Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Canteiro de saudades, Coelho Neto


Edição de base:

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

O que me resta

Vida e morte

A primeira palavra

Sono de criança

O presente do céu

Conto de fada

Os vinte e cinco irmãos

O ano novo

Histórias

Ninharias

A cigarra do cemitério

Piedade

In Extremis

A camisola da árvore

Em recolhimento

Três sorrisos

O meu talismã

A Ceguinha

Reminiscências

A docerinha

Água parada

A roseira

No consultório

A boa nova

Minha escola primária

A comida do fogo

Luar

O mealheiro

A peregrina

Nosso Senhor

Buena-dicha

Sombras

Ilusões

O anjo cantor

Estrelas

O coração

Flor de jardim

A memória

Canções

O deserto

Velhas chapas

O futuro

A vizinha

Ressurreição

O alfarrabista

O meu cofre

Lágrimas

O vagalume

Das Dores

A morte da casa

O meu castelo

A fogueira

Ruínas

A grande saudade

Errata

O que me resta

No princípio era a noite.

Como lembrar-me do que se passou durante o sono? Antes, porém, de amanhecer já eu estava acordado e, pouco a pouco, ao entreluzir d’alva, fui distinguindo os primeiros aspectos da natureza e ouvi o hino da manhã, essa sinfonia de sons tão vários e de tantas vozes claras a que chamam alvorada.

Rompeu o sol, o ar encheu-se de passarinhos e eu vi, livres da névoa, as arvores em flor, e vi, cintilando, as águas cristalinas e as do mar verde, trêmulas. Respirei aromas e as palavras, que, até então, me soavam vazias, animaram-se de sentido e eu as compreendi e repeti.

Pus-me a andar e a correr pela cidade da Vida e tudo me era propício e deslumbrava-me. Os caminhos eram macios, sempre fáceis e alegres.

Brincavam comigo todos os seres e as próprias coisas: os meninos da minha idade e os velhinhos, os animais, os ramos das árvores, as flores, as águas ligeiras das correntes e as ondas do mar.

Eu tinha o mundo por meu, todo ele: desde a terra até lá em cima, o céu, com o sol, de dia, e à noite com a lua e as estrelas pequeninas.

Assim foi enquanto longos cabelos de ouro rolaram em cachos por meus ombros, enquanto vivi à sombra de minha mãe, instruindo-me em contos maravilhosos.

Um dia, porém, cortaram-me os cabelos dizendo-me que assim faziam porque era tempo de eu entrar no colégio.

O colégio!...

Pois era aquele casarão escuro e úmido? Era ali que eu devia aprender, com um homem carrancudo, sempre a ralhar, a ameaçar os alunos, chamando-os, de instante a instante, a bolos? Alguns havia tão pequeninos, que, ao se apresentarem para o castigo, estendiam ao mestre as mãos ambas e, ainda assim, sobrava palmatória.

Era aquilo o colégio! Uma sombra cresceu diante de mim e pus-me a chorar com medo.

À tardinha, ao sair, outra me pareceu a cidade, outro o céu, outra a gente.

Um menino, mais forte do que eu, não me lembro porque, agarrou-me com brutalidade, rugindo-me insultos, levou-me d'encontro à parede e esmurrou-me, rasgou-me a roupa e foi-se a rir bravamente, deixando-me a chorar.

Ao chegar à casa, roto, desalinhado, com a ardósia partida, disse a verdade. Não me deram credito e ainda me castigaram.

Foi essa a primeira injustiça que sofri.

Desde então, convencido de que a verdade não salva, vali-me da Mentira. E foi ela que me levou ao mau caminho onde encontrei os Vícios. Quantos! e como eram alegres! como se divertiam!

Mal me avistaram, correram todos â mim, cercaram-me e, dando-se as mãos, envolveram-me, pondo-se a dançar em roda e a cantar, estonteando-me.

Não sei que me teria acontecido se minha mãe, que tinha, como todas as mães, o poder mágico de adivinhar, pressentindo a minha perdição, não me houvesse acudido a tempo, arrebatando-me à farândula.

Mas não havia de ser só isso, porque, na vida real, mais do que nas histórias encantadas, há perigos e monstros que nos atraem e perseguem, insídias que nos enliçam, sortilégios que nos demudam, bruxas que nos enfeitiçam.

Quantos, do meu tempo, ficaram por aí transformados em rochas áridas, quantos em animais daninhos, quantos encarcerados ou reduzidos à miséria, todos vítimas dos vícios que me haviam cercado, ou de feitiços e adversias!

O meu erro (erro de muitos) foi ter deixado a estrada real, enveredando por atalhos que iam ter a bosques onde tudo era alegria e festa.

Da primeira vez saí numa clareira onde se achavam reunidos cavaleiros de armas brancas, que iam assediar e arrasar um castelo ferrenho, onde gemiam prisioneiros acorrentados. Fui com eles e vencemos cantando.

Grande e formosa peleja!

Deu-nos a vitória alento para novos feitos e, sem descanso da primeira investida, arrojamo-nos à outra e, com o mesmo ânimo com que havíamos atacado e esvaziado ergástulos, pusemos cerco à cidade onde não entrava luz.

Infelizmente, porém, em vez de inscrever meu nome nas pedras limosas, que desmontamos, fiquei a gozar o triunfo e, quando foi o momento da distribuição do espólio, outros se apresentaram, outros que se não haviam arriscado, aguardando, de longe, o resultado da aventura, e levaram o que de melhor havia.

Sentindo, então, a injustiça, tornei à estrada, que deixara pelos carreiros da brenha.

Foi quando compreendi que, com o transvio em que me aberrara, não só perdera passos como me deixara burlar por outros mais sagazes.

Nem sempre a caça é de quem a levanta e mira, senão de quem a recolhe sorrateiramente. Mau é o caçador que vai sem perdigueiro ao campo, para que busque nas silvas o que seu tiro abate.

Por que me havia eu desviado do meu interesse para seguir cavaleiros de sonho? Outros, mais prudentes do que eu, não se haviam iludido com as vozes encantadas, prosseguindo, em marcha direita, pela estrada real, recolhendo os frutos das árvores, o ouro da terra e das areias úmidas e as gemas que rolam nos córregos e encalham nas luras.

Eu, na minha passagem tardia, apenas encontrei cascas de frutos, seixos e carcão. Pois não estava a estrada a reluzir, micante, crivada de piscas diamantinas e de palhetas de ouro, por que buscar cintilações de estrelas n’água e fogos efêmeros em túmulos? Não estava a Fortuna em meu caminho, por que deixá-la por seduções da brenha?

Por que preterir a terra pelas nuvens, os pregões de negócios por hinos e cantares? o fruto pela flor? o amor pela amizade? o útil pelo Belo? a tranquilidade pela aventura? o interesse pela Glória? Hoje, voltando os olhos à estrada que deixei por trilhas ínvias e escabrosas, lastimo o muito que perdi.

Agora é tarde para recuperar o que se foi, com o tempo.

A caravana dos dias passa uma só vez, feliz de quem a espera no caminho e segue-a.

Lembranças apenas me restaram, plantei-as num canteiro e floriram. São as economias que fiz na vida, saudades, milhões do meu cofre, fortuna do meu coração.

Vida e morte

Ninguém procure lembrar-se desse instante de que não fica vestígio na memória, como não deixa sulco no ar a luz que o cinde e aclara. Vida, irmã da Morte, sabe-se lá como desabrochas!

Como se nasce! Que impressão se recebe ao entrar no mundo? Será de espanto ou de dor o grito que, parecendo choro; repercute em alegria no coração das mães?

Porque não se conserva lembrança dessa hora inicial em que se emerge do amor à tona do martírio?

Porque não se há de ver na madrugada, quando a Natureza vibra em força fecunda e, orvalhada, sorri nas corolas abertas?

Nascer — quem se recorda do que foi essa vitória? Morrer, quem imagina o que será essa derrota?

O estertor da agonia não será, como o grito do nascimento: uma expressão de júbilo? este, o clamor triunfal pelo surto na Luz; aquele, o suspiro de alívio pelo regresso à Treva?

Porque, entre tantas flores, por mais que eu busque no meu Canteiro de saudades, não encontro a que desabrochou no princípio? Como encontrá-la se, nessa hora indecisa, eu ainda pairava, hesitante, entre a vida e a morte?

A semente só vinga quando se acama no solo e o solo em que floresce a saudade é a memória, ilha de recordações que surge na vastidão do Tempo, como as que se formam no oceano sobre rochedos nus, a grão e grão de terra, algas e babugens, arborescendo com os germens esparzidos pelos ventos ou rolados ao leu das vagas, que nelas se acolhem, medram, crescem e frondejam espessamente em bosques.

Entre todos os vivos não há esse que se lembre da hora em que nasceu.

A primeira palavra

Como aprendi eu a falar?

As palavras vieram comigo informes, desarticuladas e, pouco a pouco, as fui compondo, sílaba a sílaba, e aplicando-as aos respectivos seres e objetos que designavam.

A primeira que balbuciei foi o apelativo de minha mãe, por ser ela a imagem que eu tinha sempre diante dos olhos. Mal os abria do sono logo a encontrava a ninar-me, inclinada sobre o meu berço, como o céu se curva sobre a terra.

E essa palavra inicial foi a raiz de que nasceram todas as outras, como nascem as folhas na arvore à medida que se lhe vão distendendo os ramos.

Hoje, para encontrar esse nome, eu teria de recavar a terra e buscá-lo no seio da morte.

Que será feito de minha mãe?

Recolhendo-me, às vezes, em mim mesmo, vejo-a dentro do coração, ouço-a, sinto-a.

Terá ela desistido do céu para ficar comigo, animando-me nos meus desfalecimentos, consolando-me nas minhas tristezas, alvoroçando-se comigo nas minhas alegrias?

Há tantas coisas misteriosas que nos cercam e nos escapam à vista: a esperança, a fé, o amor, todos os sonhos, enfim. Quem os vê? E não estão conosco? Não são, a bem dizer, a essência mesma da vida?

Assim faz minha mãe dentro do meu coração e é por isso que, ainda hoje, nas minhas dores, nas minhas agonias, chamo por ela como a chamava quando, pequenino, dormia ao seu colo, alumiado por seus olhos meigos, acalentado por seu canto.

Mamãe! Este foi o primeiro nome que pronunciei, o nome flor, que ainda me perfuma a voz e que será, na minha hora derradeira, a palavra sacramental da extrema unção da minha boca.

E quando minh’alma sair da vida dolorosa não errará o caminho do céu, que mamãe conhece por o haver deixado para vir acompanhar-me e poder responder-me de dentro de mim, consoladoramente, quando a invoco nas minhas angústias, como a chamava em pequenino, fechando-a toda num vocábulo apertado, como toda a encerro, e viva, no meu coração: Mamãe!

Sono de criança

Quando, à noite, no estudo ou em meio do brinquedo, vinha a mim, silenciosa, a onda escura, eu deixava-me levar, contente, sem sentir as horas, que não existem na Eternidade. E o sono é um mergulho no Infinito.

Hoje, quando me abeiro do mar tenebroso, o frio das águas apavora-me. Avanço, recuo e, às vezes, deixo-me ficar na duna, olhando o abismo taciturno, com desejo de nele entrar, ao mesmo tempo, porém, temendo-o pelo silêncio.

Felizes as crianças que não têm consciência do perigo! Os velhos são acautelados porque sabem que a onda é pérfida.

Quão diferente é o sono dos infantes do veternoso torpor dos anciãos!

O sobressalto do sono na velhice é como a prudência do nadador fatigado que, mal perde o vau, torna à praia.

A criança, de um mergulho, atravessa o mar de uma a outra praia — desde o crepúsculo da noite até a raia da manhã.

