho à vingança; esta alma ignora

O uso da razão; se bem, querida,

Ao passo que duvida

Minha alma, se do corpo o moto ordena,

Conheço que só vivo para a pena.

Vivo só para a pena; e também vivo

Para sempre te amar, Ninfa formosa.

Consulta esta amorosa,

Viva estampa de Amor; no fogo ativo

Verás a tua imagem que respeita

Tão pura e tão perfeita,

A minha adoração, verás prostrado

A teu desprezo duro o meu cuidado.

AMAR. Inda a meus olhos vens, pérfido amante,

As traições escondendo em teu gemido?

Tu, monstro fementido,

Tu, coração mais duro que diamante,

Escândalo e horror destas montanhas!

Nas ásperas entranhas

Da Hircânia o humor primeiro achar pudeste,

Onde a fereza indômita bebeste.

Crês que inda, ingrato, o cego desatino

De meu primeiro amor me tem cerrada

Na ilusão adorada

De acreditar-te verdadeiro e fino?

Vens privar-me do alívio que ainda gozo

No desterro penoso,

Sendo força que alívio considere,

Quando ver- te, cruel, jamais espere!

Vens protestar finezas? Que esperança

Tão delirante e louca desordena

A face tão serena

Dessa tibieza tua? Vai, descansa,

Segue o sossego teu; deixa que eu triste,

Na mágoa que me assiste,

Deva à piedade tua o grande excesso

De escusar-me este horror com que faleço.

SAL. Não venho, amada, não, porque tirano

Fiscal de teu martírio me imagines;

Só para que me ensines

A vencer de meu fado o desumano,

Ingrato giro, venho; da firmeza,

Da fé que guardo ilesa,

Eu venho assegurar-te a chama ativa,

Mais fina, cada vez mais pura, e viva.

AMAR. Vai-te, inimigo, vai: o desamparo,

Em que viva me tens, morta me deixa:

Verás que a minha queixa

Fora de mim não busca outro reparo.

O desengano meu, que me acompanha,

Será de tão estranha,

Tão inflexível sorte, última cura.

Fora de mim não quero outra ventura.

Desta só breve luz, que me permite

(Por melhor ver a sombra macilenta)

Um Pai, que me atormenta,

Aflita gozarei, pondo limite

Neste oculto retiro ao meu cuidado.

Memórias do passado

Entrada não terão neste aposento,

Habitação da sombra e do tormento.

FEL. Ausentou-se Amarílis: ah! Que errado

A contrastar, Salício, se aventura

De uma paixão tão dura

A posse, que em seu peito tem tomado!

Mal haja o monstro cego que mantinha,

Irmã querida minha,

Teu enganoso passo, onde tão crua

Vejas a face da desgraça tua.

Mas enquanto o volúvel movimento

Dessa Deusa inconstante não descansa,

À rapida mudança

Me conformo do giro seu violento.

Já agora seguir quero o curso ingrato

De seu ligeiro trato;

Se pode ainda o fado pôr baliza

Aos casos de Amarílis e Feliza.

SAL. Onde foges, cruel? Onde, adorada,

Belíssima ocasião de meu gemido,

Ocultas essa face delicada?

Em que tenho, Amarílis, delinqüido?

Por que fazendo agravo da fineza

Me ordenas um rigor tão desabrido?

Foi crime o adorar tua beleza?

Seria: mas o Céu só é culpado

Num delito (ai de mim!) que não me pesa:

Ele deixou em ti recopilado

De seus astros a face peregrina,

A pompa de seu rosto prateado.

Ele por influência nos destina

A adoração de um bem, cuja luz pura

A liberdade em cárceres domina.

Se minha estrela pois, infausta e escura,

Me conduz a teus olhos, destinada

Vítima de tão rara formosura,

Aos Céus há de chamar minha ânsia irada

Porque dando-me amor tão peregrino,

Me ordenaram fortuna tão pesada.

Injusto, ó Céu, comigo te imagino:

Ou não fora Amarílis tão querida,

Ou fora mais feliz o meu destino.

Mas se era todo o bem da minha vida

Aquela rara idéia da beleza,

Aquela formosura tão crescida,

Como injuriando o obséquio da fineza,

Inda resiste meu cansado alento

Aos assaltos da pérfida fereza!

Quero encurtar da vida o passo lento,

A desgraça igualando, que Anaxarte

Testemunhou no fúnebre instrumento.

Terás, bela Amarílis, terás parte

Na minha ingrata sorte: eu o consinto

Pela glória que tenho de adorar-te.

Frondélio meu, do triste labirinto

Em que já sufocada está minha alma,

Resgata este despojo tão distinto.

Nesta, que os membros gira, mortal calma,

Já nada me consola; nada quero,

Mais que em fé deste Amor render-lhe a palma.

FRON. Sossega, meu Salício; eu ainda espero

Que daquela que vês, ingrata, e dura,

Possa ver o semblante menos fero.

Do tempo a direção branda e madura

Tudo sabe mudar; a natureza É vária;

e em variar sempre é segura.

Amarílis, que bárbara despreza

O teu suspiro agora (eu o discorro),

Há de um dia ceder dessa aspereza.

SAL. Ah! Que pede meu mal outro socorro

Mais pronto, mais ligeiro: eu imagino

Que te contenta, Amigo, o ver que eu morro.

Sim, meu Frondélio, sim: que onde tão fino

De Amor se ateia o fogo, outro concerto

Não há mais, do que um cego desatino.

Quando não foi de Amor no golfo incerto

A paixão, o delírio, e a loucura,

O norte, que conduz ao desacerto!

Apenas escapou da força dura

De Amor a liberdade, que anda atada

À direção de uma prudência pura.

Jove, o senhor da esplêndida morada,

Deixa do eterno Olimpo a estância amena,

E deixa a Divindade abandonada;

De Europa, Dânae, Leda, e mais Almena,

Vê como foi despojo aquele raio,

Que a soberba de Encélado condena.

Em quantos desatinos faz ensaio

Aquele ativo incêndio, que nos peitos

Imprime Amor com um mortal desmaio?

Gira esses campos; vê os seus efeitos

Tão raros, que estampados na memória

Nunca do tempo se verão desfeitos.

Mas esta de Amor bárbara vitória

Há de crescer mais peregrina, e rara

Na que pertendo dar-lhe, imortal glória.

Tudo já me roubou a sorte avara:

Nenhum bem eu espero já, perdida

A melhor glória, que o meu peito amara.

Aqui quero acabar, Frondélio, a vida,

Dando novas memórias, que este monte

Respeitará na idade mais crescida.

Girando Eco saudosa este Horizonte,

Eu espero que ainda em rouco acento

A minha infausta história ao mundo conte.

Horrorizando a todo o pensamento

Vivirei, aos amantes desatinos

Mil desenganos dando em meu tormento.

E trazendo em lembrança os peregrinos

Excessos de um amor, no bosque inculto

Serei assunto a números divinos.

De hirsutos Faunos no retiro oculto,

Permitida a saudosa cantilena,

Logrará meu amor perene culto.

E tu, por desafogo à minha pena,

Enquanto meu espírito tornado

Em cisne voa à região serena,

Ao triste caminhante encomendado

Um padrão erguerás compadecido,

Naquele monte agreste e descalvado.

Nele fique por último esculpido:

"Aqui jaz... (diga assim a cifra breve)

Salício, por amante perseguido.

Foi infeliz: seja-lhe a terra leve."

Isto dizia, quando,

Já desmaiado o alento,

Nos braços de Frondélio descansando

O peso triste, em fé do sentimento,

Apenas um gemido

Despediu na lembrança do perdido.

Então o Sol ausente

Aos pousos convidava;

Já de pastar a relva florescente

O seu rebanho cada qual chamava;

Frondélio era um penedo,

Triste, mudo, pasmado, absorto, e quedo.

ECLOGA XIII

SILVIO

Sílvio e Algano

ALG. Que é isto, Sílvio? Aqui tão solitário

À sombra deste freixo! Já não vejo

Na tua companhia o amado Agrário,

Pastor tão belo, que no fresco Tejo

O repete a saudade a cada instante,

Por onde quer que gire a vista errante,

Vales correndo, atravessando serras!

Como também da nossa companhia

Tu, a quem tanto amamos, te desterras,

Com tão triste e fatal melancolia,

Que tudo já teu mal tem estranhado,

Os Pastores, o monte, e o mesmo gado!

Tão diferente estás, tão outro admiro

O teu gênio, Pastor, e o teu aspecto,

Que cuido, neste fúnebre retiro,

Do fado injusto o bárbaro decreto

Te há de usurpar a vida, se entregando

Toda a alma ao sentimento, em ócio brando

Não divertes a mágoa; e se alivia

Qualquer pena, que a um mísero atormenta,

Do amigo, que lhe assiste, a companhia,

Aqui me tens, Pastor; comigo alenta

Essa dor; bem que a vejo tão profunda,

Que temo que este alívio mais confunda.

Que mal, ó Sílvio, foi tão penetrante,

Que este penhasco imóvel da constância

Pôde abalar? Que dor há, que quebrante

Um peito, aonde nunca a mortal ânsia,

O cuidado impaciente, a mágoa aflita

Entrar puderam? Cuido que esquisita

Causa tens para tal: se é que a funesta,

Dura ausência daquele Pastor caro

Teu coração amante assim molesta,

Não chores, não, ó Sílvio: pois reparo

Que em todos nós geral é a saudade,

E o mal comum alívio persuade.

Não eras tu aquele, que ocupando

Entre os Pastores o lugar primeiro,

Em doce estilo os versos entoando,

Te fazias ao monte lisonjeiro?

Que de vezes as árvores e os montes,

As duras penhas, as sonoras fontes,

Correndo atrás do canto que entoavas,

Te vimos atrair, sendo verdade

Então o que tu mesmo nos contavas

Da harmoniosa e cadente suavidade

Do Músico feliz, que já houvera,

Cuja voz os Delfins render soubera!

Agora já dos versos esquecido,

Que alternaste contente, só lembrado

Da insuportável mágoa do sentido,

Tão entregue te vejo a teu cuidado,

Que já não soa o lírico instrumento:

Antes ali de um choupo corpulento,

Como se ele de tédio te servira,

Na tosca rama o vejo estar pendente.

E tu (ai triste!), como se ferira

Teu coração um íntimo acidente,

Confuso estás, pasmado, mudo, absorto,

E menos vivo ainda, do que morto!

Que tens, Pastor? A causa me declara,

Se da minha amizade enfim te fias;

De tão grande tristeza eu desejara

Dar-te todo o prazer; e se porfias

Em ir dobrando a dor, maior excesso

Tens na imaginação; eu te confesso

Que daqui não me aparto, enquanto a dura

Paixão, que te maltrata e te exaspera,

Me não matar também. Ouve; procura

Suavizar, Amigo, a pena fera;

Ou conta-me sequer: na mesma história

Que aviva a dor, diverte-se a memória.

SIL. Quem senão tu, Algano, quem pudera,

Senão tu, que os meus passos sempre alcanças,

Achar-me nesta soledade austera,

Onde me conduziu entre esperanças

De alívio não, mas sim, de cruel morte,

Do incerto fado o duvidoso norte!

Aqui estava eu só; e se podia

Haver algum prazer, que inda lograsse

Na desigual fortuna, eu te diria,

Sem que nisso o teu trato desprezasse,

Que nenhum outro fora, mas somente

Seria o estar só, e não ver gente.

Mas já que tu vieste, e pode tanto

Comigo a tua súplica, a corrente

Suspenderei um pouco ao largo pranto;

Enquanto rompo a dor que o peito sente,

Sabe, Pastor amigo, que me custa

Dizer-te a minha queixa: mas se é justa

Esta expressão, escuta o desafogo,

Que entre os largos espaços da saudade

Descobriu o martírio; e só te rogo,

Se alguma compaixão te persuade

Este horroroso, mísero progresso,

Culpa a causa, desculpa-me o excesso.

Querendo lisonjear-me por tais modos,

Tu mesmo a agravar vens a ferida.

Que importa ser geral a mágoa em todos,

Se em quem mais ama a pena é mais crescida!

Agrário, sim, de todos era amado;

Porém de mim foi quase idolatrado:

A qualquer hora, ou fosse noite, ou dia,

Nos vias sempre juntos: a freqüência,

O cuidado, o desvelo e a porfia

De um grande amor é certa conseqüência;

Se Agrário ao monte alguma vez faltava,

Também de Sílvio a ausência se notava.

Fosse de amor segredo, ou simpatia,

Que influi cada estrela na criatura,

Vi-o uma vez; e desde aquele dia

Larga amizade em nós se fez segura.

Podes de seu amor ter por certeza,

Que em mim quase venceu a natureza.

Um gênio me assistia solitário

Até então, de sorte que somente

O doce trato do fiel Agrário

Me fez comunicável entre a gente.

Entre todos vivi; mas ocupado

De Agrário era somente o meu cuidado.

Como não pode haver bem tão seguro

Que o não estrague a bárbara mudança,

No mar incerto do destino escuro,

Tornou-se horror a plácida bonança.

Interpôs-se uma ausência, com que abrindo

O caminho à saudade, consumindo

Esta constância foi, que me animava,

Que tu me louvas tanto: já de todo

Eu, que do fado nada receava,

A arrastar o seu carro me acomodo,

Prostrado já, desfeito e destruído

O templo, que à vaidade tinha erguido.

ALG. Bem vejo, Sílvio; a causa do tormento

É justa: eu sei, Amigo, que a amizade

Não se atreve a abrandar-te o sentimento,

E é ofensa o alívio, que persuade.

Mas se nos longes vês de uma esperança

O bem que choras, ó Pastor, descansa;

Que se a dita não pode estar segura,

O mesmo é a desgraça: igual Astréia

Ao peso da balança mede e apura

Tanto o que aflige, como o que recreia.

