Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

GUELFOS E GIBELINOS

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TENTATIVA CRÍTICA

SOBRE A ATUAL

POLÊMICA LITERÁRIA

POR

E. A. VIDAL

LISBOA

LIVRARIA DE ANTÓNIO MARIA PEREIRA

50 — RUA AUGUSTA — 52

1866


LISBOA — TIP. DE SOUSA NEVES, RUA DO CALDEIRA, 17

I

Assistimos, há muito, a uma travada peleja entre guelfos e gibelinos, quer dizer, entre brancos e negros, entre os homens da claridade e os do entenebrecimento. O que ao princípio se assemelhava a uma contenda de Alecrim e Manjerona, contenda em que de um lado pleiteava D. Gilvaz as excelências daquela planta, e do outro D. Fuas proclamava as virtudes destoutra, transformou-se no correr dos tempos em uma batalha renhida, a que, por desgraça, não tem faltado as chufas que nada provam, nem os insultos que nada vencem.

Antes das cousas terem chegado a este ponto malfadado, escrevia eu o seguinte: — «Essa polemica literária, que de dia para dia cresce, converter-se-á em verdadeira revolta, e, se eu não me engano, terminará por uma luta cruenta e decisiva, onde se hão de gladiar os homens do cormentalismo com os austeros contempladores do infinito.» — A profecia realizou-se finalmente; a liça é já pequena para os contendores que descem a ela, e o ruído das armas perturba o sono e a digestão dos indiferentes.

Deveria eu permanecer no meu retiro obscuro? Deveria contemplar em silêncio este duelo literário? Diz-me que não a consciência. Acima destas agressões pequenas em que tanto uns como outros procuram derribar, quer uma reputação nascente, quer uma glória já feita, eu vejo a questão da arte, a questão dos princípios, a questão das tendências; questão que é necessário tratar no verdadeiro pé, sem nuvens de rancor que nos obscureçam o espírito.

Pode a chamada escola coimbrã causar à literatura portuguesa os males que a escola marinesca ocasionou à italiana? As opiniões divergem, há terroristas que o afirmam, e há patriarcas que o contestam. Eu não vejo na seita de Coimbra, tal qual se nos apresenta agora, força bastante para depravar a arte; mas creio ao mesmo tempo que é dever de bom cidadão tomar o passo a qualquer que lhe invade a terra, para que os ignorantes não aclamem o intruso, e em vez de lhe envergarem a túnica do opróbrio, lhe atirem sobre os ombros a purpura dos Césares. O que hoje é riacho, sem limpidez nem beleza, pode amanhã engrossar e converter-se em oceano. Depois, o erro, pregado com boa fé ou sem ela, incute-se e enraíza-se facilmente. Os falsos profetas medram e florescem sempre. Quando se lhes quer pôr travanco, a plebe furiosa congrega-se, apedreja o indiscreto, e vai mais reverente ainda beijar os pés do milagreiro. É a história de todos os tempos e de todos os povos. Este cair no abismo, este fugir da luz para as trevas, este negar a Deus para afirmar a Iblis, eis o que eu temo por agora.

II

Digamos antes do tudo, e sobretudo, uma verdade. A escola de Coimbra existia há muito, a de Lisboa sabia-o, e nem esta nem aquela se provocavam. Ainda mais. Aparecera entre nós um livro, digno de menção pelos rasgos de talento que ostentava, e ao mesmo tempo digno de censura pelos seus não poucos dislates. Este livro era a Visão dos tempos. A tal aparecimento reuniram-se os magnates, perfilaram-se os admiradores, a crítica desbarretou-se, os minoristas da imprensa vieram assaralhopados, e de naveta em punho, botar incenso nos turíbulos, os círios arderam profusamente em volta deste Genesis sacrossanto. A devoção dos fieis crescia de ponto; o moço poeta repotreado na sua curul olímpica deixava cair sobre as multidões boquiabertas um raio de luz da sua graça. Desde as câmaras douradas até às mansardas obscuras, desde o acadêmico até o noticiarista, desde o rico homem até o pobre-diabo, ninguém via, ninguém pensava, ninguém falava noutro livro. Lisboa teve de abrir as suas válvulas de salvação, para não voar em astilhas numa explosão de entusiasmo. Esta é que é a verdade. Tempos depois Teófilo Braga dava a lume outro poema. Apesar do supremo desprezo que a escola de Coimbra parece votar às frandulagens latinas, esse livro, seja dito entre parêntesis, chamava-se Tempestades sonoras. Tempestatesque sonoras. Os triunfos da véspera cresceram e dilataram-se; os desgraçados trovadores olisiponenses meteram as liras debaixo do braço, e recolheram-se aos limbos da sua insuficiência microscópica.