Ao velho encurta-se lhe o fôlego. Volta e meia ei-lo à tona, desperto, respirando as horas aflitamente.

Dormir!... Ó minha mãe! sereia encantadora que me atraías cantando e me levavas nos braços para o abismo dos sonhos.

Quem me dera uma só daquelas noites em que eu dormia como quem morre! Mas terei eu fôlego para resistir a um mergulho profundo e tornar à flor da vida como outrora?

Não sabe a criança que, lá em baixo, nas covas do mar escuro, vive o polvo enlapado, e vai para o sono rindo.

Como eu invejo os pequeninos quando os vejo adormecidos! Onde estarão eles? junto de Deus, na eternidade. São leves, podem emergir, por mais que desçam — a própria vida os traz a flux.

Os velhos, com o peso dos anos, se descerem ao profundo... ai deles... Que se contentem com as ondas rasas da praia, que vão e vêm.

Ó! o meu sono de criança, o meu dormir de antanho. Nunca mais!

Só dormirei agora serenamente quando se fechar de todo a grande Noite, que começa a cair fria, calada e triste.

O presente do céu

Tendo eu apenas um par de sapatos se fosse à missa do Galo onde deixaria o velhinho o brinquedo que me trouxesse do céu? Para não ir fiz manha, queixando-me de dor de cabeça.

Minha mãe, acreditando no que lhe eu dizia, sobressaltou-se, achando-me febril; e obrigou-me a deitar-me.

Nem jantei! Que pena! Jantar de festa. E a noite!... Não me lembro de luar tão lindo como aquele, nem de tanta alegria em minha rua: ranchos de pastorinhas, gente cantando e tocando. Em casa, apenas a velha, que não saía á noite por ser quase cega, e eu, com a minha esperança.

Quando se fez silêncio levantei-me cautelosamente, pus os sapatos debaixo da cama, abrindo-os bem para que neles coubesse muita coisa, e deitei-me pensando em um tambor que vira no armarinho.

E rezei a Jesus para que me fizesse dormir, porque o velhinho não aparece enquanto as crianças velam.

Juro que o ouvi andar no telhado devagarinho, mas eram tantos brinquedos no meu pensamento, tantos! cada qual mais bonito que por mais que fizesse, não consegui adormecer. O relógio batia as horas. Um galo cantou, outro, e outro... Era o Natal. E eu acordado!

Rezei para dormir; rezei chorando, pedindo o sono como se pedisse a vida. Ouvi cantos de passarinhos, passos, rumor na casa. Era a velha que abria portas e janelas ao sol. Então desatei a chorar e adormeci com lágrimas nos olhos.

Acordei à voz de minha mãe e, saltando da cama, abracei-me com ela, dizendo-lhe a minha desventura: toda a santa noite em claro, sem pregar olho, ouvindo o velhinho andar no telhado. E mostrei-lhe os sapatos vazios.

Ela beijou-me chorando.

Mas a minha dor subiu de ponto quando, ouvindo um tambor na rua, corri à janela e dei com o menino, filho do ourives que morava defronte da minha casa, a rufar, com orgulho, o tambor que eu vira no armarinho e que tanto eu pedira a Jesus.

E tudo compreendi. O velhinho trouxera-o para mim, achando-me, porém, acordado passara adiante com ele, indo deixá-lo no sapato do menino riço.

E, desde essa noite, até hoje, espero em vão o presente do céu, que não chega porque, como trabalho até tarde, a Fortuna sempre me encontra acordado e passa, como o velhinho do Natal, que só deixa brinquedos nos sapatos das crianças adormecidas. E sempre os mais lindos são para as que dormem melhor, em leitos de pluma e linho, envoltos em cortinados, que é onde deve ser bom dormir.

Conto de fada

Os mortos falam em nós.

Quantas vezes, em quietude, ouço, dentro em mim, vozes flébeis!

Uma das que mais frequentam a minha saudade é a de certa velhinha que foi um dos encantos da minha infância. Baixa, magra, engelhadinha, quando agora a recordo a mim mesmo pergunto: “Não seria uma fada?”.

E vejo-a no seu quarto de paredes alvas, onde havia um bauzinho de couro tacheado, que ela escondia debaixo da cama de ferro, cama que nunca vi desfeita, prova evidente de que ela não se deitava porque, com certeza, em vez de dormir, à noite saía a correr mundos: fadar princesas, abençoar cabanas, desoprimir infelizes ou mostrar-se nos paços reais, moça e linda, com uma estrela na fronte, como a madrinha da Gata borralheira.

Ouço-a sempre.

Há dias falou-me a propósito da amizade e foram estas as suas palavras:

“A amizade é um fio de seda com que se ligam duas almas. Quem com ele cose deve puxá-lo de leve, delicadamente, para que se não esgarce e rebente, e a costura fique perfeita. Fio que, uma vez, estala, ainda que bem emendado, nele se há de sempre ver o nó e não passará no pano com a facilidade corredia com que desliza o inteiriço.

Assim a amizade. Quebrada e reatada, por mais que se dissimule o dissídio, sempre se há de sentir o ponto da reconciliação, ou emenda”.

Conto de fada, pois não é?

Os vinte e cinco irmãos

— Tens aqui vinte e cinco irmãos, disse a velha, mostrando-me, na cartilha, as letras do alfabeto. São muito amigos, trabalham juntos e, num instante, como os gênios das histórias, realizam os maiores prodígios. Queres ver? Imagina que precisas de um instrumento para revolveres a terra do jardim. Logo um dos irmãos, o p, avança, coloca-se à esquerda de uma das irmãs, o a, e tens o que desejas.

E a velha encarou-me interrogativamente, sorrindo, e eu, pela mussitação dos seus lábios, disse com alvoroço, como se houvesse adivinhado:

Pá!

— Então? exclamou a velha vitoriosa. Agora quero uma flor e quatro irmãos acodem com ela em triunfo. Vem o r, logo em seguida o o, depois o s e finalmente o a. Que flor é essa? Ro...

E eu concluí contente:

— Rosa!

Vês? E tudo mais é assim. Agora que já possuis o segredo vê se obténs o que vou pedir. Quero um rei, um palácio, um carro e um tambor.

Corri para o meu quarto, tranquei-me por dentro com a cartilha, que era o meu talismã e, pouco depois, saí com tudo que me pedira a velha, tendo apenas um erro no palácio, no qual pusera um s em vez de um c.

Consertado o edifício atirei-me a construções mais complicadas, e a velha, que era exigente, pediu-me um jardim com flores, um bosque, o céu estrelado e o mar e eu tudo obtive dos vinte e cinco irmãos.

Depois ela ensinou-me a invocá-los com a pena, que ela chamava a “varinha de condão”, e era só eu pensar e logo o meu pensamento aparecia escrito no papel.

E assim comecei a construir castelos de sonhos e tanto gosto tomei por obras tais que outra coisa não tenho feito em toda a minha vida.

Porque me havia de aparecer essa velha que me tirou da ignorância dando-me poder sobre os vinte e cinco irmãos?

Eu vivia feliz antes de os conhecer e se os não houvesse conhecido seria, sem dúvida, tão rico como certo milionário (que, nesse tempo, era do meu tamanho, andava roto e descalço) com quem muita vez, reparti o pão de rala da minha merenda e que hoje ri dos meus castelos que se desfazem no ar, como as riquezas das histórias maravilhosas, que não são mais do que palavras.

Devo toda a desventura da minha vida ao segredo que me transmitiu a velha, que era, de certo, feiticeira má.

Não fosse ela e eu hoje seria tão feliz como o ricaço que conheci menino, andrajoso e faminto que, por não ter quem lhe construísse castelos no ar, construiu-os, ele próprio, de boa pedra, em chão firme.

O ano novo

Falavam tanto do Ano Novo que eu resolvi esperar a meia noite.

Cabeceando de sono, aos empurrões d’aqui, d’ali, como uma folha no torvelim das águas, eu ia e vinha pela casa cheia, toda em flores e luzes, com a mesa posta e o presepe armado na cômoda. De quando em quando olhava o relógio, mas como não sabia ver as horas, perguntava a um e outro:

“Se ainda faltava muito para o Ano Novo entrar”.

Riam-se de mim. E o alvoroço ia a maior — risos e cantorias, jogos de prendas, danças. E não era só em minha casa: toda a rua estava em festa.

Passavam serenatas. Um rancho de pastorinhas, em marcha saracoteada, levou toda a gente de roldão às janelas e as loas soavam em vozes meigas deixando no ar um sulco de tristeza.

Sentei-me a um canto, bocejando, com os olhos a arderem-me, como mordidos de fumaça. Despertei assustado num rumor de loucura: eram brindes à mesa, beijos, bênçãos, abraços.

Fora, estouravam foguetes. Sinos repicavam ao longe.

Levantei-me estremunhado e cheguei à sala a tempo de ouvir as últimas pancadas do relógio.

E o Ano Novo? Onde estaria ele?

Como ninguém me atendia (pobre de mim!) vendo a mãe preta sentada à porta da cozinha, a cachimbar, de olhos no céu, interroguei-a.

— Que tolice, menino. Ano Novo... Ano Novo é como Nosso Senhor. Você já viu Nosso Senhor? Na missa, quando a campainha bate, é Ele que passa. No relógio, quando dá meia-noite, é o Ano Novo que entra. É assim.

Eu já fiz sessenta anos e ainda não vi o Ano Novo. Ouço o relógio, vejo a festa, mas o Ano mesmo nunca vi. O céu é um relógio grande.

No relógio de parede que é que a gente vê? os ponteiros andando de roda, um puxando o outro e os dois levando o Tempo. O sol e a lua não estão lá em cima? Pois então?... Bateu meia-noite. O galo não tarda a cantar. Vai dormir. O que você tem é sono. Eu, velha assim, ainda não vi o Ano Novo e você, desse tamaninho, já está com ânsia de ver. Vai dormir que é melhor. Quem dorme é como quem muda de roupa. Vai! Deus te abençoe.

E foi tudo que aprendi nessa noite grande dos Tempos e, até hoje, é tudo quanto dela sei.

Histórias

Era no tempo em que as torres das igrejas, em volta das quais voavam e revoavam pombos e andorinhas, plangiam Ave Marias: tempo em que se dizia, ao acender das luzes: “Louvado seja o Senhor!” e vozes, por toda a casa, respondiam: “Para sempre seja louvado!”

A claridade que se espalhava do lampião não era rica como a das lâmpadas de hoje, era, porém, mais íntima, mais nossa; era a luz mesma do lar, bem da família, como o lume da lenha, o pão da mesa e a água da bilha.

Essa era a hora mais feliz da minha vida, a de mais aconchego porque, com as portas fechadas, eu me sentia longe do mundo, na minha casa, só com os meus, sem mais ninguém, sem mais nada.

E punha-me a rondar a velhinha com solicitações nos olhos e sorrisos e ela, compreendendo o meu desejo, metia-se comigo a um canto e, baixinho, com a sua voz que tremia, cansada, começava:

“Era uma vez...”

Meu pai, debruçado à mesa, folheava grandes livros de assentamentos e minha mãe levava o serão manso e manso. Os grilos cantavam em guizeiro.

E na voz tremula da velhinha, como por uma ponte frágil, que oscilasse, transitavam gênios e gigantes, fadas e feiticeiras, cortejos de reis, caravanas de mercadores, quadrilhas de ladrões que iam ter a cidades maravilhosas, a cavernas atupidas de tesouros, ou desapareciam subitamente em florestas, quando se não entranhavam, com estrondo, pela terra dentro em explosões de chamas infernais.

Mas o relógio batia horas lentas, com sono.

