Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Novos ideais, de Múcio Teixeira


Edição de referência:

TEIXEIRA. Múcio. Novos ideia.

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1880.

MUCIO TEIXEIRA

___________

NOVOS IDEAES

POESIAS

COM

INTRODUCÇÃO DO DR. SYLVIO ROMÉRO

RIO DE JANEIRO

TYPOGRAPHIA NACIONAL

__

1880

AO MEU AMIGO

Dr. José Antônio de Azevedo Castro

Homenagem ao Caráter e ao Talento

Rio de Janeiro, Dezembro de 1879.

Múcio Teixeira.

 

ÍNDICE

Introdução

Flores do pampa

I          Flores do Pampa

II         0 Pampa

III        Crepúsculo matinal

IV        A sesta

V         Desejos

VI        Viajando

VII       Chinoca (poema da serra)

VIII      Os Farrapos

IX        Na estância

X         No pouso

XI        Canto do monarca

XII       Ao violão

XIII      Gauchadas

XIV      Nostalgia

XV       0 Viajante

Vivandeiras

I

II

III        ?

IV        A glória

V         O infinito

VI        Osório

VII       Ao Visconde do Rio Branco

VIII      Colombo

IX        Os socialistas

X         Aos poetas líricos

XI        A guerra do Parnaso

XII       Ganganeli (Clemente XIV)

XIII      Canto de Nero

XIV      A vida e a morte

XV       A noite das visões

Sonâmbulas

I

II         Sub umbra

III        Nostalgia... ideal!

IV        Amar!

V         Ada

VI        Estrofes soltas

VII       Folhas da minha carteira

VIII      Íntima

IX        Nada

X         A pecadora

XI        A luva

XII       As mães

XIII      A Lídio

XIV      Páginas de um cético

XV       Sultão (poema histórico)

Páginas de boêmia

I          Profissão de fé

II         Ontem e hoje

III

IV        Embarcado

V         A Viscondessa

VI        És bela

VII       Tu e eu

VIII      Rosas de Campoamor

IX        Dançando

X         À página 320

XI        No Cáucaso

XII       Quadro de F. Mayster

XIII      Tipos sociais

I            O barão

II          A baronesa

III         O dandy

IV          A namoradeira

V           O padre

VI          A beata

XIV      A lenda dos amores

XV       Cantiga de Brander

XVI      Quando eu morrer

XVII     Soneto a lápis

XVIII    Parêntesis

XIX      Sonho alemão

Notas

Apêndice

 

INTRODUÇÃO

A LITERATURA BRASILEIRA

SUAS RELAÇÕES COM A PORTUGUESA; O NEO-REALISMO

I

Há na vida das nações certos momentos de caráter prático, em que elas como que fazem alto na tarefa que seu gênio lhes traçou, para prepararem o balanço dos resultados obtidos, das riquezas acumuladas.

Estas épocas, essencialmente críticas, produzem, ao invés do que geralmente se pensa, resultados positivos, e servem de orientação ao espírito dos povos.

O trabalho da produção popular, na sua generalidade, é inconsciente; a elaboração das ideias assemelha-se a uma vegetação mais ou menos vigorosa na medida da uberdade do solo. De envolta com as árvores frutíferas e úteis brotam plantas daninhas, que devem ser extirpadas do terreno. Desembaraçado o passo, os povos seguem outra vez o seu caminho, munidos de novas forças, secundados por melhores incentivos. Estes renovamentos do ideal das nações seguem-se sempre aos tempos de crise, em que a crítica depura a atmosfera intelectual, sufocando os germens parasitários, que ameaçam destruir o organismo público.

As velhas e cultas nações do antigo mundo têm assistido, por vezes, a esses fenômenos de renovação. O Brasil, depois de quatro séculos de contato com a civilização moderna, parece ter chegado ao momento de olhar para trás a ver o que tem produzido de mais ou menos apreciável no terreno das ideias.

Uma nação se define e individualiza quanto mais se afasta, pela história, do caráter das raças que a constituíram, e imprime um cunho peculiar à sua mentalidade.

A civilização, com ser uma só e cosmopolita, não sufoca, numa uniformidade monótona, os impulsos originais dos povos viris.

Neste trabalho de diferenciação nacional o brasileiro será tanto mais progressivo e autonômico, quanto mais, apropriados os germens úteis que legaram-lhe as raças que o constituíram, delas afastar-se, formando um tipo à parte, uma individualidade distinta.

A nação brasileira, se tem um papel histórico a representar, só o poderá fazer quanto mais separar-se do negro africano, do selvagem tupi e do aventureiro português.

Bem como no mundo físico corpos diversos e estranhos combinados produzem resultados distintos e inesperados, assim na história a combinação de raças diferentes numa só região vem a oferecer ao adiante o espetáculo das civilizações originais.

E inútil apontar exemplos que devem estar na mente de quantos hajam estudado as emigrações das raças e as civilizações antigas e modernas.

No Brasil o processo da integração nacional ainda é muito recente e está muito longe de ter produzido todos os seus resultados. Os dois grandes agentes de transformação — a natureza e a mescla de povos diversos — estão por enquanto ainda em ação, e o resultado não pode ser determinado com segurança. Em todo o caso já é tempo de lançar-se um olhar retrospectivo sobre a sua história intelectual, para marcar os primeiros traços da individualidade embrionária deste povo recente.

A literatura é uma das manifestações de sua atividade mental, e pode com proveito ser consultada como sintoma de seu progresso ou decadência.

Desde logo cumpre-me repetir ainda uma vez que não pertenço por forma alguma ao número dos bem-aventurados que julgam que o império da América vai às maravilhas.

Opino diversamente: o pobre povo brasileiro vai mal, muito mal, e entre as nações cristãs só um similar encontra na desgraça: — o desventurado e mesquinho Portugal.

Nós temos já alguns trabalhos relativos à nossa literatura deste e dos passados séculos. Todos porém pecam pela ausência de um critério positivo, a falha de uma ideia dirigente e sistemática.

Não é por certo a retórica do cônego Pinheiro, do professor Sotero, do conselheiro Pereira da Silva, ou do visconde de Porto Seguro e outros, que poderá nos explicar a significação de uma época ou de um tipo qualquer da nossa história. A ciência oficial é sempre manca, e o seu mérito é o mesmo das comendas que condecoram o peito de seus adeptos. Só uma outra fonte de ideias, despreconcebidas e sérias, nos poderá explicar o enigma, aliás simplíssimo, de nossa vida espiritual.

Compreende-se facilmente que me não compete neste lugar outra coisa além de rapidamente traçar a evolução intelectual brasileira.

Darei ligeiros toques sobre o caráter dos nossos quatro séculos, um por um, e dos escritores (só os de mérito) que neles figuraram.

0 capitulo preliminar de uma história da literatura brasileira, quando a escreverem com rigor científico, deverá ser uma inquirição do como o clima do País vai atuando sobre as populações nacionais; o segundo deverá ser uma análise escrupulosa das origens do nosso povo, descrevendo, sem preconceitos, as raças principais que o constituíram.

Sobre o clima dever-se-á notar, entre outras verdades, que, se nos faltam aqueles temerosos fenômenos, como os terremotos e os vulcões, que Buckle magistralmente descreve como causadores das superstições primitivas, se nos faltam também as montanhas gigantescas que excitam demasiado as imaginações, temos de sobra o calor e o flagelo das secas, que periodicamente tem assolado a mor parte do País, produzindo o desânimo. Assim, se o povo brasileiro não é dos mais fantásticos e supersticiosos do mundo, todavia é um dos mais desanimados e apáticos.

Sobre as raças dever-se-á ter o cuidado de não esquecer nenhuma delas, como, ainda não há muito, o fez o Sr. Th. Braga, que nas poucas páginas que escreveu sobre a poesia brasileira nem uma palavra disse das origens africanas de nosso povo[1].

Dever-se-á também evitar a leviandade com que este escritor persiste em repetir, como descoberta novíssima, a desacreditada teoria da existência de uma raça turana, a que filia, segundo o velho erro, os povos indígenas da América. Se o Sr. Th. Braga, em lugar de ler o católico Lenormant, estudasse Schleicher, Whitney, Fred-Müller, Vinson, não se daria ao trabalho de repetir a velha teoria de Max-Muller sobre o turanismo, nem viria apresentar como achado admirável o livro de Varnhagen sobre as origens turanas dos americanos[2].

O terceiro capítulo de uma história de nossa vida espiritual haveria de ser o estudo da possa poesia e contos populares em sua tríplice proveniência.

Não é ocasião disso agora.

Concentrando este esboço ao que diz respeito somente à poesia literária, devo passar de relance sobre as épocas transatas, para mostrar a filiação dos nossos poetas de hoje.

Há um fato, tão repetido entre nós, que constitui já um verdadeiro princípio para o estudo da nossa literatura: é o caráter de importação de quase todos, senão de todos, os nossos movimentos intelectuais.

Destarte não é possível escrever a história do pensamento brasileiro sem referi-la às literaturas que o têm influenciado até aqui: — a portuguesa, a francesa e, mui recente e limitadamente, a alemã.

No primeiro século (XVI) da descoberta e colonização do Brasil não houve aqui movimento algum cientifico ou literário. Em compensação, porém, começaram as relações das três raças que teriam de formar a população futura desta parte da América; principiaram elas a cruzar-se, foi-se operando a transplantação do romanceiro e dos contos portugueses para o Brasil, e também o entrelaçamento destes com os cantos e contos tupis e africanos.

Assim, os primeiros trabalhos históricos e topográficos sobre o País, e as primeiras investigações sobre a língua dos aborígenes, são desta época. Contudo os três elementos estavam ainda muito desagregados.

Na século seguinte (XVII) já as coisas mudaram de aspecto; já foram então possíveis dois fenômenos singulares: primeiro — a expulsão holandesa feita exclusivamente pela iniciativa dos filhos da colônia, quase sem o auxílio da metrópole; segundo — a existência de um Gregório de Matos.

O móvel principal do primeiro acontecimento foi, sem dúvida, um motivo religioso, o ódio à heresia. Mas é inegável que um certo sentimento de pátria já então irrompia do seio das populações brasileiras.

As três raças acharam-se representadas em seus respectivos heróis: os brancos em Barreto de Menezes, os índios em Camarão, e os negros em Henrique Dias.

Já era real também a existência do mestiço, representado em Calabar — o espírito mais inteligente do seu tempo.

A nossa história oficial fez de Calabar um renegado; é inegável entretanto que aquele mestiço compreendeu que, a continuar este País a ser uma colônia da Europa, era preferível que o fosse da Holanda a ser de Portugal.

E ele tinha razão...

A superioridade da pátria livre de Erasmo e de Spinoza era incontestável sobre a terra de João II, a terra dos inquisidores e da sujeição espanhola.

Quanto a Gregório de Matos, ele é o documento por onde podemos apreciar as primeiras modificações sofridas pela língua portuguesa na América e as primeiras manifestações do espírito nacional, onde predomina a veia cômica, despertada pelo espetáculo das relações de três povos diversos, que têm, cada um, certo timbre em chasquear dos outros.

No século XVIII o trabalho de integração popular tinha-se avantajado bastante. O comércio havia progredido; o conhecimento do País avançado. As três raças tiveram de quando em vez suas rivalidades e apareceram os fenômenos conhecidos sob o nome de Quilombos dos Palmares, Guerra dos Emboabas e dos Mascates.[3]

Acima de tudo isto a consciência nacional tinha progredido; a ideia da pátria como que amadurecera, e a Inconfidência vira a luz.

O espírito brasileiro é desde então um pouco avantajado ao português. A vis comica atua em Antônio José; a poesia lírica volta-se para a natureza e produz Gonzaga, infinitamente superior aos líricos da metrópole. A luta dos conquistadores e dos aborígenes desperta lambem o sentimento da verdade, e a epopeia torna-se naturalista com Basílio e Durão, imensamente preferíveis aos épicos do reino em seu tempo!

As formas líricas superabundaram. Nós demos então lições de naturalidade aos portugueses, que as desprezaram pelo órgão de Bocage e Filinto.

O Sr. Th. Braga, romântico recente e recente idealista sectário de Hugo, Michelet, Quinet, com a precipitação anticientífica, que o distingue, depois que leu Lenormant[4] abandonou o mosaralismo com que explicava o espetáculo da literatura portuguesa, e voltou-se para o turanismo: agora vê turanos por toda a parte!... Se existe uma poesia lírica no sul da Europa, é porque lá andaram os turanos; se este lirismo tem certos pontos de contato em diversos países... foram os turanos; se o Basco existe na Espanha... turanos; se os galegos têm um lirismo aproximado ao dos portugueses... turanos; se os cantos europeus passaram à América e ali conservam-se... é porque aí encontraram os seus irmãos de raça, os cantos dos tapuias, que eram turanos!... E isto em nome dos últimos avanços científicos, quando justamente os derradeiros achados da ciência desmentem a velha e ortodoxa teoria de que os americanos vieram da Ásia pela ponte alêutica ou pela Oceania.

As últimas afirmações de Lenormant, repetidas sem critério por Th. Braga, vêm a ser: — que as raças humanas se reduzem a três classes — turanos, semitas e arianos; que a civilização dos turanos precedeu as outras; que eles foram os descobridores dos metais.

Ora, a divisão de todos os povos da terra em três grupos é hoje insustentável depois dos novíssimos trabalhos da linguística e da antropologia; a existência de algumas civilizações, não semíticas ou indo-europeias, não produz só por si a prova de que elas fossem de uma só espécie e turanas; a descoberta dos metais, pelo que toca aos índios do Brasil, é justamente um argumento contra o Sr. Braga. Nossos índios desconheciam o uso dos metais; não tinham, portanto, a característica principal da pretendida raça turana. Para explicar, pois, a persistência das formas líricas no Brasil não é mister fazer dos índios uns grandes poetas, nem mascará-los de turanismo. A lírica existiu sempre entre todas as raças.

Arianos, semitas, uralo-altaicos, malaios, polinésios, dravidianos... todos conheceram o lirismo, como um produto espontâneo do espírito popular. Para isto não se faz mister inventar parentelas fantásticas de raças.

Para explicar também o fato do naturalismo poético dos brasileiros do século passado, devemos esquecer as aberrações de Th. Braga. O fato é simples: a presença de uma natureza brilhante, a juvenilidade da nação que se ia formando, o predomínio das faculdades imaginativas num povo criança, tudo isto explica o lirismo brasileiro. A variedade de seus tons prova-se pelas impressões diversas das três raças, que contribuíram, cada uma, com a sua parte. A uniformidade dos moldes métricos finalmente demonstra-se pelo fato de uma só ser a língua que foi predominando sobre as outras: a língua do vencedor, que imprimiu as suas formas métricas e estróficas às canções de todos.[5]

No século atual (XIX) nós precedemos os portugueses na vida revolucionaria e constitucional.

Antes de seu insignificante movimento de 1820, nós havíamos tido os sucessos de 1817; antes de terem eles uma constituição, mais ou menos liberal, nós a tínhamos; antes de se verem livres de D. Miguel, nós havíamos jogado D. Pedro para longe. Em uma palavra, eles nada possuem que se possa equiparar aos nossos ímpetos revolucionários deste século.[6]

O Romantismo marca, intelectualmente, o primeiro passo decisivo que fizemos para deixar de lado a cultura lusa.

Os nossos moços, de 1822 em diante, começaram a ler os escritores franceses e ingleses de preferência aos livros de Portugal.

E tinham razão: o velho reino havia feito completa bancarrota de ideias, e não tem passado neste século de ínfimo glosador dos desperdícios franceses.

Se continuássemos a pensar somente pelo critério dos livros de Lisboa, teríamos chegado, como eu já disse uma vez, à completa paralisia intelectual.[7]

A maior vantagem, a meus olhos, que nos trouxe o Romantismo, vem a ser o fato apontado: o seu maior defeito o ter pretendido concentrar exclusivamente, e em certo tempo, toda a poesia brasileira no círculo do indianismo.

Não devo repetir aqui o que em outro tempo escrevi sobre o romantismo brasileiro; ainda hoje aceito as conclusões de então.[8]

Pela ação da Independência, do movimento romântico e do enlarguecimento comercial, começamos a conhecer o mundo e vimos a figura mínima que Portugal aí representa. O velho reino perdeu definitivamente o encanto a nossos olhos.

Daí certa exasperação que se tem, de tempos a tempos, apoderado dos escritores portugueses no seu modo de tratar o Brasil e os brasileiros.

Os casos das Farpas e do Cancioneiro alegre são ainda muito recentes. Aí está um sintoma patológico evidente da apatia intelectual do velho reino. Esbofa-se hoje em objurgatórias estéreis, falhas de seriedade e de sentimentos elevados.

Entretanto o espírito imparcial irá descobrir que neste século a poesia lírica brasileira excede a portuguesa em brilho e verdade. Th. Braga reconhece este fato; é que este escritor, apesar de seus arrojamentos gratuitos, tem mais senso crítico do que o geral de seus compatriotas.[9]

O Romantismo no Brasil atravessou fases diversas: o primeiro momento foi de caráter religioso, ao gosto das Meditações de Lamartine. Gonçalves de Magalhães simboliza esta feição. Seguiu-se o nacionalismo à outrance, por meio do indianismo de Gonçalves Dias. Depois veio a época cética, à moda de Byron e Musset. Álvares de Azevedo e depois B. Guimarães, Junqueira Freire e Casimiro de Abreu são os seus melhores representantes.

Despertou em seguida o naturalismo báquico de Varela e outros. Estava ainda em vigor esta tendência, quando em 1862, no terreno do jornalismo, antes da reação de Coimbra, entre nós a escola do Recife reagiu contra os nossos pretensos chefes por meio de Tobias Barreto e seu discípulo Castro Alves.

Este movimento, de caráter revolucionário, propagou-se por todo o País, acordando decidido entusiasmo na escola de S. Paulo e no Rio Grande do Sul.

Dividiu-se depois em dois grupos, um crítico-cientifico simbolizado nos Cantos do fim do século, e outro que se chamou especialmente realista, mistura do gosto de Zola e Richepin com as ideias de Baudelaire.

Esta última formula conta como adeptos quase todos os novos poetas do Brasil, o que explica-se pelo atraente da besogne.

Esta é a ordem cronológica na sucessão dos diversos momentos da ideia poética neste século no Brasil.

É fácil, porém, de ver que alguns movimentos foram quase simultâneos. A ação de Varela, por exemplo, foi contemporânea da de Tobias. A ideia vareliana, contudo, é um tanto anterior à do escritor sergipano. Quando o cantor das Vozes da América   foi assistir no Recife ao aparecimento revolucionário de Tobias Barreto e Castro Alves, já ele levava um nome feito de S. Paulo, já tinha seu sistema completo, e foi rebelde à ação dos dois inovadores do norte.

O autor destas linhas, chegando ao Recife, achou Varela e Castro Alves ausentes, para pouco depois morrerem; e encontrou Tobias voltado para a crítica. Mas os acontecimentos eram recentes.

No seu tempo a escola pernambucana tomou as duas direções simultâneas acima indicadas: a dos Cantos do fim do século e a especialmente realista de Celso de Magalhães, Souza Pinto e outros.

É esta a tendência que predomina hoje no Rio de Janeiro e na escola de S. Paulo. Esta última, nos derradeiros cinco anos, conta uma plêiade brilhante de jovens de talento que vão levando decidida vantagem à sua rival do Recife.

O movimento emancipador e critico partiu, é verdade, da capital do norte; mas S. Paulo agora tem a primazia.

Não sei se vai nisto algum engano; mas, pelo que tenho lido, os continuadores mais inteligentes e aproveitáveis da nova fórmula da poesia nacional, com quem quisera estar de acordo, se certas ideias, que, talvez erroneamente, julgo mais exatas m’o permitissem, estão em S. Paulo.

O leitor compreenderá, sem esforço, o motivo por que insisto nesta circunstância, que parece mínima. É que os nossos mais alentados movimentos poéticos têm sempre partido do seio das nossas faculdades de Direito. A vantagem ora está numa escola, ora na outra. Por outro lado, nas artes, como a pintura e a música, neste século, levamos incontestavelmente vantagem aos portugueses.

Eles não têm nem um Carlos Gomes, nem um Pedro Américo ou Victor Meirelles.

Ainda mais, por nossa vivacidade, um pouco mais ativa que a dos portugueses, antes deles, nossa geração atual começou a estudar e a seguir as ideias de Comte e Darwin. Também os antecedemos nas longas viagens terrestres, como as de Couto de Magalhães.

A primeira coleção de contos anônimos publicada em língua portuguesa foi a deste viajante sobre as lendas tupis.

Os escritores brasileiros dos quatro últimos séculos podem ser divididos, na medida de seu mérito, em primários, secundários e ainda terciários.

Na primeira categoria só devem ser colocados aqueles espíritos de valor, que, por sua ação enérgica, representam um princípio qualquer de diferenciação nacional e de incentivo de progresso. Eu só conheço seis escritores neste caso no Brasil:

Gregório de Matos, que indica, pela sátira e pelo cinismo, um momento psicológico da luta dos três povos que iam constituindo a atual população do Brasil, e onde começa a consciência nacional a despontar; Gonzaga, que personaliza a transformação do velho lirismo português conservado na América; Durão, que nos faz aproximar da natureza, desprezando os moldes clássicos, e desperta a consciência brasileira, lembrando-nos que nós não éramos só descendentes de portugueses, mas que outras raças, como a dos caboclos, nos tocavam de perto; Martins Pena, que, achando já a pátria constituída, simboliza o ridículo popular contra a chata burguesia (herança portuguesa) dos tempos da regência e do segundo reinado; Alvares de Azevedo, que, por meio da poesia, lançou-nos na alma as dúvidas da velha Europa, indo procuraras suas inspirações sempre longe de Portugal, ensinando-nos assim o cosmopolitismo moderno; finalmente Tobias Barreto, que, como poeta, resume todos os outros, e, como crítico e político, despertou-nos de nosso atraso, retalhando bem fundo as chagas de nossas misérias de povo inculto e semibárbaro, provocando uma reação benéfica.

Fora destes seis, só conhecemos tipos mais ou menos secundários, sem grande individualidade, sem alto valor significativo.

II

É possível que a alguns leitores do Rio de Janeiro, ainda imbuídos de lusismo, afigure-se incontestável até hoje a grande importância das letras portuguesas. Nas províncias eu sei bem que ninguém mais jura na santa palavra dos pontífices do Tejo. Para o público fluminense atrevo-me aqui a depor ainda algumas notas sobre o desenvolvimento intelectual da antiga metrópole em face da antiga colônia neste século.

Sem entrar detalhadamente em questões de preferências, que são sempre decididas ao sabor de nossos caprichos, venho aventurar algumas reflexões que me não parecem destituídas de fundamento.

Tanto o Brasil como Portugal fazem mesquinha figura no quadro das nações cultas, e o movimento espiritual em ambos os países é quase insignificante.

Entre aquilo que é medíocre e quase nulo é obvio que se não deve muito distinguir.

Basta apreciar os dois momentos mais decisivos na vida pensante dos dois países neste século: a evolução romântica e a crítico-positiva.

Naquele, em Portugal, distinguiram-se muitos espíritos medianos, e os vultos de mais brilho foram: Herculano, Garret, Castilho, Mendes Leal, Rebelo da Silva e Castelo Branco.

Tais escritores, porém, que a nossa ignorância, a par da ignorância portuguesa, tem levantado à altura de semideuses, não passam de figuras de terceira ou quarta ordem, cotejados pelo padrão dos representative men da romântica europeia.

O próprio Herculano, o maior de todos, o que é ao lado de um Mommsen, de um Gervinus, de um Ranke, como historiador? O que é ele, como poeta, em face de um Goethe, de um Schiller, de um Byron, de um Hugo? Como crítico, religioso ou literato, diante de um Strauss, de um Taine? Como estilista, à face de um Renan, de um Thierry?... Creio que a idolatria de alguns portugueses não subirá ao ponto de duvidar na escolha, se é que de idolatras se pode esperar algum discernimento.

Nós outros, os brasileiros, nesse tempo tivemos os nossos: Magalhães, Gonçalves Dias, Azevedo, Alencar, Macedo e Varnhagen, que bem se podem pôr em paralelo com os portugueses citados. Não mui grandes, como são, pouco têm a invejar aos seus rivais lusos, se é que lhes devem invejar coisa alguma...

Se a História do Brasil de Varnhagen não é comparável à História de Portugal, Herculano, por sua vez, nada possui que se possa comparar ao trabalho do nosso historiador: Les origines touranniennes des Américains Tupis Caribes.

Na época atual de evolução e desenvolvimento crítico, tempo imbuído de ideias positivas, Portugal apresenta a mesma inferioridade diante da Europa culta.

O que são os seus Bragas, Coelhos, Cordeiros, Oliveiras Martins... em face da brilhante plêiade de jovens escritores alemães, ingleses e até italianos, que ilustram a época atual?

O velho reino não vai bem; a superioridade que supõe ter sobre nós é meramente ocasional e aparente. O que eles assim denominam não passa de mais um poucochinho de espírito literário proveniente de sua maior coesão social, que, por seu turno, é um resultado todo negativo, por ser filho da estreiteza do País.

Não é isso uma superioridade real e que os faça levantar a cabeça um pouco além do permitido.

Ainda mais, Portugal só tem uma vantagem sobre o Brasil e que dá grandes proventos aos seus: o contar neste País uma opulenta colônia, que, para fartar a nostalgia, é a principal consumidora de seus produtos.

A este império falta isto; o pouco que produzimos não é lido, nem tem saída no mercado à mingua de espírito literário e de coesão nacional.

Aos quatro corifeus portugueses, por último citados, temos a opor nossos escritores recentes: Couto de Magalhães como etnólogo, Barbosa Rodrigues como naturalista, Batista Caetano como filólogo, Ladislau Neto como botânico e Araújo Ribeiro (visconde do Rio Grande) como geólogo.

Não creio que a ciência esteja menos dignamente representada por estes ilustres autores do que pelos bons portugueses lembrados.

Se os nossos antagonistas os não conhecem, procurem minorar tal indigência pondo-se um pouco mais a par da evolução espiritual americana, para não abundarem em disparates quando houverem de falar a nosso respeito.

Dizem, porém, os encomiastas desajuizados das letras lusas que nada temos a opor, na órbita das ideias emancipadoras, a um Ortigão, um Eça de Queirós, um Guerra Junqueiro...