Aqui tens o instrumento; dá-me o gosto

De ouvir os versos, que aí tens composto.

SíL. Na casca deste tronco, onde feria

Mais livremente a ponta deste estilo,

Ao meu Agrário uns versos escrevia;

Duro tormento; e tu queres ouvi-lo!

Mui diferentes são do antigo estado;

É triste o estro; o gênio é magoado.

Não são os que Fileno me ensinava,

A louvar de Amarílis a divina

Beleza, que outro tempo me arrastava:

São porém os que a mágoa hoje me ensina

A lisonjear meu mal: mas se tu queres,

Ouve, que eu leio os tristes caracteres.

Caro Pastor ausente,

Que o teu retrato deixas na lembrança,

Por lograr-te presente,

Quem na memória mais tormento alcança,

Com que contentamento eu te asseguro

No centro d'alma o meu afeto puro!

Tão louca é, e tão cega

De amor a natureza, que sabendo

Que o alívio, a que se entrega,

O seu maior martírio está tecendo,

Gostoso o segue, e adorando o estrago

De ver que o logra, vive muito pago.

Qual aspid se afigura

A lembrança do ausente, que lhe assiste;

Pois entre a pompa escura,

Como entre a flor, o seu veneno triste

Se forja, se alimenta, se fabrica;

E em vez de alívio, morte comunica.

A morte, digo: oh! antes

O encurvado ferro separara

O alento; mas constantes

Os espíritos (pena inda mais rara!),

Como alegres, do mal atormentados,

Na mesma pena vivem obstinados.

Estes discursos forma

Não a razão (que toda está perdida);

A dor, que se conforma

Com a causa, trazendo repetida

A lembrança do bem, é que discorre;

E idéia de outro bem lhe não ocorre.

Contempla as prendas raras

De um Pastor, que na rústica palestra,

Tu, monte, assinalaras

Entre todos distinto, quando a destra

Barra jogava, ou quando mais ativo

Corria atrás de um tigre fugitivo.

Adverte o gênio belo,

Com que o geral agrado concilia,

Podendo ser modelo

De quantos dons a natureza cria:

Lembra-te do sonoro, acorde acento,

Com que entoava o métrico instrumento.

Porém onde me guia

A cansada memória, se conheço

Que está minha agonia

Na mesma frágua, onde os alívios peço!

Destrua-se a memória: acabe embora

Lembrança, que me aflige a toda a hora.

ALG. De teu canto foi tal a suavidade,

Que enchendo de prazer este arvoredo,

Tornou alegre a mesma soledade

Que estava de horror cheia, e mais de medo:

Moveu-se aquele tronco de piedade;

Abalou-se este rústico penedo;

Não será de teu mal o rigor tanto,

Que o não mova também teu doce canto.

SIL. Para lisonja de meu triste dano,

Essa expressão, bem vejo que retrata

Não teu conhecimento, amado Algano,

Mas teu amor, que tão fiel me trata.

Se as duras queixas de meu mal tirano

Ouvir tua atenção, cousa é tão grata,

O coração, que cheio está de pena,

Repetir outras mais inda me ordena.

ALG. Bem te quisera ouvir: mas estou vendo

Que já o pardo crepúsculo do dia,

Por entre as serras ásperas rompendo,

A luz espalha pela sombra fria.

Já o ferro do arado vem gemendo;

Os bois tornam à mísera porfia;

E todos os Pastores despertando,

Da pobre choça as portas vão cerrando.

SiL. Bem sinto que me dês tal novidade,

Porque eu vivo de sorte em meu tormento,

Que inda que despertasse a claridade,

Distinguir não pudera o luzimento.

Mas já que este sucesso te persuade

Que a sorte até me quarta o sentimento,

Por não lograr um bem, vamos: mas onde

O meu rebanho (ai mísero!) se esconde?

Não sei por onde pasta o triste gado,

Que eu ontem neste monte apascentava:

Tanto me arrebatou o meu cuidado,

Que nem de mim, nem dele me lembrava;

Vai tu, Algano; cerca deste lado,

Que eu vou bater aquela mata brava,

Onde o trilho é talvez mais perigoso.

Anda; busca o Bargado, e o Baroso.

ÉCLOGA XIV

ALCINO

Em região distante,

Aonde o Sol dourado

Mal os raios estende sobre os montes,

Em um sítio funesto e carregado,

Alcino, que de Tisne foi amante,

Dos olhos duas fontes

Derramava em seu líquido lamento,

Dura e precisa lei do seu tormento.

A rústica floresta

Apenas habitada

Era do rude gênio dos Pastores,

A quem a dope flauta desagrada,

A quem o baile, o jogo mais molesta.

Os suaves Amores

Não param a esputar Ninfas mimosas,

De adorno inculto, sem louvor, formosas.

Turvo e feio, um ribeiro

0 campo dividia

Por entre as penhas com medonho estrondo.

A vista se assustava, quando via

Baixar seu curso de um soberbo oiteiro,

Os troncos descompondo,

As profundas raízes arrancando,

Por onde a crespa enchente o vai levando.

Se os olhos levantava

Às altas serranias,

O peito de uma nuvem de tristeza

(Qual se vira da noite as sombras frias),

Ansioso em triste luto se ocupava:

E sempre a chama acesa

Da memória propunha o nem perdido,

Para maior verdugo do sentido.

Nesta cansada vida

Se achava aquele amante

Pastor, que já nas margens florescentes

Do Mondego guiara o gado errante,

Trocado o antigo nem na infausta lida

De fadigas veementes,

Transformando-se em pena aquele gosto,

Que em braços da ventura o teve posto.

A um penhasco, que os ares

Igualava na altura,

Uma tarde subia o pobre Alcino.

Ali, depois que a sua desventura

Chorando esteve em dons amargos mares,

Seu louco desatino

Rompe o silêncio gravemente mudo,

E para ouvi-lo suspendeu-se tudo:

Alegres praias, úmidas ribeiras

Do Mondego, que plácido discorre,

Que do olmo a copa em raias lisonjeiras

Com a sombra suavíssima socorre;

Vós, que pelas campinas mais grosseiras,

Que hoje o meu gado sei ventura corre,

Trocadas fostes, quando a inveja tinha

Postos os olhos na fortuna minha;

Mimosas águas, delicioso hospício

De Ninfas, que na espuma prateada

Fazendo estão gostoso desperdício

De uma beleza docemente amada;

Vós, que ouvis de Paleio e de Salício

A flauta brandamente temperada,

Quando um a rede estende, o outro colhe

Em seus currais o gado, que recolhe;

Dizei-me vós se acaso aquele pranto,

Com que estou a chorar esta saudade,

Tem tanto impulso, tem esforço tanto,

Que vos empenhe a conceber piedade.

Dizei-me vós se aquele amado encanto,

Que laço foi de minha fiel vontade,

Vive alegrando essa mimosa esfera,

Como no pampo faz a primavera.

Dizei-me se entre os rústicos Pastores

Na floresta o rebanho inda apascenta;

Se ainda ornada de vistosas flores

Ela entre todas mais gentil se ostenta;

Qual foi o emprego enfim de seus amores,

Quando o mísero Alcino se lamenta;

Alcino, queda sua formosura

Desterrado suspira sem ventura.

Dizei-me se inda cresce na beleza:

Porque, segundo meu cuidado via,

Cheguei a imaginar que a natureza

Mil perfeições lhe dava pada dia:

Vendo-a eu, muitas vezes a alma presa

Em tanta gentileza se sentia;

Crescendo a admiração, logo encontrava

Beleza, que de novo se admirava.

Dizei-me se ao cair da fresca tarde

Sai a gozar do vento que respira,

Quando o maior Planeta menos arde,

Quando aos currais o gado se retira.

Se do seu belo encanto faz alarde,

Sentada à sombra do álamo, onde ouvira

Muitas vezes os ecos de meu pranto,

Nas vozes sentidíssimas do canto.

Dizei-me se inclinando suavemente

Os ouvidos ao toque lisonjeiro,

De algum Pastor esputa a voz cadente,

Que o gado guia desde o crespo oiteiro.

Se alguma compaixão se lhe persente,

Girando os olhos, pomo no primeiro

Movimento do nosso amor ouvia,

Ou quando olhava, ou quando me atendia.

Porém vós vos calais: Ah! que a distância,

Ninfas do brando Rio, vos impede

Ouvir os tristes ecos de minha ânsia,

Que a mortal agonia tanto expede.

Sem dúvida a ruína da constância,

Que a mim me prometeu, Ninfas, vos pede

Este silêncio. Ah! quanto em uma ausência

Periga a mais segura persistência!

Mas se tanto em vós pode a lei sagrada

Do modesto decoro, e à singeleza

De vossos corações somente agrada

Encobrir as traições dessa beleza,

Minha alma, que nas fráguas abrasada

De tanto ardente amor suspira acesa,

Vingança clamará, dando o segredo

Ao bosque escuro, ao fúnebre arvoredo.

Aqui me esputará esta corrente,

Que despenhada os duros troncos banha:

Ouça-me este penhasco, aonde ausente

Me vejo a lamentar traição tamanha.

Tenha este Rio enfim sempre presente,

Presente sempre tenha esta montanha

De Tisbe ingrata a pérfida memória,

De Alcino amante a lastimosa história.

E aqui desta alta penha

(Que se remonta aos ares), de um amante

Sempre firme e constante,

A quem seu mal despenha,

Da mais infiel Pastora na mudança,

Se recomenda a mísera lembrança;

Sabei, ó rochas duras,

Que de quantas o Céu alenta e cria,

Tão belas pomo o dia,

Perfeitas criaturas,

Nenhuma é, do que Tisbe, mais formosa,

E nenhuma também mais aleivosa.

BELISA E AMARÍLIS

ÉCLOGA XV

Corebo e Palemo.

Cor. Agora, que do alto vem caindo

A noite aborrecida, e só gostosa

Para quem o seu mal está sentindo;

Repitamos um pouco a trabalhosa

Fadiga do passado; e neste assento

Gozemos desta sombra deleitosa.

O brando respirar do manso vento

Por entre as frescas ramas, a doçura

Dessa fonte, que move o passo lento;

A doce quietação dessa espessura,

O silêncio das aves, tudo, amigo,

Ouvir a nossa mágoa hoje procura.

Principia, Palemo; que eu contigo

À memória trarei, quanto deixamos

No sossego feliz do estado antigo.

Que esperas, caro amigo? Sós estamos:

Bem podemos falar: porque os extremos

De nossa dor só nós testemunhamos.

Pal. Não vi depois, que o monte discorremos,

Há tantos anos, sempre atrás do gado,

Noite tão clara, como a que hoje temos:

Mas muito estranho ser de teu agrado,

Que despertemos inda a cinza fria

Da lembrança do tempo já passado.

Oh! não sei, o que pedes: bom seria,

Que desse qualquer bem não cobre alento

O estrondo, que talvez adormecia.

Loucura é despertar no pensamento

O fogo extinto já de uma memória:

Não sabes, quanto é bárbaro o tormento.

Em nos lembrarmos da perdida glória

Nada mais conseguimos, que ao gemido

Dar novo impulso na passada história.

Não se desperte o mísero ruído;

Que veremos, amigo, o desengano

De um bem caduco, de um prazer fingido.

Cor. Debalde é a cautela; que o tirano,

Contínuo atormentar de uma lembrança

Não o pode abrandar o esforço humano.

Vê, como o teu ardor em vão se cansa;

E quanto mais te negas a meu rogo,

Despertas mais dos fados a mudança.

Buscar no esquecimento o desafogo

É não saber, que neste infausto empenho

Se ateia da memória mais o fogo.

Pal. Diga-o minha alma: porque nela tenho

Impressa sempre a imagem de uma dita,

Em que firmava o gesto o desempenho.

Recompensa uma dor quase infinita

A grandeza do bem; a minha história

Deixando em vivo sangue n'alma escrita.

Quero estragar mil vezes a memória,

Meu amado Corebo, e a cada instante

Torna mais viva a imagem de uma glória.

Oh tirana pensão de um peito amante!

Que só fora feliz, se a água bebera

(Quando perde o seu bem) do Lete errante;

Se na idéia pintada não trouxera

A contínua lembrança de um veneno,

Que Amor dissimulado oferecera.

Ah! Que soluço, amigo, estalo, e peno;

Quando me lembra a hora, em que o tirano

Fado roubou-me estado tão sereno.

Cor. Caminhas, ó Palemo, de teu dano

Como insensível: Vês, que não tem modo

Da funesta lembrança o golpe insano.

Pal. Bem me advertes, Corebo: eu me acomodo

Ao pensamento teu; e divertida

Fique a memória minha já de todo.

Cor. Ao cântico sonoro te convida

Esta flauta, que é fama em nós guardada,

Que foi de Alfeu um tempo possuída.

Pal. Eu a tomo, e com ela se te agrada,

Alterno o verso; e seja aquele, que antes

Cantamos lá na nossa retirada.

Cor. Se me lembra, assim era: Vinde, errantes

Sombras, a sufocar-nos: porque a inveja

É só fiscal dos míseros amantes.

Pal. Ficai, belas ovelhas: assim seja

Convosco mais propício o duro fado;

Que pastor mais feliz vos guie, e reja.

Cor. Aqui te deixo, rústico cajado;

Que algum tempo, apesar do empenho cego,

De ninguém, só de mim, foste logrado.

Pal. Tu, Amarílis, adorado emprego,

Toma conta de duas ovelhinhas,

Que mais que todas amo: eu tas entrego.

Cor. Verás, Belisa, entre essas prendas minhas,

Que eu teci junto às margens dessa fonte,

De vime desigual duas cestinhas.

Pal. De ti, que ficas pois, saudoso monte,

Me despeço; e talvez sem esperança

De tornar a ver mais este horizonte.

