LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Novelas doidas, de Viriato Corrêa
Edição de Base
Biblioteca Virtual Brasileira
ÍNDICE
Monóculo a luzir no olho esquerdo, impecável na casaca de talhe moderno, o desembargador Alves Moreira surgiu alegre:
— Os senhores aqui! Quando as moças os reclamam nas salas para as danças! É uma traição inominável!
— Conversamos literatura.
— Nessa idade não conheço literatura mais interessante que as mulheres.
E, com aquele ar de distinção e excentricidade, que o fazia um dos velhos mais queridos do mundanismo, sentou-se ao nosso lado.
Era no terraço do almirante Barros Quintão, em Santa Teresa, numa noite de festa. Fazia anos a filha mais nova do almirante. A casa estava cheia de ruídos, de uma algazarra álacre de moças e rapazes. Lá dentro dançava-se intimamente ao som do piano. Era uma noite fresca, constelada, em que o painel da cidade e da baía, em baixo, tinha um esplendor de apoteose.
— Conversavam sobre versos?
— Sobre teatro.
— Ah!
Álvaro Valente, em pleno noivado de popularidade, contava-nos a terceira peça que ia lançar em cena. Era um caso vulgar de rua, a que ele, ao que nos narrava, dera um tom de originalidade e de vigor: um marido traído que, depois de crivar de facadas a esposa infiel, arrastara-a a rua para expor-lhe a miséria aos olhos do público.
— Estou fazendo disso uma coisa forte, intensa, violentíssima — um grand-guignol doloroso. Não lhe parece excelente?
O desembargador, picando a ponta do charuto, falou:
— Quer que lhe seja franco? Não acho.
— Mas é um grand-guignol... Disse o escritor desconcertado.
— Permita-me a franqueza, insistiu o magistrado. Crimes dessa ordem existem em mais de mil peças, numa infinidade de grand-guignol. Em teatro a originalidade é tudo. Não sei da originalidade que vai dar a esse caso, mas, pelos traços gerais, duvido muito que a possa conseguir. No teatro, mesmo as coisas velhas precisam ter um traço de novidade chocante e principalmente imprevista. O segredo do palco é justamente isso — o imprevisto. Nesses crimes violentos tudo e tudo é banal, até o ruído, que é a maior banalidade da vida. Que interesse pode ter para o público um marido que mata explosivamente a esposa? O público vê isso todos os dias, e aquilo que todos os dias nos passa diante dos olhos, perde as virtudes de emoção.
E acendendo o charuto:
— No entanto um grande, um imenso interesse despertará a morte que for cercada de circunstâncias impalpáveis, intangíveis, obscuras, misteriosas.
E chegando mais a cadeira de vime para junto de nós:
— Conhecem o caso de dona Alice Barreiros?
— Sim.
Tínhamo-lo bem vivo na memória. O caso estalara na cidade havia três anos, com um escândalo emocionante. Numa noite de baile, dona Alice, louca, diante dos convidados e do marido, escancarara as portas do guarda-vestidos, onde guardava o cadáver do amante, já em decomposição.
— Conhecem-no mal, como toda a gente o conhece, disse o desembargador. O que há de interessante não é o epílogo ruidoso do drama. São as circunstâncias que envolveram a sua perpetração. E essas circunstâncias, elas principalmente, é que devem constituir uma peça de teatro. Tenho cinquenta e seis anos de vida intensa, bem vividos, bem gosados. Já devo estar cansado de emoções. Mas o caso de dona Alice me comoveu. Posso mesmo dizer que até hoje não houve fato nenhum que mais me impressionasse, deixando-me um interesse tão violento. E quanto mais o desvendo, mas me convenço que o palco da vida é muito mais vibrante que o palco dos teatros. Quanto mais o conheço mais me convenço que não há imaginação humana, por mais rica e mais estranha, capaz de ultrapassar a realidade dos fatos. Pensem na coisa mais exótica do mundo, imaginem o caso mais esquisito que, amanhã, verão desenrolar-se na vida outro fato ainda mais esquisito e mais exótico. A imaginação da natureza é mais culminante que a nossa. A mais surpreendente das fantasias humanas não supera certas fantasias da realidade. Eu, si tivesse jeito para a literatura teatral, construía um drama impressionante com o episódio de dona Alice.
— Conhece-o nas suas minúcias? Perguntei
— Nas mais recônditas.
O desembargador Alves Moreira pousou o havana sobre o cinzeiro:
— O casamento do Nazareth Barreiros e de dona Alice teve todos os sintomas de um casamento por amor. Eu era íntimo das duas famílias e acompanhei tudo. Conheceram-se bem novinhos ainda, e o namoro seguiu a ordem natural de todos os namoros: arrufos de quando em quando, ciumadas insignificantes, enfim todas essas miudezas indispensáveis à boa consolidação de duas almas que se desejam. Ambos novos, ambos ricos, não havia entre os dois nenhum outro interesse senão o dos impulsos do coração.
Dona Alice foi uma das meninas mais interessantes da Tijuca. Alta, loira, olhos suavemente azuis, teve o pescoço e o colo mais opulentamente bem talhados que já tenho visto no Rio de Janeiro. A mãe fora uma bela mulher. Tinha ela a beleza da mãe e mais um quê de formosura original, que era da placidez das formas, da harmonia do conjunto e aquela suavidade do azul dos olhos que dava à gente (desculpem-me o lugar comum) a impressão de um lago em sossego. Ninguém poderia imaginar que, na serenidade daquela beleza plácida, pudessem um dia viver os germens convulsivos de uma tragédia.
Como já lhes disse, fui íntimo das duas famílias. Nos primeiros cinco anos, dona Alice foi, que se costuma chamar como o modelo das esposas. Era a ternura pelo marido, a preocupação constante dos seus deveres de dona de casa. Uma vez encontrei-a arrumando os móveis da sala, porque os criados lhe haviam pregado uma partida.
Comecei depois a notar-lhe uns deslizes de austeridade, umas tantas coisas levianas a que os senhores hoje chamam flirt, mas que, no meu tempo de rapaz, se chamava o começo do fim. Sempre fui contra os casamentos entre gente muito nova. Nos primeiros tempos da mocidade os impulsos de amor são fáceis, os incêndios do coração têm a semelhança dos fogos de palha. Por qualquer motivo a alma flameja. Vê a gente uma mulher qualquer, a retina da juventude impressiona-se, os desejos crepitam e o espírito imagina que é aquele o tipo que de fato se deseja. Um engano. Os tempos passam e a gente verifica dolorosamente que o tipo ambicionado era outro. E aí está a desgraça, aí está o desmoronamento das ilusões que sempre traz o desmoronamento do lar. Os moços não se devem casar muito cedo. O casamento é uma frutificação e os frutos só têm sabor quando maduros.
Imaginei que aquela mudança de dona Alice fosse o começo da queda de seus sonhos. Imaginei que ela não tivesse encontrado no Nazareth Barreiros o tipo idealizado para o seu companheiro na vida.
Tempos depois cheguei mesmo a arranjar outra explicação para aquela nova face do caráter da pobre senhora. O Barreiros andava no período mais feliz dos seus triunfos profissionais. Era o médico da moda. E bem possível era que, distraído pelo ruído em derredor de seu nome, de alguma maneira se esquecesse da esposa.
Um ano depois, outra pessoa também notava a mudança de dona Alice — o próprio marido.
Percebi-lhe imediatamente a mutação: acendeu-se-lhe o amor pela mulher, um desses amores inquietos, surdos, sombrios, que transformam em buraco escuro as almas mais claras e mais abertas.
Foi, justamente, por essa época, que o Silva Gentil começou a frequentar a casa. Era realmente um rapagão de estontear as mulheres, forte, sadio, uma dessas belezas impressionantes de gladiador romano. Era rico e, creio mesmo, também ocioso. Nunca lhe conheci uma ocupação, a não ser o cuidado pelos desportos, a frequência assídua aos clubes de natação, regatas e foot-ball.
Notei o namoro desde o primeiro dia. Nunca, porém, me pareceu que o Nazareth Barreiros tivesse tido a mais leve desconfiança. Ao contrário, via-o sempre com acentuada simpatia pelo rapaz, uma dessas simpatias misturadas de compaixão.
De uma vez, mostrando-me o Silva Gentil, no foyer do Municipal, disse-me com um tom penalizado:
— O desembargador está vendo aquele rapaz aparentemente forte, aparentemente a vender saúde? Pois sofre de uma lesão cardíaca que o levará bem moço.
O aniversário de dona Alice era em janeiro, na quadra mais intolerável do calor. Depois do casamento nunca deixou de haver jantar e baile no palacete em Copacabana. Naquele ano, porém, coincidiu que o Barreiros fosse convidado para fazer uma conferência médica em S. Paulo, justamente no dia do aniversário da esposa, conferência a que não podia falhar por já se ter comprometido.
Tinha que embarcar de véspera. E, para não deixar a data natalícia da mulher sem uma festa, resolveu comemorá-la com um dia de antecedência, com um chá íntimo, sob as aglaias do jardim do palacete. Foi uma festa linda, ali a beira-mar, com o oceano azul em frente, as ondas espumando e fervendo na praia. Muita moça, muita, e uma algazarra de risos que as mulheres cariocas sabem ter como mulher nenhuma no mundo. Só o calor, o tremendo calor de janeiro, sufocava um pouquinho as alegrias.
O namoro de dona Alice com o Silva Gentil, aos meus olhos de velho experiente, estava mais que desvendado. Lembro-me de uma cena, naquela mesma tarde do chá, que me ficou absolutamente nítida até hoje. O jardim esvaziara-se. As moças tinham subido para a sala de visitas, improvisando umas danças, ao som do piano. O Barreiros convidou-me a descer ao jardim, para mostrar-me umas novas plantas de estufa que adquirira. E vínhamos descendo a escada de mármore do palacete, quando percebi dona Alice, numa mesinha, sob uma árvore, conversando com o namorado. Estavam de costas, não nos viam. Dona Alice passava, às escondidas, ao Silva Gentil, uma chave.
Tremi, tremi percebendo tudo e, alterando a voz de uma certa maneira que me pareceu depois desajeitada, distraí o olhar do Barreiros para o mar, onde passava um grande transatlântico empenachado de fumo.
A festa acabou cedo porque o Nazareth Barreiros tinha que tomar o noturno para S. Paulo.
E, depositando no cinzeiro a branca cinza do charuto, o desembargador Alves Moreira disse-nos com um leve sorriso:
— Tivesse eu qualidades de teatrólogo, aqui terminava o primeiro ato da tragédia ou drama, como queiram chamar.
O criado serviu-nos sorvete.
— Dona Alice, continuou o desembargador, tinha uma criada madurona, que a servia há muitos anos. Era a Maria, criatura discreta, que ainda está viva, e que atualmente chamei para o meu serviço.
Devia ser muito mais de meia noite, quando o Silva Gentil, guiado pela Maria, entrava no palacete de Copacabana. O Barreiros devia estar muito longe, nas altitudes da serra do Mar, no trem de ferro que o levava à capital paulista.
Previno aos senhores que, o que se vai seguir não são hipóteses, mas minúcias colhidas de indagação em indagação entre as próprias figuras do drama.
Cinco minutos depois da entrada do Silva Gentil na alcova de dona Alice batem à porta do quarto. Ela assusta-se, chama pela Maria, mas quem responde do lado de fora, é o Barreiros, o marido.
Creio que não tenho necessidade de pintar a situação desesperada da pobre senhora. Há certas cenas na vida que estão desenhadas na sua própria essência. Os senhores imaginam tão bem quanto eu a situação da mulher do meu amigo.
Os dois ou três minutos que se passam são horríveis, liquidantes. Dona Alice anda pelo quarto loucamente. A única salvação que ali existe é o guarda-vestidos. Ela obriga o amante a esconder-se apressadamente no móvel, e abre a porta da alcova.
O Barreiros entra com a maior naturalidade da vida. Tinha perdido o trem por dois minutos.
Demorara-se na rua até àquela hora, não viera imediatamente para casa, porque tivera que ir ao telégrafo avisar aos médicos paulistas da necessidade de transferir a conferência.
E, com aquela jovialidade que foi sempre dele, despe-se, mete-se no pijama e resolve-se a trabalhar. Havia na sua conferência uns pontos fracos, descuidados, feitos às pressas. Já que lhe sobrava tempo agora, ia corrigi-los.
E, arrastando ele próprio a linda escrivaninha de dona Alice que estava no quarto de toilete, trouxe-a para alcova e ali se instalou para escrever.
É necessário que os senhores notem que não havia nisso nada de anormal. O Barreiros era um tanto desorganizado. Nem sempre era o seu gabinete de estudo o lugar preferido para os seus trabalhos. Tanto escrevia no gabinete, como na sala de jantar, como na própria alcova. Aquilo de vir escrever no quarto de dormir era-lhe comum, por preguiça de descer ao gabinete de estudo.
E, por uma coincidência que eu não pude até hoje desvendar com precisão, a escrevaninha ficou colocada bem defronte, mesmo bem defronte, do guarda-vestidos em que o Silva Gentil se escondia.
Na ânsia daquela tremenda situação, dona Alice faz tudo que é possível para desviar o marido do propósito de trabalhar, ali, dentro do quarto. Pede, insiste, teima, pretexta incômodos, mas ele está tão alheio a tudo e ela tão nervosa e comprometida, que a pobre senhora tem receio de trair-se.
O certo é que ele fica.
Ao começar o trabalho, nota o Barreiros que a porta do guarda-vestidos está entreaberta. Ralha docemente com a mulher. Já lhe tem dito tantas vezes que um móvel daqueles, raríssimo, de estilo e gosto, necessita de cuidados excepcionais. A porta do guarda-vestidos é pesada, e, assim entreaberta, pode empenar o móvel.
E, levantando-se, tranca-a, atirando a chave sobre a escrevaninha.
Tudo isso é feito com a maior naturalidade. Não era a primeira vez que uma cena igualzinha àquela, se havia dado entre os dois, a respeito daquele guarda-roupa. O Barreiros tinha a mania dos móveis antigos. E aí! De quem não tivesse com estes o cuidado exigido!
E, recomeçando a trabalhar, chama a Maria. A criada atende-o. Que lhe vá preparar um bule de chá.
— Um bule bem grande, um chá muito forte, que preciso trabalhar a noite inteira.
E, baixando a cabeça sobre o papel, continua a escrever tranquilamente.
— Tivesse eu virtudes de comediógrafo, disse o velho desembargador depois de uma pausa, aqui faria cair o pano do segundo ato.
E depois de acender o charuto que se apagara:
— A noite inteira Barreiros escreveu.
Para que os meus amigos não digam que estou romantizando, deixo de aludir ou de esboçar o estado da alma de dona Alice, o seu horrível estado da alma com o amante trancado no guarda-vestidos e o marido inconscientemente, ali, de guarda.
Se ela dormiu ou não, não sei. Creio que não. Isso porém não interessa à ação do drama.
Ao amanhecer (aqui devemos levantar o pano do terceiro ato) o Nazareth Barreiros estava doente. O excesso de trabalho, numa noite abrasadora como aquela, causara-lhe pontadas na cabeça e um quebramento do corpo.
Tomou umas cápsulas, inutilmente. Não saiu da alcova toda a manhã, amolentado.
Talvez que um banho morno lhe fizesse bem. Chama a Maria e manda preparar o banho e, só quando a criada lhe vem prevenir que o banho já está preparado, afasta-se ele do quarto.
Dona Alice passou a noite inteira sem saber a sorte do amante, trancado ali dentro do guarda-roupas. Era natural que, ao sair o Barreiros do quarto, o primeiro impulso da pobre senhora fosse correr ao móvel. Foi justamente o que ela fez.
Mas, ao escancarar a porta do guarda-vestidos, um grito rebenta-lhe na garganta. O Silva Gentil estava morto.
Nem podia ser de outra maneira, ele que sofria do coração, trancado a noite inteira entre as quatro paredes de um móvel relativamente pequeno.
Não sei o que se passou pela cabeça da mulher do meu amigo. Há certas situações na vida que pedem resoluções extremas. Aquela era uma delas. Mas a solução dos casos extremos raramente acode no momento em que precisamos dela.
Não acudiu à dona Alice. O que lhe acudiu foi o desnorteamento, o pavor. Ela, com o amante morto, dentro de sua própria alcova! E gritou pela Maria.
As mulheres têm argúcias diabólicas, mas unicamente nos momentos tranquilos. O espírito femenino não foi feito para os grandes golpes.
As duas, bem unidas agora naquela horrenda desgraça, não encontraram uma solução razoável. Não sei mesmo se era possível encontrar. Que fazer em tal emergência? Atirar o cadáver à rua? Escondê-lo? Como? Onde?
Durante dez minutos a alcova foi uma borrasca de nervos.
E as duas discutiam ainda, quando o Barreiros entrou no quarto, de volta do banho.
Com um tom de voz faceto, como que para amenizar o peso da narrativa, o desembargador continuou:
— Não sei se algum dos senhores conheceu a dona Ricardina, irmã do conselheiro Lavrador. Era uma velhota, metida a faceira, que pintada os lábios com carmim, doida por festas e que tinha a mania de namorar todos os rapazes elegantes da cidade. Dona Ricardina era recebida em todas as salas, tinha a preocupação de frequentar os mais chics salões do Rio. Era uma figura ridícula, muita fita, muita renda, muito pó de arroz na pele envelhecida, muito carmim nos beiços que a idade descorava. Não sei porque dona Ricardina não fora ao chá do dia anterior no palacete. Naquela manhã aparecera com um ramo de flores para dona Alice.
Soube então da festa antecedida, da viagem projetada a S. Paulo, do trem perdido.
Era irremediavelmente festeira o diabo da velhota.
— Não há mais razão para se não festejar o aniversário de Alice hoje, o dia exato, lembrou. O motivo era a viagem a S. Paulo; esse desapareceu...
— Bem lembrado! Exclamou o Barreiros.
— Pode-se fazer uma soirée, insistiu a velhota.
Dona Alice interveio:
— Não, não! Já se festejou ontem.
— Festeja-se novamente hoje, repetiu dona Ricardina.
— Barreiros está doente! Teimou dona Alice.
— Já estou bom. O banho restabeleceu-me.
— Não quero festa, não quero.
E fez tudo para dissuadir o marido.
Quando estava doente, o Nazareth Barreiros era uma criatura teimosíssima. Ali mesmo na alcova, pelo telefone, tomou todas as medidas para o baile: a orquestra, a confeitaria, as flores, os convidados. Quando lhe entrei nessa mesma manhã em casa, por ter sabido do trem perdido, ligava ele o telefone para a casa do Silva Gentil, a fim de convidá-lo para a festa da noite.
De novo o desembargador acendeu o charuto que se apagara e, como que gozando a emoção que nos brilhava nos olhos, disse com a displicência de um velho mundano:
— Aí tem os senhores o final do terceiro ato. Soubesse eu escrever, terminava-o precisamente no momento em que Nazareth Barreiros, alegremente, desprendidamente, começara a falar para a casa do amante da mulher, o qual ali estava ao lado dele, morto, trancado no guarda-vestidos.
E, voltando-se para o Álvaro Valente:
— Acha interessante o drama?
— Interessantíssimo. Mas...
— Vai-me observar-me que o não finalizei. É um fato. O drama de dona Alice teve realmente quatro atos bem distintos. Suspendamos o pano.
O palacete de Copacabana encheu-se naquela noite como nunca o vi encher-se em data alguma. O Barreiros passara o resto do dia no telefone convidando toda a gente. Não havia quem tivesse naquela época uma evidência tão brilhante no Rio. A meia noite ninguém podia mexer-se nos salões.
Uma festa arranjada assim de improviso devia resentir-se da pressa, não é verdade? Mas isso não se verificou.
Quando, às dez horas da noite, entrei nos salões, surpreendi-me com o luxo e o tom de rigor da grande soirée.
Havia uma profusão de flores surpreendente. Eram cravos, só cravos vermelhos por toda a parte, aos molhos, nos jarros, nas colunas, nas mesas, em tudo.
Eram os cravos vermelhos a paixão de dona Alice. O marido requintara sempre em adivinhar-lhe os gostos.
Ao chegar ao palacete já se dançava. Havia longas filas de automóveis na rua. Os salões ferviam. Mas não sei que impressão estranha me causou aquilo. Apesar da agitação das salas, apesar das flores, apesar do luxo, apesar das danças, tudo me pareceu triste, e não exagerarei se disser que havia um tom de luto em tudo aquilo.
Costumamos emprestar às coisas o nosso estado da alma. Eu recebera à tarde a notícia da morte de um velho amigo, e era possível que a tristeza, que eu via, nada mais fosse que a minha própria tristeza.
Encontrei dona Alice no primeiro salão. Trazia um vestido de seda mole, escuro, decotado, que a envolvia deliciosamente. Nunca me fez ela uma impressão tão violenta como naquele instante. Estava exageradamente pintada. Mas apesar do carmim, do pó, do baton, de tudo, dava-me a feição de um cadáver. Tudo me causava estranheza: os seus passos eram outros; o brilho de seus olhos, um brilho estranho; a beleza de seu rosto, uma outra beleza. E, ao lado disso, uma inquietação, um ar de sonâmbula, um quê qualquer que a tornava inteiramente outra. E mais se acentuou em mim essa impressão, quando lhe ouvi a voz, uma voz sumida, trêmula, medrosa, com qualquer coisa que eu não sei bem explicar, mas que me infiltrava um frio nos ossos.
Fui eu quem trouxe ao palacete a notícia do desaparecimento do Silva Gentil. A família, não o vendo entrar em casa pela manhã, (ele que nunca dormia fora de casa) mandara procurá-lo pelos clubes esportivos, pelos cafés, por toda a parte. E, como desesperasse, indagara em casa dos conhecidos. Teria acontecido alguma desgraça ao rapaz?
— Nada disso, disse-me o Barreiros, numa roda, no terraço, em que comentávamos o desaparecimento. Vocês se esquecem que o Silva Gentil é moço e que, como moço, tem que pagar tributo à idade. Está por aí em alguma rapaziada.
Houve um momento em que a festa se tornou mais fria e mais triste. Dançava-se quando no salão entrou a mãe de Silva Gentil. Vinha saber se alguém lhe dava notícias do filho. A pobre velha fazia pena na imensa dor de mãe atribulada. Durante cinco minutos ali chorou desabaladamente. Tinha já corrido a cidade, andado por toda a parte inutilmente, indagando, e ninguém lhe dava o paradeiro do rapaz. Saiu depois em prantos, a peregrinar pelas ruas, abatida, corcovada, carregando a sua dor.
Daí por diante, dona Alice me pareceu mais inquieta. Era explicável. O seu coração, com a notícia do desaparecimento do amante, devia estar cheio de mãos presságios...
Não a perdi mais de vista. À meia noite nem mais o riso ela podia forçar.
Notei-lhe uns movimentos ainda mais estranhos.
Andava agora pelas salas com o nariz no ar, como se estivesse a sentir algum cheiro desagradável.
Num certo momento agarrou-me nervosamente o braço, levou-me a uma janela, perguntando-me com a voz surda e os olhos em febre:
— Não está o senhor sentindo um mau cheiro aqui dentro?
— Não.
Com franqueza, eu nada sentia, a não ser o perfume intenso dos cravos.
— Não é possível, não é possível. Eu sinto um mau cheiro, e forte.
E saiu agitadamente, caminho da alcova.
Uma hora depois pareceu-me que dona Alice havia perdido o juízo. O seu estado de nervos era de quase loucura. Andava de conviva para conviva a perguntar se não sentiam o tal cheiro forte que só ela percebia.
A uma hora da manhã, atravessava eu o salão quando ela veio de novo ao meu encontro.
— Diga-me, diga-me, insistiu. O senhor não sente um cheiro?...
Não me custava ser-lhe agradável:
— Sim, sim, um cheiro mau, enjoativo.
E tive que recuar. É que ela, nesse momento, tremeu toda da cabeça aos pés. Um grito saiu-lhe inesperadamente da garganta. Era a explosão súbita da loucura. Correu a todas as salas, gritou por todos os convivas, um por um, doidamente.
— Venham! Venham! O cheiro é aqui! É aqui!
E, diante de todos nós, escancarou de par em par a porta do guarda-vestidos. Um cadáver tombou no chão. Recuamos. Era o cadáver do Silva Gentil.
Estatelados, fitamo-la. E ela, a chorar e a rir, gritou convulsivamente:
— É ele, sim, é ele!
E, de punho cerrados, avançando para o marido:
— Miserável! Bandido! Infame!
Atirando o charuto por cima do peitoril do terraço, o desembargador Alves Moreira concluiu:
— Aqui termina a peça.
Ficamos um instante silenciosos. Lá dentro as moças dançavam ao piano.
— Por que não a escreve, desembargador? Perguntei algum tempo depois.
— Já disse que não tenho nenhum pendor para teatrólogo.
— Só por isso?
Calou-se e, depois, tamborilando com os dedos em cima da mesa:
— E também por outras razões. É que eu ainda não pude esclarecer bem o drama de dona Alice. Não pude ainda saber com exatidão que papel o meu amigo Nazareth Barreiros representou nisso tudo. Desconfiaria da mulher? Tê-la-ia visto dar a chave da casa ao amante? Teria de propósito perdido o trem? Seria de caso pensado que fechou a porta do guarda-roupas? Seria de caso pensado que escreveu a noite inteira? Que no dia seguinte ficou na alcova amolentado? Não teria sido um plano o baile da noite? Enfim, não teria sido aquilo tudo uma vingança horrenda, longamente pensada, friamente executada?
— E que lhe parece? Indaguei ansioso.
— Estou tentado a acreditar que o foi, respondeu.
E com um sorriso e um tom de voz que só se encontram nos artistas:
— Mesmo porque, para a intensidade do drama, é necessário que o seja.
Se vosmecê não conheceu a Binoca pode dizer, sem pena, que nunca botou os olhos em mulher nenhuma, disse-me o Pedro Guandu, de cócoras, junto à tripeça do fogão, preparando o café.
Era de noite, sob as estrelas, à beira do tijupá sertanejo em que nos aboletamos para dormir.
A conversa havia descambado para mulheres. O Pedro Guandu vinha narrando as aventuras do seu tempo de rapaz e, como eu lhe falasse nas minhas, parou de soprar as labaredas da tripeça, para contar daquela outra saia.
— Foi, com licença da palavra, a mulatinha mais danada que Deus já pôs neste fundão de terra. Um despotismo de bonita, era mesmo um alarve de beleza, o capeta da mulherzinha.
Garanto que, lá pelas cidades, vosmecê nunca viu mulher como a Binoca. Assimzinha, deste tamanho — uma miserinha de gente, mas toda carnudinha, viva, como se fosse feita para um brinquedo. Não sei mesmo como Nosso Senhor pôde botar numa coisa tão pequena tanta beleza junta, tanta faceirice e tanta tentação. Não era mulher, não senhor, só podia ser o demônio vestido de saia.
Olhe que eu tenho andado muito e já tenho visto muita santa rica nas igrejas, mas lhe juro que nunca vi seda nenhuma dos mantos das santas mais macia que a pele da mulatinha.
O que eu não sei é me explicar, mas o moreno da pele da Binoca era diferente do das outras mulatas: era assim uma cor como de manga rosa bem madura, e no diacho do couro da bichinha havia um brilho tão não sei como, que a gente ficava supondo que ela tinha luz dentro da carne.
Os olhos, uns brutos assim! Parecia que todo o corpo só tinha sido feito para carregar os olhos. E o que eu não pude ainda compreender é como eles, tão grandes, se podiam mover com tanta ligeireza, ora pra aqui, ora pra ali, ora pra acolá, depressa, inquietos, quentes, de deixar a gente banzando. Foram os olhos mais bonitos que já pisaram neste mundão de serra que não acaba mais. E os diabos eram tão úmidos e tão cheios de luz que eu hoje acredito no milagre de haver fogo aceso dentro d’agua.
Era ali nos olhos que estava o veneno da mulher: se um cristão reparasse bem, notava no fundo da tentação daquele brilho, uma coisa qualquer, assim parecida com febre e que não era da terra, mas do inferno.
Parou um instante e continuou:
— Foi numa noite, no samba do Ricardo Cururú, ali nas Águas Pretas, que eu vi pela primeira vez a Binoca. Estrelas como mosquitos lá no céu. No momento em que ela entrou, olhei para cima e as estrelas se tinham sumido todas de uma vez. A luz dos olhos dela era mais forte, e as estrelas, coitadinhas! Não brilham quando nasce o sol.
Nem gosto de me lembrar daquela noite! Eu desafiava à viola o Manecão da Baixada quando ela chegou. E, quando ela foi pisando a chinelinha na porta, eu ia abrindo a boca para entupir o Manecão com um verso. Quem disse? Fiquei de boca aberta, o queixo caído, os dedos suspensos da viola, a viola doidamente apertada ao peito.
Vosmecê vai dizer que é potoca minha, mas indague do Rufino Calangro que estava presente: fiquei com os dedos fora das cordas, frias a viola continuou a tocar. Era o baticum do meu coração que estremecia as cordas. E ela foi entrando latada a dentro, risonha, alegre, toda saracoteada, com aquele andarzinho de jassanã vadia, estalando a chinelinha no chão que, ao bater da chinelinha, adquiria um som como o dos sinos. Não foi perguntando quem estava de guarda. Havia violas tocando e ela, sem salvar quem estava presente, sem ao menos ir lá dentro beijar o santo, saltou para o meio da latada, a castanholar os dedos, "cortando" o baião.
Que mulher aquela! Se Nosso Senhor visse aquele diabinho dançando, Nosso Senhor, a esta hora, era pecador como nós.
Fiquei com a alma descangotada. Desde essa noite não pude mais tirar do nariz o cheiro daquela mulher, aquele cheiro de flor que eu sentia de longe como se tivesse faro de abelhas.
Fiquei um homem perdido. Nesse tempo eu era agregado do coronel João Bezerra, das Guaribas, o maior fazendeiro que havia por estas redondezas de sertão. Eu tinha até vergonha do dinheiro que ganhava porque, desde aquela maldita noite em que vi a Binoca, não houve empregado mais mole, mais triste e mais distraído do que eu. O coronel era um homem brabo. Quando ralhava com uma pessoa era de relaxado e sem vergonha pra baixo. Mas sério, bom e amigo até ali — e, não sei porque, gostava de mim como se gosta de um filho. Não fosse isso, estava eu sem emprego.
E, como a cafeteira começasse a ferver, o Pedro Guandu despejou-lhe duas colheres de café moído e continuou:
— Aquela mulher foi o precipício de muita gente neste sertão. Muito homem de respeito nesta terra perdeu o juízo e a vergonha.
O capeta da bichinha tinha trazido a sorte de arrastar as criaturas para a perdição. Uma vez o padre Victorio, vigário da Barra do Corda, ia levantando o Santíssimo, na missa, quando a Binoca foi entrando igreja a dentro, com aquele andarzinho repinicado que moía e descadeirava o coração da gente. Ainda hoje, quando se fala nisso aqui nestas brenhas, todo o mundo treme: o padre ficou abestalhado, tonto e, por esta luz que nos alumia, a hóstia caiu-lhe das mãos. E o padre Victorio foi o vigário mais sério e mais santo de que já se teve notícia por aqui.
O Bernardo Gameleira, rapaz de bem, já com a sua vida bem começada, com o seu gadinho aumentando, lá está na cadeia do Grajaú, cumprindo sentença, por ter esfaqueado o Mundico Tiririca, quando este beijava a Binoca, na farinhada do Chico Coité.
Eu mesmo já me ia botando a perder: estive quase não quasi a despejar a carga do clavinote no Benedicto Pinga-Fogo, só de inveja e danação, porque a Binoca lhe deu um ramo de rezedás na loja do Zeferino da Benta.
O Pedro Guandu tirou a cafeteira do fogo. Quebrou a rapadura nas xícaras e esperou que o pó do café assentasse no fundo da cafeteira.
E, voltando-se a sentar-se, prosseguiu num leve tom de amargura:
— Uma sina triste Deus deu à Binoca — ela não tinha afeição por ninguém. Pouco se lhe dava estar hoje nas mãos de um, amanhã nas mãos de outro. Parecia mesmo que o seu gosto era mudar de galho como os passarinhos. O que ela queria era a pândega, o forró, a rapaziada e isso com uma gulodice tão fora de termo, como se pensasse que o mundo ia acabar.
O sobrinho do major Macario, moço rico, direito, deu-lhe tudo — casa, roupa fina, até vestido de seda, daquela que range e brilha, mas um dia lá deu com a mulata nos braços do Quincas Tucano, um caboclinho muito ordinário que andou por aqui cantando modinhas.
Eu, por minha vez, ofereci-lhe o que tinha. De uma feita, em que estava com a cabeça completamente perdida, quis que ela fosse comigo até ao padre para casarmos. Riu-se de mim.
Comigo vá lá — eu não valia nada — ela podia ter razão, mas que diabo! Eu lhe entregava um coração doidinho de amor para toda a vida.
Foi mais ou menos por essa época que sucedeu o caso mais falado deste sertão. Eu assisti tudo e posso contar como ninguém.