Meu pai fechava os livros; mamãe guardava a costura: “Boa noite!” “Boa noite!” Eu recolhia-me ao meu quarto com a benção dos velhos e deitava-me.

Então, da sombra que me envolvia, isolando-me em mim mesmo, como a noite isolava a minha casa, saíam almas, surdiam vozes subtis, cimos mínimos, sussurros brandos. Os móveis crepitavam como lenha verde ao fogo.

O medo empolgava-me com a sua mão de ferro, fria, e eu punha-me a rezar baixinho ao meu Anjo da Guarda.

Andavam surdamente pela casa abrindo e fechando portas.

Que ruídos seriam aqueles que estralejavam no escuro? Seriam almas das coisas encantadas?

De quando em quando uma hora calha do relógio, morta. Que medo! Quando, de manhã, eu referia a meus pais o que vira e ouvira na escuridão, eles diziam, culpando a velha:

— São as tais histórias. Enchem-te a cabeça de coisas e é isso...

As tais histórias!... Nesse tempo (feliz tempo!) eram as histórias que me levavam o sono. E hoje, que as não ouço, porque não durmo? Dantes eram os rumores misteriosos que me apavoravam, à noite; agora o que me aterra é o silêncio, a treva quieta, asfixiante, lúgubre, no fundo da qual meu coração debate-se como um enterrado vivo num caixão de ferro.

Ninharias

Zombavam da coitada quando a viam às voltas com o baú de couro cheio de molambos. Pobre velhinha!

Vivia, por esmola, no quarto do quintal, de telha vã, mas asseado e cheiroso como uma capela, porque ela o trazia sempre defumado a alfazema, incenso, mirra e benjoim.

Eu que, constantemente, a procurava para ouvir-lhe as histórias — e como as contava, e lindas! — é que sei o que havia naquele baú de couro, sempre fechado à chave.

Eram retalhos de cassa e chita, pedaços de rendas, restos de franjas e cadilhos. Avelórios, retratos, maços de cartas, flores secas, um chocalho de prata... e que sei mais!

Uma farde, achava-se ela a arranjar o baú, quando, voltando-se para mim, disse:

— Vê? É por estas e outras que se riem de mim. Pois não hei de querer bem a estas lembranças? Este pedaço de filó é do véu do meu casamento. Este retalho de seda é de um vestido. Estas contas são de um colar do meu tempo de solteira. Cartas do meu marido, quando ainda era meu noivo. Flores do seu túmulo. E, falando, ia pondo de parte os objetos.

Tomando, porém, o chocalho de prata, mirou-o muito, longamente, e os olhos arrasaram-se lhe de lágrimas. Limpou-as devagarinho. Depois sorriu-me, mas com tal tristeza, que eu achei mais dor naquele sorriso que nas lágrimas.

— À noite, às vezes, mexendo neste baú, continuou a triste, tudo isto se anima, como por encanto e, em cada pedacinho de pano, em cada conta, num retrato vejo um dos meus dias com a mocidade e a ventura. Olhe aquela travesseirinha ali na cama. Foi do meu filho. Quando nela me deito sinto-o perto de mim e aperto-o nos braços. Acham que estou caducando. Que hei de fazer?...

Pobre velhinha!

Riam-se d’ela e das ninharias do seu baú de couro.

Bem faço eu que não abro o meu coração a ninguém!

A cigarra do cemitério

Quando mamãe me disse que eu iria, com outros meninos, ao enterro do filho da vizinha, não me contive de alegria. Que bom! Um passeio a carro! O cemitério devia ser longe, muito longe! e a tarde era linda.

Vesti-me às pressas, com a minha roupa nova, e atravessei a rua, onde já havia carros.

A casa estava cheia de gente. Sobre uma mesa, no meio da sala, entre velas, o caixão pequenino era um canteiro de flores. Senhoras choravam e mamãe, que se sentara a um canto, não tirava os olhos úmidos de mim.

Levantaram-me em braços para que eu visse o morto. Estava dormindo, de mãos postas, rezando em sonho à Nossa Senhora.

De repente, na rua, a voz do doceiro chamou a criançada; logo, porém, calou-se. Naturalmente alguém lhe disse que o seu pequenino freguês dormia, e ele, para o não despertar... Era tão bom, o doceiro!

Uma senhora apagou as velas, uma a uma... Fecharam o caixão e quatro meninos o levaram até a rua, onde um homem o tomou pondo-o no carro, bem amarrado com correias.

Em cima depositaram-lhe grinaldas.

Entramos tumultuosamente no caleche, eu e os meus companheiros.

Éramos seis ao todo. Que alegria na viagem!

Fomos olhando a cidade, vendo tudo, rindo de tudo, contentes daquele passeio festivo.

Quando chegamos ao cemitério entregaram-nos o caixão para que o levássemos e com que orgulho parti à frente, segurando a primeira argola.

Lindo, o cemitério, com os seus oratórios brancos, com as sepulturas que pareciam cobertas por lençóis lavados e anjos alvos guardando capelas de mármore. Era uma pequena cidade pálida, uma cidade sem sangue. As próprias árvores pareciam não ter raízes, como as de brinquedo, porque não se lhes sentia a vida, e as flores eram tristes e descoradas. Uma cruz enorme, sem Deus, como que tomava conta das cruzes pequeninas espalhadas em toda a parte. Por fim chegamos ao lugar do enterro.

Dois homens tomaram-nos o caixão, prenderam-no com correntes e desceram-no à cova. E todos, um a um, atiraram sobre ele, pazadas de uma terra branca, terra que devia crescer, subindo à flor da cova, para forrá-la de alvor, à maneira do que eu via nas outras sepulturas.

Passarinhos e borboletas esvoaçavam. Anoitecia.

Voltamos.

Só então, pensei nas almas. Era dali que elas saíam, à noite, para assombrar a gente.

Uma cigarra pôs-se a chiar, depois a chamar, aos psios!

Estremeci de medo, com vontade de chorar. Aquela cigarra a chamar...

Nunca mais deixei de ouvi-la, ouço-a sempre, sempre! e, um dia, como foi o menino, como vão todos, hei de eu ir também à sua voz silvante.

E, sempre que via passar um enterro, lembrava-me daquela tarde e dizia comigo, estarrecidamente:

— “Aí vai mais um chamado pela cigarra!”

Porque, tão pequenino, me haviam de mandar ao cemitério para que eu trouxesse no coração, onde não cessa de soar, a voz terrível da cigarra eterna?

Piedade

O homem acendeu o cigarro, atirou o fósforo ao chão e, tomando, de novo, as cartas, lançou uma baforada. Meditou um momento e, em voz surda, acusou o jogo.

Os parceiros — e, entre eles, meu pai, — um a um, responderam no mesmo tom soturno, aceitando.

Súbito, como se alguém o chamasse, o homem voltou-se de golpe e, dum salto, quase derrubando a cadeira, foi à pedra do limiar onde o fósforo, que era de cera, vasquejava em chama lívida, e soprou-a.

Tornando à mesa, disse sentenciosamente aos companheiros:

— Não se deve deixar a luz penar.

Uma noite despertei em sobressalto como se me sacudissem. Na penumbra do meu quarto bailavam sombras sinistras no soalho e nas paredes e crepitações estalidavam crebras, como sal ao fogo.

Tive medo. Sentei-me na cama com o coração transido e olhava airadamente em volta quando vi minha mãe aparecer à porta, pé ante pé, descalça, movendo-se com o mesmo silêncio com que as sombras longas bailavam sinistramente no soalho e nas paredes.

Perguntei espavorido:

— Que é?!

E ela, vendo-me espantado, tranquilizou-me carinhosamente com a sua voz suave:

— Não é nada. Dorme. É a lamparina que está morrendo. O lampião fica aceso na sala de jantar e eu estou aqui perto. Vou apagar a lamparina porque não se deve deixar a luz penar. E soprou-a.

E ela? Tantos dias e tantas noites a morrer pouco a pouco. Médicos entrando e saindo, gente de casa, vizinhos revezando-se lhe à cabeceira dia e noite, a vela pronta para alumiá-la no terrível transe, ludo à espera da morte e a mísera a agonizar arquejando com um sarrido áspero, crepitante, que se ouvia em toda a casa.

Tantos dias! tantas noites!

E a coitada, quase em esqueleto, num fio de voz pedia de mãos postas, pedia a todos que rezassem a Deus, a nossa Senhora, aos santos para que a levassem; pediu ao médico, como uma obra de misericórdia, pediu ao padre que a confessou e ungiu e gemia com lágrimas nos olhos fundos:

“Tenham pena de mim!... Não posso mais!”

Pobre velha!

Entretanto lá estava o homem que deixara o jogo para apagar o fósforo bruxuleante; lá estava minha mãe que se levantara alta noite, descalça, e fora ao meu quarto apagar a lamparina que tremeluzia e estalidava em morrão.

E nenhum deles atendia à pobrezinha

Tanta pena da luz e uma criatura humana ali sofrendo dias e noites, pedindo a morte de mãos postas e ninguém que se apiedasse e a socorresse.

E era tão pouco o que lhe restava de vida que o sopro de uma criança... Mas não houve em tanta gente uma alma caridosa que atendesse aos rogos da infeliz.

In Extremis

Dizem que na hora da morte toda a vida vivida reflui tumultuosamente à tona da memória.

Se assim é muito deve sofrer o moribundo nesse instante, imenso e breve, largo e rápido como o relumbre do relâmpago que tudo alumia no frêmito de um segundo. Mas será tanta a claridade que alcance até a infância?

Aparecerão nela todos os dias e todas as noites, todas as horas com os seus minutos pequeninos e cada minuto com o que nele transitou?

Se é verdade que a vida ressurge nas extremas da morte, como quem acompanha à porta um hóspede que se retira, como deve ser aflitivo esse transe com o atropelo das recordações que acodem à despedida!

Toda a vida em um segundo como o oceano em uma gota d’água!

É por isso, talvez, que se morre aos arrancos, como a chama da lâmpada vacila aos bruxuleios intermitentes, acendendo-se a ímpetos, ansiosa, até de todo extinguir-se, restando apenas o morrão, como tétrico esqueleto.

É que, ao morrer, não se sai apenas de um instante, mas de toda a vida, como o que se retira não deixa unicamente o limiar, mas a casa toda. E assim como, nas vascas, cada crepitação da chama é um esforço para resistir acesa, cada hausto do moribundo é um folego supremo.

Ai! de nós se não fosse tão rápido esse profundo adeus! não por medo da morte, mas por saudade da vida!

Não é para evitar fazer-se morrão que a chama tremula aflita, mas para manter-se em lume, acesa em claridade.

No último vasquejo a luz agonizante abre-se em esplendor instantâneo, ilumina tudo em volta e apaga-se.

Assim nós.

A camisola da árvore

Mal o sol começava a luzir e a lavadeira, cantando, punha-se a estender a roupa no coradouro, ia também a árvore espalhando pela relva a sua sombra aberta em crivo.

Era ali que me aprazia isolar-me e, muito a meu grado, ficava horas e horas com os meus brinquedos ou entretido a ver as formigas em faina, carregando achegas.

Cruzavam-se em duas filas. Muitas detinham-se comunicando-se como conhecidos que conversassem; outras retrocediam aforçuradas juntavam-se e, combinadamente, tomavam rumo em grupo. Aonde e a que iriam elas com tamanha pressa?

Ao cair da tarde, quando as cigarras começavam a cantar, a árvore recolhia a sombra que estendera. E eu dizia, brincando:

“Estás apanhando a tua camisola de dormir que puseste a enxugar ao sol?...” E a árvore sussurrava como se me respondesse.

A lavadeira, por sua vez, recolhia a roupa do coradouro.