É simplesmente opiniático. Como já fizeram de Herculano um sem rival entre os historiadores contemporâneos, em breve irão fazer de Ramalho um comensal de Comte, de Spencer, de Buckle... quem sabe se não também de Häckel e Darwin?!...

O inocente autor de — Em Paris — escritor que melhor se tem distinguido por sua habilidade de panfletário nas Farpas, será de pronto transformado em um dos oráculos da ciência positiva!...

Nem tanto assim... Aqui também há livros e aqui também se estuda. Não nos queiram iludir com despropósitos. Nós outros também temos críticos e poetas, filósofos e escritores, munidos das novas ideias, que o positivismo e o darwinismo têm espalhado pelo mundo.

Também contamos anti-românticos e anti-metafísicos, e sectários entusiastas do monismo científico. São eles, para não falar de alguns outros: Tobias Barreto, de Pernambuco, Guedes Cabral, da Bahia, e Pereira Barreto, de S. Paulo, a quem podem adir os jovens escritores Miguel Lemos, Teixeira Mendes, Lopes Trovão e J. do Patrocínio.

Se alguns destes espíritos, que mourejam quase incógnitos nas províncias, são como inexistentes para o público fluminense, a culpa não é deles. Acusemos antes a nossa presunção, que nos leva a crer que o Brasil é a rua do Ouvidor.... que os nossos homens são somente os que fazem discursos no parlamento, para obterem as palmas dos enfastiados e os aplausos dos diletantes.

Se aqueles escritores, com todo o valor que os distingue, permanecerem obscuros, é que não vivem aos embates da claque fluminense, ou lisboeta, e diferente é o viver desgarrado pelas vastas províncias deste império do estar ao conchego amigável e animador que encontram os seus pares em Lisboa, por exemplo.

Assim, minha conclusão é que não há superioridade de Portugal para o Brasil; ambos os países têm o privilégio de produzir epígonos, ambos vivem adjujados à mediocridade que os distingue.

Para que então fazer seleções e ter preferências?

Tais paralelos, além de pecarem por falta de base científica, trazem sempre o sainete dos ódios nacionais, que se não devem avivar.

Não é meu empenho passar agora revista ao que no Brasil se tem escrito nos diversos ramos do saber humano; antes, porém, de concluir perguntarei aos portugueses:

—    Se tanto vos ufanais do vosso Herculano, e, por amor dele, já vos supondes tão distanciados de nós, que acreditais levar-nos vantagem pela inteligência, também haveis de levá-la nas artes: e onde estão os vossos — Carlos Gomes, Victor Meirelles e Pedro Américo?

Não os conhecemos; no mundo artístico executais o velho dito de Tácito: “Brilhais pela ausência.”

III

Eu disse algumas linhas atrás que a feição realista vai predominando hoje em nossa poesia, e é exato.

Não me sinto em disposição de espírito de vir tratar de novo desta questão, entre outros motivos, porque aceito o dito de Julian Schmidt: “É uma prova de incultura ainda vir hoje discutir sobre a questão vencida do idealismo e realismo.”[10]

Devo, porém, notar que esta última palavra foi mal escolhida pela nova, ou antes pela que se supõe nova, escola.

Sabe-se que a filosofia alemã contemporânea chama as atuais conquistas do espírito de realismo científico, o qual muito se distingue do pretendido realismo literário. Se, pois, o nosso realismo poético pretende pôr-se de acordo com as grandes vistas da ciência, não procurando ao menos contrariá-las, ele tem toda a razão de ser, e todos o acompanharão com fervor. Mas, se entende que a última forma que tomou o lodo do Sena, como também dizem os alemães, é a suprema e única verdade em literatura, ilude-se tristemente.

Se acredita que com retratos, mais ou menos descarnados, das podridões sociais, achou a última palavra da perfectibilidade, engana-se.

O velho sestro das pinturas afrodisíacas e picarescas é um antigo pecado romântico, amigo do passado, existente em todas as literaturas nas épocas de decadência.

Não seria difícil, partindo dos tempos antigos, agarrar esse pobre mono pela orelha, e através da Grécia, de Roma, da Idade Média, puxá-lo até Portugal e, no século passado, apreciar os seus esgares no celebre sétimo volume de Bocage!...

Neste século bem tolo será aquele que, compulsando as poesias, romances e dramas românticos, não descobrir as orelhas do macaco.

A afrodisíaca, a erótica literária, é velha como o Corcovado; e não era mister que Zola no-la ensinasse, a nós que a tínhamos de sobra nas galhofas de nossas mulatas e nas pilhérias do Álbum da Rapaziada.

Mas eu não desconheço que o realismo, o falso e pobre realismo, já preveniu esta objeção, que o feria de morte. Ele diz: “Aquilo que os românticos faziam por alegria, nós o fazemos por tristeza, isto é, eles deliciavam-se com a infâmia e nós queremos corrigi-la; eles a pintavam como consócios, nós a pintamos como adversários; eles a queriam perpetuar, nós a queremos extinguir!...”

Muito bem! Se assim é, ainda neste caso, o programa não é novo, nem é vosso. Vós sobre as pinturas escandalosas chorais algumas lágrimas de velho pessimismo... Deveis lembrar-vos que antes de vós, já Byron e Leopardi tinham esgotado esta veia.

Sim; a poesia, o romance, o drama, a literatura toda enfim, deve ser realista, quero dizer — deve estar de acordo com a natureza, com a verdade, com a ciência; deve ser um eco fiel da verdade humana.

Ora, esta é múltipla, variada, complicadíssima, tem aspectos diversos, e, por certo, a sua face mínima é a que o neo-realismo apanhou, para sobre ela estender-se.

Eu não contesto a veracidade de muitas das cenas dos livros da nova escola. O defeito desta, porém, está em ter-se voltado para certo lado da montanha e supor que dali descortina todo o céu.

Sempre que uma fórmula só da realidade, um lado exclusivo dos fatos, pretende impor-se pela verdade toda, temos aí um fenômeno de pouca duração. A natureza reage e o sistema cede. É o que se deu com o romantismo: entendeu que devia chorar de mais, e acabou por ensandecer.

O mesmo acontecerá com o neo-realismo. Acabará reumático, como um sandeu tornado impotente pelas orgias.

A boa poesia é aquela que tem uma nota para todas as harmonias humanas. A tristeza, a alegria, a dor, o entusiasmo, o crime, a honra, a virtude, a devassidão, todas as faces da vida humana podem e devem ser vistas.

O bom realismo é aquele que interpreta tudo isto. O mau — aquele que vive a rimar fingidos casos eróticos, sem graça e sem elevação, desgostando-nos até das doces ilusões da matéria. Oxalá que alguns soubessem repetir a realidade da beleza prostituída; mas nem isso!

Uma obra de arte é tanto mais ideal quanto mais fielmente reproduz a realidade. É um conceito velho e verdadeiro.

Por que é que se diz que uma estátua de Fídias representa o ideal na arte respectiva? Justamente porque o célebre estatuário reproduziu a verdade das coisas. Por que é que uma lei astronômica de Newton é o ideal na respectiva ciência? Porque uma lei concebida pelo grande sábio é uma fórmula compreensiva e explicadora da evolução natural dos astros. O que de mais ideal e ao mesmo tempo mais real do que um axioma geométrico?

Nenhum homem de bom senso admitirá, pois, que, na hora atual, toda a humanidade tenha ingerido uma boa porção de cantáridas e esteja toda ela... entregue às seduções de Afrodite!

Já veem os nossos talentosos rapazes de hoje que o círculo da poesia é muito vasto e não se abrange todo ele só com o raio do que dispõem.

“0 romancista, o poeta, deve estudar o homem no seu trabalho.”

Fecundas palavras de um autor germânico, que exprimem o grande, o bom realismo. Mas... isto não nos veio de Paris, e nós preferimos ainda faire l’amour à francesa....

IV

Todas estas ideias me ocorreram pela leitura dos Novos ideais do Sr. Múcio Teixeira.

Este poeta, já vantajosamente conhecido entre nós, filia-se um pouco ao realismo em voga.

Um pouco, disse eu, para fazer notar que ele não está de todo eivado pela moléstia.

Não vá algum leitor menos atento supor que, assim me exprimindo, defendo os direitos de uma célebre seita que aí anda intitulando-se idealista. Meu intento é outro; advogo o largo realismo contra o estreito, e, posto este em face do idealismo aleijado, eu o aceitaria de preferência ao último.

Quando digo que Múcio Teixeira não está de todo devastado pelo mal, quero expressar que sua lira tem outras cordas, além da hoje vibrada por moda, isto é, ele não amputou a verdade.

Assim, em seu belo livro, a primeira parte, sob o título Flores do Pampa, muito me agradou, porque é realista, mau grado a moda, quero dizer, exprime a verdade da vida pampeana pelo seu lado inocente e sério.

O poeta não teve necessidade de encher aquela parte do seu livro de almas enfermas e de pernas e corpos nus...

E ele fez bem.

Múcio Teixeira é homem de seu tempo, e obedece às inclinações da época; é também homem de seu país e não esquece o meio em que há vivido. Seu livro acusa este dualismo a que obedecem sempre os bons poetas.

Esse moço tem já produzido e publicado muito, e conta apenas 22 anos de idade. Seu espírito é generoso e franco; seu talento aberto a nobres impulsos.

Seu temperamento é e será sempre o de um poeta. Dificilmente tomará outra direção.

Nem ele deve fugir ao seu destino; no meio do nosso pavoroso epigonismo literário, está predestinado a representar um grande papel.

Múcio Teixeira é um cimo no meio de algumas dezenas de rapazes, que aí vivem a fazer... alexandrinos cheios de párias, de crimes esverdeados, de alcouces e barregãs, e outras tantas palavras obrigatórias, depois que se lhes meteu em cabeça que o português Guerra Junqueiro é um grande vulto que deve ser imitado.

Bem cego, porém, é quem custa a ver que Junqueiro não fez mais do que pegar no ar algumas cediças ideias socialistas e revesti-las da velha forma eriçada de Victor Hugo em decadência.

Se o desejo é seguir a forma do belo lirismo do Hugo dos bons tempos, não será então preciso atravessar o Atlântico para ouvir Junqueiro.

Nós, antes dele, tivemos as arrojadas produções de Tobias Barreto e de Castro Alves.

Múcio Teixeira parece ter recebido sua atual intuição literária do português citado.

Pela forma já disse que era inútil tê-lo feito; quanto ao fundo, soi-disant moderno e exato, aquilo é moeda velha entre nós. Desde 1868 deu o que podia dar na escola do Recife, nas mãos de Celso de Magalhães, de Souza Pinto e outros.

Deixemos Portugal em descanso e estudemos o nosso País e a culta Europa, que não será pouco.

Nesse rumo teremos muitos frutos a colher, e Múcio Teixeira, se o quiser, há de ser dos mais avantajados na faina.

Seu último livro é uma realidade; mas seu talento promete ainda mais.

Rio de Janeiro, Outubro, 1879.

SYLVIO ROMÉRO.

 

PRIMEIRA PARTE

FLORES DO PAMPA

AO MEU AMIGO

Benjamim Villas-Boas

 

I

FLORES DO PAMPA

A minha amante, a Musa, outr’ora uma criança

Franzina, delicada, anêmica e nervosa,

Que cantava ao luar uma canção saudosa...

Falando-me de amor, de crenças, de esperança!...

Ela, que teve um dia (esplêndida lembrança!)

A ideia de vestir saiote cor de rosa;

E ao dorso d’um corcel — valente e gloriosa —

Foi dar aos generais exemplos de pujança!...

A indígena, a cabocla, a virgem das florestas,

Que dormia ao mormaço as langorosas sestas,

E ia banhar-se ao mar, saltando d’uma rampa;

Aos louros dos heróis e às c’roas das Ofélias,

Prefere uma ideal grinalda de bromélias,

Belas flores do Sul, belas flores do Pampa.

 

II

O PAMPA

Pampa é um mundo novo, o Eldorado

Das quimeras de um cérebro beijado

Por colúmbeas visões!...

Tem imensas planícies viridentes,

Límpidos lajeados transparentes,

Inóspitos rincões!

No topo das coxilhas verdejantes,

Os pinheiros atléticos, gigantes,

Vigorosos e nus,

Abrem os braços — distendendo os galhos,

Talvez pedindo às noites mais orvalhos...

Aos dias menos luz!...

São eles as perdidas sentinelas,

Que anunciam a vinda das procelas,

À vanguarda dos céus...

Como mastros de naus bem arvoradas,

Resistem dos pampeiros às rajadas,

Em plenos escarcéus!...

N’aqueles solitários descampados,

Outr’ora os índios fortes, bronzeados,

— Os indígenas nus —

Envergavam os arcos, disparando

As setas, que voavam, sibilando,

Nas vastidões azuis...

E as caboclas, morenas e lascivos,

Ao pôr do sol ficavam pensativas,

Choravam sem querer...

Talvez lembrando os juvenis guerreiros

Que — a ficar noutras tabas prisioneiros —

Preferiram morrer!...

Foi aqui que os FARRAPOS invencíveis

Escreveram poemas indizíveis,

Que traduzir não sei..

Quando de Trinta e Cinco os lutadores

Tentaram esmagar uns vis senhores...

E um despótico rei!...

Nunca viste um Gaúcho soberano,

Mais rápido que o vento minuano,

O régio vendaval?...

Ele transpõe coxilhas e canhadas,

Solto o pala dos ventos às rajadas...

No dorso do bagual!...

Vou descrever os usos e costumes

Dos meus pagos natais, sem ter ciúmes

Das outras regiões...

O Pampa é um mundo novo, o Eldorado

Das quimeras de um cérebro beijado

Por colúmbeas visões!

 

III

CREPÚSCULO MATINAL

Quando a luz d’alva desata

Rubras fitas pelo azul,

Chora lágrimas de prata

O firmamento do Sul!

Os pingos d’agua, trementes,

Caindo sobre as canhadas,

— Essas pérolas algentes

Do colar das madrugadas...

Os frios globos de orvalhos,

Como uns rosários de luz,

Das folhas descem p’ra os galhos...

Dos galhos p’ra os troncos nus!...

E brilham, de manhã cedo,

No verde manto dos campos,

Como om sombrio arvoredo

Cardumes de pirilampos...

Saem as aves dos ninhos,

Saem as sombras do val;

— Na orgia dos passarinhos

Rompe a orquestra matinal!

Nos rincões ou nas quebradas

As feras buscam abrigo...

Como tropas debandadas

Por exército inimigo!

E o sol, — eterno vaidoso —

Abre as janelas do ar...

E vai mirar-se garboso

Na superfície do mar!

 

IV

A SESTA

Em pleno zênite, brilhante e ardente,

Embala-se em rede de chispas — o sol...

A sombra s’esconde, medrosa, tremente,

Por baixo dos galhos...

Que à mingua de orvalhos

Aguardam sedentos o vir do arrebol.

À sombra excitante, serena, tranquila,

Das árvores altas do sul do Brasil,

Erguidos os braços, cerrada a pupila...

Formosa morena

Dormita serena,

Sorrindo, opiada n’um sonho gentil!

Tão nua... e tão bela! tão cheia de encantos,

Provoca lascívias em tal languidez!...

As pálpebras tremem, humentes, sem prantos...

E em câimbras de gozo

Seu corpo nervoso

Dá saltos felinos por mais de uma vez...

Sem medo e sem vestes... os seios trementes,

Os lábios convulsos nas ânsias de rir;

Se soltam as aves seus cantos dolentes,

Os braços agita...

Seu peito palpita,

Mas — vendo que é nada — sorri, a dormir!

E dorme, sonhando, tão bela e tão calma,

Qual fada das lendas do povo alemão,

Que a um príncipe loiro, que rouba-lhe a alma,

Se entrega rendida...

E dorme, esquecida,

Por meses, por anos, por sec’los... em vão!

Seus negros cabelos, compridos, olentes,

Se agitam aos sopros dos gênios do ar...

E vêm-lhe ao ouvido, de manso, plangentes,

Os ecos perdidos

Dos longos gemidos

Que soltam os ventos da banda do mar!...

Mas ah! que a araponga soltou no arvoredo

Um grilo estridente, metálico... então:

A pálida moça, tremendo de medo,

Em casto receio,

Co’as mãos cobre o seio;

E os negros cabelos caiam-lhe ao chão!...

Para uma lagoa, que perto corria,

Dirige seus passos, transida de horror;

Ao pé do salgueiro, que à margem se via,

A agua faz bulha...

Seu corpo mergulha...

E — escondem as águas tesouros de amor!

 

V

DESEJOS

Quando, aos trêmulos raios do crepúsculo,

Penetro a sós na solidão das matas,

Ao marulhoso múrmur das cascatas

Que rolam das pedreiras colossais,

A legião fantástica das árvores,

De galhos retorcidos para os ares,

Assim como uns gigantes seculares

Dia e noite afrontando os temporais;

Faz-me lembrar, não sei por que mistério,

Os guerreiros das tribos indianas,

Que tinham nas florestas as cabanas

E nas cabanas a cabocla em flor.

Ah! flor morena dos vergéis da América!

Quem mo dera poder (nem sei se o diga)

Desatar de tua perna a rubra liga,

Nos delírios de um ímpeto de amor!...

Quem me dera embalar-me, nas vigílias,

Na rede onde dormias ao relento,

Tendo por cortinado o firmamento

E por tapete as flores do vergel...

Das estrelas ao vivo alampadário

Ver-te nua e medrosa em meus joelhos,

E nos teus lábios quentes e vermelhos

Em beijos prelibar favos de mel!...

Contigo, à claridão de um luar límpido,

Cortando na barranca uma taquara,

Com ela ir dirigindo a leve igara

Do manso rio à superfície azul...

Cantando juntos a canção dos índios,

As lendas d’essa raça extinta agora,

Lendas que o céu da pátria ouvia outr’ora

Do Prata ao Tocantins...do Norte ao Sul!

E depois, quando a Lua e o silêncio

Por alta noite povoassem tudo,

Ir pisando sutil, trêmulo e mudo,

Para não despertar o piaga ancião...

— Lutando os meus desejos com os zéfiros

Que beijassem-te os fios dos cabelos,

Ébrio de languidez, ébrio de zelos,

Levar-te nos meus braços ao sertão.

No centro mais sombrio e solitário

De uma gruta de galhos entrançados,

Onde outros corações apaixonados

Não batessem de amor, nem uma vez;

De rosas brancas desfolhando as pétalas

No capinzal, eu formaria o leito

Para dormirmos — peito contra peito —

Lábio com lábio, em lânguida mudez!...

Quando, aos trêmulos raios do crepúsculo,

Penetro a sós na solidão das matas,

Ao marulhoso múrmur das cascatas

Que rolam das pedreiras com fragor,

Vêm-me então à lembrança, em vagos êxtases,

Os guerreiros das tribos indianas,

Que tinham nas florestas as cabanas

E nas cabanas a cabocla em flor!...

 

VI

VIAJANDO

É noite. As antas dormem à vontade

Na sombria mudez dos precipícios...

Enquanto além, os loucos sem hospícios,

Mascam blasfêmias contra a sociedade.

Aqui...na serra, longe da cidade,

O formigueiro túrgido de vícios...

No terreiro do rancho os meus patrícios

Descantam na viola, em liberdade!

Uma criança arteira, gorda e nua,

Vai, correndo e gritando, à luz da Lua,

De um morcego seguindo as asas pretas...

Eu sento o meu cavalo...E ouço a grita

Com que entoam ao longe a Chimarrita,

Aos metálicos guinchos das carretas!...

 

VII

CHINOCA

(poema da serra)

Quando a ave da noite abriu as asas,

Anunciando a hora do repouso,

Eu, que andava em viagem de escoteiro,

Dei de rédea a buscar seguro pouso.

Dormir a sós no campo, em noites frias,

Sem barraca, sem poncho e sem peães,

Exposto aos desertores e aos tigres,

Sem ao menos uns três ou quatro cães;

Fora facilitar; e eu, que prezo

Com todo o interesse a minha vida,

Preferi galopar mais légua e meia,

A passar uma noite mal dormida.

E toquei-me, no mais, coxilha fora,

Não sentando nem mesmo nas ranhadas,

Sem medo de rodar entre a macega,

Onde as perdizes dormem sossegadas.

Atravessando o passo, cujas águas

Caíam d’uma íngreme pedreira,

Sombreadas por folhas verde-escuras

Da restinga entrançada em capoeira;

Pela estrada real segui no tranco,

Resolvido a pedir uma pousada

Na primeira fazenda ou mesmo sítio,

Que ficasse mais próximo da estrada.

Não tinha troteado quadra e meia,

Quando avistei à esquerda do caminho

Uma luz que aos bocados transformou-se

N’uma fogueira à frente d’um ranchinho.

Para aí me tocando, à meia rédea,

À porteira soltei o “Ó de casa!”

(Tirei de trás da orelha o meu cigarro

Que acendi d’essa feita n’uma brasa.)

Mal a porta se abriu, velho caboclo

“Chegue-se” murmurou em voz amiga;

E ouvi as vibrações d’uma viola,

Que acompanhava os sons de uma cantiga...

Era uma voz alegre, clara e fresca,

Como a voz das crianças inocentes,

Dando a uns versos antigos e sem arte

Uns trêmulos lascivos e dormentes.

Puxei o meu picaço pela rédea,

Levando-o para baixo da ramada;

Desencilhei-o aí, tirei-lhe o freio

E deixei-o na soga, em boa aguada.

0 animal rinchou alegremente,

Sacudindo garboso as longas crinas,

Espojou-se na relva úmida e verde

E gachou-se a pastar pelas campinas.

Era uma noite fresca e constelada,

Como são sempre as noites estivais

Sob o azul — crivado de brilhantes,

Das nossas regiões meridionais.

Como lanternas mágicas acesas

No sombrio recinto de um salão,

Faiscavam inquietos vagalumes

No recanto trevoso d’um capão.

A mudez do noctívago silêncio

Era d’espaço a espaço entrecortada

Por latidos monótonos e tristes

De cães soltos em torno da morada.

Era bem tarde já; porém os galos,

Os lascivos sultões do galinheiro,

Nem se lembravam de rachar o bico,

Encolhidos nas varas do poleiro...

Entrei no rancho: “— Abanque-se, patrício,”

O caboclo me disse, e ao fogão

Indo logo buscar uma chaleira,

Encheu a cuia e deu-me um chimarrão.

Mateamos os dois, falando acerca

De cousas passageiras, meros nadas;

Nos potros que domara n’esse dia,

Nos estragos das muitas enxurradas...

Falou-me de um rapaz dos arredores,

Que por causa das últimas carreiras

Dera algumas facadas no Manduca,

O pobre do Manduca das Mangueiras!...

Contou-me que indo além parar rodeio,

Encontrara umas vascas pesteadas,

Mas que havia curá-las das bicheiras,

Com umas benzeduras muito usadas...

Que tinha em seu piquete dois cavalos,

— Um malacara e outro tobiano —

Com gafeiras, coerudos e com brocas,

Mais tristes do que um vento minuano.

Enfim, ele falou-me das misérias

Que perseguem os pobres criadores,

Que p’ra ter um churrasco sobre a cinza

Andam à chuva, ao sol e aos calores.

Tive pena do mísero caboclo;

Consolei-o com frases corriqueiras,

E perguntei quem era que à viola

Cantava ali modinhas brasileiras:

      

“É minha filha” respondeu-me, e indo

Para a porta que dava p’ra varanda:

“Chinoca disse, “escondes-te da gente?

Por que foste p’ra dentro? vem cá, anda.”

Pouco depois, o rosto mais mimoso

Que eu tenho visto em corpo de donzela,

Assomava, modesto, ingénuo e tímido,

Tornando-a em seu enleio inda mais bela!

Só co’a palheta mágica de Rubens,

Ou o pincel de Sânzio em mão de Apeles,

Eu pudera alinhar aquelas formas,

Pintar a maciez das suas peles.

Havia em seu olhar, quebrado e úmido,

Um mar de aspirações indefinidas...

E nas túmidas pomas, meio nuas,

Viam-se jambos e romãs partidas.

“Fugia por minha causa?” — Perguntei-lhe,

Fitando-a com respeito e com surpresa:

“Não, senhor; como um hospede chegasse,

Fui fazer o café, que está na mesa.”

Entramos na varanda: era pequena,

Mas alegre, bem clara e arejada;

Tinha duas janelas p’ra o terreiro

E uma rede n’um canto pendurada.

Sobre uma grande caixa de madeira,

Capaz de acomodar uma baleia,

A carona, o baixeiro e os pelegos

Formavam uma cama de mão cheia.

Depois, por travesseiro — um serigote,

Sob a xerga, enfronhada na badana...

Podia-se dormir a sono solto,

Mais a gosto que em lânguida otomana.

Sobre a mesa de pinho, sem toalha,

Três tigelas de louça, um prato raso,

A chaleira por cima d’um tijolo

E uns grãos de milho esparsos ao acaso...

A um canto, uma espingarda de dois canos,

Encostada à parede enfumaçada,

D’onde pendia um velho polvarinho

E um chumbeiro de pellet retouvada...

Tais eram os adornos resumidos

D’aquela habitação singela e pobre,

Onde um lindo tesouro de virtudes

A sorte confiara a um’alma nobre.

 

VIII

OS FARRAPOS

(À MEMORIA DE MEUS TIOS OS MENNA BARRETOS)

Montados em pingos fogosos, ligeiros,

Outr’ora os Farrapos aqui pelejavam;

Mais bravos, mais fortes que os fortes pampeiros,

Sem soldo e sem farda, valentes lutavam,

Montados em pingos fogosos, ligeiros.

De Bento Gonçalves aos sérios conselhos,

Puseram em pratica ideias de um Dante!

Com facas de ponta, trabucos e relhos,

Os régios soldados tocavam por diante,

De Bento Gonçalves aos sérios conselhos.

Lutaram dez anos!... Sedentos, com fome,

Descalços, despidos, por longe dos lares;

Sem beijos de amante, sem glória, sem nome,

Expostos ao tempo por ínvios lugares,

Lutaram dez anos, sedentos, com fome!...

Qual fera que morre no fundo de um ermo,

Sem prantos, sem rezas, sem cova, sem nada,

De tantas façanhas heroicas ao termo,

Nem tu, Cruz do Cristo, lhes deste pousada...

Qual fera que morre no fundo de um ermo!

Assim como Ovídio chorava — exilado,

Ó fortes Gaúchos, valentes, e guapos!