Um dia o coronel Bezerra, aquele de quem eu era agregado, me chamou no fundo do paiol de milho e mandou que eu fosse levar à Binoca um corte de cambraia fina.
Caí das nuvens. O coronel era um homem sério, de respeito, já velho, amigo da família, contra o qual, nem mesmo no tempo de moço, se tinha que dizer nesse particular de mulher.
Ele me confessou tudo, coitado! Estava completamente apaixonado pela mulatinha. Vinha-se contendo em consideração à sua posição, em consideração à minha patroa siá dona Violante, mas a tentação da Binoca tinha-lhe escangalhado a alma.
Fiquei com pena, palavra. Fiquei com pena dele, um homem tão bom no fundo e que, mais dia menos dia, acabava na boca do mundo, metido em algum escândalo com aquela malvada.
E fiquei com pena de siá dona Violante, uma santa de bondade, que não merecia aquela ingratidão, já quase no fim da vida.
E o coronel, tremendo como uma criança, me pediu um milhão de vezes que eu calasse bem a boca, que não dissesse nada a ninguém, pois ele não queria dar à minha patroa o desgosto daquela fraqueza, nem ao povo do lugar o ridículo daquela paixão.
Empregado é empregado — fui levar o corte de vestido. Fui-me roendo, já se vê, porque eu também gostava da mulata, mas empregado é empregado — fui.
Durante dois meses o coronel visitou a casa da Binoca. Como ele tinha também a fazenda dos Matões, inventou umas reformas e ia lá (nos Matões) duas ou três vezes por semana. Levava-me como guia e eu ficava num capão de mato perto da casinha da rapariga, enquanto ele lá passava a noite. Tudo isso com muita reserva. Siá dona Violante não desconfiava nada.
Aqui na roça tudo se sabe e até parece que a gente adivinha o que se passa na casa alheia, mas ninguém tinha a menor sombra de desconfiança. Só quem sabia era eu, ele e a Binoca. Ela (eu até me admirei) andava direitinha, comportada, decente que eu até pensei que chegasse a sua vez de criar juízo.
Por esse tempo o filho do coronel, seu doutor Mundoca, que estudava em Pernambuco, formou-se e veio visitar os velhos.
Quando o moço estava para chegar, o coronel me chamou de novo no fundo do paiol de milho: — "Olha lá, Guandú (foi ele quem me botou esse apelido) se antes era preciso segredo, agora muito mais. Será para mim uma vergonha se o meu filho souber que eu, nesta idade, ando enfeitiçado". — "Descanse, patrão!" E calado já estava, calado fiquei.
Seu doutor Mundoca chegou e foi tal festão lá nas Guaribas que até hoje, quem não morreu, se lembra ainda com saudade.
Moço simpático o doutor Mundoca! Simples, alegre, como ele só! Soberbia não tinha, nenhuma: quando saía a passeio ia parando para falar com toda a gente e bebendo café na casa de qualquer pobre.
Com a chegada do doutor o coronel ficou mais reservado ainda, mas assim mesmo, quando podia dar uma escapula, zás! Batia comigo para os Matões, no rumo da casa da Binoca.
O que me espantava era ninguém desconfiar, nem mesmo o doutor que era um moço vivo como não sei que diga.
Mas aquilo não podia acabar bem. O coronel, embeiçado como andava, vivia convencido de que a mulatinha não o enganava. Eu bem sabia que ele andava errado. Pois se ela trouxe a sina de ser de todo o mundo!...
Uma noite, vá me escutando, partimos dos Matões, para ir amanhecer nas Guaribas.
O coronel queria passar um pedaço da madrugada com a Binoca. No meio do caminho a noite escureceu como uma danada e o trovão roncou. Fomos indo, fomos indo devagarinho.
Quando chegou perto da casa da mulata o coronel desapeiou e eu fiquei no capão de mato, como era de costume.
Nunca vi o velho tão esquisito como naquela noite. Quando lhe fui segurar o estribo para desmontar, senti que ele tremia — pensei que fosse o frio da chuva que vinha zoando.
O que se passou lá dentro da casa só eu sei dizer, que ele me contou tudo na hora da morte, no dia seguinte.
A coisa se deu desta maneira. Ele encontrou a porta da Binoca aberta, apenas encostada. Imaginou que fosse algum descuido dela e seguiu para dentro na pontinha dos pés, no rumo do quarto, para pregar-lhe um sustinho. Apalpando aqui, apalpando ali, foi caminhando, até que esbarrou no punho da rede. E, devagarinho, pôs-se a apalpar os punhos quando a sua mão tocou numa cabeça de homem a dormir juntinho da cabeça da Binoca.
Numa hora dessa o diabo é maior do que Deus. O coronel ficou com o juízo mais cego do que a noite. Puxou da faca que trazia à cintura e foi golpeando, como um desvairado, na escuridão, calado, rangendo os dentes. Passou-se tudo num minuto.
Quando o coronel deu por si, estava atracado pelo homem que ele esfaqueava, e era esfaqueado também. Nem uma candeia de azeite, nem um relâmpago para que os dois se vissem. E, no pretume do quarto, coseram-se horrivelmente de facadas, golpes de lá, golpes de cá, até que rolaram no chão, banhados de sangue, estrebuchando.
Quando ouvi os gritos da Binoca e que corri de luz acesa, estavam dois homens em petição de miséria, cosidinhos de punhaladas. Um era o coronel, ainda vivo, ainda falando, mas já para morrer e o outro já sem fala, morrendo.
— E o outro quem era? Perguntei ansiosamente.
O Pedro Guandú respondeu com uma serenidade dolorosa que me arrepiou os cabelos!
— O doutor Mundoca, filho do coronel.
Galdino deu três repinicados na prima e nos bordões, tamborilou os dedos na tampa da viola e gritou para o Chico Bahiano que, sob a galhada do cajueiro, tinha os braços aos ombros da Janoca:
— Num ajuntamento como este é que eu queria lhe topar, meu branco! Se vosmecê é mesmo cantador pegue na viola e se arraste aqui pro lado.
Era no dia da Conceição, ali no alto do morro, em frente à igrejinha, debaixo do cajueiral.
A manhã Deus a tinha feito deliciosamente azul para aquele domingo de festa. Havia uma alegria esvoaçante em tudo: no arvoredo que parecia mais remexido que nas outras manhãs, nas bandeirolas da igreja que só naquele dia esvoaçavam, nas fitas e nas rendas das matutas, palpitantes ao vento.
Desde o amanhecer que o sino, aquele tagarela sinozinho de arraial, vibrava desesperadamente pelos ares, anunciando a missa. Mas, como para a missa fosse muito cedo ainda, o povo se espalhava à sombra do arvoredo, a ouvir as violas dos troveiros.
O Galdino insistiu, galhofeiramente, no desafio.
— Olá, meu branco, vosmecê não quer me escutar? Será possível que a Janoca lhe tenha posto mouco?!
O Chico Bahiano olhou-o por cima dos ombros carrancudamente e baixou os olhos, a colocar na aba do chapelão de couro o ramo de alecrins que a Janoca lhe dera. Mas, ao volver o olhar para o povo, viu que toda a gente o fitava estranhamente, com uma interrogação nas pupilas.
Entre o Galdino e o Chico Bahiano havia um fundo de rancor que nunca explodira, mas que todos presentiam.
E tudo nasceu por causa da Janoca. Quando lhe morreu o marido, ela ficou sozinha no mundo, com os seus dezenove anos em plena flor, um par de olhos que eram tições, e a mais candente, a mais cheirosa pele morena do sertão. Foi uma fervura na cabeça dos rapazes por aquela verde região de campos e morros. O Galdino, que nesse tempo ia tendo a fama de primeiro cantador dos arredores, não tirou mais a viola do peito, compondo trovas de amor à morena.
A viola tem o segredo de amolecer o coração das matutas. A Janoca que, durante os doze meses de luto, se mostrou esquiva a toda gente, um dia, no dia em que estreou a primeira saia de cor, ao ouvir o Galdino cantar-lhe uma "louvação" no samba do Mané Sacrista, amarrou-lhe uma fita no pescoço da viola. Foi o bastante para que ninguém mais arrastasse as asas à viuvinha, foi o bastante para que a Janoca, desde essa noite, ficasse chamada a Janoca do Galdino.
Mas a grande verdade é que os tais amores, já tão falados, não passavam daquele laço de fita.
Havia na Janoca a vaga repulsa em se deixar cair, havia no violeiro a covardia de conquistar a posse.
E, estavam nisso, quando apareceu por ali, inesperadamente, a figura do Chico Bahiano. Vinha, não se sabia bem de onde, lá dos cafundós de outros sertões, com uma enorme manada de bois para vender na feira, e uma grande porção de homens para pastorear os bois.
A chegada do boiadeiro foi um acontecimento no arraial. Correram lendas sobre a sua riqueza fabulosa: tinha um sem conto de fazendas e não havia mais cifras para o número de suas vacas.
E, de fato, o Chico Bahiano tinha qualquer coisa de deslumbramento para aquela gente simples.
Vestia sempre de brim branco, trazia um lenço de seda escarlate ao pescoço que lhe dava um quê de distinção, prendia as calças com um largo cinto de couro trabalhado, onde havia uma fivela que brilhava como ouro, e andava com os dedos cheios de anéis que faiscavam a ponto de cegar os olhos. Todo ele era realmente de impressionar: as garruchas que carregava à cinta eram umas garruchas estranhas que só ele sabia manejar, o relógio — um bruto — e a corrente um "dispotismo" e, todas as vezes que metia a mão nos bolsos, sacava lá de dentro um "mação" de cédulas de pôr a gente sucumbida.
Mas, o que mais estonteava o arraial, eram os arreios do cavalo, todos eles de prata, todos, brida, cabeção, fivelas da cinta, estribos, tudo.
E o que deslumbrava ainda mais era o próprio cavalo, um castanho queimado, fogoso, árdido, relinchante, pelo qual dizia o dono ter enjeitado contos de réis e que, na verdade, não tinha, por ali, outro igual na marcha e no esquipado.
O Chico Bahiano era um sujeito alto, espadaúdo, cabelos lisos e pele de branco, tostada pelo sol. Tinha-se à primeira vista a impressão de que nele estava um fidalgo perdido na rudeza dos campos, mas, aos poucos, a sua figura denunciava-se plebeia e vulgar como a de qualquer daqueles homens.
Tudo nele era empáfia e arrogância que o dinheiro traz. Ele próprio se esquecia da sua linha de importância. Se era preciso correr atrás de um garrote, corria, como se nunca tivesse tido outra vida a não ser a de vaqueiro; descia a curar as bicheiras de seus bois; bebia cachaça como qualquer pé rapado; dançava nos sambas em mistura com o pessoal mais baixo e sustentava à viola, o "desafio", com qualquer mequetrefe que o provocasse.
E esse misto de homem graúdo e homem do povo foi o segredo do seu triunfo no arraial.
O seu primeiro olhar, ao pôr os pés naquelas terras, foi para a Janoca.
Estava ela na lua de mel do seu namoro com o Galdino, virou-lhe pois as costas. Mas o Mané Sacrista, que sempre tivera queda para "leva e traz", pôs-se ao serviço do boiadeiro para seduzir a morena. E fez-se o cerco: o Mané passava os dias em casa da Janoca convencendo-a que agarrasse firmemente o ricaço, doirando-lhe as riquezas e a prodigalidade e diminuindo o Galdino, um pobre cantador de viola, sem eira nem beira, que não podia nunca fazer a felicidade de uma mulher que se prezasse. A viuvinha, com a sua ponta de paixão pelo violeiro, tirava o corpo fora.
Mas um dia...
Um dia estava a Janoca à porta do vigário, quando o boiadeiro, montado no castanho queimado, riscou no terreiro. O animal, tolhido pela mão de rédea do dono, parou subitamente, num movimento arrogante, soltando um relincho triunfal de "cavalo brioso".
A Janoca teve, como o vigário, uma exclamação de entusiasmo:
— Cavalo bom, de verdade!
O Chico Bahiano saltou calmamente da sela e, trazendo o cavalo pela rédea, veio até à rapariga, dizendo:
— Está aqui.
— Pra que é isso? Perguntou ela, sem compreender.
— O cavalo é seu.
Ela ficou repentinamente de mãos frias e com o coração num "baticum" desesperado.
— Meu?
Ele meneou a cabeça afirmativamente.
— Com arreio e tudo? Interrogou a moça numa dúvida nervosa, os olhos a faiscar, a voz gaguejante.
— Com arreio e tudo!
A Janoca teve uma emoção desvairada. Aquele cavalo e aqueles arreios eram o seu sonho de matuta, como eram o sonho de toda a gente das redondezas. E tinha-os agora nas mãos, seus, podendo usá-los, podendo ostentá-los nas festas como uma rainha ostenta o seu trono! Umedeceram-se-lhe os olhos, as mãos esfriaram mais, toda ela ficou derrotada em frente do boiadeiro.
Nessa mesma tarde soubesse de tudo no arraial. A Janoca deixou de ser "a do Galdino" para ser a Janoca do Boiadeiro.
Mas o que mais causou espanto no arraial foi a tranquilidade do violeiro. O Galdino, que nunca engolira uma desfeita, não se moveu nem contra a rapariga nem contra o usurpador. Se lhe falavam na coisa sorria com uma jovialidade estonteante: — Um dia é da caça e outro do caçador.
Todo o mundo esperava mais tempo menos tempo uma estralada qualquer.
E agora, quando o cantador atirou o desafio à cara do boiadeiro, houve em toda a gente um sacudir de curiosidade. Que iria sair dali?
— Não vê que eu me baixo a cantar contigo, caboclo! Disse o Chico Bahiano superiormente.
Uma decepção. Todos se entreolharam; a Janoca empalideceu.
O Galdino, que continuava a repinicar a viola assanhadamente, soltou uma quadra no rosto do rival:
— Eu quiz louvar a Janoca
Mas não achei companheiro:
Nem mesmo o amor dá coragem
Ao medo de um boiadeiro.
Uma gargalhada estalou pela sombra dos cajueiros.
— Está com medo, meu branco! Está com medo! Gritaram os mais ousados.
O Mané Sacrista aproximou-se do Chico Bahiano:
— Não, meu patrão, não pode ser. Desculpe a má palavra, mas vosmecê tem que aceitar o desafio. Fica feio. Vosmecê é cantador, diz que é, e é mesmo. Já tem cantado com todo o mundo, cantado e vencido, e por que não quer cantar com o Galdino, o primeiro violeiro aqui do lugar?! É feio! E além disso é pra louvar a Janoca, moça de que vosmecê gosta.
O boiadeiro virou-lhe as costas com um muchocho e um mover de ombros. A Janoca, que o fuzilava com o olhar, chegou-se trêmula e branca:
— Que é isso, Bahiano? Pois então tu que és cantador de fama te negas a fazer uma "louvação" a mim?!
E, apanhando uma viola encostada a um cajueiro, estendeu-lhe a magnificamente:
— Toma! Vai derrubar o Galdino!
O povo formou-se em roda. Chico Bahiano concertou o barbicacho do chapéu, sentou-se fronteiro ao Galdino, experimentou a afinação das cordas e esperou que o rival começasse.
O Galdino puxou pelo pigarro, temperou a viola e soltou, com uma voz apaixonada e ardente, olhos cravados na Janoca:
— Os teus oios são de fogo,
Queimam mais do que um tição;
Parece um velho roçado
O meu pobre coração.
E gemendo pelos bordões cantou de novo:
— O meu pobre coração
E todo ramo e fulô,
Tudo rebenta cheirando
Onde Janoca passou.
Estalaram palmas na multidão. O vigário que chegava para a missa parou, acotovelado entre o povo, para ouvir aqueles dois turunas. O Galdino fechou os olhos, fazendo as cordas trinarem, como à espera de uma resposta. O Chico Bahiano não se fez rogado; apertou a viola ao peito e versejou:
— Quando a Janoca passou
No gapó do igarapé
Até nas foias ficou
O seu cheiro de muié.
O Galdino não deixou sequer que ele se demorasse na toada da rima e fizesse uma nova endeixa. Rápido, como para mostrar que era cantador de agilidade, arrancou-lhe o "verso da garganta", improvisando:
— O seu cheiro de muié
Ninguém pode descreve,
Entra no peito da gente,
Entra sem a gente vê
Dessa vez foi o Chico Bahiano quem lhe tomou o "verso da boca", vingando-se numa quadra feliz:
— Entra sem a gente vê,
Lá de dentro não sai mais,
Por mais véio que se fique
Inda o cheiro se traz.
Houve em toda aquela gente um só grito de aplauso. O vigário, que estava ao lado de Mané Sacrista, disse com um entusiasmo genuinamente sertanejo:
— É cantador de verdade!
O Galdino sorria com as aclamações ao rival.
— Espera que eu te vou atrapalhar, bichão! Disse.
E, fitando languidamente a Janoca, a boca bem junto das fitas da viola, cantou:
— Uma vez em seu terreiro
Pondo a camisa a secar
Sucedeu um caso virge
Um caso de admirar...
E encarando inesperadamente o boiadeiro: — Conta o caso, bichão! Conta o que sucedeu!
Era um truque sutil de cantador amestrado.
O outro perdeu a cor. Abriu os lábios para dizer qualquer coisa em resposta, mas, de súbito, parou, como se nada lhe tivesse acudido à rima. Houve um choque na multidão.
— Que é isso, meu branco! Não deixe o verso cair no chão! Chacoteou o Galdino.
O Chico Bahiano fez uma nova tentativa, mas nenhum verso lhe saiu da garganta. Toda a gente cravou de uma só vez, involuntariamente, o olhar na Janoca.
Ela estava branca como a parede da igrejinha, ansiosa, ofegante, com os dois tições dos olhos no boiadeiro, a despedaçar desesperadamente nos dentes o lencinho de rendas.
— Apanhe o verso, meu branco, apanhe! Não deixe o bichinho morto aí no chão! Tornou a gritar o Galdino, sempre a dedilhar a toada da cantiga.
A ansiedade crescia. O boiadeiro não se dava por vencido.
Três vezes tentou o começo de três versos e nada lhe acudiu para dizer. A fisionomia do Galdino resplandecia:
— Estás derrubado, bicho velho! Assim é que eu gosto de machucar. Já que não podes levantar o verso do chão, eu levanto.
E improvisou com a voz mais límpida e mais pura do que nunca:
— De dez léguas em redor
Veiu gente de besteira
Correndo em riba do cheiro
Da camisa da roceira.
Foi um delírio. A Janoca correu como uma doida a atirar-se nos braços do Galdino.
À tarde, depois da procissão, lá no fim do cajueiral, o Chico Bahiano pedia dolorosamente ao Mané Sacrista que falasse à Janoca.
O alcoviteiro coçava desanimadamente a cabeça. Impossível! Pois ele tinha deixado o verso cair no chão, louvando a morena! Não havia mais promessa capaz de arrancar a morena do Galdino.
Um rapazinho chegou-se trazendo pelo cabresto o castanho todo arreado.
— Seu Chico Bahiano, está aqui que a Janoca do Galdino lhe mandou. Mandou lhe dizer que esse cavalo está muito fogoso, muito árdido e ela não pode mais montar.
O boiadeiro olhou para o sacristão. Este ergueu-se, coçando mais desesperadamente a cabeça:
— Eu não lhe dizia? Vosmecê foi deixar o verso cair no chão, louvando a moça. Não há matuta que perdoe.
Você está magríssimo. Esteve doente?
— Vários meses.
— No Acre?
— Quando de lá voltei. Depois do meu caso nunca mais tive saúde.
— Teve você um caso?
— E horrível. Uma mulher...
— Ah!
E, no lusco-fusco daquela tarde de inverno, Carlos Augusto arrastou-me para os fundos de um café, todo embuçado na capa respingada de chuva.
— Não sei se você se lembra de que, quando daqui parti para o Acre, era noivo?
— Da Esther Teixeira.
— Justamente. Os pais eram ricos e eu pobre. Não queria casar-me sem possuir alguma coisa. Apareceu-me aquela situação no Acre. Parti com a ânsia louca de enriquecer.
— E enriqueceu?
— Ganhei o suficiente para não morrer de fome. Durante três anos lá estive satisfeito, trabalhando, sem a mais pequenina alteração de saúde. No fim de três anos as saudades, as cartas da noiva, o desejo de casar-me, fizeram-me voltar. Embarquei em Manaus num vapor do Loyd. Vinha nessa trepidação deliciosa do noivo que há muito não vê aquela que vai ser a sua eterna companheira da vida. Foi no Pará que a tal mulher embarcou.
— Que mulher?
— A do meu caso. Embarcou sozinha. Era uma criatura leve, fina, com um quê qualquer de vaporoso nas rendas e nas sedas esvoaçantes que lhe cobriam o corpo. O olhar tinha uma chispa que me impressionou logo ao primeiro momento. Não sei bem o que era, mas havia qualquer coisa de trágico e de sinistro naqueles olhos negros. Mas o que me impressionou profundamente, violentamente, foi a parecença, a incrível parecença que nela encontrei com minha noiva.
— Com dona Esther?
— Sim. Era de estontear. Quando ela ria, principalmente quando ria, a semelhança era completa. Aquele mesmo dobre, ou melhor, aquele mesmo gorjeio das gargalhadinhas de Esther, surpreendi-o nas suas gargalhadas. Aquele ligeiro e lindo estrabismo de minha noiva lá estava perturbadoramente reproduzido na tal mulher.
— Seriam irmãs?
— Deixe-me contar.
Sem querer, senti-me arrastado para aquela criatura.
Pouco após a partida do navio, tive a surpresa de verificar que a porta do seu camarote ficava fronteira à porta do meu, separada apenas por um corredor estreito. Sem querer, encontrava-a muitas vezes.
No dia seguinte éramos dois bons amigos, conversávamos longamente no tombadilho e as nossas cadeiras de viagem estavam juntas. Era o namoro aberto, aos olhos de todos.
Contou-me então a sua vida. O amante abandonara-a no Pará e, depois, sentindo saudades, mandara-a buscar.
Vinha ao Rio encontrar-se com. ele.
Não alonguemos esta história: ao avistarmos o Recife tínhamos tudo combinado. Passaríamos a noite em terra, longe da monotonia de bordo, na ânsia de dois corações que se desejavam.
Chegamos à tarde no Recife. O navio só sairia no dia seguinte, às onze da manhã. Era o tempo bastante para gozarmos um pouco de liberdade em terra.
Interessante, interessantíssima a tal mulher! Era uma dessas criaturinhas que fazem esquecer as horas, que enfloram e douram um trecho de existência. Alegre, viva, tinha o dom de tudo reviver e de tudo alegrar.
Já ia escurecendo, quando entramos num hotel para passar a noite. O nosso jantar foi no quarto, um pouco à boêmia, um pouco à estudante, numa intimidade festiva de risos e de beijos.
— E de vinhos...
— Não. Nenhum de nós bebia. Foi no fim do jantar, quando ela trincava uma maçã, que lhe senti a primeira perturbação. Empalideceu de súbito, levou a mão ao peito, comprimindo-o, quis respirar e não pôde, abriu a boca e ia desmaiando.
— Que era?
— Explicou-me minutos depois, quando a crise passou. Em mocinha tentara suicidar-se pelo desprezo de um namorado. A bala ofendera-lhe um órgão qualquer lá dentro e, de tempos em tempos, vinha-lhe aquela dor, aquela falta de ar, aquele começo de desmaio.
— Não é nada, passa, disse-me abrindo a bolça e tirando um vidro de éter.
Pus-lhe a mão ao peito. O coração batia-lhe como se lhe quisesse saltar de dentro das carnes.
Dez minutos depois tudo havia passado. Ela voltava a ser a mesma mulher ridente, a mesma alegria estourante de garota.
Deviam ser duas horas da madrugada quando adormecemos.
Durmo sempre pouco, quando tenho a preocupação de acordar cedo, no dia seguinte.
Eram oito horas da manhã quando acordei. Havia sonhado que perdera o navio e, mal abri os olhos, corri ao relógio para verificar as horas.
Era tempo de nos prepararmos. Daí a três horas o navio estaria de partida.
— Acorda, dorminhoca! Pus-me a dizer no meio do quarto, alegremente.
E disse a primeira vez, a segunda, a décima. Ela não acordou. Cheguei-me perto, sacudindo-a:
— Acorda, que são horas!
O seu corpo estava hirto, inteiriçado, de uma rigidez completa. Pensei que aquilo não passasse de brincadeira.
Tornei a sacudi-la, a agitá-la, fazendo-lhe cócegas. Nem um movimento, nem um sinal de vida.
Corri assustadamente à janela e escancarei-a. Uma golfada de sol entrou, iluminando o quarto. Não sei como não tombei no chão. O quadro era horrível: em cima da cama aquele corpo branco, duro, na rigidez impassível dos cadáveres e um filão de sangue a lhe descer da boca.
Salpiquei-lhe, às doidas, água no rosto, palpei-lhe o pulso, friccionei-lhe o peito, auscultei-lhe o coração. Estava morta.
— Morta?
— Irremediável, desgraçadamente morta. Veja você a minha situação. Calcule-a. A viagem perdida, a polícia, as complicações de um processo, a cadeia, tudo, tudo me passou, rápido, pela cabeça. Quis gritar, mas qualquer coisa me estrangulava a garganta. Foram minutos indescritíveis, eu a passear pelo quarto, tonto, doido, sem uma resolução, trêmulo, batendo o queixo, os olhos cravados naquele cadáver que uma réstia de sol iluminava. Afinal, veio-me um influxo de coragem.
— Chamou a polícia?
— Toquei a campainha para chamar o criado. Mas, mal a campainha tinha acabado de retinir, o medo, o pavor invadiram-me de novo a cabeça. Por que não havia eu de fugir daquilo? Quando eu entrara no hotel dera um nome trocado; ninguém ali me conhecia, nem sabia de onde eu tinha vindo. Por que não fugir? Por que não escapulir pelas escadas e meter-me a bordo?! Ninguém a bordo sabia daquela noite passada no hotel; ninguém no hotel sabia que eu tinha vindo de bordo.
E pus-me a vestir às pressas. O criado bateu discretamente à porta. Que ia eu dizer-lhe? Uma ideia acudiu-me de súbito:
— Traga o café.
Cinco minutos depois ele voltava com a bandeja e o bule.
Recebi-o fora da porta, coloquei a bandeja sobre a mesa de cabeceira e, como não houvesse ninguém na escada, desci-a forçando uma calma que eu não tinha. Mal ganhei a rua, tomei o primeiro automóvel que passou e mandei tocar para o porto.
Mas o automóvel ainda não havia vencido um quilômetro, quando dentro de mim se acendeu uma revolta. Aquilo que eu estava fazendo era infame. Como ia abandonar, assim, num quarto de hotel, o cadáver de uma mulher que eu amara uma noite?!
O sangue subiu-me à cabeça, foi num instante que a resolução me surgiu.
— Volta ao hotel! Gritei ao motorista.
Quando lá cheguei, corri imediatamente ao quarto. Empurro a porta, abro-a e tenho de encostar-me à parede para não cair.
— Que era?
— O quarto estava vazio. A mulher que eu deixara morta, em cima da cama, já ali não estava. Um calor de febre subiu-me à cabeça. Procurei loucamente o cadáver por todo o quarto.
Trêmulo, açodado, faço retinir todas as campainhas. O criado corre ao meu chamado.
— Onde está a mulher que eu aqui deixei?
— Não sei, respondeu-me ele.
— Você não a tirou daqui?
— Eu?!
— Não a viu sair?
— Não.
Imagine o meu estatelamento. Era de pôr uma criatura doida.
O criado ficou a olhar-me por muito tempo, apalermado. Percebi-lhe depois nos lábios um riso de troça. O tratante imaginava-me um amante infeliz, a quem a mulher tivesse fugido.
Calei-me. O caso era tão estranho que eu não sabia o que dizer. Paguei a conta do hotel e sai.
Eram já dez horas. Faltava uma hora apenas para a partida do vapor.
Corri para bordo. Não estava mais em mim. Os pulsos batiam-me acelerados, um calor de febre queimava-me o sangue.
Ao pisar a bordo, uma nova emoção, um novo choque, um novo estatelamento. A tal mulher, aquela que eu havia visto morta na cama do quarto do hotel, tinha sido encontrada morta no seu beliche.
Carlos Augusto calou-se.
Fitei-o demoradamente como se fita a um louco.
Estaria aquele rapaz na plenitude do seu juízo? Não seria aquilo uma história de doido?
Ele molhou os lábios que o frio daquela tarde de inverno enregelava, e continuou:
— Quando lhe entrei no camarote que a polícia examinava, e que a vi rígida, morta, na mesma posição que eu tinha visto no quarto do hotel, com o mesmo fio de sangue a lhe escorrer da boca, senti que ia desvairar. Tive forças para recolher-me ao meu beliche. Nada mais sei. A febre dominou-me durante toda a viagem.
Ao saltar no Rio eu era um cadáver.
E aqui um choque maior me aguardava.
E calou-se de novo, como si não tivesse forças para contar.
— Diga, fale, conclua! Pedi-lhe nervosamente.
— A minha noiva, a Esther, tinha sido encontrada morta no seu quarto.
Recuei. Tudo aquilo me punha a cabeça a arder. Cravei-lhe de novo os olhos. Ele, com o olhar em fogo, um ligeiro tremor nos dedos, concluiu.
— Contei depois os dias, comparei-os. A minha noiva morrera na mesma manhã que a mulher de bordo morrera em Pernambuco.
E com um ar sinistro que me meteu medo:
— Elas pareciam-se tanto...
Lá fora a chuva diminuía. Carlos Augusto embuçou-se mais na capa, tirou o relógio, viu as horas, ergueu-se e disse-me estendendo a mão:
— São cinco horas. Vou ao médico tomar a minha injeção de quinino.
O ilustre Dr. Matos de Lacerda, ao entrar àquela hora da noite no clube, de casaca e luvas, trazia no rosto o sulco visível de uma contrariedade.
Fomos-lhe ao encontro, à porta do salão:
— Esteve no casamento do Pancho Gomez?
— Muita gente?
— Linda festa?
Ele, no meio da sala, entregou o sobretudo ao criado.
— Tragédia horrível!
Encarámo-lo, surpresos.
— O Pancho Gomez morreu.
— Quando?
— Agora, à noite.
— Como?
— Assassinado.
— Por quem?
— Por D. Camila.
— A mãe da noiva?
— Exatamente.
Desenrolou-se-me, de súbito, na cabeça, o mistério da tragédia. O caso do Pancho Gomez era o escândalo mais ruidoso das rodas mundanas. Tinha sido ele por longos tempos amante de dona Camila e, de uma hora para outra, sem que ninguém esperasse, apareceu noivo da filha única da sua antiga amante. A razão do crime era clara aos meus olhos. D. Camila estava ainda na florescência viçosa de um outono sadio. Sentira certamente a ferroada do ciúme no peito e na carne; sacudiram-se-lhe todas as fibras de mulher abandonada, e matou o homem que a desprezava.
— Ciúmes do amante por causa da filha, não é assim?
O Dr. Matos de Lacerda voltou para mim o brilho do seu monóculo:
— Não. Necessidade, ou melhor, dever de matar.
Sentámo-nos todos. Matos de Lacerda à borda da fofa poltrona de couro verde.
— Não me repugna contar as minúcias do caso. Muitas delas envolvem a minha discrição de médico. Mas, amanhã, a reportagem dos jornais, sempre febril e sempre abelhuda, fatalmente pôs em público as miudezas mais recônditas do fato.
Quando D. Camila se casou com o Silva Graça era a mais formosa e mais rica moça de Botafogo. Era também a mais infeliz. A mocidade do Silva Graça fora a mais dissoluta e perdulária que tenho visto. Gastou a saúde em "farras" e mulheres; gastou-a tanto que, ao casar-se, estava inteiramente inutilizado.
Não sei se vocês se recordam quando aqui surgiu o Pancho Gomez. Era um rapagão bem parecido, audacioso, insinuante, com um jeito particular de fazer camaradagem, um desses tipos perigosos, que tudo conseguem e abrem facilmente de par em par todas as portas da vida.
Dizia-se ora argentino, ora mexicano, ora espanhol, mas de fato era um desses aventureiros universais, impávido, sem escrúpulos, na ânsia feroz de enriquecer. Sempre bem vestido, sempre de maneiras finas, entrou na sociedade inesperadamente, conquistando-a como um triunfador.
Eu era o médico da casa e, quando abri os olhos, não me podia mais enganar: dona Camila era a amante do aventureiro.
Tempos depois segui para a Europa, onde me demorei. Ao voltar, estava dona Camila mãe da Anita, essa linda criatura que hoje se ia casar com o Pancho Gomez.
Eu não me podia iludir quanto à paternidade da criança. Sabia bem o desperdício de vigor da mocidade libertina do Silva Graça.
Passam-se os anos. O Pancho Gomez investe pela vida a dentro, de audácia em audácia, de vitória em vitória. Consegue ser tudo o que quer: diretor de bancos, de empresas industriais, com casa em Petrópolis, na Suíça, na Itália, automóveis, cavalos, joias, mulheres, tudo.