À noite, deitado, eu pensava na árvore e dizia, contente de a saber agasalhada:

“Ela vestiu também a sua camisola escura, enxuta ao sol, camisola em que me deito e rolo, como me deitava, em pequeno, na barra da saia de minha mãe”.

Nas noites de luar eu tinha inveja da árvore, vendo-a vestida com uma camisa que parecia feita de fios de prata.

Mas em noites de chuva, que pena eu tinha da mísera que tiritava. Como devia ter frio, toda encharcada e com o vento a rasgar-lhe a roupa!

E quando, à volta do sol, eu via, de novo, a sombra na relva, com as abertas dos escacilhos da fronde, tinha vontade de pedir a Nosso Senhor que mandasse um anjo remendar a camisola da árvore rasgada pelos temporais.

Em recolhimento

A luz intensa atordoa-me como a multidão.

Nos dias estivais, à claridade vivida o meu espirito dispersa-se no esplendor como os átomos nos raios do sol.

Nos dias sombrios concentro-me, encerro-me no meu “eu”, fecho-me por dentro no coração.

Como o que fica em casa no tempo invernoso, ouvindo a trepidação monótona da chuva e o refrulho do vento nas árvores, distrai-se arranjando o canto em que, de preferência assiste, pondo em ordem armários e gavetas, relendo cartas antigas, rasgando papéis inúteis, assim faço eu nos dias melancólicos, recordando.

Quantas lembranças, então, se me deparam nos escaninhos da memória! Quantas reminiscências! velharias esquecidas que, certamente, nunca mais me viriam à alma se a tristeza me não prendesse na solidão e a necessidade de movimento me não levasse a revolver o passado.

E na quiete em que fico, debruçado sobre o abismo das ilusões, revejo figuras mortas, felicidades e desventuras, horas alegres, horas tristes, como na insônia, de olhos abertos no escuro, subitamente nos deslumbramos com a pirotecnia mirífica de halos de ouro e nimbos multicores, vermiculando iterativamente a treva como fogos fátuos nos cemitérios.

Três sorrisos

Ia eu correndo quando avistei a nota na calçada, justamente no ponto onde batia mais em cheio a luz do gás. Estaquei de golpe, sôfrego, relanceando assustadamente um olhar em volta. Ninguém!

Que alegria! Nem que eu houvesse achado um talismã!

Deitei, de novo, a correr, então fugindo, para que me não visse alguém e dissesse, denunciando-me:

“Foi aquele que achou. Aquele menino que ali vai”.

Pensei em trocar a nota no armarinho. Aonde ia; desisti, porém, da ideia receoso de que o homem desconfiasse de mim, vendo-me com tanto dinheiro. E como escondê-lo? Onde? E papai? E mamãe? Que lhes diria eu?

“Como é difícil justificar uma fortuna achada assim”, pensava eu, quando, de volta à casa, vi um grupo na calçada: uma mulher e dois meninos. Os três girogiravam curvados, à cata de alguma coisa. A mulher falava em tom plangente e um dos pequenos soluçava.

Era a viúva da estalagem, uma coitada, mãe de três filhos, um deles aleijadinho. Entre os curiosos, que rodeavam a triste família, alguém perguntou:

— Que foi?

E a mulher explicou, quase chorando:

— Dez mil réis, meu senhor.

Mandei este pequeno à botica, buscar um remédio para o irmão, que está ardendo em febre, e o demoninho perdeu o dinheiro. Dez mil réis! Suspirou.

Um instante mais e os curiosos foram-se. Ficaram os três girogirando da calçada à sarjeta, a mulher sempre a lastimar-se e o pequeno a soluçar.

De repente a coitada desatou em pranto e, tomando a mão do menor dos filhos, foi-se muito infeliz.

Encheram-se me os olhos d’água. Meus lindos sonhos! Todo um exército de soldadinhos de chumbo e tantas outras coisas mais!

Deitei a correr alcançando a infeliz à porta da estalagem.

— É uma nota que a senhora está procurando? perguntei.

Ela voltou-se, encarou-me a fito e, com as lágrimas pela face magra, afirmou: que sim.

— Está aqui, disse eu. Achei-a na calçada, ali perto do lampião.

A mísera balbuciou umas palavras trêmulas, ainda por entre lagrimas, porém, já em sorriso; o pequeno que soluçava pôs-se a saltar e a rir e o menor, agarrando-se à mãe, encarou-me, a princípio espantado, como se eu os estivesse ameaçando; logo depois, porém, sorriu.

Houve um instante de comovido silêncio e eu, contente de mim, já me retirava quando a mulher me chamou enternecida e, risonha, abraçando-me d’encontro ao peito magro, disse-me baixinho:

— Deus te abençoe, meu filho. Vai! Nem sabes o bem que fizeste a uma infeliz. Deus te abençoe

E foi assim que empreguei a minha fortuna. Pensava em trocá-la em moedas no armarinho e troquei-a à porta da estalagem por três sorrisos tirados do desespero, três sorrisos que nunca mais esqueci e nunca esquecerei porque, de vez em quando, abrem-se me na memória como três lindas flores orvalhadas de lágrimas.

O meu talismã

O meu reino!

Tinha eu, então, um talismã, graças ao qual os meus desejos realizavam-se como se nos apresenta à vista a luz, mal acordamos. O espaço era para mim menos que a boca para um beijo e eu balouçava-me entre o passado e o futuro, como se embala uma criança numa redouça, entre árvores.

Em que instante eu construía o meu reino com altas torres, palácios, templos suntuosos!

Para obter prodígios tais encantoava-me solitário, encerrando-me no silêncio, que é uma floresta encantada.

Os que me viam em tais horas lamentavam o ser eu tão triste.

Triste! Vissem eles as magnificências do meu reino, a beleza das minhas escravas, o esplendor galhardo dos meus cavaleiros e os profundos subterrâneos onde se acumulavam os meus tesouros.

Fulgurava o meu palácio de ouro e ônix ressoando suavemente músicas e vozes e as ancilas levípedes borboleteavam em danças. Bastava, porém, o mais leve bulício para que tudo se dissolvesse e eu ressurgisse na realidade monótona da vida.

Logo, porém, que se restabelecia o silêncio reerguiam-se as construções, regressavam aereamente os coros lânguidos, reapareciam os garbosos cavaleiros, reafinavam-se as músicas suaves e tudo resplandecia de novo.

Rei no silencio... Que sou eu no tumulto?

Não será mais feliz a gota d’água num lesim de rocha, refletindo serenamente o céu, do que a vaga no atropelado oceano?

Como eu vivia afortunadamente dentro da fantasia, entre ilusões e sonhos!

Ouvindo, um dia, vozes sedutoras troquei o meu talismã pelo que chamam: o esplendor da vida. Ai de mim... Tudo falso, tudo engano, hipocrisia e desilusões.

Aladinos, não deis ouvidos ao pregão do mercador da rua. Esse foi o meu erro e, por ele, perdi a minha lâmpada maravilhosa.

A Ceguinha

Não se me desvaneceu até hoje na memória — e, já agora, de certo, não se desvanecerá mais, — a impressão que me causou aquela cega com o filho ao colo. Recordo-a e logo a vejo como se a tivesse presente, tal como a vi na tarde em que a visitei com minha mãe.

Baixinha, magra, de um moreno barrento, com sinais de bexigas; feia. Sorria sempre e os olhos, brancos como dois ovos de passarinho, rolavam inquietos, à maneira de borbulhas em fervura. Lindos eram os cabelos negros, em duas grossas tranças, que lhe chegavam à cinta.

Mamãe abraçou-a, beijou-a; beijou o pequenino que ela acalentava. E puseram-se a falar dele.

Que aborrecimento! As cigarras chiavam no bambual. De quando em quando um cão latia, ao longe. Que vontade de sair, correr nos matos, trepar nas árvores, brincar ao sol! E a cega a falar do filho, a elogiar-lhe a beleza, a robustez, a citar-lhe as graças e as travessuras: “que já se voltava no berço, que puxava o cortinado e que a conhecia pela voz.”

Não me contive e desatei a rir. Ela riu também. Mamãe, porém, fez-me um sinal severo, ameaçando-me.

E a cega, como se houvesse percebido o que se dera, disse:

— Deixe-o rir. É criança. Ouvindo-me falar do pequenino, eu assim, é natural que ria. Tem razão e não tem. Tem-na, porque sou cega. Não a tem, porque sou mãe. É uma criança, não compreende, não pode compreender. A senhora, sim, porque também é mãe. Que é o filho, senão nós mesmas? Sentimo-lo, ainda que o não vejamos, como sentimos o coração invisível. Um é a vida, outro o amor. Não é verdade? O olhar das mães para os filhos não sai dos olhos, sai da alma. Deixe-o rir.

Duas lágrimas rolaram comovidamente pelo rosto de minha mãe.

Hoje, quando me lembro da pobre ceguinha e do que ela disse desculpando o meu riso da criança, enchem-se me os olhos d’água.

Reminiscências

De quando em quando ressurgem-me na memória lembranças de outras vidas, como em vasos que contiveram essências, servindo a outras posteriormente, aparece, por vezes, vago, o aroma das primitivas.

Se a saudade é vestígio do que foi, essas recordações que se levantam em nós são como poeira de caminhos percorridos.

E quem não a traz em si? Quem não sente, de vez em quando, reminiscências de um passado que não é o mesmo de onde viemos pelos anos atuais, mas muito mais remoto, um passado d'além do évo em que transitamos?

Essas saudades não jazem no coração: são livres, voam em volta de nós como as nuvens no espaço.

Quem nos diz que elas não são o que já fomos, como as nuvens já foram rios, lagos, pântanos, oceano?

Quem nos afirma que não são lembranças de eras transcorridas, sobre as quais adormecemos quando nos soou a hora noturna, acordando com a madrugada para viver, de novo, ao sol e, de novo, dormir?

Se me recordo do que fui outrora é natural que, mais tarde, me lembre do que hoje sou.

E os dias passarão continuamente e eu voltarei com eles como os minutos voltam com as horas, as horas com os dias, os dias com as semanas, as semanas com os meses, os meses com os anos, os anos com os séculos enquanto girarem na eternidade, que é o mostrador do tempo infinito, impassível, parado, espelhando a vida, que é o movimento.

A docerinha

Pequenina e magra, com os ossos à flor da pele cor de folha seca, uns olhos grandes, negros, tristes, entre pestanas longas, como dois corvos pousados em velho muro hirsuto de ervas, mirando d’alto a boca, vermelha como carniça, descalça e esmolambada, fizesse sol ou chovesse, todas as tardes a mulatinha passava pela minha rua, apregoando.

Era-lhe a voz tão meiga, às vezes tão dolorida, que parecia vir trêmula, chorando do fundo de uma agonia.

Uma tarde chamei-a.

A coitadinha veio sorridente e à pressa e, descobrindo o tabuleiro, quase vazio, mostrou-me um resto de doces bolorentos.

Recusei-os. Mas a coitada fitou-me de tal modo, com tanta ternura no olhar triste, que tive pena e deixei a moeda no tabuleiro.

— Tire um doce, disse ela.

— Não! respondi com asco.

— Por quê?

— Não quero.

Ela, então, tomando humildemente a moeda, devolveu-na.

— Guarde-a para você, disse-lhe eu. É sua.

Os olhos grandes da criança tornaram-se ainda maiores, naturalmente para conterem o espanto que lhe causara a minha generosidade, depois brilharam enternecidos com um esmalte cristalino que se desfez em lágrimas.

Fechei a janela para não chorar.