Cor. Ficai-vos em pacífica bonança,

Ó ninfas; que perdido o vosso agrado,

Me ausento a lamentar tanta mudança.

Pal. Adeus, pastores; vós, que em doce estado

Tantas vezes nos bailes, na floresta

Me vistes sempre alegre, e sossegado;

Cor. De vós me aparta agora a lei funesta;

E o tormento, a que esta alma está rendida,

Bem o meu sentimento manifesta.

Pal. Hei de trazer na idéia sempre unida

A imagem de Amarílis, que venero,

E que estimo inda mais, que a própria vida.

Cor. Alegria jamais nenhuma espero;

Antes nesta saudosa soledade,

Por último remédio, a morte quero.

Pal. Adeus, bela Amarílis; a vontade,

Por ser único bem, levo abrasada

Na chama inextinguível da saudade.

Cor. Adeus, Belisa; adeus, ninfa adorada:

Veja-se neste campo eternamente

A tua formosura celebrada.

Pal. Basta já de cantar: que do oriente

Já rompe o Sol vermelho; e o manso gado

Os balidos esforça de impaciente.

As nuvens vão correndo; e a este lado

O resplendor se vê, com que a Aurora

Vai escondendo o rosto magoado.

Das lágrimas saudosas com que chora

Se derrama o orvalho; aves, e plantas

Despertam, levantando a voz sonora.

Cor. Eu guiarei o gado se tu cantas:

Que prosseguindo tu, de meu tormento

O excesso ao menos, e o rigor quebrantas.

Não me negues, se podes, esse alento.

PESCADORES

ÉCLOGA XVI

Alicuto e Marino

Já vinha a manhã clara

Dourando os horizontes,

E os empinados montes

Com a rosada luz, que os prateara,

Mostravam na campina

O lírio, o goivo, a rosa, e a bonina.

Nas ondas cintilava

O rosto luminoso,

Com que de Cíntia o esposo

A pobre terra clara luz mandava,

Formando um transparente,

Na verde relva, resplendor luzente.

Ambos os pescadores,

Alicuto e Marino,

A quem o Deus Menino

Ateou na água o fogo dos amores,

As redes recolhiam;

E de bastante peixe o barco enchiam.

A praia procurando

Vinham tão mansamente,

Que nem o mar se sente

Ferido de um, e outro remo brando,

Quando do seu destino

Começou a queixar-se assim Marino.

Alicuto o acompanha

Coa sonora harmonia,

Que, há tempos, aprendia

De um pastor, que viera da montanha;

E a seu modo vertendo

Para a ninfa do mar, ia dizendo.

Mar. Se assim como a manhã clara, e brilhante

É da minha adorada o belo rosto,

Como naufraga o peito vacilante,

No incerto mar de um fúnebre desgosto!

Eu vejo, que se alegram neste instante

Cheios de glória, de prazer, e gosto,

Este mar, esta praia, esta ribeira:

Só não há cousa, que alegrar me queira.

Alic. Deiopéia adorada, a luz do dia,

Como funesta nasce a um desgraçado!

Quanto me foi suave a noite fria,

Tanto o rosto da Aurora me é pesado:

O silêncio da noite dirigia

O sossego também de meu cuidado;

E apenas foge o horror da sombra escura,

Quando mais viva toco a desventura.

Mar. Que importa, que em contínua sentinela

Eu ande os crespos mares descobrindo,

Se ingrata sempre a luz da minha estrela

Me vai desses teus olhos dividindo!

O vento, que suave entesa a vela,

A meu ligeiro barco a estrada abrindo,

Solícito me guia a esta praia;

Onde sem ver-te o coração desmaia.

Alic. Três dias há, que giro, amada minha,

Desesperado nesta mortal ânsia

De ver o prêmio, que guardado tinha

A meu peito fiel tua inconstância.

Outra ventura, outra mercê convinha,

De tanto amor, à fatigada instância

E quando o não mereça na verdade,

Quem há, que não te estranhe a falsidade!

Mar. Abrasadas as ondas deste pego

Tenho já com meus ais, com meus suspiros;

Ele me escuta; eu cada vez mais cego

Acuso a sem-razão de teus retiros.

De meus males ao passo, que o navego,

O peso sente, e se revolve em giros;

E até as brutas penhas mais pesadas

Estão de meu tormento magoadas.

Alic. Qual o peixe inocente, que enganado

Bebe no curvo anzol a morte feia,

Sem ver, que o pescador lhe tem armado

Escondida prisão, em que se enleia;

Ou qual o navegante, que enlevado

No canto está da pérfida sereia;

E prova sem cautela a morte dura

Entre os penhascos, onde o mar murmura.

Mar. Qual foge o grande monstro, que o mar cria,

Do arpão ferido, em sangue o mar banhando;

Quando cuida, que escapa à morte fria,

O alento pouco, e pouco vai deixando;

O destro pescador, que a presa fia

Do agudo ferro, a linha então largando,

Quando de todo já exangue o sente,

O barco chega, e o colhe mais contente.

Alic. Tal eu, doce inimiga, sem cautela

Adorava a traição de um falso engano,

Que no teu rosto, ó sempre ingrata, e bela.

Sonhe dissimular Amor tirano

Acreditando aquela indústria, aquela

Mal escondida imagem de meu dano,

Imaginei, que o que era aleivosia,

De um fino, e puro coração nascia.

Mar. Não de outra sorte a bárbara destreza

Dessa homicida mão, dessa alma ingrata,

Depois de assegurar minha firmeza,

De mim se ausenta, e com rigor me mata:

Ah! quanto temo, ninfa, que a fereza

De tua condição, que assim me trata,

Nestas ondas em penha convertida,

Pague o delito de roubar-me a vida!

Alic. De que serve, que eu traga do mar fundo,

A preço de fadiga tão pesada,

Esta, que em tal excesso estima o mundo,

Rama, que fora d'água é encarnada?

De que serve; que lá do mais profundo

Venha oferecer-te a pérola engraçada,

Se encontro sem-razões, iras, rigores?

Se os teus desprezos sempre são maiores?

Mar. Para trazer-te o peixe delicado,

No rio escondo as nassas, ninfa minha;

E ao levantar seu peso desejado,

Vejo saltar a truta e a tainha:

Não me fica também no mar salgado

O retorcido búzio, e a conchinha;

Que supondo ser cousa, que te agrade,

Tudo te vem render minha vontade.

Alic. Em pensamentos mil eu me desfaço,

Ao ver traição tão bárbara, e tão crua;

Rompo o vestido, o corpo despedaço

Quando me lembra a falsidade tua:

Loucuras mil, mil desatinos faço,

Sem pejo, e sem vergonha; em pele nua

Corro esta praia, giro esta ribeira;

E ninguém há, que socorrer me queira.

Mar. Mas que é isto, Alicuto? O nosso canto

Quase que vai passando a impaciência.

Alic. Que há de ser, se o meu mísero quebranto

Se apodera de mim com tal violência?

Mar. Mal haja o ter amor, que pode tanto.

Alic. Mal haja o conhecer uma inclemência.

Mar. Que intentar-lhe fugir é desatino.

Alic. Que assim o sinto eu, e tu, Marino.

Mar. Temos chegado ao porto: larga o remo;

Salta na praia tu; que eu aqui fico;

A ver, se vejo a ninfa, por quem gemo,

E a quem as minhas lágrimas dedico.

Alic. Não fiques não, Marino: porque temo

Maior mágoa; que a dor, que sacrifico.

Carreguemos o peixe; que na aldeia

Talvez estejam Glauce; e Deiopéia.

Assim se acomodavam; E o peixe dividindo

Entre ambos, vão subindo

Um levantado oiteiro, a que chegavam,

Deixando entanto posta

No barco a vara, a rede ao Sol exposta.

ÉCLOGA XVII

Lisi.

Laurênio e Lise

LAUR. Aqui tens, minha Lise, o teu vaqueiro,

Que vem pelo calor do Sol ardente,

A suspirar por ti o dia inteiro.

Com a glória, meu bem, de ter presente

A meus olhos a tua formosura,

Passo de pesaroso a estar contente.

Toda esta noite vi tua figura

Em uma sombra vã, que me fingia

A minha inconsolável desventura.

Só nisto fui feliz: porque te via

Tão branda, tão suave, como aquela

Que a natureza em outra convertia.

Abracei-te, Pastora; e tu, mais bela,

Mais compassiva, ouviste o meu lamento,

Tornando venturosa a minha estrela.

Lis. Bem puderas, Laurênio, desse intento

Desvanecer-te já; pois é sabido

Que não posso atender a teu tormento.

Tu conheces mui bem que em meu sentido

Só vive aquela lei, que me sujeita

A não ser livre, como tenho sido.

LAUR. Eu conheço: mas sei que n'alma aceita

Pode ser a fineza de um serrano,

Que adora uma Pastora tão perfeita.

Se entre os amantes teus é só Montano

O ditoso senhor de um tal tesouro,

De que anda entre nós outros tão ufano:

Soprou-lhe a sorte com melhor agouro,

Que o seu gado não foi de mais estima,

Nem o cajado seu de prata, ou ouro.

É um tosco vaqueiro, que de cima

Da serra aqui desceu: nós o alcançamos

Em tempo de Natércia, tua prima.

De bois uma só junta lhe contamos,

Quando entrou neste campo: triste, e pobre,

Aqui fez uma choça entre estes ramos.

Agora o seu rebanho os vales cobre:

Talvez que o fazer mal isso lhe desse,

E que co'alheio bem hoje os seus dobre.

Miserável daquele que os perdesse!

Que ele, só porque é rico, teve a dita

De que tão bela mão teu Pai lhe desse.

Oh! muitas vezes condição maldita

Esta, que fez no mundo diferença

Entre aquele que tem, ou necessita!

Lis. Laurênio, o meu decoro não dispensa

Nessa prática tua: a honestidade

Tem a mais leve sombra por ofensa.

Inda que o meu Pastor te não agrade,

Ou seja murmurada a minha sorte,

É sua esta minha alma, esta vontade.

A lei que me prendeu, somente a morte

A pode desatar: culpa o destino,

Que eu tenho sobre mim poder mais forte.

LAUR. Pois nem sequer, meu bem, meu desatino

Te chega a merecer uma esperança,

De ser pago algum dia amor tão fino?

Lis. Não emprendas de mim mais segurança

Que aquela que te dou: ao Céu protesto

Que em meu obrar não há de haver mudança.

E tu, se me não queres ser molesto,

Deixa de repetir-me essa loucura:

Pois viste o meu desgosto manifesto.

LAUR. Ó bárbara, ó cruel, ó ímpia, ó dura!

Que, em vez de agradecer-me, te conspiras

Contra uma alma que amar-te só procura.

Se quem te ama merece as tuas iras,

Quem pode estar seguro desses raios,

Que contra tantos mil, cruel, atiras?

Só quem não vê, nem morre nos ensaios

Do cego Deus de Amor. Tudo te adora:

Que em tudo influi Amor os seus desmaios.

Eu só (triste de mim!), eu só, Pastora,

Te adoro mais que todos: que Amor cego

Quis que eu dos tiros seus vítima fora.

Lá desde as verdes margens do Mondego,

Fez Amor que na lira eu me ensaiasse

Para cantar de ti, meu belo emprego.

Mas ah! tirano Amor! quem te arrancasse

Essas asas, com que teu vôo elevas?

Quem arco, aljava, e flechas te quebrasse!

Como é possível, Monstro, que te atrevas

A pôr teu pensamento em tanta altura,

Para cair depois no horror das trevas?

Que bem se diz que vens da massa dura

Do Ródope, ou do Mauro! Que bem creio

Ignoras, cego Amor, nossa brandura!

Tu me condenas a chorar sem freio

Por aquela que zomba do meu pranto;

Que farta o seu rigor do sangue alheio!

Lis. Ah! Não, Laurênio, não: não passe a tanto

Esse ingrato delírio: eu inda espero

Que tenha a tua dor algum quebranto.

Apouco apouco me entra o golpe fero

A traspassar esta alma; bem que ignoro

Se é piedade, se amor o que pondero.

Verei se sem ofensa do decoro

Posso achar algum modo de pagar-te

Esse suspiro teu, esse teu choro.

Em todo aquele alento, aquela parte,

Que da casta prisão se julgue isenta,

Eu prometo, Laurênio, de estimar-te.

ai: leva esta esperança, e te contenta.

ÉCLOGA XVIII

FRANCELIÇA

Menalca e Lícida

Lic. Queres, Menalca amigo, que sentados

Debaixo destes álamos um pouco

Entremos a cantar nossos cuidados?

MEN. E crês, Lícida meu, que sou tão louco,

Que me anime a fazer-te companhia

Ao som da minha flauta, que é tão rouco?

Se em outra idade, Amigo, eu o fazia,

Ou Francelisa a flauta me animava,

Ou desculpa nos anos merecia.

Líc. Enfada-me o teu modo: eu esperava

Achar-te, Amigo, menos enfadonho,

Lembrando do que um tempo em nós passava.

MEN. Queres que torne a entrar naquele sonho

Da néscia mocidade? Ah! que do inverno

Já um novo retrato em mim componho.

Imito já no branco ao cisne terno:

E daquelas vaidades longe o engano,

Com estas cãs maduras me governo.

Já fiz gala, já fiz alegre, e ufano,

Gosto de jogo e bailes: mas agora

Vivo só de escutar o desengano.

Lic. Estou pronto a ouvir-te; inda que fora

Importuno a meus anos, bem quisera

Ouvir de um velho a música sonora.

Canta o que te agradar; mas considera

Que me alegrara muito se os amores

Da tua Francelisa ouvir pudera.

MEN. Eu tomo a flauta; e tu, canta os louvores

Também da tua Nise, que algum dia

Foi adorado emprego dos Pastores.