De que veio, pois, todo este reviramento? porque se alçou de repente a guerra? porque é que Troia se esbraseia em chamas? porque se gladiam os que dantes se abraçavam? porque se entorna o fel sobre esses louros, entretecidos com tanto amor para coroar frontes que hoje se conspurcam? A carta do sr. Castilho escrita a propósito do Poema da Mocidade foi a faúla caída sobre o barril de pólvora. A má vontade latente irrompeu furiosa; as labaredas do incêndio lamberam todos os diademas.

 — «Como farpadas línguas de serpentes»

para me servir de um belo verso do sr. Teófilo Braga. Começou a lide, trocaram-se os primeiros tiros, assestaram-se as bombardas, o padre Tejo levantou-se do seu leito resolvido a arrepelar as barbas do Mondego. Hoje estamos em plena conflagração. De que procedeu, portanto, este alvoroto? De um despeito pueril. A carta do sr. Castilho ferira de rosto o melindre de dois mancebos; estes saíram a campo, e arremessaram as suas frechas contra o poeta dos Ciúmes do Bardo. Havia desacato em proceder de tal modo, havia orgulho em suspeitar que quarenta anos de um lavor literário que a posteridade tem de aquilatar imparcialmente, podiam cair esfacelados ante as injurias e os apodos. Em torno do poeta juntaram-se, então, de momento, os que o tinham sempre aplaudido e respeitado; os arraiais desfraldaram as suas bandeiras, os fundibulários entraram na faina beligerante. O nome do sr. Castilho foi remexido e fariscado no folhetim e no panfleto; de uma e de outra banda o insulto gratuito e a frioleira chistosa tomaram o posto de honra. Os que deveriam ter saído, e feito ouvir a sua voz, em nome dos eternos princípios de bom senso, quando os horizontes literários haviam começado a enevoar-se, esses tinham acolhido com o Io triumphe nos lábios, os que depois buscariam precipitar nas gemônias do desprezo. Eu, por mim, não sou coimbrão nem olisiponense, não recebo santo nem senha para vir papear em raso; lamento os desvarios, e tremo pelo decaimento literário.

Estas disputações de nomes e de pessoas não decidem nem esclarecem. Podia o sr. Castilho, como escritor, valer tão pouco quanto no-lo afigura o autor das Odes modernas, que estas nem por isso subiriam nem mais um furo na bitola da boa crítica. A questão, por agora, não consiste em dissecar as obras do sr. Castilho, em lhes fazer uma análise rigorosa, em as submeter a uma estrita química-literária, para averiguar as doses de bem e de mal que elas encerram. A questão reduz-se em saber qual é o pensamento salutar, benéfico, grandioso, regenerador e depurativo que vai no lábaro destes campeadores famosos; qual o seu mote, o seu ficto, a sua aurora. A questão é saber se o ideal na arte significa apenas um revolutear de bugiarias teutônicas; se a humanidade se há de redimir sob as aspersões de Vico, ou se consta que a Ciência nova tenha preparado os melhores cidadãos da república. A questão é provar que a suavidade, a singeleza, a graça, o lirismo no verso, devem de ser imolados à dureza, à enfatuação e ao obscurecimento; que um soluço é ridículo ante o bravejar de um possesso; que as lágrimas de uma criança não valem o falerno das antisterias; que os anjos têm de cercear as asas para se ensambenitarem de filósofos. Eis o ponto, eis o campo, eis o assumpto em resumo.