Casa-se. Mas os seus amores com D. Camila não se interrompem.
A Anita vai crescendo. Aos 15 anos é de uma beleza estranha e perturbadora. Nada tem da mãe, a não ser a voz harmoniosa e ondulada. É de um moreno diabólico, os olhos muito grandes, os cabelos muito pretos e um tal viço de mocidade e de esplendor que, por mais sediça que seja a comparação, a gente, ao vê-la, recordava a rosa desabrochando.
O Pancho Gomez enviuvou depois de cinco anos. As suas visitas em casa de D. Camila tornaram-se mais assíduas. Falou-se até que o seu desejo era casar-se com a antiga amante, mas o Silva Graça atravancava o caminho, teimando em não morrer.
Uma noite, num baile do Club dos Diários, tive a surpresa dolorosa: o Pancho Gomez estava apaixonado pela Anita e, pior ainda, estava ela mais fortemente apaixonada por ele.
Fugi. Durante vários meses não apareci no palacete do Silva Graça, aterrado. Eu previa ali dentro o desenlace de uma tempestade horrenda.
Uma tarde D. Camila mandou-me chamar. Fechámo-nos no seu quarto de vestir e ela contou-me tudo. O Pancho Gomez havia pedido a mão de Anita. Que devia ela fazer?
— Evitar o casamento, respondi vigorosamente.
E evitar de qualquer meio, fosse como fosse, ainda que se fizesse necessário um escândalo.
— Conte tudo à sua filha. Diga-lhe que o Pancho Gomez é seu pai.
D. Camila, debulhada em lágrimas, confessou-me que não teria coragem para tanto. Faltavam-lhe forças para revelar à filha a sua indignidade de adúltera.
— Entenda-se então com o Pancho Gomez. Não saberá ele que é o pai da moça?!
Não sabia. D. Camila jurou-me que nunca lhe havia dito a verdade sobre a situação do marido.
Imaginei tudo sanado. No momento em que D. Camila confessasse ao amante ser ele o verdadeiro pai da moça, seria ele o primeiro a desmanchar o noivado.
Mas a vida é uma fonte estonteadora de imprevistos.
Uma semana depois d. Camila me mandou de novo chamar.
Tinha-se entendido com o Pancho Qomez, confessando-lhe tudo e tudo, revelando-lhe uma por uma as provas da paternidade. Mas ele não quisera acreditar.
Percebi os escaninhos complicados do caso. O Pancho talvez estivesse a supor que o impulso da antiga amante nada mais fosse que assomos de despeito e ciúme, que toda aquela história não passasse de invencionice de mulher para afastar a filha do homem que amava.
— Falou-lhe sério? Perguntei.
— Falei-lhe.
— Deu-lhe todas as provas?
— Dei-lhe.
— É estranho.
D. Camila ergueu-se limpando os olhos.
— É que ele é muito mais infame do que eu pensava.
Não compreendi bem a frase. Calei-me, pensando longamente numa solução para o caso.
D. Camila, que se afastara até à janela, voltou:
— Quero pedir-lhe um favor.
— Sempre às ordens.
— Entenda-se com o Pancho.
Não me podia negar, embora fosse do meu hábito fugir aos dramas íntimos dos outros.
Mas era uma pobre mãe que queria evitar que a sua filha casasse com o próprio pai.
— Hoje mesmo me entenderei.
E sai.
A minha conferência com o Pancho Gomez foi um dos episódios mais incômodos e mais dolorosos da minha vida. Falei-lhe como médico, invoquei-lhe a dignidade da minha profissão, tudo, tudo. O miserável fingiu não acreditar. Era muito mais infame do que toda gente pensava. Havia nele um amor de carne pela juventude embriagante da Anita, e o bandido não tinha ânimo, ou não queria ter o ânimo de sufocar os seus desejos, nem mesmo diante da revelação gravíssima.
O casamento foi marcado para um mês depois.
A situação de D. Camila comoveu-me. A pobre senhora fez tudo que era possível fazer para evitar a infâmia. O Silva Graça não compreendia a repulsa da mulher; pela cabeça da moça não passava a mais pequenina sombra de suspeita.
De oito dias para cá D. Camila não teve um descanso. Era do meu consultório para a casa de Pancho Gomez, da casa de Pancho Gomez para o meu consultório.
O miserável não cedia. Sempre a fingir que eram ciúmes da antiga amante.
Anteontem, ao entrar no palacete do Silva Graça, encontrei D. Camila serena e concentrada. Previ, mais do que nunca, a explosão da tragédia. O casamento, como vocês sabem, foi marcado para hoje. Compareci como o espectador que vai assistir conscientemente a um grand-guignol.
A casa estava cheia. A Anita mais linda do que sempre, toda de sedas brancas, leve, vaporosa e aqueles dois olhos negros e aquele moreno do rosto ardendo num transporte.
Era no grande salão de visitas que se ia realizar a cerimônia. A noiva entrou arrastando o longo vestido de gaze, cercada das damas de honor, sorridente e feliz.
O juiz começou a solenidade. D. Camila, de pé, imóvel, olhos baixos, não tinha a mais leve contração no rosto.
Foi no momento culminante da cerimônia, que se deu a tragédia. O juiz perguntava ao noivo se era do seu gosto e vontade receber Anita por esposa. Nesse momento D. Camila moveu-se. Vi-a chegar-se perto do Pancho, justamente na ocasião em que ele abria a boca para responder.
Um grito escapou-me da boca, apagado pelo grito de susto de toda a sala. Vultos atravessaram-se à minha frente; não pude ver o que se passara.
O salão burburinhou aterrado.
Aproximei-me finalmente. No tapete o Pancho Gomez estertorava, morrendo, com o peito da camisa avermelhado de sangue. No chão um punhal pingando.
D. Camila conseguira enterrar-lhe a arma no coração.
E, assestando de novo o monóculo, o ilustre Dr. Matos repetiu-me.
— Não foi ciúme. Dever de matar.
E, voltando-se para o criado, que também o ouvia, a distância:
— Garçon, traz o chá.
(Trecho de um diário de viagem)
Aquelas duas mulheres impressionaram-me desde o primeiro dia de viagem.
Via-as sempre afastadas, cada uma com o seu pimpolho, mas a se procurarem com os olhos como que para melhor se distanciarem.
Uma tarde, no terceiro dia de mar, na escada que levava ao salão de música, surpreendi-as num encontro. Uma descia, a outra subia. O olhar que trocaram gelou-me os ossos. Foi um olhar tremendo, em que havia um mundo de fel, um mundo de ódio, um desses olhares que estrangulam, que estraçalham.
Uma era loura, alta, olhos profundamente azuis; a outra, morena, cabelo rebelde de um negro violento. Ambas bonitas, ambas talvez da mesma idade — vinte e cinco a vinte e oito anos.
No quinto dia de viagem o romance das duas estava aberto à curiosidade e aos comentários das rodas de bordo.
A morena era madame Cabral, esposa do ex-corretor Efigênio Cabral, um sujeito gordo e baixo, que passava o dia inteiro no bar, olhando sombria e silenciosamente um copo de cerveja.
A outra, a loura, era a amante do ex-corretor.
Entre aquelas duas mulheres havia um ódio de morte. Quando madame Cabral se casou, já o marido tinha aquela amante. Esperou-se que, com o casamento, se desmanchasse a ligação.
Mas a paixão do corretor pela loura era uma dessas paixões de raízes fundas que, por mais que se pretendam arrancar, deixam sempre um pedaço lá dentro para florescer.
A esposa entrou então num trabalho fatigante de teimosia para afastar o marido dos braços da amante. Fez tudo que uma mulher caprichosa e ciumenta costuma fazer nessas situações: cenas, intrigas, ameaças, queixas, o diabo. Mas tudo foi baldado. A loura venceu, ou melhor, ficou no que estava.
Efigênio Cabral tinha a duplicidade do lar, cuidadoso com os dois, carinhoso com ambos. Nada faltava em casa da mulher legítima e em casa da amante.
Não pude saber se foi por exigência da loura ou se por excessivo requinte de homem sensual, o corretor deu para igualar as duas mulheres. Quando dava uma joia a uma delas, dava uma joia igual à outra. As duas vestiam-se pelo mesmo preço, na mesma modista, toiletes rigorosamente iguais.
O rancor da legítima pela outra, a quem ela chamava intrusa, ferveu estupendamente. Se as duas um dia se encontrassem a sós, se exterminariam.
A maior afronta que Efigênio Cabral fazia à esposa era aquela viagem. Tinham combinado um passeio à Europa. Madame vira, no passeio, um recurso excelente para desligar o marido da amante. Talvez, lá fora, num outro meio, ao choque de novas impressões, ele se esquecesse...
Mas, ao entrar a bordo, a surpresa foi cruel. Lá estava a intrusa, já instalada na sua cadeira de braços, tranquila como quem tem a consciência do seu poder.
Na Europa viajaram sempre nos mesmos navios, nos mesmos trens e, em certas cidades, viveram nos mesmos hotéis.
Agora voltavam no mesmo paquete.
Havia, no rosto de madame Cabral, um traço de eterno desespero. Procurei-lhe muitas vezes na fisionomia aquele tom de sofrimento que existe sempre em todas as mulheres humilhadas pelo marido. Não encontrei. O que ela deixava claramente desvendado era o ódio, um ódio terrível pela outra, um desses ódios implacáveis, infernais que são mais violentos que os próprios venenos.
O ex-corretor devia ser a criatura mais estranha da terra. Era um temperamento sombrio, ao mesmo tempo aguado, ao mesmo tempo metódico.
Nunca ninguém lhe ouviu uma palavra durante a viagem. Nunca estava noutro lugar a não ser defronte daquele interminável copo de cerveja, de manhã à noite.
Pelo que vim a saber depois, sempre tivera um método minucioso na sua esquisita situação doméstica. A esposa nunca lhe vira trocar sequer um olhar com a amante; a amante nunca o surpreendera numa palavra com a esposa. Dentro da sua infâmia procurava ter o que ele, com certeza, chamava decência.
O acaso às vezes concorre para coincidências interessantes: madame Cabral tinha um filho de seis meses que trazia sempre nos braços, preferindo o seu cuidado de mãe ao cuidado da criada; a loura, a "intrusa" tinha um filho da mesma idade, do qual não se afastava.
No décimo dia de viagem, numa madrugada de luar e ondas mansas, nós todos a bordo acordamos com um grande choque.
Abri a porta do camarote e corri para cima. A desordem era completa. O navio, desviado pelas correntes marítimas, havia trepado nuns arrecifes ocultos sob as vagas.
O perigo era grave. Tínhamos que abandonar o navio em procura das costas do Brasil que não deviam estar muito longe.
O comandante, calmo, com uma energia de ferro, dava ordens. Havia um trabalho afoito de arriar escaleres.
Ia raiando a manhã, quando o piloto me indicou a embarcação que eu devia ocupar. Éramos dezoito pessoas com os tripulantes aos remos.
Naquela confusão do começo, no lusco-fusco do dia que raiava, não pude distinguir as fisionomias dos companheiros de barco.
Mas, a duas milhas, do navio naufragado, já vogando em rumo das costas brasileiras, quando a manhã raiou completamente, meus olhos se surpreenderam. A sorte havia colocado madame Cabral no mesmo escaler que a sua inimiga. Ali estavam as duas, uma defronte da outra, os pés quase que a se tocarem, cada qual com o seu filho no regaço, mudas, levadas ao acaso, na mesma desdita de naufragas. Lá adiante, silencioso como sempre, indiferente e mole como todos os dias — o corretor — junto do piloto que governava a embarcação.
O escaler era pequeno demais para que pudéssemos carregar as bagagens. Nenhum de nós trazia nada, a não ser a roupa do corpo.
Ao meio dia já tínhamos perdido de vista o navio.
O mar, que estava calmo e liso, começou a encrespar. Eu estendia baldada e ansiosamente os olhos pelos horizontes, na esperança de terra.
Nas primeiras horas do naufrágio, com aqueles choques imprevistos que nos amarguravam a alma, nenhum de nós sentiu fome e sede. Mas, ali pelas duas da tarde, tínhamos a garganta a arder e o estômago em ânsias.
Fui o primeiro a reclamar alimento e água. A decepção foi horrível. Na pressa, na confusão, na afoiteza de salvar a vida, tínhamos todos, até os tripulantes, esquecido o que era necessário para comer e beber.
O piloto tentou voltar ao navio. Mas era impossível; o vento soprava agora em contrário, furiosamente. Uma sombra carregou-me o semblante. Senti que havia na fisionomia de toda a gente o mesmo peso que me aniquilava.
À tarde uma carga d’agua desabou. Molhamo-nos todos, mas conseguimos matar a sede.
Não me quero lembrar da noite miserável que passamos naquele escaler estreito, apertados uns de encontro aos outros, a roupa pingando, famintos, ao acaso, nas ondas encapeladas.
Ao amanhecer éramos como cadáveres, olhos fundos, rosto escavado e o traço imperecível de quem só pensa em morrer.
Os meus olhos voltavam-se sempre para aquelas duas mulheres, separadas na vida pelo ódio e agora ali caminhando juntas para a morte, talvez. Não se olhavam, ambas de olhos baixos, ambas chorando a pensar na sorte do filho pequenino que traziam no regaço, a tiritar.
Deviam ser dez horas da manhã, quando se deu o desastre. Uma vaga mais forte arrebatou o leme das mãos do piloto. Todos os esforços foram feitos para alcançá-lo. Nada.
Se alguém havia que ainda tivesse esperança na vida, com aquele desastre, perdeu-a completamente. Íamos todos morrer de fome e sede dentro daquele esquife que o mar agitava, sem governo, ao sabor das correntes.
As duas criancinhas, no colo das duas mães, choravam de doer o coração. Madame Cabral, de quando em quando, levava o filhinho ao peito e ali, mesmo diante de nós, amamentava-o. O mesmo vinha fazendo a loura, desde o dia anterior, com o seu pequenino.
Mas, ao entardecer, compreendi tudo. A amante do corretor não tinha mais leite.
Vi-a afogar o rosto nas mãos, a chorar, chorar interminavelmente, num soluço surdo de retalhar a alma.
E o tempo foi passando. A criancinha, faminta, abria em desespero a boca, ansiosa, numa voracidade inconsciente, nuns vagidos apagados. A pobre mãe levava-a novamente ao peito, punha-lhe o bico à boca e ela chupava, chupava interminavelmente, chorando sempre.
Desde esse momento notei que o rosto de madame Cabral mudava. Ela, que até aquele instante não tinha erguido os olhos para a outra, fitava-a agora, agora não mais com aquele lampejo de ódio que eu lhe surpreendera no navio, na escada que levava ao salão de música. Agora era um olhar de ânsia, com um misto de bondade e compaixão.
E, embora atribulado pela morte que eu já esperava resignadamente, não pude desviar-me da observação daquele caso curioso de psicologia.
Madame Cabral hesitava angustiadamente. Era uma pêndula perfeita. Ora oscilava para o seu ódio fundo, aquele grande ódio que enchia toda a sua vida; ora oscilava para a sua alma de mãe, compreendendo a dor daquela outra mãe.
Eu esperava, curioso, o coração aos pulos, o olhar aceso em cima dela.
A criança faminta pôs-se a gemer de novo. A pobre mãe levou-a outra vez ao peito. E o pequenino, insaciável, pôs-se, como das outras ocasiões, a sugar o seio branco.
Cinco minutos depois, eu que delas não desviava os olhos, vi que os lábios da criança estavam cheios de sangue. A mãe, à falta de leite, dava-lhe o sangue agora.
Uma exclamação ia-me escapando da boca, mas não me saiu inteira. É que, nesse momento, madame Cabral arrebatava a criança dos braços da inimiga.
É possível que a minha afirmação seja sediça, mas é verdadeira — mãe é a divindade máxima.
Madame Cabral abriu a blusa, tirou de dentro o seio pojado e entregou-o carinhosamente à voracidade do filho daquela que mais odiava na vida.
Todos os nossos corações se alegraram. Somente lá na popa, junto ao piloto, um homem se conservou indiferente e impassível — o corretor. Parece que aquilo não lhe causava a menor emoção. O seu olhar era o mesmo olhar sombrio e parado dos dias de viagem, defrontando o copo de cerveja, no bar do navio.
Não sei como a natureza conseguiu fazer as mães todas pelo mesmo molde, todas com a mesma grandeza!
Ao erguer os olhos dos bilros da almofada de rendas, na varandinha da palhoça, a velha Paulina viu o Mirigido apontando na porteira do caminho, com um grande cão pela corda e uma braçada de flores aconchegada ao peito.
— "Bença", mamãe?
— Deus te abençoe.
E dando-lhe a mão a beijar:
— Não querias voltar mais. Uma semana! Ele explicou. É que não encontrara em casa do Pedro Capininga o cachorro "onceiro" que tinha ido buscar. Tivera que ir ao Chico Curimã, dez léguas além; e, como o Chico tivesse ido para umas farinhadas distantes, esperara-o para que ele lhe emprestasse o cachorro que, ao que se dizia, era melhor que o do Pedro. Agora, sim, tinha com que caçar a "patifa" da suçuarana que lhe estava a dar cabo dos cabritos e leitões.
— E como vai ela, sossegou? Perguntou ele.
— A onça suçuarana?!
— Sim!
A velha Paulina deu um muxoxo. Qual o que! Cada vez pior. No domingo tinha comido uma novilha do Bento Mutamba, na capoeira juntinho da casa. No outro dia — uma bezerra da Tônica Mandy, uma cabra do Nadico. Ainda na véspera, à noite, tinha tido a sem vergonhice de vir ali, ao quintal, matar o cevado, no chiqueiro, junto da cozinha.
— Um horror! Só falta vir comer a gente dentro de casa. Anda aí, pelas estradas, topando com a gente. Ninguém mais pode sair nem para ir à fonte buscar água.
— Mas agora ela leva uma marcha, disse ele. O cachorro que eu trouxe "dizque" é bom de verdade.
A velha Paulina já ia entrando para o corredor quando ele apanhou a braçada de flores que havia pousado sobre a almofada de rendas. Ela voltou.
— Onde tu vais, Mirigido?
— Levar estas flores à Rufina.
— Não vás lá, não.
— Por quê?
Ela chegou-se para perto.
— A Rufina fugiu de casa.
— Fugiu?
— Sim, com o Januário, a desavergonhada. Foi uma coisa sem ninguém esperar. Eu bem te dizia que ela gostava dele.
O Mirigido ficou zonzo, besta, a olhá-la aparvalhadamente.
— Foi melhor assim, meu filho. Deus sabe o que faz. Se tu tinhas que ser infeliz, foi melhor assim.
E entrou para preparar o almoço. E ele, encostado ao esteio da varandinha, pôs-se a esfrangalhar nervosamente as flores nos dedos, com uma horrível zoada na cabeça e uma compressão no peito e na garganta. Não, aquilo não podia ficar assim só!
Fora numa vaquejada, na fazenda do coronel Damiano, que vira a Rufina pela primeira vez. Vinha ele à frente do gado, "aboiando" como guia daquela malhada, quando, ao desembocar na campina dos currais da fazenda, avistou, de longe, o vulto alacre de um vestido vermelho. O grande pátio dos currais estava cheio de homens e moças que tinham vindo assistir ao entrar da boiada, mas ele só via, no meio da mancha negra da multidão, a sombra inquieta daquele vestido escarlate.
O destino é o destino. O gado foi chegando, com a vaqueirama toda em alas para que a boiada inteira, numa só massa, tomasse o caminho da porteira do curral. E, no momento em que os primeiros chavelhos vão transpondo a porteira, o Soberbo, o garrote mais danado da malhada, rompe as alas e voa como uma flecha no rumo do vestido encarnado. Viu tudo num relance. Gritos de susto, berros, confusão. Meteu a espora no cavalo e partiu, como um maluco, para a frente do garrote. Não durou mais que um segundo aquilo. Empurrou de tal maneira a vara de ferrão no focinho do touro, que o animal recuou, preparando depois a carreira para cima dele. Mas aí foi bobagem. Já tinham acudido outros vaqueiros e o Antonio Pinto, bichão no laço, laçou o garrote.
O destino... O destino... A dona do vestido era a Rufina.
O namoro pegou aí. A Rufina esplendia de graça e risos, no calor da mocidade vibrante. E o que nela era mais bonito do que tudo era o cabelo, um cabelo mais preto que uma noite de cego, lustroso, ondeado e grande, um "disconforme" de grande, "um não sei que diga" de cabelo, que lhe batia abaixo da cintura e que, quando o prendia no alto da cabeça, a gente tinha a impressão de que ela carregava uma almofada.
Até o gado o Mirigido levou a pastar em redor dos campos verdes em que ela morava.
Noivaram-se. Foi já depois de noivos que se deu a "turra" entre ele e o Januario. Era pelo Natal, no festão de "papouco" do Zéca Babassú, numa noite de luminárias e danças. O Januario tinha a fama de valentão, a soberbia do primeiro jogador de pau daquela beirada de rio. Ia para mais de meia noite e o Mirigido dançava com a Rufina, quando ele lhe tomou o par dos braços, estupidamente:
— Este pedaço quem dança sou eu.
Rompeu o bate-boca. O Januário foi buscar o cacete a um canto da latada, o Mirigido apanhou o primeiro cacete que lhe apareceu à mão. E os dois lutaram até que o Mirigido desarmou o outro. O Januário nunca tinha sido desarmado por ninguém. Perdeu a cabeça, sacou da bicuda e foi em cima do Mirigido, enterrando-lhe a faca. Por um triz lhe teria trespassado o coração. Mais de um ano levou a curar-se da ferida, sem poder trabalhar para o preparo do noivado.
Agora, porém, estava tudo pronto. Já tinha comprado a fatiota de pano fino, mandara fazer casa nova, ali, pertinho da casa da mãe, vestidos para a noiva, e só esperava que o vigário passasse, em desobriga pelo povoado, para lhe fazer o casamento.
E, de uma hora para outra, chega e sabe que a Rufina fugira com outro e logo com quem! Com o Januário, com o miserável do Januário que o pusera entre a vida e a morte.
Não, aquilo não podia ficar assim!
Quando a velha Paulina voltou lá de dentro já ele tinha aquela coisa a verrumar-lhe o juízo. Mataria a Rufina e o Januário, desse por onde desse!
— Vem almoçar, Mirigido.
— Não quero, não, mamãe. Almoce, almocei com o Mundico Gafanhoto.
Ela entrou. Ele foi ao quarto, apanhou o bacamarte e, na ponta dos pés, para que a mãe não ouvisse, saiu. Amargava-lhe a boca como um fel. Além, no caminho da casa da Rufina, sentou-se. Descarregou o bacamarte, pôs-lhe nova carga de pólvora e chumbo, calmamente, friamente, com um cuidado e um gosto que nunca tinha tido nem mesmo para matar as feras. Entraria no terreiro da Rufina e descarregar-lhe-ia o bacamarte no peito. Se o Januário aparecesse morreria também.
Pôs a arma ao ombro e seguiu. Adiante, nas proximidades do olho d’agua, um sacolejão fez-lhe o peito vibrar. Na areia da estrada desenhavam-se os rastos da chinelinha da Rufina e, ao lado, o sulco do pé do Januário. Pelos sinais tinham os dois seguidos para o olho d’agua.
Uma zoada, aquela maldita zoada de quando a mãe lhe contou tudo, rebentou-lhe novamente na cabeça. E seguiu, guiado pelos rastos.
Contornou por trás de umas soqueiras de canarana, acocorado, o bacamarte entre as mãos, o dedo no gatilho.
O som de umas vozes apagadas chegou-lhe como um cochicho. O cerrado de um tabocal vedava-lhe a vista. Moderou os passos e foi, num passinho de caçador, rodeando, rodeando a toiceira à procura de uma aberta para entrar. O vulto de uma saia apareceu-lhe por entre o emaranhado das folhas de taboca. Parou. Batia-lhe tanto o coração que teve a impressão de que o mundo inteiro lhe estivesse a ouvir as pancadas.
Deitou-se no chão e, deitado, foi devagarinho, devagarinho, arrastando-se como uma cobra, torcendo-se aqui, ali, no rumo da sombra branca da saia, através das folhas. Outro vulto desenhou-se-lhe aos olhos. Era o Januário. Tinha vindo ali, com a Rufina, cortar tabocas para a cerca do galinheiro. Estavam os dois sentados numa pedra, de frente para ele, mas sem o ver através do cerrado do tabocal, abraçados, aos beijos, os patifes.
Armou o gatilho. Com aquele tiro mataria os dois de uma vez.
E levou a coronha do bacamarte ao rosto para fazer a pontaria. Conteve, felizmente, o grito que lhe quis sair repentinamente da garganta. Por trás da Rufina e do Januário lá estava a onça, a suçuarana feroz que vinha enchendo de pavor o povoado e os arredores. Caminhava devagarinho, naquele andar de gato que quer surpreender a presa, a poucos passos já, na posição de lançar o pulo.
O estrondo de um tiro, um urro. A suçuarana rolou estrebuchando ao lado da Rufina e do Januário.
Com o bacamarte a fumegar nos braços, o Mirigido ficou estatelado e zonzo.
Como era que aquele tiro que tinha preparado para se vingar do Januário e da Rufina, ele mesmo, com as suas próprias mãos, se servia dele para os salvar?!
E deitado, coleando como uma cobra, torcendo-se aqui, ali, foi-se escapando por entre o bambual, como se tivesse vergonha de que alguém o visse.
Quando se deu na vila o primeiro roubo, talvez tivesse sido eu quem mais se contrariasse. O roubado fora o vigário, numa noite de chuva: arrombaram-lhe as janelas, carregando-lhe com o relógio e duas dúzias de talheres de prata.
O desapontamento de todos nós, que tínhamos posição definida na vila, foi horrível. O padre era por bem dizer um hóspede. Ali chegara havia quinze dias e estava certamente a fazer um juízo lamentável da gente do lugar que lhe não respeitava a autoridade, roubando-lhe os talheres e o relógio. Que não estaria ele, no íntimo, a pensar dos costumes da terra, dos hábitos dos seus homens e da moralidade de todos nós?
Aquilo deixava-me de cara no chão.
A nossa vila fora sempre de uma severidade e de uma pureza rigorosas. Nunca se tivera notícia de um roubo. Era um desses recantos do mato, onde todos vivem na consciência dos seus deveres e na tranquila noção dos princípios de probidade.
Podia-se dormir de portas abertas. Para dar uma ideia de quanto ali a vida era serena e pura, basta contar o caso do capitão Fernandinho, a criatura mais distraída que até hoje tenho visto. Quando o capitão Fernandinho começava a falar nas suas caçadas, esquecia-se de tudo, até de fechar com chave e trancas a sua casa de comércio. Pelo menos, duas ou três vezes no mês, isso acontecia, e nunca lhe roubaram uma cabeça de alfinete.
Mais de uma vez, tarde da noite, gente do povo lhe bateu à porta da residência particular para avisá-lo do descuido da casa comercial.
O roubo em casa do vigário tirava-me o sono. Não há ninguém mais requintado em bairrismo do que a gente dos lugares pequenos. Magôa-lhe a alma a mais insignificante diminuição à boa fama do lugarzinho em que mora.
Achei que se devia dar uma satisfação qualquer ao padre. E em casa do chefe político, o coronel João Martins, reuni o que havia de melhor na vila; o promotor, que era filho do lugar, o boticário, o coletor, o delegado, o professor público. Foram todos do meu parecer.
O vigário era uma criatura educadíssima. Recebeu-nos não dando importância alguma ao caso do roubo, achando que aquilo era a coisa mais natural da vida.
E, quando falamos na excepcionalidade do fato, pediu-nos que não insistíssemos. Não cometeria a injustiça de julgar a moral de seus fiéis por um fato isolado. Ladrões, havia-os em toda parte. Em toda parte havia bons e maus, honestos e criminosos, e seria realmente clamoroso que ele, um sacerdote, tivesse que julgar maus os bons, apenas por um ato de um desviado dos bons costumes e da religião.
Era um homem simpático, moço ainda, uns trinta e cinco anos, se tantos, inteligente, maneiras finas e um ar de bom senso e cordura que inspirava confiança logo ao primeiro momento.
Sentia-se nos seus menores gestos, nos seus hábitos mais simples, que ali estava um espírito principalmente educado. Devia ter vindo de gente de muito trato. A sua figura, o seu modo de viver tinham, pelo menos para nós ali da vila, um tom qualquer de fidalguia, esse quê impressionante e inconfundível que existe nas criaturas criadas entre coisas ricas. As suas meias eram de seda; as roupas de um asseio irrepreensível; as toalhas de sua mesa, de linho alvíssimo; os cálices e os copos da sua sala de jantar, de cristal ramalhetado; os vinhos, que bebia, absolutamente encantadores. Tratava-se.
Vivia sozinho numa grande casa, servido por duas criadas velhas.
Passou-se um mês. Tudo voltou à serenidade natural, à calma suavíssima de recanto matuto.
Já todos nós julgávamos um fato isolado o arrombamento das janelas do vigário, quando uma manhã, manhã de chuva, a loja do turco Salim Jorge apareceu aberta, as portas evidentemente violadas a pé de cabra, e um sortimento de sedas e rendas diminuído.
Quatro dias depois foi o cofre de ferro do major Constâncio Medeiros aberto, não se sabe como, e roubado em dez contos e quinhentos mil réis que o negociante pretendia remeter aos seus correspondentes na capital.
De novo a vila se agitou. O Pedro Mathias, o delegado de polícia, fez tudo para descobrir o ladrão. Mas não havia ninguém que causasse suspeitas. Todos nós ali nos conhecíamos, sabíamos uns dos hábitos dos outros. Em todo o caso prendeu-se um rancho de tropeiros que estacionavam nos arredores. Mas os tropeiros foram soltos, quatro dias depois. Não sabiam rigorosamente nada.
E ainda se procurava desesperadamente o ladrão, quando o cofre da Casa da Câmara apareceu arrombado nas mesmas condições do cofre do major Constancio. Tinham-lhe carregado as economias de vários anos.
E houve então, na vila, uma impressão violenta de terror. Ninguém mais dormiu em sossego. Aquilo era para toda a gente de uma estranheza estonteadora. Quem seria? Qual era o miserável que estava a diminuir a boa fama do lugar, as normas de honestidade de que a vila tanto se orgulhava?!
O coletor deixava transparecer aos íntimos as suas desconfianças sobre o Camerino Maneta. O Camerino era um tipo duvidoso ante os costumes rigorosos da vila. Em rapazote brigou com o pai, saiu de casa, andou pela capital como marceneiro e depois voltou com uma sujeita ruiva que usava uns vestidos escandalosamente decotados. Diziam-se casados, mas ninguém levava a sério a afirmação. Os decotes da ruiva, as dúvidas sobre o casamento, chocavam a pudicícia das famílias. O Camerino vivia com a mulher isoladamente, sem amizades, sem visitas, trabalhando é verdade, mas repelido por todo o mundo.
— Tudo isso é obra do Camerino, insistia o coletor. Dele e da ruiva. Andaram pela cidade, meio grande, e nas grandes praças aprende-se tudo que é ruim.
Ninguém mais tirou os olhos do Camerino. O Pedro Mathias, em pessoa, espiava-o noite e dia, disfarçadamente.
Aquela história dos roubos repetidos, cada vez mais me preocupava. Eu era filho ali do lugar, meus pais e meus avós ali nasceram, e eu amava aquele pedacinho de terra com um amor zeloso que só se encontra nos matutos.
Era necessário acabar com aquilo.
Uma tarde entrei em casa do vigário. Ia pedir-lhe que empregasse a sua autoridade de pastor numa medida qualquer que terminasse, de vez, com aquela situação constrangedora. Comoveu-se com as minhas palavras e o meu aborrecimento. Já havia percebido a necessidade de uma medida urgente. Mas qual?
— Um sermão! Lembrei.
— Bem pensado!
Na primeira festa religiosa que houvesse deveria ele fazer um sermão fulminante, mostrando o grande pecado do roubo aos olhos de Deus.
Estava a entrar a festa da Conceição, a padroeira da vila, a festa que arrastava toda a população dos arredores.
No dia da festa, com a igreja acotovelada, o padre recitou o sermão. Era realmente uma página de alta literatura sacra. Na passagem em que pintava as torturas do inferno reservadas ao ladrão, todo o mundo sentiu os ossos gelados, o cabelo em pé e o coração aterrado dentro do peito.
Estava toda a vila ali na igreja. E não houve uma só criatura que dali não saísse convencida de que o remédio para os roubos era aquele — a palavra do sacerdote. Se ali estivesse o criminoso (e devia estar) sentindo a essência daqueles conselhos, sairia fatalmente curado de uma vez para sempre.
Poderíamos dormir em paz.
Mas, no dia seguinte pela manhã, a sacristia da igreja apareceu arrombada. Tinham carregado com os castiçais de prata do altar-mor e com o resplendor de ouro da padroeira.
Não sei contar a decepção e o assombro que aquilo causou em toda a gente.