Sozinho vagueio, no Pampa isolado,

Chorando o destino dos bravos Farrapos,

Assim como Ovídio chorava — exilado!

 

IX

NA ESTÂNCIA

(AO AMIGO FELISBERTO B. DE ALMEIDA SOARES)

De manhã cedo, quando as aves trinam,

E a cerração nos descampados dorme...

Saltar de cima do lombilho e logo

Lavar o rosto na lagoa enorme...

Ir ao curral, e, mesmo na porteira,

Uma guampa beber de leite quente;

Sovar a palha e ir picando o fumo,

A conversar com essa boa gente...

Encilhar o matungo, ir no tranquilo

Dar uma volta por aqueles pagos...

E na venda mais próxima apeando

Cantar ao violão, tomando uns tragos...

Depois voltar ao rancho ou ao sobrado,

Tanto n’um como n’outro há boas gente;

E na rede suspensa de dois caibros

Saborear um chimarrão bem quente...

Em seguida, na mesa da varanda,

Tendo a faca de ponta na bainha,

Deixar esta na cinta e com aquela

Comer churrasco gordo com farinha...

Dormir ao meio dia um sono à sesta,

Debaixo da ramada verdejante;

E despertar aos gritos do moleque,

Que anuncia a comida fumegante...

Jantar feijão com charque, carne fresca,

Costeletas de porco, arroz da terra;

E após a sobremesa de canjica

Passear ‘té sol posto pela serra...

Eis a vida que levam dia a dia

Os robustos e bons estancieiros,

Que se têm luxo — é só na prataria

Com que arreiam os ágeis parelheiros...

E a pescaria à noite? e as cantigas

De analfabeto e rude menestrel,

Que improvisa bons versos, sem que saiba

Nem escrever seu nome n’um papel?

E os olhados gentis da mulatinha,

Que os dedos nos aperta ao dar o mate?...

E depois...desfalece na viola,

Com saudades talvez d’algum mascate...

E os sorrisos ingênuos da morena,

A quem chamam Chinoca ou Inhazinha?

E as proezas dos moços caçadores?...

E as histórias da trêmula velhinha?...

... Eu gosto d’essa vida ignorada,

Que passam nas estâncias meus patrícios;

Longe das multidões, longe dos vícios,

Aos lúgubres mugidos da boiada.

 

X

NO POUSO

Aqui... perdido n’amplidão do Pampa

Onde o Gaúcho no ginete voa...

Mais veloz que de cima d’uma rampa

Uma pedra que cai n’uma lagoa;

Aqui...aonde a cruz de qualquer campa

Os mais heroicos feitos apregoa;

Onde outr’ora os Farrapos destemidos

Batiam-se — sem nunca ser vencidos!...

Aqui — há mais encanto e poesia

Do que chega a sonhar a criatura:

Quer seja à luz esplendida do dia,

Quer das noites na cor azul-escura...

A água dos lajeados, clara e fria,

A aragem das coxilhas, fresca e pura,

Tudo enfim sob o céu do meu Rio-Grande

Fala à alma, que em êxtases s’expande!

À sombra dos angicos e figueiras,

Ou das grapiapunhas colossais,

Onde dormem a sesta horas inteiras

Os tropeiros, ao pé dos animais,

Que, ou atados à soga, ou pelas beiras

Dos banhados, por entre os bamburrais,

Pastam tranquilamente, enquanto o dono

Sem cuidados se entrega a um leve sono...

Quantas lendas não dormem esquecidas,

Cobertas da poeira das estradas;

Quer sejam peripécias revestidas

Das mais trágicas cenas, borrifadas

Do sangue gotejante das feridas

Abertas pelas facas afiadas...

Ou sejam inocentes devaneios

De amantes corações, sensíveis seios!

... Que nuvem é aquela, de poeira,

Que em novelos se eleva da picada?...

É tão densa e cerrada a polvadeira,

Que eu não posso d’aqui descobrir nada...

Ah! lá vejo uma dona feiticeira,

N’uma mula manhosa, estropeada,

Pouco adiante de um lindo ginetaço,

Que vem vindo do tranco no compasso...

Mais atrás, um andante, já velhusco,

Aponta para cá de tal maneira

Que, se bem não m’engano, esse patusco

Vem decerto pousar n’esta aroeira;

O seu pingo, da cor do lusco-fusco,

Se não é parelheiro, de carreira,

É de certo bagual de estrebaria,

Pois cansado não ’stá da montaria.

Um piá, uma velha e um baiano

Que, em vez de esc’ramuçar, soca canjica,

E um cargueiro, onde um negro, muito ufano,

Mostra uns dentes — que muita gente rica

Nem mesmo de um dentista americano

Conseguiria iguais...ora, aqui fica,

Para não nivelarem-me aos maçantes,

A descrição d’aqueles viajantes.

Ei-los que se aproximam... Desencilham

Os animais, que soltam d’uma feita;

As pratas dos lombilhos inda brilham

À frouxa luz do sol, que além se deita...

Uns procuram gravetos, já os pilham;

Aquele outro ao isqueiro a pedra ajeita,

Lasca fogo — o qual surge de vereda:

E à faísca sucede a labareda.

Outro a chocolateira enche no rio,

Que à meia braça corre mansamente...

E a velha, que não ter nenhum fastio

Mostra — pela maneira diligente

Por que do revirado, mesmo frio,

Dá que fazer aos queixos habilmente...

Diz à morena: “Chega-te, Nhazinha,

Prova, como é gostosa esta farinha!”

O monarca, que já está deitado

Sobre a carona, à sombra da figueira,

Ao passo que o piá ’stá ocupado

Em botar lenha à roda da fogueira;

Depois de haver a palha retovado,

Nos beiços a segura: e na carreira

Pica o fumo na mão, enrola a palha

E fuma... enquanto a velha come e ralha:

“Ó negro! pois não vês que já é hora

De fincar o churrasco n’esse espeto?”

Diz ao mísero escravo a má senhora,

Que tem raiva de tudo quanto é preto:

Anda! salta daí... vê lá se agora

Queres que vá o pobre do meu neto

Fazer o teu serviço — enquanto aí

Ficas que nem um rei cheio de si!?...

Já é noite cerrada... E eu, que tenho

De acordar ao raiar da madrugada,

Pois, se de longe, meu patrício, venho,

Não estou nem no meio da jornada;

Dou como terminado este desenho,

Que é singela paisagem esboçada

Das pinturas gentis de um mundo novo,

Onde há monarcas... sim, porém — no povo!

 

XI

CANTO DO MONARCA

Eu sou o moço Gaúcho,

Valente como os mais guapos;

Filho e neto de Farrapos,

Republicano no mais!

Com o meu poncho de pala,

E laço e bolas nos tentos,

Vou mais ligeiro que os ventos

Por sangas e bamburrais...

O rei, montado no trono,

Tendo os ministros consigo,

Não se compara comigo

No dorso do meu bagual;

Se ele é rei — eu sou monarca!

Se ele tem cetro dourado,

Tenho o relho prateado

E a cancha do meu punhal!...

Por Deus e por minha vida,

Tenho uma vontade ardente

Que ainda outra vez rebente

Aqui — a revolução!...

Mostraria à baianada,

Que treme, a morder cartucho,

P’ra quanto presta o Gaúcho,

N’um pingo de opinião!...

De vez em quando — aparece

Um orador que se arrisca:

E n’assembleia se prisca

Para a banda popular...

Mas sempre encontra quem logo

Comece a pelegueá-lo,

Arme-lhe certo o pialo

E faça o bagual sentar!...

Lá no Rio de Janeiro,

Um jornalista de fama,

Deixava tudo na lama...

“Barbaridade!” — gritou!...

Mas encolheu as orelhas

E deu-se por “afrontado”

No capão d’um consulado,

Onde se aquerenciou...

Hépucha, mano! Parece

Que os sentimentos rodaram!...

As crenças s’encurralaram...

E o povo — murcha o garrão!

Estropeado e maceta,

Empaca o patriotismo,

E anda no passo o cinismo

Por toda a povoação.

Eu, que sou moço largado,

Valente como os mais guapos,

Filho e neto de Farrapos,

Republicano no mais;

Hei de correr a rebenque

Os reiunos sem valia,

Que, para mais picardia,

São filhos de nossos pais!...

 

XII

AO VIOLÃO

(recitativo)

Morena filha da colúmbea terra,

Lírio da serra, onde a poesia dorme,

Há nos teus lábios muito mais frescura

Que n’água pura do lajeado enorme.

Tu tens nos olhos mais fulgentes lumes

Que os vagalumes nas doiradas asas;

Como a falena a voejar em flores,

Vais entre amores... e jamais te abrasas!

Ah! quem me dera n’essas níveas pomas,

Ébrio de aromas, desmaiar de gozo...

Entre teus braços me prender de zelos

E em teus cabelos encontrar repouso!...

Morena filha da colúmbea terra,

Lírio da serra americana, ardente,

Tua voz, mais doce que o gemer da viola,

Tudo consola... porque tudo sente!

Tu és o pouso, que o tropeiro errante,

Que anda distante de seus caros pagos,

Avista — à luz que no poente brilha —

Junto à coxilha, por detrás dos lagos...

Tu és mais bela do que a imagem santa

Que se alevanta no altar da igreja;

Tens mais mistérios do que a cruz divina,

Que na campina, solitária, alveja...

Morena filha da colúmbea terra,

Lírio da serra, onde medita o monge...

Pede-te um pouso, no teu seio amante,

O viajante — que chegou de longe.

 

XIII

GAUCHADAS

(A BERNARDINO DOS SANTOS)

Fui tomar ares fora, há quatro ou cinco meses,

Na estância de um amigo; e repetidas vezes

Toquei-me campo fora e fui parar rodeio,

Montado em pingos tais que nunca viram freio.

Eu ia, a toda a brida, à toa, pelos Pampas,

Os touros apanhando a laço pelas guampas,

Repontar os baguais, as éguas, os potrancos,

Rodando nos cupins, saltando nos barrancos!

Era um guasca largado! Às minhas gauchadas

Diziam os peães: “Não é de caçoadas

Aquele doutorzito, a meio abaianado,

Por Deus que é genetaço e moço abarbarado!

Quer fosse na atafona, ou fosse na senzala,

Por sobre os ombros meus caia em regra o pala.

Prendia o meu cigarro à fita do sombreiro:

E arrastava por gosto a espora no terreiro!

Nos fandangos, à noite, a china mais bonita

Olhava para mim — cantando a Chimarrita...

E se eu ia p’ra roda; então... barbaridade!

Por Deus e um patacão — não era da cidade!...

D’uma feita, eu já tinha atravessado o passo,

E estava retovando as boias junto ao laço,

Quando vi, a banhar-se, uma chinoca airosa,

Lindaça como o sol, fresca como uma rosa.

Não sei o que senti; parece-me somente

Que eu quis abrir de raia e me tocar p'ra frente...

Mas — se os olhos gentis d’aquela tentação

Manearam-me logo o triste coração!...

Prisque¡-me para trás e refuguei p’ra um lado,

Mas como trotear — si eu ’stava pialado?

A china aprisilhou-me uma olhadura terna..

Assim como quem diz: “Já te passei a perna!”

Embuçalou-me, a rir, e em tom de voz tirano

Perguntou-me depois: “Perdeu-se o vaqueano?...”

Caramba! eu via bem que aquilo era um desfrute...

Mas a gente, patrício, às vezes não discute!...

 

XIV

NOSTALGIA

(AO MEU PRIMO OSCAR PEDERNEIRAS)

Quem me dera trocar todos os nadas

Que cercam-me esta vida de ilusões,

Pelas horas com ela deslizadas

Na paz das solidões!...

Você nem sabe como eu penso agora

N’esse tempo feliz, que não vem mais...

Quem me dera poder andar lá fora

Nos meus pagos natais!

O rumor dos burgueses m'ensurdece,

Enoja-me das turbas o vai-vem;

Aqui... tudo definha e desfalece,

Tudo revive além!...

Além! esta palavra em si resume

Campinas, virações e céu azul!

E flores e lampíreos em cardume

Pelos vergéis do sul!

Além!... andar, cantando, o dia inteiro,

À sombra d’essas árvores titães:

Nas costas a espingarda e o chumbeiro,

À frente uns quatro cães.

Mais tarde, à branda luz d’ave-maria,

Voltar contente ao rancho de sapê:

Comer um prato de coalhada fria,

Depois — tomar café...

E os carinhos ingênuos da roceira,

Que não sabe iludir quando quer bem;

E tem n’um corpo esbelto de palmeira,

Um’alma — de cecém!

Dormir na rede as sestas langorosas,

Nas horas do mormaço abrasador;

Cantar ao violão trovas saudosas,

Cheias de muito amor!...

Nas noites em que a Lua pelo espaço

Vai desfiando pastas de algodão...

Passearmos, com ela pelo braço,

Na sombra do sertão.

Voltar bem tarde ao rancho, onde na frente

A chama da fogueira bruxuleia,

Sem medo de que a nossa confidente

Nos traia... a Lua cheia!

A Lua! quantas vezes não chegava

A sua discrição ao ponto de

Ocultar-se na nuvem que passava,

Quando... veja você!

         .............................................................

Mas, deixemos a Lua e tudo aquilo

Que nos possa falar ao coração,

E tratemos de quem viver tranquilo

Não soube — no sertão:

Estou emagrecendo de maneira

Que ando em risco de ir para o Caju...

Já perguntou-me alguém: “— Múcio Teixeira,

Que é isso, que tens tu?...”

Por isso é que me diz constantemente

Meu amigo o doutor Lopes Trovão:

“Múcio, toma cuidado, andas doente,

Trata-te, quando não...”

Sabe lá como arrasto esta existência

Metido aqui na corte?... É como vê:

Chamam-me por doutor...dão-me excelência...

E nem sei mais o quê!...

Quem me dera trocar todos os nadas

Que cercam-me de fátuas ilusões,

Pelas horas com ela deslizadas

Na paz das solidões!

 

XV

O VIAJANTE

I

“Bom dia, moço triste! Gotejante

Trazes o manto, e rosto pesaroso!...

Tens aqui um abrigo:

                 — Vem comigo.” —

Obrigado, bom velho! eu vou distante

N’outros climas buscar um outro pouso.

II

“Contempla, moço, a tarde agonizante...

Olha... vês? — já são horas de repouso.

Tens aqui um abrigo:

— Vem comigo.” —

Obrigado, Senhora! eu vou distante

N’outros climas buscar um outro pouso.

III

“Belo moço! em meu seio palpitante

Trina um bando de pássaros de gozo!...

Tens aqui um abrigo:

                 — Vem comigo.” —

Obrigado, donzela! eu vou distante

N’outros climas buscar um outro pouso.

IV

         .............................................................

V

Ele seguiu... Além — horripilante

Bramia em fúria o temporal raivoso!...

Procurando um abrigo

— A sós consigo, —

Do lar e da família tão distante...

No chão de um cemitério teve o pouso!

 

SEGUNDA PARTE

VIVANDEIRAS

 

I

Un Idéal succède à un autre Idéal.

(E. Quinet.)

A Musa do passado, a sombra luminosa

Que povoou de Homero a noite tenebrosa,

Que estendeu a Virgílio a vigorosa mão,

Guiando-o pela estrada em flor da inspiração;

E mais tarde soltando as asas pelo espaço

Chorando penetrou no cárcere do Tasso;

A Musa triunfal dos grandes ideais,

Que descia com Dante às trevas infernais,

Ou com Milton subia ao claro paraíso,

Aonde o beijo é flor e aonde a flor é riso!...

A Musa do passado, a filha do Senhor,

Casta como o luzir da estrela do pastor,

Impecável e boa, imaculada e pura,

Feita de luz, de sons, de frêmitos, de alvura...

Que tem nos seios bons, fecundos, maternais,

O leite que dá força aos pulsos colossais

De Hércules, de Sansão!...

A Musa do passado

Caiu como um guerreiro aos golpes d’um soldado,

Caiu, como um herói envolto no pendão

Que simboliza a honra, os brios da nação,

Nos lábios abafando, em convulsões de glória,

Os irritantes sons de um hino de vitória!

..............................................................................

..............................................................................

      

Alevantou-se então a Musa do presente,

Anêmica, afetada, histérica, doente,

Cheia de hipocondria e cheia de rancor,

A escarnecer de Deus, das ilusões, do amor,

Com os peitos sem leite, as faces carminadas,

A dar cinicamente enormes gargalhadas!...

E as lendas varonis dos tempos medievas,

Altivas como os sóis, claras como os cristais,

Batidas pelo vento, envoltas na poeira,

Passam como a espumante e marulhosa esteira

Que deixam após si, do mar nas vastidões,

Os vapores — que são os braços das nações!

E a Musa que de espada à cinta ia, de farda,

A passo marcial, dos bravos à vanguarda,

Bater-se peito a peito, em desvairado ardor,

Expondo-se a morrer, demente de valor!

Agora...

Oh! irrisão! vergonha!

A passos lentos,

Como os frades que vão, ébrios, para os conventos,

Cambaleando muito, assim como quem vai

Alevantar do chão o que das mãos lhe cai,

Caminha pela rua, à toa, a dar topadas,

Com a cabeça baixa, as pálpebras cerradas,

Levando, a muito custo, uma garrafa... aonde

Lá no fundo, entre a borra, um vinho mau s’esconde.

Ela, que foi outr’ora a deusa dos combates,

O anjo das vitórias!

Passa os dias agora ao lado dos mascates

E as noites a contar fantásticas histórias.

Não afasta, ao passar, os verdes reposteiros

Dos palácios reais;

Vive pelos bordéis, ao lado dos cocheiros,

Até morrer de fome ao pé dos hospitais.

Canta auroras do sul em tímidos ensaios,

Saúda a madrugada entre os lençóis da cama,

Toma café com pão à mesa dos lacaios

E em copos d’aguardente a inspiração inflama.

Estende a mão leprosa às meretrizes héticas,

E, si caem-lhe aos pés uns cobres esverdeados,

Resmunga em voz fanhosa exclamações patéticas,

Que inspiram compaixão aos rotos aleijados.

É o requinte imoral de todos os cinismos,

A masc’ra das traições,

A lama dos pauis, a treva dos abismos,

O dente dos chacais, a garra dos leões!...

Não vibra mais a sonorosa tuba

Dos homéricos hinos marciais,

Fazendo que nos morros corra, suba

A matilha das cabras tropicais,

Arrepiando a leonina juba

Em contorções selvagens e brutais...

Toca viola à porta das amantes,

Cantando serenatas langorosas,

Falando só de flores odorantes,

Ou trêmulas estrelas luminosas,

Fechando o livro aos tristes estudantes

Que consagram-lhe as horas ociosas.

Assim os dias passa e leva os meses,

Da boêmia na mútua liberdade,

Ante a raiva encoberta dos burgueses

E o desprezo integral da sociedade.

Quantas vezes, ó Musa! quantas vezes

De vir a ser um cão não tens vontade?...

Eu sei que tens momentos prolongados

De tristezas enormes!...

E que sonhos trevosos e pesados

Os que sonhas à noite, quando dormes:

Devem ser uns vampiros esfaimados,

Desinquietos, horríficos, disformes!...

Avel Musa de outr’ora! envolta em branco véu,

Vem derramar na terra a grande luz do céu!...

Tu, que seguiste à frente das cruzadas.

Um corcel insofrido cavalgando,

Quando o límpido aço das espadas

Os lampejos ao sol iam roubando...

Tu, que, no mais renhido das batalhas,

Erguida sobre o alto das muralhas,

Desfraldavas o pano das bandeiras

— Que adejavam em leves caracóis —

Ao compasso das músicas guerreiras,

Que ecoavam na boca dos heróis;

E, depois d’uma luta gigantesca,

Desapertando do joelho as ligas,

Ias — por entre a morta soldadesca —

E gritos e lamentos dos feridos,

Atar os ferimentos dos vencidos

Que te erguiam as destras inimigas!...

Ó Musa varonil das velhas tradições!

Tu, que, de boca em boca, às mortas gerações

Foste estímulo forte, altivo, sobranceiro,

Àqueles corações leais que ao mundo inteiro

Legaram um punhal, um copo, ou uma cruz,

Dizendo-se: — Catão, Sócrates ou Jesus...

Por que não vens sentar-te à mesa do progresso,

Onde a ciência quer a Deus tolher ingresso?...

Transpõe a porta enorme e férrea das prisões;

Dá ao bandido um livro em vez d’expiações;

Dá um asilo ao velho, ao morto um ataúde,

Liberdade à mulher, luzes à juventude.

Faze que o povo aprenda a ler aquelas leis

Que o livram do poder despótico dos reis.

Transpõe do Vaticano as tenebrosas portas,

Atira a uma oficina aquelas vidas mortas...

Faze que o padre-santo — o déspota real,

Ponha os oc’los... e leia o gótico missal!

E com que a igreja (em vez de casa de negócio,

Ou templo alevantado à hipocrisia, ao ócio)

Apague as velas e abra as portas p’ra que a luz

Do dia — bata em cheio à face de Jesus!...

..........................................................................

..........................................................................

Manda inscrever na história o nome dos valentes:

Bento Gonçalves, Neto, Osório e Tiradentes.

Na mão de cada pobre atire-se uma esmola,

Ao pé de cada igreja eleve-se uma escola.

 

II

Há muito que fazer, muito que trabalhar,

(GUERRA JUNQUEIRO)

0 Poeta, hoje em dia, o pensador austero,

Satirizando o Mal, a Realeza, o Clero,

Sobe ao altar da Imprensa, o púlpito sagrado,

— Lanterna que clareia os antros do passado,

— Estrela a cintilar em horizonte escuro,

Guiando à eternidade os Magos do Futuro;

E, abrindo às multidões as folhas do Missal

Do Bem e da Verdade — a Bíblia do Ideal —

Desmoronando a Igreja e esboroando o Trono,

Faz com que o Povo, o pária... a bocejar de sono,

Inda esfregando as mãos nos olhos inflamados,

Saindo dos lençóis revoltos, machucados,

Do leito sensual, ao banco do Trabalho...

No Templo da Oficina, aonde é Cruz o Malho,

Procure o seu lugar, bem como o guerrilheiro

Ao lado dos heróis, nos campos do estrangeiro,

Quando é do fumo o ar, quando é de sangue a terra,

Ao som provocador das músicas de guerra.

É tempo de saltar da boca dos heróis

O hino da vitória:

Os Novos Ideais, brilhantes como os sóis,

Surgem... são as visões fantásticas da glória!

Dois atletas estão lutando em agonia:

A Treva com a Luz... a Noite com o Dia.

De um lado — a Ignorância, o pavoroso abutre

Que rasga o próprio seio e com seu sangue nutre

Os filhos do furor, do desespero insano

Que chama-se Miséria — o grande Pelicano!...

D’outro lado a Instrução, a boa mãe, que ensina

O caminho da Escola, as portas da Oficina,

Aos filhos varonis, que a trabalhar, sem sustos,

Seguem para o futuro alegres e robustos.

Não tarda a começar da Liberdade a Missa

No templo da Razão:

Vai-se desenvolver o tema da Justiça,

À luz da Nova Ideia, ao sol — Revolução!...

 

III

?

(AO COMPANHEIRO E AMIGO MARIANO DE OLIVEIRA.)

Donde saímos nós?... Da sombra do mistério...

Aonde vamos? não sei: a cruz do cemitério

Pode ser uma porta aberta à eterna vida,

Mas pode ser também uma barreira erguida

Entre a luz e a treva!...

Assim, a humanidade

Caminha, sem saber para onde vai...

Quem há de

No Oceano fatal das dúvidas eternas

A sonda mergulhar?...

As bocas das cavernas,

Os olhos dos leões, o ventre dos abismos,

Têm ímãs, atrações, fluídos, magnetismos...

As ruínas ao luar e o interior dos templos

Produzem impressões mais fortes que os exemplos

Das severas lições!...

Em vão nós procuramos

Saber quem foi que deu às árvores os ramos,

Canto ao pássaro, aroma à flor, espuma à vaga...

A flama da razão bruxuleia e se apaga

Em plena escuridão!

Por essa noite escura

Passam as gerações do berço à sepultura.

 

IV

A GLÓRIA

Sinto amor pela glória: a eterna companheira,

Dos gênios, dos heróis, artistas e poetas!...

É ela quem desfralda a marcial bandeira...

É ela quem dá força ao pulso dos atletas!

A glória é uma mulher morena e do olhos grandes,

Cheia de seduções e cheia do langores;

Faz que os amantes seus subam além dos Andes,

N’um voo inda maior que o voo dos condores!...

Seus lábios sensuais provocam mais desejos

Que as virgens de Murillo em lânguidas posturas...

Virgílio fez-lhe a corte... Homero deu-lhe beijos...

E Milton vai com ela às gerações futuras!

Foi amante de Tasso e de Petrarca e Dante:

Rival de Eleonora... e Laura... e Beatriz!...

Festejava Mozzar, quando ele ind’era infante...

Tem o berço na Grécia — e casas em Paris.

Traz na fronte um laurel de estrelas em miríades,

Tem o escopro, o pincel, o camartelo, a pena;

Com Sólon meditou... sorriu com Alcebíades...

Cantou com Mallibran, chorou com Magdalena....

Subiu com Jesus Cristo o monte do Calvário...

E desceu com Moisés do alto do Sinai!...

Abriu as catedrais antigas ao templário...

Sua mãe é a humanidade: e Deus — é o seu pai!

Nos castelos feudais das épocas lendárias,

Ao ver as castelãs em seus balcões em flores,

Inundava de amor o coração dos párias,

Dando filtros fatais à voz dos trovadores...

Em todas as nações e em todas as idades,

Ela foi sempre assim: esplêndida, divina!

Espalha os filhos seus por todas as cidades:

Em Panteões e hospitais... no teatro e na oficina!...

A Glória! ... Essa mulher, por todos venerada,

Embora aperte ao seio o peito dos amantes,

É mais pura que o ar no azul d’uma alvorada...

Casta como o botão das flores odorantes.

É pura, é casta — e é mãe; assim também Maria,

A Mãe do Nazareno, o mártir divinal...

Se a crença de meus pais não era uma utopia:

Era pura, era casta: e mãe... e virginal!...

Na floresta cendrada, onde ela passa os dias,

Brincam Faunos gentis e Sátiros também;

E ela mergulha, a rir, nas águas claras, frias,

Onde a Náiade, a furto, espreita mais alguém...

Esse alguém — é o ideal do século das luzes,

O ideal do trabalho, o ideal da ciência;

Ele — que adormeceu aos gritos dos obuses...