Queimai toda essa literatura aprazível e deliciosa por onde o coração humano se tem espraiado em lautos séculos; fazei um auto-de-fé à vossa porta, não à semelhança do Cura de Cervantes, para desbaste de parvoiçadas e de truanescas fantasmagorias, mas como o de Omar, para testemunho de horror às boas obras; aquentai-vos em volta dessa fogueira imensa; e quando das maiores glórias do espírito humano só restar o fumo e a cinza, levantai um altar a todos esses inovadores do subjetivo e da transcendência, e anunciai a redenção dos povos.

Deixemos a filosofia nos seus recessos de meditação; sigamos a arte nos seus arrobes de entusiasmo. Para que despir a musa dos seus véus flutuantes e imprensá-la numa garnacha ponderosa? Cumpre acender no coração a chama dos nobres afetos; cumpre levar ao espírito o fogo das aspirações remontadas. O poeta é o sublime enviado do futuro, que vem preparar a geração de hoje para o amanhã grandioso e prospero. Como se há-de levantar e moralizar este ignorante enorme que se chama a humanidade? o que entende ela das vossas filosofias? de que lhe servem as vossas saraivadas-germânicas? Cantai-lhe o amor: comovei-a até as lágrimas, impeli-a até o sacrifício.

«Fais ce que tu voudras, qu'importe!

Pourvu que le vrai soit content,

Pourvu que l'alouette sorte

Parfois de ta strophe en chantant;

Pourvu qu'en ton poème tremble

L'azur réel des claires eaux,

Pourvu que le brin d'herbe y semble

Bon au nid des petits oiseaux!»

Aí tendes compendiada nestas duas quadras toda a arte poética moderna. Não duvidareis de certo da autoridade do mestre, não o repelireis do vosso grêmio. Fazei o que vos aprouver, celebrai na estrofe o que vos agita, eternizai no hino o que vos inflama, mas sede humanos, naturais, inteligíveis; deixai que vos compreendam, deixai que nos vossos cantos se perceba uma nota desse murmúrio inefável, que principia no frêmito da relva e que termina na música das esferas.

Que novo sistema de poesia tendes em mente estatuir? porque caminhos desconhecidos quereis agora levar a arte? qual é a vossa coluna de fogo, é a inspiração ou a simbólica? qual é o vosso modelo, Creuzer ou o Homem? Sacrificai ao povo; descei das abstrações e pousai nas realidades.

Tendes isso por deslustre? pensais que a poesia desce a certas almas para depois se erguer delas em fragrâncias inúteis? Nunca, nunca, nunca. «L'amphore qui refuse d'aller à la fontaine mérite la huée des cruches.» — O poeta é o anjo do bem posto ao serviço da humanidade. Ésquilo diz estas palavras: « — Desde todo o princípio o poeta serviu o homem. Orpheu ensinou o horror do assassínio, Hesíodo a agricultura, o divino Homero o heroísmo, e eu, depois de Homero, cantei Pátroclo, para que todo o cidadão procure imitar os grandes homens.» —

Afeiçoai ao nosso século esta máxima eterna, ensinai aos homens, não as subtilezas que vos prendem, mas o amor que gera a família e que alimenta a liberdade.

Aí tendes a missão dessa deusa de olhos azuis e de tranças louras contra a qual vos rebelais acinte. Em quanto os vossos pensadores cavavam e alqueivavam a grande leira da ontologia, e ao cabo de uma noute perdida em cogitações misteriosas deixavam cair a fronte calva e extenuada sobre os in-folios obscuros; enquanto eles discutiam o incompreensível, e atacavam de frente o desconhecido, à semelhança do pajem da balada que limpava a sombra de um cavalo com a sombra de uma escova; em quanto bracejavam furiosos, procurando rasgar as brumas que lhes encapotavam o espírito; ela, a deusa, a musa do idílio e da canção amorosa, do rompante bélico e da endecha suave, ela, a inspiração, o anjo, atravessava o mundo radiante e carinhosa, alentando o fraco, abençoando o inocente, recebendo a prece da órfã para a elevar a Deus entre cânticos, amando, padecendo, trabalhando por todos, — fazendo romper o sol da consolação e da esperança do seio do vasto mar das lágrimas humanas!

