Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Minaretes, de Viriato Corrêa


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

A quem me ler

Sinhá Dona

Zé Boi

A Mariquinhas da outra banda

À espera de um homem

Safado!

Um pancadão

Incesto

A cega

Castelos de cartas

O morfético

A quem me ler

É na mesquita dourada da Literatura.

Nos salões da Arte a campainha vibrante da Glória bimbalha à hóstia soprada do Gênio, que nas mãos de Gutenberg sobe, baforada de incenso, à atmosfera rutila da Imortalidade.

Curvam-se os joelhos no taboado pálido do templo, e as mãos de quem ouve a missa, sobre o peito, batem reverentes, místicas.

Caem do teto arabescado as luminárias fulvas das lâmpadas metálicas. Toda a mesquita de luz se alaga e de rumor palpita. Por toda a parte uns hinos de Conquista, uns cânticos de Vitória.

Mas, no alto do templo, há uns lugares sombrios, muito distantes, esquecidos de todos, a que nem de leve chegam o som da campainha, o rumor da festa, os gritos da Vitória. Às vezes, das janelas esguias, à hora calma do crepúsculo, a voz rouquenha de um sacerdote brame, anunciando a prece. Esses lugares chamam-se MINARETES.

Seja também MINARETES o nome deste livro.

Nele tudo é mudo, nada palpita, nada canta.

Somente no topo das lanças enferrujadas, ao vento do Esforço, flamulam uns velhos trapos de cérebro de moço.

Viriato Corrêa.

Sinhá Dona

À Clodomir Cardoso

Pirapemas, Abril de 1902.

Tanto castigo, tanta desgraça! A sua mãe perdida pela mata à dentro, com certeza morta!

Oh, fatalidade!

E pálido, o rosto descansado na mão direita, o cotovelo no peitoril avarandado da fazenda, o olhar sombrio esquecido à toa pelo espaço claro; silencioso, ele pensava.

Três dias sem notícias dela!

Onde estaria? Léguas distantes, por esse matagal espesso, caduca, fraca, tateando sem rota ou talvez morta em paragens longínquas, servindo de pasto aos animais famintos.

Três dias de balbúrdia, de canseira e luta! Nem cipoais, nem grutas, nem carrascos, montes havia mais a procurá-la. Já tinha até prometido liberdade ao escravo que a trouxesse a casa.

Ficava triste, olhando inquieto, ao mesmo tempo pensando como daí a pouco, na curva de caminho, despontasse um negro, trazendo-a viva, vagarosamente nos brados ou um bando de gente carregando-a morta.

Três dias! Há três dias desaparecida? Era impossível que estivesse viva... Mas, ao mesmo tempo que, vacilando, o seu espírito achava evidente a morte da mãe, vinha-lhe uma certeza pálida, uma possibilidade sombria, que, vagando pelo mato à toa, podia ter encontrado lá nos confins da serra algum morador distante que a agasalhasse em casa. E esse morador talvez viesse trazê-la!

Refletia depois sereno, vendo a mãe caduca, embrenhada em caminhos ínvios, solitários e perigosos, atacada pelas onças, mordida pela cascavel traidora, oculta na folhagem, ou morta atirada ao acaso, os urubus em cima, picando-lhe as carnes...

Um estremecimento ligeiro corria-lhe o corpo, a cabeça esquentava com uma pontada dorida e toda a alma se amortecia ao peso da angústia.

Tépida, da mata chegava a brisa, cheirando a folhas, trazendo um rumorejo brando de galhos agitados. Esbrazeado, o sol, na luz chispante do meio-dia, esquentava em cima o telhado com um calor ardente de forno aceso. No terreiro, perus cinzentos, de papo escarlate, inchavam-se orgulhosos, riscando o chão com as asas, bufando valentes a cada roda. Carneiros pastavam em bandos pela relva baixa, balindo às vezes. Pelo espaço claro, os urubus em cima. Quase nas nuvens, cortavam os ares lentamente, em direção do ocaso. Touros mugiam pelo campo, ao longe. Galinhas cacarejavam, mariscando na areia. Pelos ranchos dos escravos, em cordas passadas, roupas grossas de mulheres secavam ao sol. Havia uma pacatez pesada, uma pacatez de meio-dia em fazenda solitária.

Aquela tranquilidade morosa invadia-lhe o íntimo magoado, infiltrando-lhe uma tristeza intensa, uma dor penosa no seu coração de filho.

Uma nuvenzinha branca, transparente e macia, alvejava num pedacinho azul de céu. E esquecido, a face caída sempre na mão direita, o olhar tristonho reluzindo em lágrimas, fitava serenamente a nuvem branca espalhada no espaço.

Ao longe, no âmago da mata, em procura da senhora, de vez em quando, algum preto longamente gritava:

— Eh, Sinhá Dona!

E, a cada grito perdido no matagal silente, na sua alma ansiosamente rebentava uma nova agonia acerba, enchendo-lhe a cabeça revolta de recordações antigas, onde todo o seu ser se mergulhava indelével no acabrunhamento doloroso do pesar.

Aqueles gritos longos, rubrados, distantes, ao rumorejo da selva, vinham, na brisa cálida da tarde, vibrar-lhe as fibras do sentimento, como uma nota funérea que chegasse de longe, para aumentar-lhe a tristeza amargurada do funeral das dores. Rouquenhos, demorados como vinham, pareciam-lhe a música de um mistério, que, nas asas da lembrança, lhe levava insensível as sombras do passado.

Recordava-se de sua mãe nos dias de raiva, chicote em punho, espancando os negros, prendendo-os dias inteiros, semanas completas, em quartos escuros, sem um punhado de farinha ao menos para aliviar a fome. Via-a depois satisfeita, estalando de alegria, de orgulho lisonjeado, quando o escravo, bambo, as faces espocando em sangue, mordidos pela taca, se torciam fantásticos a seus pés, os joelhos curvados, implorando misericórdia...

O tronco no terreiro, estupendo e cruel, manchado sempre de sangue... E ali todos os dias o feitor malvado, às ordens da senhora, vibrava impiedoso o chicote agudo no lombo descoberto do cativo, que a cada golpe a carne lapeava de sangue, retalhando-a de feridas.

E, enquanto o escravo gemia choroso aos golpes do castigo, vaidosa, a mãe, sorrindo, dizia zombando, lembrava-se bem — “para não criar bicheira” — mandando despejar sobre as feridas novas, gotejantes de sangue, o balde de sal!

Barbaridade! O preto dobrava-se frenético, bramindo desvairado, esbrugando os olhos flamejantes, injetados de sangue, torcia-se, retorcia-se todo numa agonia histérica de cobra ferida, coleava desesperado e diabólico e rolava pela areia quente, exausto, arquejante, combalido e mudo.

Tudo isso lhe vinha agora, aos poucos, avivar o desgosto, revolver a chaga do seu coração ferido.

Via em bandos, tanga à cintura, estômago vazio, os cativos, aos primeiros clarões do dia, seguirem silenciosos para o trabalho. Nada, nada comiam. Um pedaço ardido de carne e dois punhados de farinha.

— Que se arranjassem! Negro não devia comer muito, para não ficar preguiçoso! — Ainda em cima era essa a frase, a dura frase de sua mãe.

E, com o olhar quebrado, lacrimoso e triste, embebia-se contemplando o grupo desordenado de ranchos toscos, que se espalhavam na fazenda, nos quais a roupa grossa dos escravos, estendida em cordas, secava ao sol. Ali estava a caravana sangrenta do cortejo bárbaro de sua mãe! Quantas vezes, debaixo daquelas palhas, não fora o nome dela amaldiçoado na exclamação do desespero?! Quantas vezes, naqueles mocambos sujos, não gemera ou não expirara o negro martirizado, o mártir sem ideal, ao efeito selvagem das ordens dela?!... Ah, quantas vezes!...

E, enquanto tudo isso lá se dava, enquanto os corações se partiam ao frêmito das lágrimas, as lágrimas fervilhavam ao crescimento das dores, as dores se alongavam na continuidade do castigo, no balanço moroso da rede branca de labirinto fino, agitada pela escrava, a sua mãe dormia serena, esquecida do próximo, dos soluços e dos males.

Agitado de lembrança em lembrança, o seu pensamento inquieto foi-o transportando aos traços erradios da meninice.

Lembrava-se bem, era pequeno ainda, dez anos apenas, quando na fazenda sua mãe fizera uma crueldade tão horrível que até de a recordar tremia.

Nesse dia estavam à mesa, quando seu pai, propenso à roda das mulatas, com entusiasmo gabara os dentes brancos da Carlota, que, tirando os pratos, sorria para outra escrava perto. Reparara, apesar de criança, na cara carrancuda e terrível que a mãe fizera a cada palavra que, esquentado pelo vinho, seu pai, seduzido, deixava sair, elogiando a mulata. E nesse mesmo dia, chamando a Carlota, mandou-a deitar-se estirada no chão e, colando-lhe os joelhos sobre o pescoço, armada de um ferro, quebrou-lhe a dentadura. À tarde a rapariga viera servir à mesa e por escárnio ela mandara-a sorrir para o marido, com a boca vazia banhada de sangue, o rosto opado, os olhos fundos. Seu pai, raivoso, apesar de mole, revoltara-se contra a crueldade, bradando à esposa frases violentas e duras, que a feriram nos seus melindres de senhora absoluta, que tem sobre si, resignados e humildes, um bando de cativos prontos a cumprir-lhe os caprichos mais extravagantes.

No outro dia, quando o marido partira para a caça, mandara segurar a escrava ao tronco.

O feitor chegara, carrancudo e grave, o relho de tiras pendendo do braço grosso e foi marcando impiedoso o lombo despido da mulatinha nova, numa ferocidade calma de animal vadio, que estrangula a presa para beber somente o sangue.

Oh, tinha lembrança viva! Nesse momento agarrava-se febril às pernas de sua mãe, chorando e pedindo que ela mandasse terminar o castigo daquela mestiça formosa, que à noite vinha acalentá-lo, deitada com ele na mesma rede, cantando modinhas...

Mas somente quando das duzentas chicotadas a última vibrara, e que o corpo da Carlota se tingira de sangue, se recortara de chagas, é que o feitor, atirando o chicote para uma banda, viera avisar a senhora de que estava a ordem cumprida. A efusão de sal derramou-se na espádua retalhada da mulata. Santo Deus! Desesperada, a rapariga agarrou-se ao corpo do feitor, como se quisesse despedaçá-lo, colando-lhe a boca desdentada sobre a face rugosa; depois, num impulso furioso, rebolou desvairada pelo chão, espumando de raiva, blasfemando à toa.

E nessa blasfêmia de louca saíram frases insultuosas à senhora.

Então ela, ferida no seu orgulho de absoluta, mandara longe de casa abrir uma cova e enterrar a escrava até quase aos peitos. Nesse dia, o chicote de lombo de anta vibrara desde manhã até de noite e ao amanhecer do outro dia lá estava a pobre mulatinha morta.

— Que deixássemos lá, talvez os urubus estivessem com fome, — foram essas as palavras simples, as cruéis palavras de sua mãe.

E foram mesmo os urubus que vieram no outro dia devorar a metade do corpo da Carlota.

E, na lembrança sinistra desse homicídio injusto e selvagem, no espírito aturdido, povoado de mágoas, despertava-lhe um receio vago de um celeste, de uma vingança onipotente...

Distante, na quebrada dos cerros, o grito longo dos negros repercutia nos ares:

— Eh, Sinhá Dona!

Aquele grito sempre a magoá-lo. Sempre a trazer-lhe à memória a recordação pungente da mãe, a recordar-lhe sempre o passado odioso dos crimes dela!...

E aquilo chocava-o, apunhalava-lhe o íntimo, como a sentença que se ouve a uma pessoa querida.

— Eh, Sinhá Dona!

E era ao som daquele grito, vibrado ao longe, na sombra tristíssima da mata, que a sua lembrança mais viva se acendia nas reminiscências negras dos castigos da mãe.

Ah, fatalidade! Ela, que fora tão má, tão injusta e tão bárbara, que morte agora amargurada e miserável não teria tido por aqueles montes, por aqueles cerros?!

E os mesmos, os mesmos que gemeram ao peso da sua impiedade, eram os próprios a revolver agora as moitas, a revistar as grutas, em procurado seu corpo abandonado e imprestável e quem sabia se podre, estirado no caminho, à gula dos urubus...

Ah, como estariam alegres os escravos, como os seus corações deveríam palpitar de júbilo, ao verem a sentença justa que a Onipotência impunha aos crimes daquela senhora desumana, que passara a vida a maltratá-los pela taca e pela fome!

— Eh, Sinhá Dona!

Lá estavam eles a gritar por ela! Mas aquele grito parecia-lhe o eco galhofeiro, a voz de escárnio, que dos peitos empedernidos daqueles homens partia, para cada vez mais revolver a ferida ensanguentada do seu coração de filho.

E via os escravos em bandos, pelo mato, rindo e galhofando da morte da senhora, achando justo, achando bom todo aquele infortúnio, toda aquela miséria...

Como não estariam eles em cochichos, relembrando os castigos doridos que sofreram e agradecendo a justiça celeste que os vingara?...

— Fatalidade, maldita fatalidade!...

E nos seus olhos pretos, amortecidos pela meditação, duas lágrimas surgiram, fartas e brilhantes.

Ah, revezes da sorte, vida cheia de revezes!...

E ficou pensando, pensando muito, o rosto descansado na mão direita e as lágrimas luzentes descendo pelo rosto.

Ah, se alguém viesse trazê-la, ou viva ou morta, pouco importava. O que queria era tê-la de novo à vista! Pelo menos dar-lhe-ia uma sepultura...

A sua mãe sem sepultura!... Oh, céus!

Mas não era possível que ela estivesse morta! Por aqueles sítios muita gente havia, que, vendo-a vagar caduca pelo mato, a traria para casa, dando-lhe agasalho.

Mas quem sabe, quem sabe se os próprios escravos não tinham dado cabo dela?!

E essa ideia acudiu-lhe à mente como um relâmpago que risca a escuridão de uma borrasca. Deveríam ser eles mesmos!

O ódio concentrado naqueles corações de vítimas, a lembrança dos dias passados nas dores do castigo, aos golpes do chicote, às lágrimas da fome, acenderiam por força no espírito daqueles homens o desejo de se vingar daquela velha, que no passado fora o instrumento mais terrível dos seus infortúnios e das suas desgraças.

Sereno, refletiu depois. Se tivessem de assassiná-la, embrenhando-a em lugares ínvios, para atirá-la à gula dos urubus famintos, há muito que o teriam feito, quando ela, no vigor da mocidade, cheia de orgulho e de soberania, mandava espancá-los à toa e recortá-los de chagas. Agora era um traste imprestável, sem desejo, sem maldade, caduca, doente, fraca, trêmula de velhice, de quem ninguém ouvia o mando, pelo contrário, todos se achavam com direito de repreendê-la. Não era possível que fossem eles! Sua mãe estava perdida, infalivelmente morta por aqueles montes.

E meditava em como a velhice adiantada a transformara naquele estado, ela, que fora o terror dos cativos.

Ah! Quem era agora? Uma simples caduca e nada mais.

E ficava pensando na caduquice da velha. Há dois anos dera para andar de casa em casa, visitando os vizinhos, pelos ranchos partilhando a ração dos negros, falando dos da família, repetindo sempre que em casa não lhe davam comida e que queriam matá-la a falta de comer. Vestia-se mal, quase sempre uma camisa velha de chita rala, sem anágua, sem camisa, um casaquinho esfarelado, roto, as chinelas rasgadas, os pés sujos. E, por mais que se rogasse para que ela se vestisse melhor, era sempre a mesma teima, sempre o mesmo desleixo.

Rubicunda, a cabeça branca de octogenária enrodilhada de pano, apoiada num bastão de bambú, pela fazenda, trêmula, o passo incerto, dias inteiros vagava de rancho em rancho, falando só. Passava o dia às vezes no quarto, emendando retalhinhos de chita para fazer cobertas, ou no quintal debaixo da latada de trepadeiras, a preparar, de algodãozinho ralo, sacos de café para as cozinheiras.

Na insistência aborrecida de velha caduca, andava a brigar com as escravas, quando iam buscá-la para dentro de casa ou tomar-lhe das mãos os panos e os retalhos.

O seu quarto, que confusão tremenda! Cacareus juntados pelo terreiro, litografias toscas de santos baratos pregados nas paredes, caixinhas de fósforos vazias pelos cantos, latas cheias de botões usados e roupas sujas atiradas pelo chão numa desordem de quarto de estudante. E triste da escrava que ia arrumar-lhe o quarto! Eram falatórios, pragas o dia inteiro. Para ali carregava requeijões inteiros, frutas e doces, monologando sempre que estava a estalar de fome, que não lhe davam de comer, que queriam matá-la.

De tempos a tempos entendia de cozinhar para si mesma e, carregando da cozinha os apetrechos necessários, metia-se pelo quintal a preparar comida. Era uma luta! Já ninguém podia com a vida dela.

Há poucos meses começara a fugir de casa. Abria o portão do quintal, esgueirava-se pela cerca e metia-se, sem rumo, pelas capoeiras solitárias, debaixo de alguma moita a fumar o cachimbo sarrento de taquari comprido, em risco de ser pisada por algum touro ou mordida por cascavel.

A primeira fuga fora uma surpresa na fazenda. Escravos saíram pela serra, gritando-lhe o nome, procurando-a por todos os cantos, por todas as moitas e de tarde, já na hora do crepúsculo, muito longe, no meio da mata, foram encontrá-la a sós, na roça de um caboclo, desgrenhada, rota, a resmungar consigo, fumando calma o cachimbo velho de taquari extenso. E quase todas as semanas a fuga se reproduzia. Novamente grupos de negros saíam a gritar por ela. Muitas vezes acudia, outras calava-se e à tarde, enquanto na fazenda os apuros cresciam, ela despontava na estrada, rota de espinhos, a cabeça branca crivada de carrapixo, carregando um feixezinho de gravetos, juntos pelas roças.

Mas agora há três dias sem aparecer! Por aquelas bandas nem mais um lugar havia a procurar. Três dias! Era impossível que não estivesse morta! E quem sabe, quem sabe se a fome...? A fome! Ela, a senhora orgulhosa de outros tempos, a soberana fazendeira, festejada e rica, que a vida, passara na fartura e na opulência, maltratando os pretos, deixando-os dias inteiros sem um punhado de farinha, ao menos para aliviar o estômago, morta agora à fome nas próprias dependências do seu domínio.

“O negro não devia comer muito, para não ficar preguiçoso”. E estas palavras, que tanto ouvira dos lábios dela, acudiam-lhe à memória como uma blasfêmia nojenta, que a Providência punia com os revezes da sorte. Ah, Providência caprichosa, Providência justa!

E levantou-se.

Do pino o sol pendia, cheio de luz, muito claro e muito vivo, para as bandas do ocidente. Límpido, luzente, de um azul sem nuvens, cintiliava o céu. O vento quente das duas horas chegava brando, estremecendo os galhos, bulindo nas folhas. Dentados, os carneiros, de branco, malhavam o terreiro areento, com a língua de fora, estalados de calor, remoendo de quando em quando. Nas cordas, as roupas grossas dos negros tremiam morosamente, ao sopro do vento. Num rancho um cachorro uivava gemebundamente. Perto do tronco, num tamarineiro viçoso, um corrupião cantava alegremente.

E ele ficou a escutar aquele canto vibrante e claro, que estridulava junto daquele madeiro sinistro, onde centenas de infelizes rolaram na explosão macabra do desespero. E aquelas notas canoras, cheias de um ritmo suave, cheias de alegria, cheias de vida, cantavam-lhe na alma como o presságio fúnebre de uma desgraça, como as palmas ruidosas da multidão que aplaude a cabeça do criminoso que, do alto da forca, pela areia rola, ensanguentada e trêmula. Naquele canto estava a voz dos escravos na expansão do júbilo e a felicidade, festejando a morte da senhora.

E ele há tanto tempo regendo a fazenda, sem ter mandado retirar o tronco! Ah, fora cruel também!

Na estrada um bando numeroso de negros despontava.

Ele, abrindo a cancela da varanda larga, foi esperado no terreiro. E, numa angústia dolorosa, ia escutando a voz arrastada dos homens, que, suados, esbaforidos de andar, lhe narravam serenos, com detalhes minuciosos, as capoeiras distantes, cipoais cerrados, grutas e campesties por onde tinham andado em busca da desaparecida.

— Nem rasto encontremo, sinhó, nem rasto.

Do outro lado do caminho, ligeiro, um moleque vinha correndo. E foi esbarrando, afogueado, ofegante e exausto, a fala cansada:

— Sinhô, Sinhá Dona está ali perto daquela roça nova, no caminho da lagoa.

— Viva, viva!...

— Morta, sinhô, chega tá fedendo.

Ele tremeu. As palavras do molequinho, ditas tão simples e tão ligeiras, magoaram-o como. E foi seguindo, acompanhado dos escravos, para o lugar indicado.

O corrupião continuava a modular o canto. Rumorejava nas folhas, mais assanhá-lo, o vento cálido. Pipiras luzidias, cor de vinho, pelos galhos saltavam pairando. Calangros espantados, em disparada, corriam pelo mato. Um jumento peiado, na estrada pulava de vagar, batendo o chocalho. No capinzal crescido vacas pastavam, lambendo às vezes os bezerrinhos tenros. Em poças d’agua, perto da lagoa, bandos de muriçocas zuniam, voando tontas. Nos cajueiros enflorados abelhas fervilhavam, adejando confusas. Rolas, aos pares, mariscavam na areia do caminho, fugindo pelos galhos. Nas moitas, borboletas multicores voejavam, pousando aos centos. Gafanhotos fartalhavam as asas com ruído, saltando de arbusto em arbusto. Muito distante, por detrás dos montes, cansado, o grito de vez em quando vibrava.

— Eh, Sinhá Dona!

Chegou. Multidão de urubus grasnando, barulhentos, sacudiram o voo pesado, indo pousar no arvoredo.

Um frio elétrico percorreu-lhe o corpo.

De um lado, estirado na areia, estava o cadáver da mãe. A cabeça branca, crivada de carrapixo, caía para trás, torcida de banda, numa contorsão agoniada de quem morre estrebuchando. Escancarada a boca, com três cacos de dentes nas maxilas descobertas, vertia em fio, espumando pelo queixo magro uma baba amarelenta, tocada a verde, que descia pelo pescoço esguio, indo empoçar na areia revolvida. A saia rala de chita ramalhuda, em farrapos, pelo chão, rolava tremulando ao vento, numa confusão assanhada de bandeiras agitadas. O braço esquerdo retorcia-se sobre o peito descoberto, descarnado e fétido e o direito, teso, estirado em terra, gotejava sangue, picado pelos urubus. Do ventre rasgado estirava-se um pedaço longo de tripa ensanguentada, zig-zagueando pelo chão, babujado de areia. A perna direita inchada, um pouco encolhida, mostrava um círculo roxo, onde os dentes da cascavel morderam e na outra, aberta indecorosamente, uma ferida funda, que tinha há muitos anos, alastrava perto dos joelhos, cheia de moscas, formigando vermes. Do nariz comprido, gomosa, uma espuma esverdeada, como catarro podre de doente de peito, descendo pelo rosto inchado, ia empastar-se nos cabelos brancos, revolvidos nos ombros. Sem brilho, morto, um tanto aberto, como os olhos semi-cerrados de uma boneca de molas, o olho esquerdo crescia com uma chaga vermelha na pálpebra de cima e o direito vazio, nojento, medonho, cavado pelos urubus, vertia um fiozinho de peçonha em mistura com sangue pisado. Na cabeça pensa, fios revoltos de cabelos alvos se assanhavam, por cima da testa, tremendo ao sol. Numa raiva desesperada de dedos contraídos, a mão direita fechava-se, prendendo um punhado de terra, numa agonia diabólica de quem, na convulsão raivosa de uma morte desesperada, alguma coisa procurou para agarrar-se. Seca, uma folha pequenina empastava-se na peçonha pútrida, que pingava pela garganta abaixo. Fartas, alegres, as moscas zumbiam assanhadas pelo abdômen volumoso, penetrando pela vagina, pela boca, pelos ouvidos, pairando no nariz, como que bebendo aos poucos, trago a trago, a espuma amarelenta que borbulhava. De um lado, junto a um tronco podre de pau d’arco, o cachimbo antigo de taquari comprido, com uns restos de fumo em cinza, que ela três dias atrás fumara: o bastão seboso de bambu e um feixe pequeno de gravetos velhos.

Ficou ali parado, absorto, mudo, branco, o olhar aceso, a cabeça vazia, ôca, sem um pensamento, sem uma ideia. Tudo aquilo lhe passava pela vista como uma coisa aérea, intangível, vaga, trêmula, confusa e vaporosa. O seu espírito tremelicava ligeiro, desbaratado, baralhando-se numa confusão desordenada de coisas incertas e desconhecidas.

Mas, pouco a pouco, como quem vai acordando de um pesadelo, que, ponto por ponto, reconhece do quarto em que dorme, os pensamentos vieram-lhe chegando, a princípio vacilantes, em coleações incertas, depois mais retos, mais vivos e mais claros, incendendo-lhe o cérebro, materializando-lhe a cena.

Ali estava putrefato, fétido, nojento, as vestes esfarrapadas, quase nu, servindo de carniça aos urubus famintos, o cadáver de sua mãe. Quanta miséria, quanta miséria!

E o seu espírito religioso divagava. Aquele espetáculo tristíssimo e repugnante saltava-lhe na ideia como a expressão enérgica de uma vontade divina, que agora se vingava, num derradeiro castigo, horripilante e bruto, de quem passara os dias a castigar os outros.

E aquilo corroía-lhe o peito, fibra por fibra, chocando-lhe o mais fundo da alma, o mais pequenino dos pensamentos, enchendo-o de angústia numa explosão picante e mágoas e de dores.

Lembrara-se do que fora sua mãe nos tempos de moça, cercada de riquezas, esperta, bárbara, espancando escravos...

Depois, caduca, velha, a par com os negros nos mocambos toscos, comendo com eles a ração escassa ou perdida no matagal espesso, juntando gravetos, crivada de carrapixo...

Agora, rolava na areia, morta, podre, devorada pelos abutres, como um animal sem dono...

Quanta desgraça!

E, enquanto toda a gente aí por fora, com orgulho, se gabava da ternura e da bondade das mães, ele, que não conhecera nunca um ato bom da sua, era obrigado a achar todo aquele infortúnio, toda aquela miséria a sentença reta de uma justiça suprema!

— Eh, Sinhá Dona! Repercutia ao longe a voz dos negros.

E sempre aquele grito! Lá estavam os escravos pelas capoeiras a dentro, apregoando o nome da senhora, para mercadejar com o cadáver a liberdade prometida!