E foi assim que, com uma moedinha de vintém, adquiri doçura para toda a minha vida, doçura que sinto n’alma toda a vez que me lembro do olhar de gratidão da mulatinha que, sem dúvida, só naquela tarde, desde que, esmolambada e descalça, vendia doces ao sol e à chuva, encontrara alguém que se compadecesse dela.

Água parada

Descem os rios para o mar. As paisagens que espelham não se lhes fixam na superfície: ora é um bosque que a em sombra, ora é o azul do céu que a esmalta. Aqui, a faiscação do céu, penhas negras além; imagens efêmeras: a vida.

Certas águas, porém, desviam-se do curso e remoram em poças, cobertas de folhas mortas.

Da correnteza da minha vida destacou-se um breve instante que parou no tempo. Envelheço a caminho da morte e esse episódio da minha infância aí queda sereno, à margem.

Que há de extraordinário em tal momento para que assim perdure quando outros, tantos! Passaram sem deixar lembrança?

Debruço-me sobre ele e vejo-me menino, brincando junto de uma árvore raquítica, única verdura num quintalejo seco e, a uma janela, d’olhos no céu pálido, a face triste na mão, minha mãe, a chorar.

E cena tão simples gravou-se me na memória como a água de um rio que, desviada do caudal, adormecesse em estagno, refletindo apenas, e perpetuamente, uma árvore morta.

A roseira

No pequeno canteiro era a única roseira, em compensação valia por um rosal. Às vezes tantas eram nela as rosas que as folhas desapareciam e a planta ficava como um imenso ramo.

Era o encanto do meu pai, e a ninguém consentia ele que a tocasse. Tratava-a ele só e até para colher as rosas havia de ser ele, ninguém mais! E quando a roseira florescia toda a nossa pequenina casa enchia-se de aroma.

Que abundancia de rosas! Eram rosas para o oratório, rosas para as jarras da sala, rosas enfeitando a mesa de jantar, rosas em todos os quartos e ainda sabiam rosas para a vizinhança.

Se eu me aproximava da planta logo meu pai bradava carrancudo:

“Não lhe ponhas a mão!”

Um domingo — em casa ficara apenas a velhinha — condoído, da sorte da roseira, resolvi prestar-lhe um benefício:

“Coitada! Tão boa e tão crivada de espinhos! Sempre coberta de rosas apesar de tamanho sofrimento. Parece uma santa a fazer milagres com o corpo atravessado de setas”.

Assim pensando muni-me de uma faca e pus-me a raspar a planta, despontando-a, desde o mais raso do tronco até o ramo mais tênue.

Que linda ficou, lisa e branca!

Deitei-me cedo e adormeci pensando na surpresa que meu pai teria de manhã quando a visse sem um só espinho.

Ai de mim... Que despertar o meu!

“Venham ver o que fez esse perverso!...” E, arrastado furiosamente até o canteiro vi, com efeito, a planta agonizante: as rosas fanavam-se lânguidas, desfolhando-se, os botões pendiam flácidos, as folhas murchas encolhiam-se e os ramos vergavam amolecidamente.

— Olha a tua maldade! rugiu meu pai.

— A minha maldade!? Sim... Fui eu. Mas se assim fiz não foi por maldade, foi de pena. Sofria tanto, a coitada! Tu só lhe tiravas as rosas sem te importares com os espinhos. Eu cuidei que lhe fazia bem. Não foi por mal.

E chorava com remorso do que via: a morte da planta e a tristeza do meu pobre pai. Quis fazer bem e... O que é a gente não conhecer a vida.

É talvez, por ser como o coração, que a roseira o reproduz nas pétalas das suas flores.

Também o coração desabrocha em alegria, como se abre em rosas a roseira, mas o riso vibra e passa, efêmero como a flor. As dores, essas, quem as quiser tirar do coração ha de arrancar-lhe a vida, como eu fiz à roseira raspando-lhe os espinhos.

No consultório

Como deve ser grande a memória! Maior, de certo, do que a terra e o mar, grande como o céu para conter tanta coisa, como contém.

E eu olhava, d’alto abaixo, a biblioteca do velho médico, as enormes estantes que chegavam ao teto, atochadas de livros; e livros ainda às rimas sobre os móveis, pelo chão, tantos!... Tê-los ia ele a todos na cabeça? Sim, devia tê-los para saber o que sabia.

Como deve ser grande a memória! Pensava eu sentado a um canto, na penumbra da biblioteca. Se a gente pudesse vê-la com tudo que ela encerra!... Mas a memória é como o fundo do mar.

Pequenina para caber na cabeça é imensa visto que abarca toda a natureza e a vida. Deve ser como os olhos que, do tamanho que são, abrangem tudo.

Mas os olhos não prendem — são como as águas e os espelhos que apenas refletem o que se lhes defronta e a memória é como a terra, que tudo conserva.

Brincava eu com tais pensamentos quando o médico apareceu. Era um velhinho magro, calvo, de óculos. Veio a mim vagarosamente, sentou-se a meu lado, pôs-se a examinar-me a perna encolhida e eu, olhando-lhe a calva, franjada de falripas brancas, sorria maravilhado, pensando no mundo que devia haver ali dentro: todo o tempo d’aquela vida e toda a essência d’aqueles livros.

Surpreendendo-me a rir, meu pai franziu o sobrolho e acenou-me, severo, para que me contivesse.

“Falta de respeito, disse-me depois; rir de um sábio como aquele”.

Soubesse ele do que eu me ria.

A boa nova

Livre das muletas, levada à igreja a perna de cera, comprada com o dinheiro que eu andara a esmolar, descalço, em companhia de minha mãe que, para tal voto, me vestira de azul e me encacheara os cabelos louros, fiquei ansiosamente à espera de que papai cumprisse a recomendação do médico: um mês na roça para eu convalescer da paralisia que me entrevara.

Todas as tardes, ao vê-lo entrar, eu esperava a boa nova. Nada.

Nem palavra. Continuávamos na mesma casa, no rame-rame de sempre.

À noite, na cama, eu punha-me a imaginar a casa da roça longe, além das montanhas, no meio de um bosque como os que eu via nas estampas, cheio de rios, lagos e cachoeiras.

E o meu pensamento ia-se para a mata, para as águas, para o desconhecido.

Sonho não era porque tudo isso se passava em vigília. O pensamento ia-se, mas sem deixar-me, como o papagaio sobe ao ar preso a um fio de linha.

Ao menor ruído que faziam ou se me chamavam; lá tornava ele à realidade, rápido como criança traquinas que teme ser apanhada em travessura.

E os dias passavam longos e melancólicos sobre aquela esperança imóvel.

E se eu recaísse? Se a perna, de novo, se me encolhesse?! O médico tanto insistira pela roça: campo, arvoredo, sol, ar livre... E eu ali naquela casa acanhada, naquela rua estreita...

Uma noite ouvi do meu quarto papai dizer à mamãe, como em segredo:

— A casa é pequena, de telha vã, mas para um mês ou dois serve. Há muito onde ele brincar. Levaremos apenas o indispensável; camas, uma mesa, quatro a seis cadeiras, louça, talheres... É nos Trapicheiros.

Trapicheiros!... Onde seria? De certo muito longe.

E o meu pensamento lá foi e o sono ficou à espera dele até tarde.

Passava da meia noite quando adormeci. De manhã, lembrando-me do que ouvira, temi que houvesse apenas sonhado.

Ter-se-ia o pensamento aproveitado do meu sono para ir ao tal sítio, como certos meninos fogem de casa, à noite, para brincar na vizinhança? Mas não! Mamãe andava a dar ordens, lidando com a criada. Ao ver-me foi logo dizendo, contente, ela também:

— Vamos para os Trapicheiros. Que alegria! O coração pôs-se me a saltar no peito como uma criança a quem se dá um brinquedo.

Minha escola primária

Do povoado, na várzea, ouvia-se o escachoar das águas rolando do monte por meandros profundos de lapedo. Casas, umas cinco ou seis, aqui, ali, a esmo, sem muro ou cerca que as separasse, todas em pleno gozo das terras vastas de campo e monte. Os moradores, gente simples, viviam na maior intimidade, como se constituíssem uma só família, e, assim como a gente, os animais, à solta.

À tarde, com os homens que tornavam do serviço, com as mulheres que desciam do lavadouro, com as crianças afogueadas de saltos e correrias, os animais vinham vindo, acercando-se, cada qual, da morada do seu dono.

Anoitecia devagarinho. Luzes assinalavam as casas e apareciam vagalumes faiscando na escuridão.

Na doçura da noite enlanguesciam descantes, vibravam sons de violões e violas, estrugiam casquinadas e cantarolas de crianças e era contínuo o gargarizo marulhoso das águas da torrente. De quando em quando um cão latia.

Pouco a pouco iam os rumores serenando.

Uma a uma apagavam-se as luzes. E o silêncio estendia-se, grande como a natureza, rondado cintilantemente pelos vagalumes.

Foi em tal sítio que aprendi a amar a terra e o céu e, entre eles, pressenti o mistério. A minha escola primária foi aquela paisagem.

Ali interpretei, a meu modo, o sussurro das árvores, o gorjeio dos pássaros, o murmúrio das águas, a grazina dos insetos e procurei penetrar o segredo das estrelas.

Ali, todas as histórias que eu, até então, ouvira, desenvolveram-se na imaginação e eu as senti como realidades: contos de fadas, chácaras e solaus, lendas de mártires de assombrações.

Foi naquela estância de simplicidade, perto da mata, junto das águas sonoras, vendo nascer e vendo morrer o dia, ouvindo os cochichos sutis das moitas, sentindo o fresco aroma das silvas, foi ali que me iniciei para o meu destino; foi ali que achei o talismã com que tenho atravessado a vida dentro da ilusão, que me não deixa ver a realidade triste.

Não fosse a minha doença e eu não teria tido a ventura de viver os dias que vivi, tão longe do tumulto, tão dentro do silêncio, às vezes tão perto do céu, no monte, que eu via a meus pés nuvens pairando acima da floresta e, muito em baixo, como um presepe, tudo pequenino, as casas, a gente, os animais e as fitas brancas dos caminhos estendidas no campo aveludado.

A comida do fogo

O meu companheiro de aventuras, nascido e criado naqueles pagos, era um menino forte e corajoso, pouco mais velho do que eu. Chamava-se Luiz. Para fazer um bodoque, armar uma arapuca, descobrir um ninho, romper mato, não havia outro. Medo, só de saci, de mais nada.

Combinamos que eu lhe daria lições de leitura e escrita e ele me poria ao corrente das coisas da montanha. E foi assim que vi tudo que havia naquelas brenhas — as fontes, as velhas árvores altas, carregadas de parasitas; soube onde havia grumixamas, araçás, silvas de framboesas e pitangueiras; esfuraquei, a bambu, cortiços de abelhas; ataquei a pedradas casas de maribondos; desmantelei cupins, entupi covis, que ele dizia serem de tatus, nos quais se não atrevia a meter a mão com receio de cobras.

Sentados em pedras, à beira d’água, chapejando com os pés na correnteza, ou à sombra de alguma árvore ouvindo os passarinhos, conversávamos longamente. Eu falava-lhe da cidade; ele contava-me histórias da mata: bichos maus que matara, assombrações que vira, vozes estranhas que escutara. E eu invejava-lhe os grandes feitos. Aquele menino, para mim, valia mais, muito mais! do que Joãozinho da Espada ou o Pequeno Polegar.

Certa manhã, íamos por um carreiro mal batido quando, de improviso, ele me propôs:

— Vamos ver os carvoeiros?

Os carvoeiros!... O que eu, de golpe, imaginei, meu Deus! lembrando-me de tantas histórias. Concordei alegre. Fomos.

Caminho, a bem dizer, não havia — tudo era cerrado. Sentia-se, entretanto, pela recurva dos arbustos e pelo sulco machucado da macega, que por ali passara gente ou animal.