Perguntai à Grécia antiga o que sabia ela da filosofia eleusíaca? Sócrates declarava não perceber Heráclito. Perguntai à própria Alemanha o que julga ela de Herder ou de Scheling; responder-vos-á pensativa, e como a Carlota de Werther: — «Klopstock!» —

III

Quererei eu dizer com isto que tenho a alta filosofia por inútil? Oxalá que o não suspeitem. Creio nos transcendentes como poderia crer nos alquimistas. Estes perseguem o absoluto sobre a terra, procuram a pedra filosofal e a panaceia universal, e encontram ao cabo desta navegação nas sombras, o ópio, o mercúrio, o zinco e o antimônio. Porque não há de a filosofia, descobrir também verdades importantes, quando procura alucinada entrever os grandes segredos do abismo?

Não; o que eu quero só é que a arte se manifeste, isenta destas preocupações terríveis. A poesia é como a mocidade, alegre, entusiástica, expansiva, boa, amando a luz do céu e as flores da terra, brincando por entre as ramas floridas, revendo-se nos lagos tranquilos, crendo, esperando, pensando no alvorecer que há de apontar talvez mais belo, nos botões das rosas que hão de desabrochar perfumados, e balbuciando depois aquelas preces que lhe ensinaram no berço entre sorrisos e afagos. A poesia enfatuada e superlativa é a criança doutorona, que em vez de folgar discute, que se amesenda entre os velhos, que lenta engrossar a voz aflautada, e que, se não usa cabeleira é só com medo que o rapazio do bairro se lhe divirta com o rabicho. Deixemos lucubrar os filósofos e cantar os poetas; não queiramos ensinar os rouxinóis a salmear o de profundis. Os que aparecem com a inspiração na fronte, passam, levados pelo sopro divino, deixando cair sobre a terra os germens que hão de frutificar mais tarde. Que lhes importa a eles toda essa algaravia de vocábulos? o que entenderiam dela? Oh, que admiráveis preleções de cosmogonia deve fazer o monte Branco? como as estrelas hão de falar de Kepler e de Newton!

E esta pobre da natureza, que há não sei quantos mil anos se veste de primaveras, a julgar que é grande cousa porque amadurece o trigo, porque enfolha as oliveiras, porque desdobra os rios, porque inflama a aurora, e porque ensina os passarinhos a chilrear na copa das árvores. Tola, tola; que sabes tu das mônadas? que pensas do átomo? que ideia formas da sindérese? E a transumanação, e o simbolismo, e a ascese da via purgativa, e o palavreado, e Kant, e Fichte, e as ostras de Hamburgo? Que tens tu feito com os teus cantos? de que nos servem os teus perfumes? Vai longe o tempo em que os Anteus da poesia procuravam no teu seio a força e a vida; hoje, a nova escola, a que há-de terraplenar e amanhar tudo, percorre o espaço, não cingida de festões de rosa, mas envolta em uma impenetrável neblina.

Sejamos, todavia justos; a escola de Coimbra desce algumas vezes insensivelmente da sua peanha transcendental, e põe-se ao nível dos assumptos comezinhos. O seu melhor poeta, ou, para nos expressarmos com verdade, o seu único poeta, não deixou de banda a musa que lhe segredava estes versos:

 — Se a visses à janela

Cuidando em seu bordado!

Pudesses, como eu, vê-la

De traz do cortinado!

....................

....................

....................

E se à janela, triste,

Vem pôr sua gaiola,

Se vem deitar alpiste

No comedouro à rola?