Ele — que despertou à voz da consciência!

Pois bem! essa mulher, eterna e legendária,

Que abre as mãos ao herói e oferece o braço ao gênio,

Cedeu a Bevenuto a mão da estatuaria...

Ouviu Racine — e entrou, com Talma, no proscênio!...

O mais... vós o sabeis: seus filhos são gigantes,

De têmpera tão forte e dimensões tamanhas,

Como as aspirações dos moços estudantes...

Ou a sombra que cai do alto das montanhas!

......................................................................      

 

V

O INFINITO

(AO MEU PRIMO O DR. NICOLAU FRANÇA LEITE.)

Onde o corpo não vai — projeta-se o olhar,

Onde para o olhar — prossegue o pensamento;

Assim, n’esse constante, eterno caminhar,

Ascendemos do pó, momento por momento.

Além da atmosfera e além do firmamento,

Onde os astros, os sóis, não cessam de girar,

Ha decerto mais vida e muito mais alento

Do que n’esta prisão mefítica, sem ar...

Pois bem! se não me é dado, em vigoroso adejo,

Subir, subir... subir — aos mundos que não vejo,

Porém que um não sei quê me diz qu’ind’hei de ver...

— Quero despedaçar os elos da matéria:

Perder-me pelo azul da vastidão etérea

E ser o que só é — quem já deixou de ser!...

 

VI

OSÓRIO

AO POVO FLUMINENSE

— Todos choram a morte do guerreiro!...

Como é belo, meu Deus, um povo inteiro

Chorando um homem só!

(MÚCIO — Violetas.)

Eu vi o nosso herói nos transes derradeiros

Do derradeiro instante!

Forte como um leão, grande como um gigante:

Parecia passar nos campos das batalhas,

À frente dos guerreiros,

Por entre um temporal desfeito de metralhas!...

Não é mais belo o sol, como um Titão sangrento,

No o  caso avermelhado!...

Eu vi (sonho ou visão? — febril deslumbramento!)

Nos olhos seus profundos,

Com tristezas de morte e audácias de soldado,

— Vivas radiações

De esplendorosos mundos

No sombrio estendal das amplas vastidões!

...................................................................................

Há não sei quê de forte

Na maneira de olhar dos velhos legendários!

Parece até que a morte,

Varrida pelo espaço

Na eterna repulsão dos vultos planetários,

Já talvez na suprema angústia da impotência,

Aos céus levanta o braço,

Feito de musc’los d’aço,

Fundido na bigorna azul dos arrebóis...

Bradando: “Ó Providência!

“Ó Deus das tradições

“Da tragédia sagrada!

“Dá-me ímpetos de mar e fúrias de tufões

“Para eu poder lançar à solidão do nada,

“No poente da morte... o vivo sol dos sóis!...

E eu vi que o legendário

Era decerto assim: belo, sereno e forte,

Nas horas em que a morte

Deixava-o solitário

Na vazia extensão dos campos de batalha...

Quanta voz, encostado a uns restos de muralha,

Não cismava na pátria o lutador valente!

Ó Dante! as tuas visões passavam-lhe na mente,

Envoltas em troféus e envoltas em mortalha!...

Depois... quando soavam

Clangorosos clarins metálicos, vibrantes,

Ao rufo atroador de inúmeros tambores...

E as bandeiras então — como asas de condores —

Nos ares flutuavam!...

E longe, muito ao longe,

Extensas legiões,

Escuras como a cor do hábito de um monge,

Tomavam posições,

Enquanto que as espadas

Cintilavam ao sol, vivas, desembainhadas!

Como que se operava a transfiguração,

Dos cimos do Thabor!

Osório, aureolado em ondas de um clarão,

Era o gênio da guerra — assombro.do valor!

No confuso vai- vem

Dos inquietos corcéis das bravas cav’larias,

Que mascavam o freio em cóleras sombrias,

Varados pelas balas

Que voavam d’além...

Abriam-se de chofre os pelotões em alas

Para passar alguém;

Então, n’esse momento,

Ao dorso de um corcel de crina solta ao vento,

N’um galope febril, fantástico, infernal,

Forte, como o exemplo eterno do Calvário,

Passava o general...

O general Osório, — o nosso legendário!...

Ia colher mais louros,

Se mais louros houvesse ainda por colher...

Bradava então a Morte: — Eu posso te suster

Com meus pulsos fatais!

Respondia o herói: — Eu vou para os vindouros!

E galopava mais!...

E galopava mais! e mais... e tanto, tanto,

Que os primeiros heróis perdiam-no de vista:

Viam somente, ao longe, atônitos de espanto,

Um vulto indefinido... o anjo da conquista!

Procuravam em vão seguir de Osório os rastros

Os bravos generais:

Assim, também na esfera esplêndida dos astros,

Estão longe do sol — planetas imortais!

Foi assim que o herói nos campos de batalha

Glorificou a vida — exposto sempre à morte.

Como é que vem a sorte

Envolver seus troféus nas dobras da mortalha?!...

Pátria! não vês que chora uma nação inteira

Aos pés de um homem só?

(O presente não sonha em mística cegueira

A escada de Jacob...)

É mister levantar um monumento a Osório,

— O maior general dos nossos generais —

Um monumento enorme, assim — como o zimbório,

Das amplas catedrais:

Bem o podes talhar ao molde do seu nome.

Que o tempo não consome.

— E se faltar material bastante

Para nas praças erigir-lhe estátuas,

Se essas vaidades transitórias, fátuas,

Perdem-se à sombra d’esse herói gigante;

Não vás grinaldas enastrar de flores,

Nem às estrelas mendigar fulgores...

— Temos na terra o que não há no céu:

Apanha as armas que a seus pés caíram,

E ajunta as balas que os canhões cuspiram

Lá na província onde esse herói nasceu!...

Curva-te, ó pátria! sobre o chão do Pampa,

Recolhe os ossos dos titães soldados,

E então de sabres e canhões e balas,

Lanças partidas, pavilhões rasgados,

Levanta o alto pedestal da estátua,

Que irá nas brumas se perder do espaço...

E assim aos astros erguerás seu crânio

E ao mundo inteiro estenderás seu braço.

 

VII

AO VISCONDE DO RIO BRANCO

Os gênios e os heróis parecem ser talhados

A um molde especial, de enormes dimensões;

Por isso eu vejo em ti um não sei quê de nobre,

De grande, de ideal... é que esse olhar descobre

Fantásticas visões!

Subiste, por ti só, ao ponto culminante

Das alfas posições na esfera social;

Deixando atrás de ti, como os eternos astros,

Um lúcido cordão de cintilantes rastros,

Na marcha triunfal!...

Se, ao cérebro arrancando um turbilhão de ideias,

Mandavas pela imprensa ao povo o teu pensar,

Sentiam emoções os teus antagonistas...

Profetizando então as glórias, as conquistas

Do lutador sem par!

Depois... se, na tribuna, em pleno parlamento,

Teu vulto sobranceiro erguia-se entre os mais,

Bastava desprender-se a frase de teus lábios:

Via-se em teu olhar a luz do olhar dos sábios...

Uns brilhos ideais!...

.............................................................

Não contente em colher tão viridentes louros,

Pensaste no destino atroz da escravidão...

Quiseste fazer jus a mais sinceros bravos,

E abrindo os braços teus aos míseros escravos:

Foste a moderna cruz da nova redenção!

 

VIII

COLOMBO

A MÚCIO TEIXEIRA

I

A alma é uma vaga?... Oh! eu não creio,

Que a vejo ao sopro das paixões librar-se

Mais serena e capaz

De, resistindo das paixões ao norte,

Em busca da grandeza embriagar-se

E dormitar em paz...

A alma é unia vaga?... Oh! não! Não creio;

Que ela sorri da sorte às tempestades

E enflora-se de amor,

Quando, crestados os vergéis da vida,

Do peito humano enchendo as soledades

Irradia-se em flor!...

A alma é a bússola; o futuro os mares;

A ideia é a coragem que nos guia...

Combatentes, a pé!

Os que podemos afirmar que as ondas

Nos batem, mas recuam, afirmemo-lo

De Colombo na fé!...

Se um dia a terra estreita foi p’ra o nauta;

Se insurgido, arrojado, o pensamento

Todo o mundo correu,

Outro sol clarou-lhe a profundeza;

Inda mais estendeu-se fulgurante

De sua mente o céu...

Ser grande não é muito; é um sintoma,

Um modo de ser visto, uma coroa

Na fronte e nada mais;

Ser o réprobo dos reis e do seu tempo,

Da própria ideia a vítima rebelde

Vale tudo... o que achais?

Ser grande não é muito; ser o único

Em que a réstea de luz bateu de chapa

E a maldição também;

Pisar no erro e distinguir nas trevas

Um som que ninguém ouve, e tudo encerra:

Ter em paga o desdém...

É ser Colombo. O nauta foi terrível;

Sabia onde se asila a águia da história,

Que há muito se soltou!...

Desde que o homem luta, ela esvoaça;

O genovês sabia onde, em que ninho

O gênio se ocultou.

Todo o vulto que acima se alevanta

Do alto dos mais, do nível dos humanos,

Tem uma tentação...

Uns — uma for, têm outros — uma dama;

Ele — teve o prodígio por fraqueza,

O mar — por atração!...

O mar possui os ventos que rebramam,

A profundeza, a imensidade turva,

Em si o abismo tem...

Dar amor a essa fera é uma excelência,

Sabê-la cativar — é majestoso

E mui raro também...

Sabê-la cativar, torná-la amena,

Tirar-lhe ao seio as pérolas mimosas,

Seus segredos contar...

Colombo o conseguiu. Em troca o monstro

Deu-lhe um nome no céu, na terra um mundo...

Que presentes do mar!...

E quanto o amou!... A América soberba

Um resultado foi dos beijos quentes

Que o nauta recebeu

Das ondas, que são fúrias, que se encrespam,

Mas só para ele — garças revoando

Ali — ao lado seu.

II

Partiram navios... nas velas ligeiras

O vento rebrama; se encurvam demais...

Não bate a refrega; são sopros do gênio

Que abalam as quinas! Colombo, ali vais.

Lá vais... o navio pesado, perdido,

Mergulha-se a peito nas trevas do mar.

O céu tem seu astro que aclara-lhe as sombras,

As ondas teu vulto para nelas brilhar.

Se a terra suporta cem gênios alados,

Cem homens que o tempo distinguem então,

A quina do louco, largada nas vagas,

Transporta-lhe a ideia, — de um mundo a visão.

Lutero, faminto de amor e verdade,

Fulmina a grandeza que o Ângelo ergueu...

Calado, soturno, ao colóquio dos ventos,

À luz dos teus olhos a terra cresceu.

Amaste o futuro e a vida, a utopia,

E as salsas espumas que a vaga produz...

Espumas de ideias geraram-te a América!

Centelhas do um gênio, que inda hoje seduz.

(Poema das Américas)

SÍLVIO ROMERO.

 

IX

OS SOCIALISTAS

A SYLVIO ROMÉRO

Que ideia fazes tu dos magros operários,

Que tentam esmagar o novo Luiz Onze?...

São Cristos, carregando as cruzes aos Calvários...

Altivos Prometeus, em Cáucasos de bronze!...

Eles vêm de longe... exaustos e cansados,

Assim como os heróis que voltam do combate;

Mas, ah! os párias vis, os grandes desgraçados,

Não ouvem o clarim mavórcio do resgate!...

Eles de longe vêm... Famintos e sedentos,

Debalde irão bater às portas da oficina;

Tostados pelo sol, transidos pelos ventos.

Vão da miséria ao crime... e d’este à guilhotina!

E assim passando vão, sombrios, desvairados,

Os filhos, os irmãos, os pais e os maridos;

Deixando na mudez dos lares apagados

A prole, sem arrimo, exposta a vis bandidos.

Andaram dia e noite a procurar trabalho,

Nos palácios dos reis, nas quintas dos burgueses;

Podiam muito bem co’as cartas d’um baralho

Ter mais sério papel nos nossos entremezes...

Podiam muito bem, à beira d’uma estrada,

As bolsas arrancar aos filhos da opulência,

Que costumam passar, às três da madrugada,

De volta dos bordéis, quebrados de indolência....

Podiam muito bem, à moda dos bandidos,

Fazer uma emboscada, à noite, nas esquinas...

Ou seguir o exemplo usado entre os maridos

Que cedem a mulher por libras esterlinas!...

Sim, porque tu bem vês que a meretriz da noite

Oculta sob o xaile o adultério, o crime;

Nem falta por aí albergue onde se acoite

O criminoso audaz que às nossas leis se exime.

Podiam, porém não!... Aquelas grandes, almas,

— Salamandras da honra em fogo de miséria —

Preferiam colher de mártires as palmas,

A sentir o remorso a lhes queimar a artéria.

E esperaram, de pé, humildes, macilentos,

Com o chapéu na mão, a ferramenta ao lado,

Nas ruas, nos hotéis, nas lojas, nos conventos,

Que lhes dessem trabalho e dessem ordenado.

Esperaram à toa... Os velhos argentários

Passavam na fluidez das seges opulentas;

Sorria a messalina aos moços milionários...

Cantava a burguesia umas canções sebentas...

Esperar é sofrer, sofrer é um delírio,

O delírio é loucura, ao louco Deus perdoa...

Como é então que o rei, zombando do martírio

Da triste multidão, que espera em vão, à toa;

Condena o desvario esplêndido, sublime,

De quem — quis trabalhar — para matar a fome,

E, não vendo trabalho, então pensa no crime:

Procurando um alívio à mágoa que o consome?...

Fidalgos! Padres! Reis!... Tremei da Ideia Nova,

Que vos reduz a isto: — infâmia e cobardia. —

Socialistas, — avante!... Abri a grande cova

Que há de esconder os reis, o clero, a fidalguia!...

 

X

AOS POETAS LÍRICOS

Ó tísicos Romeus! ó corações doentes,

Que ficais, ao luar, cismando horas inteiras...

Ó magros menestréis, tristes — como os poentes

E estéreis como o seio anêmico das freiras!...

Profetas ideais, fantásticos videntes,

Que andais pelos bordéis, dormindo nas cadeiras...

Porque tanto chorais? — sofreis de dor de dentes?

Deixaram-vos sem roupa as vossas lavadeiras?...

Aves do madrigal, canários sem gaiola,

Que andais, como um mendigo, a suplicar a esmola

De um bravo à insipidez d’algum recitativo...

Atirai para um canto as vossas elegias,

Deixai de plagiar o morto Jeremias,

Imitai Baudelaire, que mesmo morto é vivo.

 

XI

A GUERRA DO PARNASO

(A ERNESTO SILVA)

Um outro menestrel eis que surgiu na arena,

Vestido a gladiador, com ares de Quixote;

Nervoso sonhador, feroz como uma hiena,

Investindo p’ra mim de um formidável bote.

O loiro menestrel de pálido semblante,

Não podendo suster o arnês que o atrofia,

Vem atirar-me à face a luva — n’um descante...

Disposto a perecer em prol de D. Armia!

Às armas! é a voz que soa a cada passo,

“Às armas! ao combate, ao extermínio... à guerra!”

As bocas dos canhões cospem risadas d’aço...

O sangue dos Romeus corre ensopando a terra...

Enquanto, em Portugal, se vê Guerra Junqueiro

Cercado de um tropel de magros Jeremias,

Aqui... os menestréis, deixando o formigueiro,

Tomam-me de surpresa... armados de elegias!

E os franzinos campeões das líricas cruzadas,

Pedindo a D. João a lança dos Tenórios,

Desfraldam os pendões à frente das sacadas...

Ó doces Napoleões! ó meus gentis Osórios!...

Então vocês estão em campo de batalha,

Chamando-me ao combate a rufo de tambores?

—    De pet’las de jasmins cortais uma mortalha,

Para depois dormir n’um túmulo de flores...

Defendam-se, meus bons, meus doces inimigos,

Eu alevanto a luva e desembainho a espada;

Tenho mais de uma vez me visto em tais perigos,

Que as vossas legiões aguardo na esplanada.

Mas, como os coronéis antes da ação travada,

Usam passar revista ao batalhão inteiro,

Vou ver si a minha Musa está disciplinada

E pôr mais um reforço à boca do tinteiro.

Vós acampastes bem: de cima do Parnaso,

É só virar p’ra baixo as bocas dos canhões...

Visse-me eu lá também — deixava tudo raso:

Estais perto do céu... podeis juntar trovões!...

Demais, podeis montar vossas cavalarias

No Pégaso — o corcel de Homero, Tasso e Dante;

Eu... só tenho animais magros, como as fatias

De pão que com o chá me dão n’um restaurante.

Os peitos resguardais com armaduras d’aço,

Tendes escudo, arnês e gládio e capacete...

Eu nada disso tenho, além de um rude braço

Pronto às evoluções rápidas do florete.

Vós tendes madrigais, doces como os canários,

E elegias — que são como o dobrar d’um sino...

Andais a descobrir cruzes pelos Calvários...

Enquanto que eu só tenho o verso alexandrino!...

O verso alexandrino!... Ó mórbidos profetas,

Que andais a descobrir astros ao meio dia...

Quereis que a multidão vos chame de poetas?

Então lançai p’ra um canto a inchada fantasia.

Cantai o bom e o belo, o justo e o sublime;

Azorragai o mal, divinizai o bem;

Cortai a parasita, equilibrai o vime:

Dai aos grandes desprezo, ao mísero um vintém.

Deixai junto das mães as castas Julietas,

E ide ver — somente à noite — as barregãs...

O     tempo encaneceu as longas tranças pretas,

Que cantastes outr’ora, em faces de romãs.

Eu também já levei assim noites e dias,

Sonhando, sem dormir, com alvas Eleonoras:

Umas — leves, ideais, franzinas, doentias....

Outras — gordas, sensuais e de madeixas louras!

Quando passais por mim, sombrios, solitários,

Como as virgens que têm acessos de histerismo,

Eu não me rio; eu lembro, ó tristes visionários,

Que andei d’essa maneira em tempos de lirismo.

Esses tempos, porém, passaram — qual nos ares

A luz crepuscular do sol já descambando;

Como somem-se além, na solidão dos mares,

As velas de uma nau que segue, bordejando....

Ó magros menestréis do sentimentalismo,

Que andais de chapéu-alto e pince-nez (grau zero)

E à noite improvisais sessões de espiritismo....

Invocando, com medo, a alma atroz de Nero;

Vós lestes Júlio Verne, oh! não negueis; por certo

Fostes da terra à Lua... e vistes cousas tais

N’aquele grande mundo, aquele céu aberto...

Que — até aqui — na Lua ainda vos julgais.

 

XII

GANGANELI

(CLEMENTE XIV.)

Presto será sede vacante.

(P. S. S. V.)

Tu, sim; foste fiel ao voto de humildade

Prestado ante o altar, na paz das orações;

Regaste com escrup’lo a flor da castidade,

Alma cheia de crença e nua de paixões.

Mas, como em toda parte há sombra e claridade,

Também nos dias teus encontram-se borrões:

Atiraste a Voltaire — Apóstolo da Verdade —

Marmontel e Rousseau, rijas excomunhões.

Eras Papa, bem sei, deveras ser tirano;

Quem aceita a Tiara e sobe ao Vaticano,

Tem de ser, como os reis, despótico e cruel...

Mas que morte fatal te estava reservada!

Quando irias pensar que a aqueta era injetada

No fruto, aos mais tão doce... e para ti de fel!?...

 

XIII

CANTO DE NERO

(N’UMA PÁGINA DE VICTOR HUGO)

I

Vereis em breve arder a velha Roma inteira;

E eu, qual salamandra entre voraz fogueira,

Se for muito o calor que me abrasar a fronte,

Como na embriaguez das régias saturnais,

Do alto d’esta torre, escura como a noite,

Hei de entoar na lira uns cânticos fatais!...

Debalde a multidão procura onde se acoite.

No píncaro do monte,

Quem vale ao infeliz que luta braço a braço

Com o tigre — que atroa as solidões do espaço?...

Sete colinas vejo a meus pés estendidas,

Formando o grande circo, onde Roma, a devassa,

Tapa com mão de fogo a boca de mil vidas,

Amordaçando os vis com panos de fumaça...

Meus súditos assim hão de pagar bem caro

O ter nascido aqui nesta enfadonha terra,

Onde um tédio mortal por toda parte encaro...

E a saciedade atroz com seu olhar me aterra!...

Jove! eu sei, como tu, vibrar o raio ardente!

Vês?.. a noite caiu... vai começar o jogo:

Já o incêndio fatal, na sombra pavorosa,

Como uma hidra informe — elástica serpente —

Com cem línguas de fogo

Lambe o espaço, enroscando a cauda luminosa!...

Olha... a trémula chama

Sobe aos muros veloz como um audaz ladrão;

Empalidece... cai... levanta-se!... s’inflama!...

Gira em torno de si, n’um doido turbilhão,

E n’um instante só

Torres e tudo mais ela reduz a pó!...

II

Pensas, Jove, que as chamas me apavoram?

Não! que os ciúmes no meu peito pulam...

Quem me dera esses beijos — que devoram!

Quem me dera os abraços — que estrangulam!...

Vejamos os sinistros resplendores:

Vê como correm tímidas as gentes...

Escuta esses clamores,

Uns sufocados, outros estridentes!...

Colunas e obeliscos vão caindo,

Com formidável som tombão, rolando,

Como trovões medonhos ribombando!

E, disfarçando o horror, a angústia, o luto,

Dão as chamas ao Tibre por tributo

Rios de fogo líquido rugindo!...

Tudo referve!... Pórfiros, granitos,

Mármores, bronzes!... Espetac’lo horrendo!

Cai o portão dos gonzos ignitos...

E de seus reforçados pedestais

As estátuas deslocam-se, tremendo,

As estátuas dos mortos... imortais!

Bravo incêndio!... Só tu me compreendes!

Por toda parte corres e te inflamas...

E ao sopro dos tufões rápido estendes

N’um mar de fogo um temporal de chamas!...

Quando o sangue manchar os vossos mantos,

Lavai com vinho as nódoas, meus amigos!

Só no sangue hoje em dia eu acho encantos...

Ou na hora suprema dos perigos!...

Mal haja quem do triste moribundo

Ouve compadecido as maldições!

Sufocaremos o clamor profundo

Aos sons de ditirambos e canções...

E tu, Roma! no fogo que te abrasa

Vê das minhas vinganças este exemplo!

E já que em tua adoração incerta

Roçaste no teu voo a ponta d’asa

Pelas frontes de Júpiter e Cristo...

Roma! lembra-te disto:

Consagra-me também glorioso templo.

Sim! que si agora vejo-te deserta,

Se envolta em cinzas hoje te contemplo,

Amanhã surgirás — inda mais bela!

Mas a cruz nos teus muros soberanos

Não hás de reerguer... Entre os humanos

Eu sei que a crença nela

Bruxuleia e se apaga, pouco a pouco,

Como os instantes lúcidos d’um louco!...

Os filhos de Jesus — foram fatais

À desgraçada Roma!

Escravo! não há nada como o aroma

Das flores do Oriente...

Traze-me, pois, depressa, incontinente,

Rosas orientais!...

 

XIV

A VIDA E A MORTE

São irmãs e rivais, ambas têm seis mil anos...

Uma nasceu do amor, a outra do pecado;

E os santos e os reis, os papas e os tiranos

Deixam uma por outra... embora de mau grado.

Uma — é louca e cruel: desfolha desenganos,

E tem o corpo seu de abismos rodeado!...

A outra — é boa e triste: embrulha-se n’uns panos

E deita-se a dormir n’um túmulo fechado...

Uma vela na orgia, outra dorme na igreja;

Esta sem ambições, aquela ébria de inveja...

Uma lânguida e fraca... a outra má e forte!

Os homens, pela má, furiosa, enraivecida,

Lutam com seus irmãos!... E, por amor à Vida,

Chegam a blasfemar da boa e triste — a Morte.

 

XV

A NOITE DAS VISÕES

(AO COMPANHEIRO E AMIGO O DR. LOPES TROVÃO.)

Eu estava à janela, a pensar, só e mudo,

Aberta a alma à terra, ao mar, ao céu... a tudo!

Na terra as maldições soavam n’um concerto,

O mar bramia em fúria, o céu era um deserto...

Abri os olhos d’alma a tudo: e vi — o nada.

Silente como o ar, frio como a geada.

As virações do mar, gemendo muito ao longe,

Faziam-me pensar nas orações de um monge...

Lembrei, ao ver cair a chuva sobre o mundo,

A lágrima que cai no rosto moribundo.

Os ventos, apagando as trémulas luzernas,

Pareciam leões rugindo nas cavernas.

Era uma noite negra, ameaçadora, horrenda,

Prolongada... sem fim!

Era uma noite irmã da bíblica legenda

Do sombrio Caim!...

A chuva, que caía dos espaços,

Fazia em estilhaços

Os vidros das janelas;

E ao rolar sobre a terra, enraivecida,

Pulava, recuava — espavorida...

Ela, com medo: a filha das procelas!...

Ante a fúria brutal dos rugidores ventos

Tremiam de terror os muros dos conventos.

Caíam pelo chão as folhas do arvoredo;

Os homens tinham raiva... as feras tinham medo!...

Os trovões, a rolar na escuridão do espaço,

Eram carros de bronze entre caminhos d’aço!...

Eu julgava escutar os berros d’um gigante,

De algum d’esses heróis descritos pelo Dante...

Não causa tanto horror a fauce do Vesúvio

Como uma noite assim — reflexo do Dilúvio!...

Era a franqueza d’agua, a sátira do vento,

A hipérbole da treva em pleno firmamento!

Então, eu vi surgir do ventre d’um abismo

Um monstro, um Satanás, impávido, disformo:

Tinha o corpo felpudo, arrepiado, enorme...

Olhar de cão danado!...

Era ele o Ceticismo.

Volteavam-lhe em torno, emagrecidos, fracos,

Inquietos pigmeus,

Soltando uns guinchos d’aço, assim como os macacos

Mostrando os filhos seus

Ao caçador que os deixa e segue, admirado

De ver aquele instinto assim pronunciado.

E saltavam ao pé do monstro vil, ligeiros

Como a cobra que dança aos gritos do selvagem;

Assim, quando um cativo expira, os seus parceiros

Prestam-lhe a derradeira e fúnebre homenagem,

Dançando ante o esquife, alegres, prazenteiros,

Pensando que do morto a alma está no céu...

Ou ao lado dos seus — na terra onde nasceu.