E à sua mente de novo chegavam as cenas do passado, em que sua mãe andava pelas senzalas maltratando os negros, mandando espancá-los no tronco, sem compaixão, nem piedade...

Agora, mordida pela cascavel, morta e abandonada no mato, sem que tivesse tido uma alma bondosa, que lhe ouvisse um soluço, um gemido, um ai, quando se debatesse ansiosa nos frenezis da morte, que nas mãos lhe pusesse a velazinha acesa que testemunha o último suspiro, que lhe derramasse nos lábios a colherada de remédio, quando ela, arquejante, estendesse de fora a língua, pedindo sôfrega uma gota d’agua e lhe servisse de arrimo, quando, estrebuchando pela areia, sacudisse as pernas e agitasse os braços nas derradeiras vascas da agonia final da existência.

Nada, nada teve!...

E que morte horrenda, cheia de estertores, não teria tido por aquelas brenhas!

E tinha vontade de chorar, alagar-se de lágrimas, soluçar à vontade... Um nó prendia-lhe a garganta, como se tivesse embuchado. Os seus olhos somente brilhavam úmidos, sem uma lágrima sequer.

Claro, pequenino, um raiozinho alegre de sol, coado pelas folhas do arvoredo, tremeluzia no cadáver, em cima da boca escancarada, saltando às vezes, quando as folhas se agitavam, pela chaga aberta no peito.

E o seu espírito religioso divagava sempre. A sua imaginação, debruada de um terror católico, via naquele raio esguio, que corria tremendo pelo corpo da mãe, a Providência lá de cima, sorrindo e escarnecendo daquele pedaço pútrido de carne, onde morava uma alma pecadora e bárbara, que não soubera nunca os mais leves traços da piedade e da misericórdia.

A boca aberta, iluminada agora pelo raio golfando espuma, mostrando os três cacos de dentes podres nas gengivas arroxeadas, dava-lhe à imaginação a lembrança lúgubre de que a Onipotência intransigente e justa fizera tudo aquilo para que o cadáver de si próprio sorrisse, zombando da sua própria desventura, da sua própria miséria.

E via todas aquelas chagas amareladas de pus, formingando vermes.

Ao pensamento chegavam-lhe as cenas de outros tempos, os negros retalhados, o balde de sal derretido, banhando-lhes as espáduas vermelhas, “para não criar bicheira”. Agora era ela quem bicheira criava, estirada ao relento podre, completamente podre, apostemada, fétida!

Ah quanto orgulho no passado, quanta desgraça no presente!

E quantas vezes não fora ele próprio, o coração sensibilizado, o íntimo florescido de piedade, pedir-lhe, humilde, que soltasse o cativo choroso, que aos pés do tronco gemia, ao estalo ruidoso do chicote agudo?!

E ela sempre má, sempre cruel!

Quantas vezes, às escondidas, não fora, pelos quartos escuros e pelas senzalas, soltar os escravos moribundos e dar-lhes de comer?!

E ela sempre a prendê-los, sempre a maltratá-los!

Agora era o dedo de Deus quem punia tudo isso!

E olhava, olhava muito. Os seus olhos abismados pregavam-se cada vez mais na cena.

O raiozinho de sol continuava a dançar, brilhando, pelo peito chagado.

Aquilo compungia-o. Aquelas tetas ensanguentadas, que, quando criança, chupara, sentindo a calentura suavíssima dos afagos, agora ali estavam grossas, crescidas, volumosas, picadas pelos urubus gananciosos, que vinham exercer o seu direito de devoradores de porcarias.

E sentia vontade de chorar... Vinha-lhe um desejo irresistível de fugir para longe, muito longe, de apagar para sempre da sua lembrança, da lembrança de todos, aquele espetáculo miserável, onde sua mão era a protagonista da festa e os abutres, como espectadores, batiam palmas e gritavam vivas pela representação soberba da carne podre em que eles se deleitavam.

O cadáver, em decomposição, exalando uma fedentina penetrante, insuportável; as moscas, zumbindo inquietas pelas feridas postemadas, o olho direito ôco, vazado, vertendo em fio o líquido amarelo, ruborizado pelo sangue, vermelho escuro, a perna direita encolhida, com a chaga enorme cheia de vermes e varejeiras e a outra estirada, aberta em postura cínica, davam-lhe ao sentimento a ideia de que tudo aquilo era a ironia, o ódio, a fúria do Céu, que se vingava.

E olhava para o ventre entumescido, com as partes internas a descoberto e o pedaço comprido de tripa estendido na areia, e isso trazia-lhe a lembrança os dias que vira, na margem sombria do igarapé, as raparigas da fazenda limpando os intestinos dos bois, para a comida lá nos ranchos...

Uma folhinha madura despregou-se do arvoredo indo cair de ponta no queixo do cadáver. E ali ficou em pé, pregada em pús, baloiçando-se ao vento.

Até aquela folha a escarnecer da mãe!

Espalhados pelos galhos, os urubus grasnavam, barulhentos, voando às vezes para mais perto.

E todo aquele barulho, toda aquela algazarra de festa deveríam ser os mesmos, anos atrás, quando o corpo da Carlota servia de carniça...

A Carlota! Era pequeno naquele tempo, mas lembrava-se de tudo. Parecia vê-la ainda desdentada, o rosto enorme, ao pé do tronco, gritando e blasfemando. Depois enterrada até aos peitos, agitava os braços, louca, desesperada, medonha, os urubus em cima, bicando-a nos ombros.

E fora sua mãe quem mandara matá-la assim! Oh, quanto pedira, quanto pedira, para que aplacasse o castigo!

E nada, e nada!

Por mais que se lhe agarrasse às pernas, pedindo muito que não batesse e não matasse aquela mulatinha terna, que à noite, ao embalo da rede, o abraçava com força e beijava com carinho, cantando modinhas para adormecê-lo, não houve nada que a enternecesse.

E era impossível, era impossível que isso não fosse punido um dia!

E insensivelmente foi comparando a morte da mãe com a morte da Carlota. Uma morrera somente porque teve a infelicidade de nascer bela e não poder emudecer a língua de um senhor lascivo, que exaltava os seus encantos, e a outra morrera por castigo dos castigos que praticara. Penalizado, todo o mundo falava de uma, lamentando-lhe a sorte, rezando-lhe pela alma e para a outra ninguém teria uma palavra doce, para honrar-lhe a memória e toda a gente, de boca cheia, diria que era tudo muito bom e tudo muito justo.

E a morte da mãe pareceu-lhe ainda pior. De antes era o corpo da Carlota que servia de carniça e agora os urubus refestelavam-se com a mesma alegria, com a mesma ganância no cadáver da senhora, que era tão bom, tão gostoso e tão podre como o da cativa.

E, na comparação do passado de uma com o presente de outra, foi-lhe nascendo no espírito mais viva e mais ardente a compreensão perfeita da realidade da vida. A morte pareceu-lhe limpa, clara, sem preconceitos e sem manchas, unindo todos, igualando tudo. Um nada a querer ser tudo, surgiu-lhe o mundo muito quimérico, cheio de refolhos e porcarias, onde uns querem ser mais do que os outros, sem passar do mesmo destino e da mesma podridão.

E teve vontade de ser pobre, de fugir para longe, muito longe, de libertar os escravos...

Do arvoredo três urubus voaram, pousando no cadáver.

— Êê, gente, urubu não respeita nem corpo de branca.

Ele acordou como de um letargo e olhou para traz. Era o pai da Carlota, octogenário de cabelos brancos e barba longa, que falava.

Ele lançou ao negro um olhar dorido de quem pede piedade, pendeu o rosto e pôs-se a chorar.

Distante, na quebrada dos montes, rouquenho, repercutia o grito dos negros:

— Eh, Sinhá Dona!.

Zé Boi

À Francisco Serra

Pirapemas, janeiro, 1902.

Ouvira dizer que nesse dia Zé Boi desceria para a vila. E ali, debaixo do teto verde dos cipós trançados, por entre a moita frondosa dos arbustos crescidos e dos galhos gotejantes das ingaranas copadas, o caboclo esperava pelo cabra.

Havia de mostrar-lhe para quanto prestava!

Era no inverno. O céu, friorento e fusco, ostentava uma claridade sombria, cor de chumbo, carregada e baça. O sol, amortecido e pálido, rolava encoberto pelo espaço nebuloso e às vezes, num pedaço de céu mais limpo, lânguido e trêmulo, espiava sonolento, com um olhar sem brilho, um olhar de quem acorda. Volumoso e pardo, barulhando nas coivaras, descia o rio cheio, coleando nas voltas, escabroso de galhos e destroços, qua descem nas primeiras enchentes. Estrugia ao longe, túmido, o trovão, num ronco de fera em raiva, abalando o infinito arripiado e fusco e estremecendo a terra num estouro longo. E o relâmpago em fogo lampejava pelo espaço acinzentado, num traço luminoso, incandescente e rápido. Havia uma claridade dúbia em todo o infinito, uma claridade de março em dia que chove. Intensa, a chuva caía incessante, cerrada e ruidosa.

Já era tarde. Duas horas, mais ou menos.

E o cabra nada de descer!

Acocorado, o caboclo, por traz da moita frondoza dos arbustos, esperava-o há muito.

E nem sinal do bruto!

Desbotada, a camisa velha de riscado grosso, esfarelada nos ombros, por fora das calças, descia-lhe até quase à curva dos joelhos, pregando-se-lhe nas costas; pelo peito aberto e cabeludo, peito possante de caboclo forte, um cordão vermelho caía, fechando com uma fava presa e na cabeça enorme o chapéu de couro encebado, sobre a mata espessa dos cabelos crescidos, pingava ao embate incessante da chuva grossa. De cócoras, a espingarda certeira deitada horizontalmente no regaço, o caboclo acomodava o ouvido à arma de fogo, no lugar da espoleta, para que não molhasse a pólvora e o tiro não falhasse. Ao cinturão, que prendia as calças remendadas de zuarte esmaecido pelo uso, preso o facão cortante, embainhado, arrastava na relva. Pela fronte austera e carregada, em fio, a água caída do chapéu de couro sulcava até abaixo, molhando a barba escassa, descendo pelo pescoço, arregaçada a perna, os pés metidos na alpercata úmida, todo ele tremia no arripio dorido de um corpo que passa o dia na chuva. A um lado, encostado no toco de madeira podre, a garrafinha da cachaça alvejava impassível.

E a chuva, aquela maldita chuva, sem cessar!

Há muito, desde manhã, de manhã bem cedo, que, encharcado do cabelo aos pés, ali debaixo da moita, sem outro a não ser o ampare das folhas verdes, mais ou menos unidas, que aquela maldita chuva lhe embatia no costado, impiedosa e gélida.

Já tinha a carne encolhida numa friatdade de gelo; curvadas tremiam as pernas na posição penosa, posição que há muito, desde manhã bem cedo, ali guardava inquieto e raivoso e os dentes uns de encontro aos outros, tintando, vibravam com um murmúrio ligeiro, confuso e sutil.

Já não podia mais!

Doía-lhe a cabeça; as mãos calosas mal podiam, de trêmulas, prender a carabina sobre os joelhos e até por caiporismo os sofrimentos reumáticos, que às vezes lhe apareciam, já começavam a dorir-lhe a musculatura valente.

Com fome, sem nada no estômago, a não ser o simples café tomado de madrugada, com um punhado de farinha, embora com o hábito de trabalhar na roça dias inteiros, em jejum completo, já ia sentindo necessidade imperiosa de alguma coisa que lhe fortalecesse o corpo e moderasse a fraqueza incômoda do estômago vazio.

E o cabra nada de descer!

Mas não tardaria. Ouvira o Mariano Bota dizer, em casa da Marciana, que o cabra nesse dia tinha de descer à vila para tratar do novo casamento.

Ah! se descesse! A carabina carregada estaria pronta para feri-lo na passagem!

E, pelo seu rosto carrancudo, uma alegria de fera passava, iluminando-lhe os olhos pretos, estremecendo-lhe o coração com força.

Havia de matá-lo, era infalível! Só assim aquela dor na alma, aquele desgosto que o acompanhava em tudo, aqueles pensamentos feios, aquela vontade de vingança, o deixariam de uma vez para sempre.

Depois que lhe chamassem malvado, criminoso, os soldados que o prendessem, a justiça que o condenasse... A tudo estaria pronto, de nada se importava. Mas queria desenganar aquele cabra, mostrar-lhe quanto custa desonrar as filhas alheias. Que o prendessem! Na cadeia também se vive. Se descobrissem, acabou-se! Fugir!... Fugir, isso é que nunca!

Havia de matá-lo! Aquele cabra tinha muita fama, tinha goga de valente, mas queria ver-lhe a valentia na boca da espingarda. Diziam por aí que tinha dado neste, esfaqueado aquele, mas a espingarda, a espingarda certeira desenganá-lo-ia...

O tempo passava. A chuva diminuía. E o cabra nada de descer! Podia ser até que não descesse!

Inquieto, o caboclo torcia-se, acocorado, carrancudo e iroso. Já estava cansado de esperar! Aquela história do Mariano Bota, em casa da Marciana, dizendo que o Zé Boi desceria para a vila, para tratar do casamento, podia ser coisa inventada. Quantas vezes não o tinha pegado em mentiras!

Mas via ao mesmo tempo a figura corpolenta do Bota, sentado no banco de madeira, cachimbo no queixo, contando o novo casamento do cabra, afirmando que desceria. Qual, aquilo não podia ser inventado!

A chuva, aquela maldita chuva, talvez empatasse a viagem do bruto!

Estiava. Um chuvisquinho fino peneirava morosamente, quase imperceptível. Longínquo o trovão regougava brando. Nas ingaraneiras molhadas as ciganas cinzentas abriam levemente as asas, gralhando. No céu moreno, da banda do poente, havia uma mancha clara, onde o sol tentava desgarrar-se das nuvens. Perto, numa coivara, o rio zoava, estremecendo. Do outro lado, em cima de palmeiras, maracanãs palravam, saltando nas palmas. Mais abaixo, na beira do rio, numa árvore copada, compridos ninhos pendiam, onde japins pulavam, cantando de galho em galho. Na água, algum peixe rabanava de vez em quando.

O caboclo levantou-se; na mão esquerda tomou a espingarda, virando o cano para baixo e com a direita desarrolhou a garrafa de aguardente, despejando-a na garganta. Tiritava, precisava de esquentar-se!

Depois, num tronco da madeira, sentou-se. E começou a matutar. Ora vejam! A gente vive sossegado em casa, vivendo do seu trabalho, quando sem se esperar lá aparece uma desgraça! Ah! Cabra safado! Deus lhe perdoasse, mas a sua vontade era ver aquetle diabo cortadinho em pedaços. Quando lhe vinha à lembrança aquela peste, até o estômago se lhe embrulhava. Mas qual! Haveria de dizer que um rapaz, que parecia tão honrado, fosse capaz de ser tão ruim?!... Ah! Se adivinhasse, não lhe teria dado a filha para casar...

E foi-se lembrando do samba do Natal, em que o Zé Boi, repinicando a viola assanhada, lhe louvava a filha. Ela sentada defronte, no banco da latada, torcia as rendas do casaquinho, corando a cada verso.

Depois, num domingo, em tempo de colheita, quando em casa, descansando da semana trabalhada, pitava a cabeça de diamba, eis que o cabra, apertado em roupas brancas, montado num cavalo de selas novas, riscou-lhe à porta. E foi muito alto, saltando alegre, nas perneiras de couro, ao relincho estridente do cavalo brioso.

Ele, todo amável, todo risonho, estendeu-lhe a mão, oferecendo-lhe assento.

Suado, o cabra, forcejando por descalçar as perneiras, foi-lhe explicando que viera até ali, porque desde o Natal, naquela festa em que lhe louvara a filha, ao som da viola, ficara doido por ela; e como achava que podia casar-se vinha agora pedi-la, se fosse do seu gosto e se quizesse dá-la. Então, sem responder, chamara a filha, que, se veio chegando, encostada às palhas da parede do quarto, muito vermelha, como se já soubesse da coisa.

Depois da resposta da menina, lá saíra a convidar a vizinhança, para o almoço nesse dia, em que matara o capão mais bonito do quintal e o cevadinho mais gordo, festejando o futuro casamento, que se marcara para outubro, na primeira desobriga do vigário.

E todo o mundo lhe dizia que o Zé Boi era direito, muito trabalhador, pagava bem as suas contas e era um partidão.

O único defeito que tinha era de, quando se metia na pinga, provocar questões. Já na festa do Natal o vira debatendo-se com o outro, por um simples gracejo.

Nessa mesma noite, por causa de um verso que o Mané Doutor, em desafio, lhe dissera na viola, lá saíram os dois rolando para o terreiro aos bofetões e, se não fosse acudir muita gente, o cabra teria trespassado o inimigo com a faca de ponta.

Mas isso desapareceria depois de casado! A pinga!. Lá isso todos tomavam! Além disso era um rapaz arranjado, vivia como vaqueiro de uma fazendola, já tinha as suas quatro novilhas, um cavalo de sela e muito crédito.

Desde o pedido, todos os domingos o cabra bem cedo lhe riscava à porta, para ver a noiva. E na rede alva, armada na sala, passava o dia a falar no gado que vaqueirava e conversando sobre rocas e colheitas.

E lembrava-se do dia em que lhe falara do casamento civil. Zé Boi saltara da rede, enchendo de fumo o cachimbo e atalhou de repente:

Que nunca! Então não estava vendo que não iria sujeitar-se a similhante patacoada, onde não se falava no nome de Deus?!... Qual, no civil mesmo não se casaria! Podiam inventar quantos civis quisessem, mas ele mesmo não acreditava em tal coisa. O religioso, sim, senhor, o casamento da igreja feito pelo seu vigário!... Nesse casaria, e não precisava de mais nada, estava mais do que casado! Que tivesse paciência, no civil é que não!

Debatera. Isso não, isso não! Não era tanto assim e além disso, não custava nada, pagava-se uma bagatela, mais barato até que no vigário e já tinha ouvido dizer na vila que quem não se casasse no civil nada podia deixar aos filhos.

Mas o cabra sempre teimoso! E tanto teimou que em outubro lá estava casado. Mas que casamento, que casamento desgraçado! Daí a dois meses já se tinha desunido da mulher.

E agora lá andava a sua filha pela vila na mão de um, na mão de outro, com a casa aberta para todo o mundo... A cabeça escaldava-lhe no fogo da cobra; vinha-lhe ao espírito insaciável de vingança uma sede de sangue, onde todo ele desabafasse do ódio que o atormentava...

E ia revendo a figura corpolenta do Zé Boi, na roupa domingueira, ou peitoral de couro, perneiras altas, parando à sua porta, para ver a pequena...

Naquele tempo tão santo, agora tão ruim! Maldito! Prostituir-lhe a filha! Ah, filho da mãe!

E com a manga da camisa limpava as lágrimas que lhe desciam pelo rosto.

Como não estaria ela agora pela vila, debochada, nas mãos de um, nas mãos de outro, com a casa cheia de rapazes... E quem sabe?! Talvez sozinha, no canto de alguma choupana, muito chorosa, a tintar de frio, padecendo doenças, sem nada para comer... Agora lá ia aquele cabra casar-se no civil com outra. Ah! Não haveria neste Brasil, tão grande, tão cheio de leis, uma lei ao menos que proibisse semelhante cachorrada, ou que fizesse o padre casar só quem estivesse casado no civil?! Só assim ninguém se casaria com duas mulheres e as filhas dos outros não ficariam por aí abandonadas, pra todo o mundo...

Bem tinha querido, bem tinha querido o civil. Mas todos a dizerem-lhe que não, que aquilo não valia... E até o padre, o próprio padre!

O tempo escurecia.

O cabra já tardava. Ah! Se viesse! Era só engatilhar a espingarda e despejar o tiro. Ali estava seguro. Quem passasse pelo rio não o veria de forma alguma. A ingarana frondoza, esgalhada e grossa, com os juás da beirada encobriam-o na frente; do lado esquerdo a cortina verde de S. Caetano, estendendo-se por cima do arvoredo, formava com os cipós trançados uma tapagem espessa e da direita as toiceiras altas dos pindobais crescidos terminavam o esconderijo.

Ah! Desta vez vingar-se-ia!

E foi-se recordando da festa do Natal, em que o Zé Boi, cantando à viola, lhe louvava a filha... O Mané doutor a desafiá-lo em verso... E depois lá saíram os dois rolando pela areia, aos pescoções... O outro vencia, mas daqui a pouco, num virar de corpo, o Zé Boi atirara com o rival ao chão. E sentou-se em cima. A lâmina luzente da faca de ponta, puxada dentre as calças, brilhou na mão do cabra... Ia-a enterrando já na garganta do outro, quando o povo acudiu...

Mas toda essa valentia, toda essa coragem não o intimidavam. Não lhe faltava coragem também. No tempo de moço, quando rebentara a guerra do Paraguai, e o Brazil pedia voluntários para pegar em armas, lá na vila, fora ele o primeiro a dar o passo em frente, oferecendo-se à nação. Depois, em Tuyuty, ao lado de Osório, sempre sentira a intrepidez precisa para ver de sangue frio, sem medo da morte, aquela diabólica confusão de balas, que sibilavam pelo campo fumarento, derribando soldados, até que uma perdida nos ares veio cravar-se-lhe na perna, deixando-o à morte.

Começava a chuviscar. Do nascente subiam nuvens, escurecendo o espaço friorento e pardo. As maracanãs inquietas, temendo a chuva, saltavam nas palmas, gritando devagar. Japis voavam dos galhos trêmulos varando pelos ninhos compridos, suspensos à beira d’agua. Pelo arvoredo da margem, ciganas, gralhando na ramada, acomodavam-se, abrindo lentamente a cauda de penas. Pelo céu cinzento clareava de vez em quando um relâmpago luminoso. Ribombava o trovão. Um vento de chuva, vindo de longe, zoava, sacudindo o arvoredo molhado.

Maldita chuva! Aquele diabo empataria a viagem do cabra! E, deitando a espingarda horizontalmente no regaço, pensava... Sua filha agora, lá na vila, nas mãos de um, nas mãos de outro... Era horrível, era horrível!

Mataria aquele cabra, para mostrar-lhe que a filha não era defunto sem choro. E era impossível que o condenasse a justiça, simplesmente pela morte de um homem que traiçoeiro lhe fora desonrar a casa, arrancando de lá a pessoa mais cara, para atirá-la ao mundo...

Do princípio do estirão chegava um barulho leve. O caboclo correu, espiando da margem. Por um remo somento descia, remado, um casco na volta. E ficou espiando. Pouco a pouco um chapéu de couro divisou no casco. Talvez fosse o cabra! E distinguia mais forte o barulho do remo, fendendo as águas. Estava inquieto. A chuva não o deixava ver tudo. Mas ia divisando na popa um homem que remava, vestido de riscado e peitoral de couro...

Era o bruto, era o bruto!

E correu ao esconderijo. O coração saltava-lhe por dentro; um cansaço ruidoso ofegava-lhe a respiração, os seus olhos pretos cintilavarn rutílos, com um brilho parvo de alucinado.

O casco vinha perto.

O caboclo acoutou-se atrás da ingaraneira, metendo por entre o galho o cano da espingarda. Os seus pés tremiam; a cabeça escaldava, palpitando as veias grossas e os dentes rangiam num prurido de cólera.

Do casco, remando, na popa, distinguia-se bem o cabra. Aprontou-se. Levou a coronha da carabina ao rosto, segurando o cano a mão direita e a esquerda no gatilho.

O casco aproximava-se.

Nervoso, o caboclo fez alvo. O cão vibrou sobre a espoleta e a explosão roncou. Pontaria errada.

Raivoso, jogando a espingarda ao lado, arrancou entre a bainha o facão e atirou-se na água, perto do casco. E, prendendo-o nas beiras, virou-o no rio.

E ao longe, no meio do estirão, ao lampejo claro dos relâmpagos, luminavam os facões do cabra e do caboclo, que atracados lutavam...

A MARIQUINHAS DA OUTRA BANDA

A Leopoldino Lisboa.

Recife, 1900.

A aldeia dormia silenciosamente.

Meia noite em ponto.

Em ceroutas, o lombo queimado descoberto, o caboclo remexia-se na rede, com o pensamento absorto na Mariquinhas da Outra Banda.

Por três vezes se tinha levantado, sem sentir coragem de caminhar meia légua pelo rio, para ir ter com a mameluca nova.

Àquela hora, aqueles caminhos solitários faziam-lhe medo. Além disso, pelo rio, em noite morta, tendo de passar pelo cemitério da aldeia...

Escancarada, a porta da cabana tosca dava passagem a um tapete suavíssimo de luar em cheio. Mariposas, na lamparina de azeite, voejavam tontas ao redor da luz, queimando as asas. Um burro, pastando no terreiro, batia o chocalho sonoro. No quintal, bacorinhos novos mamavam, grunhindo aos poucos. Zoava no bananal berrado a brisa gelada da noite. Distante, na lagoa, aos centos coaxavam sapos, numa música incômoda e desafinada. Em alguma cabana, ao longe, um cão uivava tristemente.

E, remexendo-se cada vez mais, idealizava o corpo da rapariga, amulatado e cheiroso, estendido tentadoramente na rede, com a perna roliça e torneada caída para o lado de tora...

Via de relance o quarto da apaixonada, com as paredes de palha brava e o luar entrando pelas frinchas! A um canto a candeia de azeite de carrapato, tremeluzindo baça; mais em cima os quadros de santos, enfeitados de bogaris cheirosos; do outro lado, descansando numa corda de embira — anagoas servidas, cabeções de riscado e roupas de trabalho; debaixo da rede uma meassaba e a cabaça d’agua perto e um baú de couro velho, negro, poeirento, crivado de taxas azinhavradas, dormindo impassível, perto da porta.

A Mariquinhas surgiu-lhe ardente, em camisa, com a cova do colo à mostra e os seios rijos elevando a fazenda branca da veste simples... Os braços carnudos, em posição lasciva, estendiam-se-lhe quentes, amorosos e a boca risonha, formosa e terna estalava beijos, convidando-o...

Levantou-se, decidido a partir.

Ligeiro vestiu as calças e a camisa, entre as palhas do quarto tirou o facão, prendendo-o na cintura, tomou o remo e dirigiu-se para o rio.

A lua, serena, branca, muda e abandonada, chorava uma luz de leite, doce, triste, poética e macia. Brando, muito ao longe, regougava o trovão. As árvores altas deitavam uma sombra tristonha, farfalhando suavemente, tremendo ligeiras, como que tomadas por um acesso de cócegas, que o vento da noite, cada vez mais gelado, lhes fazia num brinquedo amoroso. Barrento, grosso, o rio deslizava entre barreiras elevadas, levando na carreira acelerada das águas uma fita negra de destroços, que descem nas primeiras enchentes.