O sol coava-se das franças em moedinhas de ouro e, com o chilreio vivaz da passarada, dir-se-ia que eram elas que tilintavam. Águas cochichavam. De repente Luiz exclamou:

— Lá estão eles! E, por entre as árvores, mostrou-me ao alto, uma fumacinha azul, que nem uma lira cortada do céu e presa, em ínfula, nos ramos, tremulando ao vento. Fomos indo. Que festiva grazina de cigarras!.

Não nos custou alcançar os carvoeiros. Eram três. Um deles conhecia Luiz. Rodeavam uma cova, uma grande cova que era de onde subia a fumaça que avistáramos. Aproximei-me tímido, olhando sem compreender o que ali faziam aqueles homens. O mais velho dos três, notando o meu espanto, perguntou-me sorrindo:

— Sabe que é que estamos fazendo?

Não respondi e ele explicou, risonho:

— Estamos preparando a comida do fogo. Somos nós que o alimentamos no fogão para que ele cozinhe o que comemos. Ninguém trabalha sem comer, não é assim? e o fogo quer a sua comidinha bem-feita, e somos nós que a fazemos. E o conhecido de Luiz ajuntou, também sorrindo:

— Em casa ele tem a comida cozida: esta que estamos cozinhando, o carvão, é o fogo manso, que vive com a gente. Mas quando se apanha solto é uma fera: come tudo cru — come as árvores, come os matos, come as roças e, se a gente não acode a tempo, dando-lhe em cima, desce por aí abaixo e vai comer os ranchinhos dos pobres, as casas e é até capaz de comer toda a cidade. Nós preparamos comida para o fogo manso, o fogo de casa; o bravo é que nem onça que come gente viva.

Rubra labareda espadanou à flor da cova e um dos carvoeiros atirou-lhe em cima uma porção de terra, dizendo:

—Eh! eh! Se esse sai por aí, assim danado, leva tudo duma vez.

Quando agora contemplo a montanha que, na meninice, conheci frondosa, e vejo-a devastada, lembro-me da história dos carvoeiros e digo comigo:

— Isso, de certo, foi obra de alguma labareda que fugiu da cova e devorou a floresta, deixando apenas os ossos, que são as rochas encarvoadas.

Luar

Quantos luares tenho eu visto, quantos! E com a lua, talvez, maior, aberta em pleno e, todavia, desse apenas me lembro e, até hoje, sinto n’alma o seu prestígio mágico. Por quê? Sem dúvida porque, nessa noite, ela apareceu desnuda, tal como surgiu no céu no instante da criação.

Nem uma nesga de nuvem a vendá-la. Estrelas, poucas: uma aqui, outra ali, dispersas. Da estrada dos Reis Magos nem vestígio.

Nevoa alguma no ar e pirilampos, sempre ali em enxames, raros, então, timidamente cintilavam.

A claridade brilhava livre em toda a parte, em tudo: nos caminhos alvacentos, nas rochas tornadas marmóreas, nas águas tremeluzentes, no arvoredo alvorado, no campo, branco como areai de praia.

Na cidade, com tanta gente e luzes, era natural que, por pudor, a lua se compusesse mais recatadamente; ali, porém, em tão humilde póvoa, só de palhiços e, quase todos, já adormecidos, era como se ela se achasse em plena solidão.

De mim, uma criança, que vergonha podia ela ter, lá em cima?

E até hoje, quando recordo essa noite, tenho certeza de que surpreendi a lua tal qual saiu das mãos de Deus: nua, como a viram deslumbradamente Adão e Eva no Paraíso.

O mealheiro

— Nosso Senhor, que é Nosso Senhor, trabalha e economiza, quanto mais nós. Cedinho, de madrugada, lá está ele no céu, ajuntando ouro para cunhar a moeda com que faz os gastos da vida.

— E que moeda é essa? perguntei.

E a velha, ajustando os óculos de ferro:

— O sol, meu filho. Pois você não sabe?

— E Nosso Senhor trabalha?

— Se trabalha!? Pois então!

Olha... O céu está cheio de nuvens sujas; a terra está coberta de folhas mortas. Logo se levanta o vento, que é a vassoura de Nosso Senhor, põe-se a varrer, e limpa tudo.

Sendo rico, como é, Nosso Senhor não desperdiça o mais pequenino grão de terra: tudo aproveita, tudo!

Vai um homem de jornada, apanha uma fruta, come-a e atira o caroço fora. Nosso Senhor logo arranja meio de o aproveitar no próprio chão em que ele caiu. Anos depois, aquilo que o homem desprezou, rebenta em árvore, cresce, dá flor e carrega-se de frutos, como as laranjeiras no São João.

Os rios estão correndo, correndo, não é verdade? parece que vão perdidos. Olha o mar. Lá estão todos eles entrando no mar como dinheiro em caixa. E assim é tudo. A Natureza trabalha, tem o seu salário, que é o sol, mas como o sol serve sempre, passando de um dia a outro, como a moeda passa de mão em mão, à noitinha, à hora do descanso, fazendo as contas, a Natureza entrega a Nosso Senhor a parte que lhe cabe nos lucros e, Nosso Senhor, que é econômico, guarda o pagamento.

É por isto que você vê o sol desaparecer no meio dos montes, como a moeda desaparece na boca do mealheiro.

Se assim não fosse, se Ele não guardasse o sol o mundo, há muito, já estaria no escuro, como ficam em miséria os que não pensam no dia de amanhã. E é assim que Nosso Senhor nos ensina a viver.

Comprei um mealheiro, um lindo mealheiro envernizado, para ajuntar as moedas que ganhasse. Quantas ganhei eu! O sol, quando cai no cofre de ébano da noite, cofre pregado a estrelas, com um cadeado de prata, a lua, fica bem guardado.

As minhas moedas, assim como entravam saíam do cofre, chamadas por pregões de rua — vozes de doceiros, de mascates e de outros vendedores.

Fosse o meu mealheiro como o da noite, que só se abre de madrugada e por um dia de cada, vez, e hoje... quem sabe lá a fortuna que eu teria.

A peregrina

Imóveis estão os ramos. Nem uma folha vibra. A estrada dorme, quieta. As recortadas sombras do arvoredo enfeitam-n’a de renda negra.

Eis surge um caminhante. Acorda a estrada, o pó levanta-se, ondula em nuvem, rebrilha, como de ouro, ao sol.

Vai-se o transeunte, cessa o rumor, declina a poeira; assenta.

Desanuvia-se limpidamente o ar e a estrada readormece.

Quanta vez, turbando a quietude do meu coração, uma peregrina aparece, melancólica, caminhando de olhos baixos, a revolver o pó como à procura de alguma coisa perdida.

Quem é? De onde vem? Dizem que vive num sepulcro, saindo, de quando em quando, para espairecer à luz.

Chama-se Saudade.

Quando ela surge vagarosamente, por mais leve que pise, levanta-se em turbilhão a poeira do passado, poeira evangélica em que se resolveram as minhas ilusões.

Vai-se e declina o pó, cai, desassombra-se me o coração, tudo serena e aquieta-se em silêncio.

Nosso Senhor

O sol brilhava no céu, brilhava trêmulo como vidro de lanterna, brilho que doía nos olhos escurecendo a vista. E que azul de cetim! Ao longe o mar, liso, como de cristal, faiscava em es’camas. E a cidade branca, recortada de ruas, com árvores e torres, parecia um cemitério imenso.

Íamos na multidão, ladeira acima, pisando farfalhantemente cheirosas folhas de canela e mangueira, por entre cordas de galhardetes e mastros embandeirados. No adro, quantas doceiras com os seus tabuleiros enfeitados! vendedores de frutas e de refrescos e pobres pedindo esmola. Pombas e andorinhas cruzavam-se no ar.

Que alegria! E o ar lá em cima, fresco e leve como se fosse a respiração do céu.

Quando entramos na igreja senti o coração transir-se: por tudo, em tudo, em toda a parte ouro, luzes e aromas. No deslumbramento em que fiquei os olhos enevoaram-se me.

O fumo do incenso, ondulando nos raios do sol, que entravam pelos olhais, dava-me a impressão de nuvens, como as que servem de trono a Deus, a Nossa Senhora e aos santos. Eu mirava, remirava, atônito e feliz, respirando bem-aventurança.

Foi difícil chegarmos ao ponto que mamãe buscava, perto do altar-mor. Os padres, revestidos como eu nunca os vira, eram tantos que formavam duas longas filas estateladas. Grave, descendo do alto, o som do órgão encheu harmoniosamente a nave e vozes vieram por ele como se anjos cantassem no ar. A multidão abafava-me e eu sentia-me tão pequenino, tão fraco, tão humilde naquela grandeza que tive vontade de chorar.

Pus-me a olhar em volta, aos lados e para o alto: as figuras possantes que sustentavam nos ombros todo o peso da abobada agarrando, a mãos ambas, frisas e capiteis floridos; anjos, de asas distendidas, soprando tubas longas; imagens ricas e santos entre brilhos de ouro e de chamas e, de quando em quando, a ondulação, da turba que se ajoelhava ou erguia-se. Padres atravessavam-na em marcha, de mãos postas, contritos.

E o órgão soando sempre, sempre as nuvens pairando, sempre as vozes angélicas.

E Deus? o Deus que eu buscava lá em cima, no céu azul? o Deus criador do céu e da terra, o Deus a quem eu rezava e que, jamais, conseguira ver ou sentir, ainda que se achasse em toda a parte, como me afirmavam... onde estaria? Por que não se mostrava? Não era aquela a sua casa? Se eu tudo via: o sol, a lua, as estrelas, por que só Ele me não havia de aparecer, um dia, entre nuvens douradas, cercado de anjos, para abençoar-me do céu?

Mamãe forçou-me a ajoelhar-me. Quanto tempo ali estive dispersando olhares distraídos, até que me abstraí de tudo e pus-me a pensar no que deixara em casa: os meus brinquedos, as frutas que vira à mesa, os meus companheiros da vizinhança, a árvore do quintal!

Como foi longa a cerimônia! Repiques de sinos, estrondos de morteiros, arrojos de girandolas anunciaram-lhe o final. Os padres retiraram-se lentamente e a multidão moveu-se refluindo. E Deus?

A música começou a tocar no coreto do adro. A tarde esmaecia, lânguida.

Descendo a ladeira ainda me voltei para olhar a igreja, no alto, com as suas torres soando alegres.

E ria vendo um sino enorme aparecer e desaparecer na abertura do campanário como se a igreja zombasse do povo pondo a língua de fora. Ideia de criança.

Então disse á mamãe, ainda absorta em devoção:

— Mamãe, e eu que não vi Nosso Senhor!?

Ela fitou-me carrancuda como se eu houvesse pronunciado uma blasfêmia e, em voz severa, repreendeu-me:

— Isso se diz, seu tolo?!

Encarei-a, sem compreender porque se zangara... Por quê? se era verdade o que eu dizia.

Buena-dicha

Alta, magra, rosto moreno, amarfanhado em vincos, saia de cor, toda em refegos, enrodilhada à cinta, casaco de chita, às listas, com um lenço cruzado ao peito, outro, vermelho, à cabeça, a cigana impressionava principalmente pela dureza dos olhos vulturinos, de um negror lustroso de verniz.

Andava de casa em casa a oferecer-se para ler a buena-dicha. Uns chamavam-na, outros repeliam-na esconjurando-a.

Quando tomava a mão de alguém demudavam-se lhe as feições, a voz tornava-se lhe grave, como que as palavras lhe saíam cansadas, vindo de muito longe.

Às vezes parava meditando, com o olhar fito e mais duro. Pedia a outra mão da consulente, confrontava as duas até achar a solução difícil.