O caso era mais grave do que todos nós pensávamos. O Pedro Mathias quis demitir-se do cargo de delegado.
— É de endoidecer, dizia ele. Tenho feito tudo, e nada descubro. O Camerino, posso afirmar, não entrou na sacristia. Vê-lo-lhe a casa todas as noites.
Mas quem seria?
A mulher do Antonio Cabacinha, dois dias depois, apareceu na feira com umas rendas novas, num vestido de chita. O Salim Jorge, o turco, gritou que as rendas eram suas, das tais rendas que lhe roubaram na noite de chuva, um mês depois do roubo do relógio e das pratas do vigário.
O Cabacinha foi preso. Negou, negou com uma energia feroz. O Pedro Mathias, porém, meteu-lhe os dedos no "anjinho". O homem não teve outro remédio — confessou. Sim, sim! o ladrão era ele. Tinha roubado o juiz, o turco, o major Constancio, a Casa da Câmara, a igreja...
— Mas onde estavam o dinheiro e os objetos roubados?
Ah! Não sabia. Não se lembrava onde os guardara!
A notícia da confissão do Antonio Cabacinha desnorteara a vila. O Cabacinha era um homem pobre, mas até ali de uma probidade modelar em tudo.
A confissão, porém, era positiva; confessara à tortura do "anjinho", mas confessara.
O diabo era aquele ponto obscuro — o criminoso não dizia onde guardava os roubos. Não sabia, não se lembrava.
O Pedro Mathias andava numa excitação incrível, toda hora a interrogar o Cabacinha, a torturá-lo com o "anjinho", a ver se lhe arrancava uma indicação qualquer do lugar onde escondia os roubos.
— O patife o que quer é gozar o dinheiro depois de cumprir a sentença, dizia o Mathias nervosamente. Mas há de confessar.
Fui sempre contra confissões arrancadas a suplícios. Eu próprio entendi-me com o delegado para que não mais se excedesse no uso do "anjinho".
Quinze dias depois da prisão do Cabacinha, ao alvorecer de um domingo, a mulher do coronel João Martins encontrou violadas as gavetas de sua cômoda e vazio inteiramente o seu cofrezinho de joias antigas.
A estupefacção foi brutal em toda a vila. Mas então não era o Cabacinha?!
O Mathias sofreu horrivelmente.
— É que o patife tem cúmplices, explicava. É uma quadrilha organizada. É justamente por isso que não quer dizer onde guarda os objetos roubados.
Por aquele tempo, estava eu noivo da moça com que me casei, filha do coronel Vimvim, que morava a umas três léguas da vila. Passava sempre os domingos na fazenda da minha noiva, indo no sábado à noite e só voltando na segunda-feira pela manhã.
Depois que morreu minha mãe, não quis mais morar no casarão em que nasci. Aquelas imensas salas, aqueles corredores compridos, davam-me uma profunda tristeza à alma. Passei a morar sozinho na minha própria casa comercial, que era vasta e confortável. Tinha o meu quarto de dormir ao fundo, com uma cama, uma cômoda, os meus livros e o cofre de ferro.
Num certo sábado, à noite, como era meu costume, montei a caminho da fazenda de minha noiva. Já tinha andado meia légua, quando me lembrei que não concluíra a correspondência que, no dia seguinte, devia seguir para a capital. Mandei o empregado à fazenda dizer que só me esperassem no domingo, e voltei para casa, já às dez da noite, quando a vila dormia.
No meu quarto escrevi até tarde. Deviam ser três horas da manhã, quando me fui deitar.
Não me recordo bem se cheguei a passar por alguma modorra. O certo é que ouvi na porta um ruído estranho como o de um rato a roer madeira.
O coração bateu-me violentamente. Levantei-me, descalço, e apanhei o revólver em cima da cômoda. Fiquei no meio do quarto a escutar. O ruído cessou. Lá fora começava a chover.
Voltei para a cama. Pus o revólver debaixo dos travesseiros e detei-me. Passou-se um tempo enorme sem ruído algum, a não ser o ruído do vento na rua e o rolar do trovão no céu.
E, eu ia cochilando, quando senti de novo mexer na porta. Agora eram rumores claros que me chegavam nitidamente aos ouvidos. Eu sentia que estavam, do lado de fora, a experimentar chaves na fechadura.
Apoderou-se de mim um pavor que nunca tive. Quis gritar, mas senti vergonha e ergui-me do colchão, à procura de um lugar para esconder-me.
Meti-me, tremendo, debaixo da cama, de revólver em punho.
O ruído crescia. Minutos depois vi a porta ceder e um vulto entrar, perscrutando o quarto. Lá de baixo eu não podia distinguir feições, via apenas as pernas, pernas de homem, em calças, os pés metidos em sapatos grossos. Vi-o caminhar para o cofre de ferro. Percebi, nas suas minúcias o trabalho para violar o cofre: ruídos de ferro, chaves experimentadas, golpes de martelo, rangidos de puas.
Eu tremia. Debaixo da cama estava a caixa do meu chapéu alto dos grandes dias. Encostei-me à caixa e ela cedeu com um leve rumor. O vulto saiu de perto do cofre e veio para junto da cama, como que a indagar o motivo do ruído.
Senti que ele se acocorava para espiar debaixo do leito. Eu tiritava, tiritava, de revólver engatilhado.
Vi a sombra de uma cabeça, o jato de luz de uma lanterna, e não vi mais nada. Sem eu saber como, o revólver estrondou. Senti um baque.
Saí para a rua e gritar como um doido, acordando a vizinhança.
Toda a gente acudiu aos meus gritos, alarmada. Entramos todos no quarto. Um corpo de homem estava emborcado no chão, numa poça de sangue.
O Pedro Mathias acendeu a luz e chegou-se até perto do vulto, descobrindo-o do capote.
Nós todos recuámos estatelados.
Era o vigário.
E o Deodato Vaqueiro, a picar o fumo na palma da mão, continuou:
— O Chico Guará sempre me avisava: — "Deodato, Deodato, larga aquela mulher, olha que o Manézinho te faz uma desfeita. Esses maridos assim, vão aturando, vão aturando, e um dia pum! Uma carga de chumbo na gente!"
Mas mulher é o diabo. Mulher de que a gente já foi dono dela e depois a encontra na mão de outro, só serve para desgraçar um vivente.
Fui eu que tirei a Mariquinhas de casa.
Era, sem desfazer nas outras, a mais bonita moça que já nasceu nestas redondezas de serra. Uma tora de carne que valia a pena, dessas da gente botar os olhos e nunca mais ter sossego de espírito. Abri o arco com ela pelo S. João, numa festança de "Bumba meu boi", no terreiro do Ignacio Gamela. O terreiro estava claro de fogueiras, mas o povo distraído nas cantigas e nas danças.
Vivemos juntos dois anos.
Havia aqui no sertão uma mulherzinha, a Carolina Tucum, que era uma danada para desunir quem vivia em paz. De uma feita eu parei em casa da Carolina e tomei uma xícara de café. Foi entornar a xícara e virar a cabeça. Comecei a enjoar a Mariquinhas e fui enjoando, enjoando, até que um dia lhe dei um coice para seguir a Carolina. O demônio da mulherzinha tinha-me botado feitiço no café.
Fui-me embora. Fui-me embora por esse mundão de meu Deus e ninguém teve mais notícias minhas. Afundei nos sertões de Goiás, torci depois para Mato Grosso e fui-me embora.
Quando deixei a Mariquinhas ela estava para ter criança, mas eu andava com o juízo tão revirado pela xícara de café que a Carolina me dera, que não me importei de abandonar a pobrezinha quase com um filho às costas.
Deus Nosso Senhor não se esquece de castigar o que é mal permitido. Fui-me embora, sim, mas foi o corpo só, porque o coração, esse ficou aqui, rondando a casinha de pindoba em que morava a Mariquinhas. O dia inteiro, a noite inteira me doía aquela ingratidão, aquela infâmia de não ter ao menos esperado o filho que ia nascer.
E, lá de longe, nos socavões daquelas matas, eu não tirava o juízo daquele filho, que já devia estar grandinho. E queria-o, queria-o com um bem-querer que me fazia passar noites inteiras sem dormir, rolando na rede.
Um dia não pude mais. Dei um pontapé na Carolina e voltei. Tinham passado já quatorze anos.
Ah, mundo! O filho com que eu sonhava não era filho, era filha, a Bibica, linda como este sol, fresca e bonita como esta manhã. Fiquei mais doido ainda; não sei como não morri de alegria quando ela me veio tomar a benção.
Mas Deus é justo. Tinha-me guardado uma dor — a Mariquinhas estava casada. Estava casada com o Manézinho, um rapaz mais novo do que ela, mas muito pacato, muito calado, que era uma pomba sem fel.
Se a Mariquinhas era uma tentação no tempo de moça, agora, já refeita e mais mulher, era uma tentação maior.
Amor antigo é como tiririca, tem sempre uma raizinha para rebentar. Mal eu falei, a Mariquinhas esqueceu a minha ingratidão, viu bem que toda aquela desgraceira tinha sido obra da maldita xícara de café que a Carolina, aquela feiticeira, me tinha dado.
Quando abrimos os olhos estávamos os dois pecando.
O Manézinho falava pouco e a gente não sabia quando ele desconfiava e quando não. Mas todo esse povoado percebeu e, de uma feita, numa pescaria de mandubés, como tivesse tido uma diferença com o Pedroca, o Pedroca atirou-lhe à cara o papel feio que fazia, suportando-me.
Esperei que ele me viesse tomar satisfação. Mas não veio. Continuou a me tratar como se nada tivesse havido, como se nada soubesse.
Todos os homens são os mesmos nesse particular: eu fui perdendo a cerimônia, fui perdendo, fui perdendo, a ponto de passar o dia inteiro ao lado da Mariquinhas.
Eu não sabia bem o que me prendia ali, se era o dengue daquela mulher, que eu nunca tinha deixado de querer, ou se o amor daquela filha, que eu cada vez mais amava com orgulho de pai.
Um dia esperei uma carga de chumbo no lombo. Era à tardinha e eu estava sentado com a Mariquinhas à sombra do mangabal do terreiro. A Bibica tinha saído e o Manézinho também. E a gente começou a recordar o tempo de namoro, aquela noite de S. João, no terreiro do Gamela...
E, palavra vai, palavra vem, senti uma vontade danada de dar uma beijoca na Mariquinhas. Passei-lhe o braço no pescoço, puxei-a para mim e, no momento em que vou estalando a beijoca, eis que o Manezinho ia passando junto, com a espingarda ao ombro, de volta da caça.
Fiquei mais frio do que uma rã. Mas ele, se viu, fingiu que não viu. Salvou-me e seguiu para os fundos da casa, a guardar a espingarda.
Com uma coisa assim, quem é que não abusa? Fui abusando. Almoçava, jantava, passava o dia lá. Ao depois, mudei-me de todo.
O Chico Guará sempre me prevenia: — "Toma cuidado, Deodato, o Manézinho te faz uma desfeita. Esses maridos assim, vão aturando, mas um dia o diabo tenta, e eles pum! Uma carga de chumbo!"
Eu não ouvia nada, cada vez mais a abusar...
Uma noite o Manézinho saiu para uma espera de capivaras, para só voltar de manhã. Fui dormir no quarto da Mariquinhas. Por alta madrugada ele chegou, empurrou a porta do quarto e, como me visse deitado, fechou de novo a porta e foi dormir lá para os fundos, num quartinho junto da cozinha.
Aí então é que eu abusei de verdade. Parecia que o dono da casa era eu. Mandava o Manézinho como se manda a um empregado, tomei-lhe conta da mulher, como se ela fosse minha perante o padre.
No começo, quando eu queria ir para o quarto da Mariquinhas, mandava o rapaz caçar de noite, mas, com o correr do tempo, nem mais isso eu fazia: plantava-me no quarto, logo depois da janta e de lá não saía a não ser de manhã.
Em certas horas eu me revoltava, contra mim mesmo: o que eu estava praticando era uma infâmia, mas quando a gente está assim com o juízo tomado por uma mulher, não tem tempo de concertar os erros.
Havia ocasião que eu ficava espantado com aquela sujeição do Manézinho. Como era que um cristão podia ter estômago para aturar uma coisa daquelas?
Mas quem tinha razão era o Chico Guará.
Uma noite, pelo inverno, noite de frio e aguaceiro, eu estava deitado com a Mariquinhas, quando ouvimos um barulhinho no fundo da casa. Podiam ser os cachorros que estivessem a bulir numa cuia de paçoca, esquecida na cozinha.
Levantamos para ver. Eu ia na frente com a candeia e a Mariquinhas atrás. Ao passarmos pelo quarto do Manézinho (o quarto em que ele agora dormia, junto da cozinha) olhamos e a porta estava aberta e a rede vazia. Onde teria ido ele com aquela carga d’agua e aquele frio?
Mulher não é gente. Não faz caso de uma pessoa, não faz caso, mas quando vê que a pessoa também não faz caso dela, fica logo aborrecida. A Mariquinhas tornou-se trombuda, imaginando que o Manézinho tivesse ido para o pagode com umas raparigas novatas que estavam no povoado.
Fomos à cozinha. Não eram os cachorros, mas, por segurança, guardamos a cuia de paçoca.
Voltamos e, ao passar pelo quarto da Bibica, ouvimos assim como que um suspiro abafado. A Bibica, havia coisa de quinze dias, andava meia doente, com fastio, uns vômitos, uma moleza.
Mãe é mãe — adivinha. A Mariquinhas arrancou a candeia das minhas mãos e varou o quarto. Entrei atrás.
E, quando a luz bateu em cheio na rede de Bibica, um grito quis sair mas não saiu da minha garganta. Deitado na rede, abraçado à minha filha, bem unido a ela, bem apertadinho, dormindo, lá estava o Manézinho.
Quando a luz lhe caiu no rosto ele arregalou os olhos, olhou para nós dois, abraçou-se mais à menina e continuou a dormir, como se nós não fôssemos ninguém.
Olhei a Mariquinhas, ela me olhou. Não tivemos uma palavra para dizer, um movimento, nada.
Quando demos por nós estávamos junto da rede, de cabeça pendida, num pranto desabalado.
— Não quero que vossa senhoria imagine que o caso sucedido comigo e a Chiquinha Goiabeira tivesse sido fraqueza minha — não quero. Nunca fui homem mofino, não, senhor. Por toda esta beirada do Itapicurú, até mesmo lá pelas beiradas do Mearim, pode vossa senhoria indagar quem foi o João Malhado, que todo o mundo lhe dirá que eu fui o rapaz mais influído e mais afoito do meu tempo.
Nunca fui cristão de morrer de caretas. Quando alguém me vinha falar de visagem, de alma do outro mundo e outras bobagens, eu ria, fazendo caçoada:
— Deixa de cisma, pessoal! O medo a gente faz do tamanho que quer!
Pois se até àquela idade, já na casa dos trinta, eu não tinha visto nada!
No perigo, ninguém se metia mais do que eu. De uma feita, estávamos numa farinhada em casa do Vicente Guabiraba, lá na vila. O Pedro Mucura pôs-se a contar as visagens que a mão dele tinha visto no olho d’agua, e eu me ri. Caíram todos em cima de mim, provocando a minha coragem. O Sabino Gameleira arrancou, dizendo que perdia o seu cavalo de sela se eu fosse ao cemitério buscar um caju de um grande cajueiro que ficava perto da sepultura da velha Dica, a defunta que, naquele tempo, mais aparecia ao povo do lugar, pedindo missas.
Não era pelo cavalo, não senhor, que, cavalo de sela, o meu era muito melhor que o do Sabino. Era pelo capricho, pois ninguém, até hoje me cutucou que não encontrasse homem. Fui ao cemitério, entrei, apanhei o caju, voltei e, no fim, não quis receber o cavalo.
Eu era lá criança para ter medo de fantasmas!
Uma noite a rapaziada ali das Pirapemas combinou em me tirar a soberba. Eu andava, naquele tempo, às voltas com a Maricota Munhéca, aquela roxinha sacudida, que morava na boca do campo, numa casinha de palha, da qual só existem hoje os esteios. Metia-me lá à boquinha da noite e só de lá voltava pelas tantas da madrugada, sozinho e Deus, por um caminho que ninguém trilhava fora de horas. Naquela dita noite ia eu muito sossegado da minha vida, quando avistei um vulto branco, adiante, no meio da estrada. Nem o cabelo me arrepiou. Continuei o meu caminho. O vulto desapareceu, tornou a aparecer, tornou a sumir-se. Tirei o facão da bainha e continuei a andar. E, quando passei junto daquele pé de massaranduba que o corisco lascou, olhe o vulto aí perto de mim. Botei-me como um doido para cima dele. Agarrei-o pelo pescoço e atirei-o ao chão. Era o Mundico da Clodoalda, embrulhado num lençol.
— Mundico, Mundico, não faças mais dessa brincadeira, que, um dia, ficas espetado na ponta da faca.
Daí por diante não houve mais quem quisesse experimentar a minha coragem.
Nem por sombras, vossa senhoria suponha que o sucedido com a Chiquinha Goiabeira tivesse sido fraqueza minha.
O meu casamento com a Chiquinha deu que falar em toda esta beirada do Itapicurú. Minha mãe, por um triz, me negava a benção, quando lhe pedi licença para casar; o capitão Benjamin, meu patrão, e que era mesmo que um pai, não quis mais saber de mim. Ninguém achava a Chiquinha capaz. Mas eu estava grudado ao demônio da morena.
Para ser franco a vossa senhoria, juro que nunca vi, neste distrito e mesmo nos outros distritos que tenho andado, um rabo de saia mais tentador que a Chiquinha. Era um pedaço de mulher avantajado, cheia de corpo, roliça, que, quando andava, fazia tremer o chão. Nunca fui homem de gostar de mulherzinha franzina, de osso de fora, desses brinquedinhos de carne, desses fiapinhos de gente, que a gente é capaz de trazer na palma da mão. Sempre ouvi dizer que Adão pecou por causa da carne e não por causa dos ossos. Mulher para mim foi sempre o volume.
A Chiquinha tinha tudo para me prender. Além da vantagem da carne, era de uma alegria de fazer a gente alegre, de uma graça de pôr a cabeça tonta, de uma faceirice de levar um cristão à loucura. Quando ela chegava a um terreiro de festa, não havia mais tristeza nem mais sossego. Todo o mundo tinha que dançar, todo violeiro, por mais preguiçoso que fosse, não largava mais a viola e ficava de guéla seca só de cantar versos à morena.
E o cheiro! (ah! Nem é bom pensar!) o cheiro que lhe saía das roupas e do corpo, aquele cheiro de manjericão e de baunilha, que ia rescender até no tutano da gente! No dia em que me casei, o Bemtevi, o melhor cantador desta beira de rio, disse, à viola, que eu não me casava com uma mulher, mas casava com um jardim. Gostei do verso. O Bemtevi era danado para dizer verdades à viola.
Mas vamos ao sucedido.
O Maneco do Cantanhede costumava todos os anos festejar a Conceição. Era sempre uma festa de papouco, que durava três dias: levantamento do mastro, ladainhas, violas, danças, desafios em verso, uma dessas pagodeiras de se não ter vontade que acabe mais.
Era no terceiro ano do meu casamento com a Chiquinha.
Ao aproximar-se a festança, dois meses antes, a Chiquinha não falava noutra coisa. Tinha até vendido um cevado de dois anos, um bruto, para comprar o vestido da festa.
Mas aconteceu que, tendo eu me metido numas pescarias de jejus, no igarapé do Peritoró, voltei de lá com umas sezões. O diabo da bicha pegou-me mesmo com vontade: um dia sim, outro não, um dia sim, outro não, lá estava eu no fundo da rede, batendo o queixo, de frio. Depois passou, mas fiquei empaleimado, magro como um caniço.
Quando chegou o tempo da festa do Maneco eu estava sem influência. Mas a Chiquinha queria ir. Queria ir, não só por causa da despesa do vestido, como também porque a festança era boa mesmo de verdade.
Fui com ela.
Havia três semanas que a febre não me dava.
Bem o coração me dizia! Ainda hoje tenho arrependimento de não ter ficado em casa.
O primeiro dia da festa do Maneco era numa sexta-feira. Eu sempre tive uma certa embirrancia com a sexta-feira. Foi numa sexta-feira que eu perdi cinco dentes na queda de um poltro bravo, foi numa sexta-feira que uma cascavel me mordeu, foi numa sexta-feira que minha mãe se afogou no remanso da Mariana.
Logo ao começar o samba do Maneco tive que brigar. O Paulino dos Matões, sem respeitar minha cara, sem respeitar a sociedade da festa, beijou a minha mulher, quando com ela dançava um pulado. Ah! Fui às nuvens e, para não servir de desmancha prazeres, não enchi de sopapo a cara do Paulino. Botei a mulher na frente e retirei-me da festa. Toquei para casa, com o desaforo engasgado na goela.
O caminho era uma estirada de légua e meia ou duas léguas, se tanto. Fazia um luar tão claro e tão limpo que a gente até podia enfiar uma agulha.
A Chiquinha vinha na frente, trombuda, e eu atrás, ralhando-a, porque ela não dera um bofetão no Paulino. Devia ser meia noite exata — conheci pela altura da lua.
A coisa deu-se ali, bem perto daquele tabocal que fica nas vizinhanças do olho d’agua.
Eu vinha falando, vinha ralhando e, quando olhei para frente, cadê a Chiquinha? Tinha desaparecido.
Nunca na minha vida os meus cabelos se tinham arrepiado. Naquele momento todos eles ficaram em pé.
— Chiquinha! Chiquinha! Pus-me a gritar, tremendo.
Eu, que nunca havia tremido de medo, não tive coragem, ao menos, para procurar a Chiquinha no tabocal.
Fiquei ali parado, besta, zonzo. A lua parece que foi ficando amarela, triste, e o vento que fazia tremer as folhas, os grilos, os sapos, todos os bichinhos que cantavam em roda, tudo, tudo parou de repente.
— Chiquinha! Chiquinha! Continuei a gritar.
Lá adiante, lá muito longe, no fim do estirão do caminho, o vulto da rapariga apareceu. Ah! Mas era uma outra Chiquinha que eu não conhecia, alta, comprida, mais comprida que um mastro de festa e caminhando, caminhando para mim num passo vagaroso, longo, não sei como, um passo que não era de gente e que só podem ter os defuntos.
— Chiquinha! Chiquinha!
O vulto desapareceu.
Fiquei no mesmo lugar, parado, o queixo a tremer.
De repente — um estouro, uma fumaça, um fedor danado de enxofre. Um pé de vento sacudiu as árvores, a lua encobriu-se. Tudo ficou na escuridão. Um tropel zoou no meu ouvido, o tropel de um animal que vinha correndo no meu rumo.
Não vá vossa senhoria supor que eu seja homem capaz de assombramentos. Não. Fui sempre bicho como trinta, nunca e nunca acreditei em visagens.
Mas, quando abri os olhos (pela benção de minha mãe que vi) vi um cavalo correndo e galopando para cima de mim, a rinchar. Fugiu-me o sangue. O cavalo era uma coisa desconforme, mais alto que as árvores e rinchando e fungando e espumando. E, coisa estranha, não tinha cabeça.
Não sei como tive forças para sacar o facão da bainha. O animal botou-se para riba de mim, aos saltos, aos coices. Botei-me para cima dele, às cutiladas. Lutamos, lutamos.
Lembrei-me do nome de Jesus Cristo e gritei. O cavalo apagou-se. Da última coisa de que me recordo foi da coiçada que recebi na caixa do peito e que me fez rolar, sem sentidos, no chão.
Quando dei por mim era no dia seguinte, já em casa, no fundo da rede, o febrão a arder.
Dizia-se que eu tinha enlouquecido no meio do caminho e que, a viva força, quisera cortar a Chiquinha a facão. Ela estava, de fato, com dois ou três talhos nos braços e no pescoço.
E o João Malhado calou-se.
— E daí? Perguntei.
— O boticário da vila, que me veio ver em casa, afirmou que tudo aquilo tinha sido um acesso de sezão que eu tivera. Acesso de sezão teve a avó dele!
— Que foi então?
— Eu conto a vossa senhoria. Seis meses depois, já bom com as mesinhas do boticário, saí de casa para ir ao sítio do Bernardo Muriçoca, comprar uma novilha que ele queria vender. Eu devia demorar-me dois dias. Mas, como o Bernardo estivesse fora, voltei na mesma noite. Ao chegar em casa, bato à porta, bato muito, muito. A Chiquinha, afinal, veio abri-la, mas assim com um ar medroso, todo esquisito. Entro. Que imagina vossa senhoria que eu encontrei em cima de um baú de folha? Um chapéu de padre. Indago, faço questão de saber. A Chiquinha conta-me que o chapéu era do padre Camilo, aquele vigário moço e bonito, que, de quando em quando, passava lá em casa, em caminho das desobrigas. E jurou- me, por tudo quanto havia de mais sagrado, que o padre havia deixado o chapéu, ali, para guardar, porque o chapéu era novo e ele o não queria estragar nos matos do caminho.
Ficamos silenciosos. O João Malhado acendeu tranquilamente o seu cigarro de palha.
— Só mais tarde é que fui atinar com aquela história da noite da festa do Maneco Cantanhede.
— Era...
— Era a malvada da Chiquinha que se tinha mudado em mula sem cabeça. Mulher de padre é isso. A noite era de sexta-feira.
Sala burguesa. Ao fundo — porta e larga janela dando para um pequeno jardim. Biombo entre a janela e a porta. Duas portas à D. Duas à E. Noite. Chove horrivelmente lá fora; relâmpagos riscam as vidraças; trovões. Cena vazia ao levantar do pano. Batem afoitamente à porta.
Maria, aparecendo da E.
Quem é? (Continuam a bater). Quem bate?
Estafeta, fora
Telegrama! (Maria abre a porta. Ele entra, de capa, todo molhado, ficando ao umbral).
MARIA recebe o papel verde do telegrama, some-se pela D. A., volta depois, entregando o recibo ao estafeta.
Pronto! Não espera a chuva passar?
Estafeta
Obrigado! (Sai).
Um grande grito de Adelaide, fora.
Adelaide
Maria! Maria! (Aparece da D. A., em roupão, cabelos amarfanhados, abatida, tresloucada). Olha, vê! Salva-me! É Ricardo, vê, Ricardo chega hoje, chega já, no trem das nove. Salva-me!
Maria
Salvá-la?
Adelaide
Sim! Corre, toma a criança, leva-a já daqui!
Maria
Mas...
Adelaide .
Não há tempo a perder, vai buscá-la. Leva-a para a casa de tua irmã, esconde-a. Ele chega no trem das nove. Está a entrar.
Maria
Mas, minha senhora...
Adelaide
Vai correndo! Depressa! É preciso não perder tempo.
Maria
Está chovendo.
Adelaide
Não te importes com isso. Precisas levar a criança já. Seja como for, vai!
Maria
E eu vou sair com uma criança de oito dias por esse temporal?
Adelaide
Sai! E se Ricardo entrar e encontrá-la aí?! Olha, não o posso convencer de que ele é o pai. Vão fazer doze meses que ele partiu.
(Troveja).
Maria, aproximando-se da janela
Veja, a chuva é horrível.
Adelaide
Embrulha-te na minha capa. Na primeira esquina há de passar um carro, um automóvel, seja o que for, toma-o, manda tocar para a casa de tua irmã. Entrega-lhe a criança, conta-lhe a minha infâmia, pede-lhe que tenha pena de mim.
Maria
Espere, espere um pouco, vamos ver se a chuva passa, se diminui.
Adelaide
E se não passar? E se não diminuir? Ricardo me matará. Olha, eu t’o peço. Olha, foi minha mãe quem te criou; fomos criadas juntas. Por minha mãe, que tanto te queria, salva-me! (Vendo que Maria não se mexe:) Tu me fazes perder a cabeça!
Maria, áspera
Mas eu vou sair com uma criancinha de oito dias por uma noite destas?!
Adelaide, desvairada.
Vais ou não vais?
Maria
Depois do temporal.
Adelaide
Agora?
Maria
Agora, não. E se a criança morrer nas minhas mãos?
Adelaide, aparvalhada
Se morrer nas tuas mãos, hein? Por quê? Que tem isso?
Maria
Que vou eu fazer com uma criança morta. E a polícia? E o enterro?
Adelaide, como que acordando
A polícia? O enterro? Uma criança morta nas tuas mãos? (Agitada) Deixa, Maria, deixa. Tens razão. A polícia... Não vás. Não é preciso. A criança pode morrer. Tens razão. O enterro... Anda, corre, vai ver a minha capa.
Maria
Que vai a senhora fazer?
Adelaide
Não sei, vai buscar a minha capa,
Maria
Minha senhora...
Adelaide, que anda explosivamente pela cena
Depressa!
Maria
Mas...
Adelaide
Depressa! Não percas tempo!
Maria
Aonde vai a senhora?
Adelaide
Não te importes; vou sair!
Maria
A senhora está louca?
Adelaide
Sim, estou! Corre!
Maria
Mas...
Adelaide, batendo o pé
A capa!
Maria
A senhora não pode sair.
Adelaide
A capa!
Maria
Olhe a chuva.
Adelaide
Deixa-me!
Maria
Lembre-se que está com oito dias de parto.
Adelaide
Vai ver a criança.
Maria
Deixe...
Adelaide
Corre!
Maria
Minha senhora...
Adelaide
Traz-me a criança.
Maria
Não é possível.
Adelaide
Vai buscá-la! Vai buscá-la!
Maria
Diga-me, aonde vai?
Adelaide
Vou sair, vou-me embora! Deixa-me!
Maria
Para onde?
Adelaide
Não sei! Não te importes! Por aí! Para a rua, para o inferno! Corre!
Maria
Deixe a criança comigo. Eu a levarei. Mas fique. Veja como está a noite. É uma loucura...
Adelaide
E tu a levas?
Maria
Levo.
Adelaide
Já?
Maria
Espere um pouco... Sossegue... Tudo se fará...
Adelaide
Já?
Maria
Sossegue... Sossegue... A chuva vai passar...
Adelaide
Já?
Maria
Saio, sim, saio. Mas deixe a chuva diminuir. Está chovendo que é um horror.
Adelaide
Ô Maria! Tu me fazes perder a cabeça!
Maria
Mas que quer que eu faça?
Adelaide
Que será de mim, criatura, se não levares essa criança daqui?!
Maria
Só agora é que se lembrou disso?!
Adelaide
Que querias que eu fizesse, se só agora recebi o telegrama de Ricardo?
Maria
E eu é que me vou meter pela enxurrada com uma criancinha nos braços?!
Adelaide, encarando-a
Afinal, queres desgraçar-me?
Maria
Eu? Não! A senhora foi quem se desgraçou!
Adelaide
Quê?
Maria
Não se devia entregar. Não tenho culpa...
Adelaide
Que disseste?
Maria
Sim. A senhora não tinha necessidade nenhuma de estar hoje nesse aperto. Tem um piarido que a estima. Não devia ceder.
Adelaide
Hein? Que disseste? Que disseste? (Segurando-lhe o braço:) Julgas mesmo que eu tive um amante?
Maria
E alguém pode duvidar disso? E a criança?
Adelaide
Pensas então que eu tive um amante! Diz, diz!
Maria
Mas... Minha senhora...
Adelaide
Um amante, hein? Um amante?! Julgas então que eu, por minha vontade, por meu gosto, por meu prazer, fosse capaz de trair meu marido? Hein? Julgas então que eu traí Ricardo? Um amante, hein? Julgas então que eu tivesse tido um amante?
Maria
Não disse isso, não disse isso... Mas como podia ser?
Adelaide
Como? Eu mesma não te sei contar. Foi uma loucura, foi um delírio, foi uma desgraça.
Juro-te: eu própria não sei. Toda esta história me arrepia. Aquele homem me perseguia desde que eu era pequena. Um horror! Eu devia ter oito anos quando o vi pela primeira vez. Estava brincando no jardim, quando, ao me voltar para a rua, vi-o fitando-me. Sabes lá que olhos eram os dele! Uns olhos verdes, agudos, loucos, uns olhos assim, assim deste tamanho, chispando em cima de mim como os de um gato. Gritei, fugi. Nunca mais me saíram da cabeça aqueles olhos pavorosos. Muito tempo deixei de vê-lo. Foi no dia da minha primeira comunhão. Eu voltava da igreja quando, ao chegar à casa, lá estava ele na rua, fitando-me com aqueles mesmos olhos esverdeados, com aquele mesmo olhar fosforescente. O dia inteiro que era de alegria na minha família, foi para mim sombrio e tristonho.
Maria
E que lhe disse o homem?
Adelaide
Nada. Nunca me disse nada.
Maria
Nem uma palavra?
Adelaide
Nem uma. Nunca.
Maria
Que fazia, então?
Adelaide
Olhava-me, olhava-me, não me deixava de olhar. Nunca me disse uma única palavra. Nem mesmo na noite de minha desgraça me falou.
Maria
Que horror!