Hesitou ainda. Aquela pacatez misteriosa da meia noite, a água calada do rio, rolando volumosa no leito fundo, orlado de sombras; a luz de prata do luar, lavando preguiçosamento o estirão, que parecia findar-se na primeira volta; o trilo sutil e monótono dos grilos ocultos na folhagem, dissonando a nota de mudez, tudo lhe inspirava um receio esquisito, um terror de coisas frias e vaporosas.

Mas a Mariquinhas da Outra Banda surgiu-lhe na mente, ainda mais rica de carne, mais entalhada de formas, embebida na decotada camisa alva, o braço de carnes rijas esquecido sobre o ventre palpitante e a boca semi-cerrada mostrando os dentes pequeninos, alvos...

Pensava como lá chegaria. Pé ante pé, abrindo a porta de meassaba, sem fazer bulha, para não espantar os cachorros, devagarinho como um gato, deitava-se com a mameluca. E a noite inteira ao lado dela, sentindo a ofegância do corpo quente de mulata nova, aspirando-lhe o cheiro dos cabelos: crespos rescendentes a baunilha, unindo os seus lábios aos dela, embargando-lhe a voz com beijos... Oh, que bom, que bom!...

E, quando no nascente, da madrugada as barras os despertassem, lânguidos de gozo, flácidos de beijos, remaria então o casco para a aldeia, para horas depois, na roça, plantar o arroz e o milho, ja que as primeiras chuvas do inverno chegavam.

Não tinha avisado a Mariquinhas de que nessa noite ia ter com ela. Passara aquele dia ocupado, a fazer uma estrebaria para o cavalo novo, que comprara há dias.

E tinha um receio, sem saber de que. As noites que passava ao lado dela ia muito cedo e por lá ficava desde a tarde até de manhã. Mas... já fora de horas, em noite luarenta, ter de passar pelo cemitério...

Culpada disso tudo era a própria Mariquinhas. Tantas vezes, desde que começara “aquela história”, a tinha convidado para morar na aldeia em casa dele!... Viveriam ambos, ao lado um do outro, no aconchego amoroso dos seus desejos, pacatos e felizes. Na roça, trabalhando juntos, todos os anos muita colheita e muita fartura teriam em casa. E quem sabia, quem sabia se com o correr dos tempos não viriam a casar-se?!... Mas a rapariga nada de se decidir. Sempre com aquela choradeira de não querer desgarrar-se da mãe!

Encheu-se de coragem. Desamarrou ligeiro o casquinho ágil, sentou-se na popa e rompeu lentamente as águas, governando-o para o meio do rio.

E foi descendo veloz, ajudado pela correnteza.

O trovão regoagava mais perto. O vento zoava, gelado cada vez mais. Já o nascente de nuvens se toldava. Parecia que mais tarde havia de chover. A lua, entretanto, branca como uma salva de prata, andava preguiçosa pelo infinito. Das margens vinha um cheiro agradável de erva-cidreira, com o perfume brando das dores agrestes.

Novamente o medo se apoderou do caboclo. Ia passar o cemitério que ficava perto da margem do rio. Não tinha coragem de seguir.

Mas a brejeira da Mariquinhas dançou-lhe de novo na imaginação apavorada, aureolada de encantos, nua, palpitante, ardendo de gozo e de beijos.

E a idealização daquele corpo escultural e quente, a delícia de uma noite passada num paraíso de desejos e carícias mútuas, enchiam-lhe o espírito de pensamentos vermelhos, cheios de libidinagem rude. Nesssa noite chovia. Oh, que bom, os dois na mesma rede, unidos peito a peito, lábio a lábio e a chuva caindo nas palhas da coberta!... Já não tinha coragem de voltar.

Meia hora se passou.

Venceu a primeira volta e um estirão comprido, onde a água mais veloz corria, desenrolou-se-lhe à vista.

Era no fim do estirão que ficava o cemitério.

Fendeu corajosamente o rio, com o remo. Queria passar por ali, sem que sentisse. E o casco correu à desfilada.

De repente moderou. O caboclo julgou ter visto no contorno da volta um casco subindo. Era uma nuvem escura, que passava pela lua, ensombrando o estirão.

Remou de novo. O suor corria-lhe pelo corpo, os braços cansavam-se. Tirou a camisa. Queria remar à vontade.

Um coco ruidosamente caiu na água.

Olhou para trás com medo. Pareceu-lhe que alguém o seguia. Tinha receio de que fossem os mortos.

E o casco deslizava com a correnteza.

Um peixe rabanou.

Bêbedo de medo, olhou para os lados. Nada viu.

As barreiras altas, sombreadas pelas palmeiras esguias, onde o vento frígido da noite farfalhava de vez em quando; a serenidade religiosa do luar, o pedaço branquicento do rio, onde a lua se espelhava à farta, como uma coquete enamorada, atordoavam o seu espírito medroso de um pavor estranho.

Remou de novo. Aves grasnaram, acordando ao ruído do remo.

Um frio tiritante, mordente e doído, eletrizou-lhe o corpo. Pareceram-lhe vozes de fantasmas.

Novas aves acordaram, batendo as asas.

Todo ele tremeu. Vieram-lhe à lembrança os contos que ouvira em criança, em que as almas penadas, em bandos, surgiam das sepulturas, à procura de uma prece.

E, trêmulo, cutifuso, gaguejou um padre nosso.

E o casco continuava a deslizar.

Uma folha de palmeira balançou morosamente.

Os contos de criança mais vivos se lhe acenderam na memória. Supôs uma alma vagabunda, alevantada do túmulo, estendendo-lhe os braços descarnados, brancos, para apertá-lo de encontro aos ossos glácidos e mergulhá-lo de uma vez para sempre no pélago profundo.

Estava defronte do cemitério. O seu espírito em luta assanhava-se de pensamentos medonhos, vendo em cada movimento da folha a alma penada aproximando-se, muda, tétrica, os passos longos, vagarosos, querendo furar-lhe os olhos com os dedos compridos.

— Eu te esconjuro, eu te esconjuro! Murmurou, tremendo.

E respirando, cansado, tocou desvairado o casco para trás, estremecendo de febre. Não podia vencer a correnteza.

As pernas tremiam, a cabeça pesava-lhe no corpo e os cabelos eriçavam-se em comichões. O remo caiu-lhe das mãos, descendo o rio. Fez um esforço para alcançá-lo. Debalde.

Encobriu a lua uma nuvem compacta, carregada e negra. O vento frio da chuva próxima correu intenso. Um môcho piou doloridamente, avisando a escuridão.

E aquele grito agudo, plangente, lúgubre, pareceu-lhe o grito de uma alma perdida.

Ao longe urrou um touro. Um galo cantou.

— Meu Deus, meu Deus! Clamou de pé, no casco, alucinado, cambaleando como um ébrio e erguendo os braços para o céu, como numa súplica.

— Meu Deus, meu Deus!

E começou a balbuciar uma prece.

No levante um relâmpago dourado rachou repentinamente o céu. Ao mesmo tempo, barulhadamente, como um cair de latas velhas e depois grosso, como um tiro pesado de peça, o trovão estrugiu.

O caboclo dançou na popa e rolou no rio.

Água abaixo, sem rumo, lentamente, o casco foi doidejando, doidejando e sumiu-se na volta.

À ESPERA DE UM HOMEM

A Astolfo Marques.

Recife. Outubro, 1901.

Cigarrilha na boca e bata branca de cassa transparente, — ela, na varanda, olhava inquieta para a rua.

Nem um homem nessa noite!...

E tornava a olhar. Debruçava-se aflita na sacada de ferro, empinava-se na ponta dos pés, correndo os olhos pela rua inteira.

E nada, nem um homem!...

Um vulto assomava de vez em quando. Havia de ser algum rapaz, a procurá-la.

Tudo debalde. Oh noite sem sorte!...

Perto, num botequim, o povo formigava. Ouviam-se vozes confusas, tinidos leves de garrafas e copos. Ao piano uma voz de mulher cantava um tango espanholado.

Fora, em mesinhas de ferro, pintadas de branco, moços palestravam à larga, fumando cigarros.

 E nem um só a procurá-la, e o carnaval que vinha perto, ela, que precisava de um vestido caro, fantasiado a luxo, que tinha a casa já vencida, sem dinheiro para as despesas do outro dia...

— Ah! Que sorte!...

E melancólica e muda chupava a cigarrilha pensando.

Quanto fora feliz nos tempos de criança! De manhã cedo, com o vestidinho de chita azul e o catecismo nas mãos, lá ia com as companheiras da vizinhança para a escola próxima. Mais tarde, quando voltava, a sua mãe, cuidadosa com o pratinho de guisados, vinha sentar-se na mesa para vê-la comer.

Depois, quando moça, os dedos picados da agulha, a costura sobre as pernas, talhando os seus vestidos.

À tarde, quando acabados os afazeres, penteada e fresca, com a saia engomada e o casaquinho de rendas brancas, corria para a janela, a ver quem passava. De noite, à luz trêmula do candieiro de querosene, no silêncio doce da sua casa de pobre, lá estava de agulha nos dedos, a fazer o crochê das encomendas. No domingo, às 8 horas, a assistir à missa na igreja vizinha.

Que dia alegre o domingo! Após o banho frio, correndo para o quarto, metia-se nas anáguas alvas, engomadas a capricho, nos sapatos de verniz brilhante, e, quando lá fora os sinos começavam a badalar festivos, toda ufana no chapéu de palha quebrado de banda e o leque de papel com lantejoulas, ia faceira ajoelhar-se na igreja. Quando voltava, a alma trazendo inundada de crença pela palavra bíblica do sacerdote no púlpito, enquanto esperava o almoço, no quintal, debaixo das árvores, punha-se a talhar as roupas pequenas das bonecas de louça.

Ah! Como tinha saudade disso tudo!...

E ficava a lembrar-se do seu quarto simples, nos seus tempos de virgem.

A cômoda velha de polimento escuro, onde guardava os vestidos mais caros, coberta por um jornal aberto; a mesa pequena de pinho com livros em cima, junto ao espelho antigo de moldura duvidosa, a cama de lona com lenções de retalhos, colocada de outro lado e da outra banda; perto do santuário, num pedaço de táboa, pregado na parede, o samburá de costuras com a almofada de setineta rosada.

Os pensamentos vinham-lhe enchendo o cérebro de recordações dolentes.

Lembra-se de uma festa no dia dos seus anos. A casa estava cheia. As amigas mais chegadas vieram todas. Um moço da vizinhança trouxe a flauta e outro o violão.

E dançou-se. Dançou-se muito até de madrugada.

Quantos presentes lhe deram! Uma pulseira de prata em forma de corrente, com dois corações nas pontas, uma dúzia de lenços de linho, um livro de missas esmaltado de metal amarelo fingindo ouro e uma boneca de cera, que dormia, quando a deitavam. E doces e frutas! E muitas outras coisas!...

Como sua mãe estava alegre! Atarefada, de uma banda para outra, servindo os convidados, influindo a brincadeira. Ah! Quanto era bom ter mãe! E arrependia-se dos seus momentos de zanga, em que, por uma simples repreensão da pobre velha, o seu rosto se franzia enraivecido e da sua boca partiam respostas atrevidas. Quanto fora resmungona para ela! Agora é que sabia o que era ser mãe!...

Ah! Tempos que se foram! Ah! Tempos felizes!

Com uma lágrima nos olhos fitava a fumaça enrolando-se no ar.

Na igreja vizinha, nove horas o sino compassado marcava.

E pôs-se a contar aquelas badaladas sonoras, que se perdiam nos ares, ao sopro calmo do vento da noite.

Tudo aquilo já lhe falava de outra forma, tinha um som mais plangente, um sinal todo contrário. Se estivesse em casa, na casinha modesta onde nascera, era a hora calma da ceia, em que deixava os bastidores de bordados pela cama singela de virgem, onde sonhava sempre em coisas boas.

Em cima, o luar, nos céus sem nuvens, despejava uma claridade láctea. Longe, da outra banda da cidade, cornetas, em algum quartel, estridulavam tristemente no espaço, em vibrações pungidas.

Escutava. Não podia ouvir esses sons tristonhos, perdidos na ventania, sem que a sua alma melancólica e muda também voasse pela poeira do passado. Quantas recordações, quanta embriaguez em tudo aquilo! De noite, quando aqueles sons rompiam longínquos e a cidade dormia na sombra opaca do céu sem lua, é que ela, devagarinho, na ponta dos pés, da cama corria para esperá-lo no portão de trás. Nesse tempo era ele soldado. Quanto era doida pela farda! Como gostava de vê-lo, kep de banda, calças encarnadas, botões dourados reluzindo sempre! E aquela maneira de falar, a expressão tocante da voz, aquele revirado lânguido dos olhos...

E fora ele quem a perdera!...

Mas como era bonito, como lhe dizia coisas tão doces, tão sonhadas, como tinha os cabelos cheirosos, o bigode torcido, os dentes alvos...

Mas, depois de vê-la sua, fugida de casa, a filhinha nos braços, abandonou-a para sempre.

Ainda o amava. Ah, se ele a quisesse ainda!

A cigarrilha caiu-lhe das mãos, rolando na calçada.

Na rua, vagarosamente, um moço vinha olhando para cima.

De novo debruçou-se na varanda. Reconhecera-o. Tempos atrás estivera com ele. Correu os olhos e cuspiu para baixo, concertando a garganta num ruído próprio de quem quer ser visto. O rapaz ergueu preguiçoro o olhar o saudou-a com desdém:

— Como vais?

E foi andando.

Tremeu de raiva. Uma lágrima sentida escorregou pelo vestido branco.

Sentada na cadeira, a mão na face e os olhos perdidos no espaço, ia-se embebendo indolente nas recordações confusas dos seus tempos de perdida.

Tudo a princípio fora um conto de fadas.

Encontrara um negociante opulento, um homem libidinoso, que lhe dera um sobrado novo, de jardim na frente e cortinado na janela. Passava uma vida encantadora. Mesmo na cama tinha a criada a levar-lhe o leite ou chocolate.

Penteada, atufava-se em vestimentas leves e corria para o sofá de estofo, a ler algum romance até à hora em que o amante chegasse para o almoço. A comida — sempre boa, sempre certa.

Mas um dia abandonou-o, aborreceu-o de tal forma que não pôde vê-lo mais.

E teve sorte.

Os homens enchiam-lhe as mãos de ouro, cobriam-na de joias. Teve vestidos tentadores, talhados pelas modistas mais afamadas, anéis custosos do melhor quilate e broches finos de pedras raras. Andava num luxo requintado, coberta de sedas, faiscando no brilho das joias do pescoço e dos dedos.

Na rua, quando pisava, havia um sussurro de espanto e de cobiça.

Sombrinha escarlate aberta, no decote cínico do casaco azul tarjado de fitas, e o chapéu carnavalesco, dando mais graça ao penteado esquisito da cabeleira preta, ia passando por todo o murmúrio com uma arrogância de rainha, a cabeça levantada, o andar sacudido e túmido, requebrando os quartos numa elegância canalha. E os olhos acompanhavam-na, e os ditos picantes se reproduziam até que dobrasse a última esquina e entrasse em casa. Os homens mais ricos, mais poderosos da terra teve-os nos braços. Sabia vazar os bolsos, entontear com beijos. Os teatros tinha-os abertos; camarotes para todas as noites; carruagens para passeios.

Em patuscadas, nas ceias noturnas, onde os amantes lhe compravam a carne, endoidecidos, embriagara-se de champanhe, primando no cinismo. Nos bailes públicos, no calor nervoso do maxixe, era sempre a primeira no requebrado lânguido do corpo, sempre a única na embriaguez cálida do deboche. A sua febre de devassa, a pressão frenética do seu pensamento lúbrico, por esse tempo tornaram-se cansadas, como que exaustas de trabalho.

E foi-se sentindo gasta, as faces foram-se descorando, as fibras embambecendo-se e as doenças constantes, o alquebramento, o enjoo da vida foram-na tornando pouco a pouco fria. A sua casa já não era o mercado mágico do gozo, onde os homens lhe compravam enfebrecidos a carícia queimadora dos seus lábios. Os homens rarearam insensivelmente e ela foi-se tornando mais delambida, mais barata, inventando coisas que a faziam corar, para manter o luxo deslumbrante de outrora.

Em terra estranha via-se agora desamparada, distante de afeições bem gratas, curtindo os seus pesares, as suas mágoas de prostituta, sem uma voz consoladora que lhe procurasse lavar a alma viciosa sem um peito amigo, onde pudesse encostar-se na hora das lágrimas.

Já não era a fada tentadora de outros tempos, a libertina escandalosa e petulante, os seus braços já não premiam, como antes, os seios já não afogavam, a carne não entontecia, nem tinha a embriaguez incendiada dos primeiros dias. Na quadra lúcida da vida, no verdor dos seus vinte e três anos, sentia-se desgraçada, amaldiçoando a sorte, o corpo abatido, esfalfado de deboche, sujeitando-se a tudo, a passar noites em claro, aos caprichos dos homens, vendendo carícias, numa ganância viva de quem tira da carne o sustento para ela e o dinheiro que o senhorio exige, com ameaças, no fim de cada mês, no patamar da escada.

Estava fraca, estava doente!

E via-se acabada, cheia de sardas, as faces pálidas cobertas de rugas, os olhos lânguidos como os de um morto, sem expressão, sem nada, os lábios cor de cera e os seios machucados, bambos, caídos para baixo como de velha.

E era obrigada, à custa de perfumes, de roupagens indecorosas, a reviver a carcaça daquele corpo envelhecido em moço, para que alguém encontrasse ainda o apetite saboroso de coisa boa.

Ficava pensando nos seus tempos de virgem.

Àquela hora talvez estivesse deitada, rezando devagarinho o rosário de contas miúdas... No entanto, ali na varanda, inquieta e chorosa, esperava um homem para essa noite.

Ah, que diferença! Como trocaria o luxo desonesto da sua alcova, os cortinados ramalhudos do seu leito aparatoso por aquele quarto pequeno de moça pobre e pela caminha de lona com lençóis de retalhos! Ninguém a trataria de resto, não a saudaria tão desdenhoso, como aquele homem de há pouco; a existência teria sem vícios, sem ser preciso carminar as faces, correr à varanda para povoar a alcova.

E suspirou saudosa, arrependida e humilde, levando absorta aos olhos a manga rendada da bata transparente, para enxugar as lágrimas.

Na cadeira de palhinha, quedou-se abatida, derreando molemente o pescoço ebúrneo, numa lassidez abandonada e fria, fitando o teto distraidamente.

Pensava na filhinha... Tinha saído desde a tarde a passear com a criada. Como era chic, como era encantadora!... As facezinhas rosadas, os cabelos loiros enrolando-se nos ombros e os lábios frescos a beijar os seus. Ah! Era o conforto único, o único ser que a alegrava nas horas tristes da sua alma atribulada, que a aflorava de sonhos honestos, onde a sua imaginação pecadora de rameira ia respirar serena e casta a voluptuosidade terna da maternidade.

Idealizava aquela boquinha trêmula colada à sua, as mãos veludosas alisando meigamente os seus cabelos e o peito palpitante de criança encostado em abandono no seu peito.

Queria que tivesse uma educação perfeita. No mês seguinte deixá-la-ia num colégio de meninas, no melhor colégio da cidade, livre do contágio da sua casa, alheia à sua vida depravada.

E tremeu.

Alguém subia a escala. O seu coração bateu ligeiro. Algum homem a procurá-la! Oh! Um homem! Havia de ser, havia de ser!... E mais tarde outro... Nessa noite teria quatro, cinco, nas outras outros tantos e nas outras ainda mais!...

O vestido do carnaval seria pomposo, radiante, nobre, não seria expulsa de casa, o senhorio não a ameaçaria mais e no dia seguinte a comida farta, o dinheiro à farta!... Um homem, — havia de ser, havia de ser...

E os passos chegavam-se mais claros.

Correu à porta. O seio arfava precipitado e quente e as mãos gelaram-se, tintando.

Um homem, havia de ser um homem!

E os passos mais perto sempre.

Tomou a chave. Os seus lábios esfriaram pálidos, sem uma gota de sangue. Tremia, toda ela tremia.

E abriu a porta.

Era a filhinha que voltava do passeio.

SAFADO!

A Américo Maranhão.

S. Luís do Maranhão, 1901.

Naquele dia ela esperava cartas do noivo.

E, recostada na cadeira de embalo, o romance aberto sobre o regaço, a chinelinha bordada tocando de leve no tapete macio, cheio de paisagens, olhava distraída as páginas do livro, sem compreender uma só linha.

A sala estava deserta. Lá de dentro vinham uns sons tristes de cantiga de alguma criada no jardim. Na janela o vento manso balançava os panos do cortinado. Uma folha de música aberta ao piano tremia ao sopro de fora.

E ela pensava. Seu Serra deveria ter-lhe escrito naquele vapor, avisando o dia da chegada. Mas o correio tardava.

Pelos seus ouvidos uma mosca zumbia, impacientando-a mais.

Naquele dia estava nervosa.

E, absorta na chegada futura do noivo, ia-se embebendo pouco a pouco na recordação ligeira dos tempos do namoro.

Lembrava-se ainda. Fora num dia de festa. A igreja reluzia na ornamentação aristocrática dos arcos floridos e da prata dos altares. As sedas farfalhavam, os brilhantes tremiam ligeiros e os leques de plumas aflavam inquietos, cintilando de lantejoulas. De uma banda chegavam os sons leves, vagos e melancólicos de um harmônio, acompanhado de cantos sacros. O padre, no altar, levantava a hóstia. Seu Serra chegara, ajoelhando-se ao pé dela. Reparara insensivelmente nele, sem prestar atenção... Cinco minutos passaram... A campainha retiniu sonora, três vezes, compassadamente. O leque caíra-lhe das mãos... Seu Serra ajuntara-o. Ela, num sorriso, agradecera.

E começou aos poucos a reparar no corretismo da sua gravata, no talhe das calças de cachemira fina, na singeleza do laço da gravata, no penteado da cabeleira, olhando-o sorrateira, fingindo que rezava.

E, quando veio para casa, trazia o íntimo cheio da imagem daquele rapaz elegante, que a fitara na nave festiva do templo, enquanto o harmônio inundava o ambiente perfumado de incenso de uma música tristonha e clara e a hóstia no altar tremia nas mãos envelhecidas do padre.

Um mês passou-se, sem vê-lo mais.

Depois encontraram-se num baile. Sorriram-se.

Barulhenta, rompeu a orquestra numa valsa alegre.

O rapaz viera muito cortês, muito janota, e ambos, num enleio amoroso de braços, lá saíram pela sala, à cadência harmônica dos instrumentos, como que esquecidos da vida, alheios do que os cercava.

E dançaram, dançaram mais.

O moço declarou-se.

Parecia estar vendo ainda as companheiras, que passavam ao lado dos pares, sorrindo alegremente, troçando o namoro, perguntando-lhe nos ouvidos quando se comeria o doce ou conversando umas com as outras a respeito dela. Essa noite, oh, que noite boa!... Nunca se vira num baile tão requestada!

Sentia ainda o som melódico das primeiras palavras do noivo, sabia-as de cor, lembrava-se de bem como foram ditas no intervalo da segunda contradança, muito timidamente, muito baixinho, para que ninguém ouvisse. Recordava o afeto enamorado, a solicitude apaixonada do rapaz, tratando-a com uma delicadeza distintiva, achando formosas as flores que ela trazia no seio, pedindo que lhe desse alguma, notando antipatia nas outras moças e oferecendo-lhe sorvetes, doces e licores.

Desde esse dia, encartolado e cheiroso, seu Serra, à tarde, o andar vagaroso e grave, muito teso, no princípio da rua despontava para vê-la. E passava na calçada oposta, muito risonho, cofiando o bigode preto, olhando-a muito... Todos os dias lá vinha ela para a janela, com um vestidinho fresco, muito séria, fazendo-se embebida na leitura de algum jornal ou romance, com medo da língua da vizinhança mexeriqueira.

E meses passaram nesse namoro simples. Encontravam-se às vezes nas igrejas, nos bondes, nas lojas, mas aquilo não passava de um cumprimento um tanto demorado, um tanto significativo. Mas, apesar disso, já pela cidade corria que ambos se amavam. E as amigas, quando a encontravam, às vezes davam-lhe notícias dele, dizendo que o tinham visto nesta ou naquela parte e perguntando-lhe, em segredo, troçando-a com intimidade, se a coisa era certa e se ele já a tinha pedido.

Negava, negava sempre. Oh, um rapaz não podia olhar para uma moça sem que se pensasse logo que era namoro! Gostava, gostava dele, “mas era simplesmente!”.

Mas aquele simplesmente saía-lhe dos lábios acompanhado de um sorriso e trejeitosinho nos olhos, a que as companheiras, galhofando, lhe diziam que não negasse, porque os seus olhares atestavam que a “coisa era certa”.

— Olha, meu bem, os olhos não mentem.

Mas aquela vida serena um dia veio turvar-se. Fora num baile. E aquilo magoara-a tanto que até hoje, quando disso se lembra, o seu peito arde ainda nos restos da raiva que sentiu. E essa noite fora pura ela a pior da sua vida. Recordava-se de tudo. Na segunda quadrilha seu Serra tirou-a para dançar. E não sabia como disso se esquecera, aceitando outro moço, que veio tirá-la depois. O rapaz danara-se e, afetando indiferença, a noite inteira passara ao lado da Albertina, muito caído, dançando com ela todas as peças.

Ela ralava-se de ciúmes. No meio de todo aquele burburinho festivo de música e de risos, em que os corações palpitavam na cadência voluptuosa da dança e os lábios desabrochavam na nervosa frenética da alegria, a sua alma cheia de ciúmes tateava, desesperada e bruta, numa atmosfera desconhecida, como essas aves tontas que as asas batem na escuridão de um abismo.

Oh, noite agoniada! Não tivera um sossego!

O espartilho acochava-a fortemente nas costelas, o sapato de verniz premia-lhe os pés e a gargantilha de rendas afogava-a no pescoço. Às roupas pareciam cáusticos, o perfume dos lenços enjoava-a, os doces faziam-na engulhar e a água sempre quente, sempre “um caldo”. Sentia um nó na garganta. Estava com febre.

Qualquer olhar de rapaz para rapaz, um simples cochicho de moça para moça, ardiam-lhe impiedosamente na alma dolorida, envasando-a de lágrimas, que ela embargava a custo, envergonhada de dar mostras do seu despeito. Julgava que todos reconheciam a sua raiva interna, que zombavam da sua derrota, que se riam dela e isso ia-lhe continuamente revoltando o espírito magoado, ferindo o seu amor próprio de moça bonita, escaldando-a cada vez mais em pensamentos brutos de histérica raivosa.