Lic. Já esta alma os suspiros desafia:

Já entro a perguntar onde encontrar-te

Pode de meus clamores a porfia.

Nise? Nise? Meu bem? Ah! De qual arte

A flauta se afinava, que o lamento

Afável a meu rogo soube achar-te!

Este mesmo suavíssimo instrumento,

Este mesmo entoou aquele canto,

Que tanto foi de teu contentamento.

Na montanha se ouviu, com grande espanto,

A vez primeira que soou, nascida

A branda voz das fráguas de meu pranto.

MEN. Que direi eu também da despedida

Que fiz da minha cítara! Ao desprezo

Lançando-a já de todo aborrecida.

O peito, que de amor ardia aceso,

Acudia a emendar o que entoava

Em diversas paixões a um tempo preso.

Que busco, infausta lira?... já clamava.

Vem adorada lira... " de outro modo,

A mesma cantilena já trocava.

Líc. Ao vale, ao monte, ao bosque, ao campo todo,

Por Nise só pergunto...

MEN. Na mudança,

A meu martírio o cântico acomodo.

Lic. Entro na festa, baile, jogo, ou dança:

Se não vejo de Nise a gentileza,

Minha alma um só instante não descansa.

MEN. Tanto por Francelisa esta alma preza

Morrer depuro amor, que o vale, o monte

Assombrados deixou minha fineza.

Testemunha me seja aquela fonte,

Onde estive a chorar toda uma tarde,

Que não me apareceu ali defronte.

Líc. O incontrastável ímpeto com que arde

Este meu coração, diga-o Montano,

Que um dia me chamou fraco e cobarde.

Disse-me que não deve um peito humano

Render-se com tal força ao golpe indigno

Com que nas almas fere Amor tirano.

MEN. Foi o primeiro amor: tem o destino

De cada um forjado aquele laço,

Que obra a seu tempo com rigor maligno.

Pastoras desprezei; pouco embaraço

Achava numa e noutra; escarnecia

Daquele, que acusava a Amor escasso.

Líc. Vês tu, no despertar da Aurora fria,

O gosto com que os pássaros e as flores

Saúdam docemente o novo dia?

Assim, não de outra sorte, os meus ardores

Ao vê-la tão gentil a cada instante...

MEN. A cada instante crescem meus amores.

De um tronco sempre verde e vegetante

Sobre a cortiça dura, em um letreiro,

Ali gravado o nome...

Líc. O gado errante,

Perdido, e sem Pastor, sobre este oiteiro

Mil vezes o deixei: desta montanha

O sabe inda o mais rude pegureiro.

MEN. Não mais, Lícida; basta: é cousa estranha

Esta ânsia, que em mim vês; entende,

Amigo, Que está zombando assim quem te acompanha.

Líc. Tu zombas, quando eu choro?

MEN. Em vão prossigo,

Lembrando-me de um bem que é já passado:

Leve-o quem tudo o mais levou consigo.

Seja tua esta flauta; este cajado

Toma, Pastor, também; se esta alma queres,

Recebe-a; mas suporta o seu cuidado.

LÍC. Feliz Menalca, tu, no que proferes;

Se o tempo já te deve desenganos,

Que eu te acredite, Amigo, não esperes:

A Amor só vence a morte, não os anos.

Écloga XIX

VIDA NO CAMPO

Ó doce soledade!

Ó pátria do descanso

Da paz e da concórdia

Grosseira habitação, tosco palácio!

Quantos a meus delírios

Tu ditas desenganos,

Oráculos fazendo

Das árvores, dos troncos, dos penhascos!

Não fere os meus ouvidos

O estrondo cansado,

Que levanta a lisonja,

Junto aos pórticos d'ouro em régio Paço:

A macilenta inveja

Não derrama o contágio

Nas inocentes almas,

Que são de seu furor mísero estrago.

Dos olhos se retira

O objeto sempre ingrato

Dos que suspiram mudos,

Em vez do prêmio, as sem-razões do dano.

Aqui tem a virtude

Erguido o seu teatro,

E nas rústicas cenas

Aqui mostra a pobreza os aparatos.

As mal seguras canas

Que move o vento brando,

Da pobre rede tecem

Ao mísero Pastor o abrigo caro.

Colhida a tenra fruta

Vem de seu próprio ramo

A adornar a choupana,

Em vez dos altos capitéis dourados.

O sítio venturoso!

Quanto te invejo, quanto!

Ditoso quem possui

O suave prazer de teu descanso!

Se tu bem alcançaras,

Pastor, um bem tão raro,

Não cessara o teu culto

De consagrar obséquios ao teu fado.

Infeliz o que envolto

No tráfego inumano

Da aborrecida corte

Só vê da confusão o rosto infausto.

Imagina do amigo

Seguir os doces laços,

E a torpe aleivosia

Lhe abre o sepulcro onde buscou o amparo.

Se o valimento encontra,

Teme, com justo espanto,

Quanto é grande a subida,

Que o despenho também seja mais alto.

Não há fronte segura

Que enfim dissimulando

Não veja os seus afetos,

Como a flor entre os áspides ingratos.

Ah! mede, Pastor belo,

O bem que alcanças: tanto

Dar-te não pode a corte;

Só pode a soledade deste campo.

ÉGLOGA XX

LIRA

Aqui deste salgueiro

Pendente ficarás, ó lira minha!

Tu que foste primeiro,

Enquanto a Amor convinha,

Alívio de meus males,

Ferindo os montes, abalando os vales.

De todo já deixada,

Nem sequer nas imagens da memória

Vivirás retratada;

De tanta antiga glória,

Se consultada fores,

As delícias aponta nos horrores.

Será língua eloqüente

A mesma face macilenta: o rosto

De meu mal inclemente,

Pela voz do desgosto,

Com a muda harmonia

Poderá declarar minha agonia.

De Aracne o enredo escuro,

Em ti as débeis linhas estendendo,

Cubra teu centro impuro,

Que, acorde respondendo

Do verso as consonâncias,

Tantas vezes ouviu as minhas ânsias.

Gênio funesto inspire

Sempre em teu dano, e por maior tristeza

De ti não se retire

A fúnebre aspereza

Daquele horror maligno,

Que os passos acompanha a meu destino.

Ludíbrio sejas feio

De todos os Pastores deste monte:

O meu infausto enleio

Teu mudo gesto conte

De um triste e desgraçado

Tosco instrumento, inútil, desprezado.

E se lá quando o dia,

Desmaiando-se o Sol, ao mar se ausenta,

Lá na tarde sombria,

Lisarda, que se ostenta

Destes campos senhora,

Baixar acaso, dando inveja a Flora;

Seu vestígio dourado,

Mais belo do que os goivos e açucenas,

Se inclinar seu cuidado

A este centro de penas,

E aqui te achar pendente,

Triste lira, deixada e descontente;

Quando chegue curiosa,

Sem horror de te ver, ao tronco duro,

A Ninfa mais formosa,

Leia o epitáfio escuro,

Que em fúnebre letreiro

Guardará para sempre este salgueiro.

Breves vozes a história

Explicarão da minha desventura,

Quando empenhe a memória

Desta tão ímpia e dura

Beleza, em vão amada,

Em vão de meus extremos contrastada:

Aqui vivo (este o lema

Que no fúnebre tronco fique escrito)

Para que sempre gema

O tormento infinito

De perder uma ingrata,

Que perjura, e cruel me ofende, e mata.

EPÍSTOLAS

EPISTOLA I

ALCINO A FILENO

A vós, Pastor distante,

Bem que presente sempre na lembrança,

Saúde envia Alcino, que a vingança

Da fortuna inconstante,

Do bárbaro destino,

Chora na própria terra peregrino.

Se a flauta mal cadente

Entoa agora o verso harmonioso,

Sabei, me comunica este saudoso

Influxo a dor veemente,

Não o gênio suave,

Que ouviste já no acento agudo, e grave.

Entorpeceu-se o canto,

E a Musa tristemente enrouquecida

Se viu, depois que a sorte desabrida

Trocou o doce encanto,

Das Ninfas do Mondego,

Pelo deste retiro inculto emprego.

Como presente vejo,

Fileno, para estrago da memória,

Aquele doce bem, que a maior glória

Formava a meu desejo!

Como na estampa grata

Da lembrança o perdido se retrata!

Pela margem frondosa

Desse, que corre, vagaroso rio,

Quantas vezes, Pastor, a calma, o frio

Vencemos na gostosa,

Alegre sociedade,

Que alentava do canto a suavidade!

Quantas vezes rompendo

Das claras águas a corrente fria,

Das Ninfas do Mondego a companhia

A ouvir se estava erguendo,

Por entre a espuma bela,

Que uma hora se desfaz, e outra congela!

Quantas vezes parava

A doce Filomena o triste acento,

E do álamo frondoso (enquanto o vento

As folhas meneava)

Os números ouvia,

Que a nossa acorde flauta repetia!

Que mudança importuna

Hoje diverso faz o gênio antigo!

Negando à Musa o generoso abrigo

Da plácida fortuna,

Porque habite uma estância,

Em que só vive a pena, a mágoa, a ânsia!

O gênio antes festivo,

Pronto no baile, jogo, e na floresta,

Quanto se oprime, quanto se molesta

Ao golpe executivo

Do fado, que tem posto

Tanto empenho em tecer o meu desgosto!

O seu giro, ó Fileno,

Não seja em vosso dano assim violento:

Discorra só no bem, no obséquio atento,

Porque no mais ameno

Campo, e entre os Pastores,

Vos consagre Amarílis seus amores.

Não erre o vosso gado,

Qual vaga o meu, sem dono: antes contente

Paste do campo a relva florescente.

O pomo sazonado

Colhei; e na floresta

Tende fortuna mais ditosa que esta.

E se no prado ou monte

Pastor vive, que guarde inda a memória

Da minha triste, lastimosa história,

Dizei-lhe vós que conte

O seu verso canoro

Meu caso triste no silvestre coro.

A minha tosca avena

Sempre há de respirar na atividade

Da, que me arde no peito, ímpia saudade:

E creio, à minha pena,

Se há de ver algum dia

Respirar estes bosques alegria.

FILENO A ALGANO

EPÍSTOLA II

Depois, Algano amado,

Que por mais verde, e plácido terreno,

Deixaste o sítio ameno,

Onde alegre pascia o manso gado,

Tomou minha saudade

Triste posse no horror da soledade.

De todos os pastores

Foi mui sentida a tua ausência dura:

Que o bem de uma ventura

Se se perde, inda os mesmos moradores

Da choça, que os abriga,

Sabem sentir: oh quanto a dor obriga!

Pouco importa a cultura,

E agudeza maior do pensamento:

Que a força do tormento

Sobre a mesma rudeza o estrago apura;

E quem melhor discorre,

É, quem buscando alívio, menos morre.

Talvez mais lisonjeia

Esta no meu pesar néscia jactância;

Por ser minha ignorância

Alimento, em que a mágoa mais se ateia:

Que a ser mais entendido,

Não fora o meu tormento tão crescido.

Não somente o efeito

De tão ingrato mal em nós sentimos;

Mas, se bem advertimos,

Tudo ao grande pesar ficou sujeito:

Que fez a ausência tua

A saudade em nós razão comua.

O rio, que algum dia

Líquida habitação das ninfas era,

A cor, que a primavera

Nestes frondosos álamos vestia,

Tudo perde o seu brio:

Não tem o álamo cor, ninfas o rio.

Não se ouvem já sonoras,

(Quando argüindo o adúltero condena),

Queixas da Filomena;

E até do tempo as carregadas horas

Correm mais dilatadas;

E parece, que a dor as faz pesadas.

É tudo horror; é tudo

Uma pálida imagem da tristeza.

Habita esta aspereza

O fúnebre silêncio, o assombro mudo:

Que tanto pode, tanto

De tua ausência o mísero quebranto.

Ah meu Algano caro,

Doce consolação do campo ameno!

O teu triste Fileno

Busca debalde alívio: que o reparo

Da saudade está posto

Na imagem só de teu alegre rosto:

Não só o seu alento,

Porém inda dos campos a alegria,

A clara luz do dia,

Das aves o canoro, e doce acento,

E quanto tem mudado

Da tua ausência o desumano estado.

Apressa, apressa o passo,

Com que hoje alegras as regiões do Tejo;

Rompe já o embaraço,

Que se interpõe à vista do desejo:

E possa alegre ver-te,

Algano meu, quem sabe merecer-te.

EPÍSTOLA III

DALISO A SALÍCIO

A vós, Pastor amado,

Que lá do pátrio rio

Nas frescas praias, úmidas ribeiras

(Qual debaixo de um álamo sombrio

Títiro, que abrasado

De Amarílis suspira), as lisonjeiras

Horas lograis, no métrico exercício,

Propício seja o fado, ou impropício;

Saúde vos deseja

E plácido descanso

Daliso, o Pastor triste, cujo emprego

É mal tocada lira e gado manso,

Que nem maligna inveja,

Nem êmula porfia em seu sossego

Altera, atravessando o bosque inculto,

Desde o monte frondoso ao vale oculto.

Aquela harmoniosa,

Nunca no bosque ouvida,

Cítara, que regia o vosso canto,

Com que ativo desejo me convida

À pena mais saudosa!

Se souberas, Salício amado, quanto

Me chega a arrebatar aquele acento,

Duvidareis vós mesmo do tormento.

Então vi sem mentira,

Ou fabuloso engano,

Possível o que Alfemo nos contava

Do amante, que do Averno desumano,

Ao som da acorde lira,

A já perdida esposa resgatava.

O vosso canto, Amigo, se quisera,

O mesmo inferno adormecer pudera.

Não duvidei que houvesse

Acento tão divino,

Que enternecendo o bárbaro pirata

Fiasse todo o bem do seu destino

A um Delfim, que pudesse,

Rompendo as ondas que esse mar desata,

Conduzir de Arion a amada vida,

Sobre os ombros, à praia apetecida.