Adelaide
Toda esta história é horrorosa, Maria. Não sei contar. Toda eu me despedaço ao lembrar-me dela. (Noutro tom:) De outra vez foi na igreja, no dia do meu casamento, na ocasião em que Ricardo me ia colocando a aliança no dedo. Meus olhos sentiram que uns olhos me procuravam. Era ele, o homem. Lá estava a um canto da igreja, firme, sem um movimento, sem uma palavra. Desmaiei. Houve até quem dissesse que aquele desmaio era mau prenúncio no casamento. Nunca disse a ninguém a causa do desmaio.
Maria
E ele?
Adelaide
Não me deixou mais. De tempos em tempos, se eu entrava numa loja, num bonde, num teatro, lá estava ele, sem uma palavra, sem um gesto, a olhar-me, a olhar-me sempre com aqueles olhos esquisitos, incríveis, desvairados, que me aterrorizavam e me prendiam. Depois deu para parar ali defronte. Quando Ricardo, há três anos, foi a S. Paulo, ele não saiu dali, daquele pé de amendoeira.
Maria
E que fez a senhora?
Adelaide
Nada!
Maria
Não disse ao seu marido?
Adelaide
Não. Nunca tive forças para dizer. Bastava que me lembrasse daqueles olhos, para que me sentisse mole, medrosa, aniquilada,
Maria
E como se entregou?
Adelaide
Como? E eu sei?! Não me perguntes. Não te posso dizer. Eu própria não sei. Eu própria se quisesse não podia contar. Uma desgraça! Sinto que não fui eu... Estava magnetizada... Um pesadelo... Não me lembro... Revolvo a memória: está tudo confuso, nebuloso, disparatado. Foi como se eu estivesse dormindo. Não te sei explicar. Não fui com o coração, fui com o corpo, arrastada, arrancada, como se um guindaste me levasse. Não sei como fui. Desde que Ricardo partiu para a comissão em Goiás, que o homem não me deixou um instante. Na manhã seguinte a da partida, ao abrir a janela, soltei um grito. Lá estava ele, ali debaixo da amendoeira, em pé, sem uma palavra, sem um movimento, com os olhos chumbados em cima de mim, aqueles mesmos olhos verdes, agudos, fuzilantes, que me faziam tremer e gritar. Nunca mais pude chegar à janela. De dia, de noite, de tarde, a toda hora, lá estava o homem, sempre no mesmo lugar, sempre em pé, sempre mudo, a olhar-me sempre com aquele mesmo olhar felino e duro. Não tive mais sossego. Se vinha aqui para dentro, parecia que me faltava alguma coisa, e que alguma coisa lá de fora me puxava. Eram os olhos. Era o homem. E eu ia e, horas e horas, ficava estupidamente à janela, lerda, zonza, aparvalhada, com os olhos pregados naquele olhar de fogo que me prendia e me anulava como a cobra anula o sapo.
Maria
Que horror!
Adelaide
Um horror, Maria! Não podes imaginar quanto sofri. Isto durante dois meses, todos os dias, a toda hora, a todo momento. O homem parece que morava debaixo daquela amendoeira. Uma noite (era uma noite como esta: chuva, ventania, relâmpagos, trovões), não pude sair de junto da janela. Não pude, porque lá do meio da treva, daquele mesmo lugar, os dois olhos fuzilavam em cima de mim, enormes, horríveis, fulminantes. Eu estava toda molhada pela chuva que o vento me respingava, mas não podia sair dali. E não via ninguém. Via apenas aquela luz violenta, estonteadora, os dois olhos acesos pavorosamente na treva. Estrondava o trovão, roncava o vento, abria o relâmpago, a escuridão voltava e sempre aqueles dois olhos formidáveis, assim, assim deste tamanho, rolando e coruscando na noite como holofotes. Eu batia o queixo de frio, mas lá estava no cativeiro dos olhos. Houve um momento em que senti que eles se aproximavam. Vi-os caminhar lentamente, assim... Assim... Na minha direção. Senti-me tonta, bêbeda, bamba e fui caminhando também, a tombar, a tombar... A minha mão tocou no trinco, abri a porta e... O homem entrou.
Maria
Meu Deus!
Adelaide
E atirou-se sobre mim ganindo, uivando, mordendo-me como um lobo despedaça uma presa.
Maria
E depois?
Adelaide
Não sei. Quando acordei era manhã.
Maria
E ele?
Adelaide
Nunca mais o vi.
Maria
Santo Deus!
Adelaide
Quando dei por mim, (fazendo um gesto que indique gravidez:) já o sabes. (Pequena pausa). E a minha situação é esta: com um filho que não é de meu marido e que eu não sei de quem seja, o marido a entrar e eu sem saber o que faça do filho.
Maria
Como a senhora é infeliz! Como deve ter sofrido!
Adelaide
Muito, Maria, muito! Nos primeiros dias ainda me vinha a esperança de que Ricardo chegasse e eu pudesse ter a infâmia de o convencer que era dele o filho. Mas Ricardo se demorou na comissão. Houve um tempo que quase enlouqueci. Foi quando Ricardo me escreveu dizendo que estava para se vir embora. Compreendes o meu terror: estava com seis meses de gravidez. Não era mais possível enganar. Fiz tudo para matar a criança no meu ventre.
Maria
Oh!
Adelaide
Horroriza-te de mim, fazes bem, sou uma desgraçada. Nunca poderás saber o que sofri. Acordava à noite, aos gritos, vendo Ricardo entrar e eu sem lhe poder esconder a minha culpa. Vi-o muitas vezes em sonho, imenso, formidável, com um punhal para me cravar no peito. Deves lembrar-te.
Maria, recordando-se
Sim, sim!
Adelaide
Muitas vezes vieste do teu quarto acordar-me do pesadelo.
Maria
Sim, sim!
Adelaide
Depois Ricardo me escreveu dizendo que se demorava muito. Foi um sossego. Ao menos podia dar à luz a criança. E dei. Desgraçadamente dei. E agora, bem vês, estoura-me inesperadamente o telegrama de Ricardo. Vê tu a minha situação: a criança ali, Ricardo a entrar de instante a instante, e eu sem saber o que lhe diga, sem ter coragem de lhe afirmar a minha miséria. Aí tens tu, Maria! Sou mais infeliz do que pensas. (Pequena pausa). Só me resta uma coisa.
Maria
Qual?
Adelaide
Sair, ir-me embora ou morrer.
Maria
Minha senhora!
Adelaide
Morrer, sim, morrer! (Exaltada). É preciso que eu morra. É preciso que eu saia daqui. Vou gritar aí pela rua a minha torpeza, a minha vilania. É preciso que eu saia!
Maria
Minha senhora, que é isso? Acalme-se! Levo a criança!
Adelaide, numa mutação súbita
Tu? Tu? Hein? Com esse temporal? Tu?
Maria
Sim! Levo!
Adelaide
Já?
Maria
Já!
Adelaide, vibrante, chorando, rindo
Pois leva! Anda, corre! Para a casa de tua irmã! Pede-lhe que a crie. Vamos! A minha capa. Embrulha-te na minha capa. Já não chove. Corre! Ainda me podes salvar. Ricardo não tarda. Ligeiro! Onde está a capa? (Entrando pela porta da D., saindo imediatamente, falando sempre:) Leva o guarda-chuva. Vai buscar a criança. Não a deixes molhar. Corre, Maria, corre! Não percas tempo. Toma o primeiro automóvel que passar. Anda, anda! (Trazendo a capa:) Toma, embrulha o pequeno, embrulha-o bem. Vai correndo. (Impelindo Maria para a E. A.:) Leva o guarda-chuva. Vai, vai, vai! (Maria sai. Adelaide tomba pelos móveis, entra a D. sai, sempre a falar:) O guarda-chuva? Onde está? Quem o tirou dali? (Como se estivesse a falar com Maria:) Toma Um automóvel. Não deixes a criancinha molhar-se. Entrega-a a tua irmã. Quem me tirou daqui o guarda-chuva? Depressa, depressa!
Nesse momento ela, que vem saindo da D. A., fica com a palavra suspensa, num choque, ao ver aparecer Maria na E. B., com a criança nos braços. Acendem-se-lhe os olhos de terror; toda ela treme, muda. E vai, lentamente, encolhendo-se, recuando, até ficar de encontro ao sofá, grudada à parede, enquanto Maria para ela caminha devagar, para lhe entregar o filho ao beijo de despedida.
Maria aproxima-se de Adelaide que agora lhe vem combalidamente ao encontro.
Há silêncio na cena. Adelaide beija nervosamente a criança e fica a olhar doloridamente Maria, que se dirige para a porta F. Quando ela abre a porta um relâmpago clareia sinistramente a cena, um trovão ribomba. Maria recua, tem um momento de vacilação, mas consegue dominar-se e desaparece.
Adelaide, tomba no sofá, em soluços
Meu Deus!
Cena silenciosa por uns segundos. Ouvem-se apenas os soluços de Adelaide que vão diminuindo, diminuindo, como se ela estivesse caindo numa modorra.
Ouvem-se vozes, lá fora, rumores de alguém que chega.
Ricardo, fora
Que fazias na chuva? Que é de Adelaide?
(Entra. À frente traz Maria, que lhe carrega a valise). Que chuva desesperada! (Tirando a capa:) Devo estar ensopado. E Adelaide? Já dorme? Chama-a. (Impedindo Maria para a D. B:) Prepara-me uma muda de roupa. Um par de meias de lã, ouviste? Escuta: esvasia a "valise" que o estúpido do "chaufeur" deixou molhar. Deve estar tudo ensopado dentro. Vocês não me esperavam? Não receberam o meu telegrama?
Maria
Sim, senhor.
Ricardo
Onde está Adelaide? Chama-a. Olha, toma a chave da "valise". (Maria sai. Ele dá com Adelaide no sofá e corre lhe ao encontro.) Tu, aqui! (Abraça-a, beija-a fortemente).
Adelaide, acordando de chofre, repelindo-o horrorizada, apertando-o depois, num transporte.
Ricardo! Ricardo!
Ricardo, procurando disfarçar a emoção, rindo
Por que choras? Que tolice é essa? Ora, que bobagem! Não há motivo para choro. Pois eu se cheguei... (Beijando-a:) Não chores! Que tolice! Não sejas criança. (Levantando-lhe a cabeça:) Como estás mudada, meu Deus! Estás doente?
Adelaide, de súbito, contendo o pranto
Eu, doente? Não! Quem disse?
Ricardo
Estás abatida. Parece que te levantaste de uma doença gravíssima.
Adelaide
Eu, doente? Sim, sim, estive! Muito mal, quase à morte. Estou boa, já. Coisa ligeira, quase nada.
Ricardo
E não me mandaste dizer?!
Adelaide
Não valia a pena. Doencinha de nada. Para que sobresaltar-te? (Palpando-o:) Tu estás molhado, vieste na chuva. Estou boa já, não vês? Estou feia, não é assim?
Ricardo
Como estás magra! Olhos fundos, rosto escaveirado. Parece que te levantaste da cama neste momento.
Adelaide
Eu, da cama?! Quem disse? Pois se eu não estive doente. Estava dormindo. Uma madorna, nada mais. (Palpando-o:) Vai mudar essa roupa. Tu te resfrias.
Ricardo
Hoje estou calejado, minha mulher. Já se foi o tempo em que uma chuvinha me resfriava. Um ano inteiro de floresta fez-me acostumar.
Adelaide, inquieta, indo até o F., espiando
Que chuva! Porque não esperaste o temporal passar? Como está tudo escuro! (Ricardo arrasta-a para o sofá. Ela procura fazer-se alegre, mas constrangidamente, desconcertadamente) Como estás forte! (Beija-o.) Eu doente! Que tolice! Quem te meteu semelhante coisa na cabeça?! Que me trouxeste?
Ricardo
Uma porção de lembranças do sertão — arcos, flexas, tacapes, tangas selvagens. Que se pode trazer de um sertão agreste? O indiozinho que me pediste, não me foi possível trazê-lo.
Adelaide, distraída
Sim?
Ricardo
Isto é, trazer trouxe-o, mas morreu.
Adelaide, trêmula, num espanto
Morreu?
Ricardo
Que espanto é esse? Pois se nem o conhecias!
Adelaide, disfarçando, fazendo-se alegre, penalizada
Coitadinho, morreu! De quê?
Ricardo
Não sei. Naturalmente de febre, de nostalgia, de uma moléstia qualquer. Vinha bem disposto, lampeiro; de repente deu para definhar, para gemer, para chorar... Mas também a viagem que fizemos foi horrível!
Adelaide, distraída
Sim?
Ricardo
Tremenda! Atravessamos todo o sul de Goiás, entramos em Minas, penetramos depois em S. Paulo. E tudo isso a cavalo, debaixo de chuva, ao sol. O pequeno não resistiu — morreu.
Adelaide, rindo desvairadamente
Engraçado! Devia ser engraçado!
Ricardo
Não achei graça nenhuma. Tive uma grande pena.
Adelaide
Mas como está chovendo, meu Deus! Não te molhaste?
Ricardo
Vim de automóvel. Molhei-me pouco.
Adelaide, fazendo um grande esforço para se tornar alviçareira
Mas como estás forte! Como estás queimado? Não estiveste doente?
Ricardo
Nem uma dor de cabeça. (Arrastando-a para o sofá:) Deixa-me abraçar-te. Ainda te não beijei a meu gosto. Mas como estás abatida! Saudades, não é? E eu que pensei encontrar-te sadia!
Adelaide
Mas quem disse que eu estive doente? Estou boa. Não vês? É que eu estava dormindo. Tive um pesadelo. E tu não vais mudar essa roupa? Vamos para dentro. És capaz de resfriar.
Ricardo
Espera...
Adelaide, impelindo-o
Entra, entra...
Ricardo
Não me molhei... espera...
Adelaide
Estás molhado, sim! Vou ver outra roupa. Maria! Maria! Ah, Maria saiu! (Ricardo quer falar, ela o impede, impelindo-o, falando sempre:) Resfrias. Uma doença... Que horror! Isso te faz mal.
(Ricardo sai. Adelaide vai chegando à porta para entrar, quando aparece Maria. Aquela tem um choque brutal. Para uma em frente da outra:) Tu, aqui? (Maria fez um gesto desanimado de quem nada pôde fazer. Adelaide agarra-lhe o braço violentamente:) E meu filho?
Maria, titubeante, trêmula, chorosa
Uma desgraça... Foi uma desgraça. Não sei mesmo como foi. Eu não contava. Imagine... não vi... não vi...
Adelaide
Fala!
Maria
A senhora não imagina... Um horror! Eu não contava...
Adelaide
Fala!
Maria
Imagine... Quando fui saindo...
Adelaide
Diz!
Maria
Quando fui chegando ao portão... Justamente no momento... No momento em que fui chegando... O automóvel parou, o senhor Ricardo saltou.
Adelaide
Depressa!
Maria
Fiquei doida. Não sabia o que fizesse... Não sabia o que fazer da criança.
Adelaide
Que fizeste! Fala!
Maria
Peguei-a... Arriei-a no chão... Assim... Assim atrás de mim e fiquei de encontro ao muro, escondendo-a... Assim... Assim. O Sr. Ricardo viu-me, entregou-me a "valise" e foi-me trazendo para dentro.
Adelaide
E a criança?
Maria
Ficou lá.
Adelaide
Onde?
Maria
Na chuva.
Adelaide, num grande grito
Corre, desgraçada, corre! Vai buscá-la! (Maria corre para a porta).
Ricardo, aparecendo
Que foi isso? (Maria estaca). Que grito foi esse?
Adelaide
Grito, grito? Ninguém gritou.
Ricardo
Eu ouvi!
Adelaide
Sim, sim, um grito, é verdade. Fui eu. Um bicho, uma barata. Não foi, Maria?
Ricardo
Pensei que fosse outra coisa. Um grito horrível... (Mudando de tom:) Vocês mulheres têm medo de tudo, até de baratas. Eu queria ver o que seria de uma de vocês na floresta, com um tigre em frente.
Adelaide
Tigre?
Ricardo
Sim, uma onça. Encontrei-me uma vez nessa situação. Não é de brincadeira. Foi lá no alto sertão de Goiás. Era ao anoitecer. Eu ia pela mata, com três homens apenas, para me encontrar com o grosso da comissão lá adiante, na clareira. De repente um uivo. A dois passos uma onça enorme, terrível, de olhos grandes, imensos, verdes, coruscantes... (Adelaide solta um grito). Que é isso? Que tens?
Adelaide, sobresaltada
Nada. Estou nervosa. Tu também vens contar umas coisas horríveis!...
MARIA, procurando disfarçar
E a onça?
Ricardo
Matámo-la. O homem que nos servia de guia varou-a com um tiro de rifle.
Adelaide, distraída E o homem morreu?
Ricardo
Que homem?
Adelaide
O homem.
Ricardo
A onça!
Adelaide
Sim, a onça. E os olhos?
Ricardo
Olhos? Que diabo de confusão estás fazendo?
Adelaide, para Maria, disfarçando, numa alegria estourante
Ele me trouxe um indiozinho, sabes? Coitadinho, morreu! Não foi, Ricardo, não foi?
Ricardo
Uma infelicidade. Era tão engraçado.
ADELAIDE, vai até à porta F. mexendo na chave; Maria atravessa-lhe em frente como a compreender-lhe as intenções. Ela subitamente:
Fechaste o portão, Maria?
Maria
Não, senhora.
Adelaide, afoita
Vai fechar.
Ricardo
Com essa chuva?
Adelaide
Mas está aberto...
Maria
Sim, está aberto...
Ricardo.
Que tem isso? Não há mal nenhum.
Adelaide
Então vamos dormir com o portão aberto?
Maria
Com o portão aberto?...
Ricardo
Que perigo há nisso?
Adelaide, para Maria
Vai fechar.
Ricardo
Para que, se está chovendo?
Adelaide
Mas tu queres que se durma assim?
Ricardo
Que pode haver de extraordinário?
Maria e Adelaide
Os ladrões!
Adelaide
Ladrões? Bem mostra que nesta casa não havia homem. Fecham-se as portas e acabou-se! Que necessidade há de meter-se uma pessoa na chuva? (Para Maria:) Vai buscar-me um cálice de conhaque. (Maria sai. Ele cinge a cinta de Adelaide:) Deixa-me abraçar-te, minha querida. Não imaginas como eu estava doido... Estava saudoso da minha casa. Saudoso por este aconchegozinho, saudoso dos meus livros, do meu descanso, dos teus beijos, dos teus braços. Não imaginas como tudo isso me dava um peso ao coração. Tudo me fazia falta. Faltava-me tudo. Palavra! Nunca mais quero comissões no sertão. É uma vida horrível! (Maria entra com a garrafa e o cálice. ele serve-se. Para Maria:) Que fazias no portão quando cheguei?
Adelaide
Ia fazer-me umas compras.
Ricardo
Compras? De noite, chovendo?
Maria, emendando
Fui ver se o senhor havia chegado.
Adelaide
Sim, sim! Mandei que ela te fosse esperar. Mas tu ainda não mudaste de roupa! (Para Maria, noutro tom:) Quem sabe se o automóvel não está à espera? Vai pagar ao "chaufeur". (Maria dirige-se para a porta F.)
Ricardo
Já paguei. (Maria volta). Que viagem horrível fiz no trem. Um dia inteiro de chuva. Não tive licença de pôr a cabeça à janela. A que horas recebeste o meu telegrama?
Adelaide
À noite.
Ricardo
À noite? Passei-o de manhã. Tiveste uma surpresa enorme, não é assim?
Adelaide, sobressaltada
Surpresa, por quê?
Ricardo
Ora, por que! Pois se na última carta te mandei dizer que me demorava ainda uns meses!
Adelaide
Sim! É verdade! Uma grande surpresa!
Ricardo
Fiz-a de propósito.
Adelaide, sobressaltada
Por quê?
Ricardo
Porque sabia que te era agradável.
Adelaide
Ah!
Ricardo
Eu acho-te diferente.
Adelaide
Diferente, eu? Por quê?
Ricardo
Não sei. Eu mesmo não sei. Mas tu não estás boa. Qual foi o médico que te tratou?
Adelaide
Médico? Que médico?
Ricardo
Mas ainda há pouco não me dizias que estiveste doente? (Para Maria:) ela não esteve doente?
Adelaide
Estive, sim, Maria! Não estive? Coisinha de nada. Não foi?
Maria
Foi. Uma...
Adelaide
Uma enxaqueca. Foi uma enxaqueca.
Maria
Enxaqueca, sim.
Adelaide
Não foi preciso médico. (Subitamente, Maria:) E o cachorrinho? Deixaste-o no jardim! Corre, vai buscá-lo. (Maria caminha para a porta).
Ricardo
Ele está lá no quarto. (Maria estaca). Está deitado ao pé da cama. (Para Adelaide, noutro tom:) Não te havia dito ainda. Vamos dar enfim o nosso passeio à Europa.
Adelaide
Sim?
Ricardo
Uns seis meses pelo menos. Um pouco de Paris, um pouco de Itália, um pouco da Inglaterra e muito da Suíça. Preciso retemperar as forças. E tu também. (Ouvem-se vagidos de criança). Escuta, escuta. Não ouviste?
Adelaide
Quê? Quê?
Ricardo
Não ouviste um choro de criança?
Adelaide
Choro de criança? Não. Não é possível!
Maria
Eu não ouvi.
Ricardo
Então foi engano meu. Muito da Suíça, como te dizia. Sinto-me cansado. É brincadeira: doze meses de selvas, doze meses de sertão! É verdade: sabes quem encontrei em S. Paulo? O Cruz! (Choro de criança). Escuta...
Adelaide, distraindo-o
Que Cruz?
Ricardo
O Cruz! O que foi teu professor de desenho. Mas vocês não ouviram?
Adelaide
Não.
Maria
Eu não ouvi nada.
Ricardo
Há uma criança chorando aqui perto.
Adelaide
Criança? No portão não é!
Ricardo
Parece que é mesmo no portão.
Maria
É o cachorrinho lá dentro.
Adelaide, nervosa
É o cachorrinho, sim! É o cachorrinho! Onde viste o Cruz? Está bom? Falaste-lhe? Onde o encontraste?
Ricardo
Em S. Paulo.
Adelaide, mais excitada e atarantada
Foste à casa dele? Viste-o na rua? Perguntou por mim? Ele te conheceu? Que te disse? Ainda se lembra de mim? E tu não mudas essa roupa, Ricardo? Vamos para dentro...
Ricardo
É o mesmo homem! Não mudou nada. E casou-se outra vez. Tem uma filhinha, sabes?
Adelaide
Tem uma filhinha? (Rindo-se extemporaneamente:) O Cruz tem uma filhinha!
Ricardo
Por que ris? É linda! Fiquei-lhe com uma inveja. Todo o mundo tem filho e só nós... (Vagidos de criança). Escuta, escuta agora. Ouviste? Mas foi claro.
Adelaide
É engano teu. Não tem criança nenhuma no portão.
Ricardo
Mas eu ouvi.
Adelaide
É na vizinhança. É alguma criança na vizinhança.
Maria
Deve ser na vizinhança.
Ricardo
Não, eu ouvi choro aqui perto. Parece que é no jardim.
Adelaide
Não é possível. É o vento. É impressão tua. Não é possível.
Ricardo
No jardim, sim. Ouvi, vou ver.
Adelaide
Não, não. Vem mudar essa roupa. Estás com os pés molhados. Maria, vai buscar um par de meias, vai ver uma muda de roupa. (Vagidos de criança).
Ricardo
Escutem. Está chorando. Não é possível que vocês não tivessem ouvido.
Adelaide
É na vizinhança, eu já te disse. (Gritando:) Um par de meias, Maria!
Ricardo
É aqui no jardim. Ouvi perfeitamente. Deixa-me ver.
Adelaide
Não, não é aqui. É aí junto, uma criança que nasceu há dias. (Arrastando-o:) Vamos para dentro. Maria, fecha o portão, fecha a casa.
Ricardo
Larga-me. Chorou bem ali. Tenho a certeza. Vou ver.
Adelaide
Tu não sais. Está chovendo. Os ladrões... É na vizinhança. Não tem criança nenhuma no jardim. Maria vai ver, corre Maria.
Ricardo, que já vestiu a capa
Deixa que eu vou. (Num gesto imperativo para Maria:) Vou eu. (Caminha para a porta).
ADELAIDE, atravessa-se-lhe em frente, abrindo os braços na porta, num grito
Não, não! Não sais!
Ricardo, escandalizado
Que é isso? Mas que significa isso?
Adelaide, caindo em si, abraçando-o
Não é por nada. É que está chovendo. Não há criança nenhuma. Tu te vais molhar. Não saías... Amanhã se vê, não saías.
Ricardo
É preciso ver agora. Quem sabe lá o que é? É uma criança chorando, tenho a certeza. (Caminha para a porta. Adelaide segue-o, como para o impedir. Ele sai).
Adelaide, volta. O seu olhar encontra-se com o de Maria que faz um gesto de que tudo está perdido. Ela ergue os olhos para o céu como a pedir misericórdia
Ó Deus!
Ricardo, trazendo uma criança nos braços
Vejam, vejam, uma criancinha! Vem ver, Adelaide! Vem ver, Maria! Ali na chuva, junto do portão. Venham ver!
Adelaide, constrangidamente
Uma criança, sim!
Ricardo, para Adelaide, que se conserva estática
Vem ver. Ali na chuva, coitadinha! Não tem quinze dias. Atirada, no portão.
Adelaide
Não é possível, não é possível!
Ricardo
Atirada, sim, no portão. Encontrei-a. Vê, está pingando! Não tem quinze dias, repara bem!
Adelaide
Não é possível!
Ricardo
Vê, tem os olhinhos verdes.
Adelaide, recuando
Verdes?
Ricardo
Sim, olha. Vou à polícia amanhã. Isto é uma crueldade. Pois há mães desalmadas que abandonam um filhinho num temporal destes!
Adelaide
Não digas isso. Não foi abandonado.
Ricardo
Foi, sim. Isto é um enjeitado. Foi naturalmente uma mãe feroz que o abandonou.
Adelaide
Não foi, juro-te, não foi.
Ricardo
Não pode haver dúvida. Naturalmente para encobrir algum crime, alguma infâmia.
Adelaide
Não foi, Ricardo. Não houve crime, não houve infâmia.
Ricardo
Mas isso está claro. Só se enjeitam crianças por essas misérias. E deixam-na justamente em nossa porta por saberem que não temos filhos. E na chuva! Uma criancinha que nasceu ontem! Malvados! E olha, é gordinha, clara... Mas repara, Adelaide... Não se move... Vem ver, Maria... Não respira. Venham ver vocês... Talvez eu me engane, mas não se mexe. O coração não bate. Vejam... Está morta!
Adelaide
Morta?
Ricardo
Morta, sim!
Adelaide, num grito de toda a sua alma e de toda a sua vida
Meu filho! Meu filho!
Cai o pano subitamente
Numa destas últimas noites, no Municipal, ao fazer-se a luz na sala para o intervalo do segundo ato, Alvares Baptista, na cadeira ao lado da minha, bateu-me discretamente no braço, indicando-me, com os olhos, uma das frisas:
— Está vendo você aquela mulher, ali, de seda grená? .
— Sim. Uma bela mulher.
— Admirável.
— Quem é?
— É a mulher do homem que tocava clarineta.
Nesse momento assomava à porta da frisa um sujeito alto, magro, horrendamente magro e horrendamente feio, já velho e corcovado, metido numa casaca que lhe dava o aspecto de um macaco vestido, monóculo encravado no olho esquerdo.
Alvares Baptista voltou-se de novo para mim.
— O homem da clarineta é aquele.
Olhei-o fixamente com as pupilas a faiscar de curiosidade. Baptista arrastou-me para o corredor:
— Aquelas duas criaturas têm a sua história.
— Que você conhece?
— Que eu em parte testemunhei.
E depois de descalçar as luvas:
— Fazem dez anos. Era eu ainda estudante e morava com vários rapazes numa "república", na rua Corrêa Dutra, no Catete. Aquela mulher morava defronte, numa casa de luxo. Era a mesma criatura de hoje, a mesma pele macia e fresca, os mesmos cabelos acastanhados, a mesma beleza opulenta e plácida de deusa inalterável.
Foi no terceiro ou quarto dia da instalação da "república" que eu a vi, à janela do palacete. E, olhando-a agora, na frisa, tenho a impressão de que a estou vendo há dez anos passados na janela fronteira à minha: parece que a tal criatura tem a mesma idade, o mesmo penteado, até o mesmo vestido. Deve haver naquela mulher qualquer coisa da imortalidade, qualquer coisa da imutabilidade das deusas do Olimpo.
Uma mulher bonita defronte de uma "república" de rapazes é sempre um acontecimento. Passávamos os dias à janela para vê-la. Há criaturas, na vida, que são verdadeiros cronômetros. Aquela mulher é uma delas. Regula todos os seus passos pelos ponteiros dos relógios. Tinha hora certa, hora exata, hora infalível de mostrar-se à varanda de sua casa. Era às dez da manhã e às oito da noite invariavelmente.
Apaixonei-me desde o primeiro dia. E, às horas determinadas, quando ela assomava à varanda, lá estava eu à janela para vê-la.
Há mulheres que nasceram com a sina de torturar. Aquela nasceu para isso. Durante todo o tempo que ficava à varanda, não tinha para mim, nem para os meus colegas, o mais vago indício de atenção. Chegava, encostava-se ao peitoril, serena, impassível, vestida assim como para um espetáculo, os maravilhosos olhos ora para um lado, ora para o outro, lentos, como se nada ali por perto a interessasse. .
Eu tossia, nós todos na "república" tossíamos, falávamos alto, ríamos, e ela nada, rigorosamente nada, como se fosse cega e estupendamente surda.
Eu sempre tive a doença terrível da conquista. Aquela impassibilidade doeu-me, excitou-me. Jurei a mim próprio triunfar. O ano inteiro não abri um livro, e o resultado foi aquela única bomba que tive no meu curso.
Durante mais de um mês fiquei na incerteza se a tal mulher era casada ou não. Não via homem entrar nem sair. O que eu ouvia era, pelas dez da noite, uns sons impertinentes de clarineta saindo lá de dentro, quando as janelas da casa se fechavam. Cheguei mesmo a pensar horrorizado que fosse ela, a maravilhosa mulher, a tocadora da clarineta.
Não há sentinela mais alerta e mais minuciosa do que uma paixão. Da minha janela, na qual passava o dia inteiro, a noite inteira, eu procurava perscrutar e descobrir tudo e tudo que se passava defronte.
Acabei por desvendar o mistério: a mulher tinha um marido. Era aquele sujeito magro, feio, velho, com jeito de macaco, que apareceu há pouco na frisa.
A clarineta insuportável que se ouvia, às dez horas da noite, era tocada por ele.
Aquilo me encheu de alegria e de esperança. Uma mulher tão linda, de uma beleza tão maravilhosa, não podia, de maneira alguma, amar um sujeito daqueles com aquela idade, aquela cara, aquele feitio e aquela clarineta. Forçosamente teria que ceder à insistência apaixonada da mocidade ardente que eu lhe oferecia.
Devia ter amantes, tinha o direito disso.
E pus-me a estudar os passos do homem que tocava clarineta. Saía às onze da manhã, voltava às seis da tarde. Havia, porém, um dia que não voltava, a não ser pela madrugada. Era às quartas-feiras.
Durante muito tempo não consegui senão registrar o fato. Só mais tarde, muito mais tarde, pude desvendar o motivo. Desvendei-o pela minha pertinácia de não perder uma particularidade do que se passava com aquela mulher.
Numa noite de quarta-feira, eu espiava febrilmente através das venezianas do meu quarto, quando vi um vulto de homem sumir-se portas a dentro da casa fronteira. O sangue galgou-me à cabeça. Escancarei as janelas para sondar. Nada. Nada mais vi, a não ser sombras diluídas, lá dentro, por trás dos cortinados, por trás das rotulas.
Uma chispa queimava-me; aquilo roía-me o espírito. Fiquei à janela, interminavelmente, o pescoço esticado, perscrutando. As horas passavam-se, a rua ia adormecendo.
Era muito mais da meia-noite quando me deu na telha descer. O homem não ia ficar eternamente naquela casa. Havia de sair, por força, e eu quis esperá-lo na rua para vê-lo de perto.
A esquina era a dois passos, e lá fiquei de sentinela, a fumar, a fumar numa agitação penosa.
Deu uma hora, deram as duas, e eu esperando, cada vez mais nervoso, cada vez mais inquieto.
Afinal vi um vulto surdir à porta, vi outro vulto esquivo de mulher. Passam-se dois ou três minutos. Vejo duas mãos enlaçadas, dois rostos que se aproximam para um beijo de despedida. O vulto de homem caminha para a rua, o vulto de mulher recolhe-se. Tremi como um bordão de guitarra que se acabasse de tanger.
Esperei. O homem passou sem dar por mim. Examinei-o num relance: era um sujeito de pouco mais de trinta anos, forte, sadio, bonito, vestido elegantemente.
Voltei zonzo para casa. Tinha desvendado o mistério. O sujeito era amante da mulher do homem que tocava clarineta.