Ai rola, quem pudesse

Gozar os teus carinhos;

Que a vida me parece

Um tálamo de espinhos.» —

Nada mais infantil nem mais gracioso, nada mais simples nem mais belo. Sente-se uma pessoa desafogar interiormente quando recita estes versos. Uma criança que deita alpiste a uma avezinha querida enche de aroma um idílio; Júpiter franzindo o sobrolho enche de majestade uma epopeia. Um gesto, um sorriso colhido entre os lábios, um volver de olhos triste, a vermelhidão do pejo afogueando um semblante, eis a simplicidade e ao mesmo tempo a poesia. Dante nunca subiu tão alto como quando descreveu uma leitura entre dois amantes. Onde foi ele buscar o segredo daqueles encantos, a singeleza daqueles traços, a paixão daquelas falas? Ensinou-lhes a filosofia ou o seu coração ardente? vieram-lhe das profundezas da ciência ou de uma recordação de Beatriz?

 — «Noi leggevamo un giorno per diletto

Di Lancilloto come amor lo strinse:

Soli eravamo e senza alcun sospetto.

Quando chegardes àquele terceto assombroso de verdade e de candura, em que depois do primeiro beijo eles fecham para sempre o livro,

 — «Quel giorno pui non vi leggemmo avante,» —

abjurai a metafisica moderna, ou, se o não poderdes fazer, ide então, novos Édipos, decifrar o

Rafael mai amech isabi alini

que o poeta põe na boca de Nemrod!

IV

Deixemo-nos de distinções fúteis, de demarcações impossíveis, de banalidades pueris; em literatura só pode haver uma escola — a da verdade. Ninguém inventa, ninguém inova; todos exprimem, todos modelam, todos traduzem, todos sublimam na forma. A humanidade é o solo imenso sobre que o poeta levanta os seus monumentos. Todos eles são feitos do mesmo bronze, todos eles transudam as mesmas claridades. No frontal dessas moles altíssimas o arquiteto grava o seu nome, imprime o seu cunho, chancela a sua obra, e deixa-a às gerações. O Panteão é de mármore como a catedral gótica; naquele há, todavia, a simplicidade correta, nesta os enredamentos e as laçarias caprichosas. De que diferente espécie são feitos esses portentosos edifícios que se chamam o Livro de e a Ilíada? Não saem ambos da natureza? não respiram o mesmo calor de afetos, não revelam o mesmo alevantamento de espírito? Em que se distinguem? o que os estrema? o que os separa? Depois da Ilíada não surge a Oréstia? depois de Jó não aparece Shakespeare? O que divide ainda estes daqueles? Helena é porventura uma inovação ou Clitemnestra um improviso? Jó carpindo-se no muladar é acaso uma lição ou Hamlet é apenas um desvario?

A originalidade na arte é a individualidade na forma. A poesia é tudo quanto é verdadeiro, simples e harmonioso; o grande problema de hoje é a produção do real no ideal, a pintura exata da humanidade alcançada por meio do engrandecimento do homem. Os verdadeiros poetas, os gênios, não inventam. São imensos, são multíplices, tem o azul do céu e a escuridão da treva, o suspiro e o bramido, a alegria e o desespero, as flores e as rochas, a vida e a morte. Por isso V. Hugo os compara ao oceano. Quem inventa é Davenant, é Jerônimo Baía, é Chapelain, é o padre de Saint-Louis. Os gênios são a verdade radiante; os medíocres são o artificio abstruso. A Madaleneida é mais original que o Otelo; a heroína do reverendo carmelita excede no descomunal das formas a trivial, a ramerraneira, a naturalíssima verdade daquele eterno tipo de Desdêmona.

Que significa, pois, o entono com que falais no ideal? O que entendeis por esta palavra? O lirismo apaixonado, o arrebatamento épico, a verdade esplêndida, o incitamento à virtude, o amor da glória, o anjo saindo do homem, o bem santificando o belo? Não! O que hoje se adora, o que hoje se diviniza, é esse mesmo ídolo eterno do fetichismo literário — Vichnou de inúmeras encarnações, que em todos os séculos tem tido o seu cortejo de bonzos.