Tudo possível cria;

Que aquele acorde acento,

Que arrebatando a idéia contemplava,

De vossa voz no doce movimento,

Dar ao mundo podia

Exemplos de prodígio: oh! qual rasgava

Nunca imitado canto o vento leve!

Como o Zéfiro a ouvi-lo se deteve!

Crede-me: eu, suspirando

Mil vezes a ventura

De ver-vos, a um Pastor dessa montanha

Perguntava por vós; e a doce cura

Do desejo buscando

Da notícia, que tinha em nada estranha,

Da que notei, feliz realidade,

Maior motivo achava à saudade

Quando verei, dizia,

Um Pastor tão amado,

Que no baile, na dança, na carreira,

Ou perseguindo a fera, sempre ao lado

Por companheiro via?

Oh! Queira o brando fado, a sorte queira

Que esta tão larga, tão cruel distância,

Não venha a perverter sua constância.

Hidrópico, meu peito

Sempre ver-vos suspira;

E por lisonja desta ausência dura,

Ao doce e acorde som da vossa lira,

Invoca o terno efeito.

Fazei que eu logre o bem desta ventura,

Enquanto fica com atento aviso,

Para servir-vos, o pastor Daliso.

EPÍSTOLA IV

MELISO A SALÍCIO

Ao duro tronco atado,

O Grego enganador da Ninfa bela,

Ouvindo o som daquela

Consonância do coro levantado,

Foge à ruína, teme o precipício.

Mas se o canto, Salício,

Que alternastes no verso harmonioso,

No golfo perigoso

Das úmidas Deidades se entoara,

Do acorde acento à suavidade rara,

Que alegre cederia

Ulisses aos encantos da harmonia!

Hidrópico, bebendo

A líquida corrente, nunca tanto

Se vê, com o quebranto

Do sol ardente, o gado que descendo

Vem de unia e outra parte da floresta.

Quanto se manifesta

Ansioso o meu desejo, achando agora

A lisonja sonora

Desse canto, Salício, que respira

Tão doce, que por mais que a alma ferira

O impulso harmonioso,

Sempre o meu peito suspirara ansioso.

Oh! ditoso salgueiro

Aquele, Pastor belo, em que pendente

A cítara cadente,

No silêncio me viu por derradeiro,

Enquanto choro a vossa ausência dura!

Quanto maior ventura

É ver da solitária sombra fria

A perdida alegria,

O gosto desmaiado expor brilhante,

Mais risonho esta vez o seu semblante,

Bem como a tenebrosa

Noite, que a luz do Sol faz mais formosa!

Do músico instrumento

O espírito té agora sufocado,

Bebeu mais esforçado

O que respira, harmonioso alento:

Deva-se tanto obséquio à saudade.

De Pã a Divindade,

Que uniu primeiro a cera à débil cana,

Nunca tão soberana

A voz ergueu; nem lá no Idálio monte,

Ao murmurar feliz do Xanto, a fonte

Respirou tão suave,

De Enone bela no tormento grave.

Só vós, Pastor querido,

As sombras desterrando da tristeza,

Podeis lograr a empresa

De sufocar os ecos do gemido,

Com tão acorde, sonoroso excesso!

A tanto bem confesso

Que do campo os prodígios celebrados

Serão mal comparados,

Inda quando a memória os eternize

Pelos troncos das faias, bem que avise

Um e outro letreiro

Qual o segundo foi, qual o primeiro.

Se pois é de Salício

Tão poderosa a voz; se a mão tão destra,

No jogo, na palestra,

Tem a glória maior; se no exercício

Do canto o verde louro ele consegue,

Salício não me negue,

Que desigual a competência fica,

Quando a seguir se aplica

Do mísero Meliso a mal pulsada

Cítara, que é somente acompanhada

De Faunos da espessura,

Não de branca Napéia, ou Ninfa pura.

Turva, e feia, a corrente

Deste ribeiro nosso não habita

Dríada, que repita

Em branda voz o número cadente:

Que tudo nele triste fez o fado.

Ditoso aquele estado

Em que, pobre pastor, me contentava

A terra, que lavrava,

O gado, que a pastar guiava errante

Desta montanha àquela: ah! que inconstante

Fortuna em mim figura

De Melibeu a triste desventura!

Mas eu cuido que vejo

Aquela carregada sombra feia,

De gosto, que recreia,

(Se não mo finge a imagem do desejo),

Ir a face vestindo já mais clara.

Oh! que mudança rara

Estou nesta ribeira contemplando!

Pouco e pouco dourando

Se vai o escuro vale, e o alto monte:

Nova chama ilumina este Horizonte.

Tanto gosto se deve

Do sonoro Salício ao canto leve.

Vivei, ó Pastor grato,

E o vosso campo eternamente seja

Dos Elísios inveja,

Ditosa cópia, plácido retrato

Daquele que o Pastor pisou de Anfriso:

E vivei para glória de Meliso.

EPÍSTOLA V

EURILO A ALCIDO

Recebo, Alcido amado,

O transunto feliz, o delicado,

Numeroso desenho

Do vosso belo, peregrino engenho.

Nele respira aquela suavidade

Com que outro tempo a délfica Deidade,

Pelas ribeiras do saudoso Anfriso,

Tornava todo o monte de improviso,

De Tebaida alegre, Chipre amena,

Centro da mágoa, habitação da pena.

A imagem da saudade retratada

Qual se descobre aos ecos animada

Da vossa acorde lira!

Ali geme, ali chora, ali suspira

O rosto macilento,

Reclinando com brando movimento

Já sobre a mão, já enxugando o pranto,

Que os olhos vertem com mortal quebranto.

Menos suave, menos elegante

Pintou o Português a frágua amante

Em que Vênus dispunha aos Lusitanos

A dourada lisonja dos enganos,

Quando aos olhos descobre a feliz Ilha,

Do mar d'Atlante oculta maravilha.

Mas que muito respire tão ativo

O fogo da saudade executivo,

Se da razão no intrínseco conceito

Bebe a força eficaz do agudo efeito!

É sempre menos dura

A pena, que na rústica cultura

Ao Pastor acompanha,

Na choça, no redil, que aquela estranha

Paixão que segue o cortesão polido,

Na civil sociedade introduzido.

Assim o vosso engenho agudo, e raro

Concebe em grande excesso o estrago avaro

Do saudoso tormento;

Dando-lhe tanto mais crescido alento

Que ao vigor do discurso, ponderada,

É em vós a saudade mais pesada.

Oh! se a guerra implacável que se acende

Por dentro de minha alma, e que se estende

Pelo campo espaçoso da lembrança

Pudera retratar-vos, que mudança

Tão contrária, tão fúnebre, tão dura

Em mim veríeis da fortuna escura!

Aquele aspecto afável da alegria,

Que o coração brotava, quando via

Presente em vós o bem que adora tanto,

Apenas pelas cláusulas do pranto,

Pelas sílabas mudas do gemido,

Hoje publica o fúnebre ruído,

Que ergue a dor nas imagens da memória,

Tentando em sombras a passada glória.

O confuso girar de meu cuidado

Encontro vivamente retratado

Em um baixel vagando, que sem norte

Guia com vária sorte

A onda impetuosa

No golfo Egeu, soprando a tormentosa

Fúria dos ventos, que na estranha guerra

O crespo Eolo no penhasco encerra.

Mas cesse de meu mal aquela ativa,

Tirana agitação, que se deriva

Do tormento fatal da vossa ausência;

Já parece desmaio esta violência,

Quando do vosso espírito suave

A bela produção canora e grave

Enche os ares de acorde melodia,

Que arrebata de todo a fantasia.

Dos nossos fiéis amigos, que a lembrança

Vossa com tão gostoso excesso alcança,

Testemunho a plausível recompensa,

Enviando-vos dum a cópia imensa

Desses de Apolo gratos desperdícios,

Doutro, intérpretes sendo os sacrifícios,

Que repete nas chamas da saudade

A vossa em tudo cândida amizade.

Mas desta, que deixaste tão saudosa

Ribeira em outro tempo venturosa,

Quando animada do sonoro acento

Do vosso acorde, harmônico instrumento,

Como é possível que eu traslade as vozes

Que entre os ais e suspiros mais velozes,

Me estão recomendando a cada instante

As lembranças do seu obséquio amante?

Ela me pede (que discreto rogo!)

Que aquele generoso, ardente fogo,

Em que por vós se abrasa, vos refira;

E que outra vez do vosso plectro e lira

(Por que a pena sufoque, extinga a ânsia)

O toque busque, empenhe a consonância.

Eu o suplico assim, meu caro Alcido,

E a vossos pés rendido

Ofereço a vontade, com que posso

Dizer que sou fiel amigo vosso.

EPISTOLA VI

SÍLVIO A ALGANO

Pedis-me, Algano, que do meu destino

O enredo peregrino

Vos conte, desde o dia em que, deixada

A pobre choça, a habitação amada,

Para tão triste mal, tão cruel guerra,

Deixei esta montanha, e aquela serra

Busquei, onde jamais o manso gado

Havia apascentado

Daliso nem Alfemo,

Pastores que nas prendas eu não temo

Que competir-lhes possa

Cousa alguma, a não ser a glória vossa.

Ai! quanto, caro Amigo,

Esta obediência custa! Mas se digo

Que me sufoca a voz o sentimento

De uma ardente paixão, o meu tormento

Só na vossa amizade,

Que a compaixão promete, a atrocidade

Moderar pode de um profundo dano,

Que no íntimo arcano

De meu aflito peito,

Não menos que o respeito,

Amor tem encerrado.

Este Monstro vendado,

Gigante, que sem pôr sobre a grandeza

De um monte o outro monte, a redondeza

Do Olimpo tem prostrado,

E ao soberano Jove despojado

Do raio fulminante;

Este estrago incessante,

A quem valor não basta, nem escudo,

Porque tudo destrói, e estraga tudo,

Sendo a sua impiedade

Verdugo infiel da pobre liberdade;

E o mísero alvedrio,

Perdida a glória, despojado o brio,

Serve de ornar com precipício infausto

De seu triunfante carro o ardente fausto;

Naquele dia, Algano, em que apartada

Do rebanho a melhor, a mais amada,

Branca, e tenra ovelhinha,

Solícito me tinha,

Levou-me o Monstro cego,

Desde as úmidas margens do Mondego,

Habitação gostosa,

Ou já pela corrente deliciosa,

Ou pela verde sombra dos salgueiros,

Por ásperos oiteiros

Levou-me o Monstro cego. Entenderias

A cada instante, Algano,

Vendo iminente o dano

E a face da ruína tão presente,

Que aquele escuro sítio era somente

Ou de enigmas depósito sombrio,

Ou túmulo fatal do sono frio.

Ali não florescia o lírio brando,

Nem ovelha pastando

Ali se divisava;

De estéril produção da pedra brava

A terra se cobria.

Um risco, e outro risco discorria

Assim o meu cuidado,

E Amor já tão ligado

A seu carro fatal me tinha, que, indo

A noite as asas sobre o monte abrindo,

Da sombra carregada

Nada me acobardava: porque nada

Poder tão raro tinha, e tão ativo,

Como de Amor o raio executivo.

Depois enfim que a Aurora

Foi acendendo a tocha brilhadora

Do luminoso Febo,

Diviso de Corebo

O campo dilatado;

Corebo, esse Pastor tão nomeado,

Não só pela riqueza,

Mas inda pela graça e gentileza

Das Ninfas e Pastoras,

De sítio tão feliz habitadoras.

Pelo prado e floresta,

Cada uma tão gentil se manifesta,

Que não há fresca rosa

Que possa competir-lhes por formosa.

Cobertas andam todas de um pelico

Mais cândido e mais rico

Que a pele de um arminho esbranquiçado:

Por um e outro lado

Tecem as flores belas,

Qual mostra o firmamento áureas estrelas.

Porém maior espanto

É ver o cajadinho, que com tanto

Capricho vão movendo;

Ora sobre ele tendo

A branca mão, ora encostando a face,

Em que Amor era força se abrasasse.

Ovelhas vêm guiando,

E em vário som cantando

Os míseros amores

De Ninfas e Pastores,

Que naquela floresta

Viu a sorte funesta,

Ou o soberbo fado,

Em venturoso, ou infeliz estado.

Não há Ninfa mimosa,

A quem de Amor a seta venenosa

Não penetrasse o peito.

De Corebo o respeito

A todas sufocava:

Cada uma o que sentia mais calava,

Porque o Pastor tirano,

Por zelo ou crueldade (ai! caro Algano!)

A todas tinha posto

Violenta escravidão na lei do gosto.

Daliso desterrado

Gemia a infausta pena de um cuidado,

Que para o sentimento

Vivo tem na memória o seu tormento;

Anfriso sem ventura

Suspirava a perdida formosura

Em cárcere cruel, que em dura pena

Corebo, o pastor bárbaro, lhe ordena,

Imaginando ser culpa, que infama,

Arder de Amor na venturosa chama.

Eu, que os exemplos via

De tanto estrago e tanta tirania,

Em Galatéia pondo o pensamento,

Adorava por glória o meu tormento.

Tão bela era a Pastora, que somente

Ela fazia o campo estar contente.

Nos seus olhos Amor depositava

Um veneno tão doce, que, se olhava,

Atrás do seu ligeiro movimento,

Levava os corações e o pensamento.

Porém já de meu peito terno e brando

A dor fera e cruel me está chamando

A que, Algano, vos conte

Os suspiros que ao céu, ao vale, ao monte,

Inutilmente dados,

Foram da ingrata Ninfa desprezados.

A ânsia continuava,

Prosseguia o gemido, não cessava

Meu excessivo pranto:

Mas a dispêndio tanto,

Compravam meus ardores

Ingratas sem-razões, duros rigores.