E tudo se aclarou aos meus olhos. Um drama miserável desenrolava-se ali defronte: era o próprio marido quem se afastava conscientemente de casa para a tranquilidade do amante da esposa. Certamente todo aquele luxo de cortinados e móveis caros devia correr à conta do outro, do felizardo que eu acabava de ver na esquina.
No primeiro momento as minhas cordas emocionais agitaram-se revoltadas; mas, quando me deitei, estava tranquilo. O amor, principalmente o amor de intensa vibração carnal, nada mais é do que o egoísmo insatisfeito. Eu amava naquela mulher a maravilhosa florescência das formas, a embriagadora harmonia da carne. Nada mais.
E o fato de desvendar-lhe aquela minúcia da vida satisfez-me. Não era a rigidez de virtude que eu supus nos primeiros dias; tinha um amante; podia ter outros. E por que não seria eu, um dia, o preferido?
Dormi tranquilo na esperança de que mais cedo ou mais tarde (era questão de pertinácia) teria também o meu cantinho naquele coração que batia sob a opulência de um colo rosado.
E insisti, insisti. Não me despregava da janela e, às horas exatas, quando as venezianas da casa fronteira se abriam, tudo e tudo eu fazia para que a tal mulher do homem da clarineta voltasse os olhos para mim: falava alto, tossia, cantava. Nada, horrivelmente nada.
Tempos depois a minha tortura era às quartas-feiras. Quando, das nove para as dez da noite, o vulto do homem que eu examinara na esquina se sumia portas a dentro, e que, através dos cortinados e das venezianas fechadas, eu via as sombras diluídas na doce penumbra dos quartos, todo o meu ser se revolvia numa explosão de revolta.
Tinha ímpetos de escalar janelas, de esbofetear a mulher, o homem, o marido, sair pela vizinhança gritando a patifaria.
Uma noite, não sei como me contive. Era a uma hora da manhã, e eu, através das minhas rotulas, vi sair a mulher e o amante muito juntos, mãos presas, em caminho da praia do Flamengo. Desci as escadas e acompanhei-os.
Foram até à amurada do cais, olhando a lua cheia que estendia sobre o mar o seu rendilhado de prata; depois voltaram para a copa discreta de duas árvores, sentaram-se num banco escondido entre ramagens e ali ficaram como dois pombos em noivado.
Os meus dias eram tremendos na ansiedade daquele amor que se ia transformando em obsessão angustiosa. Tive ódio de tudo: da impassibilidade da tal mulher que nem me olhava, da felicidade do sujeito das quartas-feiras, da miséria daquele marido nojento. Do marido, principalmente. Quando lhe ouvia, às dez da noite, os sons da clarineta, fazia esforços sobre-humanos para lhe não varar a casa, quebrar-lhe o instrumento, atirando-lhe a infâmia à cara.
Mas, dia-a-dia cresciam-me os impulsos da paixão. Dei para escrever cartas que eu próprio entregava à criada, à porta. No dia seguinte a mulher aparecia à varanda, mas sempre impassível, sempre a mesma, indiferente, como se o fogo das minhas cartas nem de leve lhe tivesse crestado o peito.
Era aquilo de sempre: fixava os olhos num ponto, fixava-os noutro, plácida, fria, preguiçosa, mas nunca os demorava um segundo na minha janela. Parecia que ela não tinha percebido ainda que ali existiam uma casa e uma criatura que lhe acenava.
Um dia, porém, todo eu vibrei. Pareceu-me ter percebido que ela me sorria no momento em que se retirava da varanda, cerrando as venezianas.
Perdi completamente a noção das conveniências. Desci em ruído as escadas, atravessei a rua e fui-lhe varando a porta. Quando dei por mim, estava numa saleta atapetada. Um velho surgiu diante aos meus olhos.
— Quem é o senhor?
Era o homem que tocava clarineta.
Não tive o que responder.
— Que vem fazer aqui?
Gaguejei umas tolices.
— Rua! Rua!
E eu saí arrasado, trêmulo, a cabeça para rebentar.
Ao entrar no meu quarto, o meu desejo era destruir o mundo. Peguei da pena, numa fúria, e escrevi.
Foi uma carta horrível ao marido da mulher, ao homem da clarineta. Atirava-lhe toda a miséria ao rosto, chamava-lhe todos os nomes, contava-lhe o que tinha visto. Marido infame! Marido isto! Marido aquilo!
E eu próprio levei a carta à criada.
No dia seguinte, à noite, batem-me à porta. Corro à escada. Era o homem que tocava clarineta. Era natural que me assustasse. Com uma carta daquelas, o tipo vinha certamente meter-me uma bala na cabeça.
— Que deseja? Perguntei resguardando o corpo.
— Dar-lhe duas palavras, respondeu com um sorriso calmo.
Convidei-o a subir. Ele entrou silenciosamente no meu quarto e sentou-se.
— É o senhor o autor desta carta?
Ficava-me feio negar.
— Sou.
Colocou a carta sobre a minha mesa de estudo, dizendo com serenidade de um justo.
— Preciso dar-lhe uma explicação.
Fitei-o e, só depois que desviei os olhos, ele falou:
— O cavalheiro está enganado. O marido não sou eu. O marido é o outro, o das quartas-feiras.
Meus pés grudaram-se no chão.
O homem ergueu-se, curvou-se com um cumprimento e desceu as escadas.
Não sei quanto tempo ali fiquei, junto da mesa, tonto, lerdo, imóvel.
Só me movi ao ouvir, defronte, um som de clarineta. Não eram os sons impertinentes e enfadonhos dos outros dias, eram uns sons alegres, límpidos, felizes de quem consegue refletir na música a doçura de uma consciência tranquila...
Quando a Sabina se casou com o Chico Mendengue levou a irmã mais nova, a Rosinha, que, por aquele tempo, não tinha mais que oito anos.
Nunca imaginou que um dia tivesse ganas de matá-la.
A Sabina foi sempre uma alma azeda, áspera, envenenada de ciúmes e ódios surdos. No tempo de moça era um dos palmos de cara mais bonitos daquele pedaço que vai de Barra do Corda a Grajaú, apesar da sisudez do seu rosto em que, só por milagre, desabrochava um sorriso.
O Mendengue não se casou apenas pela necessidade matuta de ter mulher que lhe cuidasse da casa, casou-se também por uma pontinha de paixão. Mas isso desapareceu logo no primeiro ano.
A Sabina era insuportável. Tinha ciúmes de tudo, via motivos para ciumadas em todas as coisas. Não podia o marido campear um boi, não podia sair para uma vaquejada, para um negócio, que ela não estivesse a culpa-lo de vadiações de saias.
O Chico Mendengue vivia atenazado e arrependido. Nem mesmo a beleza da mulher o prendia mais. A Sabina, com os filhos, feneceu espantosamente. Ao nascer a Tinoca, a caçula, levou mais de um ano de cama, a caldo de galinha e, quando se levantou, era um frangalho de mulher.
E, à medida que ela ia murchando, raiava a beleza radiosa da Rosinha, agora em plena florescência dos dezesseis anos.
Naquele ermo de mata, na solidão daqueles sombrios de arvoredos, era o raio de sol doirado que punha vida e punha graça em tudo. Esbelta, viva, estouvada e ridente, na frescura da adolescência fulgurante, vivia por ali como uma corsa vadia, a correr pelos valados, a saltar riachos e grotões. Era como um arraial em festa de tanta alegria. Tudo nela era o alvorecer de mocidade e viço, a zoada musical do riso cantante e feliz, o desprendimento d’alma e um grande cheiro de mulher que lhe trescalava dos cabelos e da carne.
Quando o Chico Mendengue abriu os olhos já os não fechava, de noite, em vigílias por ela.
A Sabina percebeu logo. Foi uma vez no trabalho do canavial. O Mendengue e ela derribavam as canas. Havia uma toiceira para a Rosinha cortar mais tarde. E vai ele e põe-se a cortar a toiceira.
— Esse pedaço é da Rosinha, diz a Sabina.
— Deixa. Vae a menina estragar as mãos nesse serviço bruto.
A ciumenta teve um choque, pôs as mãos nas cadeiras e encarou-o asperamente:
— Gente! E ela será alguma princesa?
E resmungou o dia inteiro e, desse dia em diante, começou a maltratar a irmã.
No princípio a Rosinha não deu por aquilo. Levava à conta do mau gênio da irmã as azucrinações de todo instante. Era uma alma alegre demais para se toldar com tão pouca coisa.
Mas o ciúme da Sabina foi-se tornando intolerável. Rompia com a pequena por qualquer pretexto, fulminava-a com olhares arrasantes, atirava-lhe "chasques", indiretas cruéis e tanto fez e tanto a maltratou que ela acabou por compreender.
E a ofensa que a rapariga sentiu foi tão alta, deixou-lhe tão funda mágoa, que tudo nela empalideceu e murchou. Ninguém mais lhe ouviu o riso guisalhante, as rosas do seu rosto perderam o carmim do viço e aquela alegria de estouvada anuviou-se em recolhimentos sombrios.
E o ciúme da Sabina a crescer, a transvasar.
A Rosinha não tinha licença de mexer em nada, não podia abrir a boca para dizer palavra. Até a Tinoca, já com quatro anos, e que lhe era tão agarradinha, a mãe arrebatou-a.
O Chico Mendengue vivia enfesado, com planos de fazer uma estralada, dar um pontapé na mulher, mandá-la para as profundas do inferno e atirar-se no mundo, a fugir daquela cobra.
II
Ao terminar o inverno deram para aparecer no mandiocal uns rastos de capivaras. O Mendengue concertou a cerca, mas os animais voltaram, fazendo um estrago danado nas plantações.
— Você precisa dar uma marcha nesses bichos, disse-lhe a Sabina, uma manhã, no terreiro.
— Que é que eu vou fazer?
— Ponha uma armadilha.
Boa lembrança. Com uns dois ou três tiros talvez salvasse daquelas pestes a lavoura.
— Vai buscar a espingarda e o cordão lá dentro.
Ela foi. Os dois seguiram para os fundos do quintal, de cordel, espingarda e facão para preparar a armadilha.
Havia uma vereda num matagal, junto de um pé de bacuri, toda marcada de rastos de capivaras.
— Aqui! Disse a Sabina.
— Mas está muito perto de casa, observou o marido.
— Ninguém vem para este lado, insistiu ela.
Cortaram varas, carregaram a arma, esticaram o cordão e fizeram a armadilha. O bicho que ali passasse cairia morto.
O Mendengue, de lá mesmo, enfiou na capoeira para peiar os cavalos. A Sabina voltou para casa. Estava pálida, nervosa, com uma palpitação estranha nos seios. Entrou no quarto, saiu, foi ao terreiro, tornou a voltar ao quarto.
A Rosinha descascava umas macaxeiras para o almoço, sentada à soleira da cozinha.
— Tu não viste o facão?
— De manhã estava ali, disse a moça apontando o jirau de arroz.
Procuraram as duas. Subitamente a Sabina deu uma palmada na testa:
— Ah! Está lá no fundo do quintal. Corre! Junto daquele bacurizeiro, naquela veredinha das capivaras. Vai correndo, minha irmã!
A sua voz era de uma doçura penetrante e desde muito tempo que a Rosinha não a ouvia falar assim. Saiu a correr.
III
A Sabina entrou para o quarto, as mãos geladas, pálida como uma defunta.
E trêmula, a cabeça zonza, começou a calcular. A Rosinha ia agora pelo laranjal. Atravessou a horta. Galgou as toiceiras novas de cana. Torceu para o feijoal. Subiu em rumo do cajazeiro. Desviou-se um bocado para não pisar o milho que vem nascendo. Avistou o bacurizeiro. Descobriu a vereda das capivaras.
E vai correndo. Vai correndo. Tropeçou no cordel... E... e... pum!
Não estrondou tiro nenhum. Ela veio até à porta, tornou a voltar ao quarto. Passou-se um minuto, passaram-se dois. Nada. Porque falhou o tiro? Que acontecera? Teria ela visto a armadilha e recuado?
E gelada, mas com a cabeça em fogo, sentou-se à beira da rede, esperando. Não era daquela vez que se ia ver livre daquele diabo!
Subitamente ergueu-se, com um estremeção, assustada. O estampido de um tiro tinha-a feito levantar-se. Um calor violento agitou-lhe doidamente o sangue, ao mesmo tempo que o queixo lhe entrou a bater como numa crise de sezão.
Correu até à porta da cozinha, correu mesmo até perto do laranjal, mas recuou tonta, sem saber para onde ir.
Um grito chegou-lhe aos ouvidos. Devia ser a Rosinha ferida, morrendo. Até que enfim!...
Outro grito. Nada mais. Depois um ruído de passos de quem vem a correr. Talvez o Mendengue que ouvisse o tiro e disparasse a socorrê-la.
E esperou estática, lívida, no meio do terreiro.
Por entre as ramas do laranjal surdiu a Rosinha, esfogueada, cabelos soltos, a correr como uma louca, com uma criança apertada ao seio.
A Sabina quis ir-lhe ao encontro, mas não pôde, com os pés chumbados no chão.
A Rosinha parou juntinho dela, chorando, ofegando, a suster nos braços o corpo sangrento da Tinoca:
— Ela estava no feijoal, brincando. Quis ir por força, comigo. Teimou, teimou e foi, na minha frente, correndo. Não viu o cordão, não viu a armadilha. O tiro espatifou-lhe a cabeça.
A Sabina quis falar, quis gritar. Não pôde. E despencou no chão, soluçando...
(Confissão de um assassino)
A minha intenção não era matar. O que eu queria era apenas furtar a bolsa de dinheiro que a velha trazia.
Foi o diabo quem se meteu no meio. Veja se não foi o diabo. Ia começando a escurecer quando ouvi no terreiro o latido dos cachorros e um trote de cavalos. Corri à porta. Era uma velha montada numa égua, seguida do bagageiro, um pardavasco de cara amarrada, que trazia no cinto um par de pistolas deste tamanho...
A nossa casa ficava mesmo à beirinha da estrada. Quem ali chegasse à boca da noite tinha que dormir, para só seguir viagem quando viessem rompendo as barras do dia. Numa distância de cinco léguas para diante não havia mais poisos, era a mata escura que o luar não alumiava, eram morros e socavões que metiam medo a gente.
Eles dois, a velha e o bagageiro, vinham já sabendo que iam ali dormir.
A nossa casa não era grande, mas, como toda a casa de beira de estrada, no sertão, tinha um quarto para hóspedes.
Nós tínhamos acabado de jantar quando eles chegaram. Minha mãe estava lá na cozinha lavando os pratos. Segurei o estribo da sela para que a velha apeasse, ajudei o bagageiro a tirar a carga dos cavalos, mostrei-lhe os pastos e trouxe a velha para dentro de casa.
Era uma senhora alta, magra, o cabelo como uma pasta de algodão, mas forte e dura ainda, capaz de aguentar os solavancos de uma viagem daquelas. Saltou agarrada à bolsa, a tal bolsa de couro da minha desgraça, enorme, atulhada, que ela trazia segura na mão. Pelos modos, pelos óculos de ouro, pelo vestido, pelos arreios dos animais, percebi logo que se tratava de uma velha rica.
Minha mãe veio fazer-lhe sala e eu fui, com o bagageiro, peiar os cavalos na capoeira próxima.
Lá, puxando conversa, fiz que ele me contasse tudo. A sua patroa era a siá dona Bernarda Bastos, fazendeira em Carolina, rica como peste, que ia a rumo de Caxias para tomar o vapor que a levasse à capital, onde queria visitar o filho, um doutor de leis, que estava mal de saúde. Quando voltei à casa, já no escuro, minha mãe estava preparando a janta para os hóspedes. Aquilo lá em casa era o trivial. Quase todos os dias havia um hóspede novo que chegava sem ter jantado.
Até aquele momento eu não tinha maldado nada, não me havia passado pela cabeça a intenção do roubo. Foi só depois que a velha acabou de jantar.
Durante a comida não se cansou de gabar o franguinho guisado que minha mãe lhe preparara e, no fim, com uma bondade que deixava a gente desarmada, disse:
— Não se ofendam comigo, não é pagamento o que eu vou fazer. Sei que vocês são pobres e eu quero deixar uma lembrança para você (apontava para minha mãe) comprar uma saia.
E abrindo a tal bolsa de couro, tirou de dentro um massão de dinheiro assim, como eu nunca tinha visto. Mas, ao procurar uma nota pequena, o masso caiu-lhe das mãos e as cédulas espalharam-se no chão, uma infinidade, um despropósito, um despotismo.
Eu fiquei apalermado, os olhos de sapo esbugalhados em cima daquele mundão de dinheiro. E, tão tonto fiquei, com o olhar tão fora de jeito que, quando ergui a cabeça, minha mãe tinha os olhos cravados em mim, como dois fachos que me queimavam numa repreensão assustada.
Minha mãe sempre teve medo de mim. Quando chegavam hóspedes lá em casa, ela me vigiava como se vigia um ladrão. Eu já tinha, de uma feita, furtado a abotoadura de ouro de um fazendeiro e, de outra, a bolsa de um boiadeiro que lá em casa pernoitara.
Mas, daquele momento em diante não governei mais a cabeça. Ia ao terreiro, voltava, mas sempre a ver aquele alarve de dinheiro, aquela ruma de cédulas da bolsa de couro.
Minha mãe não tirava os olhos de mim. Para disfarçar, peguei a viola que estava dependurada na parede e pus-me a arranhar-lhe as cordas. Quem disse que eu pude tocar? Era um baralhado de sons, um tropeçar de dedos no encordoamento. Minha mãe a ouvir, a perceber tudo...
Entreguei a viola ao bagageiro que a ficou tocando até tarde, quando emborcou na rede para dormir. A velha recolheu-se. Eu, do copiar, ouvia tudo, a arrumação que se fazia lá dentro, minha mãe a armar a rede no quarto de hóspede para a fazendeira. Nada, nada me escapava, apesar do repinicado saudoso que o bagageiro fazia na viola. Ouvi minha mãe, certamente com medo de mim, pedir para guardar a bolsa. Ouvi a velha teimar em ficar com ela:
— Não, não, ela sempre andou comigo.
E a verrumar-me o miolo, a remexer-me cá dentro aquela ideia... Aquele dinheiro... Aquela bolsa... O bagageiro ainda não tinha deixado a viola, já eu estava com tudo riscado na cabeça. Quando todos estivessem dormindo, eu ia ao quarto da velha e tirava-lhe a bolsa. Depois caía no mundo, pois com aquele dinheiro, eu podia viver onde quisesse. .
O meu pavor era que o bagageiro acordasse. Aquelas pistolas, aquela cara enfarruscada... Mas o quarto dos hóspedes ficava lá nos fundos e ele dormia aqui fora, na varanda do copiar e, além disso, estrompado da viagem, morto de sono, roncando como roncava, de certo que não havia de ouvir barulho nenhum.
O receio maior era de minha mãe, lá no seu quarto, quieta, silenciosa, mas que eu bem sentia que estava acordada. Mas lá para diante, lá para as tantas da noite, ela havia de dormir também.
E fiquei no fundo da rede, remoendo, remoendo... Onde iria a velha, ao pegar no sono, esconder a bolsa? Debaixo da cabeça, como travesseiro? Era muito grande, muito dura. Junto ao seio, a ela agarrada? Muito pesada. Havia de ser debaixo da rede. Sim, debaixo da rede!
Onze horas... meia noite... uma hora... Como a noite é comprida, quando a gente está esperando a hora do roubo!
O bagageiro a dormir, a roncar, como se aquele fosse o seu último sono. Todo eu parecia que só tinha ouvidos. Distinguia tudo ali do fundo da rede: um pássaro da noite que piasse ao longe; o chocalho dos cavalos, muito além, nos pastadoiros; um galho quebrado na mata; o mais leve remexer das pessoas nos quartos, tudo.
Duas horas da madrugada. Bateu-me o coração — percebi que minha mãe dormia — era aquele resfolegar cansado de quem passa o dia inteiro na labuta.
Levantei-me. Fiquei em pé na varanda, assuntando. Nada. Ninguém acordou. Três vezes passei junto do punho da rede do bagageiro e ele dormindo estava, dormindo ficou, sem se mexer, a roncar.
Saí para o terreiro. Encostei o ouvido à parede do quarto de minha mãe. Era o mesmo som cansado de quem dorme vencida pelo sono.
Contornei a casa na ponta dos pés, para alcançar o quarto de hóspedes. A porta não tinha fechadura — era uma taramela de madeira pelo lado de dentro. Parei à porta, escutando. Vinha um som rouquenho, pesado, de velha ressonando.
Com a ponta da faca levantei a taramela, devagarinho. A porta cedeu, sem barulho. Puz um pé dentro, a escutar, os olhos arregalados, ansiosos para devassar a escuridão. A mancha branca de um vulto deitado...
Caminhei na pontinha dos dedos, ora pondo um pé aqui, ora pondo um pé ali, contendo o fôlego, leve, os braços abertos, os olhos escancarados como se naquele momento eu não tivesse mais nada senão os olhos.
No meio do quarto tive que parar, à escuta.
Os mesmos sons de sonos firmes.
Caminhei de novo.
Cheguei perto do vulto. Nem um movimento ele fez. Baixei a cabeça, examinando, à procura da bolsa. Nem uma sombra, nada.
Acocorei-me debaixo da rede e catei, catei...
Nada. Nada.
Levanto-me.
Já não estava mais em mim. Tudo era a bolsa.
E vou descendo a mão para palpar o vulto. E, quando os meus dedos o vão tocando, ei-lo que se mexe e se ergue de repente na rede. Ouço como que o rugido do começo de um grito de susto. Levo rapidamente a mão a uma boca e abafo o grito.
Um outro rugido quer sair. Com a mão direita aperto uma garganta. Mas o vulto estrebucha, quer erguer-se, quer gritar sempre. E os meus dedos vão arrochando a garganta, mais, mais, mais...
Já não estava em mim. Parecia-me que toda a casa tinha ouvido, parecia-me que o bagageiro, lá fora, ia acordar.
E aperto, aperto, aperto o quanto é possível apertar. Mas sempre aqueles sons sufocados a sair.
Era preciso acabar com aquilo, senão estava perdido.
Levo então as duas mãos à garganta da velha e enterro os dedos, enterro até onde as forças podiam enterrar. O corpo vai fraquejando, nuns estrebuchos moles, nuns arrepios frouxos. Depois não se mexeu mais.
E eu com as mãos ali na garganta sufocando, sufocando...
A porta abre-se. O bagageiro entra com a candeia na mão. A luz da candeia bate em cheio sobre mim e sobre o cadáver.
Um choque sacode-me; baixo a cabeça, olho, reolho e recuo num grito apavorado. Era o cadáver de minha mãe.
Ela, temendo que eu fizesse o roubo, tinha deixado a velha no seu quarto e viera dormir no quarto de hóspedes.
I
Quando a Chica Berrêdo saltou na vila, toda a gente que esperava o "gaiola", à beira do rio, teve uma exclamação de deslumento.
O Pedro Boticário deixou cair os óculos na areia; "seu" Vimvim Coletor, que ia acendendo o cachimbo, queimou os dedos no fósforo que lhe ficou suspenso nas mãos; o Quirino Sacristão bateu afoitamente no braço do vigário:
— Espie, meu padrinho, espie!
Nunca se tinha visto tanto brilho e tanto luxo!
A velha Januária ergueu-se do banquinho do taboleiro de doces, rompeu o povo, abrindo os braços, ruidosamente:
— Minha gente, é ela!
E, depois de abraçar a rapariga, olhando-a de alto a baixo:
— Como tu estás bonita, tentação!
A notícia espalhou-se da beira do porto às últimas ruas. O Quirino, com a sua vozinha de mulher, saiu, de casa em casa, contando o acontecimento. Só visto, só visto! O vestido da Chica era todo de seda, uma seda que remexia e brilhava como se tivesse açougue dentro, com cada pedaço de renda que dava gosto de ver e uma fita assim desta largura na cinta e que descia abaixo dos joelhos! E as joias! Virgem Maria! Era nos braços, era nos dedos, no pescoço, nas orelhas, um despropósito! Cada brilhantão assim, faiscando ao sol, faiscando tanto, que a gente ficava com tonteira nos olhos. Só visto! E o chapéu que ela trazia na cabeça, todo de fitas e flores, com cada rosa que era isto! E o perfume de água de cheiro que ela rescendia! Só por lhe ter passado perto, ficara ele cheirando mais cheiroso que um jardim.
Durante o dia não se falou noutra coisa, na vila, senão na volta inesperada da Chica Berrêdo, no seu grande chapéu de rosas e fitas, mais bonito e mais rico que o chapéu da mulher do juiz de direito, no seu vestido de seda espalhafatoso que brilhava e remexia como azougue, no largo laço de fita que lhe cingia a cintura e no turbilhão de joias que lhe enfeitavam as orelhas e o pescoço.
A velha Januária, de porta em porta, com o taboleiro de doces, repetia:
— Bem eu dizia! Eu é que acertei! A fortuna dela estava lá fora. Estes homens aqui não valem uma cuia de farinha. Ninguém é profeta na sua terra.
À tarde, quando o Manduca Cantador apareceu no largo da botica, gingando, a pastinha ondulada bem aberta e aquele ar pachola de mulato conquistador, a rapaziada contou-lhe a novidade, acrescentando:
— Aquilo não é mais para o teu bico, Manduca. Ela não quer mais saber de ti.
II
A Chica foi morar na casinha de telha que a velha Januária, naquele mesmo dia, lhe arranjara.
À noite, aquilo encheu-se de mulheres e rapazes, de uma algazarra festiva de gargalhadas e gritos, sons de violas, cavaquinhos e flautas!
— Como ela está gorda!
— Como está bonita!
— Está mais moça!
E no quarto, numa desordem de malas, cercada de raparigas, contou a sua vida lá fora, nas terras por onde andara. Riquezas sobre riquezas. Ao chegar a Manáus veiu-lhe a fortuna ao encontro. Quanto dinheiro havia naquela terra, gente! Os homens davam-lhe joias como se dava uma cuia de feijão; enchiam-na de ouro como se ela fosse uma deusa. Morava num palacete, com jardim na frente, jardineiro tratando das flores, tapetes em todas as salas, mármores e bronzes nos salões. Em poucos dias aclamaram-na a mais bela, a mais alegre e a mais cara mulher da cidade. Teve carros criados, teatros e corações. Quando atravessava as ruas, nas almofadas fofas de sua "vitória", os homens festejavam-na como se festeja a uma rainha.
Ah! Tinha sido feliz, feliz como nunca sonhara ser!
Até criadas para calçar-lhe as meias!
Os seus vestidos eram sem conta. Se quisesse dizer de cor o que possuía em joias não poderia.
E abria as malas, um mundo de malas, enormes como caixões de fazenda e de dentro ia tirando vestidos deslumbradores, espalhando-os pelos espaldares das cadeiras, por cima das outras malas, aos olhos estatelados dos rapazes e das raparigas.
— Que bonito!
— Que riqueza! .
E eram vestidos e mais vestidos, camisinhas de seda que a gente podia meter no bolço como lenço, grandes toiletes de missangas e vidrilhos que cintilavam como joias.
— Santo Deus!
— Que maravilha!
E ela tirava mais e mais.
— Fora os que deixei lá. Trouxe apenas os vestidos de viagem.
Do fundo das malas ia arrancando uma blusa, um casaco, um corte de fazenda, uma lembrança qualquer e distribuindo-as pelas amigas.
— Deus te ajude!
— Nossa Senhora te dê fortuna!
A velha Januária, comovida diante de tanta riqueza, os olhos obumbrados de tanto brilho, repetia:
— Era lá fora, era lá fora que estava a tua fortuna. Eu não me engano nunca. Estes homens aqui não valem uma cuia de farinha. Não têm nem ceroula para vestir!
O Quirino Sacristão, com aquele jeito de menina, lembrou que tinha visto o Manduca Cantador.
A Chica enfarruscou subitamente o rosto. A velha Januária atalhou-o com uma repreensão:
— Esse Quirino não cria jeito de gente. Não fala naquela peste aqui, filho de Deus! A Chica não é mais para o bico dele!
Mas o Quirino insistia. Percebera bem a cara de espanto do Manduca, na beira do rio, à hora do desembarque.
— E ele estava no porto quando eu cheguei? Perguntou a Chica.
— Estava. Vocemecê não viu? Minha Nossa Senhora!... Ficou branquinho como esta parede.
— Cala boca, linguarudo! Gritou a Januária. O rosto da rapariga desanuviou-se. Daí para o resto da noite a sua alegria foi mais viva e mais nervosa.
III
A história da Chica Berrêdo e do Manduca Cantador, a vila inteira conhecia.
Quando a Chica se fez moça, era a rapariga mais bonita daquele pedaço de terra sertaneja. Morena, vistosa, com um quê de faceirice, doida pelos bailes e doida por tudo que era alegria, toda gente viu que, em pouco, ela estaria perdida. Não houve um rapaz que a não cortejasse, não houve um só que não fosse cortejado por ela.
Era um demônio a pequena.
Aquilo que se esperava aconteceu. Foi o Albino Seringueiro, um sujeito que apareceu na vila como ave de arribação, cheio de dinheiro, arrotando riquezas e que, parece, só pisara ali para desgraçar a rapariga.
O escândalo não causou barulho nenhum. O pai da Chica estava doente da paralisia de que veio a morrer três meses depois; o Seringueiro, uma manhã, sumiu-se inesperadamente, sem que se soubessem mais notícias suas.
Começou-se a falar da moça com este e com aquele, até que um dia se soube que o promotor lhe havia montado casa, nos arredores da vila. .
Aquilo durou apenas dois anos. O Manduca era, por ali, o melhor tocador de violão, o mais festejado cantador de modinhas das noites de luar. As mulheres queriam-no como se quer a um deus. Quando, por alta noite, a sua voz magoada modulava numa esquina de rua, as janelas se abriam e cabeças femininas surgiam pressurosamente. Com que sentimento cantava o Manduca! E elas ficavam a escutá-lo interminavelmente, interminavelmente a ouvir aquela voz apaixonada que se infiltrava no bem querer, ouvindo por toda a madrugada o trinado de bordões do "pinho" que ia ressoar até o fundo da alma.
— Este Manduca é um perigo! Dizia o vigário, um perigo para as mulheres!
E era um perigo mesmo. Até as meninas de família o disputavam. Não espantou a ninguém a notícia de que a Nonoca, filha do chefe político, menina rica, educada na cidade, tivesse oferecido ao cantador uma toalha de rendas que ela mesma bordara.
Suspirado pelas saias, o Manduca vivia na mandranice, sem emprego, sem trabalho, sempre de violão ao peito, cantando numa casa e noutra, na intimidade das raparigas airadas, comendo e bebendo à forra.
Um dia voltou ele os olhos para a Chica Berrêdo.
A princípio uns olhares, umas palavras de mel, quando passava.
Uma noite, por alta madrugada, veio cantar-lhe à beira da janela aquelas estrofes sentidas que a vila inteira depois cantou de ponta a ponta:
Quando ela pisa na areia
A areia muda de cor,
Fica o terreiro cheiroso
Todo coberto de flor.
Quando a Chiquinha se deita
Na rede para dormir,
Correm abelhas de longe
Em torno dela a zumbir.
Abriu a janelinha. O luar era como uma gaze branca estendida sobre a terra. Havia no ar um cheiro de amor na natureza adormecida, havia na natureza aquele ar de mistério das horas altas.
Aquela voz, aquele gorjeio de cordas repinicadas, aqueles versos feitos para ela, de propósito, a impressão do luar, a claridade láctea da noite branca, tudo, tudo lhe deixou no coração um sulco imperecível.
Amou e amou doidamente o Manduca.
Foi a vila que fez com que ela o amasse. Por onde andava, a qualquer hora que andasse, ouvia sempre nas ruas, no fundo das casas, no fundo dos quintais, as mulheres, os homens, as crianças cantando os tais versos alucinantes:
— Quando ela pisa na areia
A areia muda de cor...
Era a sua vaidade de mulher vibrando, era o orgulho lisonjeado impelindo-a para aquele homem.
Um mês depois moravam juntos.
O promotor, para não dar escândalo, desprezou-a. Não houve quem não falasse do caso. O Manduca era uma desgraça para a Chica. Ocioso, vivendo de violão atravessado ao peito, na preocupação daquela pastinha pachola, em noitadas constantes, acabaria certamente por atirar a rapariga na lama.
Com o Manduca a vida lhe foi realmente um inferno. O rapaz não alterou o habito das "serenatas", não deixou de ser o conquistador de mulheres a que se acostumara desde mocinho. A pobre vivia de sofrimento em sofrimento, amargurada, roendo-se de ciúmes, brigando, emagrecendo.
Aquilo durou pouco. O Manduca deu para espancá-la, para lhe apontar a porta da rua. Ela, porém, amava-o; quanto mais sofria e mais era repelida, mais lhe crescia na alma aquele amor desgraçado.
— Deixa esse homem, menina, diziam-lhe as outras mulheres.
Ela não podia.