E o monstro pavoroso,

Atlético, grosseiro,

Como o vulto orgulhoso

De um velho granadeiro;

Em tom de voz medonho e abafado,

Como o agonizar d’algum gigante,

Ou um vulcão há sec’los sufocado

Que rasgasse a cratera chamejante,

Firme o olhar, cabelo desgrenhado,

Úmido o pelo, a boca faiscante,

Estas palavras disse, sem tremer,

Fazendo a própria treva enegrecer:

“O céu é um vácuo enorme; a terra — a sepultura,

Onde apodrece, exposta aos vermes da vaidade,

A triste humanidade;

A virtude é um sonho, a honra uma mania;

A inteligência — um crime, a glória — uma utopia...

A vida — dia claro: a morte — noite escura!...

“A águia da razão, librando-se no seio

Das vastidões doar, aninha-se no espaço...

E, desatando o laço

Que a humana geração prendia à ignorância,

Deixa as religiões na mais pungente ânsia,

Fazendo ver que o céu — é puro devaneio.

“Alma — palavra vã, que o sábio não exprime;

Deus — orgulho sem fim, eterno despotismo...

Vida — sombrio abismo.

Morte — transformação de um ser em muitos seres;

Homem — filho da dor e órfão dos prazeres...

Matéria — o que há de eterno, o único, o sublime!...

0 mais — tudo é mentira!... As grandes catedrais

Abrem ao bom e ao mau as portas igualmente.

O verdadeiro crente

É aquele que descrê, ou o que crê — no nada...

O mundo é um carnaval!... sorri d’esta farçada

A caveira que rola ao pé dos vegetais.

]

Depois... a Lua cheia, o pálido satélite,

A vaporosa Ofélia a flutuar no azul,

Tremendo apareceu na solidão etérea,

Ao levo respirar das virações do sul.

Vinha lânguida e triste... a face de uma tísica,

À embaciada luz do Sol crepuscular,

Não tem mais palidez, nem é mais branca a pétala

De um molhado jasmim rolando à flor do mar...

As nuvens cor de chumbo, os grandes mantos fúnebres

Que toldavam do céu o puro azul sem fim,

Reposteiros ideais do negro umbral dos túmulos,

Mostram constelações n’um fundo de cetim.

E o monstro da descrença, esse vampiro tétrico,

Anguloso, felpudo, informe, colossal,

Desfez-se com a treva: a lúgubre irmã gêmea

D’aquela alma da cor de um grande tremedal.

E então eu vi surgir...aparição fantástica!

Das bandas do oriente uma visão imensa:

Transparente, ideal, clara, rosada, lúcida,

Era a filha do Céu — o querubim da Crença!

Ó Crença! raio último

Dos olhos de Jesus,

Quando, sobre o Calvário,

Fechou as roxas pálpebras,

Abrindo os braços nus...

Dos braços de uma cruz!...

Tu és um riso cândido

De cândida criança;

Tens asas: és um pássaro,

Pássaro de esperança!

Adeja, sobe, eleva-te

Por esse espaço além...

Mas ah! os braços abre-me:

Cristo os abriu também.

Deus! como é bela, tímida,

Meiga, modesta e calma,

Ela — que vem de júbilos

Encher a nossa alma!...

Tinha o olhar sereno e doce das crianças,

Um riso aberto e claro — assim como as janelas

Que deitam para o mar... e um turbilhão de estrelas

Estava a engrinaldar-lhe as perfumosas tranças!...

Em delírios a luz caía dos espaços,

Ajoelhando em torno àquela visão branca;

E com sonora voz, sincera, alegre, franca,

Disse — as asas abrindo e levantando os braços:

“Eu sou um misto encantado

De aromas e sons e luz.

O Cristo, o Deus humanado,

Abriu-me os braços da cruz.

“Quando o último sorriso

Frisou os lábios de Adão,

Ao deixar do Paraiso

A celestial mansão;

“Aclarei da noite a treva,

Acendendo — astro de amor —

Na face pálida de Eva

Uma pérola de dor.

“Enxuguei, com uma pena

Das asas de Jeová,

O pranto da Madalena...

As lágrimas de Eloá!...

“Da luz do nascer do dia,

Das ardentias do mar,

Das brisas d’ave maria

E dos orvalhos do ar;

“Do trino dos passarinhos

E da espuma que flutua,

Do morno calor dos ninhos

E dos serenos da Lua;

“Das neblinas, das penugens,

Dos aromas, dos fulgores,

Dos arminhos e das nuvens,

Mais das pétalas das flores,

“Fiz o manto de rainha

Que pende dos ombros meus:

E — leve como andorinha —

Desço aos homens... subo a Deus!

Da igreja, a esposa suave

De Jesus, filha dileta;

Fiz o meu ninho de ave

No coração do poeta.

É em mim que ele se inspira:

Com a fronte no meu seio,

Ou fere as fibras da lira

Ou perde-se em brando enleio.

De meus olhares aos prismas

Eu o deixo, em mago eflúvio,

Boiando em lagos de cismas,

Como a arca no Diluvio...

Se a alma cristã se aninha

No calor dos seios meus:

Tão leve — como andorinha —

Desço aos homens... subo a Deus!”

A muita luz do dia, em turbilhões, em jorros,

Caindo d’amplidão, descendo pelos morros,

Tremendo sobre o mar,

Fez com que o anjo bom, o serafim dos crentes,

Batendo n’um instante as asas transparentes

Se perdesse pelo ar!...

 

TERCEIRA PARTE

SONÂMBULAS

À Ondina

Rio de Janeiro, 1879.

Múcio Teixeira

 

I

Ondina, minha Ondina! é muito cedo ainda,

Para que possas tu compreender, ó linda!

A sublime intenção d’esta singela oferta...

É que um pressentimento horrível me desperta

A ideia de morrer bem cedo... — me perdoa,

Se esta revelação sombria te magoa!

Mas... nem eu sei: minh’alma está compenetrada

De que em breve de mim não restará mais nada...

Além de uma lembrança em coração amigo,

E um nome — que talvez nem leiam no jazigo!

Deixo o teu nome aqui, para que quando um dia

Eu dormir para sempre em cova escura e fria,

Vás, chorando, rezar na campa ignorada

De um infeliz... por quem tu foste muito amada!

Assim, se um dia tu, na sala de visitas,

Do álbum folheando as páginas bonitas,

Demorares o olhar ante a fotografia

De um pálido rapaz, cuja visão sombria

Inspirar-te tristeza, e esse não sei quê...

Isso que a gente sente, às vezes, quando lê

Castro Alves, Casimiro... ou mesmo as poesias

De Álvares de Azevedo, ou de Gonçalves Dias...

Se pensares então em mim, como em ti penso,

Bem sei que hás de levar aos olhos o teu lenço.

Se outras vezes, sentada a um banco do jardim,

À luz crepuscular — lembrares-te de mim...

Pede à tua mãe que leia os versos d’este louco,

Que amou e sofreu tanto... e que viveu tão pouco!

Se uma lágrima então rolar na face d’ela,

Como gota de orvalho em pétala singela

De purpurina rosa... oh! nem eu sei se o diga!

Ondina, meu amor! minha inocente amiga!

Abraça-a, beija-a, sim! enxuga os prantos seus,

Esconde o meu retrato... e rasga os versos meus!

 

II

SUB UMBRA

(À EXMA. SRA. D. ANA MATOSO DE AZEVEDO CASTRO)

Há umas almas sensíveis

De umas eternas crianças,

Que dormem com esperanças

E sonham com impossíveis.

São bandos de pombas mansas,

Que com asas invisíveis

Voam por céus indizíveis

Entre saudosas lembranças.

Cismando, de plaga em plaga,

Também minh’alma divaga

Sem ter destino e sem medo.

E assim, perdida na bruma,

Parece um floco d’espuma

Que a onda lança ao rochedo.

 

III

NOSTALGIA... IDEAL!

Ó alaúde hebraico! ó citara divina!

Eu tenho o coração a transbordar de amor...

Case-se a minha voz à oriental surdina

Que vê Tritões na espuma e Dríades na flor!

Ó minha fantasia! ó desvairada cega,

Que vagas — nua e só — por plaga solitária...

O que procuras tu? — a formosura grega,

Premiada em Esparta, em Lesbos... a estatuária?...

A Grécia! a Grécia! a Grécia!... O berço dos poetas,

Dos deuses, dos heróis, da plástica e da ideia...

Onde as Ninfas, Cupido e as Cícladas diletas

Banhavam-se, ao luar, à flor da onda egeia!...

A Grécia! sempre a Grécia!... Aonde, à luz poente,

Sentava-se o Nestor da choça ao limiar...

E revivia assim extraordinariamente,

Qual tísico que sorve as virações do mar.

A terra das paixões, dos sentimentos caros;

Onde Homero nasceu, à margem do Melés...

Lá — onde o escopro cai no mármore de Paros,

E cai Pigmaleão — de Galateia aos pés!...

Que importa que do norte as plagas vis, estranhas,

Mostrem steppes só, por sob um céu vazio,

Se ela tem ao Levante as nuvens, as montanhas,

E Nereides no mar... e Náiades no rio?!...

A Grécia! sempre a Grécia!... É lá que o estrangeiro

É mais do que um amigo: um deus em forma humana;

E encontra sempre aberto um lar hospitaleiro,

Uma benção de ancião e um beijo de lesbiana!...

Eu quero, como o Lord errante e peregrino,

Que imaginou Manfredo, Haydéa e D. Juan,

Deixar o meu país, seguir o meu destino...

Morrer — no seio nu da sensual pagã!

A Grécia é um condor, que adeja no horizonte

Dos mundos ideais — com asas de fuzis!...

Canta... e a gente escuta a voz de Anacreonte!

Surge... e a gente vê prodígios de Zeuxis!...

Eu quero consagrar de minha lira os trenos

Ao braço dos heróis e ao crânio dos poetas!

Assistir a um festim de Júpiter, ou Vênus,

Fazer um brinde a Apolo... e rir-me dos ascetas!...

Tenho uma compleição nevrálgica e franzina,

Sujeita às impressões da mais ligeira ideia:

Se hei de sentir o amor de Otelo, que assassina...

Quero sentir o amor de Mirra ou de Medeia!...

Vivo a sonhar contigo, ó pátria dos poetas,

Dos deuses, dos heróis, da plástica e da ideia...

Vejo as Ninfas, o Amor e as Cícladas diletas

Banhando-se, ao luar, à flor da onda egeia!...

 

IV

AMAR

(A. A. L.)

Amar aos vinte e dois anos

E ser poeta, mulher,

É um desvendar de arcanos

Que os não desvenda qualquer!...

É um desliar de bagas

De um colar feito de chagas

Abertas no coração...

Um fulgir de vagalumes,

Com tantos brilhos, tais lumes,

Que nos deslumbra a razão!...

Assim, em louca cegueira,

N’essa voragem fatal,

Noss’alma vai de carreira

Bater às portas do mal...

E como a leve falena

Queimando as asas sem pena

Em derredor de uma luz,

Em busca de primaveras,

Vai, tropeçando em quimeras,

Cair nos braços da cruz...

Amar — é viver, sozinho,

Tendo alguém perto de si;

Ser pombo, fazer o ninho:

E a rolinha sempre ali!...

É um nunca fechar de braços,

Que se trocam em abraços

Que estreitam dois corações;

Um turbilhão de desejos

Que se desmancham em beijos...

E passam como ilusões!...

Amar — é fechar os olhos

E ver-se o que não se vê...

É caminhar entre abrolhos,

Colhendo grinaldas!... e...

Depois... não sei; mas, eu penso

Que a gente fica suspenso

Por asas de um querubim!

E vai voando... voando...

Por entre estrelas passando...

N’aquelas plagas sem fim!

Amar — assim como eu amo

É um delírio talvez!

Uma loucura não chamo,

Pois louco não sou, bem vês;

Mas... há por força um mistério

N’esse não sei quê de etéreo

Que não sei d’onde há de vir...

Umas atrações de abismo,

Uns fluidos, um magnetismo

Que sentimos... sem sentir!...

 

V

ADA

(LUDWIG)

Ri... e as vibrações dos risos argentinos,

Sonoras, petulantes,

São pérolas de alguns colares cintilantes,

Desfiadas, caindo em lagos cristalinos!...

Fala...e a gente escuta uma harmonia louca,

Confusa como os sons d’uma canção saudosa;

Parece ter um eco essa vermelha boca

Dos sons de um’harpa eólia, etérea, misteriosa.

Sua voz desperta sempre uma lembrança vaga,

Que um íntimo sentir, sem o sentir, resume;

Penetra-nos na alma... e pelo azul divaga

Como um subtil perfume!...

Olha... e a branda luz que doira-lhe a pupila,

Como um branco luar em pleno firmamento,

Derrama em derredor aquela paz tranquila

De um silêncio profundo em triste isolamento.

Falar-lhe deste amor... bem sei que, em vão seria,

Não ousarei, Senhora;

— Somente o palpitar do coração podia

Dizer-lhe o que dizer não sabe quem a adora!...

 

VI

ESTROFES SOLTAS

Tens qualquer cousa de vago

Na abstração d’esse olhar,

Manso às vezes como um lago

Visto em noites de luar;

Outras vezes cintilante,

Como um broche de rubis,

Ou a pedra de brilhante

D’esse teu anel de onix.

Os fios dos teus cabelos

São fibras d’um alaúde,

Por onde passam meus zelos,

Vibrando argentinos sons,

Na orquestra selvagem, rude,

Das minhas inspirações.

Há nos teus seios morenos,

Macios como as maçãs,

Uns fluidos castos, serenos,

Que parecem ser um misto

Dos olhos de Jesus Cristo

E o rir das nossas irmãs;

E um não sei quê de veludo,

De plumagens e da arminhos,

Umas redes entre uns ninhos...

Uns nadas — que encerram tudo!

Teus pés são dois demoninhos,

Mágicos prestigiadores,

Que passam por entre espinhos

Deixando rastros de flores!...

Tuas mãos, à semelhança

D’alguma história encantada,

D’essas que a gente em criança

Adormece quando escuta...

Essas mãos são chaves d’ouro,

Que abrem a porta da gruta,

Onde repousa uma fada

Por sec’los adormecida,

Até que um príncipe louro

Vá n’um beijo dar-lhe a vida!...

Quem me dera, ó minha amada,

Quem me dera, ó meu tesouro,

Que tu fosses uma fada...

E eu — um príncipe louro!...

 

VII

FOLHAS DA MINHA CARTEIRA

Tenho notado que a maior parte dos homens têm pressa de entrar na posse da mulher que lhes consagra amor; tenho feito sempre o contrário, não por cálculo, mas por um sentimento natural.

(ALFREDO DE MUSSET.)

Passou... era orgulhosa e petulante,

Como o sol nas manhãs de primavera:

Tinha na voz sonora um tom vibrante,

E no seio — a erupção d’uma cratera!...

Lançou-me os grandes olhos, de relance,

E prosseguiu — silenciosa e bela —

Então... sombrio herói d’esse romance,

Mandei os meus desejos atrás d’ela...

Havia em seu olhar, límpido e forte,

Magnéticos fluídos luminosos...

Era olhar de leão, que sente a morte,

Contemplando os desertos arenosos!...

Nos seus gestos elásticos, felinos,

Tinha a vivacidade das serpentes;

E entre os lábios macios, purpurinos,

Colares d’alvas pérolas humentes...

No movimento rápido dos passos

Requebrava os quadris, como a Andaluza

Que por sob a mantilha move os braços,

Quando o Cid a seus pés estende a blusa...

O meu olhar, audaz como o bandido

Que entra, pé ante pé, n’um quarto escuro,

Através do cetim de seu vestido

Roçou na maciez de um seio duro...

Senti então arfar, voluptuoso,

Seu colo escultural da cor do jambo;

E de seu lábio trémulo, sequioso,

Como que ouvi os sons d’um ditirambo!...

 

VIII

ÍNTIMA

Se houvesse uma palavra que exprimisse

Tudo o que sente um’alma de poeta,

Ou se um olhar ao menos traduzisse

Todas as lendas da paixão secreta;

Então feliz seria quem sentisse

Este fogo que eu sinto e que me inquieta...

Quem, chorando de amor, de amor sorrisse,

Na sombra da mudez a mais discreta.

A verdade, porém, é tão amarga,

Que quanto mais a aspiração se alarga

Mais longe devo estar — de quem procuro...

Ah! e ela não sabe... e eu não lh’o digo!

Mas... hei de ter comigo — quem consigo

Tem minh’alma, meus sonhos, meu futuro!

 

IX

NADA

(AO POETA E AMIGO O DR. A. BOMSUCCESSO)

Passei entre ovações por baixo das arcadas,

D’onde pendem lauréis de viridentes flores;

E volto, sem trazer nem um d’aqueles nadas,

Que enchem o coração dos moços sonhadores.

Em noites estivais, silentes, luminosas,

Quando o azul do espaço é um jardim de estrelas...

Eu colhia com ela as mais purpúreas rosas,

Cantando distraído umas canções singelas...

E íamos os dois, sem mais ninguém, sozinhos,

Entre os galhos em flor do trêmulo arvoredo:

Dormiam em silêncio os pássaros nos ninhos...

Dormia o nosso amor na sombra do segredo!...

Mas, uma vez... parando ao pé d’um grande lago,

Que parecia ser do céu um dos espelhos...

Nos grandes olhos d’ela eu vi um brilho vago!

Beijei-a, me prostrando, humilde, de joelhos.

Ela ficou vermelha... e tímida, assustada,

Disse-me... nem eu sei o que ela disse a esmo!

— Só posso me lembrar que a luz da madrugada

Ainda nos achou n’aquele sítio mesmo.

Depois, eu me ausentei d’ali por muitos anos,

Correndo, como um louco, em vão, atrás da glória...

Fui com aspirações: voltei com desenganos!

Eis qual do meu passado a resumida história.

Mas sempre, em toda a parte — aqui...além...mais longe...

Eu via a imagem d’ela em todo o meu caminho:

Gozasse como um rei, sofresse como um monge,

Jamais aquele amor deixava-me sozinho!...

Fui, pensativo e só, bater um dia à porta,

Aonde tanta vez eu lhe beijara a mão!...

Vi no meio da sala — uma pessoa morta...

E umas velas de cera à roda d’um caixão...

Quis entrar, mas meus pés, ao assoalho presos,

Pesavam como chumbo... Eu pressentia tudo!

Os conhecidos meus fitavam-me surpresos,

Como loucos olhando à toa para um mudo.

Era uma noite fria; um denso nevoeiro

Caía sobre o chão das solitárias praças;

Uivavam tristemente os cães pelo terreiro...

Gemia a viração nas frestas das vidraças!...

Enfim, a muito custo, após um grande esforço,

Consegui penetrar no fúnebre recinto:

A dúvida é talvez mais negra que o remorso!

E eu era ali — o herói da Noiva de Corinto...

A um canto do salão chorava uma senhora,

Sem que entre os mais alguém ousasse erguer a fala;

’Stavam sobre o piano as músicas — que outr’ora

Eu a ouvia tocar, n’aquela mesma sala...

Vi seu corpo gentil, escultural, perfeito,

Branco e frio estendido à claridão das velas;

Tinha as mimosas mãos unidas sobre o peito...

E um lenço, como um véu, por sobre as faces belas!...

Chorei!... Reguei de pranto as flores derradeiras

Da minha mocidade — ali amortalhada

Ela me despertara as ilusões primeiras,

Sem ela n’este mundo eu via-me sem nada!...

Ergui, sabe Deus como, o lenço de cambraia...

Um raio lampejou! — cintilações fatais!...

O silêncio é a dor. O homem que desmaia,

Embora torne a si, não vive nunca mais...

Eis porque sinto em mim um mórbido cansaço,

Um tédio sem igual... — atroz melancolia!

Como se de um gigante o musculoso braço

Estivesse a apertar meu peito noite e dia!...

 

X

A PECADORA

Reclinada sobre a sege,

Sorri, ao ver D. Juan,

Aquela formosa herege...

Aquela moça pagã.

E passa altiva, orgulhosa,

Nas almofadas do carro,

Tendo n’um corpo de rosa

Um’alma que é um escarro...

Se o seu olhar de veludo

Vê alguém chorar, sorri;

Descrê de todos, de tudo,

De Deus, dos homens, de si!

Rosa, tem pet’las e olências:

Os beijos mais os carinhos;

Quanto às muitas exigências,

Também tem a rosa espinhos.

Ressequida, estéril, árida,

Aquela alma é um Saara...

Às vezes — uma cantárida!

Outras — mármor de Carrara!...

Ai do louco que a acompanhe

Na noite da embriaguez...

— Voga em lagos de Champagne,

Mergulha em mar de Xerez!

 

XI

A LUVA

(AO POETA E AMIGO A. E. ZALUAR)

I

No Jardim dos Leões, diz Schiller que se achava

A corte reunida em massa, e esperava

Que o rei Francisco desse algum sinal co’a mão,

Para surgir na arena o rugidor leão.

Em derredor do circo estavam agrupados

Padres e cortesãs, duquesas e soldados,

Misturavam-se aí as sedas dos vestidos

Das deusas do bom tom, co’os paletots compridos

Dos dandys de luneta e luvas de pelica,

Romeus... que andam atrás de Julieta — rica.

O rei dá o sinal: range o portão de ferro,

Tremem todos ouvindo um horroroso berro,

E surge n’esse instante, a passo firme e lento,

O rei dos animais: a juba solta ao vento,

O olhar a desprender lampejos inflamados,

Garboso, a caminhar d’um para os outros lados,

Relanceia o olhar por sobre o povo inteiro

E estende os membros seus no centro do terreiro.

Novo sinal do rei faz outra porta abrir-se:

E um rugido maior que o outro deixa ouvir-se...

Aparece na arena um tigre, n’esse instante

Raivoso como um rei!... Bramido horripilante

Solta o leão, torcendo a cauda, a contemplá-lo

Com um olhar talvez capaz de atravessá-lo...

Atroa rudemente os ares!... E de novo

Descansa o corpo enorme, olhando para o povo.

Ao terceiro sinal novos portões se abriram

E então de seus covis horríficos saíram

Dois leopardos mais, que investem destemidos

Para o tigre — que assesta as garras... Aos rugidos

Que desprende o leão, n’esse momento a erguer-se,

Fitam-se os animais!...Era horrível de ver-se:

Arrojam-se ao leão o tigre e os leopardos!

Vigorosos, cruéis, terríveis e galhardos,

Estrangulam-se os bons guerreiros sem espada:

A lutar e a rolar na arena ensanguentada!...

II

Mas, n’isso, do anfiteatro,

Uma donzela, a sorrir,

Descalça a mão e a luva

Deixa na arena cair.

Leviana, como muitas

D’essas cabeças gentis,

Olhando para seu noivo

Estas palavras lhe diz:

Disseste que morrerias

Por nosso amor... eis aqui

A ocasião de provar-m’o

Erguendo a luva d’ali.

III

E o rapaz, mais ligeiro que o vento,

N’esse instante atirando-se à arena,

Ergue a luva do meio das feras,

Encarando-as com fronte serena.

Toda a gente, em redor, contemplando

D’esse moço a bravura sem par,

Eu não sei si de assombro ou respeito

Nem podia sequer respirar.

Quando à moça o rapaz corajoso

Dava a luva, modesto e cortês,

O silêncio rompeu em aplausos...

E os aplausos caíram-lhe aos pés!...

IV

Erguendo-se a donzela, então, formosa e lânguida,

Contempla-o com respeito e com amor sorri;

E diz-lhe, ao receber a luva, com voz trémula:

“O quanto hei de te amar!... por que descri de ti?...”

Mas ele, recuando um passo e cortejando-a

D’esta forma agradece os cumprimentos seus:

“Guardai o vosso amor dentro da luva; odeio-vos,

Esquecei-vos de mim — que vos desprezo. Adeus!”

 

XII

AS MÃES

Ó Mães! da Mãe de Deus vós despertais lembranças,

N’essa augusta missão — tão cheia de poesia;

Quando embalais ao colo as tímidas crianças,

Eu penso ver Jesus — nos braços de Maria!

Vós sois uns anjos bons! de amor e de piedade

Tendes um ninho em flor nos seios virtuosos;

— Nos filhos refletis a vossa f’licidade,

Como em límpido espelho os corpos luminosos.

Vós sois a inspiração primeira dos poetas,

Vós sois o pensamento extremo dos doentes...

Quem antes osculou a fronte dos profetas,

Vindo a cerrar mais tarde os olhos dos videntes?...

Ó Mães! de minha Mãe vós me trazeis lembranças...

Encheis-me de saudade!... Eu amo-vos por isto.

Quando embalais, cantando, aos seios as crianças,

Eu sonho ver Maria acalentando o Cristo!...

Meu Deus! não sei dizer o que há de mais ungido

De bálsamos do céu, se há mais sublime cousa

Que a Mãe que embala ao berço o filho adormecido,

Ou se o filho que reza ante a materna lousa!...

 

XIII

A LÍDIO

NO DIA DO ENTERRO DE SUA ESPOSA

Pulvis, cinis et nihil.

Peregrinos na senda do mistério,

Vamos todos rolar no pó funéreo

Dos frios mausoléus...

Não pode a frágil mão da humanidade

Arcanos desvendar da eternidade,

Erguer tão densos véus.

Há leis fatais, impostas pela sorte,

Que nos condenam à mudez da morte,

À sombra d’uma cruz.

Os dias passam, como as horas correm,

Murcham as flores, como as crenças morrem,

Como se extingue a luz!...

O riso de Voltaire queimou-me os lábios!

Tenho a tristeza glacial dos sábios...

Um ermo dentro em mim!...

Contemplo a natureza, mudo e triste,

Porque vejo que tudo quanto existe

Um dia há de ter fim.

Tudo há de se acabar!... As sepulturas,

Abertas para o céu, frias, escuras,

Esperam os mortais:

De tanta aspiração que a mente inflama,

Ficam somente os ossos sobre a lama...

Ossos — e nada mais!...

É bem triste morrer!... Mais triste ainda

É ver a esposa, carinhosa e linda,

Na aurora do viver,

Fechar os olhos para a luz da vida,

Dizer, chorando, o adeus da despedida...

Partir p’ra não volver!...

Muito cedo apagou-se, meu amigo,

Na sombra lutulenta do jazigo,

A luz dos dias teus...

Muito cedo no chão de um cemitério,

Teu amor transformou-se n’um mistério,

N’um segredo de Deus!...