«Ideal, ideal; — ouço eu bradar o coro dos levitas que vão levando em peso a arca santa da moderna civilização — ponham-se de banda esses arrulhos de pomba, aquentem-se os fogões dalém do Reno com toda essa farraparia inútil que principia no Cântico dos Cânticos e que vem até as Folhas Caídas: sepulte-se no enxurro das frioleiras quanto respirar a perfume dos balsedos e a grata fresquidão da relva luzente, começai pelo livro de Ruth e acabai no Pastor fido. Sede homens, sede reformadores, a sociedade carece de sangue novo, o espírito lateja nas ânsias do absoluto. O nosso Deus não é o «pai que está no céu» — pffu!... o nosso Deus é o infinito. Svedenborg é o seu profeta. Caminhai, progredi, solevantai-vos da terra, sacudi do calcanhar os limos mundanos, quebrai o ergástulo, espedaçai o involucro que vos estringe,

 — «Atai as mãos ao vosso vão receio.

soltai o rumo, navegadores do abismo! O amor é uma parvulez efêmera, a saudade um fumo que nos enturva, o entusiasmo uma sobrexcitarão de néscios. Hegel aperta as nádegas possantes para rir às gargalhadas dos colóquios de Paulo e Virginia.

Derroca-se o mundo velho, desmoronam-se os poemas inteligíveis, escalavra-se o vocabulário terreno, Quijote encancha-se nos largos ombros do Sancho materialão e positivo, e acomete os Guaramantas adversários. Arraiam-se os horizontes com os primeiros albores do dia novo, les diables s'en vont, isto é, desaparecem os cantores pedestres; a imensidade reboa ao galopar de ginetes que se aproximam. Vencemos Alarico! Temperem-se os alaúdes, afinem-se os saltérios, e o canto dos bardos glorifique as nossas façanhas!»

 — «Bárbaros, bárbaros!» — diz então uma voz que se chama a consciência!

V

Finalizemos por agora. Traçando estas breves considerações sobre a atual polemica literária não tive em mente agredir nem este nem aquele bando, mas simplesmente dizer o que penso a respeito do assumpto que se debate, dando de mão a incidentes. Não quis, tampouco, assumir o papel de propugnador de A. F. de Castilho; tenho para mim que defendê-lo seria injuriá-lo, seria duvidar da robustez daquele talento. Ele bem sabe que há ateus na arte como os há na religião; — homens que negam a divindade. Que se lhes há de fazer? punir-lhes a descrença com a tortura? nunca. O crê ou morre é a razão suprema da tirania estupida. Quando alguém ousa profanar o altar ante o qual deveria curvar-se respeitoso, cumpre admoestar o pagão, e catequizá-lo em seguida.

Quem são esses gigantes que ousam escalar o céu, sotopando os montes, e encomiando-se neles com a mais esbagaçada pantalonice? Ressurgiram Efialto e Briareu, ou os vulcões espirram no estrebuchar destes filhos da terra? Nada é de certo. Os gigantes dormem, e os deuses permanecem. A serenidade majestosa é o característico destes últimos. Aplaudo a longanimidade do sr. Castilho; mais lhe aplaudiria ainda o silêncio completo. Ninguém o maculou, ninguém o ferio; passe a mão pelo rosto e verá que o sente incólume. As balas rojaram-lhe pelos pés, frias e inofensivas. O arcabuz que as despedira não tinha alcance para tão alto. Que há novo nestes acometimentos audaciosos? Estamos, principalmente, numa época de reação; o fermento da filosofia anda a levedar por todos os lados; a arte sente-se trabalhada pelas ânsias de um parto laborioso. Teremos um Deus ou um murganho? Volvamos os olhos para o oriente, proclamemos a luz, combatamos a obscuridade; eis tudo. A escola de Coimbra, (não façamos questão sobre este vocábulo escola), parece estar convencida que o belo é o inextrincável, que os gênios devem fazer-se ouvir, como os heróis de Ossian, através dos nevoeiros. Eu creio o inverso; o que aí fica dito é, portanto, a minha carta de crença literária. Lamento as inteligências que se trasmontam como as ovelhas que se trasmalham. Se eu fosse pastor nas letras tresnoutar-me-ia para as encarreirar. Que fazer além disto? como adoptar outros alvitres? Este tumulto que se levantou, e que por desgraça tem tomado um corpo desmedido, só pode terminar pelo convencimento. Antes disso a luta há de padecer do mal de todas as lutas. Quando as armas da razão se quebrarem nas mãos dos combatentes, ficar-lhes-á nos lábios o praguejar insultuoso. Não queiramos para nós este recurso.