Corria ao tocador, comparava-se com a rival e às vezes chegava a considerar-se mais feia. Concertava o penteado, punha no rosto o pó de arroz, endireitava a vestimenta, tornava-se mais faceira, mais garrida e ia para a sala.

Era tudo em vão. Lá estava seu Serra, ao lado da Albertina.

E uma torrente flamejante de ódio vulcanizava-lhe a ideia, atordoada e confusa. Tinha ímpetos de hiena, desejos indomáveis de correr para a inimiga, de esbofeteá-la, mordê-la toda, arrancar-lhe os cabelos, torcer-lhe o pescoço, espatifá-la.

Mas fazia-se forte. Ria, conversava alegremente, mas, de instante a instante, a sua imaginação desprendia-se de tudo, para estirar-se de novo na cruz dolorosa do seu suplício interno.

A noite parecia-lhe longa, a música melancólica e as quadrilhas “um nunca acabar”.

E tinha desejos indomáveis, pensamentos sinistros, que se lhe avolumavam no cérebro de nervosa, numa intensidade ardente de caldeira que ferve. Queria que, no meio de toda aquela festa, espocasse um desastre qualquer, a casa se incendiasse, alguém quebrasse uma perna, um braço e morresse, ou o dono da casa ou ela própria, mas o que queria era que tudo se acabasse.

A inquietação endoidecia-a. O espartilho já lhe queimava a cintura, o casaco afogava-a demais e o empacho da garganta entalava-a angustiosamente. Queria respirar em desafogo, precisava de chorar e chorar muito!...

E, quando voltou para casa, estalava de Trio. A noite foi horrível. Barreiras intermináveis, abismos profundíssimos, surgiram-lhe em sonho, aterradoramente. Homens, em meio de círculos extensos, audaciosos, pularam, de espada flamejante em punho, alarmando a multidão.

Depois o casamento de seu Serra, entrando na igreja. As carruagens colossais, empenachadas de plumas multicores, vinham puxadas, não tinha a certeza por quem, porque os animais tinham penas de garça, braços de gente e pescoços compridos como avestruzes. A Albertina, vestida de bata longa de pelúcia roxa, trazia na testa uma grinalda comprida de laranjeiras e asas de serafim nas costas, que abanavam a cada meneio do corpo. Seu Serra, todo de preto, vinha adiante, com a fronte erguida orgulhosamente e uma coroa de espinhos na cabeça. Os botões pretos da roupa foram-se tornando esquisitos, bronzeados e douraram-se; a casaca negra mudou pouco a pouco, tingiu-se de azul-claro e converteu-se em farda e as calças estreitaram-se, encurteceram e ficaram como de menino, lá não era o mesmo rapaz que tinha visto nas salas, nas igrejas e nos bondes, — era um homem poderoso e altivo, senhor de trono, cercado de vassalos, vestido à moda dos fidalgos medievais. Um manto faiscante de veludo verde, salpicado de lantejoulas, descia-lhe pelos ombros ostentosamente; uma gravata larga, de seda amarela, atufava-lhe o peito, crivado de medalhas e a coroa de espinhos da cabeça cintilava, cheia de pérolas.

Os nubentes chegaram ao altar. Apareceu um padre, todo coberto de estolas douradas, velho, de fronte bondosa e risonha, semelhante a um retrato a óleo de Leão XIII, que vira dias atrás na sacristia de uma igreja.

O tempo foi tomando proporções grandiosas: o teto matizara-se de figuras belíssimas, cenas do paraíso onde Maria, cercada de uma revoada de querubins formosos, a cabeça divina envolta em claridade, o filho pequerrucho nos braços sorria para uma multidão de santos que a engrossaram prodigiosamente, colorindo-se de rosa, transformando-se em mármore, os círios pareciam troncos de pau e os santos já não eram de madeira de tamanho regular: assemelhavam-se agora a fantasmas monstruosos, que se moviam as gargalhadas, atirando beijos para o povo da igreja.

No coro uma orquestra tocava um galope de carnaval.

Não tinha recordação perfeita do que se passara por um certo tempo, só tinha ideia um tanto vaga, um tanto confusa de coisas fantásticas e esquisitas. Parecia-lhe que tudo se mudara sem que sentisse que alguém a carregara para outro lugar muito distante. Mas via o mesmo templo pomposo e rico, embora mais vacilante, o mesmo padre todo coberto de galões dourados, o mesmo reboliço de festa.

Mas havia uma certa barafunda que a desnorteava. Gritava-se como num mercado, os homens berravam roucos, trepados nos bancos, os vassalos batiam palmas cadenciadas de samba em meio e as mulheres davam pungas escandalosas, encarrapitadas umas nos ombros das outras. No altar os santos, bêbedos, rouquenhos, o olhar reluzindo de luxúria, sapateavam indecorosamente, cantando ao som das palmas uma modinha popular que ela ouvia a cozinheira repetir todos os dias:

— Esquenta, esquenta o maxixe.

Ruidoso respondia o coro sapateando:

— Maneiro pau,

— Que eu quero tudo esquentado

— Maneiro pau,

— Requebra, meu bem, requebra

— Maneiro pau,

— Requebra bem requebrado.

Perto dela havia um padre, moreno, rosto opado, cabelos longos e encaracolados, com mitra de bispo, que a prendia pela cintura, apalpando-a toda, querendo beijar-lhe os lábios. Repelia-a com repugnância, dando-lhe socos nas ventas.

E pouco a pouco aquilo foi perdendo o aspecto do tempo da festa, assemelhando-se agora a um circo extenso de companhia equestre. Num trapézio longo, descido do teto, o Cristo, em balanços rápidos, fazia peloticas, equilibrando no queixo uma cruz de papelão. No meio da arena, um S. Jorge, musculoso, nu, com o capacete de ferro na cabeça, saltava no cavalo, atirando beijos, exibindo as formas. No altar-mor o padre dos cabelos longos e mitra de bispo cantava uma ladainha alegre, acompanhado das vozes da padralhada miúda. A orquestra mais furiosa, mais forte e mais rija, prosseguia, no coro, o galope infernal.

A cerimônia terminara. Seu Serra veio saindo, coberto de veludo, garboso e pedante, ostentando riquezas, muito alto, tocando no teto, de braço com Albertina, que já tinha as asas compridas, os dentes de fogo, os sapatos pontiagudos e rabo arrastando.

E repentinamente viu-se num castelo enorme, desmoronado e sombrio, prestes a cair. E começou a caminhar à toa por aqueles salões extensos, cheios de lixo, procurando alguém. Perto de uma barrica havia um vulto qualquer, atirado ao acaso. Aproximou-se e começou a apalpá-lo. A princípio aquilo parecia um corpo inerte, mole, um tanto impalpável, mas pouco a pouco foi tomando figura humana assemelhou-se ao Serra e ficou de pé. Reconhecera o padre moreno, de cabelos longos, que a beijara na igreja. Prendeu-a de novo pela cintura, apertou-a contra o peito e esteou-lhe um beijo na boca. Saíra como doida a correr pelos salões. Mas as suas pernas pesavam de mais, o corpo enfraqueceu de todo e a cada passo que dava rolava no soalho estrondosamente. O padre acompanhava-a. Já sentia as suas mãos calosas tocar-lhe nos vestidos e os seus lábios babados roçar-lhe pelo rosto. E correndo, correndo muito, galgara uma janela e atirou-se à rua.

Acordou. Eram quase nove horas da manhã.

E muito tempo passou deitada, ouvindo o som longínquo da festa do sonho, meio demente, sem saber onde estava, cuspindo enjoada, julgando sentir ainda nos lábios a boca do padre. O dia todo passara triste, metida no quarto, aborrecida, chorosa, com dores na cabeça e o pulso alterado. Não quis ir à mesa, a carne inchava-lhe na boca, o café parecia-lhe um purgante e o leite fazia-a vomitar. Dias e dias não chegara à janela, não visitara as amigas, sempre no quarto ou no terraço, os olhos pregados nas folhas de algum romance amoroso e o pensamento em busca do namorado. Tornou-se supersticiosa. À noite não entrava sozinha em quartos escuros, com medo do sacerdote do sonho. Se alguém lhe tocava nos ombros, tremia toda, gritando assustada. Uma vez, assistindo à missa, caíra com um ataque, ao ver o bispo subir ao púlpito.

No isolamento de despeitada que pretende vencer, estudava palavras, ensaiava gestos, para o primeiro encontro com o namorado. Quando o visse tratá-lo-ia como se nada houvesse existido, como se nunca o tivesse amado, com uma indiferença alegre e frisante.

E assim foi.

Dois meses depois encontraram-se de novo num baile. Seu Serra, que fizera o rompimento por um simples coquetismo, um chic de namoro subira às nuvens, quando a vira tratá-lo indiferentemente.

Nessa noite Albertina fora a vítima. Ela vencera.

Daí a tempos, no dia do aniversário das bodas de seu pai, encasacado, de luvas de pelica, sapatos de verniz, seu Serra viera pálido, trêmulo, pedir-lhe a mão.

Agora estava noiva. E esperava somente a chegada dele para casar-se.

E maquinalmente, na recordação ligeira de tudo isso, ia na imaginação como que passando revista ao enxoval. O vestido do noivado, branco, de seda cara, era talhado pelo último figurino parisiense, na primeira casa de modas do Rio; a grinalda alvíssima de laranjeira, elegante, fina, viera-lhe expressamente da Europa, como presente de seu padrinho, um português. Os sapatinhos cor de jaspe, o leque finíssimo, de talas de madrepérola cravejadas de pedras, e o cortinado de ramagens azuladas tinham chegado da Inglaterra, a pedido de seu pai. As camisas eram de linho branco e palas de crochê enfeitadas de fitinhas azuis; as anagoas de folhas de labirinto do estilo antigo e rendas do Ceará e as colchas de cetim cor de céu tinham no meio o monograma dela e do noivo, bordado a fios de ouro.

A mobília, luxuosa e rica, dias atrás tinha saído da alfândega. Cadeiras pequenas de varames dourados, estufadas de veludo, consolos modernos, com mármores rosados, toucadores artísticos com espelhos de cristal e jarros de porcelana chinesa.

E a cama?!... De polimento claro, muito bonita, muito elegante, cheia de recortes de madeira e uma placa de madrepérola no espaldar da frente, onde a primeira letra do seu nome se entrelaçava com a primeira do noivo.

A casa em que ia morar, um chalézinho pinto-resco, com trepadeiras nas janelas, recebia a última demão de tinta.

Ah, quando estivesse casada! Ao lado do marido, sentados juntinhos, as mãos unidas, debaixo das latadas sombrias, ou por entre as moitas cheirosas das flores, trocando beijos e mais beijos! De manhã, os dois, sadios e felizes, ela, cabelos soltos ao vento matinal, vestido leve de cambraia rala e ele, chinela bordada, gorro na cabeça, iriam pelo jardim, vagarosamente, num idílio sereno, passageiro e doce, colhendo flores para os jarros da sala.

E quando tivessem o primeiro filho?!... Santo Deus, que alegria, que alegria era casa! O pequerrucho, engraçado, vivo, a correr pela sala como um doido, desarrumando a mobília, quebrando as teteias do toucador ou rompendo os livros que ela estivesse lendo.

Deus permitisse que ele fosse traquinas. Ninguém, nem o próprio marido lhe poria a mão!

E como não seria engraçado o diabinho, a traquinar pelo jardim, quebrando as plantas e com uma vara na mão a derribar as uvas verdes das latadas!... E o safadinho, depois do pai lhe ter ralhado, correr muito vermelho, com os labiozinhos trêmulos, prestes a chorar e ela a apertá-lo nos braços com carícia:

— Não xóla, meu bem, não xóla!

Como tudo isso seria bom!

E num frenesi de histérica, que exige um homem, calculava o dia do sarnento. Reboliço medonho em casa: a criadagem a correr atarefada, com as compoteiras de doces; o tilintar das louças pela cozinha; a profusão de flores pelos jarros.

E que manhã divina não seria!?... O céu todo festivo, o céu todo sem nuvens... Acordaria muito cedinho, mergulhando logo no banho perfumado que a esperava... À tarde, quando viessem entrando as amigas mais íntimas, já estaria no quarto para pentear-se. E já parecia ouvi-las com ditozinhos brejeiros, numa confusão alegre, procurando alfinetes para pregar-lhe o vestido de noivado ou concertando a grinalda, o véu, o penteado...

E já via a sala cheia, todos à espera dela, somente para o casamento civil. O juíz, metido em casaca negra, passeando calado pela saleta apinhada de homens e seu Serra, sobranceiro, feliz e nobre, conversando com alguém...

E esses castelos erguiam-se-lhe no cérebro, avolumando-se mais. Já se via saindo do carro, entrando na igreja, trajada de branco, com o ramalhete de cravo, de braço dado ao noivo...

Depois o padre a casá-la...

E mais tarde em casa, no chalé pintoresco, de trepadeiras na janela, sentada no sofá da sala e a cama lá dentro, enfeitada com luxo, os cortinados rolando de cima, numa passibilidade ostentosa. E mais tarde... e mais tarde...

Tremia num friozinho de gozo.

Mas com os diabos, aquele maldito correio!... Seu Serra deveria ter-lhe escrito, infalivelmente, avisando o vapor em que viria.

Como não se danaria agora aquela lambisgoia da Albertina?!. Que “chupasse o dedo”, que “dormisse na cama, que era lugar quente”. Irra! Com que cara não ficaria?!...

Mas o seu desejo era que “aquela peste” estivesse presente no dia do casamento, para que a visse entrando na igreja, de braço com o noivo... Ah, se ela assistisse a tudo, tudo!... E deu um muxoxo. Aquele diabo que ficasse lá mesmo pelo Ceará. Se morresse de beriberi, que a forçara a mudar de ares, não faria falta alguma, ela mesmo não choraria.

O que a incomodava era seu Serra ter ido para o mesmo lugar onde ela estava.

Mas qual! Ele prometera-lhe até nem visitá-la! E além disso os seus negócios comerciais não lhe dariam tempo para isso.

E o correio, aquele maldito correio...

Correu à janela. Carros cheios de bagagens passavam, estrondando. De uma escola próxima crianças saíam, fazendo algazarra, discutindo notas. Um escolar, de calças curtas e blusa de fustão branco, assobiava, muito agudo, pelos dedos, entre os dentes. Aquilo incomodava-a. Uma mulher, com o tabuleiro farto na cabeça, passava, apregoando frutas. O sapateiro da esquina espiou-a pela porta, batendo sola. Uma mulher, defronte, cosia na máquina, com o filho no regaço, cantando a Rita Medeira. Um homem passava, de porta em porta, entregando programas de espetáculo. Ao longe o sino de uma igreja dobrava a finados.

Sentou-se ao piano e começou uma valsa. Errou.

E pôs-se a pensar. Quem dera que a Albertina estivesse presente “no dia da coisa”, para ver tudo. “Aquela besta” mesmo não estava vendo que seu Serra não havia de se casar com ela?!... Um diabo que tinha um nariz de légua e meia e dois dentes postiços na frente... Qual! Havia muita gente que não se mirava! Porque era muito rica julgava-se muita coisa! Dinheiro, ela também tinha! Com que cara não ficaria lá no Ceará, quando soubesse do seu casamento com o Serra?!... Ih, que cara!...

Palmas soaram na escada. A voz de uma criada, de dentro, gritou:

— É o carteiro!

Correu à porta e abriu. Mas que diabo, — uma só carta! E sem ser para ela, — para seu pai!?...

— Não tem para mim? Veja bem, veja bem! Perguntou, incomodada.

— Não, senhora, é só essa! — E saiu.

Ela ficou extática, a olhar o invólucro. De quem seria? A letra parecia de seu Serra. E olhava, olhava bem. Era de seu Serra, não havia dúvida! Mas sem lhe escrever a ela própria, a escrever ao pai? Que novidade, que novidade se teria dado? E quis abrir. Mas o pai talvez se zangasse... Estava pálida: pressentia uma desgraça. E rasgou, gelada, as mãos tremendo. Um cartão caiu no chão. Apanhou-o ligeira, lendo febril:

DOMINGOS RODRIGUES SERRA

e

ALBERTINA AMÉLIA DA SILVA

participam o seu casamento.

Ceará.

Ficou abismada, branca, trêmula, fria, o olhar extático e o coração aos pulos.

E, esfrangalhando, nervosa, por entre os dedos, o cartão dourado, sacudiu-o no chão com força:

— Safado!...

E rolou no tapete, estrebuchando, aos gritos.

UM PANCADÃO

À Monteiro de Souza.

S. Luís do Maranhão, 1901.

Numa derradeira execução enérgica de teclados, dona Santa terminara o galope.

Houve um reboliço miúdo de vestidos e toda a sala estalou em palmas.

— Bravíssimo! Bravíssimo!

— Outra, dona Santa! Outra!

Ela levantou-se do piano. O rosto amorenado e róseo esbraseava-se de sangue, os olhos luziam petulantes de um brilho claro e o seio redondo arfava numa ofegância embriagadora e quente. Aquela música extensa, de execução difícil, estafara-a. E correu até à janela, procurando respirar.

— Outra, dona Santa, alegre-nos os ouvidos...

Era seu Zuza que falava. Ela fitava-o sorridente, o olhar faiscando e a voz enternecida:

— Estou cansada, já toquei demais. Mande agora sua mulher tocar.

— Ora não se faça rogada... Tenha a bondade...

— Oh, que coisa!...

E sentou-se de novo ao piano.

— Que quer que toque, seu Zuza?

Ele, arrastando a cadeira para junto, falou alegre:

— Qualquer coisa, minha senhora. Não, olhe, algum pedaço vibrante.

— A marcha do D. Carlos, não? O senhor gostava tanto...

Ele estremeceu. A marcha de D. Carlos! Aquela música era uma das estrofes risonhas do poema saudoso do seu passado! E não podia ouvi-la sem que a sua alma toda se engolfasse na bruma luminosa dos seus primeiros sonhos, aspirando, ao embalo voluptuoso de uma felicidade antiga, o suco perfumado das esperanças vividas de outros tempos.

— É verdade, a marcha de D. Carlos! Ao menos é um pedaço do passado.

Dona Santa corou. E, levantando-se impetuosa, na estantezinha de ébano, revirou os livros em procura da música pedida. Sentou-se e, sacudindo numa elegância artística as mãos brunidas no teclado ebúrneo, do piano, o silêncio rompeu em vibrações alegres, alagando a sala de uma cadência acelerada.

Seu Zuza ali ficou, silencioso, derreado placidamente na cadeira de embalo, fitando tristonho as bambinelas rosadas, que tremiam vagarosas à ventilação ronceira das noites de estio.

Oh, que música! Quanta saudade, quanta saudade! O romance do seu passado, página por página, folheava-se sereno, à sonoridade cálida daquela cascata abemolada de notas fogosas, que zumbia pelo ar como um concerto ardente de beijos estalados.

Conheceram-se muito novos ainda. De manhã, quando dona Santa, ao lado da criada, para a escola seguia, muito ligeira no vestido creme de cambraia rendada, ia esperá-la ao longe, na última esquina da rua, a trocar olhares. De noite, lá ia jogar o quino no terraço do quintal, sentado ao lado dela, muito juntinho, apontando-lhe os números ou beliscando-a, quando se distraía... Seguiam depois para a sala. Ele desenrolava a flauta e ela, sentando-se ao piano, começava a estudar a marcha de D. Carlos. Se errava, ia ele todo solícito, por detrás dos ombros, sentindo-lhe o perfume dos cabelos, forçá-la a repetir a música até que acertasse. Depois, quando na saleta o relógio de níquel às nove horas vibrava, vinha-se chegando para casa, farto de esperanças e de júbilo, com um cravinho entreaberto, oferecido às escondidas, rescendendo na lapela.

Oh, que tempo feliz!

E todas as noites, ao lado do piano, virando as folhas da música, quando a namorada concluía a derradeira nota, horas e horas passava num idílio passageiro e terno, arrancando-lhe palavras, enchendo-a de quimeras.

E na família todos de rostos risonhos, abençoando o namoro... Sim, senhor, fora um bobo!

Há pouco animada e quente, a música foi-se desfibrando serena e vagarosa no bailado suave de uma sonata trêmula, acetinada e doce, subindo e descendo, num desalento sonoro de notas compassadas.

E, à harmonia mística dos sons tristonhos, a sua lembrança embalava-se preguiçosa ao sopro erradio das recordações.

Era numa noite luarenta. O mar, muito liso e aveludado, gemia pela areia, em pavilhões de prata. Por toda a parte uma claridade branca se espalhava, iluminando as vagas de reverberações de leite.

Pelo cais dona Santa vinha, o cabelo negro desenrolado pelos ombros, tremulando à viração do mar. Ele, o trancelim do chapéu de palha preso ao primeiro botão do paletó aberto, ao lado dela vinha-lhe falando em banalidades. A família, longe deles, lá para as bandas dos banheiros salgados, conversava com um conhecido. Ela encostou-se ao parapeito do cais.

Ao longe a Ponta da Areia, branquejando a lua, iluminava o espaço com um pingo de sangue. O farol de Alcântara, muito pequenino, parecia mergulhar-se de vez em quando nas ondas. Ancorados pela baía, os navios balançavam de vagar, espalhando na água, em tapetes rutilos, as luminárias dos mastros. Um barco, de velas pandas nos mastaréus compridos, escorregava plácido, S. Marcos a dentro.

E começaram, as mãos bem juntas, falando do mar, numa fantasia poética e sonhadora. Além, um piano tocava a marcha de D. Carlos. E, acalentado pela música, ele foi-lhe debuxando uma falúa branca a deslizar serenamente num mar de rosas e sereias fulvas, arfando os seios eretos na explosão melódica das vozes encantadas... Ela, com a testa enrodilhada de dores, a cabeleira solta, completamente solta, a palpitar nos ares, ao lado dele, também remando, com o regaço cheio de rosas, iria espanejando pétalas e mais pétalas às sereias loiras que lhe beijavam a fímbria veludosa do vestido. Depois, já tarde, na hora silente do funeral do ocaso, numa praia de leite lantejoulada de conchas, a falúa branca encalharia na areia. Os dois, saltando, nesse lugar viveriam eternamente, esquecidos da vida e dos homens, alimentando-se de frutas e de beijos muitos beijos...

Enlanguecida, dona Santa foi-se pouco a pouco derreando bêbeda nos seus ombros, e ele, amoroso, cingindo-lhe a cintura delicada, com os lábios sequiosos procurou-lhe a boca, para beijá-la.

— Me largue! Você está doido? Gritou ela, toda vermelha, desgarrando-se dos seus braços.

Nesse momento a família vinha chegando e ele, encabulado e frio, depois de despedir-se, foi-se retirando para casa, muito triste, com receio de que a namorada se tivesse zangado com a petulância.

— Vire-me esta folha, seu Zuza, faça favor, depressa! Gritou-lhe dona Santa.

Ligeiro correu a página da música. Agora era de uma ardência fervente, crescendo em trinados irrequietos, numa aceleração alvoroçada.

Recordava-se do carnaval.

Vestida à andaluza, os seios túmidos empurrando a pelúcia verde do casaquinho curto, decotado, dona Santa, cheia de fitas e de sedas, muito estouvada e rubra, ao som da dança, movendo o braço nu, pelas salas saltava, ruflando os guizos de tamboril metálico. De uma das janelas, com um sorriso satisfeito nos lábios, ele fitava-a, muito orgulhoso de possuir o coração daquela mulher galante, que todos olhavam enamorados, seduzidos de graça. E nessa noite só dançaram juntos, sem que ele a deixasse dançar com mais ninguém...

E não ter-se casado com ela! Diabo! Fora um tolo!

— Vire aqui, seu Zuza, ligeiro!

À música esquentava-se.

Lembrava-se de uma festa no Caminho Grande, na velha quinta dos pais da moça. Brincava-se o “padre-cura”. Havia pelo terreiro arborizado um burburinho cantante de risadinhas alegres. Ele era o padre, dona Santa era a camelia,

— Onde estavas tu?

— Em casa do padre-cura.

— Mentes tu.

— Onde estava vossa senhoria?

— Em casa da camelia.

— Olhe lá isso, seu Zuza, você só anda em casa da camelia. É muito cheirosa, não é?

E as moças troçavam-no, muito risonhas, muito brejeiras.

Dona Santa corava, amuando-se. Aquela brincadeira não era boa, o papa estava perto e podia ouvir!

Mas as troças prosseguiam, mais prazenteiras e mais vivas. Então era certo, não? Só não queria que o papa ouvisse?! Qual! Ele até fazia gosto. Se quisesse far-se-ia o pedido...

E da roda alguém se levantava, afetando seriedade, e seguia em direção do pai, para pedir a mão da filha.

— Deixa-te disso menina, deixa-te disso! Daqui a pouco eu largo o brinquedo! Gritava dona Santa, já de pé.

E às nove horas, quando a orquestra chegou, lá saíram os dois pela sala aos pulos, na cadência apressada da polca francesa. Oh! Nessa noite ela estava encantadora, num vestido simples de sura desmaiado. E que ternura! Chegou até a pregar-lhe na lapela um cacho de verbenas que lhe ornavam o peito.

E não ter-se casado! Bolas!... Era preciso ser muito burro!

Nunca soubera avaliar o tesouro fulgido que nas suas mãos espontâneo luzia, nunca a sua alma estremecera veementemente à paixão radiante daquela alma, que se lhe entregava inteira, na ardência robusta de uma paixão sincera. Queria-a, disfarçava que a queria, por uma ostentação de moço, por uma vaidade galante de ter submissa aos seus olhares e aos seus caprichos uma mulher formosa, a quem todos requestavam sem resultado algum, mas, ou levado pela facilidade da conquista ou pela frieza dos seus sentimentos, no íntimo nada sentia, a não ser um leve gozo de satisfação, quando a tinha ao lado inocente e apaixonada. Como estava arrependido disso tudo agora! Um pancadão! E ele perder aquilo para se meter com o estafermo de sua mulher! Ah, se arrependimento salvasse... E não tinha que se queixar de ninguém! Dele, somente dele! Deveria ter pedido dona Santa, antes que o pai a levasse a passear pela Europa. Mas, depois de concluídos os seus exames no Liceu, vira-se obrigado, à falta de recursos, a não seguir, como tencionava, para a Bahia, para estudar medicina ou farmácia e empregar-se como guarda-livros numa casa à Praia Grande. Em pouco viu-se cercado da simpatia e confiança do patrão.

Aos domingos era sempre convidado a almoçar com a família e à noite as moças não o deixavam sair senão depois das nove, quando na flauta terminava o repertório das valsas e galopes. Nos teatros, havia sempre um lugar para ele e, quando as meninas não tinham quem as levasse a qualquer festa, era sempre o escolhido para acompanhá-las.