Sentia-se como naufraga no temporal daquela paixão.
O desprezo do Manduca ia cada vez pior. Já não dormia em casa; já lhe não dava, sequer, com que matar a fome. Ela, tão pichosa outrora em vestir-se, andava agora maltrapilha, chinelos rotos, encafuada em casa, como se tivesse vergonha de sair à rua.
A velha Januária, quando à tarde lhe passava com o taboleiro de doces, à porta, repetia-lhe:
— Dá um pontapé nesse homem, e vai-te embora, criatura! Vai para longe, aí por esse mundo...
Um dia foi o Manduca quem acabou com aquilo. Sem ninguém esperar trouxe para dentro de casa a Margarida, uma sujeita à toa, que fazia desordem nos bailes.
A cena cortou o coração da vizinhança. O cantador pôs os trapos da Chica na rua e atirou-a pela porta a fora.
Lavada em lágrimas, ficou ela ao batente da porta miseravelmente, numa ausência completa de dignidade feminina, implorando ao amante que a não abandonasse.
A Margarida, destabocada, chegou à janela, expulsando-a definitivamente:
— Cria vergonha, vagabunda. Vai-te para o inferno!
A Chica dormiu em casa de uma vizinha, mas, ao amanhecer, voltou a pedir ao Manduca que a deixasse voltar para dentro de casa, a agarrá-lo na rua, numa imploração ignóbil.
A queda foi horrível. Desceu a quanto era possível descer uma mulher num lugarejo de sertão. Vivia pelas esquinas, tarde da noite, à espera que o Manduca voltasse das pândegas; andou pelas feiticeiras à procura de um consolo; queixava-se a toda a gente, sem vislumbre daquele orgulho que existe em toda mulher.
O Manduca repelia-a com um pontapé e, pachola, a pastinha aberta, o violão debaixo do braço, andava na vila a pavonear-se do seu desprezo. Era uma porca! Não queria saber dela! Que se fosse para os infernos!
A Margarida, quando a via passar, escarrava como a uma coisa nojenta.
Não era possível aquilo continuar.
— Vai, criatura, vai-te embora desta terra! Insistia a velha Januária. Tua fortuna está lá fora! Beleza não te falta. Estes homens aqui não têm nem ceroula! Não valem uma cuia de farinha!
Um dia a Chica decidiu-se. Ia mesmo. Era preciso sair daquele inferno.
As notícias que ali chegavam da terra da borracha entonteciam todas as cabeças. Porque não havia de ser feliz nesse Amazonas fantástico que todos douravam com as tintas mais ricas?!
Arranjou umas roupinhas, pediu uma passagem a bordo de uma "gaiola" e foi.
Durante três anos ninguém lhe ouviu falar no nome, durante talvez anos não se soube na vila notícias dela. Agora ei-la que voltava inesperadamente, num luxo ofuscador, coberta de sedas, coberta de joias, endinheirada, com um chapéu maior e mais rico que o dos dias grandes da mulher do juiz de direito, e com cada brilhantão de fazer tonteira nos olhos da gente.
— Eu é que acertei, repetia a Januária, de casa em casa, com o tabuleiro. A fortuna dela estava lá fora. Ninguém é profeta em sua terra!
E pondo o tabuleiro na cabeça com uma risada:
— Quem deve estar danado é o Manduca. Ela veio para quebrar a castanha na boca dele.
E, já no fim da esquina, com uma risada mais forte:
— Que chore na cama que é lugar quente!
A Chica ouvia tudo aquilo estremecendo. Não podia ouvir falar do Manduca sem que o coração lhe batesse violentamente no peito.
Tinha vindo, sim, quebrar-lhe a castanha na boca. Lá fora, nas terras por onde andara, a figura do antigo amante não lhe saíra da memória. No meio da pompa, entre homens que a festejavam como a um ídolo, o Manduca atravessava-lhe o espírito num sulco de saudade... Cada joia que lhe vinha às mãos, cada vestido opulento que vestia, despertavam-lhe sempre a lembrança do cantador. Ah! Se ele a visse assim no luxo! E toda a febre de acumular, que a escaldou lá fora, não fora senão a lembrança do seu amor antigo. Era para um dia voltar ruidosamente à terra em que nascera, no espalhafato de uma riqueza ostentadora...
Era para que ele a visse...
IV
Um mês depois houve na vila a festa da padroeira.
Nunca a igrejinha se encheu de tanta gente como naquele ano. Ninguém vinha ver a santa, mas os vestidos que a Chica Berredo trazia na novena. Era um por noite, cada qual mais lindo e mais deslumbrador.
Sentia-se que ela tinha a preocupação de estatelar toda a gente. As joias já não eram as mesmas do dia do desembarque, mas outras, muito maiores e muito mais ricas.
O Quirino Sacristão, no largo da igreja, quando terminavam as rezas e o povo se espalhava em roda das barraquinhas, exagerava as riquezas da Chica:
— Isso não é nada. Joias e vestidos bonitos são os que ela deixou no Amazonas.
No dia da procissão a vila estarreceu. O andor esteve a cair dos ombros dos carregadores. É que à porta da igreja, quando a santa saía, a Chica apareceu. De encandear os olhos da gente, aquilo. Era um vestido como ninguém ali na vila imaginava que pudesse haver igual no mundo, todo de lentejoilas, todo coruscante, furta-cor, que faiscava ao menor raio de sol.
E as joias! Os dedos eram pequenos para os anéis e as pedras, o seio não tinha um lugar onde não brilhasse um diamante, os braços desapareciam enroscados pelas pulseiras esplendentes.
O Quirino não se cansava de bater no braço do vigário, debaixo do pálio dourado:
— Espie, meu padrinho, espie ali na orelha.
Era um par de "bichas" de brilhantes, enormes, do tamanho de uma pitomba, como afirmou o Vimvim Coletor, ao ouvido do Pedro Boticário. Ao entardecer, quando o andor se recolheu, até o vigário havia pecado. Ninguém olhou para a santa durante a procissão; homens, mulheres, até crianças não despregaram o olhar do fulgor da mundana.
Naquela mesma noite houve um baile de raparigas livres, em casa da Maria Vovó. Tinha sido arranjado pela velha Januária em honra da Chica.
Foi uma festa de estrondo. Quando a rapariga entrou deslumbrante no seu vestido de lantejoulas, uma capa de veludo sobre os ombros, os rapazes e as mulheres cercaram-na como se faz a uma princesa.
Já no meio da festa, como alguém lembrasse que a Chica não mais devia voltar ao Amazonas, a Maria Vovó atalhou:
— Essa? Essa não é mais nossa, é de lá de fora! Que é que ela fica fazendo aqui? A Januária diz que vocês não prestam.
O Quirino, com aquele jeitinho de mulher, atalhou:
— Eu conheço uma pessoa que dava a vida para ela ficar de novo aqui na vila. É o Manduca.
A Chica zangou-se. Que lhe não tocasse no nome daquela peste. Ele agora vivia a rondar-lhe a porta, afirmou. Mas tinha que roer um osso. Na procissão o canalha não lhe tirara os olhos de cima. Queria-a agora; ela porém é que se não ia diminuir, entregando-se a um vagabundo.
— Eu faço tanto caso dele como da primeira camisa que vesti.
A Januária interrompeu-a com a sua abusão matuta:
— Bate na boca minha filha, bate na boca. Deus castiga quando a gente fala assim, com soberba.
Era já pela madrugada quando a Chica chamou o Quirino a um canto:
— Tu podes levar-me em casa?
Estava a sentir-se mal, uma dor de cabeça horrível.
— E vosmecê vai deixar a festa?
— Não digas nada a ninguém. Eu saio escondida.
Estava mentindo, não sentia incômodo nenhum. O que havia nela era uma forte inquietação da alma. Meia hora antes, da janela da casa do baile, tinha visto o Manduca, no fim da rua, de violão debaixo do braço. Uma ânsia acendera-se-lhe no peito.
Lá fora, nas terras por onde andara, o seu sonho maior eram os sucessos de sua chegada à terra natal.
Tinha certeza de que o Manduca, ao vê-la em todo aquele esplendor, correria aos seus braços apaixonadamente, numa sujeição de cachorrinho... E, diante dos olhos da vila, poderia mostrar que o tinha vencido, vingando a afronta dolorosa que sofrera no passado.
Mas os seus sonhos falharam. Por timidez ou plano, o cantador não se chegara. Só uma vez, distraidamente, lhe passara à porta. Enquanto a vila inteira vinha rojar-se aos seus pés, ele num desprezo silencioso, conservava-se de longe, como se entre os dois não tivesse havido o drama tempestuoso de uma ligação de amor.
Aquilo roía-a.
O Quirino ao seu lado, no escuro daquelas ruas roceiras, palrava.
— Siá Januária e siá Maria vão ficar aborrecidas quando souberem que vosmecê saiu fugida.
Estavam à esquina da casa.
— Podes voltar, disse a Chica. E bico calado!
O sacristão voltou. Ela entrou tão zonza que se esqueceu de fechar a porta.
Sentia uma compressão no peito, uma ânsia estranha no coração. Sentou-se na sala, na cadeira de embalo, para respirar. O luar entrava-lhe pela janela num jorro de leite diluído. Ao longe, como que despertado pelo luar, um sabiá cantava enamoradamente.
Ela ficou de mão no queixo, a embalar-se, sorvendo o ar macio da madrugada de abril.
Subitamente, estremeceu-lhe o peito. Tinha ouvido ao longe, muito e muito distante, uma voz cantar. Levou a mão à concha da orelha, escutando.
Era a voz do Manduca, o violão do Manduca, modulando na serenidade enluarada da noite sertaneja.
A voz calou-se, mas de novo gorjeou trazida pelo vento:
Quando ela pisa na areia
A areia muda de cor.
Uma onda de sangue estuou-lhe no coração. Correu afoitamente à janela. A rua estava silenciosa e morta. Havia apenas o pálio de linho do plenilúnio e aquele sabiá longínquo que cantava à lua como um namorado.
Fica o terreiro cheiroso
Todo coberto de flor.
E a voz apagou-se de novo.
E ela ficou ali na janela, na contemplação daquela noite branca, na suavidade daquele luar de leite. Veiu-lhe uma imensa saudade de outros tempos, da primeira noite em que o Manduca lhe viera cantar aqueles mesmos versos à beira da estrada de sua casinha de arrabalde. Era uma noite assim, o luar no céu como agora, uma serenidade e uma expressão de amor como sentia naquele instante. Parecia até que aquele mesmo sabiá cantara da outra vez...
E o vento trouxe novamente a voz:
Quando a Chiquinha se deita
Na rede para dormir...
O coração vibrou-lhe assanhado no peito. Ah! Ele não se havia esquecido dela! Tinha percebido o seu nome na sonoridade do verso. Não era para outra que ele cantava, e sim para ela, de longe, na timidez de um amor que de certo não se lhe apagara do coração.
A voz agora era mais distinta, como que caminhando em rumo da rua:
Correm abelhas de longe
Em torno dela a zumbir.
Ouvia claramente o soluço das cordas do violão. No fim da rua surgiu um vulto esbatido pelas sombras.
Esticou o pescoço fulgurante de joias. Era o Manduca.
Quis fugir, esconder-se, mas sentiu que os pés se lhe colavam ali, à janela.
E o vulto veiu-se aproximando, a cantar, num trinado amoroso de bordões:
Quando a Chiquinha se deita
Na rede para dormir...
E plantou-se defronte da janela, cantando sempre.
A lua, nesse momento, desnudou-se inteiramente no céu. O sabiá cantou mais claro pela noite enluarada. Era de alucinar...
Gelaram-se-lhe os pés, gelaram-se-lhes as mãos, e somente o coração naquele incêndio torturador... Ele amava-a ainda, amava-a! Amava-a tanto que ali viera arrependido, implorando-lhe o perdão na ternura daquela cantiga dos bons tempos de namorado. Era o amor, devia ser o grande amor que o trazia!
E ela se foi afastando lentamente do peitoril da janela, olhos fixos nele, como num convite.
O que se passou foi rápido. A porta rangeu, abrindo-se. O Manduca assomou à porta.
No meio da sala, no fulgor das joias e do vestido de luxo, esperou-o imóvel, petrificada... E ele aproximava-se, de olhos em fogo. A Chica fechou as pálpebras, como num desmaio. Ia ter enfim aquele amor perdido com que tanto sonhara lá fora.
Mas teve que abrir imediatamente os olhos. Duas mãos violentas apertaram-lhe a garganta, sufocando-a.
Estremeceu, empinou-se, quis gritar e não pôde.
O Manduca derribou-a brutalmente, no chão. E punha-lhe agora os joelhos no peito, arrancando-lhe as "bichas" das orelhas, rasgando-as, aquelas "bichas" de brilhantes do tamanho de uma pitomba, como afirmara o Vimvim Coletor, ao ouvido do Pedro Boticário, na procissão.
No dia seguinte, quando encontraram a Chica no meio da sala, sem joias, com uma faca enterrada inteirinha no peito, a velha Januária, repetiu afogada de soluços:
— Para que veio aqui para a vila?! A fortuna dela estava lá fora!
Quando D. Celina de Alencar nos disse que tinha vinte e oito anos de idade, nós todos a fixamos, disfarçando discretamente o espanto dos olhos.
Vinte e oito anos apenas e toda aquela cabeleira cor de algodão, sem um fio preto, mais alva que a cabeleira das avozinhas dos contos!
D. Celina percebeu o nosso espanto, teve um sorriso triste, uma expressão de amargura na voz:
— Só mesmo aos íntimos confesso a minha idade. Os outros não acreditarão nunca. Isto foi uma noite de sofrimento, uma única noite. O meu cabelo era, não há muitos anos, o cabelo mais preto da cidade. Uma noite bastou para o envelhecer. Um filho, as circunstâncias trágicas, ou melhor, estranhas, da morte de um filho.
Nós todos chegamos as cadeiras para perto. D. Celina ia contar a história dolorosa da sua velhice prematura.
Alta, clara, os olhos de um negro intenso, uma certa frescura no rosto, contrastando com o linho alvíssimo dos cabelos e um tom de mágoa, que lhe não saía nunca da voz, começou:
— A casa em que fui morar, quando me casei, tinha-me sido deixada por minha avó, em testamento. Era um casarão de aspecto colonial, entre árvores seculares, imensas salas em que a gente se perdia. Ficava ali nas Laranjeiras, no fundo de uma rua silenciosa, à fralda da montanha de pedra. Logo nos primeiros dias, senti-me mal dentro da casa, com o seu aspecto sombrio, com aquela rua calada e aquela eterna sombra de árvores que pareciam eternas.
Meu marido adorava tudo aquilo. Era um espírito dado ao recato e à solidão.
O que mais me impressionava no casarão não era o seu aspecto próprio, a sua tristeza, o seu silêncio de convento fechado; era a vizinhança.
O nosso muro dava para a chácara de uma velha rica, que o bairro inteiro, com razão ousem ela, chamava de bruxa. Vi-a duas ou três vezes. Uma velha horrível, escura como queimada a fogo, o cabelo de uma cor estranha como a da brasa, magra, toda ossos, olhos fundos, esgazeados e uma boca que metia medo, muito rasgada, muito vermelha como a garganta de uma fornalha.
Se a minha casa era enfadonha e triste, a da velha bruxa era pior. Lá, as árvores tinham um tamanho descomunal, umas junto das outras, apertadas e espessas como numa floresta cerrada. Havia uma escuridão em tudo. Parecia que o sol nunca tinha podido rasgar, com os raios, a espessura daquelas árvores. Nunca devia ter entrado um raio de sol naquela chácara.
Mas isso era o menos. O que mais me aborrecia e o que mais me incomodava era que a chácara da velha bruxa vivia transformada num verdadeiro jardim zoológico.
A sua mania predileta era criar animais. Havia um sem número de aves: emas, avestruzes, galinholas, perdizes, gansos e pavões que gritavam noite e dia; havia macacos de todos os tamanhos, antas, capivaras, cobras colossais, gatos agrestes, caititus, veados e, ao que os vizinhos contavam, debaixo daquelas árvores criavam-se também grandes feras. De uma vez eu própria vi entrar três gaiolas de ferro com uma onça malhada, duas cobras formidáveis e uma macaca quase do tamanho de uma mulher.
A velha não tinha limpeza no trato de seus bichos; o cheiro que, certas horas, chegava por cima do muro, era às vezes de entontecer.
Eu vivia num sobressalto constante, receando que, uma noite, aquelas feras pulassem o muro e me viessem devorar na alcova.
O meu marido achava infinita graça no meu receio.
Quando foi da concepção do meu primeiro filho, o meu estado de nervos subiu ao exagero. Aí já não era somente o receio das feras da bruxa, era o incômodo, o terrível incômodo dos gritos das aves da velha. Havia um pavão que vinha pousar no muro e guinchar para a janela do meu quarto.
Que coisa horrível é o guincho de um pavão nos nossos ouvidos!
Mandei, pelos criados, pedir à velha que contivesse o animal, que o mandasse para outro ponto da chácara, que era tão vasta. Criatura intratável! Respondeu-me atravessadamente e não tomou providência alguma.
Foi pior. Daí por diante, o pavão que só gritava pelo amanhecer, deu para gritar o dia inteiro, empoleirado no muro, bem defronte do meu quarto, como num capricho. Parecia ensinado o diabo do animal!
Pouco tempo depois de nascer o meu primeiro filho começou a dar-se em nossa casa um caso estranho — sumiam-se as coisas.
De uma feita, tendo eu acabado de pentear-me na alcova, em frente de um pequeno espelho de cristal e prata lavrada, que minha mãe me dera quando eu menina, sai do quarto, não me demorei cinco minutos e, ao voltar, o espelho havia desaparecido. De outra sumira-se, como por encanto, o estojo de barba de meu marido. Quase todos os dias sumia-se um objeto qualquer, ora um jarrozinho de sala, ora um livro da biblioteca, ora um tapete dos quartos.
Não havia possibilidade de desconfiar-se dos criados — todos velhos amigos da casa, servidores leais do tempo de minha mãe.
Meu marido levou o caso à polícia. A polícia baldadamente procurou explicar o fato.
Eu vivia num estado de nervos de fazer pena. Que coisa estranha seria aquela, a do desaparecimento das coisas?!
De uma vez tive verdadeiro pavor. Eu própria acabara de dar uns retoques à mesa do almoço. O meu marido trouxera, na véspera, umas maçãs magníficas, grandes, de uma cor encantadora. Arrumei cuidadosamente as maçãs na fruteira, como as mulheres sabem arrumar. Voltei ao quarto para atender ao meu filhinho que chorava. E, ao tornar à sala de jantar, quase caí de susto. As maçãs tinham desaparecido. Havia duas ou três no chão, denunciando que as outras tinham sido furtadas apressadamente. A mesa estava toda revolta.
As mulheres são sempre dadas a acreditar em mistérios. Eu acreditei, sinceramente, em almas do outro mundo. O meu tio avô, Justino Lamberto, fora um dos homens mais irreverentes em assuntos religiosos. Passara a vida blasfemando contra os santos e contra Deus. E fora ali, naquela casa, que ele morrera. Imaginei que todo aquele mistério era da sua alma desgraçada que penava no inferno.
Ao completar o quinto mês, o meu filhinho, que nascera tão lindo e tão forte, adoeceu subitamente. Uma bronchite aguda, que não houve meio de debelar. Ao oitavo dia de moléstia, morreu.
Fui sempre uma criatura resignada, que tem conseguido até hoje receber a desgraça sem aniquilamento.
Eu própria, com as minhas próprias mãos, vesti o cadaverzinho de meu filho. Trouxe-o nos braços, para o colocar na mesinha coberta de flores, na sala de visitas,
Mas, a grande dor que me comprimia o coração, era mais forte do que eu. Uma hora depois, sentada junto do corpo do meu filhinho, eu, que não tinha podido chorar até aquele momento, tive uma explosão inesperada de lágrimas e prantos.
Correram todos para mim. Senti que ia desmaiar e agarrei-me aos ombros de meu marido, soluçando imensamente. Arrastaram-me para a alcova, todos, os meus parentes e os meus criados, deixando sem ninguém a sala de visitas onde o meu filho, entre rendas e rosas, dormia o seu último sono.
Chorei, chorei, chorei até descarregar o coração. A crise passou. Quis voltar à sala de visitas, para junto do cadáver querido. Não me quiseram consentir. Insisti, insisti, teimei — tiveram que ceder.
Mas, ao entrar na sala, quase que tombei no chão, com um grito.
Tinha desaparecido o cadáver de meu filho.
Ali, sobre a mesa, entre flores como eu própria o havia colocado, não estava.
Procurámo-lo pela sala inteira, procurámo-lo por todos os cantos da sala, por todos os escaninhos da casa, doidamente, apavoradamente — não estava.
Não creio que haja uma criatura capaz de avaliar a minha situação naquele momento. O meu caso era um caso novo, inteiramente estranho, estranhadamente horrível.
Não acredito se tenha dado cena mais singular, mais monstruosa e mais imprevista com qualquer outra mãe.
Fiquei como louca. O meu marido perdeu a cabeça. Não houve em nossa casa um espírito calmo. Ia escurecendo. Era necessário uma medida qualquer.
Como poderia ter desaparecido um cadáver de cima de uma mesa, na sala de visitas, no pequeno espaço de tempo em que deixamos a sala sem guarda?!
O meu irmão mais velho lembrou-se de chamar a polícia. Era já noite fechada quando a polícia chegou.
O caso era de uma estranheza desnorteadora. Não havia espírito capaz de lhe encontrar explicação. Foi interrogada a vizinhança. Ninguém, ninguém podia penetrar no mistério. Um roubo? Teria alguém entrado e roubado a criança morta? Impossível. Para que se quer um cadáver?
Defronte ficava uma quitanda e a quitandeira jurava não ter visto ninguém entrar ou sair.
Não há, não haverá nunca quem avalie a noite tremenda que passei. De manhã cedo os meus cabelos, que eram os mais pretos da cidade, estavam brancos, da cor que hoje os tenho, mais alvos que uma pasta de algodão.
E d. Celina calou-se, levando o lenço aos olhos.
— E a criança, o cadáver? Perguntei afoitamente.
Ela teve um tom de amargura maior na voz:
— Foi encontrado, ao meio-dia, na chácara vizinha, a da velha bruxa.
— Era uma roubadora de cadáveres, a velha?
— Não. Quem roubara o corpo do meu filhinho fora a macaca, aquela grande macaca, do tamanho de uma mulher, que eu vira, um dia, entrar na chácara da bruxa. Escapulia da jaula e roubava coisas pela vizinhança, com uma sutileza imperceptível. Era ela quem nos roubava os objetos em casa. E foi uma cena que nunca mais me saiu da cabeça, a da macaca com o cadáver de meu filho.
Os olhos de d. Celina tornaram-se a ensopar de lágrimas:
— Quando descobriram o roubo, a macaca tinha a criança apertada ao seio, extremosamente, como qualquer mãe humana. Ninguém pôde aproximar-se. Ficou como uma fera, gritando, defendendo o cadáver, apertando-o maternamente ao peito, agressiva e furiosa para todos que se aproximavam. Só a mim entregou o cadáver.
— Só à senhora! Exclamamos todos ao mesmo tempo.
— Sim! Quando me aproximei, louca, desvairada, o animal encarou-me; a sua expressão de fúria mudou e, com o cadáver de meu filho nos braços, estendeu-me com um ar tão doce, que parecia que estava a pedir-me perdão.
Meu caro amigo:
A portadora desta carta é D. Maria Carneiro, essa senhora alquebrada e velha que o amigo tem diante dos olhos. Tomo a liberdade de pedir para ela uma parcela da sua filantropia. A um homem de sua fortuna, que deve ter certamente um exército de criaturas vivendo em derredor da sua magnanimidade e da sua bolsa, não se tem o direito de aumentar esse exército sem primeiro explicar quem é a criatura para a qual se pede.
D. Maria Carneiro, meu caro amigo, tem uma história dolorosíssima. É filha de um velho amigo meu, o negociante Santos Carneiro que foi no seu tempo, não direi o mais rico, mas, pelo menos, o mais estouvado negociante do Rio de Janeiro.
Santos Carneiro fez tais estouvamentos no comércio que um dia, sobrecarregado de compromissos, de negócios infelizes, viu-se obrigado a acabar com a existência, enforcando-se no próprio escritório comercial.
Dona Teresa, a esposa, não resistiu ao golpe e, dois meses depois, morria do coração.
A família ficou em plena miséria. Não era muita gente, mas o bastante para um grande drama doméstico. Era d. Maria, a portadora desta carta, nessa época com vinte e três anos, e mais duas meninas, a Laura e a Flora, que não tinham ainda entrado na puberdade.
Com espanto de todos nós, amigos da casa, d. Maria tomou o encargo da família. Não lhe preciso dizer que a luta foi tremenda. Santos Carneiro sustentava o estadão, e é muito difícil quem vive na opulência acostumar-se de súbito à pobreza.
D. Maria fez coisas incríveis de sacrifícios. Sacrifícios de saúde, de mocidade, de educação, de tudo. A moça fina, que era, transformou-se inesperadamente na grande mourejadora. Com uma resignação e uma coragem excepcionais, atirou-se à máquina de coser, à tina de lavar, à cozinha, ao esfregão, a todos esses serviços duros de uma casa, que nós, os homens, chamamos inconscientemente de serviços leves. Dois anos depois, ela, que era formosa (essa mulher que o amigo está vendo, derrotada e velhinha, foi bela como as mais belas), ela, que era formosa, tinha o aspecto de uma ruína.
Mas sempre a lutar, a lutar como uma moura. A sua preocupação, a sua mania, a sua obsessão única eram aquelas duas irmãs pequenas, que o destino transformou em suas filhas. O seu ideal era criá-las, educá-las e casá-las magnificamente. Meteu-se-lhe na cabeça que o futuro das duas meninas estava no casamento. E um casamento magnífico só poderiam elas encontrar num meio magnífico. Era preciso, portanto, frequentar a alta roda.
E aos quinze anos, já mocinhas, a Laura e a Flora apareciam nos bailes, nas festas, nos teatros, lindamente postas, como joias que se expõem numa vitrina.
A vida mundana, como bem sabe o amigo, é um inferno para a bolsa. Os menores passos requerem gastos horríveis. Mas d. Maria trabalhava, trabalhava noite e dia, em tudo, de todas as maneiras, para que nunca faltassem às duas irmãs os vestidos de seda, os sapatinhos de cetim, as rendas, os perfumes, todas essas miudezas femininas que custam fortunas.
A luta foi simplesmente infernal. Era superior às forças de uma mulher.
Começaram então as surpresas de uma vida fictícia. Ora, tinham as três moças que mudar de casa, aturdidas por um despejo; ora, que fugir na rua de um credor exigente. Muitas vezes nada tinham em casa para comer, muitas vezes passavam semanas inteiras a café ralo e a pão duro, mas a Flora e a Laura, sempre na rua, num primor de elegância que estonteava, frequentando os chás, os bailes, as regatas, tudo.
Naquele trabalho incessante, naquele mourejar sem tréguas, a pobre d. Maria foi fanando. As mãos ficaram grossas como as de um lavrador, a pele tostou-se, as maneiras perderam a distinção, a saúde perdeu o viço antigo.
Criadas na rua, nesse ambiente falso de sociedade elegante, indo onde queriam, frequentando chás e clubes, ouvindo as barbaridades que os rapazes finos costumam dizer às moças, era natural que a alma das duas, a de Laura e a de Flora, se contaminasse. E contaminou-se. Aos dezoito anos tinham apenas a virgindade física, e fanada a beleza moral do coração.
Não tinham outra preocupação senão os cinemas, as danças, os rapazes cintados, o brilho exterior das coisas. Eram, sem tirar nem pôr, duas "melindrosas", como hoje se costuma chamar.
Todo o mundo percebia que ali estavam dois casos que dariam que falar no futuro. Uma criatura apenas compreendia isso. Era d. Maria. A sua preocupação única era casar bem as irmãs, e só naquele meio, frequentando-o com assiduidade, pensava, podiam elas casar.
E, dia a dia, cresciam os sacrifícios. As forças da pobre moça esgotavam-se na tina, no ferro de engomar, no esfregão, na agulha, para que nada faltasse à elegância e ao luxo daquelas duas criaturinhas, que ela agora amava numa cegueira de mãe.
Muitas vezes tive vontade de abrir-lhe os olhos, de mostrar-lhe que todo aquele sonho que ela penosamente erguia, tinha um dia que cair, como tudo que é fictício; muitas vezes tive desejos de aconselhá-la que cuidasse de casar as irmãs num meio menos alto, com criaturas mais trabalhadoras que elegantes. Não o fiz; fiz mal.
A Flora e a Laura, inficionadas pelo ambiente que frequentavam, eram simplesmente insuportáveis. Tinham a irmã sacrificada como se tem a um traste imprestável. Tratavam-na como se trata a uma escrava. Diziam-lhe no rosto as coisas mais lancinantes, exigiam-lhe sacrifícios absolutamente espantosos.
E a pobre da d. Maria, sempre humilde, resignada, naquela eterna obsessão de trabalhar para que as irmãs pudessem, um dia, ter uma situação brilhante na vida.
— Não visto esta saia branca, porque está mal engomada! Gritava uma.
— Eu não a preveni que me arranjasse dinheiro para um par de meias de seda azul?! Gritava a outra.
Um inferno!
No começo, quem levava as duas criaturinhas aos bailes, aos chás, às festas era a própria d. Maria. Depois, os apertos da vida, a falta de roupa, o ar de decadência, tornaram-se motivos para que ela fosse repelida pelas irmãs.
— Comigo você não sai com esse vestido indecente! Berrava a Laura.
— É melhor você ficar para passar a ferro a roupa branca! Ordenava Flora.
E, de um certo tempo em diante, em todo lugar em que houvesse um rumor de festa, lá estavam as duas raparigas, agora sozinhas, lindas, impecavelmente vestidas, cercadas sempre de uma corte de rapazes desenvoltos.
Eu não podia compreender como o trabalho de d. Maria dava para todo aquele luxo.
Mas em pouco tempo percebi que, tanto a Flora como a Laura, já não eram duas moças no sentido vulgar do termo. Eram duas "piratas", como se costuma dizer atualmente. Elas (desculpe-me o que houver de chulo na expressão) "cavavam" a vida por meio de expedientes. Passavam o plano nas modistas, no chaufeur, nos lojistas, em todos.
Percebi esta coisa uma vez numa casa de chá. Uma delas chegou-se a mim, pedindo-me dinheiro para pagar a despesa, por ter esquecido a carteira em casa. E isto se repetiu tantas vezes, que eu já as evitava na rua. Todas as ocasiões que me encontravam, sempre se tinham esquecido do dinheiro para as despesas.
Soube depois que elas faziam isso com todos os antigos conhecidos da família.
Viviam as duas criaturas por esta cidade numa vida vertiginosa de aventuras audazes. As costureiras prendiam-lhes os vestidos durante meses, e elas andavam como doidas à cata de costureiras novas para passar o "conto". Piratas, verdadeiras piratas!
Não sei se o amigo conheceu o Pierre das sedas. Era um francês que negociava ambulantemente com as sedas mais belas que têm vindo ao Rio.
Uma vez encontrei-o a caminho de uma delegacia, para dar queixa contra as duas moças. Deviam-lhe vários contos de réis.
Foi um ponto que eu não pude aclarar com segurança, esse do Pierre das sedas. Uma semana depois, encontrando-o, ele me falou das duas raparigas com certo carinho. E, como eu lhe perguntasse se lhe tinham pago, respondeu-me, risonhamente, com a sua pronuncia afrancesada:
— Não pagaram, mas são muito interessantes.
O Pierre não era homem que se deixasse enganar...
E, enquanto elas aqui fora brilhavam, a pobre d. Maria arrebentava-se na tina, no ferro, na cozinha, ora dando pensão a rapazes, ora fazendo doces para confeitarias, trabalhando de dia, de noite, de madrugada, a fanar-se, a extinguir-se com uma resignação comovedora.
As irmãs progrediam em desenvoltura. Eram bailes todos os dias, a que elas iam sozinhas, fingindo-se acompanhadas por outras moças, eram gastos sobre gastos, o diabo!
Um dia uma delas entrou em casa com um solitário esplêndido nas orelhas.
— Onde arranjaste isso? Perguntou a irmã mais velha.
— Bati.
Era uma expressão nova para d. Maria. Mas a rapariga explicou. Bater era surripiar. Tinha batido aquilo numa joalheria, no momento em que o caixeiro se distraíra ao mostrar-lhe joias.
A pobre senhora empalideceu. Era um furto. Mas a gente se acostuma a tudo. O amor de d. Maria pelas irmãs atingia à cegueira. Elas precisavam daquilo para casar.
E dai por diante cada uma delas aparecia sempre com uma coisa nova, uma joia, uma peça de renda, uma trousse, um corte de seda. Tinham batido.
D. Maria vivia na preocupação de inventar mais trabalho. Um dia viu, num anúncio de jornal, que alguém pedia uma professora para uma menina, pagando bem. Tomou nota da casa e da rua, vestiu-se e saiu.