Dois ou três mancebos em cujo espírito fez moça a rajada da filosofia, seguiram com ela, fazendo a sua derrota em demanda de novos mundos. Adverti-los era tarefa de piloto experiente. Fê-lo, não sei se com aspereza, mas ao certo com verdade. Os modernos descobridores sublevaram-se, e feriram o céu com uma celeuma desatinada. Começou então a contenda. Nas águas que primeiro sulcaram alguns bergantins de pequena guinda, navegam já hoje galeões alterosos. Que significa, todavia, esse pavilhão que tem por mote = dignidade e independência = que os sinaleiros do infinito içam ao tope do arvoredo? Quem lhes disse a eles que se lhes quer beliscar no foro íntimo de escritores? quem lhes pregou a servidão como evangelho do poeta? quem pensa em que as águias tragam ao pescoço um trambolho, como os cães por tempo de vindima? Ninguém, que eu saiba. O que se diz, o que se afirma, o que se protesta é que as teorias ensarilhadas da Alemanha, que vieram até nós fazendo escala pela França, nem lá tem estorroado grandes caminhos para o futuro, nem por cá farão milagre; é que o poeta não tem que jurar a cada momento por Michelet, como os teutões por Hermann, nem deve ensinar a derrubar a santidade das crenças para erguer nesse trono devoluto uma quimera de treslidos, um ideal avariado.

O que se diz, o que se afirma, o que se protesta é que a arte, no alto sentido desta palavra, só deve ter por fim dissipar o que é nuvem, lavar o que é macula, levantar o que é rasteiro, arejar o que é fétido, alumiar o que é sombra, robustecer o que é anêmico, limpar dos cogumelos do ateísmo risível a planta nascente que se apruma para o céu. Ninguém vos quer enfeudar, ninguém atenta contra a vossa dignidade de homens de letras. Pensais edificar para os séculos e trabalhais para o esquecimento; julgais fazer a luz e amontoais as trevas. A vossa obra é como o abismo de Milton,

 — «A dungeon horrible on all sides round,

      — yet from those flames

No light, but ralher darkness visible.» —

Desta apreciação, deste modo de julgar a nova escola que tende a implantar-se entre nós, tem resultado as vaias descompostas, e as censuras bem cabidas. Desprezar aquelas é dever, aceitar estas prova é de discernimento e de cordura. O afã com que a maior parte dos nossos escritores, (e alguns de primeira grandeza), anda envolvida nesta pugna, diz bem alto aos pachorrentos que ela não é tão frívola como isso. A faísca pode tornar-se incêndio, como a raiz pode converter-se em floresta. Defendem-se as imunidades da arte como se defendem as da pátria; os sacerdotes do belo vigiam pelo seu culto.

Eu, sem ter vaidades tresloucadas, entendi que poderia vir também a público, não de mitra e báculo, para exorcismar os energúmenos, mas como simples leigo, que, se não destrinça ainda bem todos os mistérios do rito, tem, pelo menos, fé viva na religião dos seus maiores.