Vivia satisfeito, risonho com todos, desfrutando o presente, sem pensar no futuro.

Mas esta vida é sempre cheia de desgraças.

Certo dia o patrão chamara-o para o fundo do armazém e, trêmulo e gago, o olhar faiscando de cólera, foi-lhe dizendo que naquele momento podia quebrar-lhe a cara com a bengala ou meter uma faca na barriga, mas como não desejava escândalos, para que o nome de sua filha não andasse de boca em boca, nada fazia, com a condição de que ele se casasse logo. Quis negar, mas o velho, cada vez mais gago, depois de lhe atirar à cara o crime que fizera, abusando da confiança da família, muito vermelho, disse-lhe que preparasse depressa os papéis do casamento, antes que a menina completasse um mês de bandulho. Se assim não fizesse, podia estar certo de que pelo menos um tiro pelas ventas mandaria dar-lhe, mesmo no inferno, se para lá fugisse.

Ele ficou por muito tempo perplexo, arrependido do que fizera, pensando em levar a vida ao lado daquela mulher raquítica e feia, que tinha o rosto cheio de sardas, os pés medonhos e os dentes podres. Pensou em fugir para longe, para o norte ou para o sul, mas teve receio de que o patrão mandasse disparar-lhe, como prometera, um tiro nos miolos. E pensou muito num meio fácil de se desgarrar do compromisso; mas o pai da moça, depois de lhe oferecer sociedade na casa, sempre insistente, todos os dias lhe martelava os ouvidos, para que cuidasse o mais breve possível dos papéis do casamento.

E não houve remédio. Daí a quinze dias lá viera o juíz casá-lo.

Sim, senhor, estava casado! E com quem? Com uma mulher que até embrulhava o estômago da gente!

Agora via-se preso, acorrentado de obrigações, com três filhos choramigas nas costas e uma mulher que nem o conforto do lar lhe dava. Um diabo que até por caiporismo era tão gaga quanto o pai! Aquela peste só o que sabia era parir! Quanto fora infeliz! Em casa era sempre aquele inferno de exigências e de ciúmes, não se podia demorar uma hora a mais na rua, sem que ela, trombuda e impertinente, não viesse indagar por onde andava, os lugares onde estivera, sempre desconfiada, inventando-lhe namoros, casas suspeitas ao seu sustento, numa bisbilhotice intolerável de mulher feia, que não se julga amada.

E olhava dona Santa. Ela ali estava, no esplendor da formosura. Os cabelos negros, encrespados pela testa, subiam em contorno pelo alto da cabeça, prendendo-se dos lados por duas fivelas esmaltadas, caindo docemente pela nuca e espalhando-se nos ombros aos novelos. No rosto agauchado de morena formosa, voando nos caracteres da música, os olhos chispavam irrequietos de um brilho aceso e petulante; as sobrancelhas de azeviche franziam-se numa arrogância guerreira, ao mesmo tempo que nos lábios vermelhos palpitava de leve um sorriso vago de criança viva. Empantufadas, as mangas fofas da blusa de seda florida desciam até quase aos cotovelos, prendendo-as nas pontas duas pulseiras largas de ouro liso. Nos glóbulos mimosos da orelha, meio encoberta pelo penteado pompadouresco do cabelo lustoso, as rosetas de brilhantes, cercadas de esmeraldas, irradiavam límpidas, enquanto no pescoço de cisne, meio pendido para o piano, a medalhinha de ouro, cravejada de pérolas, faiscava cheia de luz. Contornando a meia lua de gaze do decote modesto, um rendilhado de missangas coloridas cintilava, realçando o colo creme, onde o sinalzinho preto, do tamanho de uma mosca, como um pingo de tinta, manchava o lado esquerdo. No relevo tentador dos seios duros, premidos pela fazenda apertada da blusa lilás, de flores soltas, um ramalhete de alecrins e cravos rescendia suavemente. A saia de gurgurão cor de cinza, a cauda bordada pelo soalho arrastava, subindo aos poucos, em franzidos miúdos, até ao cinto de esmalte fino e arqueando soberbamente pela exuberância túmida dos quadris fornidos... Um pancadão!

Aquilo, sim, senhor, era mulher! E ele perder, e ele perder... Bolas!

E fitava a esposa. Aquela peste!... Lá estava, toda desengonçada, com um palmo de nariz de fora! Sai-te, cobra d’água!

E tornava a olhar dona Santa. Que pancadão, que pancadão!

Idealizava uma vida eterna, debaixo de galhos murmúros de um mangueiral espesso, ao seu lado, por sobre alfombras fofas de veludos lisos, o seu peito machucando a rigidez dos seios dela, os dentes premindo amorosamente o tecido forte daquela carne de brasa e os lábios naqueles lábios bebendo a delícia capitosa de uma sensualidade estonteante.

Violento, enlevado, forte o piano vibrou o derradeiro acorde. As palmas de novo encheram a sala.

E seu Zuza ali ficou derreado na cadeira, distraído, mudo, pensando muito, como que embalado ainda pela sonoridade nostálgica da música.

— O senhor está triste, seu Zuza, está calado... Disse-lhe dona Santa, já de pé, afiando o leque de marfim.

— E como não, dona Santa, como não?!... Respondeu, fitando-a.

Ela disfarçou, concertando o ramalhete dos seios:

— Há muito tempo que não tocava essa música, desde que parti para a Europa.

Ele nada teve para dizer. A Europa! Que vida, ao lado daquela mulher, pela Itália, naqueles lagos de cristal, vogando, ao som da voz magoada dos pescadores ao longe, a gôndola serena... A lua branca, muito branca, rolando em cima, no infinito transparente e claro, e o mar gemendo saudoso pelos rochedos e pelas conchas... Depois, pela Suíça, subindo montes, ao barulho longínquo das cascatas límpidas, muito aconchegado ao corpo dela, sentindo-lhe a calentura, enquanto o gelo alvejasse a serra... Em Espanha, numa casa campestre, ela, vestida de andaluza, na janela debruçada, e ele, cinto de borlas ao lado, guitarra ao peito, cantando-lhe habaneras. Que vidão!

— Vamos, seu Zuza, já é tarde, disse-lhe a esposa.

Aquela peste!... Um diabo que nem deixava a gente divertir-se!...

— Vamos!

E levantou-se, despedindo-se. Deu o braço à mulher e desceu a escada. Dona Santa voejava-lhe na memória. Via ainda aqueles dedos morenos, reluzentes de anéis, correndo pelos teclados do instrumento; a luz tropical dos olhos grandes, encantando a pele rosada do rosto angélico; o sinalzinho, muito preto, destacando-se no amorenado claro do colo palpitante; o contorno insolente dos peitos sólidos; os bamboleios duros de quadris roliços...

— Um pancadão! Sim, senhor, um pancadão! Murmurou, distraído.

A mulher espantou-se e arrebitada e fula rugiu:

— Por que você não vai pra onde ela está?! Vocês ainda se gostam...

— Já você começa?! Eu hoje não estou para histórias!

E ao longe, em casa de dona Santa, o piano tocava um pedaço de Chopin.

INCESTO

A Luiz Carvalho

Recife, 1901.

Há três noites que ele velava a cabeceira de Zila. E o mesmo mal que lhe estrangulava o instinto, quando se via em frente de qualquer enferma, rebentava-lhe agora de novo em frente do corpo de sua própria irmã. A sua alma de sacerdote escaldava-se, estonteada em báratros medonhos, remoendo-se hibridamente na idealização embrutecida de um desejo insólito.

O quarto largo do casarão sertanejo dormia silencioso na quietude misteriosa das taperas. Baça, amarelenta e triste, em cima da mesa do santuário antigo, crepitava melancolicamente a luz medrosa da candeia de azeite. De cima da cômoda cinzenta evolava-se um cheiro ativo de remédios em frascos, espalhando-se pelo ambiente abafado, numa aromatização enjoativa de enfermaria de hospital. No teto, por entre as ripas, um grilo zunia, cortando o silêncio. Na claraboia do telhado, de minuto em minuto, um relâmpago bruxuleava. O vento frio do inverno, lá fora, balançava afoitamente o mangueiral copado, rebulindo os galhos. Perto, na lagoa, sapos rezingavam, numa vozearia desconcertada, incômoda e confusa.

Na cama, Zila mexia-se de vez em quando, tiritando de febre. Languidamente abria as pálpebras mórbidas de cansaço, olhava molemente o quarto e caía depois num som no agitado, cheio de arrepios, sem fechar de todo os olhos, respirando forçada e rouquenha, como se abalasse a caixa do peito para sorver o ar.

Ele fitava-a. E, sem despregar os olhos do corpo cadaveroso da tuberculosa, a sua imaginação degenerada debatia-se bêbeda no estonteamento ardente de um desejo brutal.

Arregalado, o seu olhar palpava lubricamente as formas descarnadas, e os lábios, mesmo de longe, estremeciam, para babujá-las ao contato fogoso de uns beijos tontos. Tinha vontade de revolver aquele corpo ossudo, apertá-lo de encontro aos braços, machucá-lo de afagos e de arrochos e trincar-lhe as carnes enfebrecidas.

Caía depois em si. Revoltava-se, cheio de terror, considerando a aberração do seu instinto. E empalidecia, vendo que ali, no silêncio gélido daquele quarto de moribunda, ele, que velava os últimos momentos de vida de sua própria irmã, o era primeiro, o único, a profanar aquela alcova, sempre honesta e sempre virgem, anhelando, no capricho rebelde dos seus desejos impuros a mesma que em criança bebera com ele o leite de um mesmo seio. Aquilo doía-lhe por dentro, espezinhava-lhe o sentimento de padre virtuoso, trespassando-o de vergonha e de assombro. Por entre as dobras negras da batina caseira, apertava o crucifixo de ouro de encontro aos dedos frios, muito contrito e crente de um perdão dos seus pecados.

E rezava. Mas o seu espírito doentio desprendia-se do ideal da prece, para voar bem longe, pelas alturas voluptuosas de um mundo quente de lascívia, fraquejando sempre. Afastava, repelia com fúria o pensamento monstruoso que lhe emporcalhava a alma, assanhando-lhe o sangue, entorpecendo-lhe a ideia. Em vão, tudo em vão. A sombra tentadora do Pecado lá vinha, cheia de encantos e de gozo, encher-lhe de novo o cérebro de anseios carnais e torpes, incendiados de bestialidade.

E, sentado junto ao leito, em pensamento procurava pelas dobras dos lençóis nevados as formas emagrecidas do corpo da irmã. Depois tremia, cheio de pudor e de medo, horrorizado de si mesmo, com nojo do seu próprio capricho.

E via naquilo as asas lúridas do Diabo, ruflando pela sua alma enfraquecida, para arrastá-la sem piedade às labaredas ardentes das fogueiras do Inferno. Mas ao mesmo tempo recordava-se de que tinha visto algures modelos esquisitos de uma anormalidade de instinto chamada zoofilia, em que homens degenerados preferiam o tom lúgubre de um quarto mortuário, forrado de preto, tochas acesas, para que ao lado das apaixonadas se acendesse nos seus peitos o ardor da sensualidade. Lembrava-se de que em Charcote Magnan lera que, desde criança, certo indivíduo se apaixonara por uma touca do dormir de uma velha, e todas as vezes era necessário invocar a imagem detestável da sua primeira tentação, para que ao lado da esposa sentisse o verdadeiro amor que o fizera casar. E vinha-lhe a certeza quase completa de que o seu mal era o efeito da degenerescência adiantada do seu temperamento libidinoso.

E insensível recordava-se ligeiramente de como essa enfermidade cruenta viera anichar-se nas cogitações do seu cérebro, arrancando delas tudo que de bom e de santo a religião e a sociedade lhe haviam dado. Como um relâmpago, tudo lhe chegava à memória. Era ainda estudante do Seminário. Uma noite, fora de horas, o reitor viera ao dormitório acordá-lo, ordenando-lhe que o acompanhasse.

E saíram. A cidade dormia, preguiçosa e muda, o sono pesado do quem moureja ao sol.

O luar, rolando de cima, embranquecia o infinito de uma claridade alvíssima. As ruas estiravam-se tranquilas na imobilidade esquisita das serpentes que dormem. Lampiões piscavam ligeiramente, como se cochilassem. Ao longe, em serenata, trovadores modulavam brandamente uma canção tristonha, aveludada e nostálgica, que toava a princípio como o farfalho misterioso dos ciprestes e subia, subia, num trinado vibrante de sabiá choroso, para perder-se depois ao sopro da ventania, plácida, serena, doce, como o último arrulho de pomba que morre. Além, mais ao longe ainda, uma flauta suspirava à lua.

Embrulhado na capa negra de seminarista, ia procurando recordar-se do sonho que horas atrás tivera. Rezava a Ave-Maria na capela do Seminário. Do altar-mor um anjo surgiu, espanando as asas brancas, em semi-círculos, pelo teto. Depois veio descendo aos poucos, em giros suaves, espada luzente em punho e a túnica de neve flamulando nos ares. Pisou no chão, das mãos tomou-lhe o Breviário aberto e sumiu-se.

Ele ficou sozinho, muito espantado, a procurar o livro. Revolveu os altares, desarrumou os castiçais e as toalhas, julgando encontrá-lo.

Os círios esmoreciam timidamente, apagando-se. Um só ficou aceso. A luz cresceu enfumaçada e dilatou-se pelo ambiente, em glóbulos de fogo. Um deles giro girou pelos altares e caiu no solo, explodindo. O Raphael saltou das chamas, prendendo-o pela batina. A túnica cor de jaspe tinha manchas rubras de sangue desmaiado e nas pontas longas das asas brancas duas penas vermelhas agitavam-se. Arrancou o Breviário entre as pregas cetinosas do manto e sacudiu-o no chão. O livro distendeu-se repentinamente pelo infinito afora, até perto das nuvens, e uma paisagem olímpica desenrolou-se por cima da capa. Era uma planície lindíssima, muito alta, cheia de flores e de pérolas, pedregulhada de rubis, terminando por um descortinamento de nuvens, onde se via entre blocos de espuma o Padre-Eterno, de fronte enrugada e barbas longas, ao lado do Cristo, e o Espírito Santo em cima, em forma de pomba, ruflando as asas.

― O Céu! Sigamos! Disse-lhe, apontando o fim do planalto.

E subiram.

A aurora vinha pelo infinito desabrochando as pálpebras de rosa. Entre os rubis luzentes, flores se despregavam das hastes, esteirando de pétalas o caminho macio. Chácaras pitorescas, encobertas de rosas, surgiam de quando em quando. Por entre as folhas, aves pipilavam em festival ao dia. Rolas, em bandos, pelos galhos, arrulhavam aos beijos.

E foram subindo.

Garças, muito juntinhas, uniam os pescoços compridos em carícias amorosas. Cisnes, nos lagos lisos aos pares, deslizavam, beijocando-se. De uma árvore enflorada, urna serpente estendeu-lhes, nos dentes, um fruto vermelho.

— Come-o! Murmurou-lhe em segredo o arcanjo.

— Que é! Interrogou, corando, aconchegado ao seio do companheiro.

— Crescei e multiplicai-vos! Respondeu sedutoramente. E, apanhando o fruto dos lábios da serpente, trincou um pedaço.

 — Agora come o resto!

Ele, corado, mastigou depressa.

E subiram, subiram muito.

Mais adiante um Santo Izidoro velho, de foice em punho, revolvia a terra, plantando couves. Reverente, correu contrito a beijar a túnica do lavrador divino.

— Se me beijas, mato-te! Rugiu-lhe o santo, de foice erguida.

Recuou. O anjo atravessou-se-lhe na frente, desafiando o velho, com a espada em fogo. E houve tilintar de ferros, de duelo em meio. Finalmente, o Raphael rolou por terra. Santo Izidoro, na cauda rubra da asa esquerda, vibrou lhe a foice. Uma explosão de chamas lambeu a túnica do querubim, e as vestes rolaram pela areia, crepitando incendiadas. O santo desapareceu.

— Quem és? Interrogou medroso, recuando um passo.

O arcanjo, nu, completamente nu, sorriu-lhe tentador:

— Sou a carne, vem!

E estendeu-lhe os bruços, em forma de cruz, mostrando os pomos tumescentes, brancos, estremecendo nas carnes rijas.

— Vem!

Ele, absorto, o olhar vidrado, estacou, seduzido. Aqueles olhos bíblicos, satânicos, reluzindo pecadoramente nas pálpebras alvíssimas; a cabeleira loira, de um loiro imaculado e diabólico, caída em rolos pela espádua ebúrnea; os seios turgidos, inebriantes, deliciosos, tentadores, sacudindo-se nervosamente, o torneado feminino dos quadris brunidos desnorteavam-lhe a razão, afogueando-o de desejos.

E caiu em cima, tonto, bêbedo, aos beijos, e às dentadas.

— Ai, que me feriste!...

E a voz da Carne tinha uma queixa de música, de amor e de beijos.

Olhou. Ela desfalecia. Um fiozinho de sangue descia pelo pescoço pálido, manchando os seios.

— Mataste-me! Estou morta! E as faces afundavam-se, os olhos amorteciam-se e todo o corpo emagreceu aos poucos.

No alto da planície chamas vermelhas enrolavam-se nas nuvens incendiadas. Pela areia os rubis explodiam, sacudindo faíscas. Do céu aberto mangas escarlates, em cataratas, rojavam para baixo. Tudo foi ficando mole, líquido, frio, como se uma montanha de gelo se derretesse. Sentiu-se afundar vertiginosamente, julgando cair do alto de algum despenhadeiro. E achou-se em pleno mar de sangue, onde o frio parecia quebrar-lhe os ossos. Nadou. A correnteza atirara-o para longe. Alguma coisa boiava à superfície crespa das águas. Esticara o braço e prendera. Era uma mulher desfalecida. E nadou com mais fúria, seguro às roupas da naufraga. Chegaram a uma praia. Hirta, gelada, inânime, a mulher permanecia. Soprou-a com beijos. Ela, abrindo os olhos amortecidos, fitou-o. Reconhecera-a. Era a Carne. As faces, agora muito fundas, tinham urna palidez de morta; o colo, descarnado, ossudo, ofegava de cansaço e no olhar doentio uma centelha de gozo rebrilhava ardente. E olharam-se, olharam-se vivamente, a princípio como dois inimigos que se encontram, depois foram-se chegando um para o outro, como que atraídos numa mesma corrente de desejo até se unirem braço a braço, lábio a lábio, peito a peito, num beijo agudo, repassado de luxúria.

E, quando sentia os frêmitos deliciosos do seu corpo ao contato daquela carne estranha, o reitor tocou-lhe na cama e ele de um salto pôs-se de pé, pronto para seguir.

Ao lado do mestre, na recordação completa daquele sonho esquisito, vinha-lhe vontade de ver-se de novo estirado na cama, tragando febril e doido a ambrosia daquele beijo voluptuoso e bom.

E no meio da rua, ouvindo a voz plangente dos trovadores ao longe, sentiu-se arrependido de ter até àquele momento passado a vida enclausurada, curvado sobre os livros, entre as paredes branquicentas do Seminário. Teve inveja da vida libertina dos homens que cantavam em serenata, ao sopro lento da ventania, aquela canção melancólica, morna de soluços e quente de saudades. Idealizou remar com eles o escaler, e água abaixo, enquanto a lua lá por cima deslizasse prateada e serena, cantando alguma música magoada ou alegre, conforme a voz que lhe ditasse a alma.

E quis ter a liberdade dos vagabundos, para percorrer de princípio a fim aquelas ruas extensas, que se deitavam ali descansadas e dormentes, e, depois de estropiado por completo, cair nos braços de alguma mulher, prostituta embora, que o esperasse febricitante de amor, sujeitando-se aos caprichos doidos da sua imaginação desgraçada.

Acompanhado do reitor saiu da cidade, entrando num caminho desconhecido. Chegaram a uma chácara. Cachorros latiram. Alguém abriu a cancela. Num quarto fechado uma moribunda gemia. Entraram.

Ele recuou. Aquele mesmo abandono de vestes, aquela mesma flacidez de corpo, aquele cheiro doentio de enferma, assemelhavam-se aos da mulher que amava na fantasia do sonho. E o seu cérebro em desequilíbrio começou a trabalhar maquinalmente, impudicamente, de forma que, no momento em que o reitor o mandava sair do quarto, para confessar a doente, já ele tinha visto o mesmo lábio que cobrira de beijos, o mesmo seio que mordera, a mesma carne que gozara no estonteamento fantasmagórico do pesadelo.

A paz angélica do seu coração de católico fervente fugiu para sempre. De momento a momento surgia lhe na imaginação o retrato esquelético da Carne agonizante. E todos os dias ajoelhado aos pés do altar, no arrebatamento sublime da sua fé religiosa, erguia alucinado a oração palpitante de crença, que o coração lhe ditava, pedindo ao Cristo que ali se erguia ensanguentado e morto um consolo para a sua alma pecadora e desonesta.

Na cela sombria de seminarista, de joelho em terra, o Breviário aberto, noites e noites passava em penitências longas, jejuando e martirizando o corpo. Muitas vezes, nessa posição penitente, estrebuchava pelo chão, refestelado de luxúria, idealizando a visão do seu primeiro amor. E desde aquele tempo, sempre que se via em frente de qualquer enferma, subiam-lhe à cabeça frêmitos implacáveis de gozá-la impiedosamente, bestialmente.

E agora, em frente do corpo da sua própria irmã, sentia-se de novo aniquilado como antes, sem ter uma única parcela de força para sacudir para longe o pensamento mau que lhe roía a consciência, embrutecendo o instinto.

Era impossível que não fosse um degenerado!

Mas, ao mesmo tempo que considerava tudo isto, o seu espírito, educado nas concepções dos dogmas católicos, vacilava, vendo no todo da anormalidade do seu instinto a imagem vermelha do Diabo, governando traidoramente os domínios da sua razão. E, quanto mais o tempo se escoava, mais o sofrimento recrudescia, domando-lhe o juízo, humilhando-o por completo. Só via no corpo da irmã que ali se estendia, trêmulo de febre, traças latejantes da figura enferma do sonho, que lhe vestira o pensamento de uma moléstia estranha, encarcerando-lhe a alma, tão angélica e tão santa, na espelunca lívida do seu Pecado.

E sentia vontade de avançar para ela, gozá-la febricitante, rude, aspirando-lhe o cheiro doentio dos lábios quentes e apertar-lhe o corpo cadavérico, num abraço de serpente, luxurioso, longo... Espantava-se, coberto de pejo, pálido, de terror, pela idealização que lhe incendiava o cérebro. A sua irmã!... Virgem mãe, que horror!

— Tende piedade, tende piedade!...

O pensamento maldito fugia por um instante, mas depois voltava, mais impulsivo e mais impuro.

Zila gemeu.

E ele ouviu naquele gemido a voz magoada do arcanjo, quando nos seus braços, as faces fundas, os olhos mortos, desfalecera. E, medroso e trêmulo, apertou de encontro ao peito o Breviário, levando-o aos lábios, como se encontrasse na cruz dourada que se desenhava na capa do livro o contraveneno santo para a tortura intérmina que o abrasava por dentro. Rezava. Rezava, na esperança de que a oração subisse nas asas ideais da crença até ás barras do infinito, e lá molhasse os pés de Cristo, pedindo para a sua alma prostituída o perdão das almas santas.

Ele, o padre bondoso, que no Seminário fora sempre o modelo dos companheiros, tendo nos lábios o consolo para os desgraçados, o perdão para os criminosos, o sacerdote de vinte e oito anos, que sonhara há muito repelir os ímpetos sensuais da mocidade até ao último quartel da vida, desejar agora o corpo de sua própria irmã!...

— Tende piedade, Virgem Mãe, tende piedade!...

Quantas vezes, nas lucubrações dos seus sonhos de católico, não lhe viera à ideia o anhelo de um dia cheio de luz e de pureza, em revoadas de anjos, ao céu subir sereno, como um santo da religião! E via agora todos esses castelos, há tanto construídos, desmoronarem-se como o carvalho secular que se carboniza ao primeiro raio que o fere.

E rezava. Mas o fervor da prece resumia-se no balbucio dos lábios, porque o seu espírito insistente, sequioso, pairava no corpo da irmã, querendo prendê-lo e de um trago gozá-lo... Procurava render o pensamento, mas os olhos pregavam-se no leito, tentando desvendar da brancura dos lençóis as formas da virgem. Era a imagem do sonho, a doente da noite da confissão, que se acentuava traço a traço, linha a linha, nos contornos de Zila. E os seus olhos pregavam-se cada vez mais no leito. A cabeça escaldava, como se alguma coisa lhe fervesse por dentro; um suor gelado molhava-lhe a testa e todo ele tiritava, como se estivesse com febre. Cerrava os dentes; a língua ceceava.

No telhado o relâmpago luzia pela claraboia. A candeia de azeite, perto do santuário, desmaiava palidamente, querendo apagar-se. Longínquo, muito longínquo, o trovão gaguejava, rouco, quase imperceptível.

E ele ouvia e sentia tudo aquilo.

Os sapos na lagoa pareciam lhe o coro dos Diabos, que em festa vinham trazer-lhe a palma do Pecado. O grilo, por entre as ripas, trilava agudo, como a flauta do Inferno, que lhe festejava o Crime.

Atrás, no quarto contíguo, alguém ressonava. E ele escutava. Era a sua mãe, a pobre paralítica, que ali dormia, estafada da velar. E pensou muito naquela velha bondosa, que mesmo dormindo parecia vigiar a vida quase extinta de uma filha desditosa e a desgraça eterna de um filho que se perdia. E viu, na barafunda incessante das suas ideias, o seu instinto, a religião e até a própria sociedade, que ele julgava depravada, surgirem ferozes como carrascos, para punirem o incesto que ele entabolava na imaginação. Depois olhou para o altar. Li estava o Cristo, silencioso, triste, os braços estirados na cruz, ensanguentado, nu, como se se despisse para cobrir a humanidade com as suas roupas de Misericórdia. E orou, orou fervente, apertando mais ao peito o livro de rezas. Mas viu-se abandonado, só, num desespero de naufrago, que sacode, sem ser visto, o farrapo branco, da prata desconhecida, para o barco que passa ao longe.

Zila mexeu-se na cama. Os braços magros caíram esquecidos para os lados; a cabeça pendeu de banda, abandonando os travesseiros e o lençol de linho, repuxado pelo tremor do corpo, descortinou-lhe um pedaço cadavérico de colo virgem.

Ele via agora, sem diferença alguma, no abandono exânime do corpo, a figura lasciva da mulher da sua primeira culpa. E desejou prendê-la entre os braços e, bêbedo de gozo, apertá-la, apertá-la muito, nervosamente, num frenesi de fera em cio.