Não me lembro, entretanto, de lhe haver jamais ouvido um presságio funesto — eram sempre os mesmos prósperos augúrios, sempre as mesmas promessas de ventura. E todos achavam que, para ler nas mãos, não havia outra igual.

Chamada, um dia, à minha casa, quiseram todos ouvi-la. E ela, contente da féria que ia fazer, pôs-se a rir, antecipando felizes vaticínios.

Cheguei-me muito a ela e, vendo as mãos que se lhe estendiam, abertas, observei que, em todas, as linhas eram quase as mesmas. Então, maldosamente, para desmascará-la, disse:

— A sorte é você que inventa. Todas as mãos são iguais.

A cigana encarou-me surpresa e, depois de um momento, contestou:

— Não, menino. Não são iguais. Cada mão traz a sua fortuna traçada pelo Destino. Esses riscos são os raios da estrela de cada um.

Eu insisti, teimoso:

— Todas têm o mesmo M, e fui mostrando, de palma em palma, os traços da letra anunciada.

A cigana fitou-me os olhos terebrantes, voltando-se, depois, para meu pai, sorriu tristonha, balançando a cabeça em gesto lastimoso. Deu d’ombros, dizendo a custo:

— Sim, esse M todas têm. Mas eu só leio as linhas da vida, meu menino e as que formam essa letra...

Meneou, de novo, com a cabeça e, acariciando-me no rosto, concluiu:

— Você ha de saber um dia. Por enquanto é cedo.

Relanceou um olhar pela sala e todos, silenciosamente, mostraram concordar com ela.

E foi essa a primeira vez que, durante a leitura da buena-dicha, eu vi entristecidos os olhos da semeadora de ilusões.

O M que todos têm na mão, maiúscula sinistra, marca do Destino, quem o decifrará! As ciganas podem dizer o passado e adivinhar o futuro, explicar, porém, o mistério da letra que todos trazem na mão desde que nascem... isso não é para ledoras de buena-dicha, nem para ninguém.

Sombras

Agrupados a um canto do pátio de recreio três meninos cochichavam interessadamente como se combinassem alguma travessura. A um tempo, levantando a prumo a cabeça, postaram-se de frente ao muro, hirtos, olhando a fito. De repente um deles exclamou alvoroçado:

— Estou vendo!

— Também eu! Bradou o segundo e logo o terceiro, no mesmo tom vivaz:

— E eu! E puseram-se a rir.

Um deles veio correndo a mim e, mostrando-me um cartão, no qual havia um títere grotesco, disse-me:

— Estás vendo esta figura? Queres que ela apareça ali no muro? Olha-a bem e, quando eu disser: “Agora!” encara o muro.

Obedeci. Os três cercaram-me em silêncio, atentos, e sorriam, contando, de certo, com o meu espanto. Cravei o olhar no títere e tão afinco que a vista, se me foi turvando, escurecendo pouco a pouco, como nublada; logo, porém, reabriu-se.

Pareceu-me, então, que a figurinha vibrava trêmula, em saracoteio.

— Agora! Bradou o menino.

Presto levei o olhar ao muro. Nada. O alvor apenas fulgurando ao sol. Mas um círculo desprendeu-se me dos olhos, frouxo, ondulante como um rondel de fumo; outro em espira, revoluteando, e outro.

A súbitas, em vislumbre, depois nítida, a figura do cartão reproduziu-se no muro ampliada e trêmula, movendo-se. Não pude conter a alegria e exclamei:

— É verdade! Lá está!

— Não é engraçado? indagaram todos.

— E como é? perguntei.

— É a figura que se grava nos olhos, depois salta para longe, como as vistas da lanterna mágica. E quanto mais a gente olha no cartão melhor a vê depois. Engraçado, não é?

Concordei, contente por haver aprendido um brinquedo novo.

Figuras... quantas vi eu outrora, quantas! não em cartão, em volta de mim, e, de tanto conviver com elas, se tiro o pensamento do presente e volvo-o ao passado, logo as revejo, não imóveis, na morte, mas agitando-se na vida, como a do cartão no muro. São as sombras dos meus queridos entes que se foram: pais, amigos, companheiros, e outras, outras... Sombras que a saudade evoca como a retina absorvia, para projetar no muro, a imagem do cartão.

Ilusões

Se foi acautelado o viajante, perdido na savana, recorre à provisão de coca e, mascando-lhe as folhas, consegue iludir a fome e a sede.

Na travessia longa, em que andei peregrino, quanta vez me vali de idêntico socorro!

Sem gota d’água e sem miga de alimento, com a fome roendo-me as entranhas e a sede a requeimá-las, salvaram-me as folhas da árvore do Paraíso, folhas que se chamam ilusões, entre as quais desabrocham as flores da Poesia.

Ainda que esmarridas não perdem as flores da coca a sua virtude; as da árvore paradisíaca são umas, se as colhemos antes que o sol as creste; outras, se as tomamos á tarde, emurchecidas.

Frescas, ressumam esperança; secas, só nos dão o amargor da saudade.

São destas últimas as que restam na minha taleiga e, em vez de as enganarem, mais me agravam, se as masco, a fome e a sede.

O anjo cantor

Quando se soube que seria ela o Anjo Cantor toda a rua exultou, envaidecida. Dizia-se de casa em casa: “Que lindo Anjo vai ser! E com aquela voz!...” Eu mesmo anunciei, com orgulho, no colégio:

“O Anjo Cantor, este ano, vai ser uma moça da minha rua”.

Filha de um professor de piano, cursava as aulas do Conservatório. Eu via-a passar, todas as manhãs, com o pai. Alta e fina, esbelta, muito branca, tinha no todo um não sei que de imagem. A cabeça graciosa, nua, com um laço apenas, brilhava ao sol emoldurada em ouro, e os olhos grandes, azuis, pareciam duas janelinhas abertas sobre o céu, um céu que ela tivesse em si, dividido em duas partes, uma para a sua alma, outra... para quem a merecesse.

Da minha casa eu ouvia-a cantar, principalmente à noite, na quiete da ruazinha pobre.

Nas proximidades da Semana Santa, todas as noites, no silêncio, um canto melancólico elevava-se — era ela a ensaiar-se para a procissão. As próprias crianças retraíam-se, suspendiam os brinquedos para ouvi-la. E os dias evangélicos avançavam.

Com as palmas triunfais do Domingo de Ramos entrou a Semana Dolorosa. Segunda, terça... Trevas, Endoenças. A sexta-feira da Paixão amanheceu nublada. “Que pena! Lastimava-se. Vamos ter chuva...”

Efetivamente o céu pesava, carregado de nuvens; o calor tórrido prenunciava trovoada. Um capucho de névoa envolvia a Tijuca.

A procissão saía à tarde.

Desde cedo começou o movimento na minha rua e os mais apressados, que partiam, paravam à porta dos retardatários avisando-os: “Olhem que assim não encontram lugar...”

Fomos dos últimos a sair. O céu escuro, de chumbo, arrepiava-se em trêmulos relâmpagos. Torvelinhos de poeira rodopiavam retorcidamente. Mamãe levava-me pela mão, com medo de que eu me perdesse na turbamulta.

As ruas formigavam de gente. Certas casas tinham colchas de seda às janelas.

Uma tristeza mortal enlutava a cidade emudecida. Todos vestiam de preto. Os animais dos bondes trotavam sem a campainha; os relógios das torres não batiam as horas. Não se ouvia outro som além do rastejar dos passos dos transeuntes. Falava-se em sussurro. Vozes altas só as dos vendedores de doces que apregoavam junto dos tabuleiros.

Refugiamo-nos na escadaria de uma igreja e ali ficamos apertados na multidão. A tarde cada vez mais fusca, mais lúgubre, escurecendo como se anoitecesse. De instante a instante um corisco golpeava o trevor, abria-se, súbito, um relâmpago e fragorosa, como um desmoronamento, a trovoada retumbava ao longe.

Matracas crepitaram por entre soturnos sons de marcha fúnebre.

Era a procissão.

A turba ondulou agitada. Houve um refluxo para a escadaria da igreja como de gente espavorida em busca de socorro, e foi um subir amotinado, o túmido crescer de uma pororoca humana.

Abriu-se um valo na multidão e apareceram as primeiras figuras do cortejo precedidas pelo guião e logo emblemas de Irmandades, lanternas em varões de prata, portadores de objetos de opróbrio e instrumentos de tortura, desde a cruz, o flagelo, o cetro de cana, o martelo, os cravos, a coroa de espinhos, a vara com a esponja de vinagre e fel, até a túnica da qual havia sido despojado o Mártir. E logo, arrogantes, batendo com o conto das lanças, com ritmo, nas pedras, brutos legionários romanos, seguidos do centurião a cavalo.

Em alas os irmãos das Ordens de opa e tochas; anjos e virgens.

E as matracas estralavam trepidas, rilhavam ríspidas as cega-cegas. E apareceram os farricocos sinistros embiocados em negro, as três Marias Beús, com véus longos, lutuosos precedendo o esquife do Senhor Morto, carregado aos ombros de seis irmãos da misericórdia.

À passagem do palio com o Santíssimo subiu um marulho soturno e, como a um vento de assolação, toda a turba abaixou-se. Alguns prostraram-se de joelhos voezando súplicas.

Os relâmpagos sucediam-se a miúde. Coriscos rabiscavam o negrume esfuziando como estrias em papel queimado.

O desfile estacou e uma voz doce, dorida, elevou-se do meio da turba espalhando-se suavemente no ar.

Era o Anjo que cantava.

Mamãe levantou-me nos braços para que eu pudesse ver.

Alva na túnica que lhe chegava aos pés, Maria Augusta parecia uma estátua como as que eu vira, em túmulos, no cemitério. Anjos e virgens cercavam o pedestal em que ela cantava mostrando ao povo a “verônica” com o rosto de Jesus estampado em sangue. As palavras eu não lh’as ouvia, ouvia-lhe apenas a voz.

Uma das nossas vizinhas falou a mamãe, alto, para que a ouvissem em volta e soubessem que ela conhecia o anjo:

“Como está bonita Maria Augusta. E parece mais alta, não é verdade?” Todos elogiavam-na.

Calou-se a voz num gemido de mágoa. As matracas estrepitaram e a procissão moveu-se vagarosa.

E a escuridão cada vez mais negra, mais abafada.

Rajadas de vento revolviam espadanadamente os panos, apagavam as tochas, punham em alvoroço assustado os pequeninos anjos. E o cortejo funéreo prosseguia sob a ameaça do céu tempestuoso.

Ainda ouvi a voz longínqua, entrecortada pela ventania. O batalhão, por fim, fechou o séquito e o povo denso, avançando em mole, parecia empurrar o saimento.

De repente, a um relume, o céu estalou como se houvesse rebentado. A multidão revolucionou-se em pânico e, improvisa, a jorros, a chuva desabou torrencial, violenta, estralando nas pedras. Foi um tumulto na escadaria da igreja, correrias, gritos. Num instante a rua ficou deserta, alagada, a gorgolejar enxurros. E a procissão?...

Uma semana depois, nem tanto, talvez, correu a notícia da morte de Maria Augusta. Ninguém soubera da sua doença. Que teria sido? A tempestade, com certeza, aquela chuva...

Foi uma desolação em toda a rua.

A tarde do enterro!... Quão diferente da outra: dourada de sol e cigarras cantando. Gente nas calçadas, gente às janelas; o portão da estalagem cheio. Quando o enterro passou foi um lastimar de casa em casa:

“Coitadinha! Tão moça!...”

“Deus te dê o céu!” “Vai com Deus!” e os carros seguiam lentos.