Um mês quase corria,

E esperanças de um dia, e outro dia

Guiavam meu desvelo

Atrás do seu rigor, só por vencê-lo.

Ah! quem vozes tivera,

Algano meu, que referir pudera

Qual foi o excesso então daquele dia,

Quando cedendo à força da porfia

De um coração, que entre rigores arde,

Intérpretes seus olhos numa tarde,

Fez de não sei que incógnita piedade,

Que recatava menos a vontade!

Desde então... mas que emprendo!

Logo Amor aleivoso um golpe horrendo

Contra mim fulminou, roubando a glória

De tão alta vitória:

De Corebo à notícia,

Fez que chegasse o júbilo, a delícia

Que provava minha alma. O Pastor fero,

Mais cruel, mais severo,

A pena repartindo

Entre dous corações, ao gesto lindo

Da Ninfa mais mimosa

Ordena uma tristeza rigorosa;

E a mim, por maior pena,

Um desterro duríssimo me ordena.

Deixei-a desmaiada,

Triste, desconsolada,

Seu riso convertido em vivo pranto:

E eu (triste de mim!) martírio tanto

Suporto neste fúnebre retiro,

Que a meus ais, a meu pranto, a meu suspiro,

Enterneço os rochedos,

Movo as feras, os troncos e os penedos.

Quem me dissera, Algano,

Que o fado desumano,

Fingindo-se propício,

Me encaminhava a tanto precipício!

E já que foi tão duro,

Que com rosto perjuro

Me pôde conceder um breve instante

De alegria, e de gosto ao peito amante,

Que causa teve o fado

Para me não levar trás meu cuidado,

Conspirando a fereza

De Corebo cruel contra a firmeza

De minha adoração, deixando afável

Do golpe inexorável

Da Parca enfurecida,

Extinto o meu amor na minha vida?

Mas ah! Que em não matar-me,

O fado mais cruel se quis mostrar-me:

Assim mais se acredita

A fúria que meu peito debilita:

Pois louco e delirante

Vivo sempre em tormento. Astro inconstante,

Maligno, desigual, sempre em meu dano

(Ai, caríssimo Algano!) Ordenará que eu seja

Vítima do rigor, e mais da inveja.

ROMANCES

L I S E

ROMANCE I

Pescadores do Mondego,

Que girais por essa praia,

Se vós enganais o peixe,

Também Lise vos engana.

Vós ambos sois pescadores;

Mas com diferença tanta,

Vós ao peixe armais com redes,

Ela co'olhos vos arma.

Vós rompeis o mar undoso:

Para assegurar a caça;

Ela aqui no porto espera,

Para lograr a filada.

Vós dissimulais o enredo,

Fingindo no anzol a traça;

Ela vos expõe patentes

As redes, com que vos mata.

Vós perdeis a noite, e dia

Em contínua vigilância;

Ela em um só breve instante

Consegue a presa mais alta.

Guardai-vos, pois, pescadores,

Dos olhos dessa tirana;

Que para troféus de Lise

Despojos de Alcemo bastam.

Enquanto as ondas ligeiras

Desta corrente tão clara

Inundarem mansamente

Estes álamos, que banham;

Eu espero, que a memória

O conserve nestas águas,

Por padrão dos desenganos,

Por triunfo de uma ingrata.

E na frondosa ribeira

Deste rio, triste a alma

Girará sempre avisando,

Quem lhe soube ser tão falsa.

ANTANDRA

ROMANCE II

Pastora do branco arminho,

Não me sejas tão ingrata:

Que quem veste de inocente,

Não se emprega em matar almas.

Deixa o gado, que conduzes;

Não o guies à montanha:

Porque em poder de uma fera,

Não pode haver segurança.

Mas ah! Que o teu privilégio,

É louco, quem não repara:

Pois suavizando o martírio,

Obrigas mais, do que matas.

Eu fugirei; eu, pastora,

Tomarei somente as armas;

E hão de conspirar comigo

Todo o campo, toda a praia.

Tenras ovelhas,

Fugi de Antandra;

Que é flor fingida,

Que áspides cria, que venenos guarda.

ALTÉIA

ROMANCE III

Aquele pastor amante,

Que nas úmidas ribeiras

Deste cristalino rio

Guiava as brancas ovelhas;

Aquele, que muitas vezes

Afinando a doce avena,

Parou as ligeiras águas,

Moveu as bárbaras penhas;

Sobre uma rocha sentado

Caladamente se queixa:

Que para formar as vozes,

Teme, que o ar as perceba.

Os olhos levanta, e busca

Desde o tosco assento aquela

Distância, aonde, discorro,

Que tem a origem da pena:

E depois que esmorecidos

Da dor os olhos, na imensa

Explicação do tormento,

Sufocada a luz, se cegam;

Só às lágrimas recorre,

Deixando-se ouvir apenas

Daquelas árvores mudas,

Daquela mimosa relva!

Com torpe aborrecimento

A companhia despreza

Dos pastores, e das ninfas;

Nada quer; tudo o molesta.

Erguido sabre o penhasco

Já vê, se é grande a eminência:

Por que busque o fim da vida,

Na violência de uma queda.

Já louco se precipita;

E já se suspende: a mesma

Apetência do tormento

Maior tormento lhe ordena.

Pastores, vêde a Daliso;

Vede o estado qual seja

De um pastor, que em outro tempo

Glória destes montes era:

Vêde, como sem cuidado

Pastar pelos montes deixa

As ovelhas oferecidas

As iras de qualquer fera.

Vêde, como desta rama,

Que fúnebre está, suspensa

Deixou a lira, que há pouco,

Pulsava pela floresta.

Vêde, como já não gosta

Da barra, dança, e carreira;

E ao pastoril exercício

De todo já se rebela.

Segundo o volto, que neste

Rústico penedo ostenta,

Cuido, que o fizeram louco Desprezos da bela Altéia.

A N A R D A

ROMANCE IV

Aonde levas, pastora,

Essas tenras ovelhinhas?

Que para seu mal lhes basta

O seres tu, quem as guia.

Acaso vão para o vale,

Ou para a serra vizinha?

Vão acaso para o monte,

Que lá mais distante fica?

Vão porventura, pastora,

A beber as cristalinas,

Doces águas, que discorrem

Por entre estas verdes silvas?

Ah! Quem sabe, triste gado,

Onde a maior homicida

Dos corações, e das almas,

Convosco agora caminha!

Presumir, que cuidadosa

Vos conduz à serra altiva,

Imaginar, que à ribeira

Vos vai levando propícia;

Não o posso, não o posso;

Quando a conjetura avisa,

Que mal as ovelhas guarda;

Quem as almas traz perdidas.

Porém se a vossa ventura

De mais nobre se acredita,

Se podeis vencer de Anarda . . .

A condição sempre esquiva;

Ela vos conduza: os passos

Segui da minha inimiga;

Enquanto para cantá-la

Meu instrumento se afina.

Mais que Títiro suave,

Aqui sentado à sombria

Copa desta verde faia,

Chorarei as penas minhas.

Farei, com que soe o bosque

A seu nome: esta campina,

Vereis, como só de Anarda

A doce glória respira;

Essas árvores, e troncos

Concorrendo à harmonia

Do meu canto, Orfeu nos vales,

Cuidarão, que ressuscita.

Eu repetirei contente

A cantilena, que tinha

Com Alcimedon composto,

Quando no monte vivia.

Direi aquelas cadências,

Que à casca de uma cortiça

Encomendou meu cuidado,

De meu sangue com a tinta.

Pastora (se bem me lembra

Assim meu verso dizia),

Mais branca, que a mesma nove,

Mais bela, do que a bonina;

Eu sou, quem estas ribeiras,

Sou, quem estes campos pisa,

Atrás de uma alma, que roubas,

Tão presa, como rendida.

Não te peco, que ma entregues:

Porque quem ta sacrifica,

De meu voluntário culto

Faz ostentação mais fina:

Quero só, que ma não deixes,

Que a não desampares; inda

Quando de Letes saudoso

Vires a margem sombria.

Mais seguro, e mais constante,

Que aquela mimosa ninfa,

Que no côncavo das penhas,

Por lei do destino, habita.

Eco serei destas rochas,

Aonde os clamores firam

Dos corações, que se queixam,

Das almas, que se lastimam.

Assim, cândidas ovelhas,

Assim clamarei: sozinhas

Correi embora contentes

O vale, o monte, a campina.

CANÇONETAS

À LIRA DESPREZO

Que busco, infausta lira,

Que busco no teu canto,

Se ao mal, que cresce tanto,

Alívio me não dás?

A alma, que suspira,

Já foge de escutar-te:

Que tu também és parte

De meu saudoso mal.

II

Tu foste (eu não o nego)

Tu foste em outra idade

Aquela suavidade,

Que Amor soube adorar;

De meu perdido emprego

Tu foste o engano amado:

Deixou-me o meu cuidado;

Também te hei de deixar.

III

Ah! De minha ânsia ardente

Perdeste o caro império:

Que já noutro hemisfério

Me vejo respirar.

O peito já não sente

Aquele ardor antigo:

Porque outro norte sigo,

Que fino amor me dá.

IV

Amei-te (eu o confesso)

E fosse noite, ou dia,

Jamais tua harmonia

Me viste abandonar.

Qualquer penoso excesso,

Que atormentasse esta alma,

A teu obséquio em calma

Eu pude serenar.

V

Ah! Quantas vezes, quantas

Do sono despertando,

Doce instrumento brando,

Te pude temperar!

Só tu (disse) me encantas;

Tu só, belo instrumento,

Tu és o meu alento;

Tu o meu bem serás.

VI

Vai-te; que já não quero,

Que devas a meu peito

Aquele doce efeito,

Que me deveste já.

Contigo já mais fero

Só trato de quebrar-te:

Também hás de ter parte

No estrago de meu mal.

VII

Não saberás desta alma

Segredos, que sabias,

Naqueles doces dias,

Que Amor soube alentar.

Se aquela ingrata calma

Foi só tormenta escura,

Na minha desventura

Também naufragarás.

VIII

Nise, que a cada instante

Teu números ouvia,

Ou fosse noite, ou dia,

Jamais não te ouvirá.

Cansado o peito amante

Somente ao desengano

O culto soberano

Pretende tributar.

IX

De todo enfim deixada

No horror deste arvoredo,

Em ti seu tosco enredo Aracne tecerá.

Em paz se fique a amada,

Por quem teu canto inspiras;

E tu, que a paz me tiras,

Também te fica em paz.

A LIRA PALINÓDIA

Vem, adorada Lira,

Inspira-me o teu canto:

Só tu a impulso tanto

Todo o prazer me dás.

Já a alma não suspira;

Pois chega a escutar-te:

De todo, ou já em parte

Vai-se ausentando o mal.

II

Não cuides, que te nego

Tributos de outra idade:

A tua suavidade

Eu sei inda adorar;

Desse perdido emprego

Eu busco o encanto amado;

Amando o meu cuidado,

Jamais te hei de deixar.

III

Vê, de meu fogo ardente,

Qual é o ativo império:

Que em todo este hemisfério

Se atende respirar.

O coração, que sente

Aquele incêndio antigo,

No mesmo mal, que sigo,

Todo o favor me dá.

IV

Se tanto bem confesso,

Ou seja noite, ou dia,

Jamais essa harmonia

Espero abandonar.

Não há de a tanto excesso,

Não há de, não, minha alma

Desta amorosa calma

Meus olhos serenar.

V

Ah! Quantas ânsias, quantas

Agora despertando,

A teu impulso brando

Eu venho a temperar!

No gosto, em que me encantas,

Suavíssimo instrumento,

Em ti só busco o alento;

Que eterno me serás.

VI

Contigo partir quero

As mágoas de meu peito;

Quanto diverso efeito,

Do que provaste já!

Não cuides, que sou fero;

Porque já quis quebrar-te:

No meu delírio em parte

Desculpa tem meu mal.

VII

Se tu só de minha alma

O caro amor sabias,

Contigo só meus dias

Eterno hei de alentar.

Bem que ameace a calma

Fatal tormenta escura,

Da minha desventura

Jamais naufragarás.

VIII

Clamar a cada instante

O nome, que me ouvia,

Ou seja noite, ou dia,

O bosque me ouvirá.

Bem, que a meu culto amante

Resista o desengano,

O voto soberano

Te espero tributar.

IX

Não temas, que deixada

Te ocupe este arvoredo,

Onde meu triste enredo

O fado tecerá;

Conhece, ó Lira amada,

O afeto, que me inspiras;

Na mesma paz, que tiras

Me dás a melhor paz.

FILENO A NISE

Despedida de

Glauceste Satúrnio

Pastor Árcade, Romano, Ultramarino

I

Adeus, ídolo amado

Adeus, que o meu destino

Me leva peregrino

A não te ver jamais.

Sei que é tormento ingrato,

Deixar teu fino trato:

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

II

Tu ficas; eu me ausento;

E nesta despedida,

Se não se acaba a vida,

É só por mais penar.

De tanto mal, e tanto

Alívio é só o pranto:

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

III

Quantas memórias, quantas,

Agora despertando,

Me vêm acompanhando,

Por mais me atormentar!

Faria o esquecimento

Menor o meu tormento:

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

IV

Girando esta montanha,

Os sítios estou vendo,

Aonde Amor tecendo

Seu doce enredo está.

Aqui me ocorre a fonte,

Ali me lembra o monte:

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

V

Sentado junto ao rio,

Me lembro, fiel Pastora,

Daquela feliz hora,

Que n'alma impressa está.

Que triste eu tinha estado,

Ao ver teu rosto irado!

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

VI

De Fílis, de Lisarda,

Aqui entre desvelos,

Me pede amantes zelos

A causa de meu mal.