Zila remexeu-se de novo. O lençol caído desvendou-lhe por completo a saliência mórbida dos seios de tuberculosa; a cabeça quedou-se de todo no colchão macio e os braços tremeram, esticaram-se e caíram abertos, hirtos, mortos...

Ele estremeceu. E viu de repente a imagem do anjo, os braços estendidos, a cabeleira solta, convidando-o:

— Sou a Carne, vem!

E foi-se chegando, vagaroso, os olhos esbrugados, gélido, doído... E rolou pelo leito, rilhando, rindo...

A CEGA

À Francisco Lisboa

Na palhoça tosca, junto ao fogão sem brasas, ela, o casaco despedaçado encobrindo-lhe os ombros macilentos de velha magra, alisava ternamente, com os dedos, os cabelos da netinha.

Nem um pedaço de carne nesse dia em casa! O filho, o Raimundo, logo bem cedo, espingarda ao ombro, pelo mato a dentro, lá fora em busca do almoço. E até àquela hora, meio dia em ponto, nada de chegar!

E ela, abrindo às vezes a boca desdentada, num bocejo de calor e preguiça, idealizava o filho de volta da caça, cotia dependurada no cano da espingarda, muito apressado para chegar a casa.

E a criancinha, com o pescoço deitado nas suas pernas, faminta, a barriga funda, os olhos implorantes, passando-lhe o bracinho sujo pelo ventre, espojava-se-lhe no colo, pedindo de comer.

Ela, alisando-lhe os cabelos, acomodava-a com ternura:

— Espera papai, que ele já vem! Já viu?!...

E pelo seu rosto de octogenária, enrugado, bambo, uma tristeza resignada passava, enchendo-lhe d’água os olhos cristalinos de cega. Ah, também sentia fome! Noutros tempos, lá no casebre antigo dos sertões cearenses, na encosta das serras altas, a sua vida correra sempre mansa, sempre doce, sempre fácil.

Hoje, distante do berço, longe do lugar querido onde nascera, tudo era o contraste doloroso de uma felicidade gozada com carinho, sorvida com estima, na serenidade mística da existência venturosa de mãe fecunda, desvelada e boa.

Os dias passava-os antes na lida confortável da sua casinha simples, na quebrada dos montes, criando os filhos pequenos, aconselhando os mais velhos, cuidando das criações do quintalzinho sertanejo e das colheitas fartas, que todos os anos lhe atulhavam os jiraus de talo. Nesse tempo, tudo bom! Bem cedo, logo ao primeiro albor da aurora, os filhos lá partiam de foice ao ombro, facão cortante cingido à cinta, em caminho da roça, a cuidar das plantações.

E em agosto, o mês da abundância e da colheita, cofos de algodão e mandioca entravam-lhe pela porta a dentro, atopetando-lhe o paiol. E no tempo da farinhada, ao redor do forno limpo, de cobre areado, a família toda reunida numa alegria feliz, uns a mover a roda, esfarelando a mandioca, outros de pá na mão a mexer a massa perfumada e outros ainda junto à fogueira ardente, preparando beijus e bolos. Quando, entre folhas novas, a farinha enchia os sambarás de palha, os filhos partiam com tudo aquilo para vender ao negociante mais próximo. Então que fartura em casa! Latas de manteiga, sacos de assacar, vestidos, chalés, tudo lhe traziam.

Mas depois, num ano de seca, de uma seca tão terrível que assolou a província inteira, toda a abastança, toda a fartura da sua vivenda sombria se transformou em miséria. E foi preciso, com a família inteira, abandonar a morada tranquila na encosta da serra, à procura de um lugar mais próspero para não morrer de fome. E que viajem longa, através dos campos desolados e caminhos híspidos, selvas murchas, sem uma folha verde ao menos! Dias e dias, léguas e léguas andara por aqueles ermos pedregulhentos, sem uma gota d’água nas grotas e riachos, sem um fruto pendido das árvores esqueléticas, padecendo sede, padecendo fome e dormindo ao relento, à beira das estradas. Os filhos, embora robustos, sem nada no estômago, foram-se sentindo fracos, desanimados. O mais moço, de dezessete anos, logo ao primeiro embate da miséria, no meio da selva, à luz picante de um sol esbraseado, morrera tremendo, tolhido de febre.

Somente o Raimundo, já casado, com a filha doente e a mulher já prestes a morrer, era o mais forte, o mais corajoso. E assim chegaram pela primeira vez à Fortaleza, cobertos de miséria, famintos, esfarrapados, implorando, de rua em rua, de casa em casa, a misericórdia dos bons. Desde esse tempo nada mais vira. A catarata, que há muitos anos começara a embaciar-lhe a vista, quedara-lhe de todo o olhar. Lembrava-se somente de que daí a meses, sem nada ver, lá estava ao lado do Raimundo e da nora, entre gente que praguejava, numa embarcação que parecia enorme e que balanceou muito, muito, durante dias, durante noites, em cima de alguma coisa líquida, açoitada por um vento muito frio, gelado, bem. Os outros filhos ficaram lá mesmo na Fortaleza e um seguiu para o Amazonas, a trabalhar na borracha.

E cinco dias longos, ela, naquele navio cabriolante, infecto, passara, com o primogênito, vomitando sempre, sem nada comer, sem conhecer ninguém. À segunda noite de viajem o Raimundo viera dizer-lhe que a esposa agonizava e que o médico a tinha desenganado. Depois soubera que a nora morrera e que a meteram num soco de lona muito comprido, com pesos dependurados, e que a tinham atirado ao mar. Chegando ao Maranhão, o Raimundo, esperto como antes, carregara-a pelo sertão a dentro, procurando melhorar de vida.

E agora ali estava; cega, reumática, doente, no centro daquela mata solitária, criando a netinha de ano e meio. A existência prosseguia ainda cheia de revezes, de dissabores e desgraças, afligindo-lhe mais o coração machucado de saudades. Novato naquele lugar desconhecido, o filho não tinha podido ainda restaurar a sorte de outrora, tão bondosa e fácil. A roça, que havia começado naqueles poucos meses que ali chegara, não dava ainda para o sustento diário, de forma que muitas vezes, naquela palhoça, tristes dias passavam, sem nada comer.

E os seus olhos de cega enchiam-se d’água, quando lhe vinha à lembrança a felicidade risonha de outros tempos, a vida pacata do lugar ditoso onde vivera até à velhice. E a netinha, trepando-lhe pelos ombros, enlaçou-lhe os bracinhos no pescoço descarnado, atormentando-a:

— Qué cumé, ovo. Tô fom...

Ela, agarrando-a pela cintura, embalava-a nos braços, fazendo-lhe cócegas pelos sovacos, procurando distraí-la. A criança ria por um instante, deitando-se no seu colo e depois, mais impertinenta, com a voz tremida de quem tem fome, repetia implorando:

— Dá cumê!

Ela sorria-lhe com afagos:

— Espera, já dou. Papai já vem, tá quase chegando.

Que ia dar à criança? Nem um caldo, nem uma fruta, para enganá-la.

Condoía-se, atormentava-se. O Raimundo podia demorar-se muito, lá pelos confins da mata, demorar-se até de tarde e a nota ficaria padecendo fome até que ele chegasse. Além disso poderia vir de mãos vazias, sem nada ter encontrado, nem uma ave ao menos, naquele matagal cerrado, para a comida daquele dia. E a menina, depois de uma manhã passada sem nada no estômago, tinha de dormir, chorosa e desesperada.

Mas o Raimundo?! O Raimundo forçosamente já vinha, caminho de casa, caça aos ombros, pressuroso pelo almoço.

A pequenina chorava.

Oh! Mas que lhe ia dar?! E, com os olhos também molhados, ficava muda, pensando na sua miséria. Agarrando-lhe os cabelos, a neta implorava:

— Cumê, ovo!

Ah, ainda tinha uns restos de farinha numa cuia lá no quarto! Oh, faria um mingau, para que ela o bebesse!

E muito alegre, sentando a criança, foi, braços abertos, fantástica, um tanto ligeira, tateando pelas paredes de palha.

Voltou depois, trazendo a cuia. Foi ao fogão, palpou com os dedos a cinza, não encontrando um só carvão aceso. Era preciso fazer fogo. E, despejando a farinha numa panela de barro, seguiu para o ferreiro, trazendo depois um pedaço comprido de madeira. Precisava de rachá-la. Com os pés procurou pelo chão o machado. E andou a casa inteira de cócoras, a mão incerta, roçando pelo solo.

A pequena, a vida, curiosa, numa bisbilhotice de criança, veio engatinhando sentar-se juntinho do toro de lenha.

De volta, a velha, sem percebê-la, colocando o pé direito na extremidade mais próxima da madeira, suspendeu o machado e descarregou.

Um grito de dor partiu somente e o chão coalhou-se de sangue.

Tinha despedaçado a cabeça da netinha.

E, louca e desesperada e bruta, levantou impetuosamente o cadáver sangrento, apertou-o alucinada de encontro ao peito e partiu de carreira, a tropeçar pelo mato, gritando pelo Raimundo.

CASTELOS DE CARTAS

À F. Lisboa

Diabo! Aquele carro não chegaria? Ora que maçada!...

E ela, em frente ao espelho marchetado do toucador moderno, calçava as luvas cor de palha, agastada pela demora.

Aquele carro!... Às dez horas deveria ter parado à porta.

Olhava para o relógio de bronze arabescado, sobre a tampa de mármore do consolo polido. Dez e um quarto, irra! A que horas chegaria ao baile?!...

E, tomando entre os dedos calçados a pluma de arminho, mergulhou-a no púcaro de vidro verde, salpicando o rostinho alvíssimo de pó de arroz. Abriu depois o quarto e, junto ao bilheiro, meio curvada, para que não molhasse o vestido, bebeu ligeiramente dois goles de água, limpando os lábios finos com a ponta do lenço de seda creme. O pai, de casaca, sentado à cabeceira da mesa de jantar, com o lenço branco sobre o pescoço roseado, chamou-a:

— Chega aqui. O vestido ficou bom; está bonito...

Ela, lisonjeada, deu faceiramente uma voltinha no corpo com o pé esquerdo:

— A que horas vem o carro, papai?

— Espera; não deve tardar. Já está na hora. Espera mais um pouquinho.

Com um gestosinho de impaciência, sentou-se a um lado da mesa e, abrindo um jornal, começou a ler silenciosamente. As letras sumiam-lhe a vista. Vinham-lhe ao pensamento o torvelinho festivo do baile, a luz faiscante dos candelabros de vidro, clareando as salas reluzentes de espelhos, inundadas de luz. Via os salões encortinados, de um luxo aparatoso e romântico, cheios de gente; as moças, ataviadas nos vestuários riquíssimos, cintilando de joias, reacendendo a flores. E ficava absorta, os olhos soltos pela varanda, a imaginação distante. Aquele vestido havia de ser o primeiro da festa! Oh, como as outras moças não o invejariam!...

E sentia um friozinho de alegria percorrer-lhe o corpo. Fermentava-a uma vontade impaciente de se achar entre o rumor da sala, sentada no sofá da frente, e os rapazes e as moças, todo o mundo, enfim, a olhá-la, a olhá-la muito, elogiando-lhe o vestido. Duvidava que lá houvesse um tão bonito, tão caro e tão correto. As Silvas iam todas de seda e papos de pelúcia. Mas qual! Não chegariam perto dela! Já conhecia o vestido da Ferreirinha. Custara muito, fora feito no Rio, na modista mais afamada, mas não se comparava com o seu. Aquele carro, aquele carro!

Levantou-se, passeando pela varanda. Que demora! Quando iria chegar ao baile?! Entre a nuvem de gaze do casaco transparente tirou o relógiozinho de ouro, olhando-o ligeiramente. Dez e vinte! Diabo! Mas ainda havia tempo, muito tempo! Se chegasse às onze, chegaria bem.

Idealizava a casa do baile cheia, completamente cheia, quando chegasse. Xi! Todos os olhares em cima dela, seduzidos, magnetizados. E correu até ao quarto, amaciando novamente o rostinho branco com a pluma de pé de arroz.

Em pé, em frente do espelho grande do toucador moderno, reparava-se muito, olhando apaixonada para o cristal luzido, onde o seu busto angélico se desenhava nitidamente. Realmente, aquele vestido, era um primor!

E mirava-se bem. Pelas espáduas, frocados de gaze subiam artística e suavemente, enchendo de ondas empatufadas o pescoço de neve, descendo pela saliência harmônica dos seios pequeninos em fofos revoltos. Como pedaços de espuma, que escorressem do peito abaixo, duas tiras alvíssimas de arminho caíam dos ombros, sumindo-se às vezes no tufado levemente róseo das rendas dos seios, descaindo depois pela saia transparente e debruando-a no círculo da fimbria. As mangas, apertadinhas nos cotovelos, cresciam, afofando-se largamente para cima, em pregas sinuosas, entrelaçadas de fitas estreitinhas e leves. No penteado dos cabelos loiros, um diadema, incrustado de pérolas, tremeluzia e nos braços, mais acima das luvas cor de palha, as pulseiras bruxuleavam. Era um primor, aquele vestido!

E ficava imóvel, admirando o esplendor do seu corpo, como que envolto em nuvens, afogado nas espumas tênues da gaze finíssima.

Aquele carro!

Um rumor longínquo de rodas sobre pedras chegava de muito longe.

Correu à sacada. O céu estrelejado brilhava, muito vivo. Os lampiões tremiam a luz amarelenta. Uma mulher defronte, conchegada à janela, cochichava com a vizinha. O barbeiro, sentado à porta da oficina, assobiava alguma coisa. Lá no canto um rapaz, vestido de preto, com o chapéu de feltro mole calcado na cabeça, conversava com uma mulher de branco.

O rodar do carro rumorejou mais longe ainda. Drogas!

E foi sentar-se na cadeira de embalo.

Mas seria a última a chegar ao baile? Ao mesmo tempo fez um gesto de ufania. Se fosse a derradeira, talvez se tornasse mais saliente. Era isso mesmo, era melhor chegar tarde!

E idealizou a porta da festa, cheia, muito cheia, de gente, que espiava o baile, espalhada pelo largo, ouvindo a ouverture, que lá dentro, na sala, se tocava. Quando o carro parasse, e ela ao lado do pai saltasse, um murmúrio de elogio correria de boca em boca. E ele iria subindo as escadas, de braço dado com algum moço que viesse recebê-la, aos olhos curiosos da onda de rapazes que se apinhava no terraço do jardim. Quando chegasse lá acima, que coisa, meu Deus! As moças todas pespegavam nela os olhos, num ressentimento de inveja íntima, e, como não encontrassem um só defeito no vestido ficariam pensando em trajar-se daquela forma na primeira ocasião. E a Teixeirinha? A Teixeirinha! Ela, que tinha a fama da mais elegante, da mais da moda, como não ficaria a roer-se da raiva. Bem feito! Isto era para que ela não andasse a gabar-se do seu vestido feito no Rio, na casa da primeira modista. Bem feito! Depois, quando a sinfonia terminasse e da quadrilha a orquestra rompesse o sinal, a onda de rapazes a tirá-la para dançar! Xi!... Haviam de ver que o primeiro seria o João Pereira...

E via-o de casaca, o sapato de verniz brilhando, claque na mão esquerda, um tanto curvado, perguntando-lhe “se lhe dava a honra daquela contradança”. Depois era o Altino, todo espigado, todo cortês; depois o Prudencio com um riso amável sempre nos lábios e logo após o Costa Ferreira, o Rocha, o Carlinhos Sá, o Zeca. Não podia, gente, ― já seu Pereira a tinha tirado, não podia! Então lá saltava o Altino, concertando as luvas, convidando-a para a primeira schottisch. O Rocha, logo em cima, pedir-lhe-ia a primeira valsa. E era um nunca acabar. Mas a preferência era para o José Pereira.

E recordava-se do baile em que o rapaz declarara a paixão que lhe tinha. Era já na derradeira valsa. Ele levava-a ao terraço e lá, debruçado na sacada de ferro, foi-lhe enchendo vagarosamente, numa eloquência apaixonada, os ouvidos de palavras e a alma de ilusões. Depois, quando tudo acabado, apertara-lhe fortemente a mão em despedida e fora descendo a escada, fitando-a de vez em quando com o olhar abrasado de quem ama com veemência. Mas ela agora far-se-ia esquiva. Todo o mundo afirmava que o José Pereira era inconstante. Namorava pelo amor de conquista e ela não era nenhuma criança: queria ser amada. E aquele vestido principesco fa-lo-ia ficar caído: — Então era só ferrá-lo, e para isso precisava de escolher com quem dançasse. Seria o Prudencio. Não, o Prudencio não. Era também muito volúvel. Já uma vez lhe fizera uma declaração no princípio de um baile e no fim estava de namoro com a Ferreirinha. O Altino! Qual Altino! Todos os anos ficava noivo e nunca se casava com ninguém. Os melhores eram o Rocha ou o Calinhos.

Palmas soaram no corredor.

Foi ver. Era a Theodora – a engomadeira da casa, que estava com a filha doente. Mandou-a entrar.

E da cadeira de embalo ouvia a mulata velha, narrando ao pai a moléstia da filha. Ficou possessa. Era bem possível que ele corresse a casa da Theodora, para medicar a enferma. Já muitas vezes tinha feito daquilo: deixar de levá-la à missa, a passeio, para acudir a algum doente.

Diabo!

Rodas barulharam no princípio da rua.

Não era possível, lá vinha o carro! Até que enfim, até que enfim.

Um tremor de febre sacudiu-lhe o peito. As mãos gelaram-se debaixo das luvas. O coração palpitou depressa.

Lá vinha, lá vinha! Como a Ferreirinha iria ficar? O seu vestido era mais bonito, mais caro, mais vistoso!... Xi!... Era capaz de chorar!...

O carro rodava mais perto.

Uma excitação nervosa percorreu-lhe os membros. Andava acelerada pela sala, numa doidice de criança.

— Traze o tinteiro depressa, menina, gritou-lhe o pai.

Que coisa boa! Lá ia ele passar a receita, sem ir à casa da engomadeira, ― que coisa boa!

Apanhou ligeira o tinteiro da escrivaninha e saiu-se em disparada pelo quarto. A cauda do vestido embaraçou-lhe os pés.

Caiu.

Levantou-se como louca, pálida, gelada, rangendo os dentes. Uma palavra feia saiu-lhe dos lábios. E caiu de novo, despedaçando as roupas.

O carro tinha parado à porta.

O MORFÉTICO

A Fran Paxeco

Pirapemas, julho, 1901.

Zé Alvarenga veio-se chegando, a mão direita ao peito, a esquerda estendida, requebrando o corpo.

— Ora toque uma polica, sô Ruberto, isquente essa côsa, qui agente tombem non vai ficar parado.

— Uma polica, Ruberto, déxe eu dansá aqui co essa mulata, gritou o Luiz Pipira, pegando no braço da Vitalina.

— Ispera, gente! Sô Capivara inda non veio e eu tombem non vô tucá sósinho.

— Mas pur onde anda esse diabo? Interrogou o Paulo Jejú à Martinha do Theodoro.

— Eu é que sei da vida dele? Anda por aí co’os negoço dele.

A Marcelina arreliava-se. Não tinha vindo à festa para ficar sentada; se fosse para isso teria ficado em casa “drumindo seu sono deitada na rede”.

Também Capivara era um hornem sem “pulitica”, via que todos o estavam ali esperando e até dquela hora nada de brincadeira. Era capaz do galo cantar e a gente não dançar “um tiquinho”.

— É, deu agora pra queré niguciá o cavalo de sela qui ele cumprou do Anastaço e só anda agora cum isso, disse o Roberto.

— É, acrescentou o Paulo Jejú, nós, pobre, tem isso memo: quando tem uma côsinha mais mió, é só se gavá, qué logo butá fora, qué niguciá... Só curunê Rudrigo, lá na vila, non é capaz de queré vendê cavalo dele. Quando a gente fala in compra diz logo qui animá bão non se vende. Mas nós, pobre, nós, pobre, é uma disgracia...

— Eu memo, se fosse só Capivara, non vendia aquele cavalo. Aquilo é bão pur derradêro.

A Benta sorriu:

— E pra uma garupa! Parece uma rede, non abala nem um tiquinho. Istrudia eu fui nele lá pra Varge e paricia que ia drumindo.

O Guarda-fio, sungando a calça branca de brim gomado, levantou-se, espreguiçando-se:

— Isso inté faz a gente cuxilá. Há tanto tempo qui nos tivantemoda resa e nada de se dançá. Sô Capivara qué é qui a gente adóle. Agora eu cá menmo não sô de adòlos.

— Oh, xente! Irterveio a Martinha, inda é munto cedo. Ind’agora memo qui nos livantemo da reza. Inda nem si tirô as miassaba do lugá qui nós rezemo.

E, como a Vitalina lhe dissesse que também já estava aborrecida de esperar, levantou-se do banco, correu à porta da latada, gritando pelo Capivara.

Uma voz respondeu da outra banda do caminho.

— Afine a rebeca, sô Ruberto, qui o home já arrispundeu, avisou o Zé Alvarenga, afine a rebeca, qui eu hoje me arrebento. É a demora tumá dois gole da branca, isto tudo pega fogo. É cuntigo qui eu me dismancho, disse, abraçando a Marcelina.

— Cruz! Pra lá c’o’a sua dismanchação. Cumigo memo non quero dirritimento.

Ele, abraçando-a de novo, deu-lhe duas voltas pela latada:

— É cuntigo memo, minha cabôca, te aprepara. E repentinamente:

— Cadê a Juvita, gente?

Oh, era verdade, a Jovita! Onde estaria?

— Puraí c’o’assamento dela, segredou a Vitalina.

Concertando um ramo de jasmins sobre os cabelos lisos a Maria do Inocencio sentou-se ao lado da Benta, contando que a Jovita, desde que se levantara da reza, se sumira lá p’r’o lado da fonte, com um facho na mão, a ver se encontrava uma banda de brinco que lhe caíra, quando se banhava.

A Rita da Beirada atalhou-a, dizendo que a tinha encontrado perto da casa da “Thiadora”, onde ia concertar a saia, que se tinha rompido num prego da porta da cozinha. E como não havia de se romper, se ela era mesmo um foguete, não parava em parte alguma! Qual! Tinha visto muita gente assanhada, mas como aquela também já era demais. Parecia que a rapariga tinha fogo...

— Aquilo, sim, sinhô, sorriu o Zé Alvarenga, aquilo é que é mulata... E levou os dedos da mão direita nos lábios, estalando um beijo.

O Chico Forquilha, vindo há pouco do Piauí, não a tinha visto ainda, mas queria conhecê-la, porque, desde que pisara “naquele distrito”, fora ouvindo o nome da Jovita gabado por todo o mundo, como mulata de patente.

— É de patente mennio, só Chico, aquilo é qui é mulata, acredite. Éxpto: côsa bôa! E, como a Marcelina viesse passando, revirou o corpo maneiro, arqueando o tronco:

— Hoje nós nos disrnancha, minha cabôca...

— Comigo memo não, se arrume co’a Juvita, respondeu desdenhosa, sacudindo os quadris pojudos, tentadoramente.

— Oia essa feia!...

— Feia é seu avô torto. Mas eu nunca pidi a sua buniteza.

— Pois eu agora só danço co’a Juvita!

— Oia, meu bem, não me faz arrilia. Pur mim, você pode dançâ até c’o sujo. Não só sua muié, se eu fosse, sim, pudia lhe pruibi, mas non só...

— Isso é só inveje da outra.

— O quê? Inveje? Você n’é besta, só Zé. Marçalina Maria da Cunceção nunca teve inveje de pessoa arguma. Quem tivé suas riqueza é pra si, eu cá não perciso. E deu duas pancadas com a mão direita em cada face:

— Murré de fome é que eu non morro, co’ajuda de Deus. Inquanto eu tive esses braço ninguém me vê co’a barriga vazia.

— Não te zanga, minha cabôca, qui, quondo eu fô na vila, te compro um vistido.

E, muito faceiro, bateu-lhe nos ombros, enlaçando-a pela cintura.

Ela sorriu lisonjeada, desgarrando-se:

— Pra lá, sua peste! Isso é só dos dente pra fora.

— Sô Capivara! Gritou o Luiz Pipira. E virando-se para o Guarda-fio:

— Quá! Isso já tá é me aburricendo.

— É! Sô Capivara qué é qui a gente adóle. Daqui a póco eu amonto no cavalo e vô pra casa. Non vim na festa pra fica parado; se fosse pra isso, eu tinha ficado lá in casa, fumando minha diamba. Meu cavalo tá piado bem alí na capuêra do Jorge, non custa eu i pegá.

O Paulo Jejú, descalçando o sapato apertado, dissera que também não estava “pra demoraçãos”. Que o Capivara, se quisesse vir tocar, que “vinhesse” logo. Esse negócio de se fazer rogado era para mulher, homem não tinha disso. Ali, se ele tivesse a sua harmônica, mostraria como aquilo já tinha virado poeira. Mas a besta de Hortenço pediu-a emprestada, para tocar na festa da Atanasia e por lá a esbandalhou. Mas harmônica dele nunca mais emprestaria. Diabo duns “tucanos”, que nem instrumento tinham.

O Chico Forquilha, as pernas encruzadas, o cachimho no queixo, protestou também. Na terra dele não se dava daquilo. Quando se pegava, estava pegado, porque estava pegado mesmo. Não tinha cá histórias: era dançar até dizer já chega. Aquilo é que era terra, quando se pegava era para se ver.

E, com o cachimbo entro os dedos, levantou-se, debochando cenas da sua terra, em que de noite, nos sambas do natal, para um canto da latada, dois cabras, “onças no baião”, saltavam, dedilhando a viola.

Então a caboclinha tentadora ia-se chegando risonha, aos repiniques do instrumento, estalando os dedos no “chorado”. Aquilo, sim, valia a pena! Quando o povo so esquentava e o dono da casa era festeiro, aquilo não tinha fim: amanhecia-se, anoitecia-se pegado na dança. Ah, terra!

— Assim também é aqui, retorquiu o Paulo Jejú. Hoje é qui só Capivara istá cum massada. Aquilo é qui é cabra bão p’r'um baião. E se você quisé vê o qué é chorado deixe a Juvita vi.

— Apois, se ele non quisé tocá, pabulou o Forquilha, arraste a viola p’ra qui, q’eu amostro. Lá no meu sertão, eu non arréspeitava ninguém. O cabra véio qui se metesse p’ra meu lado, não tinha duas conversa, saía logo sobrando.

O Paulo Jejú, batendo-lhe nos ombros, provocou-o amigavelmente:

— Hoje é qui eu quero vê você c’o Capivara. Oia qui o cabra é turuna no disafio.