FIM


CATALOGO CRONOLÓGICO

DOS OPÚSCULOS PUBLICADOS ATÉ HOJE

SOBRE A ATUAL

QUESTÃO LITERÁRIA

1 — A. F. de Castilho — Carta ao editor A. M. Pereira sobre o Poema da Mocidade, impressa no fim do poema (Esta memorável carta de crítica literária é que suscitou a famosa questão que se está debatendo) 1 vol. broch. 600

2 — Antero do Quental — Bom senso e bom gosto, carta ao exmo. sr. A. F. de Castilho, 3.ª edição, br. 100

3 — M. Pinheiro Chagas — Bom senso e bom gosto, folhetim a propósito da carta que o sr. Antero do Quental dirigiu ao sr. A. F. de Castilho br. 100

4 — Manuel Roussado — Bom senso e bom gosto, resposta à carta que o sr. Antero do Quental dirigiu ao Exmo. sr. A. F. de Castilho, br. 100

5 — Elmano da Cunha — Carta em resposta a outra bom senso e bom gosto dirigida por Antero do Quental ao Exmo. sr. A. F. de Castilho o incomparável tradutor dos Fastos de Ovídio, obra em que se faz o confronto de Romulo e Jesus-Cristo, oferecida ao incomparável duque de Saldanha, br. 100

6 — Júlio de Castilho — O sr. António Feliciano de Castilho e o sr. Antero do Quental, 2.ª edição, br. 160

7 — Teófilo Braga — As teocracias literárias, br. 100

8 — Antero do Quental — A dignidade das letras e as literaturas oficiais, br. 160

9 — Rui de Porto Carrero — Lisboa, Coimbra e Porto e a questão literária. — A carta do sr. Antero do Quental ante os srs. Pinheiro Chagas, M. Roussado e Júlio de Castilho, 2.ª edição, br. 160

10 — A. Ferreira de Freitas — Os literatos em Lisboa — poemeto ilustrado por Jeronimo da Silva Motta, bacharel nas faculdades de teologia e direito, br. 240

11 — Amaro Mendes Gaveta — O mau senso e o mau gosto — Carta mui respeitosa ao Exmo. sr. A. F. de Castilho em que se fala de todos e de muitas pessoas mais, com uma conversação preambular por Gaveta Mendes Amaro, br. 100

12 — S. de A. — Bom senso e bom gosto — Carta de boas festas a Manuel Roussado, br. 100

13 — J. D. Ramalho Ortigão — Literatura de hoje, br. 100

14 — Camilo Castelo Branco — Vaidades irritadas e irritantes — opúsculo acerca de uns que se dizem ofendidos em sua liberdade de consciência literária, br. 200

15 — Augusto Malheiro Dias — Castilho e Quental — reflexões sobre a atual questão literária, br. 100

16 — Urbano Loureiro — Questão de palheiro; Coimbrões e lisboetas, br. 100

17 — Ermita do Chiado — Garrett, Castilho, Herculano e a escola coimbrã, ou dissertação acerca da genealogia da moderna escola, contendo um esboço rápido e pitoresco da literatura contemporânea, br. 100

18 — C. F. — A literatura ramalhuda a proposito dos srs. Castilho e Ramalho Ortigão, br. 100

19 — A. F. de Castilho e J. A. de Freitas e Oliveira — A questão literária — a propósito do jazigo de José Estevão, br. 60

20 — José Francisco — Os coimbrões; questão em que também entra pelos cem réis, José Francisco, caiador da rainha do Congo; com uma dedicatória por Diogo Bernardes, br. 100

21 — José Feliciano de Castilho — A escola coimbrã. — Cartas ao redator do Correio Mercantil, do Rio de Janeiro (este folheto contém as três primeiras cartas; as seguintes formarão outro folheto que já está no prelo), br. 100

22 — Eduardo A. Vidal — Guelfos e gibelinos. Tentativa crítica sobre a atual polemica literária, br. 100

23 — P. W. de Brito Aranha — Bom senso e bom gosto. Humilde parecer com uma carta do Exmo. sr. A. F. de Castilho, br. 100

24 — Eduardo Salgado — Literatura de amanhã, duas palavras ao sr. Antero do Quental, br. 100

25 — Carlos Borges — Penna e espada, duas palavras acerca da Literatura de hoje, de Ramalho Ortigão br. 100

26 — Anônimo — Antero do Quental, e Ramalho Ortigão, br. 100