Não há consolo para dores d’estas;

Se a sociedade no vai-vem das festas,

Insulta a nossa dor...

No seio dos amigos inda achamos

Almas irmãs, que choram, si choramos,

Amor p’ra o nosso amor!...

Mas, se dá lenitivo ao sofrimento

O pranto de um sincero sentimento,

Que em rosto alheio cai,

Eu aperto-te a mão — e sabe agora

Que, quem a tua dor lamenta e chora:

Já não tem mãe nem pai!...

 

XIV

PÁGINAS DE UM CÉTICO

(A EXMA. SRA. D. MARIA FAUSTA DA CRUZ RIBEIRO)

Mas o orgulho na dor é o silêncio profundo,

A profunda mudez...

E a minha dor cruel eu não a conto ao mundo,

Porque a não contaria à minha mãe talvez!

(GUERRA JUNQUEIRO)

Quereis mesmo, Senhora, ler a história

Da minha vida, que se extingue aos poucos?...

Pois bem; vou descrevê-la de memória,

Na febre intensa dos assomos loucos.

Há n’estas folhas a legenda inglória

De muitos gritos abafados, roucos,

Arrancados do íntimo do seio

Nas contrações febris d’um longo anseio.

Perdão, se vou ferir vossos ouvidos

Com frases loucas de linguagem rude,

Perdão — se aos vossos olhos, embebidos

Nos deslumbrantes prismas da virtude,

Vou levantar uns anjos decaídos

N’um antro — inda pior que o ataúde:

Falo da saturnal — o cemitério,

Onde a taça é a cruz, o mais... mistério!...

Transpus, sorrindo, o limiar da vida,

Como o noivo feliz, que aos vinte anos

Na alcova nupcial, fresca e florida,

Penetra — cheio de sutis enganos!...

Uma esperança vaga, indefinida,

Tentava erguer o véu de mil arcanos...

Pareciam-me, aos raios das estrelas,

Irmãos os homens, anjos as donzelas!

E cantei!... É que eu tinha dentro d’alma

O dom fatal dos mártires sombrios,

Que procuram colher da glória a palma

E vão cair nos túmulos vazios...

A febre de aspirar, que não se acalma,

Bem cedo me arroxou os lábios frios!

Foi o canto do cisne... a voz da morte:

O agourento uivar do cão da sorte!

Senti que no meu peito havia um ermo,

— Povoado somente de desejos... —

Temi chegar d’esta existência ao termo,

Sem ter libado o doce mel dos beijos!

Nos meus delírios — sonhador enfermo —

Louco ideal me despertava almejos

De unir um dia ao palpitante peito

Mimoso corpo virginal, perfeito!...

E amei, com ânsia, com delírio intenso,

Uns lábios róseos que p’ra mim sorriram...

Meus pensamentos, como um leve incenso,

Para alcançai-os — para o céu subiram!...

É que eu amava com afeto imenso!

Mas... esses lábios, a sorrir — mentiram!...

—    E a ironia sarcástica de um riso

É um inferno — por trás d’um paraíso!....

Então... Senhora! abandonado e triste,

Lancei-me a sós por este mundo enorme...

Sombrio e mudo, como um velho antiste,

Ao coração debalde disse: — Dorme.

A débil flor, que às virações resiste,

Jamais resiste à tempestade informe:

O amor — é um lírio, no jardim de um peito,

E uma traição — é um temporal desfeito!...

Como na areia que o simoun levanta,

Nos vastos plainos do Saara ardente,

Ave nenhuma apaixonada canta,

Nem desabrocha uma só flor olente;

Assim na alma que a paixão quebranta,

Gelada, estéril, sem rumor, silente,

— Como lâmpada em templo abandonado

Bruxuleia a lembrança do passado!...

......................................................................

 

XV

SULTÃO

(AO MEU CARO AMIGO O DR. J. P. REGO CÉSAR)

Chamava-se Sultão:

Era grande, delgado e escuro, como o são

Nas regiões do polo as noites de seis meses...

Tinha o pelo macio e crespo e cintilante,

Como árabes corcéis de azevichada cor;

A cauda extensa e basta; os olhos, umas vezes

Úmidos de langor,

Como os olhos sensuais das mórbidas donzelas,

Histéricas, nervosas...

Outras vezes então de um brilho fulgurante,

Como as cintilações esplêndidas e belas

Das pedras preciosas.

Criado de pequeno

Com toda a profusão.de mimos e desvelos,

Que dispensam à infância os corações singelos,

Os corações das mães;

Sultão, o mais ditoso e o mais fiel dos cães,

Passava o dia inteiro entregue a seus instintos

E as noites — a fitar a palidez da Lua...

Cedendo de bom grado os restos do, jantar

Aos magros cães da rua,

Humildes e famintos,

Que andavam, como Jó, leprosos e a uivar...

Seu dono, que o amava,

Bem como o Nazareno às tímidas crianças,

Gomo sabem amar as almas cristalinas,

Frescas como as campinas,

Verdes como esperanças!

Seu dono via n’ele a imagem d’um amigo

Discreto, estremecido, e sempre bem disposto:

Que não trepidaria em face de um perigo,

Contanto que o livrasse assim d’algum desgosto.

Prendia ao dono o cão

O laço da amizade

Mais desinteressada e mais afetuosa,

Que prende a sombra ao corpo e prende ao galho a rosa;

Exemplo: o amor das mães; o ideal da verdade

Perante Epaminondas;

A oscilação constante e perenal das ondas,

As imutáveis leis

Que regem o fatal sistema planetário;

A crença do templário...

A embriaguez dos reis!...

Passaram tempos... urna vez, o amigo

Do venturoso cão,

Tendo de viajar, por terra, diz consigo:

Levarei o Sultão.

E partiram os dois, tranquilos, silenciosos,

Unidos e sozinhos;

Atravessando a nado os rios caudalosos,

Dilacerando os pés na sarça dos caminhos...

O dono ia buscar, ditosa criatura!

A inesperada herança,

De um tio, que ao baixar à fria sepultura

Tivera-o na lembrança.

E o cão, o cão fiel, contente e satisfeito

Por estar a seu lado,

Disfarçava o cansaço, a fome, e de bom grado

Velava toda a noite em torno do seu leito.

De volta para casa,

Pousaram no caminho, à beira d’uma estrada.

O dono, que trazia a herança cobiçada,

Sentia um anjo mau roçar-lhe a ponta d’asa...

O anjo da ambição!

— Levantava no ar castelos fabulosos!...

Via baixelas d’ouro em deslumbrantes mesas...

Mulheres ideais em leitos voluptuosos...

Amigos em tropel, servos em profusão;

Conquistas nos salões, encontros ao luar...

Orgias de duquesas!

Festins de Baltazar!...

Assim que amanheceu,

Levantou-se nervoso, inquieto, aborrecido,

Como um homem que espera alguém que se demora

E ouvindo passos fora

Reconhece não ser ainda quem procura...

Monta a cavalo, parte... E o cão, o pobre cão,

Que passou toda a noite a lhe velar o sono,

Não recebe um olhar, um gesto de seu dono,

Que da louca ambição na febre que o tortura

De tudo se esqueceu...

Ai mísero Sultão!

O fiel companheiro,

Lendo talvez no olhar raivoso do senhor

A rápida mudança,

Que lhe inspirava medo e lhe causava dor;

Ao ver ficar na relva o saco de dinheiro

Investe alucinado e resoluto avança:

A saltar e a latir...

Com o olhar em lava!

Procurando impedir

O passo do animal que o dono cavalgava...

Na impotência fatal de lhe dizer então

Em alta voz: “     Senhor! olha-me, escuta, espera...

A tua ingratidão

Enche-me de pesar, mas não me desespera;

“O que me faz sofrer

É não ter nem sequer a mímica de um mudo,

N’este instante cruel em que abandonas tudo,

Até mesmo o dinheiro

Que te fez esquecer este fiel rafeiro!”

O dono, que seguia

Ao trote do animal,

Mergulhado n’um mar de mera fantasia...

Arrancado de chofre à rede imaginária,

— Essa teia ideal —

Onde a quimera embala e prende os sonhadores,

Não pôde resistir à raiva involuntária:

E n’um d’esses repentes

Que tiram a razão aos calmos pensadores,

Avança contra o cão (que humilde, suplicante,

Corre a lamber-lhe os pés...)

Impetuoso, cruel, na fúria dos dementes,

Dá-lhe um tiro! mais outro... e o arroja distante

A duros pontapés!...

O mísero animal

Lambia, uivando triste, o sangue das feridas,

Caído sobre o seco, inóspito areal...

De vez em quando, erguia as vistas doloridas

P’ra o lugar onde estava o saco de dinheiro;

Depois — relanceava o doloroso olhar

Para as bandas por onde o dono ingrato e louco

Sumiu-se pouco a pouco...

Assim como o sombrio e triste forasteiro

Que em vão procura ver o teto de seu lar!...

E o bárbaro senhor,

Já bem longe d’aí, sombrio como Otelo,

(Como quem acordou de um longo pesadelo,

Que inda causa-lhe horror)

Lembra-se comovido

Do mísero Sultão — aquele bom amigo,

Discreto, estremecido e sempre bem disposto,

Que não trepidaria em face d’um perigo:

Contanto que o livrasse assim d’algum desgosto...

No espírito humano,

Passado o atroz momento

Do ódio, da vingança, ou desespero insano,

É que surge o remorso... o arrependimento!

D’essa forma também

Depois da tempestade é que a bonança vem.

Mal tinha se apeado,

Mesmo antes de abraçar esposa e filhos seus,

Lembrou-se o desgraçado

Do saco de dinheiro... ó poderoso Deus!...

Como tremem de medo

As almas infantis, ao acordar no escuro...

Como batem d’encontro ao parapeito duro

De escarpado rochedo

Os vagalhões do mar, que os ímpetos do vento

Erguem em turbilhões ao alto firmamento,

Ou cavam no profundo abismo subterrâneo...

Assim, n’aquele crânio,

A dúvida e o remorso, em negra confusão,

Turbavam-lhe a razão!...

Sombrio, desvairado,

Louco, em febre, em delírio, e surdo e cego e mudo,

Salta sobre o cavalo e parte, alucinado,

Pensando em nada... em tudo!

O possante animal encara o vasto espaço...

E sai, mascando o freio, aos saltos, aos arrancos,

Assim como os potrancos

Que sentem no pescoço a cócega do laço!...

Não correm mais depressa os ventos no Oceano!..

Era um galope insano!

Erguiam-se do chão, em espirais fantásticas,

Densas nuvens de pó... Pareciam elásticas

As patas do cavalo!... A crina, solta ao vento,

Trazia ao pensamento

A ideia fascinante

Do penacho ideal do gorro d’um gigante!...

De súbito, porém,

O animal empaca; empina-se... recua...

E sem alento cai!... No azul etéreo, a Lua

Vinha surgindo além...

Rubras manchas de sangue,

E sangue ainda morno, estavam sobre o chão...

O homem decifrou o misterioso enigma

Que o desditoso cão

Deixara ali, talvez já moribundo, exangue,

Como fatal estigma!...

Seguiu silencioso,

0 rastro ensanguentado: o rastro ia direito

Até esse lugar onde ele havia feito

O derradeiro pouso.

Um raio de luar — qual baço candeeiro —

Se estendia no chão...

Via-se sobre a relva o saco de dinheiro,

E a seu lado, já frio — o corpo do Sultão!...

 

QUARTA PARTE

PÁGINAS DE BOÊMIA

 

I

PROFISSÃO... DE FÉ.

Eu não sou d’esses líricos poetas,

 Os pajens das princesas de comédia,

Que passam pela vida como ascetas

No corcel da descrença a toda a rédea...

Não penetram no peito dos atletas

Os ciúmes sangrentos da tragédia:

O platonismo das paixões secretas

Morreu co’os menestréis da idade média.

Eu não sou d’esses magros sonhadores,

Que cantam serenatas entre as flores

Dos sombrios jardins de Capuleto...

Enquanto eles constipam-se, ao relento.

— Abrigo-me dos ímpetos do vento

No boudoir de Ofélia sem Hamleto.

 

II

ONTEM E HOJE

(AO NOTÁVEL PUBLICISTA E AMIGO C. VON KOSERITZ)

Vai-se-me dia a dia arrefecendo

A flama intensa dos desejos fortes:

Sou outro inteiramente. Não te importes,

Mulher! eu já não vivo padecendo...

Aos quinze anos fui medroso e triste,

Como as donzelas mórbidas, histéricas;

E passavam por mim sombras homéricas

Nas noites claras que a cismar me viste...

Depois, amei as músicas nervosas,

Cheias de sons, de frémitos, de ardores...

E a maciez das pétalas das rosas,

E a penugem sutil dos beija-flores!...

Mais tarde, uma visão plena de encantos

Mergulhou-me em fatal melancolia:

Era uma meretriz; e eu quis com prantos

Regar a flor já seca pela orgia!...

Sonhei então uma existência calma,

Boiando à flor de um lago de quimeras;

Sonâmbulo que fui! eu tinha a alma

Do modesto cantor das Primaveras!...

Hoje... sombrio e só, magro e doente,

A vagar n’este abismo de miséria,

— Discip’lo de Voltaire — frio e descrente,

Penso apenas na força e na matéria.

 

III

*   *   *

(AO AMIGO DE INFÂNCIA O DR. ANTÔNIO PALMEIRO)

Uma vez... que meu crânio a febre atordoava

E uma tristeza atroz o peito me oprimia...

Lembrei-me de cismar no cemitério: ao dia

O rubro sol poente o morno adeus mandava.

A extrema luz do ocaso inda bruxuleava

Na superfície azul da Ocidental baía;

— Aclarando o perfil da escura serrania,

A Lua, vagarosa e pálida, assomava.

Entrei, sombrio e só, na habitação dos mortos,

Onde os nautas do nada, a demandar os portos

Da eternidade, o Céu... afundam-se no chão!

E vi os bons e os maus dormindo todos juntos...

— Quem pode distinguir nos ossos dos defuntos

A Virtude do Vício?... É tudo — podridão!...

 

IV

EMBARCADO

(AO POETA E AMIGO LINS D’ALBUQUERQUE)

I

Suspende a prancha! Brada o comandante

A um velho marinheiro bronzeado,

Que fora pelos ventos embalado

Sobre o berço de vagas oscilante.

“Saia quem é de terra.” N’um instante

Foi a ordem cumprida; e abafado

Talvez mais de um suspiro, entrecortado

Pelos prantos saudosos de um amante!...

Fez-se ao largo o vapor. Os passageiros

Passeavam na tolda, prazenteiros,

Vendo sumir-se aos poucos a cidade...

E só ele, o Romeu expatriado,

À amurada do arames recostado,

Chorava nos anseios da saudade!

II

O luar merencório do deserto

Prateia o espaço, as vagas, as espumas....

Crivado de astros, com ligeiras brumas,

O vasto azul parece um céu aberto!...

As ondas se aglomeram, vêm algumas

Contra o vapor, que oscila, morrem perto...

Sobre a mesa da câmara, entreaberto,

Jaz um romance de Alexandre Dumas.

A custo, os passageiros, enjoados,

Os beliches procuram; apressados

Andam d’aqui p’ra ali os marinheiros...

E o Romeu, já sem ver a Julieta,

Passa o lenço nos vidros da luneta,

Respingado dos salsos aguaceiros.

 

V

A VISCONDESSA

Assim que o trem partiu, senhora viscondessa,

Notou que fui postar-me à porta do wagon?

Pois bem! é que eu sentia o inferno na cabeça

E em vão dizia: além! vamos ao ermo, alons!

É que eu sentia em mim a falta da saúde

E da conservação o pronunciado instinto

Ergue-se dentro em nós d’uma maneira rude,

Tentando reviver todo o vigor extinto.

Sei que em tempos de treva, em tempos d’ignorância,

O doente invocava — o sobrenatural...

E o sacerdote, ao fim da mais teimosa instância,

Curava o corpo enfermo e a afecção moral.

Pitágoras, Platão, Empédocles e Tales,

Constituíram mais tarde a base da razão:

Começou a ciência a debelar os males,

Cedendo à medicina a divinal missão.

Seiscentos anos já antes de Jesus-Cristo,

Herófilo chegou a defini-la assim:

“O estado anormal do corpo, a causa d’isto.

Altera-lhe a saúde e transforma-o por fim.”

Nessa definição sucinta a ideia é lógica

Da história natural que aí se denuncia:

Ha uma causa anatômica, uma ação patológica,

Terapêutica, higiene — e fisiologia.

Sabe que sobre o corpo influi a atmosfera,

Esteja rarefeita ou mesmo condensada,

A Corte, úmida o quente, o nosso estado altera

E eu sentia a saúde aos poucos transtornada.

Metemo-nos os dois no trem das quatro e meia

E fomos para fora, afim de tomar ares:

Sentou-se à nossa esquerda uma alta inglesa feia,

Com os olhos da cor do pano dos bilhares.

Atrás, um português mostrava uns a pedidos

Do Jornal do Comércio a uns alemães vermelhos:

Enquanto uma francesa os dedos mui compridos

Passava por um cão que tinha sobre os joelhos.

Uns dandys, de pastinha e lenço cor-de-rosa,

Falavam entre si, com risos indiscretos;

Fitava-os em silêncio uma senhora idosa,

Que não largava as mãos dos pequeninos netos.

O monstro de metal movia os musc’los d’aço,

Com a viva rapidez das máquinas modernas;

E um penacho de fumo erguia-se no espaço,

Escuro como o bojo informe das cavernas.

Em pleno século XI os Belgas aplicaram

O combustível forte, o mineral precioso,

Que, dentro da fornalha apenas o queimaram,

Impregnou o ar de um cheiro betuminoso.

O silvo atroador, frenético, vibrante,

Cortava a solidão com frêmitos febris!...

Trazendo-me à lembrança os gritos de um gigante,

Ou os hinos ao sol — na taba dos tupis.

O ar do descampado, oxigenado, higiênico,

Fresco como as manhãs esplêndidas de outubro,

Varreu-me da cabeça apreensões de anêmico,

Escorvou-me os pulmões: fiquei alegre e rubro.

O ar, bem sabe, é o gás que forma a atmosfera,

E o meio constitui que tudo desenvolve;

Leva a semente à planta, a flor à primavera,

Vapores absorve e em água se dissolve.

Torricelli alcançou verificar-lhe o peso:

O barômetro atesta essa verdade ingente;

Submetem-no à pressão? — permanece em desprezo...

E é ele quem o som propaga velozmente.

O ar!... pois bem; é ele o único remédio

Que debela de todo a hipocondria atroz,

A tristeza sem causa... o indefinido tédio,

Que às vezes, sem sentir, sentimos dentro em nós.

Tive ímpetos então histéricos, nervosos,

Vontade de correr, de rir e de gritar...

Crispavam-me a epiderme uns fluidos voluptuosos,

Magnéticos bem como a luz do seu olhar.

De súbito, porém, n’um ambiente morno

O trem diminuiu de força e rapidez:

E o túnel, abafado, escuro como um forno,

Era um antro de horror, de sombras e mudez.

Foi um instante só; de novo a luz e o ar

Deram mais rapidez à marcha interrompida.

Vinha tombando a sombra... e a luz crepuscular

Trouxe-me uma tristeza imensa, indefinida.

A mudez do crepusc’lo e a paz do isolamento

Impunham um terror solene e religioso...

E ao ver vossa excelência ali, n’esse momento,

Quase a chorar de dor... sorri-me venturoso!

Chegámos à estação. Estava à nossa espera

Um pajem de libré e botas de verniz,

O mesmo que seguiu nos fins da primavera

Seu falecido esposo a Londres e Paris...

Ele, assim que nos viu, correu em direitura

Da carruagem inglesa, e rápido, veloz,

Fustigou os corcéis, altos, de cor escura,

Parando n’um instante o carro junto a nós.

Entrámos no caleche; os animais possantes,

Sorvendo a exalação das plantas orvalhadas,

Saíram a galope, altivos, ofegantes,

Soltas à viração as crinas agitadas!...

Então, vossa excelência, exausta de cansaço,

Pendendo no meu ombro a fronte escultural,

Nem via o meu olhar cair no seu regaço...

Sonâmbulo, dormente, opiado, sensual!...

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VI

ÉS BELA

És bela — quando vais, de manhã cedo,

As florinhas regar no teu jardim;

E voltas, com a barra do vestido

Molhada, de roçar sobre o capim...

És bela — quando a sós, ante o espelho,

Contemplas o teu vulto sem rival:

E te esqueces de ti — pensando n’ele...

Com ciúmes — do próprio original!...

És bela — quando passas, ao almoço,

Co’a mão direita a xícara do tutor,

E com a esquerda apertas, às ocultas,

Os dedos enluvados — do doutor...

És bela — quando, em horas de trabalho,

Te assentas à mesinha de coser,

E cantas satisfeita e distraída

A poesia assim: Quando eu morrer...

És bela — quando, à tarde, embevecida

Contemplas triste o sol a declinar;

E co’a luz de teus olhos iluminas

As páginas de um livro de Alencar.

És bela — quando, à noite, só com ele,

À meia voz conversas no salão,

E, mal ouves os passos da madrinha,

Mudas logo de tal conversação...

És bela!... Ah! fora eu poeta lírico,

Para dizer que a luz do teu olhar

Tem mais doce fulgor do que lampírios,

— Raios do sol e ondas de luar!...

És bela — quando almoças, quando jantas,

Em toda a parte, acompanhada ou só;

Mas — ainda és mais bela quando dormes.

Ao lado do... não cores, — do totó!...

 

III

TU E EU

(À MIMOSA POETISA REVOCATA H. DE MELLO)

I

Como em altar de flores

Oscila a tocha acesa,

'Tua alma treme, presa

Em cárcere de ardores...

Tens tons de morbidezza,

Volúpias e langores;

Dos astros os fulgores,

Dos lírios a pureza.

Tens tudo!... No entanto

Eu, que te adoro tanto,

O que é que eu tenho, wyllis?

Só isto: inteligência,

Tubérculos... ciência...

E bílis — muita bílis!

II

Vais indo pela vida,

De cismas opiada,

Como ave equilibrada

Na plaga indefinida...

E eu, sombra perdida,

Cabeça desvairada,

Caminho para o nada:

Ashaverus da jazida!

Tu vais, sempre sonhando,

—    Visão do Capuleto —

A Lua enamorar...

Eu, como estou morando

Por traz d’um lazareto,

Eu... vou me vacinar.

III

Estás a toda a hora

Cercada de carinhos,

Bem como à luz d’aurora

Os pássaros nos ninhos.

E eu, pelos caminhos

Por que vou indo agora,

Apenas vejo espinhos

Em torno a mim, senhora!

Prendes um auditório,

Cantando! Na mudez

Algemas os incautos...

E eu, no escritório,

— Das nove até às três —

Leio autos e mais autos!...

IV

Amar! Amar! Amar!

— Eis a lição divina

Que a Natureza ensina

Ao céu, à terra, ao mar...

Parece que o luar,

As rosas e a neblina,

Murmuram em surdina:

Amar! Amar! Amar!

E por que não havemos

De acompanhar também

A Natureza? Amemos!

Não consta que ninguém

Gastasse com extremos

O imposto do vintém...

V

Tu és a rica herdeira

De um conde milionário;

Teu tio — um argentário,

Tua avó, essa estrangeira,

Que a velha Europa inteira

Correu, (com seu rosário)

Mandou-te do Calvário

Um ramo de Oliveira...

Além de filha única,

És bela, como a túnica

Dos príncipes reais!

És d’uma estirpe ingente;

E eu... sou simplesmente

O filho — de meus pais.

VI

Os nossos Lamartines

Chamam-te a Musa viva;

És a harmonia diva

Da alma dos Belinis!

No langue olhar defines

Toda a paixão lasciva

D’essa alma que cativa

Os nossos Lamartines...

Criança!... quem me dera

Da tua primavera

As flores desfolhar!...

Desejo tanta cousa...

Mas, ah! dizer quem ousa?

Melhor é me calar.

VII

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Tu és o Anjo da Crença,

Na Catedral imensa

Da Natureza; e eu...

Eu sou o Ceticismo,

Sombrio como o abismo...

Profundo como o Céu!...

 

VIII

ROSAS DE CAMPOAMOR

(A PAULA NEY)

I

Assim que anoiteceu, Ela, n’aquele dia       .

Tão esquiva p’ra mim,

“Por que te chegas tanto?” humilde me dizia:

“Eu tenho medo assim!”

II

Quando a luz da manhã bateu no cortinado,

Disse, junto de mim:

“Por que me foges tu? por que sais do meu lado?

Eu tenho medo assim!”

 

IX

DANÇANDO

(A PEDRO FRANÇA LEITE)

Tu sabes que o barão se baba pelas filhas,

Aqueles divinais arcanjos das quadrilhas!

E creio que também já deves ter notado

Que a mais moça das três descamba p’ra o meu lado...

Sim, para que há de estar a gente com histórias,

Quando essas cousas são... públicas e notórias?

Eu cá não sei guardar segredos, salvo se,

Se um marido burguês... ora! et cœtera, e...

Entendes-me, não é?... Pois bem; como dizia,

Ando fazendo a corte à flor da fidalguia.

Sábado, vinte e dois, recordas-te? — o visconde

Fez anos — e o palácio abriu a demi-monde!

Foi um baile de estrondo!... Oh! nada ali faltava:

Doces a três por dois... champagne, que enjoava!

Além de um esquadrão de moças e um piquete

De velhas — cada qual mais rica e mais coquete.

O barão quis me ouvir falar, e eu, é logico,

Bati palmas e fiz de pronto um bestialógico...

Choveram ovações!.... “Que moço inteligente!

Dizia a baronesa ao vice-presidente.

— “Escreve folhetins, faz dramas e sonetos.” —

“Pois não! eu tenho cinco ou seis dos seus folhetos.”

E os lábios virginais sorriam-se p’ra mim,

Ternos como um Chénier, doces como um pudim!

D. Lúcia, depois, com gesto soberano,

Passando os dedos sobre as teclas do piano,

Despertou sons do céu! dolentes e suaves,

Como um verso do Castro ou como um trino d’aves.

Quando a orquestra espalhava os sons d’uma havaneira

Eu voava com ela... a doce feiticeira!

Aí, aproveitando esse propício ensejo,

Fui dizer-lhe um segredo, e zás... furtei-lhe um beijo!

Lúcia ficou vermelha, assim como no galho

A flor, se a beija o sol e sorve-lhe o orvalho...