— Non tem nada, a desgracia do home é ismórecê.

O Capivara entrou nesse momento, conversando com o João Bezerra:

— Apois é isso, sô João, se quisé, o negoço tá féto. Vortea pôdra de sua muié.

— A pôdra non dô. Agora, se quisé a garrotinha maiada, diga, purque o negoço fica assentado.

— Isso non quero. Non sô home de duas palavra. Minha palavra é uma só. Dando a pôdra...

— Ora, só Capivara, entremeteu-se o Zé Alvarenga, aqui non é lugá de se niguciá cavalo. Nós lhe isperando há tanto tempo. Ande, qui nós já está cansado de lhe isperá. Aqui já todo mundo falô má de você.

— Cumo é qui você qué qui a gente toque, s’inda non veiu a arma do brinquedo?!

Oh, mas era verdade, ainda não tinham bebido! Isso era a primeira coisa que deviam ter feito Brinquedo sem cachaça era pior do que defunto sem choro. Que viesse logo, que viesse logo, que a gente queria se esquentar!

— É! Sem cachaça é qui não, repetiu o Capivara.

— lxe!... Essa gente só pensa in bebê, reprovou a Rita da Beirada.

— E antão?! Tu já viu côsa mió nesse mundo, retorquiu o Zé Alvarenga. Um góle de ristilo p’ra gente isquentá os bofe, é uma díliça. Quando se vem suado da roça, qui chega in casa e bebe um trago, ah, qui côsa bôa! Mais mió ainda é quondo a gente toma uma chuva no caminho e qui chega muiado, aí sim, p’resque aquilo desce e vai isquentando tudo lá pur dentro.

— Cadê o dono da casa! Perguntou o Luiz Pipira. Oh, só Farnande, traga a cana, qui nós inda non muiô a guéla.

E da porta do fundo um caboclo escuro, abraçando uma bacia de Flandres, cheia de aguardente, surgiu prazenteiro, com duas xícaras metidas no dedo mínimo da mão direita:

— Pronto, rapaziada, non vou s’imbebedá, disse arreando a bacia num dos bancos da latada. Lá dentro inda tem um garrafão, mas agora tombem non vou caí.

Todos os homens se abalaram, cercando-o.

— Voceis fique pur aí, que eu tenho qui fazê lá dentro.

Rizonho o Zé Alvarenga, enchendo uma xícara, ofereceu-a ao Capivara:

— Beba!

— Beba você prémeiro, só Zé.

— Non sinhô, quem bebe é você.

— É você, eu bebo ao dispois.

— Assim nem eu bebo, nem você.

O Capivara pegou na xícara, levantou-a acima dos lábios e versejou:

— Cachaça giribita

Fêta da cana torta

Quem bebe in demasia

Fala o qui non s’importa.

Era no tempo da Conceição.

Do teto verde da latada larga, de palha brava quatro candieiros de azeite pendiam, iluminando com uma luz amarelenta o solo liso de aterro novo. No fundo do avarandado da palhoça, entre arcos de murta e pindoba trançada, reflorindo de jasmins e boas-noites, o oratório tosco de cedro, encoberto por um lençol ramalhudo, brilhava ainda nos restos de duas velas acesas. Pelos bancos de carnaúba que cercavam o quadrado da latada, mulheres vestidas de chita e lenços bordados de versos amorosos sobre os ombros, conversavam intimamente umas com as outras, rescendendo a baunilha e a trevo, que lhes enfeitavam os cabelos crespos aromatizados de macassá. Os homens, pastinha aberta de banda, paletó de brim branco ou calças de angolinha, do lado oposto, as pernas cruzadas, fumando caximbo, palestravam. Em frente, do lado do rio, o mastro comprido, enfeitado de murtas, subia ostentosamente, tremulando a bandeira branca na grimpa esguia. Pelo terreiro areento e alvo, os arirís formosos sacudiam as palmas elegantes, abertas ao vento, sumindo-se em fileiras pelo caminho tortuoso, ao lado das luzes de azeite acesas em cascas duras do jenipapo verde. À esquerda, do lado de fora da cerca de mandacarú, as laranjeiras enfloradas atapetavam o chão, perfumando o ambiente. Em baixo o rio sussurrava brando pelas árvores caídas na margem, e lá em cima, o infinito limpo, polvilhado de estrelas, cintilava faiscando. De longe em longe uma estrela, cadente, num rastilho de luz, rasgava a atmosfera, sumindo-se em disparada.

— Agora vamos à polica, nós agora pode dança, lembrou o Luiz Pipira.

Zé Alvarenga, cuspindo ainda da aguardente que bebera, empurrou o Capivara:

— Tempera a viola e vamos à polica, purqué eu boje arrebento aqui e faço memo qui nem quêxada na roça.

— Você presque qui já tinha bibido ante dessa xicra; non tinha só Zé? Interrogou a Vitalina, maliciosamente.

— Quá, minha mulata, é purque hoje eu tô p’ra pandegá! E mudando de tom:

— Vamos à polica?

— Oh, xente! Só Pipira já non me tirô. Vá tirá a Marçalina.

— Mas cadê a Juvita? Até agora inda non veio. P’r’onde ele foi?

— Eu é qui sei da vida dela?! Você agora disque é carne cum unha lá, não?

— Histora! Quem foi qui te disse?

— Foi a Rumana. Ela me cuntô que istrudia, quando ela passó p’ra vila, você tava lá isparrado numa rede, s’imbalando.

O mulato chupou lisonjeado uma fumaça do cigarro:

— Tu memo non tá vendo qui eu non ia fase isso cum a mãe dela iá?

— O qui tem? Você só tava dêtado, non fazia má. E o qui tinha a mãe dela? Ela non é moça...

— Mas a gente sempre arrespêta.

— Quem que arrespêta, a Juvita? Qua! Ano passado, no tempo de Sant’Anna, eu passei pur lá e ela tava sentada no júeio de só Inofre e a mãe dela, assim mais arritirada, fazendo rede.

— Non fala da outra.

— Eu non tô falando má, tó dizendo a verdade. E o qui tem ela fazé isso? Ela é disimpidida, e rapariga nova.

— Agora isso é!

— É bunita. Tem quem lhe dê tudo.

— Assim cumo tu.

— Cuma eu? Cuma eu memo nâo! Eu, meu bem, se quisé trabaiu, non vô me fiá só in voceis. Voceis home non presta! Oia, istrudia, eu pidi um pá de chinela p’ra só Ruberto e inté hoje. É só disê qui o sapatêro inda non fez. Mintira, ele nem incumendô. Eu se quis cumprei. Só Furquia ontonte chegou lá in casa cuma pabulage, qui mi dava uma saia, mas quá! Non é cum dínhêro dele qué eu visto saia.

— Dêxa ’stá qui, quondo eu fô na vila, te trago uma.

— É! Você agora é só premetê. Vá dá p’ra Marçalina, qui você já disse qui dava. Eu memo non quero.

— Purquê, minha cabôca? Antão eu sô argum misarave?

— Cadê o ané qui você me premeteu o ano passado?

— Ora, foi purque o órive inda non fez. Pode preguntá p’ra só Pipira se ou non incomendei.

— Oia a polica! Gritavam.

O Capivara, sentado no banco, afinava a viola, enquanto o Roberto emendava a prima da rabeca, que se quebrara.

— Mas à Juvita non vem? Disse o Alvarenga penalizado.

— Sant’Antonho tem urna vela, se ela non vi, gracejou a Marcelina, que passava.

— Antão, já se sabe, nós dança essa.

— O quê?! Eu non só cado riquentado.

— Mas essa nós dança, minha mulata cherosa.

Neste momento a música rompera a polka. Houve um reboliço, um assanhamento de incêndio. Todos, impedidos pela cadência arrepiadados instrumentos, correram a tirar os pares. Paulo Jejú saltou do banco e atirou-se à Benta; a Maria do Inocencio saiu puxada pelo Guarda-fio; Luiz Pipira abraçou-se com a Vitalina; Chico Forquilha com a Rita da Beirada e Zé Alvarenga foi agarrando a Marcelina pela cintura, unindo-a ao peito, às vira-voltas pela latada.

— Isquenta, isquenta!

— Assim, rapaziada!

— Aí, só Guarda-fio!

— Viva os santo do festejo!

— Viva meu pá!

— Viva os dono da casa!

— Viva a bela sociadade!

O reboliço crescia; os pares aumentavam. Havia um arrasta-pés, assanhado, vivo. Luiz Pipira apertava de mais a Vitalina de encontro ao peito; a Marcelina, ofegando, derreara a cabeça cheirosa nos ombros do Alvarenga, que a beijava pela nuca, e o Paulo Jejú, tropeçando nos pés do par, rolou com ele, estrondando no chão.

— Alivanta, cabra véio.

— Non marrota a mulata!

— Quebra, gereba!

Outra voz tentou rimar:

— Quondo acabá, quero vê o qui tu quebra.

O entusiasmo recrudescia. Uma onda de poeira levantava-se no ar. Suava-se.

A música parou.

— Arripita, arripita!

— Ora, foi pôco!

— Agora é qui ou tava no bão!

— Mas a Juvita, gente?! lembrou o Zé Alvarenga. Quem sabe se ela não vortô p’ra casa?!

A Benta deu um muchôcho. Isso é que ela duvidava. Então a Jovila ia largar a festa, ela que era dançadeira, que dava a vida por um brinquedo?! Qual! Era mais fácil faltar chuva em janeiro...

— Você agora anda munto pur lá, non, só Zé? Inquiriu, troçando, a Rita da Beirada.

— Quá! Só passo pur lá, quondo vô p’ra vila. Esse povo é qui anda dizendo isso.

— É! Você pensa qui nós non sabe?!

Ia caindo tudo em tristeza. As mulheres levantavam-se a “pitar uma fumaça”, os homens espalhavam-se pelo terreiro, falando de roças.

O Chico Forquilha, ao lado do Guarda-fio, narrava uma briga que tivera em Amarante com um caboclo que lhe insultara a mãe e o Capivara, lá para o lado da cerca, dizendo sempre que a “sua palavra era uma só”, insistia com o João Bezerra, para que desse a “poldra de sua mulher” pelo negócio do cavalo. O Paulo Jejú, que se metia agora a namorar a filha mais velha do Fernandes, em pé, junto da moça, fazia graçolas desconsoladas. A Rita da Beirada pabulava-se para a Benta da festa que ia fazer pelo tempo de S. Sebastião. Daria panca. Este ano tivera uma colheita boa: apanhara trinta arrobas de algodão, vinte alqueires de arroz (fora o do gasto) e tinha ainda mandioca até para dar. Faria um “festarão”, com foguetes. Havia de ter foguetes, pelo menos uma dúzia. Estava com vontade de mandar buscar o padre à vila, para cantar a ladainha e dizer uma missa, mas isso tinha os seus “conformes”. O padre pedia muito caro e talvez não tivesse dinheiro. Galinhas no quintal eram quinze para o jantar, capões tinha cinco que já nem corriam de gordos e além disso três capados que eram um “marmo”. Por aquelas bandas não invejava as festas de ninguém, porque, quando as fazia, eram para se ver. Não era como muita gente, que armava uma latada e pronto! Estava aí uma festa. Qual! Quando dava as suas, trabalhava, trabalhava até fazê-las boas.

De repente tudo palpitou. Um cheiro ativo de baunilha rescendeu pelo ambiente empoeirado. Era a Jovita, que chegara à porta. Todos os rostos jubilaram.

— Oia a Juvita, gente! Gritou alegremente o Alvarenga.

Ela veio entrando afogueada, rebolindo levemente a saliência turgida dos quadris nutridos, desembaraçada, possessa:

— Ora me largue, qui eu já tô danada.

Que danação era essa? Que acontecera?

E todos se acercaram dela.

Formosa, no casaquinho rendilhado de setineta azul e a saia de barras encrespada de folhos, foi contando tudo. Quando acabara a reza, saíra a ver se encontrava a banda de brinco que perdera na fonte e depois fora a casa da Theodora concertar a saia que tinha rompido.

— Oie, dizia, mostrando a fimbria rasgada do vestido, rompeu ali no prego daquela porta qui vai p’ra cusinha. E como o dono da casa viesse chegando:

— Oie, só Farnande, você arranque aquele prego, purqué meu vistido custô dinheiro e você non me dá ninhum. Depois, virando-se para o grupo que a cercava, continuou:

— Mas sim, quondo eu vinha da casa da Thiadora e que fui passando pur aquela vareda qui vai pros cajuéro, carcule qui incuntrei...?

Todos os rostos se acenderam de curiosidade.

Quem seria, quem seria?

— O Sátiro!

— O Sátiro?

— O quê? Aquele qui tá c’o má?

— Sim!

E narrou que fora passando distraída, quando ouvira o seu nome por detrás, da moita. Pensou que fosse o Zé Alvarenga o fora devagarzinho, para dar-lhe um murro nas costas; mas, quando se aproximou dos cajueiros, virgem Nossa Senhora! Lá estava o morfético com o rosto que era isto, as orelhas inchadas, as mãos cheias de feridas. Quis correr, mas qual! Ele prendera-a pelo braço e quis chamá-la a si Gritou, mas o diabo ajoelhou-se-lhe aos pés, implorando que ficasse. Foi um inferno, mas, afinal, pôde fugir.

— Coitado, faz até pena! Lamentou a Marcelina.

Meiga, penalizada, a Jovita redarguiu:

— Faz pena, sim! Mas o que tu queria qui eu fizesse, meu bem? O ano atrasado, quando ele tava bão, nós tivemo dois mês, mas agora quem é qui non corre? Depois, com simplicidade:

— Oia, eu até fui tumá outro banho. Aquilo disque pega qui nem carrapato. E muito viva e risonha, numa garrulice de menina:

— Já se dansô a polica, hein?

— E antão?! Tu tava tardando, explicou o Alvarenga.

— Ora!... Voceis non presta, nem pra m’isperá.

— Mas non tem nada, minha mulata, nós agora discasca.

Ele deu-lhe um beliscão.

— Bilisca, mó bem, bilisca. Pancada d’amô non dói.

— Ou bicho sem vergonha! Quando você criá vegonha nessa lata, só Zé?

— Quondo galinha ciscá para diante, respondeu a Marcelina.

— Cala a boca, diabo, sinão eu non compro o vestido.

— Você dexe disso, só Zé, eu non quero que a Juvita m’ingula.

— Êhê! O qui eu tenho cum ele? Tu tá doda!

— A Juvita já chegô e só Zé já tá na assanhaçâo dele, gracejou a Benta. Tombem voceis dois presque nasceu p’ra vivé junto.

— Cala boca tu tombem. Voceis é só buli co’a outra.

— Non tô bulindo, disque é certo!... Essa gente pur aí é qui diz. Agaranto qui esse vistido q'ela tem, foi você qui deu.

A Jovita pulou. Que não! Aquele tinha-o comprado com o seu dinheiro, com o seu somente. Para isso também trabalhava: fazia a sua renda, as suas redes para vender na vila, em casa do capitão Nonato. Não ia fiar-se nesses homens. Só tinham farofia, eram só prometer e nada de dar. O melhorzinho deles era “só Zé”, mas assim mesmo não prestava; já lhe prometera uma medalhinha de S. Banedito, quando houve festa na vila e até hoje.

— Dá-lhe Juvlta, dá-lhe, q’é prele criá vegonha, disse a Benta, caçoando.

— Dêxa ela falá, eu já dixe pur qui foi qui eu non comprei, non qué acriditá... o qui é q’eu vô fazé?

— Oia o chorado! Gritaram.

— O chorado, o chorado!

— Tempere a viola, sô Capivara! Ripinique a côsa!

— Isquenta essa gosma!

E o Paulo Jejú, empurrando docemente o Chico Forquilha, levou-o ao Capivara:

— Oia aqui quem disque qui qué t’isprimentá.

— Non tem nada, sô Chico, você é lá do Pióí, mas nós nos ismurra.

— Oia o chorado! A Juvita já tá s’isquentando.

— Ripiniqua o bronze!

A viola e a rabeca romperam aceleradas a música brasileira. E o Capivara, suspendendo a voz cheia, vibrante e clara, improvisou:

— Cabôco lá do Amarante,

Cabôco do Piói,

Non corre, toma chegada,

Q'eu quero só te midi.

Provocado, o Chico Forquilha sentou-se e, batendo compassadamente com os dedos na viola do companheiro, respondeu:

— Ô cabra prende a siloura

No darradêro botão,

Qui cabôco do Amarante

Non s’intrega à medição.

Um arrepio de febre percorreu todos.

A cadência tropical daquela música apressada, quente, nervosa, doida e o repenicado fogoso da viola alegre esquentaram repentinamente o sangue, incendiando os cérebros aguardentados. Sentia-se como que um formigueiro de entusiasmo caloroso, acendido pela viveza irresistível da música ligeira, numa assanhação impaciente de nervos irritados.

O Zé Alvarenga, ao compasso sensual da dança, saiu jocoso, estalando os dedos, em remoinhos leves. E o Capivara cantou:

— Sô Chico non ronque,

Q’eu roneo mais do qui tú,

Bizôro morre de véio

P’ra roncá c’a cangussú.

— Non te pabula, meu cabra,

Dêxa de pabulação,

Bizòro non vale nada,

Mas fura qui nem ferrão.

Houve um reboliço do contentamento. Era o Zé Alvarenga, que, no remexido do corpo, sacudia o lenço para a Jovita.

— Assim, sô Zé, assim memo,

Puxe a mulata p’ra cá,

Q’é p’r’eu midi o caboco

Vê s’ele sabe lóvá.

O Forquilha respondeu:

— Eu ind’era munto novo

No buxo de minha véia,

Já era cheio d’istucia,

Menino cheio de ideia.

E a Jovita, leve, sutil, risonha, saiu tentadoramente, em passinhos miúdos, velozes, brandos, castanholando os dedos aos requebrados macios dos quadris pojudos, vira-volteando faceira ao redor do Alvarenga e correndo depois ao longe, para o lado da porta, em círculos suaves.

— Isso Jovita!

— Faz bunito, faz bunito!

Em todos os bancos o povo se remexia, como se fosse picado pelo andamento esperto daquela música irritante e pelos revolteios sedutores do corpo entalhado da mulata moça.

— Disimpenha teu carate, Juvita!

E o Capivara, inspirado, seduzido, versejou:

— Mexe, remexe, mulata,

Remexe bom rimixido,

Q’eu quero vê sô Furquia

Ficá de quêxo caído.

— Ô cabra noa sêje besta,

Cria mais educação,

Non me bole, non me mexe

Qui a mulata é tentação.

— Assim, sô Chico!

— Te guenta, Capivara!

E a viola assanhava-se.

— Eu, se tivesse dinhêro,

Munto dinhéro de prata,

Mandava fazê um ispeío

Dos óio dessa mulata.

O Chico Forquilha, coçando a barba, tamborilou mais ligeiro na viola do rival, cantando:

— Ô cabra non sêje besta,

Tu non sabe apréciá,

Ispeio quiria eu sê

Q’era pra ela se mirá.

— Munto bem, só Chico, munto bem!

E a Jovita, agora com a mão direita no braço do Alvarenga, o pescoço de chocolate pendido graciosamenle, zig-zagueava de manso, amiudando os passinhos celeres, tiritando as ancas.

— Te dismancha, mulata!

— Quebra, mô bem!

— Você dixe q’eu era besta,

Q'eu non sei apréciá

Mas eu q’ria sê areia

P’ressa mulata pisá.

O Forquilba atalhou:

— Se essa mulata morresse

Eu mandava embarsemá

C’os béjo da boca dela

E os canto do sabiá.

— Dá-lhe no brando, Juvita, dá-lhe no brando!

E todos se levantavam inquietos, atraídos, palpitando do fogo, como se não resistissem sentados à tentação daquela mameluca sedutora, diabólica, febril, que lhes acalorava o sangue numa fervura escaldante de sensualidade.

E a viola repenicava mais excitante.

— Quebra, mô bem! E os gritos partiam roucos, secos, sequiosos de lascívia.

— Quebra in baxo, quebra in cima,

Quebra in cima, quebra in baxo,

Remexe no brando e mexe,

Isquenta o doce no taxo!

E a voz do Capivara saiu áspera, tremida, grossa, cheia de um cansaço íntimo, de um princípio de êxtase.

A Jovita bamboleava os quartos turgidos em tremeliques nervosos, correndo suavemente pelo solo, em espirais macias. Agora corria de banda, serena, mansa, vaporosa, em roda do Alvarenga, num meio passo, num meio voo, como se escorregasse docemente numa esteira de penas e veludos. Era o deslizar suavíssimo do cisne na superfície azulina do lago, girando tão doce, tão vagarosa, que não se sentia nem de leve o rumorzinho dos pés pequenos, roçando delicadamente no chão de areia.

E sentiam-se comichões, desejos intensos de remexer os nervos ao repenicado quente daquela dança irresistível, escaldante, tórrida, demasiadamente tórrida, soberanamente brasileira. O sangue incendiava-se nas veias, causticando as carnes enfebrecidas, ateando pelo íntimo uma libidinagem pressiva, impertinente, de americano sulista.

O Capivara tinha-se levantado com o Chico Forquilha, dedilhando a viola acelerada e o Roberto, também de pé, debruçava languidamente o queixo na rabeca sonora. E a Jovita castanholava, castanholava muito, rebolando as ancas, amiudando os passos. A saia de barras flutuava redonda, cheia de vento, não arrastando a fímbria folhuda, o laço de fita da cintura pelos ares bailava trêmulo e o seio ofegante numa palpitação lasciva estremecia, eriçando-se. A cabeça luzidia, na lassidez de mestiça, quedava para a direita e os olhos pretos, num gesto estrábico, por cima dos ombros, fltavam matadoramente o Alvarenga, que vinha atroz, correndo para alcançá-la.

— Te dismancha, mô bem!

E ela corria, corria muito, deslizava, flutuava. A cabeleira crespa, desprendida ao vento, desfibrava-se pela nuca setinosa; a baunilha aromática, trespassada pelo grampo na trunfa de cabelos, rescendia; do alto da cabeça a rosa vermelha despetalava-se pelo chão e o casaquinho, com dois colchetes abertos, mostrava um pedaço trigueiro de colo de mulata.

Tocara-se ao delírio.

Do terreiro um perfume ativo de jasmins e flores de laranja trescalava. No teto os candieiros luziam mais vivos e lá dentro os restos das velas de oratório, incendiando as rodelas de papel, que os acunhavam no gargalho das garrafas escuras, esclareciam tudo. A viola irritava-se desesperadamente. Agora era de um arrepio elétrico, de um fogo de caldeira.

E a Jovita dançava. Tinha-se vontade de cair por sobre ela, doido, febril, valente, espojar-se naquelas roupas cheirosas, sorver-lhe a fragrância de sertaneja limpa, apertá-la, apertá-la muito de encontro aos braços, beijá-la pelo pescoço, pelos lábios, pelos olhos, desatar-lhe de todo as madeixas ondeadas e fruí-la e fruí-la...

A Rita da Beirada apertava freneticamente as mãos do Guarda-fio, que lhe pisava os pés; o Luiz Pipira tinha as coxas muito juntas das coxas da Vitalina e o Paulo Jejú cingira insensivelmente a cintura da Marcelina, puxando-a para si. E o Forquilha cantava:

— Assim, mô bem, assim memo,

Te chega aqui pro meu lado,

Penêra, mô bem, penêra,

Penêra bem penêrado.

Repentinamente tudo parou.

A Jovita estremeceu, soltou um grito e agarrou-se instintivamente ao braço do Alvarenga.

Era o Sátiro, o morfético, que astacara à porta.

Houve um silêncio triste, pasado, mórbido. O Capivara emudeceu a viola, olhando para o lazaro; o Roberto sentou-se estropiado e o Guarda-fio, desprendendo os dedos dos dedos da Rita, meteu as mãos nos bolsos das calças e começou a passear pela latada, possesso, resmungando.

A Jovita, trêmula ainda, os olhos espantados, a boca ofegante, unia-se ao Alvarenga, pálida, gelada como se quisesse confundir-se com ele num aperto extremo de terror e de medo.

O silêncio prolongava-se. Somente se ouvia a voz confusa do Guarda-fio, mastigando palavras.

Na porta, o Sátiro, de camisa rota, os pês descalços, magro, deformado, sujo, distraído, fitava a Jovita numa doçura passiva, nazarena e boa, onde transparecia, pela serenidade padecente do olhar, a revolta muda da sua alma e a desgraça incurável da sua moléstia.

— Eu só quiria era sê dono da casa. Butava esse home pra fora, resmungou baixinho o Guarda-fio.

E o morfético, sem nada ouvir, continuava melancólica e biblicamente fitando a apaixonada, que nos braços do Alvarenga cada vez mais tremia, ao lampejo magoado do seu olhar de mártir.

Meu sangue já tá frevendo, continuava o Guarda-fio.

Os homens conservavam-se em pé, sem saber o que fizessem e as mulheres, sentadas, olhavam o Sátiro e a Jovita, aterrorizadas. Mas era preciso que aquele homem dali saísse! A sua moléstia horrorizava a todos e além disso o Guarda-fio já se mostrava zangado e podia haver alguma briga!

Mas ninguém tinha coragem de afastá-lo ou pedir-lhe que se retirasse.

Finalmente o Luiz Pipira, vagaroso, um tanto indeciso, chegou-se até à porta, falando docemente, numa ternura religiosa, como se estivesse balbuciando uma prece:

— Oia, Sátiro, non é pur a gente non te querê aqui, mas vai timbora; tu t’andando duente, cum febe e esse vento te faz má. Oia, vai!

E o doente, sem nada ouvir, conservara-se calado, extático, os olhos pregados carinhosamente na imagem do seu amor, parecendo bebê-la, tragá-la aos poucos nas cintilações luzentes do seu olhar assustado.

— Vai, oia, tá ventando munto e eu sube que tu onte teve febe. Vai, isso faz má!

O lazaro sobressaltou-se, fitando-o ternamente:

— Ora, dêxa!...

E a sua voz saiu tímida, covarde, queixosa, num meio de súplica e de lágrimas, parecendo um suspiro de infortúnio, uma imploração de piedade.

— Vai, esse vento tá ventando munto.

— Dêxa, dêxa!

— Mas qui diabo é isso? Rugiu o Guarda-fio. Você non tá vendo qui você tá duente. A gente tá dizendo e o diabo non ouve.

E chegou-se até perto, com as mãos nos lábios ainda, bradando furioso:

— Vá simbora!

Nada ouvia. Os seus olhos agora caíam de novo sobre a Jovita, que, despertada pelas palavras do Guarda-fio, deixava o braço do Alvarenga, aterrada, pálida, muito pálida, caminhando passo a passo, vagarosamente, demoradamente, em direção à porta.