Era numa rua de Botafogo, a casa. Entrou e bateu. A escada tinha uma passadeira escarlate e no patamar palmeiras viçosas.
Subiu.
Lá dentro havia um ruído de risadas femininas.
O instinto de mulher fê-la desconfiar daquilo. Estava numa casa duvidosa.
Quis descer; mas, uma velhota gorda apareceu, atendendo-a. Que subisse! Que subisse!
E falaram. Era a velhota que havia anunciado. Tratava-se de uma criança, sua filha, a quem ela queria dar alguma educação.
— Quero fazer dela uma moça, afirmou.
E com um ar de mãe que nunca deixa de ser, apesar de pecadora:
— Mas aqui em casa é impossível. Isto é uma casa de mulheres...
E antes que d. Maria pudesse recusar-se:
— Entre, venha aqui para dentro. Deixe que eu lhe mostre a minha filhinha.
E arrastou-a gentilmente pelo braço.
Rasgou-se um reposteiro rico. O cenário que se abriu diante dos olhos de d. Maria fê-la tremer da cabeça aos pés. Era uma sala de jantar reluzente e em derredor da mesa quatro ou cinco mulheres, bebendo com rapazes.
Duas delas eram a Flora e a Laura.
D. Maria não pôde dar um passo, estatelada, sem uma pinga de sangue.
Calcule o amigo o que se teria passado naquele pobre coração. Foi um desabamento completo. A sua mocidade sacrificada, a sua saúde em ruína, os seus sonhos de moça, as noites perdidas, a fome, as torturas, as inquietações, tudo pelo bem daquelas duas irmãs, tudo, tudo para casá-las, e vinha encontrá-las agora, numa casa daquelas, bebendo como cocotes...
Duas lágrimas silenciosas desceram-lhe pelo rosto.
— Que vem você fazer aqui? Gritou a Flora.
— Ponha essa mulher para fora! Gritou a Laura...
E ela saiu cambaleante, arrastando miseravelmente o feixe de ossos que lhe compunha o corpo, sempre com aquelas duas lágrimas dolorosas a pingar-lhe nas faces frias.
Imagine o que se passou naquela alma que tudo tinha sacrificado inutilmente.
Hoje vive ela, sozinha, de esmolas. Não pode mais trabalhar. As irmãs gastaram-na. É uma ruína. É um muro velho que desabou.
Como o amigo vê, bem merece ela um cantinho na filantropia do seu coração de homem rico.
Do amigo e criado
Ríamos ainda do desfecho cômico da história que o Dr. Gamara acabava de contar, quando o Nogueira Lins, sempre triste, com aquele todo esguio de cegonha, começou:
— Não tenho, infelizmente, um caso alegre para contar aos amigos. A minha história é horrível.
Era nos fundos de uma cervejaria, às duas da madrugada. Reuníamo-nos ali todos os dias, e, naquela noite, alguém lembrara que contássemos os casos da nossa vida.
Ninguém vai contar coisas tristes no fundo, de uma cervejaria, diante da espuma da cerveja. Todos nós havíamos escolhido o que havia de cômico no nosso passado.
— Talvez os amigos não me queiram ouvir. A minha história é dolorosíssima.
O Conrado Pinto chegou a cadeira para mais perto da mesa:
— Era também uma história má que eu queria contar.
— Não pode ser mais dolorosa que a minha, insistiu o Nogueira Lins,
— Por mais horrível que seja a sua, nunca se poderá comparar à minha.
— Duvido. O meu caso é toda a minha desgraça. Eu hoje devia ser, pelo menos, senador da República, ministro ou banqueiro ou um grande nome no país. Arrasei-me completamente e, agora, nada mais sou que um guarda-livros de segunda ordem. Tudo pelo caso que lhes vou narrar. E o que é pior, em tudo isso, é que não tive e não tenho a mais pequena culpa.
E depois de uma ligeira pausa:
— Um dia vi-me envolvido na morte de uma mulher, mulher que eu nunca tinha visto, mas que morreu nos meus braços. Fui apontado como o assassino, passei vários anos na cadeia, desorganizei toda a minha vida, nunca mais tomei pé e aqui estou de nome mudado para poder viver o resto de meus dias.
E, voltando-se para o Conrado Pinto:
— Será mais dolorosa a sua história?
— É!
— Conte-a. Prefiro guardar-me para o fim.
— Faça favor...
— Não, não. Insisto. Insisto porque tenho a certeza que a minha será mais triste que a sua.
Dispusemo-nos a ouvir. O Conrado Pinto afastou para o meio da mesa o copo de cerveja:
— Casei-me muito moço. Cinco anos depois o Banco, em que eu era empregado, resolveu criar uma agência na capital de S. Paulo. Fui eu o encarregado de organizar a agência. Deixei a família aqui no Rio e parti. Entre as muitas cartas de recomendação que levei, havia uma para o velho conselheiro Publio de Sá, uma das figuras mais altas e mais respeitáveis de São Paulo. O conselheiro era bahiano e com aquela expressão de hospitalidade que só se encontra na gente do norte. Apresentou-me à família, fez-me íntimo de sua casa.
Havia na família do conselheiro um caso triste. D. Maria da Gloria, sua filha mais velha, era viúva. Casamento infeliz — o marido morrera seis meses após o enlace, de um desastre de estrada de ferro. A pobre moça morava com os pais.
Não era uma criatura bonita, mas havia no seu ar de tristeza resignada, nas suas olheiras roxas, qualquer coisa que deixava na gente uma profunda impressão de simpatia.
Em pouco tempo éramos amigos. Maria da Gloria tocava violino e eu arranhava o meu bocado de piano. Passávamos as tardes de domingo fazendo música, no largo salão do palacete, à avenida Paulista.
Essas coisas são fatais, meus senhores. Dois corações novos não podem viver impunemente juntos. Quando dei por mim, estava apaixonado por ela, e ela apaixonada por mim.
Uma loucura aquilo — eu era casado. Combinamos então cortar o mal pela raiz: eu me afastaria procurando esquecê-la, e ela procuraria esquecer-me também.
Nem sempre essas coisas são fáceis, nem sempre são possíveis.
Posso-lhes afirmar que, durante duas semanas, sinceramente procurei sufocar o coração.
O amor foi mais forte do que eu.
Voltei ao palacete do conselheiro. As tardes de música, aos domingos, recomeçaram.
Não pode haver vislumbre de juízo entre duas criaturas que se amam doidamente; não pode. Quando se abrem os olhos, está-se a rolar inevitavelmente no abismo.
Foi o que se deu conosco. Um dia Maria da Gloria confessou-me a sua desgraça. Sentia que ia ser mãe.
Quase enlouqueci. Não lhes preciso pintar a situação horrenda que me surdia diante dos olhos. Uma família daquelas, com as melhores relações da cidade, sempre vivendo num ambiente de moralidade rigorosa, ilustre, querida, e eu a desmanchar-lhe a tranquila felicidade doméstica! Uma pobre viúva que tinha sempre vivido sem o mais leve deslize, boa, suave, dentro da resignação da sua sorte, de um momento para o outro desgraçada, sem poder esconder a sua falta, e desgraçada por mim, um homem casado que, de maneira alguma, podia reparar a minha culpa! Ah! Não lhes preciso dizer a minha situação!
Andei como um doido vários dias. O caso, porém, pedia um movimento prático qualquer e urgente. O remédio, o único, era eliminar o filho.
Como? Em S. Paulo? A família saberia. O maior pavor, tanto meu, como de Maria da Gloria, era que a família soubesse. Ela não resistiria à vergonha; eu não me sentia com forças para suportar a minha própria infâmia.
Uma noite, depois de muito pensar, resolvi tudo. Seria aqui no Rio.
Maria da Gloria tinha uma tia velha, ali, em Botafogo, à qual, de tempos em tempos, costumava visitar por longos meses. Nada mais fácil. Viria visitar a tia, e eu aqui me encarregava do resto.
Tive sempre uma certa queda pela medicina. Se hoje não sou médico, a culpa foi só minha que, em rapazote, não tive paciência para suportar seis anos de bancos acadêmicos. Comprei livros e livros e pus-me a estudar abundantemente o meio de eliminar a criança que sete meses depois viria naturalmente ao mundo.
Não sei se por muito estudar ou se pelo desejo febril da eliminação, acabei por me convencer que tudo era fácil e que eu tinha a perícia e o manejo necessários à operação do aborto.
Combinei tudo. Maria da Gloria começou a falar da viagem à família. Vim ao Rio e aluguei, na rua da Alfandega, um segundo andar. Aluguei-o de nome trocado; convinha-me que nada transpirasse.
Não se diga que tivesse havido nos meus planos uma linha de ingenuidade ou de precipitação. A minha má sorte é que os fez falhar.
Tais quais os tracei eram excelentes: fingindo que telegrafava à tia, Maria da Gloria embarcaria sozinha para o Rio (o que mais de uma vez havia feito) e, em vez de seguir para Botafogo, seguiria comigo para o segundo andar da rua da Alfandega. Lá eu me encarregaria do resto e, logo que tudo estivesse realizado, no dia seguinte ou dois dias depois, ela se apresentaria em Botafogo, como se tivesse chegado naquela noite.
No princípio as coisas correram bem.
Fui à "gare" da Central recebê-la. Metemo-nos num automóvel fechado. Uma noite fria, de muito vento e muita chuva.
O segundo andar da rua da Alfandega era de um desses casarões antigos, de salas vastas como anfiteatros, sombrias, desoladas. Não havia luz. Muni-me de uma caixa de velas. Ninguém morava no prédio. No andar térreo — um depósito de cordames de navios; no primeiro andar — escritórios de advogados e médicos. Àquela hora da noite não havia viva alma na casa.
Os meus amigos serão forçados a concordar que eu fora hábil na escolha do prédio.
Era uma hora da madrugada, quando comecei a operação. Não me faltava um ferro cirúrgico.
Eu devia estar completamente louco, quando imaginei que pudesse realizar aquilo, de que nem mesmo os cirurgiões os mais peritos, os de mais longa prática, podem garantir o sucesso.
Horrível! Horrível! Em menos de dez minutos Maria da Gloria estava lavada em sangue. Faltava-me tudo ali: panos, algodões, aparelhos necessários para conter a hemorragia.
Eu tinha sido um desastrado. Errara tudo.
E diante do sangue que já escorria pelo assoalho, diante do corpo desmaiado de Maria da Gloria, desnorteei e pus-me a fazer loucuras.
Cada vez mais o sangue borbotava. Fiquei como um doido, a mover-me desordenadamente por aquelas imensas salas que as velas mal alumiavam, ora a sacudir Maria da Gloria, a chamá-la, friccionando-lhe o peito, ora correndo à janela, sem sentir coragem de gritar por socorro.
A noite era profunda. Chovia como num dilúvio. A rua parecia o corredor de um subterrâneo. .
Às duas horas da madrugada podiam meter-me no hospício, que eu devia estar completamente louco.
Percebi que Maria da Gloria ia morrer.
Considerem um instante o meu caso. Que ia ser de mim, depois daquilo? Que ia ser de mim, se ela morresse?
E ela começava de fato a morrer, esvaída em sangue.
De cabeça em brasas, desço num pulo a escada para gritar socorro. Não havia ninguém na rua. A chuva continuava a cair ruidosamente.
Corro à primeira esquina. Um homem vai passando, embuçado. Agarro-o. Conto-lhe por alto a minha desgraça, insisto, arrasto-o.
Por pena ou curiosidade ele acompanha-me ao segundo andar. Ao ver o quadro, estatela-se, comove-se.
— Corra, corra, vá buscar um médico! Grita-me.
— Onde, a esta hora?
— Chame a Assistência, depressa!
Desço de novo à rua. Cabelo ao vento, molhado pela chuva, ando por todo o bairro, à procura de um telefone. Debalde. Não passa um carro, um automóvel, nada.
Começo a sentir a cabeça tonta. Tento acender as energias e andar. Mas sinto que vou cair e caio no batente de uma porta.
Estive um mês de cama, delirando. Quando voltei a mim, e pude ler os jornais, soube de tudo. A polícia prendera um homem junto do cadáver de Maria da Gloria, no segundo andar da rua da Alfandega, e processava-o. Havia todas as provas contra ele...
Conrado Pinto não pôde concluir a última palavra.
Nogueira Lins, de súbito, avançara-lhe à garganta, sufocando-o.
Erguemo-nos todos, surpreendidos, procurando detê-lo.
E ele, de dedos crispados no pescoço do Conrado, olhos fuzilantes, gritava, apertando e apertando mais:
— O homem era eu! Era eu!
Quando a Gigi, naquela tarde, ouviu da própria boca do feitor a notícia de que "seu" Dédé chegava no outro dia para morar definitivamente na fazenda, sentiu, de súbito, uma onda de sangue subir-lhe à cabeça.
E, em caminho de casa, pela estrada do morro, levava de quando em quando a mão ao peito, como para conter o coração, que lhe batia doidamente nas carnes. Era fatal! O remédio ali era liquidar o marido, o João Cotó.
Aquela ideia vinha-a mordendo havia vários meses. Desde muito tempo que aquilo lhe não saía da cabeça, remoendo-a noites inteiras, como uma obsessão doentia.
A história da Gigi era um desses dramas tristonhos, guardados silenciosamente no fundo do coração como um verme no fundo de um buraco.
Tinha ela dezesseis anos, quando "seu" Dédé apareceu, ali, na fazenda, para visitar os pais. O namoro começou na mesma noite da chegada, enquanto no pátio da fazenda ribombavam as "ronqueiras" da festa.
"Seu" Dédé vinha de Pernambuco passar as férias de estudante com a família. Era um rapagão corado, alegre, com um quê nos olhos que endoidecia as moças.
Ela entrava na quadra em que as mulheres começam a florescer, naquele período encantador em que se passa de menina para mulher, em que a carne vai sentindo os primeiros anseios do pecado e o coração vae estremecendo às primeiras palpitações do amor.
Uma semana depois já se iam encontrar a sós, à tarde, à larga sombra do tamarindeiro do riacho. Foi aquele o único tempo feliz de sua vida.
A sua casa dava fundos para a cerca do quintal da "casa grande". "Seu" Dédé morava num quarto que se não comunicava com o resto da casa da fazenda.
O encontro dava-se todas as noites. Era ela quem vinha ao quarto do rapaz, esgueirando-se por entre as árvores, escondendo-se nas moitas, quando ouvia algum rumor, e pulando depois a janela do aposento em que o estudante a esperava.
Foi um tempo de ouro, que nunca mais pôde esquecer.
"Seu" Dédé devia ser o mais doce dos homens. Tomava-a nos braços como se toma a uma boneca, vibrava ao mais leve estremecer do seu corpo, enchia-a de mimos e beijos, e a noite inteira, os dois, numa tempestade de amor, ali ficavam até de madrugada, esquecidos do mundo, da vida e de tudo.
Numa doçura daquelas devia ser bom passar a existência inteira. Nunca houve um dia em que ele tivesse para ela uma palavra áspera. Era sempre o mesmo carinho, hora a hora mais doce, hora a hora mais ardente, uma ternura incrível na voz, uma febre alucinante nos beijos. Tudo a prendia naquele quarto e naqueles braços: o ambiente, que sempre sonhara nas suas fantasias de moça, ambiente de asseio e riqueza, tão diferente do seu ranchinho de palha; os quindins do rapaz; o tom de delicadeza com que ele a envolvia sedutoramente.
Fora aquele o seu primeiro amor, mas, embora não soubesse como os outros eram, tinha a certeza que nenhum devia ser melhor que o seu. Tinha o coração a extravasar de orgulho, o orgulho de ser possuída por aquele moço, o mais lindo, o mais fino, o mais educado dos moços ali das redondezas.
Meses antes, quando a sua prima Florencia se casara com o Chiquinho Beijoca, tivera-lhe uma certa inveja — o rapaz era bonito e novo, querido das raparigas. Mas agora se sentia mais feliz que a prima.
Quem era o Chiquinho comparado com o "seu" Dédé?! O Chiquinho, um simples ferreiro, sem saber dizer coisas bonitas aos ouvidos da gente, entrando em casa suado, fedendo, a camisa suja de suor e carvão, os pés descalços, as mãos mais ásperas que os pedregulhos do morro!
E "seu" Dédé, sempre limpo, bem calçado, bem tratado, cheiroso, os dentes mais alvos que uma folha de papel, umas camisas tão finas que pareciam de cambraia, as mãos mais lisas que a seda, mãos que davam vontade da gente acarinhá-las e beijá-las a noite inteira!
Mas aquilo não durou três meses. Um dia "seu" Dédé disse que ia partir. Tinha que voltar aos estudos. Na noite da despedida foi uma cena de dor no quarto da fazenda. Ela chorou, ele também.
— Eu vou contigo.
— Estás louca!
Era impossível: um simples estudante, vivendo ainda da mesada dos pais. Ela que o esperasse. Logo que concluísse o curso, viria e viria pressurosamente para aquele amor delicioso que o ia encher de saudades em Pernambuco.
— E voltas?
— Certamente. Quando não fosse por minha família, seria por ti.
Ela esperou. Esperou um ano, dois anos, cinco.
Nenhum rapaz do povoado teve dela um sorriso ao menos. Ninguém sabia o que era aquilo. Os amores com o estudante tinham ficado em segredo.
Mas "seu" Dédé nunca lhe escrevera uma linha. As notícias que dele sabia, vinham sempre retalhar-lhe o coração. Que não vinha mais, que ficava mesmo em Pernambuco, que estava viajando pela Europa, que não queria mais saber do sertão.
Foi no quinto ano de desilusões que lhe apareceu o casamento com o João Cotó. Não queria; a sua vontade era nunca mais entregar-se a outro homem. Mas os parentes tanto fizeram, tanto fizeram, que não pôde deixar de ceder.
O João Cotó era benquisto no lugar, tinha as suas cabecinhas de gado, seu dinheirinho junto e só uma doida o não agarraria. Casou-se.
Não teve desilusão porque esperava aquele sacrifício. Mas, em vez de acostumar-se ao homem a quem se ligara, dia a dia lhe criava mais ódio.
O João Cotó fazia-lhe lembrar a todo instante o "seu" Dédé. E quando o via entrar em casa, de volta do campo, pingando suor, a camisa de riscado toda molhada, a cara arranhada pelos espinhos dos cerrados, cheio de terra e lama, vinha-lhe um nojo, uma vontade de esganá-lo.
Que diferença do outro, limpo, trescalando a água de Colônia, com um cheiro tão bom, que a gente tinha vontade de ficar eternamente embebida naquele cheiro.
À noite era um suplício. Quando o João Cotó se vinha deitar, de barba espinhosa, as mãos mais ásperas que um cardo e aquele horrível cheiro de carne suada, ela o repelia, cuspindo:
— Vai-te lavar, criatura. Tu cheiras ao teu cavalo.
E se ele a prendia para beijá-la, o seu nojo era maior:
— Vai limpar esses dentes, porco!
Um inferno. Momento a momento o ódio e o nojo lhe cresciam no peito. Qual! Não era possível levar aquilo até ao fim da vida.
Foi só quando morreram os pais de "seu" Dédé que lhe surgiu na cabeça aquela ideia de exterminar o marido. Corre pela fazenda a notícia de que o moço viria para administrar os seus bens.
Um alegrão na sua alma. Ia a vida reflorescer para ela! Ele prometera voltar, e voltava, naturalmente vibrando pelo amor antigo, por aquelas noites magníficas do quarto da "casa grande". Ah! Ia-lhe a vida reflorescer!
Mas como, com a peste do João Cotó, sempre junto dela, senhor do seu corpo, seu marido, e com um ciúme de fera?!...
Na noite, em que ouviu da própria boca do feitor que o moço chegava no outro dia, rolou na cama até ao amanhecer, sem dormir.
Ao clarear o dia, tinha tudo na cabeça delineado. Seria no almoço, a "coisa". O João Cotó, a cuidar do gado, nunca vinha almoçar a hora certa. O plano parecia-lhe excelente. Tinha, no baú, um veneno que o boticário da vila lhe vendera para matar os ratos. Era só misturar o veneno no prato do almoço do marido, reservando outro prato sem veneno nenhum. Tudo havia de correr bem, com favor de Deus. Ninguém, no povoado, poderia reconhecer se ele morrera envenenado e, se reconhecesse, com a maior serenidade diria que aquele prato de comida havia sido reservado para os ratos, e que o seu marido é que se enganara comendo aquele em vez do outro que lhe guardara.
Havia de correr a "coisa" maravilhosamente.
Ao meio dia, quando a Gigi pisou no pátio da "casa grande", estrondavam as ronqueiras festivas e o povo fervia a dançar à sombra das árvores. Batia-lhe o coração alviçareiramente.
Mal foi ela chegando, "seu" Dédé surgiu ao avarandado, ao lado de uma mulher que parecia uma princesa. Sem saber por que sentiu que o sangue lhe parou dentro das veias. Mas, empurrando aqui, acotovelando ali, varou por entre a multidão, em rumo da cancela.
O feitor, ao vê-la, abriu-se num sorriso amigo:
— Olhe quem está aqui, doutor.
O Dedé olhou-a.
— Quem é?
— O senhor já não se lembra? A Gigi.
— Ah! Sim! Como estás mudada!
E estendeu-lhe friamente a mão. Depois voltou a falar à mulher formosa, ao lado:
— A Gigi pode servir-te. É limpa e dará uma boa criadinha.
A rapariga ficou ali transida, muda, mais branca que a parede caiada de novo, confundida no torvelinho do povo. O feitor veio passando. Ela puxou-o pelo braço:
— Quem é aquela mulher? Interrogou roucamente.
— A "moça" do doutor. Pedação de mulher! Não achas?
A Gigi encostou-se à parede para não cair.
E ali ficou por muito tempo aturdida, abestalhada, vazia como se o mundo tivesse, de súbito, acabado para ela.
Soavam vivas na varanda e ronqueiras lá fora.
De repente sentiu que lhe subia à cabeça um fluxo de sangue; um pensamento passou-lhe como um raio pelo espírito e, rompendo a multidão, saiu a correr, estrada à fora, a caminho de casa.
E, mal transpôs a porta da palhoça, ouviu lá dentro um rumor de pratos. O João Cotó, sentado à mesa, com o prato em frente, ia começando o almoço. Era a primeira colherada a levar a boca. A Gigi deteve-lhe a mão que segurava a colher.
— Não comas isso, que é dos ratos, disse esfogueada e rápida.
Correu depois a cozinha, trazendo o outro prato de comida.
— Este é que é o teu.
E de costas, sentada no chão, pôs-se a comer o almoço que havia tomado ao marido.
— Tu não disseste que essa comida era dos ratos? Como a estás comendo? Perguntou o João Cotó.
— Brincadeira minha, respondeu ela.
E com as lágrimas a escorrer rosto abaixo, atirou-se a comer nervosamente, as pressas, como se fosse aquela a última vez que comia na vida.
Três dias depois do júri do capitalista Diniz de Pádua encontrei-me, no bonde da Gavea, com o engenheiro Gastão do Lago, meu velho amigo de muitos anos.
Gastão do Lago servira no conselho de sentença que condenara o réu, e eu queria minúcias do júri.
O caso havia-me interessado até ao mais fundo da curiosidade.
O capitalista Diniz de Pádua, vulto de maior destaque no alto comércio daquele tempo, modelo de virtudes, de bom gosto e elegância, fora surpreendido envenenando a neta, uma criança de três anos, loira como uma espiga nova, alegre e risonha como um pássaro solto. As circunstâncias do crime eram horríveis.
O capitalista matara a pequenita lentamente, dia a dia, dosando maior porção de veneno, até à tarde fatal em que a criança morrera.
Não havia apenas indícios veementes de que fora ele o autor da morte, mas a segurança, a certeza, a prova. Num armário de seu gabinete particular encontraram-se vários frascos de veneno, uns cheios, outros vazios, um veneno misterioso que os médicos nunca puderam determinar, com precisão, o que fosse. Depois de negativas teimosas o capitalista acabara confessando tudo e de uma maneira cínica, imprevista e revoltante. Matara por sport, afirmara, movendo os ombros.
Matara a netinha, tão pequena e tão loira, por sport!...
A polícia acabou por apurar que duas ou três crianças da idade da pequenita, netas também do argentário, mortas havia alguns anos, tinham sido também por ele assassinadas, com o tal veneno desconhecido.
O crime tivera uma encenação ruidosa, a princípio a do mistério, depois a grande encenação do nome do criminoso. A cidade ferveu de ódio por muitos dias. Ninguém podia imaginar na figura de Diniz de Pádua, tão distinto, amável, correto e feliz, a veia repugnante de um assassino capaz de matar paciente e friamente os netinhos. Miserável! Infame! Ah! A pena de morte para um bandido assim!
Eu crivava o Gastão do Lago de perguntas. Como se apresentara o miserável no júri? Com o mesmo cinismo que na polícia? E a cara? Que expressão tivera ele durante a acusação? Como ouvira as palavras do promotor? Como recebera a condenação? Tranquilo?! Indiferente?! Bandido! Bandido!
— Condenação unânime, não foi assim?! Perguntei num tom afirmativo.
— Não. Houve um voto a favor do réu, respondeu o meu amigo.
— Não é possível!
— É exato.
— Quem foi esse miserável?
— Não foi miserável nenhum.
— Estás a brincar!
— Palavra, houve um voto a favor.
Mordi os beiços.
— Não estaria, esse tipo do voto a favor, convencido de que o Diniz de Padua era um matador de crianças?
— Estava.
— Não teria a segurança de que ele matou miseravelmente a netinha?
— A segurança total. Tinha mais a certeza de que as duas outras crianças que morreram anteriormente foram assassinadas pelo capitalista.
— Então...
Gastão do Lago chegou-se para mais perto de mim.
— Ouve-me. Há uma justificação. É necessário primeiro ouvir a história do Diniz de Pádua, história que ninguém conhece aqui no Rio, mas que é horrenda e estranha.
Conheci o Diniz de Pádua em Feira de Sant’Anna, na Bahia. Era já rico, com grandes negócios de gado. Devia ter os seus quarenta anos, quando se apaixonou por d. Angélica, que, naquele tempo, não tinha mais que dezoito.
D. Angélica foi o tipo de mulher mais formosa que eu tenho visto em dias da minha vida. Alta, clara, os cabelos de um ouro iluminado, o olhar de uma humidade languescente, era uma criatura magnífica, dessas belezas aparatosas que não só nos enchem os olhos, como também o coração.
O Diniz de Pádua, casou-se completamente perdido de amor. Vim para o Rio e nunca mais nos vimos.
Passaram-se vários anos. Uma noite, num baile em casa da baronesa Lopes da Cunha, vejo entrar d. Angélica ao lado de um rapagão moreno e, atrás, um homem grisalho, com ar distinto e maneiras gentis.
Conheci imediatamente o Diniz de Pádua. Mas havia agora uma comédia que me vinha desnortear. O Diniz não era mais o marido de d. Angélica, era o pai. O marido, ao que me afirmou toda a gente na festa, era o rapagão moreno.
— E como se explicava aquilo? Perguntei.
— Um dos tais dramas domésticos, horrendos, nojentos, extravagantes, de que há tantos debaixo desses telhados e de que aqui fora não sabemos.
Imagina a minha surpresa, quando o Diniz de Pádua me foi apresentado como pai de d. Angélica e esta como mulher do rapagão moreno, o Bernardes Colomba, que ainda hoje a sociedade aceita como o marido. Não me conheceram.
Compreendi que ali estava um drama conjugal que eu nunca devia desvendar aos olhos ignorantes.
A família tem o seu mecanismo próprio e diabo leve a quem quiser introduzir novidades na máquina. Funcionava bem com aquela farsa e não seria eu a perturbar-lhe o funcionamento.
Mas a minha curiosidade, a minha horrível curiosidade! Fiquei com o caso na cabeça, a verrumar-me todos os dias, todas as horas. Voltando à Feira de Sant’Anna, lá me contaram tudo. É um romance negro.
E Gastão do Lago contou emocionadamente:
Um ano depois de casado, Diniz de Pádua adoeceu. Foi à Europa, voltou, doente sempre. Entregou-se afinal a um curandeiro da roça. As tisanas dos curandeiros da roça são medicações terríveis — fazem bem a uma coisa e mal a outras. Quando o Diniz se restabeleceu, estava perdido. Era homem apenas na figura sempre distinta, sempre simpática; nunca mais o seria nos impulsos que caracterizam o nosso sexo. D. Angélica tinha vinte anos. Era a violenta eloquência da carne, a pujança mais viva dos desejos.
— Vê tu a situação desse homem. Por bem dizer novo, rico, com a mulher mais linda da terra, amando-a numa cegueira e sem poder amá-la.
Deu-se o que era de esperar. D. Angélica teve um amante, esse Bernardes Colomba que tu conheces. O rapaz apareceu em Feira de Sant’Anna como promotor público, e o namoro começou.
Numa cidade pequena essas coisas saltam logo aos olhos. O marido foi um dos primeiros a saber. Resolveu a situação discretamente: mudar-se-ia para o Rio, pretextando altos negócios, fugindo assim ao ridículo da língua mexeriqueira e impiedosa da gente do interior. Mas a sua força moral, o prestígio doméstico estavam completamente arrasados. A mulher bateu o pé. Só viria se o amante a acompanhasse.
— E não teve esse homem coragem de mandar essa mulher para o inferno?! Exclamei revoltado.
— Sabes lá o que são esses amores doentios, absorventes, que se infiltram nos espíritos enfermos? O amor, que é mais velho do que tudo, é a eterna surpresa, a inesgotável novidade.
O Diniz de Padua amava a mulher numa embriaguez total. Sujeitou-se a tudo.
Aqui, para atender às conveniências e talvez por lembrança da mulher, apresentou-se como pai de d. Angélica e esta como esposa de Bernardes Colomba. O Rio não os conhecia, a máscara podia ser perfeita. A sociedade aceitou-os de portas abertas. A beleza majestosa de d. Angélica impressionou as altas rodas.
— Considera bem a situação miserável do Diniz de Padua, continuou o Gastão do Lago, depois de uma pausa. Marido com todos os sacramentos, dono, senhor absoluto daquela mulher, tendo de a entregar a outro, de dizer, com a sua própria boca, que o outro era marido, isto apenas porque não sentia dentro em si um assomo de energia para separar-se da criatura a quem amava numa obsessão e numa tortura.
Vê, considera a situação desse pobre homem, a fingir de pai, a conservar por tantos anos a mesma máscara na cara, a sorrir, a fingir felicidade, a fazer de comediante numa farsa ignóbil, em que o único ridículo, o único torturado era ele.
Que ódio, que ódio horrendo, diabólico, incontido não devia ele ter por aquela mulher e por aquele homem!
Imagina o que não devia ir na alma do desgraçado no dia em que nasceu o primeiro filho de D. Angélica, filho que ele sabia que era do outro, filho que era a prova da sua miséria, da sua escravidão e da sua infâmia. Que angústia estranha não havia de sofrer o pobre homem ao ouvir a criança, na sua inconsciência, chamar-lhe vovô, beijar-lhe as barbas e afagar-lhe o rosto!
Considera um instante, e vê quanto não sofria o desgraçado tão rico, tão infeliz dentro do seu ouro e tão miserável dentro de sua casa!
— Não tendo forças para vingar-se da mulher, continuou Gastão do Lago, Diniz de Pádua vingou-se nos filhos dela.
Ninguém sabe, ao certo, a visão desses espíritos doentios. É possível que o capitalista visse nas crianças o suplício vivo que a mulher lhe impunha.
Nunca um filho de d. Angélica passou dos três anos e três meses.
Morreram todos com uma idade exata.
Os desequilibrados passionais fazem a cultura do requinte. Diniz de Pádua preocupava-se, em matar os filhos de sua mulher ao chegarem sempre a uma determinada idade — três anos e três meses. E matava-os devagarinho, dia a dia, dose a dose de veneno, com a voluptuosidade do gato que leva horas inteiras a brincar com o ratinho entre os dentes. E matá-los-ia a todos que viessem nascendo, se não tivesse sido apanhado.
— Pela criada, não é verdade?
— Isso disseram os jornais. Mas quem o apanhou foi d. Angélica. As mães têm a virtude de adivinhar.
E ela mesma, no fundo, devia esperar alguma vingança do marido legítimo. Ao morrer-lhe o primeiro filho, ficou de sobreaviso. Ao morrer-lhe o segundo, quase que teve a certeza.
Ficou de sentinela, mas o disfarce do Diniz de Pádua era tal, que ela não conseguiu salvar a vida do terceiro. O caso é horrendo, mas havemos de concordar que o capitalista não era um matador de crianças. Matava-as apenas para vingar-se da mulher.
O bonde parou. Gastão do Lago apertou-me as mãos apressadamente, ao estribo, dizendo:
— O voto a favor do réu foi meu. Não me arrependo.
E saltou.
— Dona Alice, continuou o desembargador, tinha uma criada madurona, que a servia há muitos anos. Era a Maria, criatura discreta, que ainda está viva, e que atualmente chamei para o meu serviço.