Mas não zangou-se, não; sorrindo, envergonhada,

Chamou-me de ladrão, baixinho; e, delicada,

Disse: “Se o não quer ser, dê-me depressa pois

O beijo que furtou-me.” E foi... eu dei-lhe dois!...

 

X

À PAGINA 320...

(A JOÃO TALLONI)

A cena representa um boudoir sombrio,

Forrado de papel azul com frisos d’ouro

À direita um jardim, ao fundo vê-se o rio...

Entra pela janela, inquieto como um touro,

O vento, que balança o leve cortinado,

E da princesa ideal beija o cabelo louro...

Ela, sobre o divã macio, aveludado,

Reclina-se indolente... e mostra, distraída,

O pezinho chinês n’um borzeguim bordado.

O vento, que lhe arrufa a saia guarnecida

De flocos de escumilha e crivos transparentes,

Vendo-a n’essa atitude, em languidez caída,

Ergue em ondulações aquelas roupas quentes...

E no vivo cristal dos límpidos espelhos

Reproduz perfeições esculturais, trementes!...

O primo fecha o livro... Os lábios seus, vermelhos,

Febris e sensuais, — já sem saber de si, —

Da prima adormecida osculam os joelhos...

E a voar pelo azul cantava um bem-te-vi...

 

XI

NO CÁUCASO

(A JÚLIO LIMA)

Assim como o cascalho em vão tenta ocultar-se

Na transparência azul dos lagos silenciosos,

Os pensamentos meus, os grandes criminosos,

Que riem-se a chorar... e vivem a matar-se!...

Procuram no meu crânio embalde concentrar-se,

Voam aos seios teus, trementes, voluptuosos...

E quais feras, rugindo em antros pavorosos,

Que a vítima aguardando espreitam-na em disfarce;

Contemplam-te da treva e na mudez te falam...

E como os vagalhões que no rochedo estalam,

Atiram-se a teus pés... volvem ao peito meu!

Seduzes como um crime e atrais como um abismo...

Teus olhos, sóis — girando em céu de magnetismo,

São abutres sensuais... e eu — um Prometeu!...

 

XII

QUADRO DE F. MAYSTER

(A PEREIRA NETO)

A luz crepuscular bate-lhe em cheio

Nas formas sensuais; os olhos belos

Estão cerrados, soltos os cabelos,

As pernas nuas... descoberto o. seio!

N’essa langue altitude, em que o enleio

Faz fugir o pudor, ante os anelos

Que surgem, quais fantásticos castelos,

Formados do crepusc’lo ao bruxuleio...

Vive, sem vida, a nos tirar a vida!

Em lasciva indolência adormecida,

Como uma estrela n’amplidão etérea...

Eu sinto, ao vê-la, as crispações nervosas

Das naturezas tropicais, fogosas,

Rendido à prepotência da matéria!...

 

XIII

TIPOS SOCIAIS

(AO AMIGO DR. A. NAPOLEÃO DE BARROS)

 

I

O BARÃO

É gordo quase sempre, e bruto como um urso;

Usurário, cortês, hipócrita e glutão;

Desde comendador já pensa no discurso

Que há de fazer no dia em que sair barão.

Manda o filho estudar n’alguma academia,

Para que deputado um dia venha a ser;

Francês, música, inglês e canto e geografia

Manda ensinar à filha... a qual não sabe ler.

É ela o seu orgulho, o seu maior tesouro:

Tem brincos de brilhante e braceletes d’ouro

E há de ser mulher d’algum comendador...

Por cima do sofá, na sala, em seu sobrado,

Tem o retrato grande, em quadro emoldurado,

De... sua majestade o augusto imperador.

 

II

A BARONESA

É bela e sensual, afável e discreta;

Gosta das sensações nervosas de um chuveiro...

Inspira madrigais a um tísico poeta

E dispõe quando quer do cofre de um banqueiro.

Abre de par em par os seus salões doirados

Aos gordos solteirões e aos magros velhos doutos;

E, enquanto ela faz sala a uns moços ilustrados,

O barão toma chá, a mastigar biscoutos.

Venturosa mulher! tem tudo o que deseja...

Que santa há por aí que em sua própria igreja

Tenha de seus fiéis tamanha adoração?

É um’alma (que divaga a esmo nas alturas)

N’um corpo que provoca assombros e loucuras

Aos irmãos de Basílio e aos netos de D. João.

 

III

O DANDY

Dorme até meio-dia; e passa ante o espelho

Mais tempo que uma atriz a carminar o rosto;

Veste o chambre que cai-lhe abaixo do joelho,

Manda pôr o almoço e sente-se indisposto...

Toma uns goles de chá, acende um bom charuto,

Lê por alto os jornais e as cartas de namoro,

Reclina-se ao divã, cantando, e resoluto

Encaixa no nariz o pince-nez de ouro.

Manda o criado ver si uma vizinha bela

Já tem aparecido; então, chega à janela,

Cumprimenta-a, sorri, assesta o pince-nez...

E zásl... outra conquista, além das que já conta:

E a sociedade, a quem impunemente afronta,

Abre-lhe os seus salões e... alcovas, já se vê.

 

IV

A NAMORADEIRA

Caprichosa, afetada, histérica e anêmica,

Fala mais do que pensa — e fala poucas vezes;

Faz os leões por si baterem-se (em polêmica)

E anda sempre vestida ao gosto dos franceses.

Passeia dia e noite. É louca pelas valsas!

Se há visitas, à mesa, apenas prova a sopa;

E o dinheiro paterno esgota em tranças falsas,

Pomadas, pó de arroz, e roupa sobre roupa.

Cita Emilio Zolá, diz detestar Bocage...

Se um Lovelace audaz ofende-a, não reage

E nem diz nada ao pai. Assim correm os dias.

Quando vejo passar essas cabeças tontas,

Digo com meus botões: hão de afinal de contas,

Em vez de boas mães, ser... excelentes — tias!

 

V

O PADRE

Faz, em nome de Deus, o diabo a quatro; come,

Que parece sofrer fome canina; dorme

E ronca como um porco... e tem tal abdome

Que parece, de longe, um garrafão enorme.

Quando sabe que alguém morreu, tece louvores

Ao médico assistente, e diz na freguesia

Que vota ao boticário e a uns dois ou três doutores

Uma extraordinária, imensa simpatia.

Anila sempre com fome e sempre anda com sono;

Descobre-se ao ouvir falar em Pio IX

E si encontra um maçon, tem logo um faniquito.

P’ra os santos pede esmola ao cego e ao mendigo;

Batiza muita gente... e sempre tem consigo,

Além d’uma comadre, um sacristão bonito...

 

VI

A BEATA

Roga pragas, castiga os míseros escravos;

Não come — sem benzer primeiramente o prato...

Fala da vida alheia e esconjura os bravos

Que morrem defendendo este país ingrato.

Gosta de bacharéis e frangos de botica,

Ela, que quando dorme é mesmo uma defunta!...

Não diz, seja a quem for, que idade tem: e fica

Zangada quando alguém lhe faz essa pergunta.

Tem sempre uma sobrinha, uma crioula e um gato.

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.............................................................................

Todos os mortos seus estão no céu, diz ela...

Quer, morta, no caixão levar palma e capela

E não perde um domingo a missa da matriz.

 

XIV

A LENDA DOS AMORES

(AO COMPANHEIRO E AMIGO DR. FERREIRA DE MENEZES)

I

Tu me pediste, em febre voluptuosa,

E quem pode esquivar-se aos teus desejos?...

Que eu cantasse o romance de teus beijos

Aos sons da minha lira harmoniosa.

Fora preciso, ó pálida formosa,

Para realizar esses almejos,

Ter das harpas-eólias os arpejos,

Brilhos de estrela e pétalas de rosa!...

O mesmo amor, que eternizara o Dante,

Atordoando o cérebro do Tasso,

De Marilia arrojou Dirceu distante...

Pois há de ser também de amor o laço

Que há de unir nossos nomes, doce amante,

Como nós nos unimos n’um abraço!

II

Se há nos meus livros páginas brilhantes,

Que flutuam no azul do romantismo,

Mais ricas de fantástico lirismo

Hão de ser as estrofes cintilantes

Que descrevam, com tintas cambiantes,

Teus caprichos, teu lânguido histerismo...

E as noites de febril sensualismo

Em que apertas-me aos seios palpitantes.

Dizias ser de gelo — e és de fogo!

Da volúpia no louco desafogo

Revivias... mais morta do que viva!...

Como eras bela assim sem ser esquiva!

Nós éramos coriscos de desejos

No temporal desfeito d’esses beijos.

III

Tens o sabor dos pêssegos molares,

Um ácido de fruta proibida...

No seio uma volúpia indefinida,

Fluidos fatais nos lânguidos olhares.

És a moderna esposa dos cantares...

A sereia do mar da minha vida!...

Tens n’aparência a calma d’uma ermida,

E a gélida brancura dos luares.

No entanto, Senhora! há nos teus seios

Um Vesúvio nevrálgico de anseios,

Uma sede infinita como o espaço.

É por isso talvez que me fascinas,

Me seduzes, me prendes, me dominas,

Como a atração do ímã sobre o aço.

IV

Não és mais bela, não, quando mergulhas

Em veludo os contornos palpitantes,

Nem quando em teus cabelos odorantes

Cintilam os rubis como fagulhas.

Tu me cravas desejos, como agulhas,

Eléctricos, nervosos, irritantes

Como a tosse dos tísicos amantes,

Que inflama do tubérculo as borbulhas...

Uns desejos estranhos, fortes, novos,

Que saltam, indomáveis, aos corcovos,

Como um touro enlaçado pelas guampas!

Quando, após um duelo atroz de abraços,

Prisioneira de gozo entre meus braços,

Vivandeira de amor, sorrindo acampas!

V

Tens às vezes o gelo dos cristais

E a transparência vítrea das redomas,

Quando cerras as pálpebras e domas

Os potros dos desejos sensuais...

Como as nuvens em fortes temporais,

Inflamam-se a tremer as tuas pomas...

E desmaias, lasciva, ébria de aromas,

Em volúpias sombrias, infernais!...

És o Anjo do Mal!... bem o previa...

Tens o riso insolente da ironia

E o cínico disfarce da bacante!

Perdoa-me, Senhora! eu sou um louco:

De amor vou definhando pouco a pouco...

De ciúme te insulto a todo o instante!...

VI

Se inda mais te adorar fosse possível,

Pudesse eu ver-te morta, enregelada,

Inerte, muda, pálida, insensível,

Na escuridão de um túmulo enterrada!...

Nem mesmo eu sei, ó bela desgraçada!

O que faria então... Parece incrível:

Tu serias por mim mais adorada,

Se inda mais se adorar fosse possível!...

Oh! pudesse a nevrose violenta

Arrebatar-te, em noite de tormenta,

Ao fundo escuro de um revolto mar!...

Pois só na placidez de um ataúde

Tu — não ultrajarias a virtude,

Eu — não me envergonhara de te amar!...

 

XV

CANTIGA DE BRANDER

(GOETHE)

Um rato n’uma despensa

Tanta manteiga comia,

Que nem Lutero o vencia

No abdômen — que horror!...

Mas, um dia, a cozinheira

— O buraco envenenando —

Fez o triste andar pulando,

Como quem arde de amor...

Como quem arde de amor!

Corre em vão por toda casa,

Água e mais água bebendo,

Todos os cantos roendo

Nas ânsias de tanta dor;

Enfim, mais morto que vivo,

Pelo excesso extenuado,

Cai a um canto, abandonado,

Como quem sofre de amor...

Como quem sofre de amor!

Já nas ânsias derradeiras,

Já na mortal agonia,

Corre aflito todo o dia

Da cozinha em derredor...

— E a cozinheira soltava

Gargalhadas insensíveis,

Vendo-o nas ânsias terríveis,

Como quem morre do amor...

Como quem morre de amor!

 

XVI

QUANDO EU MORRER

A TRAJANO CÉZAR

Se eu morrer amanhã, ó meu amigo,

Pega n’uma das alças do caixão,

E não deixes ninguém jogar comigo,

Como um fardo lançado n’um porão.

E lá... à fresca sombra do cipreste,

Onde vamos por fim todos dormir,

Faze um discurso (mesmo que não preste)

Mas — que não faça o auditório rir.

Dize que a nossa pátria desditosa

Vê comigo baixar ao mausoléu

A estrela mais fulgente e luminosa

Que apenas despontava em pleno céu...

E que eu fui econômico e sisudo,

Que duravam-me um mês os meus botins;

Que podia morrer mais barrigudo,

Embora não comesse em botequins.

E que eu fui um luzeiro da ciência,

Isso não, porque podem se espantar...

Que conservei intacta a inocência,

E nem sabia até — jogar bilhar!

E que fui inimigo das mulheres...

E que nunca voei do asas de pau...

Ora! dize inda mais, o que quiseres:

Pois sabes que não há defunto mau.

E depois, quando a enxada do coveiro

Puxar a terra para o meu caixão,

Escreve p’ra o meu leito derradeiro

Esta inscrição:

— Aqui jazem os restos de um poeta,

Que não morreu de frio nem de fome;

Julgando a sepultura uma indiscreta,

Não quis dizer-lhe nem sequer seu nome.

Nasceu no dia tal, às tantas horas,

Como nasce qualquer burguês ou conde;

Requestou raparigas e senhoras...

E, sem pagar imposto, andou de bond.

Agora que o cantor bateu a bota

E contra a fidalguia já não berra:

Pobre vate! — antes fosse um agiota,

Que é só quem é profeta n’esta terra. —

 

XVII

SONETO A LÁPIS

Foste o sonho de um magro amanuense,

Que morreu de tubérculos, há um ano

Que amor faminto, impetuoso, insano,

O que inspiraste ao moço fluminense!

Sei também de um rapaz rio-grandense,

Que imaginava — em noites de minuano

Levar-te, sobre as ancas d’um tobiano,

Dos Pampas n’amplidão que o Saara vence.

Muito senhor de engenho suspirava

Pensando em ti, nas sestas do verão,

Sobre a rede embalada pela escrava...

No entanto, Iaiá, — teu coração

Por um triste rondante palpitava...

Nas delícias da — nova sensação!...

 

XVIII

PARÊNTESIS

Muito embora procurem separar-nos,

Tu sempre serás minha... eu sempre teu!

Somente a morte poderá roubar-te

Do peito meu.

Amei-te e tu amaste-me. Juntámos

Nossas almas e o nosso coração;

Fundimos em um só nossos espíritos

N’essa paixão.

Teu peito palpitou contra meu peito,

Teus lábios apertei aos meus... e bem!

Unidos desmaiamos... revivemos

Juntos também!

Se fosses tu a cortesã das salas,

Que não sente emoções quando nos beija,

Se fosses tu a meretriz das praças,

Que o corpo mercadeja;

Então, sim, poderias esquecer-me

No mesmo instante em que eu saísse: e morta

De ambição — te entregares ao primeiro

Que batesse à tua porta...

Mas tu não és a cortesã sem alma,

Que jura amar-nos quando nada sente;

Não és tampouco a messalina torpe,

Vil, — impudente!

És a mulher inteligente e bela,

Que amou, mais que ao mancebo, ao sonhador!

A Musa de um Poeta! a irmã dos anjos...

Anjo de amor!...

Tu me inspiraste uma afeição sincera,

Cheia de crenças, esperança e glória,

Não d’essas afeições que se evaporam

Na vida transitória.

É um amor profundo, imenso, eterno,

Profundo, imenso, eterno — como o céu!...

Amor que há de ir conosco pela vida

Ao chão do mausoléu.

Não foras tu, Senhora! tão formosa,

Não foras como os anjos do Senhor,

Ó mimo do meu Deus! eu não te amara

Com tanto amor!...

Tu’alma da minh’alma é irmã gêmea,

Teu coração foi feito para o meu:

Ambos são tão iguais, que, se os juntassem,

Qualquer seria o meu.

Qualquer; mas, se em teu peito por acaso

Fosse o meu coração ficar trocado,

Desde então tu — serias mais sensível...

Eu — menos desgraçado!...

Eu caminhava triste pela vida,

Como o hebreu das santas Escrituras,

Sem flores em redor, sem uma estrela

Brilhando nas alturas...

E tu passaste... A tatear, na sombra,

Segui o rastro de teus pés divinos:

Mandei-te no crepúsculo a minh’alma,

Nas brisas os meus hinos!

Bem como a rola distendendo as asas,

Para estreitar o pombo em efusão,

Abriste-me os teus braços, os teus seios...

Teu manso coração!...

Como eras boa e como eu era amante!

Nossa vida era um sonho de ternuras;

Que sede, que desejos, que delírios...

Mulher! quantas loucuras!...

...........................................................

 

XIX

SONHO ALEMÃO

(A MATEUS DE MAGALHÃES)

Por dormir logo após a lauta ceia

Do gordo reverendo, que, a pedido

De uma certa cantora, dignou-se

Enviar-me um convite por escrito,

Tive um sonho alemão...

Alemão digo

Por ser assim à moda do que o Goethe

Apresenta no Fausto — esse tal Sonho

Da noite de Walpurg...

Embuçado

N’uma capa espanhola (brasileira),

De chapéu desabado e umas botas

De excelente verniz, como as que usava

Esse francês audaz que por façanhas

Elevou-se do povo à realeza,

Chegando a dividir pelos parentes,

Tronos como aos parceiros damos cartas

N’uma mesa de jogo...

Assim vestido,

Mal sou meia-noite no relógio

Da casa do vizinho, a passos lentos,

Assim como do Hernani os conjurados

Logo que principia o quarto ato,

Fui para o palacete da formosa

Neta da baronesa...

Lá chegando,

Atirei-me a seus pés!... Estava linda

A tímida criança aristocrata,

Com os negros cabelos ondeados

Soltos a flutuar pelas espáduas,

Mais alvas do que a espuma que o barbeiro

Nos põe no rosto ao nos fazer a barba!...

“Nunca estiveste assim tão feiticeira

Mulher dos meus desejos, flor cheirosa

Dos vergéis ideais do pensamento!

Fosse eu hoje um Sultão, que d’entre todas

As lânguidas, lascivas Odaliscas,

Havia do dizer ao teu ouvido:

— “És tu só, és tu só a favorita! —

Mas... si eu nem sou o último dos turcos,

Esses entes felizes, felizardos,

Que têm tantas mulheres quantas calças

Possui o teu irmão — aquele dandy!...

“Já sei que vens...

Pois não! Adivinhaste;

Venho ver-te, mais morto do que vivo,

Magro, desfigurado com olheiras,

E tudo isso por quê? — pela saudade,

Aquilo que Garret... Inda não leste

Os versos do visconde? — Pois não leias.

“E tu também não pensas muitas vezes

N’essas horas de fogo e de volúpia

Em que tremes, desmaias nos meus braços,

Sentindo o maior gosto d’esta vida,

Enquanto, desvairado e ofegante,

Eu sorvo sequioso, a longos tragos,

O licor de teus beijos — pela taça

D’esses lábios de amoras, mais vermelhos

Que o miolo das frescas melancias?...

“E nosso filho?

Pois nós temos filho?!

Não fales nunca em semelhante cousa.

Cruzes! Deus nos acuda! Pois tu queres

Ir procurar camisa de onze varas?

(Ora esta! e eu metido em calças pardas!)

Não sabes que a mulher depois do parto

Deixa de ser a Deusa decantada

Pela Musa dos líricos poetas?...

Não fales nunca n’isso!

“E nosso filho

Há de ficar na sombra, abandonado,

Sem mimos maternais, lições paternas,

Um nome — p’ra que possa erguer altivo

A fronte varonil entre os mais homens?

Não! tu não és um bárbaro...”

E, chorando,

Continuava esse sermão de lágrimas,

Que por certo escutaste muitas vezes,

Talvez de mercador fazendo ouvidos,

Quando eu, vendo que nada n’essa noite

Podia conseguir... achei prudente

Dar as costas à bela inconsolável,

Que soluçava, assim — como as crianças

Quando querem comprar algum brinquedo,

Ou sair rua fora atrás das outras.

Saí.

Até aqui — nada de novo:

Mas agora é que a cousa toma os ares

Das pavorosas lendas d’Alemanha.

Esqueceu-me dizer que isto passou-se

N’uma noite de inverno, noite inglesa;

Da cúpula do azul caía em dobras

Um denso cortinado de vapores...

E a Lua, sozinha no seu quarto,

N’uma colcha de névoas embrulhada,

De vez em quando arregalava os olhos

A ver si alguma estrela se atrevia

A botar o nariz para o planeta

Onde escrevo estes versos, que algum dia

Podem talvez ainda ser transcritos

Para os jornais do Sol ou de Saturno!

Mãos à obra. Mal tinha entrado em casa,

Quando o criado (que sou eu) curvado

Tirava as minhas botas;

Ofegante,

Trêmula, desgrenhada, esbaforida,

Investe porta a dentro a inconsolável

Neta da baronesa...

“Então, não queres

A promessa cumprir?”

“Mas que promessa?”

“Basta, tirano, basta!... Ao menos morra

Em presença do algoz a pobre vítima.”

E mal essas palavras tinha dito,

Engatilha um revólver de seis cápsulas,

Ergue os olhos ao céu, benze-se às pressas

E nos ouvidos descarrega um tiro!...

A polícia, que ouvira o estampido

A tais horas da noite, em nossa casa

Aparece de chofre (caso raro)

Como D. Carlos — o real bandido

Dos reinos espanhóis, nesse momento

Em que sai do armário (isto se entende

Com quem lê Victor Hugo, simplesmente).

“— Que quer isto dizer? —” brada raivoso

Um esguio sargento, de bigodes

A Victor Manoel:

“— Está bonito!

Matar uma mulher como quem mata

Uma pulga, um piolho, um carrapato...

Mas, inda bem que o pilho aqui metido,

Como dizem — co’a mão na ratoeira. —

“— Mas, senhor...”

“— Qual senhor, nem pera nada!...

Mataste esta mulher, és criminoso!

Vamos, caminha! —”

“— Espere um pouco, eu juro...”

“— Quem é que ainda crê em juramentos?

Não queres ir por bem — irás à força!... —”

Puxa-me por um braço...

Arre! que susto!...

Acordo n’esse instante — inda sentindo

Alguém que me puxava realmente

Pelo braço direito...

Mas não era

O barbudo sargento de polícia:

Era a jovem cantora, que fizera

O gordo reverendo convidar-me

Para a ceia da véspera, que estava

Cansada de esperar que eu acordasse

A fim de acompanhá-la n’esse instante

A tomar o gostoso chocolate

Que esfriava na xícara.

 

XX

ADEUS À MUSA

Ó Musa! eu já não sou aquele moço triste,

Cheio de fantasias,

Que tantas vezes viste

Pálido como a luz do descambar dos dias...

Já em mim não existe

Nem um traço sequer das tais melancolias,

Que emprestavam-me outr’ora, em noites de utopias,

Os ares de um antiste!...

Dei de mão para sempre ao meu romanticismo,

Aos tédios ideais

E às dormentes paixões, opiadas de lirismo...

Juntei uns capitais,

Estudo Augusto Comte, amo o Positivismo

E não te quero mais.

 

NOTAS

NOVOS IDEAIS

Este livro, escrito n’um período de transição, é o receptáculo onde recolho as últimas páginas românticas do sentimento, d’envolta com os primeiros frutos da razão.

Tanto nos versos realistas e sociais, como nas poesias individuais e líricas, há alguma cousa do nosso tempo.

FLORES DO PAMPA

Esta parte dos Novos Ideais é urna cópia das paisagens da natureza do sul do Brasil.

Procurei dar toda a cor local à descrição dos usos e costumes do povo rio-grandense: povo admirável pelos seus sentimentos de sinceridade, de independência e de heroísmo.

Sendo, porém, muitos termos da gíria popular desconhecidos fora da província, acho de indispensável necessidade as seguintes explicações:

O PAMPA

Lajeado — fonte, com leito de pedra.

Rincão — mato entrançado.

Coxilha — elevação das campinas.

Farrapos — republicanos, os heróis de 1833 a 1843.

Gaúcho — jovem camponês, serrano ou montanhês.

Canhada — declive entre duas coxilhas.

Pala — poncho de fazenda leve.

Bagual — cavalo de estimação.

Pagos — terra natal.

CREPUSCULO MATINAL

Quebradas — desvios da estrada.

VIAJANDO

Sentar — parar o cavalo.

Chimarrita — cantiga popular, ao som da viola.

CHINOCA

Chinoca — moça morena.

Viajar d'escoteiro — viajar só.

Rodar — o cavalo cair para a frente.

Passo — lugar estreito do rio.

Tranco — passo natural do cavalo.

Picaço — cavalo de pelo escuro.

Ramada — coberta de folhas d’árvores, sobre esteios.

Soga — corda (ou guasca) com que atam os cavalos.

Gachar — em vez de agachar-se, curvar-se.

Rachar o bico — dizem assim quando o galo canta.

Chimarrão — mate, sem açúcar.

Mangueira — cercado onde encerram os cavalos.

Parar rodeio — serviço de campo: para castrar ou marcar os animais.

Piquete — número de cavalos de reserva.

Malacara — cavalo com sinal branco na testa.

Tobiano — cavalo escuro com grandes sinais brancos.

Churrasco — carne com couro, mal assada.

Carona — manta de couro, usada sob a sela.

Baixeiro — enxergão, usado sob a carona.

Pelegos — peles macias, usadas sobre a sela.

Serigote (ou lombilho) — sela quase sempre adornada de prata.

Badana — pele ainda mais delicada que os pelegos.

Retovar — trançar a guasca.

Guasca — tira de couro.

OS FARRAPOS

Aos generais Bento Gonçalves, Neto e Davi Canabarro cabem as glórias da revolução do Rio Grande do Sul. O general Bento Manoel Ribeiro, a quem ousam citar entre os chefes políticos, foi um trânsfuga, um desertor das fileiras republicanas, em cujo caráter não confiavam os Farrapos e os legais.

Já 35 anos de indiferença e criminoso silêncio pesam sobre um dos maiores acontecimentos políticos do País e não temos um filho do Rio Grande do Sul que tome a si o louvável encargo de prestar a homenagem devida à memória dos grandes mártires da nossa liberdade!

NA ESTÂNCIA

Estância — fazenda de criação.

Guampa — chifre, corno.

Matungo — cavalo manso.

Tranquito — passo natural do cavalo.

Estancieiro — proprietário de estância.

Prataria — o adorno dos arreios.