— Vá simbora!

E, como o morfético nada ouvisse, investiu estupidamente, sentando-lhe a mão fechada sobre o peito, empurrando-o com brutalidade:

— Vá simbora!

O desgraçado estremeceu o corpo cadavérico, mas ficou de pé, suplicando:

— Dêxa, dêxa!

— Qui diabo é isso, só Guarda?! Bramiu asperamente o Luiz Pipira. Cumo é qui você vai impurrá o home assim? Você non tá vendo qui ela tá doente?

— Diabo! Gritou, sem prestar atenção ao que lhe dizia o Pipira, tu nos ouve?! Ispera qui eu te amostro.

E correu violento ao canto próximo da latada, assomando colérico, de cacete em punho, estrugindo já de longe:

— Se arretire! Racho-lhe a venta!

O povo acudiu. As mulheres gritavam todas, assanhando-se de medo e os homens correram à porta, formando grupos.

A Benta puxou-o pelo paletó, tentanto arrastá-lo.

— Non faça isso, meu cumpade, você non tá vendo que ele tá cum má!!

— Me largue, me largue, repetiu-a ferozmente.

E investindo enfurecido:

— Racho, racho!

E chegou-se mais perto do morfético, agitando o cacete.

— Já! Já imbora!

— Você non dá! Roncou o Alvarenga, inflexível, colérico, em posição austera.

— Dô!

— Non dá!

— Pois eu lhe amostro! E, empunhando fortemente o madeiro, suspendeu-o acima da cabeça.

Nesse momento um grito partiu. Era a Jovita, que, atravessando-se em frente, os cabelos soltos, desgrenhada, palpitante, quase de joelhos, implorava:

— Pelo bem qui você qué sua mãe! Non dê, non dê! Ele non faz má a ninguém!

O Guarda-fio repeliu-a para o lado e caminhou para a frente. O cacete subiu de novo, brandindo nos ares e veio descendo vertiginosamente sobre a cabeça do lazaro. Houve um estalo seco de galho que se quebra e um pedaço de madeira voou, zunindo por cima da latada, indo cair por entre os ariris.

Fora o Zé Alvarenga, que, de acha de lenha em punho, repelira a cacetada. Desarmado, o Guarda-fio estremecera e fitou o inimigo, que, impassível, irônico, sereno, o esperava ali em pé, com a acha de lenha arreada em posição de luta. E os dois ficaram em frente um do outro, sem piscar, o olhar aceso, como se estivessem esperando quem primeiro desfechasse o golpe.

Um silêncio de pedra tombava no terreiro. As mulheres, encostadas pelas esteios da talada, não ofegavam sequer e os homens, espalhados em desordem, esperavam silenciosos, sem arriscar uma palavra. Somente, lá embaixo, o rio estremecia pelas coivaras, suspirando sempre.

O Fernandes, afinal, chegou-se amigavelmente, falando:

— Voceis dêxe disso, non é perciso briga, nos tá aqui é pra brincar e pra que qui há de havê briga?! Isso assim é feio, non brigue! É mesmo cumo se não tivesse havido nada. E virando-se para o Alvarenga:

— Largue esse pão, só Zé. Dêxo de bobage, vocé non é criança! Vamo, sô Guarda-fio, vamo voceis non brigue!

— É, saltou o Paulo Jejú, vamo dansá, briga non bota ninguém pra diente.

— Non bota, isso é munto certo, aprovou o Fernandes, briga só serve de atraso. Nós pode Iéva a nôte intêra brincando, pra que qui havemo de brigá.

— É mais mio assim, disse o João Bezerra, nós non taqui pra vê quem tem mais força, nós tá é pra dansá. E vamos à varsa! Viva a alegria, rapaziada!

— Viva o dono da casa mais a sua famia!

— Oia a viola, sô Capivara!

— A varsa, oia a varsa!

E o Fernandes passou o braço nos ombros do Guarda-fio, trazendo-o para dentro. Lá fora o Luiz Pipira foi levando o Sátiro até a curva do caminho.

Correram comentários. O Chico Forquilha afirmava para o Roberto que por “um triz” estivera a dar uns cachações “naquela besta”, que nem sequer se compadecera de um pobre diabo que estava com “o mal”. Aquilo não era homem, aquilo não era nada; só se metera com o Sátiro, porque o Sátiro estava doente. Que se metesse com ele, com ele é que queria ver. Um diabo que não valia “um dez réis xen-xen”. Só tinha aquele corpo de “novilho”, aquela “arrotação”, mas era mais “ruim” do que uma mulher. Em “dois tempo” se trepava no “cangote” dele. Já que tinha força, porque não se metera com o Alvarenga, quando este o desafiara? O Alvarenga, sim, senhor, era “cabra bom”. O bixinho era magro, mas tinha “talento” no “tutano”.

O Paulo Jejú lastimava que, no calor daquela festa, no melhor do chorado, acontecesse aquela “disgracia”. Também que mal tinha o morfético vir olhar a dança? Não havia “impedício” algum. Aquilo também não andava pegando assim só, principalmente de longe.

E mais ao fundo, numa roda de mulheres, a Martinha, censurando o Guarda-fio, lembrava as festas em que ele provocava desordens. Não se podia. Era a demora beber “um tiquinho”, parecia uma onça: “inticava” com todo o mundo.

— Agora é pena, lamentou a Maria do Inocencio, é pena, purquê é trabaiadôsão. Oia, além de trabaiá na istrada do fio, inda tem roça e qui roça! Este ano fez quadr’e meia.

Para o outro lado, a Jovita, cochichando com a Marcelina, contava que já não podia com aquela paixão do Sátiro. Tinha pena. Mas que ia fazer? Já por duas vezes se tinha dado quase aquilo mesmo. O mês passado, quando ia para a vila, encontrara-o no caminho da roça e — Santo Deus! — lastimou-se tanto, tanto, que ele até chorou. Depois, na própria casa dela, lá esteve o dia inteiro a chorar e a pedir-lhe que se sentasse ao seu lado. Coitado! Fazia dó, mas não tinha remédio.

Mais adiante a Benta, sentada com a Vitalina, afirmava que ficara mais fria do que “um sapo”, quando vira o Guarda-fio de cacete na mão, para dar no Sátiro. E, quando vira o cacete descendo no rumo do morfético, — virgem mãe de Deus! — quis gritar, mas qual! “parecia que tinha uma coisa na goela”.

— E tu viu aquela pólala qui só Zé deu no páu de só Guarda-fio? Perguntou a Vitalina, misteriosamente,

— Ih, minina foi cum força! Chega o pau avuou lá pur riba da casa qui foi azuando. Massô Zé, hein? Chega tem força!

Depois dissera que, quando vira os dois em pé, olhando um para o outro, como “dois garrotes”, foi que sentira medo, muito medo. Parecia quo estava a ver, de uma hora para outra, rolarem mortos, ali no chão.

— Oh, xente! Voceis presque qui qué acabá co'a festa, alegrou o Fernandes, chegando à porta,

— Vamos à dança! É perciso non esfriá, lembrou o Luiz Pipira.

E o Capivara, depois de afinar a viola, dedilhou uma valsa.

Silencioso, trêmulo, os olhos cheios d’agua, o coração partido, pelo caminho o morfético seguira. Passo a passo andou por muito tempo, à toa, pela estrada, insensível, cabisbaixo, tonto e depois, distraidamente, deitando a cabeça nos braços cruzados sobre o cajueiro, pôs-se a soluçar. Tinha a ideia oca, o cérebro vazio, a alma esfrangalhada.

A Jovita veio-lhe em pensamento, erradia, indecisa, diáfana, depois mais viva, mais tangível, mais palpável, envasando-o de sonhos e recordações.

Não o mate, que não faz mal a ninguém — e estas palavras cantavam-lhe no sentimento como a nota consoladora de um peito condoído. Via-a pálida, gelada, o seio arfante, os olhos lacrimosos, implorando humildemente aos pés do Guarda-fio.

Não faz mal a ninguém! E zumbia-lhe aos ouvidos o som piedoso daquela imploração aflita, emanada de dentro, bem do fundo do sentimento.

Nas faces empoladas a circulação, subindo precipitada, esquentava-lhe a cabeça dorida, escaldando-lhe as orelhas grossas. E a revolução ardente daquele sangue deletério, as picadas agudas das feridas apostemadas, avivavam-lhe a realidade. Morfético! E tremia abatido, resignado, lacrimoso. Olhava para os dedos carcomidos, reparando bem nas chagas vermelhas, purulentas pútridas. Morfético! E com a cabeça deitada sobre os braços, fitava as mãos, soluçando. Vinha-lhe uma tristeza de mártir uma nostalgia do passado, uma saudade muito forte da vida.

— Sátiro! Onde é qui tu tá?

Espantou-se, os olhos ainda molhados e as lágrimas brilhando pelo rosto. E o Luiz Pipira, chegando-se mais, começou a falar amigavelmente:

— Mas o qui é isso! Você chorando! Dêxa disso non te consome. A gente deve se cunsolá co’a vontade de Deus, tudo qui ele faz é bão. Nós non deve nos zangá, assim é pecado.

E ao tom cadenciado daquela voz sonora e amiga, as lágrimas rebentavam-lhe copiosas, soluçantes,

— Mas o qui é qui nós vai fazé. Deus detreminô e nós déve nos cumformá. Você inda pôde ficá bão e brincá cum nós na festa; pra Deus nada é impusisive.

O lazaro estremeceu, tocado de esperança, mas depois falou numa voz desconsolada e tristonha:

— Bão! Ah, só Luiz, isso é bão de dizê, mas eu tô perdido; daqui pro cimitero. Quem tem o má non ispera outra côsa, e eu sei que minha cova tá m’isperando, eu sé que vou morre. Istrudia fui onde tava só manjó Carvaio, pra ele me dá uma mesinha. Ele me deu e dixe qui eu ficava bão, mais eu cunheci que ele tava era me consulando.

— Tem fé in Deus! Quem tem fé se sarva.

— Mas do qui eu tenho?! Tenho feito munta premessa. Toda nôte, todo dia rezo, pedindo pra Deus me ajudá, pra me pô prefeito, cum saúde. Mas só me parece qui isso foi castigo. Deus non ôve minha reza, cada vez eu fico pió.

E a sua voz fui descendo docil, compassiva, terna, embargando-se de soluços:

— Sinto febre todo dia, tó cuberto de ferida, meus dedo parece até qui já tá caindo...

— Mas é preciso você té risguardo, té cótela. Você tem fébre e móia a mão, toma a mesinha e come tudo. A gente precisa tombem se livrá do pirigo. Só se come cumé dê duente e non se deve fazê todo sirviço...

Ele, ainda choroso, foi respondendo lastimosamente:

— O qui é que eu vô fazê, só Luiz, qui é que eu vó fazê? Se eu memo non fizé, quém vai fazê pur mim? Non tenho ninguém, nem um parente, minha mãe já murreu, minha irmã se casô e tá murando lá pro centro. Quem é qui vai fazé pra mim? Ah, só Luiz, a gente padece côza... Tem dia que eu non posso me alivantá de dô e tenho de fazé meu cumê: Vivo sozinho, ninguém me percura, todo mundo corre de mim. De premêro a mãe de seu Inofre, às vezes ia lá in casa me fazé arguma côsa, mas ao dispois que eu fiquei pió nunca mais apariceu.

Levou a camisa suja aos olhos, limpando lágrimas:

— Você dixe qui eu como tudo, mas o qui é que qui eu vó cumê, se eu non posso trabaiá e non posso fazé nada?! Às vez eu boto garapuca pra pegá nambú, mas assim memo mucura mais maracajá furta. Só parece q’isso é castigo, só Luiz! Tem dia que eu non tenho nada in casa pra cumê, nem um punhadinho de farinha pra fazê mingau, Levo dia entéro cum fome, e às vez eu passo até três dia... Quando a febre dêxa de me dá eu vou pescá piáu na lagoa e às vez eu vou até cum febe.

— Ou! Você non deve cumê péxe de lagoa, é carregado.

— Qui remédo, só Luiz?! De premêro siá dona Janoca, lá da vila, mandava argum pedacinho de carne, argum punhado de arroz pra eu cumê, mas agora ela foi para a cidade e eu non tenho nada. Só non murri, purque Deus inda non foi servido. Oie, hoje ainda non butei nada na boca, tô cum fome, c’uma fome de matar...

E calou-se. Pendeu a cabeça, debruçou-se no galho do cajueiro, soluçando.

Uma mudez silenciosa pesava ali por perto. Da festa, nem um rumor chegava, nem um grito, nem uma voz. A aragem, muito branda, muito leve, parecia não remexer as folhas do arvoredo. O rio, deslizando vagaroso, calara por muito tempo o murmúrio das águas. E na amplidão silenciosa, rutila, profunda, a rebanhada transluzida de estrelas resplandecia muito viva, muito trêmula, muito triste, como se para baixo chorasse gotas de luz e luz de misticismo. Somente de momento, cortando o silêncio, a voz lamentosa do morfético repetia amarguradamente:

— Tô cum fome, cura munta fome!...

Luiz Pipira, com os olhos cheios d’agua, baixou a cabeça, sem dizer uma palavra. Sentia-se abatido, ferido de vergonha, infiltrado de compaixão. Ali estava, desesperado de fome, cadavérico, exausto, doido de misérias, o seu companheiro de meninice, de pândegas e de festas. Agora, abandonado, na palhoça solitária, sem um amigo, sem um afeto... E relembrou-se dos tempos já corridos, em que, alegre e folgazão com todos, o morfético passava os dias a cultivar as roças, pensando nas colheitas. Nos sambas, quando chegava, era sempre o mais influído, o mais entusiasmado e as mulheres cercavam-no, cheias de contentamento e cortesias. Dedilhando a viola excitava em todos animação e por aquelas bandas bem poucos se atreviam a desafiá-lo... E não havia uma só festa em que não estivesse, em que a sua presença não fosse reclamada... E tudo isto se foi num sopro de rajada, num furacão de desgraças.

O lazaro continuava chorando.

Luiz Pipira, ainda sensibilizado, chegou as mãos aos omhros, com carícia:

— Te consola, Sátiro, é a vontade de Deus!

— Ele levantou a cabeça desalentadamente:

— Ah, só Luiz! Antes Deus me matasse logo. Quem véve cuma eu, se eu é de tá padicendo, antes murrê, ó meno vó discançá.

— A gente non deve se zangá cum qui Deus me pordôe, mas eu passo uma vida tão consumida que é mais mió murrê. Non sei, non sei cumo é que Deus non tem pena de mim. Eu nunca fui máu irmão, máu parente... Non sei mesmo cumo é que Deus me castigó assim. Todo mundo fogo de mim, quando eu chego em qualquer parte, non há quem nos meta a mon no borso pra não falá cumigo.

— Te cunsola, Sátiro, te cunsola!

— Ninguém padece mais do que eu, só Luiz. Eu passo dia intêro naquela casa, sem ninguém cumigo, drumindo sozinho. Quando eu me alembro, só Luiz, só me dá é vontade de churá... De premero eu andava ton cuntente, ton limpo, ton farto e agora eu vivo na miséria, pió do que um cachorro sem dono...

— É da sorte, Sátiro! A gente padece aqui na terra pra gozá o reino do céu.

— Eu já não tenho mais amigo. Tem vez que eu levo o dia inteiro sentado no batente da porta, oiando pro caminho, isperando com quem falá, pra me insiná um remedo, pra eu ficá bão. Mas ninguém passa perto de mim, passa pur longe, sempre ligéro, fazendo qui tá cum pressa. Eu fico às vez com vontade de chamá, mas tenho vegonha. E até a Juvita, até a Juvita, só Luiz, non qué qui eu lhe pegue mais.

— Dêxa a Juvita, Sátiro! Você non déve s’importá mais com ela.

— S’eu pudesse, só Luiz, eu já tinha largado. Faço todo o possive pra me esquecê, mas cumeço sempre me alembrá dela. Só parece, só Luiz, qui, se a Juvita tornasse me querê bem, quisesse vim murá outra vez cumigo, eu ficava bão.

— Você deve dêxa disso.

— Eu tenho munta vontade, mas ou não posso.

— A gente faz força. O qui é qui a gente non faz neste mundo?! Qui côsa! Cumo foi que vôce ficó pirdido pur ela?

— Eu memo non sei, só Luiz!

E começou a contar apaixonadamente os seus amores com a Juvita. Era no tempo da Quaresma. Ia à vila comprar bacalhau para o jejum da semana santa, quando a encontrara à beira do rio. Encostara o casquinho e pedira-lhe que lhe désse ou lhe vendesse um cacho de bananas, que amadurecia lá em cima na casa. Ela, colocando a cabaça d'agua sobre os ombros, mandara-o subir e foi seguindo devagar, com os cabelos ainda molhados e o casaquinho desabotoado no peito. E, desde essa tarde, aquela mulata ficara-lhe na memória, no coração, como uma fantasia colorida que lhe ataviava os pensamentos. Outra vez; encontrara-a na vila, e, como ela lhe pedisse uma passagem no casco, trouxe-a até a casa. Foi esse o início dos seus amores. Dois longos meses num aconchego de corpos passaram, engastando-se de afetos e de beijos. Depois, não sabia como, manchas vermelhas começaram a alastrar-se-lhe pelo corpo, as faces foram-se entumescendo e as orelhas engrossando. Desde esse tempo todos se foram esquivando, ninguém mais o procurava.

— É triste, só Luiz, é munto triste! Quondo eu me alembro...

E não pôde concluir, cortado de lágrimas. Depois continuou;

— A Juvita, qui paricia me querê tanto bem... Ind’agora, quondo ela vinha, eu chamei e ela veio. Pidi, pidi munto pra ela ficá perto de mim e ela curreu, eu peguei no braço dela e ela me deu uma rebanada qui eu até caí... Antes murrê, antes murrê do qui passá uma vida assim. Até de cacete, só Guarda-fio, já m’ispursô pra fora da festa.

— Non fala nisso, Sátiro, precura t’isquecê.

— Cuma é qui eu vô m’isquecé, se isso me dóe pur dento?! Deus me perdoe, mas eu chego até tê vuntade de agarrá aquele diabo e matá.

Os seus olhos brilharam raivosos, ameaçadores, mais depois caíram numa passividade de cão:

— Mas ele tinha rezão! O qui é qui eu fui fazê lá na festa, se todo mundo tem nôjo de mim? Eu divia tê ficado aqui de longe, sem ispiá. Mas foi a Juvita, só Luiz, qui fez eu i. A musga tava tocando ton bunita qui eu peguei me alembrá qui a Juvita tava dançando e non sei memo cumo fui pará lá na porta. Ele tem toda rezão, eu sô um desgraçado!...

Os sons morosos de uma valsa compassada cortaram-lhe as palavras. E ele ficou atento, a cabeça alevantada, escutando saudoso:

— Oia, oia!...

E falou baixinho, doce, lento, como se estivesse bebendo pelas suas próprias palavras o inebriamento de uma recordação. Aquela valsa, aquela valsa já a tinha dançado com a Jovita! Fora na festa, em casa da Vitalina. Conversava com a apaixonada, quando o Capivara a principiara. Então, muito unido, saíra com a mulata, a rodar, a rodar muito... Ela pendera a cabecinha nos seus ombros e ele, cada vez mais unido, apertava-a, apertava-a muito de encontro aos peitos, beijando-a pelas orelhas...

E o Luiz Pipira encostou-se ao tronco do cajueiro. Lembrava-se também. Nessa noite como o Sátiro estava alegre! Metido em roupas brancas, prazenteiro, lesto, chapéu novo de couro derreado na cabeça, a faceirar-se com a Jovita. E ela, amorosa, viva, perfumada de trevo e baunilha, dançando o chorado ao som da viola do Capivara...

— Oia, oia!...

E o morfético, enlevado pela música, nos ombros do amigo descansou a mão direita. Luiz Pipira estremeceu sutil o braço, como se temesse o contágio daquela mão chagada, pútrida, contaminosa, que se unia às suas roupas num gesto de descuido. E foi curvando os ombros negligentemente, vagarosamente, fazendo-se distraído.

O lazaro compreendera, dizendo-lhe humildemente:

— Você me perdoe, sô Luiz, eu tava cum a cabeça ton azuada... Você me perdoe, você tem rezão, eu m’isquici, eu non boto mais. Luiz Pipira ficou envergonhado e, mastigando uma desculpa, levou os dedos à boca, roendo as unhas de cabeça curvada.

A música parara.

E os dois ficaram mudos, olhando paia baixo, sem se fitarem.

— Tá bom, Sátiro, disse depois o Pipira, levantando a fronte, agora vai tucá uma quadia e eu vô marcá. Agora tu deve i pra casa. Já viu? Vai! E, sem esperar que o doente uma palavra dissesse, afastou-se ligeiramente, sumindo-se no caminho.

O Sátiro ficou olhando abestalhado, desgostoso. Oh, Deus, antes o matasse logo! E rangeu os dentes, desesperado, sentindo um desprezo pela vida, uma vontade pungente de morrer ali mesmo, acabar-se de uma vez para sempre, sem dores, sem sofrimentos, sem um gemido, sem um gesto. E aquela maldita doença a maltratá-lo, a maltratá-lo aos poucos!

Mas despertava-lhe um desejo instintivo de viver por muito tempo, bom, sem doença, no meio de todo aquele samba, festejado como d’antes, a dançar com a Jovita.

E olhava para a bandeira branca, tremulando mansamente no topo agudo do madeiro extenso do terreiro da festa. Outrora, quando sadio, tinha improvisos felizes, para cantar, saudando “os mordomos”, quando eles, no dia do “derrubamento”, às cutiladas do machado afiado, abalavam o mastro enfeitado de murtas. Agora nem espiar a festa podia! E a figura do Guarda-fio saltava-lhe à lembrança, ameaçando-o de cacete em punho. Roía-o uma colera profunda, um anseio revolto de esconder-se por entre as moitas e esperar o cabra, quando saísse da festa, para cravar-lhe no peito a faca de ponta. Depois refletia. Era aumentar ainda no fundo de um cárcere os males que lhe minavam a existência.

Da latada o vento trazia umas gargalhadas alegres e retumbantes. Havia por lá um borborinho confuso de samba em meio. E a viola tinha começado uma quadrilha.

Ele escutava todo o ruído que ia chegando:

— Avante!

— Balancê cum seus pá!

— Arrepete outra vez!

— Varsiando!

— Varsa infinita!

— Toda marca é duas!

— Caminho da roça!

— Duas vorta cum pá da isquerda.

— Solo!

Com quem estaria dançando a Jovita? E não poder proibir-lhe que dançasse! E ouvia todas aquelas marcas, transbordado de saudades. A Jovita! Via-a com o pescoço derreado nos ombros do Zé Alvarença ou do Guarda-fio, tão lânguida, tão amorosamente como derreada anos atrás nos seus. Mas nao poder tê-la ao seu lado, sua, somente sua!...

E tinha frêmitos de raiva, desejos furibundos de tirá-la da festa, arrancá-la dos braços de quem quer que fosse e trazê-la para si, para si somente. Mas aplacava-se. Que era ele? Uma posta pútrida de carne, que a morfeia carcomia. Doente, chagado, pôdre, era forçar aquele corpinho encantador a padecer o seu mal. E para que amá-la, desejá-la tanto, se ela se esquivava aos seus carinhos, às suas palavras e até à sua simples presença? Ah, tinha razão! Era um lazaro e um lazaro não se ama, não se afaga!

Na festa a música de novo tinha cessado. Ouviam-se somente uns murmúrios leves de vozes baixas.

E ele, quebrando uma palhinha verde de píndoba, levou-a à boca, cortando-a com os dentes insensivelmente.

Um assobio agudo trilou distante, por detrás das moitas de erva-cidreira.

Espantou-se. Olhou para os lados, escutando.

Outro assobio cortou novamente o silêncio.

Ficou de pé, reparando bem por entre os galhos.

Uns passinhos miúdos, ligeiros, vinham pelo mato estalando as folhas secas.

Permaneceu extático, ouvido alerta, olhos arregalados.

Os passinhos, mais nervosos, mais celeres, pisavam já perto. Um pedaço branco de vestido de mulher passou apressadamente, saltando um toco de palmeira.

Estremeceu. Quem chegava tão depressa, ao som daqueles assobios?

E acompanhou as pisadas, sorrateiro, de manso, como uma cobra.

A mulher tinha parado. Olhava para os lados, como se procurasse alguém.

Ele acoeorou-se por detrás de uma faveira, espiando curioso.

Ela, atenta, ofegante, o olhar em brasa, escutava.

Reconhecera a Jovita. E um grito morreu-lhe na garganta, rouco, abafado, sem que ninguém ouvisse.

Por outra banda uma figura corpolenta de homem chegava.

Supôs o Guarda-fio. E um fogo abrasou-lhe o peito, engrossando-lhe o rosto empolado. A Jovita nos seus braços! Rangendo os dentes, do cós das calças arrancou a faca de ponta, empunhando-a raivoso. Matá-lo-ia agora!

Recuou. Era o Zé Alvarenga. A faca caiu-lhe das mãos. Aquele homem horas atrás tinha-o defendido, livrado de apanhar ou de ser morto, talvez, ao peso da fúria do Guarda-fio! Fora o único, o único que tivera a coragem de afrontar a braveza do ameaçador, quebrando-lhe nas mãos a arma criminosa e dominando-o com o olhar. Fora bom, caridoso, heroico, não devia matá-lo! E agarrou-se à haste da faveira, receando cair. Ficou a olhar aparvalhado para os dois.

A Jovita chegou-se ao Alvarenga, dizendo-lhe baixinho:

— Oia qui caiu azeite no teu palitô.

E puxou o lenço rendado do bolso da saia, limpando-o pacientemente. Depois, como ele a cingisse pela cintura, revirou amorosamente a cabecinha terna, de cabelos alastrando os ombros do amante, com os lábios estendidos, à espera de um beijo, balbuciando:

— Tu me dá a medaia de S. Binidito?

— Dou! E o Zé Alvarenga curvou o pescoço, mordendo-a no beicinho rosado.

E ele foi pelo mato, bêbedo, completamente bêbedo, sem rota, sem destino, mudo, sem lágrimas, sem vê-la, cambaleando alucinado.

Ao longe um galo despertou, cantando. Além, na volta do rio, uma acauã preludiava tristemente. Brando refrescava o vento matutino. Uma fatia alvíssima de lua prateava o infinito. No nascente a madrugada nitente, cristalina, surgia encantadora, barrando o horizonte de escarlate. E em cima a estrela-dalva, muito clara, muito límpida, desmaiava, desmaiava aos poucos, como se desfalecesse voluptuosamente, numa embriaguez serena de luz e frio.