Alegre o seu semblante

Se muda a cada instante:

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

VII

Aqui colhendo flores,

Mimosa a Ninfa cara,

Um ramo me prepara,

Talvez por me agradar.

Anarda ali se agasta,

Daliso aqui se afasta:

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

VIII

Tudo isto na memória

(Oh! bárbara crueldade!),

À força da saudade,

Amor me pinta já.

Rendido desfaleço

De tanta dor no excesso:

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

IX

O mais, que aumenta a mágoa,

É ter sempre o receio

De que outro amado enleio

Teu peito encontrará.

Amante nos teus braços,

Quem sabe, se outros laços...

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

X

Por onde quer que gires,

Desta alma, que te adora,

Ah! lembra-te, Pastora,

Que já te soube amar.

Verás em meu tormento

Perpétuo sentimento:

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

XI

Lá desde o meu desterro,

Verás que esta corrente

Te vem fazer presente

A ânsia de meu mal.

Verás que em meu retiro

Só gemo, só suspiro:

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

XII

As Ninfas que se escondem

Lá dentro do seu seio,

De meu querido enleio

O nome hão de escutar.

No bem desta lembrança,

Alívio a alma alcança:

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

XIII

Ah! Deva-te meu pranto,

Em tão fatal delírio,

Que pagues meu martírio

Em prêmio de amor tal.

Mereça um mal sem cura

Lograr esta ventura:

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

XIV

E se por fim, Pastora,

Duvidas de minha ânsia,

Se em ti não há constância,

Minha alma o vingará.

Farei que o Céu se abrande

Aos ais de uma ânsia grande:

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

XV

Terás em minha pena,

Com passo vigilante,

A minha sombra errante,

Sem nunca te deixar.

Terás... Ah! belo emprego!

Não temas; eu sossego:

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

NISE A FILENO

Resposta de

Eureste Fenício

Pastor Árcade, Romano, Ultramarino

  

I

Em vão, Fileno amado,

Acusas teu destino,

Se foges peregrino,

Por me não ver jamais.

Viste-me, falso, ingrato,

Presa a teu doce trato:

E tu, que assim me viste,

Partiste

A respirar!

II

Dizias: "eu me ausento".

Foi esta a despedida,

Que toda a minha vida

Me há de fazer penar.

Entre martírio tanto

Eu me desfiz em pranto:

E tu, que assim me viste,

Partiste

A respirar!

III

Oh! quantas vezes, quantas,

Do sono despertando,

Te vou acompanhando,

Por não me atormentar!

Não há esquecimento,

Que abrande o meu tormento:

E tu, que assim me viste,

Partiste

A respirar!

IV

No prado e na montanha,

Saudosa hoje estou vendo

O engano, que tecendo

A minha idéia está.

Baixei contigo à fonte;

Subi contigo ao monte:

E tu, que assim me viste,

Partiste

A respirar!

V

Ao som do manso rio,

Nise, fiel Pastora,

Chorando a toda hora

A tua ausência está.

Que triste eu tinha estado,

Ao ver teu rosto irado!

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

VI

Nem Fílis, nem Lisarda,

Que foram teus desvelos,

Me podem já dar zelos,

Nem já me fazem mal.

Só teu cruel semblante

Me lembra a cada instante:

E tu, que assim me viste,

Partiste

A respirar!

VII

Fileno as belas flores

A Nise amada, e cara,

Já agora não prepara;

Já não quer agradar.

Comigo Amor se agasta;

O meu Pastor se afasta:

E tu, que assim me viste,

Partiste

A respirar!

VIII

Conservo na memória

A tua crueldade;

Nem sei como a saudade

Me não tem morta já.

Mas ah! que desfaleço,

Chorando em tal excesso:

E tu, que assim me viste,

Partiste

A respirar!

IX

Crescendo a minha mágoa,

Se aumenta o meu receio,

Que entregue a novo enleio

Talvez te encontrará.

Que vezes nos meu braços

Eu te formei os laços!

E tu, que assim me viste,

Partiste

A respirar!

X

Por mais que ausente gires

De Nise, que te adora,

Não hás de achar Pastora

Que mais te saiba amar.

Vê bem a que tormento

Me obriga o sentimento:

E tu, que assim me viste,

Partiste

A respirar!

XI

Aqui posta em desterro,

Ao som desta corrente,

Sempre terei presente

A causa de meu mal.

E tu nesse retiro

Desprezas meu suspiro:

E tu, que assim me viste,

Partiste

A respirar!

XII

Até de mim se escondem

As Ninfas no seu seio;

Pois teu fingido enleio

Não querem escutar.

No bem desta lembrança,

Alívio a alma alcança:

Mas quando é que tu viste

Um triste

Respirar!

XIII

Conheço que o meu pranto

Passou a ser delírio:

Pois meu cruel martírio

Chega a extremo tal.

Mas como há de ter cura,

Quem nasce sem ventura!

E tu, que assim me viste,

Partiste

A respirar!

XIV

Talvez outra Pastora,

Zombando de tua ânsia,

Da falta de constância

Em ti me vingará.

Malfeito que se abrande,

Vendo rigor tão grande:

E tu, que assim me viste,

Partiste

A respirar!

XV

Verás na minha pena,

Que sempre vigilante,

Por todo o campo errante,

Jamais te hei de deixar.

E tu... ah! louco emprego

De quem não tem sossego!

E tu, que assim me viste,

Partiste

A respirar!

CANZONETTE

IL PASTORE A NICE

Canzonetta di

Glauceste Saturnio

Pastore Arcade, Romano, Ultramarino

I

Dove, mia Nice, dove,

Dove trovarti spero

Nel lido, a cui straniero

Mi trasse ingrato Amor!

Chiedendo ai tronchi, ai sassi,

In vano io volgo i passi:

E solo sento (o Dio!)

Che perdo anch'io

Il cor.

II

Il fior veggo nel prato;

E negli affanni miei,

Ah! Quest', io dico (o Dei!),

Nice sarà talor.

 Le tue pupille belle,

Credo che son le stelle:

E solo sento (o Dio!)

Che perdo anch'io

Il cor.

 CANZONETTE

NICE A IL PASTORE

Risposta di

Ninfeo Callidità

Pastore Arcade, Romano, Ultramarino

I

Addio, Pastor. Ma dove

Così longent ti spero;

Se fuor di me straniero

Tu vai fuggendo amor!

Addio. Io piango ai sassi,

Men sordi, che i tuoi passi.

Ah! Che nel dirti addio,

Già non è mio

Il cor!

II

Al bosco, al monte, al prato,

Spargo i sospiri miei;

E in vano spargo (o Dei!)

I miei sospir talor.

Veggo le sfere belle;

Non veggo le mie stelle:

Ah! che nel dirti addio,

Già non è mio

Il cor!

III

Del monte alla foresta

Mal cieco Amor mi guida,

Dove più dolce arrida

Il Cielo al mio dolor.

Vola di pianta in pianta

L'augel, che scherza, e canta:

E solo sento (o Dio!)

Che perdo anch'io

Il cor.

IV

Nel mio sospiro amante

Altro il dolor non dice,

Che dove, dov'è Nice,

Che non la trovo ancor!

Eco, ch'il sasso asconde,

Per lei nepur risponde:

E solo sento (o Dio!)

Che perdo anch'io

Il cor.

V

Tutto per me s'oscura,

La terra, il mare, il Cielo,

Il sangue è freddo gelo;

Tutto mi fà terror.

Nessuno a dolor tanto

Sa trattenermi'l pianto:

E solo sento (o Dio!)

Che perdo anch'io

Il cor.

VI

Il tenero mio voto

Grato, mio ben, ti sia:

Tu puoi col alma mia

Far più superbo Amor.

III

La greggia alla foresta

Non guido, né mi guida;

Nepure il fiore arrida:

Che tutto ha il mio dolor.

Mustia si fé la pianta;

Mai più l'auge) non canta:

Ah! che nel dirti addio,

Già non è mio

Il cor!

IV

Torna, spietato amante,

Torna: mal il cor mi dice,

Che tu lasciasti Nice,

Che te scordasti ancor.

Perchè, crudel t'ascondi?

Perchè non mi rispondi?

Ah! che nel dirti addio,

Già non è mio

Il cor!

V

Non temo l'onda oscura,

Non temo il mare, il Cielo:

Per te, mio ben, mi gelo;

Per te sento terror.

Vedi che a dolor tanto

Mi sto sfogando in pianto:

Ah! che nel dirti addio,

Già non è mio

Il cor!

VI

Non olvidar quel voto;

Presente ognor ti sia:

Ah! Si. Dell'alma mia

Tu fosti'l solo amor.

Tu puoi... ma sudo in vano

Nel culto, in cui m'affanno:

E solo sento (o Dio!)

Che perdo anch'io

Il cor.

VII

Or mi rammento, o cara,

Di quel felice stato,

Che dolce, innamorato,

M'accolse il tuo favor.

Di tanti beni, e tanti

Or nascono i miei pianti: E solo sento (o Dio!)

Che perdo anch'io

Il cor.

VIII

Chi sa, qual altro amante,

Chi sa, qual più felice,

Della mia bella Nice

S'accenda allo splendor!

Dei miei crudi sospetti

Non veggo i mesti oggetti:

E solo sento (o Dio!)

Che perdo anch'io

Il cor.

IX

Chi sa dove s'annida,

Nel mar, nel cielo, o terra!

Chi sa dove se serra

Quel candido tesor!

Per lei (crudel tormento!)

Per lei morir mi sento:

E solo sento (o Dio!)

Che perdo anch'io

Il cor.

Tu fosti... io fuggo in vano

Il duolo, in cui m'affanno:

Ah! Che nel dirti addio,

Già non è mio

Il cor!

VII

Non olvidar che cara

Ti fui nel dolce stato,

Che fido, innamorato,

T'accolse il mio favor.

Di tanti amori, e tanti,

Son premio questi pianti:

Ah! che nel dirti addio,

Già non è mio

Il cor!

VIII

Chi sa, tiranno amante,

Se alla rival felice,

L'abbandonata Nice

Invidia il suo splendor!

Chi sa, se i miei sospetti

Tardano i cari oggetti!

Ah! che nel dirti addio,

Già non é mio

Il cor!

IX

Farò, se pur s'annida

L'indegna in Cielo, o in terra,

Se il mio tesoro serra,

Mi renda il mio tesor.

Farò... crudel tormento,

Per cui morir mi sento!

Farò... ma come (o Dio!)

Se non è mio

Il cor!

NICE A IL PASTORE

Risposta di

Ninfejo Calistide

Pastore Arcade, Romano, Ultramarino

I

Addio, Pastor. Ma dove

Cosi lontan ti spero;

Se fuor di me straniero

Tu vai fuggindo amor!

Addio. Io piango ai sassi,

Men sordi, che i tuoi passi.

Ah! Che nel dirti addio,

Già non è mio

Il cor!

II

Al bosco, al monte, al prato,

Spargo i sospiri miei;

E in vano spargo (o Dei!)

I miei sospir talor.

Veggo le sfere belle;

Non veggo le mie stelle:

Ah! che nel dirti addio,

Già non è mio

Il cor!

III

Del monte alla foresta

Mal cieco Amor mi guida,

Dove più dolce arrida

Il Cielo al mio dolor.

Vola di pianta in pianta

L'augel, che scherza, e canta:

E solo sento (o Dio!)

Che perdo anch'io

Il cor.

IV

Nel mio sospiro amante

Altro il dolor non dice,

Che dove, dov'è Nice,

Che non la trovo ancor!

Eco, ch'il sasso asconde,

Per lei nepur risponde:

E solo sento (o Dio!)

Che perdo anch'io

Il cor.

V

Tutto per me s'oscura,

La terra, il mare, il Cielo,

Il sangue è freddo gelo;

Tutto mi fà terror.

Nessuno a dolor tanto

Sa trattenermi'l pianto:

E solo sento (o Dio!)

Che perdo an ch'io

Il cor.

VI

Il tenero mio voto

Grato, mio ben, ti sia:

Tu puoi col alma mia

Far più superbo Amor.

III

La greggia alla foresta

Non guido, né mi guida;

Nepure il flore arrida:

Che tutto ha il mio dolor.

Mustia si fé la pianta;

Mai più l'augel non canta:

Ah! che nel dirti addio,

Già non è mio

Il cor!

IV

Torna, spietato amante,

Torna: mal il cor mi dice,

Che tu lasciasti Nice,

Che te scordasti ancor.

Perchè, crudel t'ascondi?

Perchè non mi rispondi?

Ah! che nel dirti addio,

Già non è mio

Il cor!

V

Non temo l'onda oscura,

Non temo il mare, il Cielo:

Per te, mio ben, mi gelo;

Per te sento terror.

Vedi che a dolor tanto

Mi sto sfogando in pianto:

Ah! che nel dirti addio,

Già non è mio

Il cor!

VI

Non olvidar quel voto;

Presente ognor ti sia:

Ah! Si. Dell'alma mia

Tu fosti'l solo amor.

Tu puoi... ma sudo in vano

Nel culto, in cui m'affanno:

E solo sento (o Dio!)

Che perdo anch'io

Il cor.

VII

Or mi rammento, o cara,

Di quel felice stato,

Che dolce, innamorato,

M'accolse il tuo favor.

Di tanti beni, e tanti

Or nascono i miei pianti:

E solo sento (o Dio!)

Che perdo anch'io

Il cor.

VIII

Chi sa, quai altro amante,

Chi sa, quai più felice,

Della mia bella Nice

S'accenda allo splendor!

Dei miei crudi sospetti

Non veggo i mesti oggetti:

E solo sento (o Dio!)

Che perdo anch'io

Il cor.

IX

Chi sa dove s'annida,

Nel mar, nel cielo, o terra!

Chi sa dove se serra

Quel candido tesor!

Per lei (crudel tormento!)