CANTO DO MONARCA

Laço — guasca trançada com que pegam os animais.

Bamburral — lugar pedregoso e úmido.

Relho — látego. (Dizem também rebenque.)

Cancha — lugar de descanso.

Pingo de opinião — cavalo bom.

Peleguear — acariciar.

Afrontado — cavalo esbaforido, dizem também arreganhado.)

Querência — lugar do nascimento.

Aquerenciado — acostumado.

Murchar o garrão — humilhar-se.

Estropeado — cansado. (Dizem também abombado.)

Maceta — manco.

Moço largado — rapaz desembaraçado e audaz.

Tropilha — muitos cavalos do mesmo pelo.

GAUCHADAS

Gauchadas — aventuras.

Potranco — cavalo novo, antes de ser encilhado.

Guasca — o gaúcho, apelido do rio-grandense.

Atafona — lugar onde os escravos trabalham à noite.

Fandango — dança sapateada.

Abrir de raia — sair do logar.

Manear — prender as mãos.

Priscar — saltar para os lados.

Refugar — recuar.

Pialar — prender pelos pés.

Embuçalar — tapar a boca.

Vaqueano — conhecedor das estradas.

OS SOCIALISTAS

O autor, quando escreveu esta poesia, tinha as vistas voltadas para a Alemanha.

FOLHAS DA MINHA CARTEIRA

A carteira de um rapaz tem muitas vezes páginas que não devem ser lidas. 0 autor entende que alterar uma poesia é tirar-lhe o principal merecimento; e, como as últimas estrofes escritas nas folhas da minha carteira são de um realismo franco e despido, vai aqui este trabalho incompleto.

SULTÃO

Guerra Junqueiro, no Fiel, narra uma lenda do seu país. Esta poesia, escrita depois dos versos de Junqueiro, é a narração de um fato que passa por histórico na província do Rio Grande.

À PAGINA 320...

0 autor alude à segunda edição portuguesa do Primo Basílio.

 

APÊNDICE

CÉREBRO E CORAÇÃO

POEMA

DE

MÚCIO TEIXEIRA

JUÍZO DA IMPRENSA DA CORTE

POESIAS

Firmada já por mais de uma mimosa produção a sua reputação de bom poeta, deu o Sr. Múcio Teixeira agora à estampa mais um poema — Cérebro e Coração. A narração e a descrição alternam aqui de forma talvez um tanto irregular, mas de indústria calculada para mais funda impressão deixar no ânimo do leitor. A imaginação viva e rica de imagens felizes, não é peada pelo verso sempre fluente e fácil.

Mesclam-se neste poema vários metros e vários estilos: por vezes entrelaçam-se o trágico e o burlesco, o romanticismo e o realismo. Nem sempre estes saltos agradarão ao coração e ao espírito, como que forçados a estacar de chofre na vereda por onde eram lançados; mas há um encanto tal, derramado por todo o poema, que seduz e arrasta.

Da índole da sua obra fala-nos o poeta assim na dedicatória:

Talhei os meus heróis ao molde antigo

Dos poetas românticos que li;

Fiz de Armando uma espécie de Tancredo,

Com uns tímidos ares de Manfredo

E umas vivas audácias de Antony.

Madalena distingue-se somente

Das anêmicas deusas dos salões,

Por detestar — na flor da mocidade,

Os ruidosos festins da sociedade

E preferir viver nas solidões.

E isto um tanto lírico... concordo;

Mas eu, além de ser um sonhador,

Os modelos que achei por toda parte

Foram abortos típicos, sem arte,

Corpos sem sangue e almas sem amor.

Assim pois preferi soltar as asas

Da minha fantasia — pelo ar...

E (sem ofensa à escola realista)

Em vez de ser apenas um copista

Tentei ser um Colombo n’outro mar.

E descobri a América das flores,

O país das caboclas guaranis...

São os meus pensamentos uns selvagens

Que vagam, a cantar, n’estas paragens,

Vigorosos e nus como os tupis!...

Sonhar... sempre sonhar! Se enfim de contas

Esta vida é um sonho e nada mais,

Que mal faz que um rapaz, aos vinte anos,

Embalado na rede dos enganos,

Sonhe à sombra dos frescos laranjais?...

Tampouco podemos furtar-nos ao prazer de dar uma breve amostra do estilo descritivo deste tão jovem quão esperançoso poeta:

Era ao cair da tarde. Agonizava o dia

Aos ósculos sutis das virações do sul.

O sol já descambava, a Lua já surgia...

E entre o sol e a Lua — a imensidade azul.

Era ao cair da tarde. Os pássaros trinavam,

Voejando em redor das árvores em flor;

Mugiam tristemente os bois — e meditavam...

E a matilha dos cães seguia o caçador.

Era ao cair da tarde. Um canto magoado,

Saudoso, se perdia, ao longe, pelo ar...

Os escravos, em grupo, a um canto do sobrado,

Descansavam, fumando, a rir e a conversar.

As nuvens, a correr nos amplos horizontes,

Projetavam no ar desenhos vaporosos...

E a bruma, que ocultava o píncaro dos montes,

Unia a terra ao céu — por elos misteriosos!...

Depois... a pouco e pouco, estrelas oscilantes

Flutuavam a flux do mar da imensidade;

E a Lua — a confidente eterna dos amantes —

Peneirava na terra um pó de claridade.

        

Ó noites de luar, tristes, misteriosas,

Que efeitos ideais a vossa luz encerra!

Espargindo no azul constelações radiosas,

Descortinais o céu e iluminais a terra!...

Rio de Janeiro, 25 de Janeiro de 1880.

JORNAL DO COMÉRCIO.

VERSOS

Sob o título Cérebro e Coração acaba de publicar o Sr. Múcio Teixeira um volume de versos.

É mais uma bela produção do jovem e talentoso poeta, conhecido já por outros primores literários entregues à publicidade.

Pela rápida leitura que fizemos d’estas novas páginas vê-se que uma apreciável evolução se tem operado na forma e no ideal das concepções do esperançoso poeta, a quem não se poderá increpar de atardado nos usados moldes do romantismo.

Consta-nos que o Sr. Múcio Teixeira faz imprimir um novo volume, que aparecerá brevemente, e que, é de esperar, não desmerecerá da prova que o livro que acabamos de citar produziu em favor de seu autor.

Rio, 23 de Janeiro, 1880.

DIÁRIO OFICIAL.

LIVROS E LETRAS

Se, na apreciação de qualquer autor, o número de suas publicações tem algum peso, ninguém da nova geração avantaja-se ao Sr. Múcio Teixeira.

Os seus livros já publicados atingem a uma soma considerável. Os que estão no prelo são numerosos. Naturalmente em seu cérebro existem muitos mais, e em breve, a continuar n’este passo, ele contará mais volumes do que anos.

Ainda agora recebemos um poema seu — Cérebro e Coração. É a história de uma mulher e de um poeta que se amam. A pobreza dele, a riqueza dela, as conveniências sociais e os desejos da família da amante põem entre os dois os maiores obstáculos. Porém tudo vence o amor, e, dias antes do casamento, Madalena, a heroína, foge na garupa de Armando, o herói.

Como apêndice, a obra traz a ata de uma sessão dos bacharéis em Letras, que, depois de declarar bem elaborado o poema, e afirmar que durante algumas horas prendeu a atenção dos sócios presentes, termina assim: “O Sr. presidente em nome do Instituto saúda o Sr. Múcio Teixeira, felicitando-o pelo trabalho apresentado, asseverando-lhe que, se já não fosse conhecido e apreciado o seu talento, o Cérebro e Coração seria bastante para granjear-lhe posição distinta entre os nossos laureados poetas.

O Sr. Bacharel Limoeiro oferece-se para escrever uma apreciação sobre o poema.”

Rio, 33 de Janeiro de 1880

GAZETA DE NOTÍCIAS.

IMPRENSA

A livraria Lombaerts & C. acaba de publicar um nítido volume de poesias, que certamente serão mais lidas do que em geral costumam ser trabalhos desta natureza, em nossa terra.

Esta obra, noticiada há dias, é trabalho do inteligente moço rio-grandense Múcio Teixeira.

Cérebro e Coração é o título do poema, que outra cousa não é mais do que essa velha história de amor, tantas vezes escrita e sempre tentada pelos homens decoração.

O poema do Sr. Múcio Teixeira tem realmente belezas, que nos fazem esperar do jovem poeta alguma cousa mais do que versos ligeiros, como são os da composição, que ora vai correr mundo.

Há na obra um quer que seja que dá a conhecer o talento do autor, embora não sejam muito raros os lugares comuns e os versos a que falta a originalidade.

Páginas se encontram em que é visível a impressão de alguns poetas. Todavia a obra do Sr. Múcio Teixeira, como dissemos, tem belos versos e nos parece que será mais procurada do que é costume fazer-se aqui com obras d’arte.

Poderíamos consignar n’este lugar versos que justificariam completamente a nossa opinião relativa ao talento do autor. Não o queremos fazer, porém, porque estamos certos de que os leitores procurarão ler a obra do jovem rio-grandense, tendo assim ocasião de verificar por si não só os seus méritos como a elegância, a facilidade, o primor mesmo de muitos versos.

Rio 26 de janeiro de 1880.

CRUZEIRO.

O ECONOMISTA BRASILEIRO

O jovem e distinto poeta Sr. Múcio Teixeira ofereceu-nos um volume das suas últimas e mais mimosas produções poéticas.

Cérebro e Coração é o título do novo livro do incansável moço, a quem a literatura brasileira já tanto deve e a quem tão merecida justiça tem por vezes sido feita por juízes em condições de julgá-lo, em cujo número bem sentimos agora não estar, para render-lhe conscientemente todas as homenagens de que o presumimos merecedor.

Tão timoratamente quanto é possível consinta o jovem poeta que, por única questão, talvez de gosto, lhe digamos:

Largo, brilhante e feliz deve ser o futuro de quem como o Sr. Múcio possui um cérebro capaz de produzir a Asa Negra e um coração em condições de sentir assim.

A sua Madalena é um tipo, embora lançado em moldes um tanto conhecidos, feliz, tanto mais porque o jovem poeta soube opulentá-lo das louçanias de um sentir quase essencialmente seu.

Mais de uma poesia digna de nota orna as páginas do novo livro a que nos referimos e ao agradecê-lo sentimos que a carência de habilitações e de espaço, que não de boa vontade, nos inibam demais largamente dele nos ocuparmos.

Rio, 31 de Janeiro, 1880.

VlCTOR DA CUNHA.

DOIS LIVROS.

Múcio Teixeira, o distinto poeta, cujas produções são apreciadas por todos que as leem, vai por estes dias expor ao público dois volumes de versos, sendo um poema e outro contendo diversas composições. A impressão que é da Tipografia nacional é elegantíssima e está nitidamente feita.[11]

Rio, 23 da Janeiro 1880.

MEQUETREFE.

CÉREBRO E CORAÇÃO

É o título de um novo poema que nos foi oferecido pelo seu ilustre autor o Sr. Múcio Teixeira.

É um poema escrito com correção e beleza de arte, onde o jovem rio-grandense revela mais uma vez o seu talento e estro poético.

Agradecendo tão valiosa oferta, só temos para o Sr. Múcio Teixeira as palavras de animação, que a justiça nos manda dispensar aos moços que trabalham e aos talentos que cultivam.

Rio, 31 de Janeiro, 1880.

O ESTANDARTE.

DIVERSAS PUBLICAÇÕES.

Cérebro e Coração, poema por Múcio Teixeira; I vol. — Rio de Janeiro — 1880.

Tem o Sr. Múcio Teixeira um talento poético muito notável. Os seus versos são fluentes, a rima fácil e muitas vezes nova. Os leitores da Revista Brasileira, que não conhecem os primeiros livros deste escritor, poderão ajuizar dos seus dotes poéticos pela produção com que o Sr. Múcio Teixeira brindou a Revista, e que foi publicada no último número. É porém um talento juvenil, que, tendo futuro, ocupa-se muito com o passado. Neste ponto estamos de inteiro acordo com o Sr. Machado de Assis em seu notabilíssimo escrito sobre a Nova Geração[12]. Pode-se quase aventurar que o Sr. Múcio ainda não entrou no espírito da nossa época.

Pelo que toca ao poema Cérebro e Coração, onde se encontram versos admiráveis e encantadores, nada oferece novo a não serem estes mesmos versos. A ação não se recomenda nem pela naturalidade, nem pela originalidade, nem pela graça, nem pela conveniência. Armando que é pobre, apaixona-se por Madalena, que é rica. Interpõe-se um leão que pede Madalena em casamento. Quando, este está a realizar-se, Armando rapta Magdalena. Eis o poema.

Seria muito conveniente para as nossas letras que os moços de talento, em vez de procurarem[13] aumentar o número das suas produções, pensassem antes em dotá-las com as qualidades que são as condições de vitalidade das obras literárias, ainda que, no fim da sua carreira, não pudesse atestar o seu valor mental mais de uma obra de verdadeiro merecimento.

Somente a pressa, inimiga da perfeição, poderia levar o Sr. Múcio Teixeira a escrever, em um poema que não pertence ao gênero herói-cômico, estes versos:

Logo à primeira volta, encalistrado,

0 rapaz, que sentia-se já tonto,

Cambaleou por forma tal ao ponto

De quase s’espichar pelo salão....

......................................................

Dirigiu-se apressada ao toilette

A fim de endireitar o seu vestido.

....................................................

O baile prosseguiu (chapa no caso)

Rio, 1 de Fevereiro de 1880.

REVISTA BRASILEIRA.

CÉREBRO E CORAÇÃO.

Amigo Múcio.

Li o teu livro e dou-te um cordial aperto de mão.

Acredita, falo-te com a franqueza de que sou capaz: o teu Cérebro e Coração não é um livro para firmar uma época literária, nem para deixar uma impressão profunda; mas é um trabalho artístico, delicado, um pouco romântico, é verdade, porém cheio de irradiações que deslumbram.

Não há no teu poema um verso manco que nos faça irritar os nervos nem perder o apetite. A tua metrificação é elegante sempre e há estrofes no teu livro de tal beleza e naturalidade que nós lemos, repetimos a leitura e acabamos por decorá-las.

És um poeta de quem já se orgulha a nossa Pátria; um poeta como por aí não se anda encontrando a cada passo. Alguém em artigos desconchavados, que insultam o bom senso e desrespeitam a gramática, intentou arrancar-te da fronte a coroa de poeta. Não conseguiu, nem o conseguirá.

      

Os órgãos da imprensa que estão nos casos de dirigir a opinião já fizeram-te a devida justiça.

É quanto basta...

Venham os teus Novos Ideais, que eu, desde já, responsabilizo-me a fazer sobre eles um estudo mais consciencioso e mais na altura do teu talento.

Rio, 7 de Fevereiro de 1880.

LINS D’ALBUQUERQUE.

CÉREBRO E CORAÇÃO

Poema por Múcio Teixeira. — Tipografia de Lombaerts e Comp., rua dos Ourives n. 7 — Rio de Janeiro — 1880.

Pensamos que, antes de emitir-se opinião sobre um livro, deve-se examinar o estado intelectual e moral da época em que fora produzido esse livro e a feição do povo, no seio do qual fora gerado. É certamente isso que constitui o meio físico e o meio psicológico, cujas influencias são assaz predominantes, tanto nos homens como nas cousas.

O Brasil neste momento apresenta a feição bastante assustadora das nações que caminham para a dissolução moral. A corrupção lavra por toda a parte, o desespero, o desânimo, assim como também a indiferença fazem-se sentir no seio de todas as classes. A maioria dos espíritos conturba-se nas doridas apreensões de um futuro tenebroso; sente-se o rouco bramido de uma tempestade longínqua, que ninguém sabe de onde vem.

A onda da degradação invade tudo: a família está vacilante, inconsistente, enquanto que o mal caminha rápido.

Entretanto isso é um fenômeno assaz natural.

Os organismos doentios têm momentos de crises perigosas, que não são outra cousa senão períodos decisivos.

E quando um povo chega aí, não se pode exigir dele grandes cometimentos.

*  *  *

A nossa feição literária ressente-se ainda das influências de uma época que já passou.

O romanticismo, o lirismo e o agentilismo hão predominado na nossa existência literária, obrigando-nos a viver a repisar velhos ideais, e a cultivar uma poesia frouxa, estafada e histérica.

É que entre nós deu-se à poesia um papel secundário; teve-se-a sempre, não como um instrumento de progresso, mas sim como elemento de diversão, de recreio, sem ação sobre as massas, incapaz de instruir.

Desde que o verso não fosse retumbante, não tivesse o alambicado de frase, não era poesia; poesia era só aquilo que fosse como que um arranco d’alma para o infinito, o poeta não era um homem, era um predestinado!

Assim é que os vates cantarolavam à face aparente da natureza, esquecendo a análise de seu organismo e dos seus efeitos. O plectro que melhor fazia soar a lira, era o amor da divindade e a face pálida das Sands, quando, entretanto, esquecia-se a humanidade, essa grande fonte das maiores inspirações.

Foi esse o legado de nossos pais, que cuidavam menos do fundo que da forma, como se a poesia consistisse na frase limada, na estrofe polida.

Este estado de cousas imperou por muito tempo e atua ainda hoje. Eis porque não possuímos já uma melhor intuição crítica e trabalhos de maior nota.

*  *  *

Não somos daqueles que acreditam que o povo brasileiro há de vir a ser um povo gigante por sua onipotência científica; todavia temos crença de que um grande futuro nos está reservado como povo artístico e literário.

O povo francês também não é povo talhado para a ciência; os seus vultos científicos são resultado da ciência estrangeira.

Todavia a França é o entreposto do universo, no comércio da sapiência humana.

O Brasil, não pode apresentar já a feição dos povos ilustres, porque além dos males apontados, a sua idade começou a contar-se de ontem, e sua civilização está ainda na primeira fase da evolução por que passa a de todos os povos.

Antes que possamos ser um povo notável, é necessário que passemos pela grande transformação moral que só a ciência efetua.

Entre nós tudo está por fazer. A ciência ainda está balbuciante, temerosa, refugiando-se em pequenos centros; ela não fez ainda sua entrada triunfal nas nossas academias, para que de lá possa chegar até ao povo que tateia no meio de uma ignorância pavorosa.

Eis porque não nos deve causar grande pasmo a fraqueza artística e literária existente até hoje entre nós.

Os povos não se transformam à sua vontade; há uma lei que os rege, que os dirige em seu caminhar modificando-lhes e corrigindo-lhes os sentires, as aspirações, os almejos. O tradicionalismo também exerce influência na marcha dos povos.

A nacionalidade brasileira, pois, que ainda agora apresenta a feição dolente dos povos inertes e anarquizados, entra em uma fase de gestação, da qual há de evolutar uma época de verdadeiro esplendor artístico e literário.

Sente-se já uma grande tendência, um impulso valoroso para o alcance do futuro.

A poesia, cansada de arrastar-se pelos moldes senis legados pelas gerações idas, ensaia seu voo para os horizontes da liberdade.

À par de muita fraqueza que por aí anda com ademanes de cousa boa vão surgindo uns reflexos ainda que tênues, mas auspiciosos, de bom gosto e bom senso. Sente-se como que uma reação lenta mas firme, do pensamento, da filosofia e do saber contra a fantasia e a insciência.

Desponta a aurora de uma poesia mais vibrante, mais consistente: — a poesia objetiva.

E a mocidade de hoje é quem está denunciando tudo isso.

*  *  *

A nova geração composta de uma mocidade nascida ao ecoar dos trovões medonhos das reações cientificas, que rebentam lá por fora, vai afinal conhecendo a necessidade de um trabalho mais consciente e utilitário. Posto que lentamente, aparecem já alguns livros, que atestam o esforço afanoso e aturado de uma geração, que quando não seja ainda a reorganizadora da nossa capacidade intelectual, todavia faz-se carecedora de alguns louvores, por isso que busca acompanhar o movimento geral latente nos grandes centros civilizados.

O movimento que hoje se nota no seio da sociedade brasileira não é ainda daqueles que atestam de modo firme a vitalidade de uma nacionalidade valente.

Sem embargo é já prova do seu caminhar para o congresso das potências intelectuais.

A convicção da necessidade da luta contra o passado gasto já, vai nascendo em alguns espíritos potentes que se atiram corajosos aos labores.

Uma plêiade denodada de atletas do pensamento ergue-se robusta e vai levantando a propaganda da utilidade do trabalho.

E assim deve ser. O trabalho não é somente uma consequência da precisão: é um elemento de        progresso; é a vereda da regeneração tanto dos povos como do homem.

E quem mais deve trabalhar é a mocidade que representa o futuro, que tem sobre seus ombros o encargo do triunfo das ideias modernas.

*  *  *

Múcio Teixeira pertence a essa plêiade.

      

Jovem, cheio dos ardores dos verdes anos, com um espírito formado para os grandes deslumbramentos poéticos e sublimes exaltações das naturezas francas, não podia deixar de tomar parte ativa na gloriosa cruzada dos obreiros do progresso.

Grande é já a cópia dos livros que tem publicado. Temos ouvido falar bem deles; todavia ainda não nos coube o prazer de ler a nenhum, não podendo por isso dizer se são capazes de dar a medida de uma individualidade literária.

Cérebro e Coração é o primeiro que nos vem às mãos, merecendo-nos todas as atenções devidas aos filhos de um trabalhador honesto.

Este não representa para nós um livro, parece-nos, sim, uma página do poema dos vinte anos. E o jovem poeta é o próprio que diz:

Este poema

É simplesmente um sonho de rapaz;

É uma d’essas fantasias boas

Que mais ou menos todas as pessoas

Temos aos vinte anos, nada mais.

E assim é. Encontra-se no livro de Múcio Teixeira páginas que são os doces transbordamentos de um coração de moço e que são muito conhecidas de todos aqueles que atravessam o segundo período da vida. Quem é esse que aos vinte anos não foi Romeu? Não verteu sentidas lágrimas na paixão febril dos Manfredos? O coração humano é sempre o mesmo em um certo período da vida.

*  *  *

Há muito quem condene o sentimentalismo; porém há poucos que o saibam fazer criteriosamente.

A poesia lírica, seja ela mórbida como a lamartineana, tem sua razão de ser em certa faze do espírito humano. Antes que o poeta firme sua individualidade, ensaia seus passos e esses ensaios começam sempre no lirismo.

Eis porque somos forçados a aplaudir o poema de Múcio Teixeira, onde há lindas pinturas e interessantíssimas passagens, posto que filie-se ainda à velha escola.

O canto V é um dos mais belos pela singeleza com que está escrito. Ao lê-lo, suspira a gente por uma tarde, como aquela em que

As nuvens, a correr nos amplos horizontes,

Projetavam no ar desenhos vaporosos...

E a bruma, que ocultava o píncaro dos montes,

Unia a terra ao céu — por elos misteriosos.

Temos aí umas estrofes singelas como as campônias, mas cheias de beleza e de sentimento.

As do desenho de Madalena são também uma pintura feliz:

Formosa como as virgens da Circássia,

Ela tinha das moças espanholas

As tentações sutis;

Fundia na voz clara, alegre, límpida,

A harmonia das mansas barcarolas

E os brilhos dos fuzis...

De argentário varão herdeira única,

N’um gesto, n’um olhar, realizava

Todos os sonhos seus;

E nos áureos salões aristocráticos

À cauda dos vestidos arrastava

As almas dos Romeus.

.......................................................

Quando um sorriso lhe frisava os lábios,

Como os jasmins que à luz da madrugada

Rorejados estão,

Os dentes — claros como algentes pérolas,

Imitavam os pingos — de geada,

As bagas de Ceilão!

Há ainda o Baile, que tem umas lindas estrofes, muito verossímeis, e com seu fundo de crítica.

Para recomendar o livro basta o diálogo da velha e o poeta, do qual aqui vai um pequeno excerto:

A VELHA

Porque tão tarde, meu filho,

Regressas ao pobre lar?

O POETA

Minha mãe, as horas voam

Quando contemplo o luar.

A VELHA

Mas, tens os olhos inchados...

Acaso foi de chorar?

O POETA

Não, minha mãe; são efeitos

Da muita luz do luar.

.............................................

É pois o Cérebro e Coração assim como que o adeus do poeta à idade metafisica.

Múcio Teixeira possui todos os atributos para que chegue a ser um grande poeta. Seu verso é cadente, espontâneo, cheio de sentimento; sua rima é natural e fácil. Nota-se apenas uma falta de firmeza de escola, maior intuição, o que há de chegar-lhe se perseverar no estudo acurado e souber aproveitar as grandes lições do mestre da mocidade de hoje: — Sílvio Romero.

O Povo, Rio, 27 de Janeiro de 1880.

MANÇOS D’ÁSIA.



 

[1]. Parnaso Português Moderno — Introdução.

        

[2]. Les origines touranniennes des Américainsganganellui-Tupis-Caribes.

[3]. Os Quilombos dos Palmares foram dos fins do século XVII.

[4]. Les Premieres Civilisations.

[5]. 0 turanismo do Sr. Th. Braga começou a despontar em 1877 no prefácio ao seu Parnaso Português Moderno; acentuou-se mais em 1878 na sua História Universal. Lenormant fez, quase que por si só, as despesas desta transformação recente. O    seu positivismo, também de data próxima (Constituição Positiva da Estética — 1875 e Traços Gerais de Filosofia Positiva — 1878), — não o garantiu contra falaciosas teorias etimológicas.

[6]. 0s sucessos de 1817, 24, 31, 35, 42, 48.

[7]. O Romantismo no Brasil. (Trabalho de 1873.)

[8]. O Romantismo no Brasil. (Trabalho de 1873.)

[9]. Parnaso português Moderno, 1877.

[10]. No artigo — Realismo e idealismo, inserto no Movimento, em 1872, Recife, e num artigo sobro as poesias da Sra. Narcisa Amália, publicado na República, do Rio, em 1873, discutimos a questão.

[11]. No número em que saiu esta delicada notícia, o Mequetrefe dignou-se honrar o autor oferecendo sou retrato aos assinantes.

[12]. O Sr. Machado de Assis, no artigo A Nova Geração, trata do poeta das Violetas e das Sombras e Clarões (livros de 1875 e 1877), ao passo que o Sr. Dr. F. Távora refere-se a um trabalho moderno, onde o autor tem plena consciência de manifestar a transição por que seu espírito tem passado.

[13]. O autor deixa passar sob a autoridade do Sr. Dr. F. Távora a construção gramatical.