Per lei morir mi sento:

E solo sento (o Dio!)

Che perdo anch'io

Il cor.

Tu fosti... io fuggo in vano

Il duolo, in cui m'affanno:

Ah! Che nel dirti addio,

Già non è mio

Il cor!

VII

Non olvidar che cara

Ti fui nel dolce stato,

Clic fado, innamorato,

T'accolse il mio favor.

Di tanti amori, e tanti,

Son premio questi pianti:

Ah! che nel dirti addio,

Già non è mio

Il cor!

VIII

Chi sa, tiranno amante,

Se alla rival felice,

L'abbandonata Nice

Invidia il suo splendor!

Chi sa, se i miei sospetti

Tardano i cari oggetti!

Ah! che nel dirti addio,

Già non é mio

Il cor!

IX

Farò, se pur s'annida

L'indegna in Cielo, o in terra,

Se il mio tesoro serra,

Mi renda il mio tesor.

Farò... crudel tormento,

Per cui morir mi sento!

Fard... ma corne (o Dio!)

Se non è mio

Il cor!

NICE

I

Ah ch'io mi sento

D'Amor ferito!

Non sono ardito,

Parlar non so.

Mi vinse Amore

Crudo, tiranno;

Per questo affanno

Valor non ho.

Nice crudele,

Tu sei l'ardore

Ch'inspira Amore

Entro il mio cor.

II

Lascia ch'io solo,

Nel mio martire,

Vada a morire

Senza pietà.

Amor lo chiede,

Chiedelo il mio

Crudel desio

Di più penar.

Tu non sai, Nice,

Qual sia il vanto,

Che nel mio pianto

Amor mi dà.

III

Folle chi crede

Trovar fermezza

Nella crudezza

D'una beltà.

Or da sé scaccia,

Or a sé chiama,

Altro non brama,

Che'l variar.

Lo so per prova:

Tu, Nice bella,

Tu sol sei quella

Ch'instrutto m'ha.

IV

Ombra onorata

Della mia face,

Lasciami in pace,

S'ai pur pietà.

Io riconosco

Il tuo sembiante:

Ei pur amante

Nell'alma sta.

Ah quai m'accusi!

Qual mi condanni!

Mi fan gl'affanni Già delirar.

CANTATAS

O PASTOR DIVINO

CANTATA I

Fé. Esperança.

Fé. Onde, Enigma adorado,

Onde guias perplexo,

Confuso, e pensativo

Da minha idéia o vacilante curso?

Esp. Que sombras, que portentos

Encobres a meus olhos,

Ó ignorado arcano,

Que lá dessa distancia

Inspiras de teu raio esforço ativo?

Fé. Eu vejo, que rompendo

Da noite o manto escuro

Vem cintilando a chama,

Que sobre o mundo todo a luz derrama.

Esp. Eu vejo, que do Oriente

A luminosa estrela,

Que os passos encaminha,

Quase a buscar a terra se avizinha.

Coro

Chegai, pastores,

Vinde contentes;

Que o novo sol Já resplandece.

Oh que glória, que dita, que gosto

Nestes campos se vê respirar!

Fé. É esta a flor mimosa,

Que da Vara bendita,

Venturosa, jucunda,

Da raiz de Jessé brota fecunda!

Esp. É este o pastor belo,

Que o rebanho espalhado

Vem acaso buscar!

É este aquele,

Que por montes, e vales

Conduz a tenra ovelha,

E mais que a própria vida,

Ama o rebanho seu!

É este aquele,

Que as ovelhas conhece e a seu preceito

Obedecendo belas,

Também o seu Pastor conhecem elas!

Fé. Eu o tinha alcançado,

De enigmáticas sombras na figura,

Unigênito Filho

Do Eterno Criador.

O Filho amado

De Abrão o testifica;

Esp. Jacó o compreende,

Abel o explica.

Ambas. Brandas ninfas, que no centro

Habitais dessa corrente,

Vinde ao novo sol nascente

Vosso obséquio tributar.

Fé. Já do monte descendo

Vem o pobre pastor: de brancas flores,

Ou já grinaldas, ou coroas tece,

E ao novo Deus contente as oferece.

Esp. Já de lírios, e rosas,

Pela glória, que alcança,

Animada a Esperança se coroa;

E alegres hinos de prazer entoa.

Coro

Chegai, pastores,

Vinde contentes;

Que o novo sol Já resplandece.

Oh que glória, que dita, que gosto

Nestes campos se vê respirar!

Fé. Aquele tenro,

Cordeiro amado,

Sacrificado Por nosso amor,

Esp. Sobre seus ombros

Conduz aceso

O duro peso Do pecador.

Fé. Nascido infante

Ao mundo aflito

Nosso delito Paga em amor.

Esp. Oh recompensa

Do bem perdido!

Oh do gemido

Prêmio maior!

Ambas. Vem, Pastor belo;

Vem a meus braços;

Vem; que teus passos

Seguindo vou.

Fé. Mas ah! Que de prazer, e de alegria

Respirar posso apenas. Todo o campo

Florescente se vê. Estão cobertos

Os claros horizontes

De nova luz, de novo sol os montes.

Esp. Melhor luz não espere

Ver o mundo jamais.

Concorram todos

A este luminoso

Assento; aonde habita

Aquele sol, que a vida ressuscita.

Fé. Vem, sol peregrino, De nós suspirado;

Esp. Vem, Filho adorado De Deus imortal.

Coro

Chegai, pastores,

Vinde contentes;

Que o novo sol

Já resplandece.

Oh que glória, que dita, que gosto

Nestes campos se vê respirar!

CANTATA II

LA SS. VERGINE

Oh degli Astri, e del Ciel Regina Augusta!

Tu, ch'al mondo cadente

La salute portasti, ed il sacrato,

Antidoto felice della colpa,

Nel tuo seno di grazie il più fecondo;

Tu, che donasti al mondo

Quell'adorato Figlio,

Che a pro di noi vesti l'umana spoglia;

Quello, che vendicò l'infausta doglia,

Che l'inesperto Adamo

Comune a noi senza ristoro piange,

Tu sei quella, ch'io chiamo,

Bella Madre d'Amor, ma d'Amor degno,

De si gran Madre venturoso pegno.

Io t'adoro, io t'amo, o cara,

Sacra Vergine, ch 'il Cielo

Dona a noi, involta in velo,

Di Colomba, che innocente

L'ali spiega, al Ciel s'en va.

Cosi dolce, amante Sposo

Le sue braccia apre in un giorno:

Vieni, dice, o mio soggiorno,

Tu, che porti ogni beltà.

GALATÉIA

CANTATA III

Galatéia, Acis.

Ácis. Galatéia adorada,

Mais cândida e mais bela,

Que a neve congelada,

Que a clara luz da matutina estrela;

Mais, do que o Sol, formosa;

Não digo lírio já, não digo rosa.

Gal. Ácis idolatrado,

Pastor mais peregrino,

Que quanto ostenta o prado,

Quanto banha d'Aurora o humor divino;

Pois junto às tuas cores

Não tem o prado cor, não têm as flores.

Ácis. Ácis é, quem saudoso

Corre desta ribeira

Todo o campo espaçoso,

Buscando, ó bela Ninfa, a lisonjeira,

Doce vista, que tanto

De Amor ateia o suspirado encanto.

Gal. Desde o azul império,

Que rege o áureo Tridente,

Por todo este hemisfério,

Galatéia te busca impaciente;

E amante nos seus braços

Te prepara de amor gostosos laços.

Ácis. Vem ouvir-me um instante;

Que em mim tudo é ternura.

Do bárbaro Gigante

Não temas, não a pálida figura:

Que o tem seu triste fado,

Tanto como infeliz, desenganado.

Vem, ó Ninfa ditosa,

Vem, vem;

Que em ti Amor guarda

Todo o meu bem.

Gal. Oh! Firam teus ouvidos

Meus saudosos clamores;

Mereçam meus gemidos

Mover a sem-razão dos teus rigores;

Já que tão docemente

Sempre ao meu coração estás presente.

Vem, ó Pastor querido,

Vem, vem;

Que em ti Amor guarda

Todo o meu bem.

CANTATA IV

LISE

Sobre a Cantata antecedente

Na sorte, Lise amada,

Do misero Gigante,

Que triste de meu fado se traslada

O fúnebre semblante!

Ao ver a copia do Ciclope infausto,

Respiram de meu peito iguais ardores.

Os zelosos furores

Que dentro n'alma sinto,

Como em lâmina triste escrevo, e pinto.

Zeloso ele, e eu zeloso,

Ambos sentimos um igual extremo.

Mais ai! fado aleivoso!

Que infeliz, inda mais que Polifemo,

Me queixo. Ele a ocasiâo de seu ciúme

Sufoca, estraga, desalenta, e mata;

E eu de uma alma ingrata

Sinto o desprezo, e nâo extingo o lume,

Pois sempre desprezado,

Vivo aflito, infeliz, desesperado.

Se em mim, pois, se em Polifemo

Influiu a mesma estrela,

Aqui tens, ô Lise bela,

Uma côpia de meu mal.

Mas ai! Lise! Quanto sinto!

Bem que nesta copia o pinto,

Nada iguala o original!

CANTATA V

NISE

Não vejas, Nise Amada,

A tua gentileza

No cristal dessa fonte. Ela te engana:

Pois retrata o suave,

E encobre o rigoroso. Os olhos belos

Volta, volta a meu peito:

Verâs, tirana, em mil pedaços feito

Gemer um coração; verás uma alma

Ansiosa suspirar; verás um rosto

Cheio de pena, cheio de desgosto.

Observa bem, contempla

Toda a mísera estampa. Retratada

Em uma cópia viva

Verás distinta, e pura,

Nise cruel, a tua formosura.

Não te engane, bela Nise,

O cristal da fonte amena;

Que essa fonte é mui serena,

É mui brando esse cristal.

Se assim como vês teu rosto,

Viras, Nise, os seus efeitos,

Pode ser que em nossos peitos

O tormento fosse igual.

CANTATA VI

PALEMO E LISE

Epitalâmica

Oh! quanto, Lise! oh! quanto!

Quanto alentam teus olhos

Ao mísero Palemo! Já três dias

O mar anda girando. Em tua ausência,

Saudoso, tem movido as bravas ondas.

Aos peixes tem chegado

O clamor de seus ais. Ah! Se tu viras,

Qual foi o seu lamento,

Não foras mais cruel que o mar, que o vento.

Eu o vi ( não te engano)

Sem acordo entregar o frágil barco

Ao arbítrio das ondas. Poucos passos

De uma rocha fatal já se apartava,

A morrer se apressava,

Quando eu, que no seu rumo ia seguindo,

Palemo? (lhe gritei) olha, Palemo:

Desvia dessa penha a vela, o remo.

Mas fosse providência, acaso fosse,

A outra parte a onda

O seu barco voltou. Já perguntado

Me torna o Pastor caro: Eu entendia

Que a penha, em que Nicandro me falava,

Era Lise somente, que eu buscava

Lise, a rocha desumana,

Lise, o bem, que tanto adora;

Por quem vivo, por quem choro,

Por quem ando a suspirar.

Ah! Se corro a morrer nela,

Venha a bárbara ferida,

Que esta morte só é vida,

Porque é Lise quem a dá.

Mas não é isto engano! O infausto agouro

De todo se apartou. Tornou-se em calma

O mar tempestuoso; o vento irado

Já suave respira; esta ribeira

De alegria se veste; um doce encanto

Nos álamos, nos freixos,

Que estão fazendo sombra as verdes ondas,

Comunica a harmonia

Dos pássaros que cantam. Que gostosa

Meneia as brandas folhas

A aura lisonjeira! Dentre as ramas,

Ah! como fere o raio sobre as águas,

Tornando prateadas

As cristalinas veias! Finge a sombra

Outro bosque nas ondas, e parece

Que outras aves no mar em competência

Formando estão suavíssima cadência.

E que alegre entretanto

Esta praia se vê! Que grande cópia

De redes se derrama! Em cada parte

Se senta um Pescador; bailes, e jogos

Se atendem na ribeira; ao doce aviso

Das vizinhas Aldeias

Vem o povo chegando. É grande o dia;

Grande anúncio é de gosto. Mas que muito,

Se neste feliz dia

De Lise, e de Palemo

Se premeia a virtude! Um terno laço

Ao Pescador amante

A Ninfa delicada

Neste dia assegura. Ah! queira o Fado,

Propício queira o Céu

A chama fecundar deste himeneu.

Forme das almas belas

Amor o seu tesouro;

E com as setas douro

Se veja triunfar.

De pérolas tributo

Lhe renda a fértil onda;

O mar lhe não esconda

A rama do coral.

PROTESTAÇÃO

Protesta o Autor que somente por adorno da Poesia usou das palavras Deuses, Numes, Divindades, Agouros etc e outras expressões dissonantes aos dogmas da Santa Madre Igreja de Roma: o que tudo sujeita a sua correção, como verdadeiro Católico etc.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



*  Nas Reais Núpcias dos Sereníssimos Príncipes, a Senhora D. Maria, Princesa do Brasil, e o Senhor Infante D. Pedro.

*  Aos anos d’El-Rei.

a  Nanque erit ille mihi semper Deus: illius aram / Saepe tener nostrisab ovilibus imbuet agnus.

b  Et durae quercus sudabunt roscida mella.

c  Teque adeo decus hoc aevi, te consule, inibit / Pollio, ut incipient magni procedere menses.

d  Omnis feret omnia tellus.

e  Dicite, Pierides: non omnia possumus omnes.

* Ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Conde de Valadares, partindo de Lisboa para Vila Rica, a capital das Minas Gerais.

* À morte do Senhor José Gomes de Araújo, Desembargador do Porto, que morreu nos sertões do Rio das Velhas, no emprego de Provedor da Fazenda Real da Capitania das Minas Gerais.