Fiquei muito tempo à janela, chorando sem sentir e a rua pareceu-me haver-se esvaziado, como um corpo morto, sem alma.

À noite, em casa, comentando-se a infelicidade, alguém disse:

“Não era deste mundo. Com aquele ar de tristeza, com aquela voz... Qual! Está no céu, junto de Nossa Senhora”.

Deixei a sala devagarinho, fui ao quintal onde, tantas vezes, junto da árvore, ficara a ouvir a voz de Maria Augusta. E ouvi-a.

Espantado, olhei em volta, olhei o céu. Linda noite! Branca, todos os telhados brancos, brancos os muros, o quintal, a árvore, e, lá em cima, entre estrelas, a lua. E a voz a cantar, como na procissão funérea!

De onde viria? Que era a voz de Maria Augusta não havia dúvida, mas de onde viria? do cemitério, tão longe! do céu ou mesmo de mim, onde ficara, como fica a saudade, que é o que resta dos mortos?

Tive medo e regressei à sala onde ainda se falava da pobrezinha, sempre com as mesmas palavras:

“Não era deste mundo... E noiva, coitadinha! Está no céu”.

E, até hoje, em noites de luar, como a primeira que dormiu no cemitério, debaixo da terra, coberta de flores, lembro-me de Maria Augusta e ouço-lhe a voz... de muito longe, ou de muito perto: do cemitério, do céu ou dentro do meu coração.

Estrelas

“Nosso Senhor, lá de cima, vê tudo que se passa cá em baixo. Você faz uma coisa que não deve, pensa que ninguém descobre. Pois sim! Nosso Senhor viu tudo, tomou nota, muito caladinho, e no dia do juízo, um dia escuro, de relâmpagos e trovoada, quando você menos esperar estará sendo chamado por um anjo para pagar o que fez às escondidas. Então!...”

E a velhinha, abrindo muito os olhos e enrugando a fronte, balançava a cabeça ameaçadoramente.

E eu imaginava Nosso Senhor um homenzarrão como o meu mestre, sentado a uma mesa enorme, com a palmatória diante do tinteiro, a relancear olhares sobrecenhos. E, para mim, esse terrível dia do juízo devia ser como certas tardes lúgubres quando, no final das aulas, à hora da saída, o bedel percorria a forma chamando, para castigos, alunos denunciados pelos inspetores.

Desde então comecei a ter medo de Deus, tanto ou mais do que tinha do professor. E disse-o, uma vez, à velha, que me respondeu:

— Não, meu filho. Nosso Senhor não é mau. Ele castiga como pai, quando a gente peca, mas quando se pratica uma boa ação a recompensa do céu vem logo. Quando se dá uma esmola a um pobre, ainda que seja um vintém, Nosso Senhor pega na moeda da caridade e faz com ela uma estrela. Olha lá para cima. O céu não está todo estrelado? São esmolas que Nosso Senhor recebe, porque os pobres são os seus cobradores.

Levantei os olhos. Que riqueza!

Deitei-me pensando no imenso tesouro dos pobres, guardado por Nosso Senhor.

De manhã, muito cedo, assim como saí da cama, apanhei o meu cofre e fui-me com ele para o quintal.

Forcei-o, tirei duas moedas de vintém. Estavam tão negras de azinhavre, tão negras! Que, de certo, desapareceriam, na escuridão da noite. Lembrei-me de limpá-las e, com cinza e limão, pus-me a esfregá-las; lavei-as depois. Ficaram como de ouro. Atei-as em nó no lenço e parti contente.

Era uma fresca manhã de sol. Quantas tentações me apareceram: frutas, doces, até um vendedor de cata-ventos de papel. Mas não! Resisti a tudo. Dei um dos vinténs a uma preta velha, outro a um aleijado.

No colégio não pensei em outra coisa senão nas duas estrelas novas que apareceriam à noite e limpas, como eu as pusera, como haviam de brilhar!

À primeira badalada das Ave Marias corri ao quintal para ver as estrelas logo que saíssem. E vi! Quantas! Quantas!

As minhas deviam ser duas pequeninas que cintilavam bem por cima da minha casa. Que lindas! Reconhecendo-as, sorri de orgulho. E, durante a semana, à tardinha, lá ia eu para o quintal ver as estrelas de cada dia.

Uma manhã, porém, sacolejando o cofre, o cofre não me respondeu. Eu dera na véspera o último vintém ao ceguinho do raio, um velho de grandes barbas, que esmolava junto à igreja, com um quadro, pendurado ao peito em que figurava o naufrágio de um navio.

E nunca, como nessa manhã, encontrei tantos pobres em meu caminho.

Triste noite vai ser a de hoje! Pensava eu no colégio, cantando maquinalmente a tabuada. E tudo me parecia negro, como a pedra sem números e como deveria ser à noite sem estrelas.

A tarde foi linda, toda dourada. Ouvi o sino e começou a escurecer docemente com o ciciar das cigarras. E eu pensava na tristeza do céu deserto.

Acenderam-se as luzes. Havia tanta suavidade no ar que eu tinha a impressão de achar-me em uma igreja. Porquê? Não sei.

Meu pai debruçou-se à janela e exclamou como em louvor:

— Linda noite!

E minha mãe:

— Parece dia!

Fui ver. O céu estava tal qual o manto de Nossa Senhora, com a lua ao meio, enorme e alva, toda de prata. E meu pai repetiu com mais enlevo:

— Linda noite!

Compreendi. Estava orgulhoso do que fizera. Fora ele, de certo, que dera tantas esmolas... Fora ele. E falava para que fossem ver a sua generosidade. Também... que admiração! Ele podia, ganhava, eu sim!... Que tinha eu? Um cofre pequenino, onde ajuntava vinténs, tão poucos... Ainda assim haviam dado para fazer estrelas durante uma semana, duas por noite. Mas que estrelas! Brilhavam de fazer mal aos olhos, porque eu não dava os vinténs aos pobres senão depois de muito os arear a ponto de parecerem de ouro.

Feliz tempo! Hoje, quando contemplo o céu estrelado, lembro-me, entristecidamente, da minha infância ingênua.

Feliz tempo de ilusões e sonhos quando a gente, acreditando em fábulas e contos, procura no céu o prêmio dos benefícios que faz na terra... e vê-os ou imagina vê-los!

O coração

Uma noite—sei lá por que! — dei para atentar nos latejos do coração.

Fechando o livro em que estudava, espalmei a mão no peito e, quieto, respirando flébil, fiquei sentindo as pulsações.

Que faria o coração tão sôfrego lá dentro? Estaria a derrubar ou a construir? Ah! Nesse tempo, de certo, construía: tudo era novo e o campo das ilusões vastíssimo. Hoje!...

Comparei-o á pêndula do relógio: o mesmo ritmo, o mesmo incessante tic-tac. Ao relógio, porém, via eu meu pai dar corda e ao coração, quem a daria? Certamente o meu anjo da guarda, à noite, enquanto eu dormia.

Com tal ideia resolvi ficar acordado, quedo, encolhido nos lençóis para o ver chegar. Enquanto tive força resisti, mas aos seis anos há lá quem possa lutar com o sono!

Ao acordar, de manhã, o coração batia-me como sempre, ou mais forte, talvez.

Que pena tive de não haver visto o anjo! Pudera! Dormira tão pesadamente que, se ele houvesse querido, poderia até ter-me levado o coração, tirando-m’o do peito sem que eu sentisse.

E antes o tivesse feito, porque, sem ele, tantos não teriam sido os meus sofrimentos e desenganos, quase todos devidos ao mau governo desse louco.

Flor de jardim

O filho do vizinho não frequentava a escola — o professor ia-lhe à casa. Era um velho magro, curvado, de óculos escuros, sempre de charuto à boca.

Quando eu passava com o meu pacote de livros o filho do vizinho olhava-me com desprezo, por ver-me mal vestido, correndo ao sol e à chuva para ir aprender na escola pública, entre pobrezinhos como eu. Um dia, sentindo mais fundo o escárnio do menino, queixei-me a meu pai.

— Não te importes. Deixa-o lá! Disse-me ele. Faze tu por ti e veremos, com o tempo, quem se rirá por último. As plantas de jardim têm quem as regue; as florestas contam apenas com a chuva do céu, mas nada perdem: com as raízes sugam a humidade da terra e aproveitam toda a gota de orvalho que lhes cai nas folhas. E são as florestas, meu filho, que nos dão as árvores fortes, as árvores que se fazem por si.

Os jardins, ainda os de maior capricho, produzem apenas flores; as florestas dão tudo.

A escola é para todos, como a chuva do céu e o sol. Estuda, trate de aprender, não te importes com o filho do vizinho. Faze por ti aproveita o mais que puderes e deixa-o lá!

Ri de palavras tais. Mais tarde, porém, penetrando-lhes o sentido, admirei-as. Quanto conceito em tão pequenina fábula!

Hoje, quando penso na escola onde éramos tantos, apinhados como árvores na floresta, logo me acode à lembrança o filho do vizinho com o velho professor de óculos escuros e representa-se-me uma lânguida flor esmaecida, regada a lente; o, gota a gota, em contraste com uma densa, frondosa floresta, sob a chuva fecunda do céu que tudo, igualmente, lava, refresca e revigora, desde a árvore mais robusta à planta mais humilde. Então a mim mesmo pergunto:

“Que será feito daquela flor de jardim que eu invejava tanto e que se ria da minha pobreza quando eu por ela passava a caminho da escola?”.

A memória

A memória é o campo santo das lembranças, cemitério espiritual onde se depositam em sagrado os despojos dos dias idos.

No cemitério o corpo converte-se em terra inerte. Na memória as ressurreições sucedem-se contínuas. O que nela adormece hiberna como as plantas e os animais regelados que, ao calor do sol, reverdecem ou despertam.

Assim, basta um reclamo d’alma para que uma recordação se levante do sono e nos figure, vivo, tal qual foi, todo um episódio do passado; traga da profundeza do tempo uma ventura longeva.

E porque, mais que as de agora, respondem asinha ao nosso apelo as recordações antigas: da infância, da adolescência, da juventude, da idade adulta e as recentes hão de ser tão tardas e até, por vezes, se neguem à nossa evocação?

Porque, como nos cemitérios os mais antigos túmulos são os ficam logo à entrada, as reminiscências dos dias juvenis acham-se à frente, enquanto que as lembranças da velhice vão indo para o fundo, acostando-se à montanha, que é a extrema da jazida fúnebre e, por serem muitas e confusas e restar pouco espaço para acomodá-las, são atiradas a esmo, como em valia comum.

Achar em tais acervos um episódio, destacá-lo íntegro é tão difícil como reconhecer numa pilha de ossadas determinado esqueleto.

As reminiscências das primeiras revoras trazemo-las sempre floridas. Valas comuns, quem delas cuida? Se alguma coisa as enfeita é a erva agreste, manto verde que a terra dá de esmola às ruínas.

Canções

Foi de tristeza aquele dia.

Minha mãe, desolada, ainda que ali me tivesse no aconchego do seu amor, já me avistava na desventura do lúgubre destino profetizado, como em anátema, por meu pai: vagando, descalço e roto, com fome, pedindo esmola a troco de canções como os mendigos que vão de porta em porta e cantam plangentemente para comiserar.

Poeta!

A própria ama, compadecida de mim, fez uma promessa à Nossa

Senhora para que me protegesse contra o mau fado. E todos que souberam da minha infelicidade — vizinhos, amigos, simples, conhecidos lastimaram-me, aconselhando-me a não persistir naquele vício de perdição.

Tive medo, medo supersticioso sentindo-me como cercado de maldições.

Tudo me parecia hostil; as próprias árvores como que se retraíam negando-me a sombra dos seus ramos. E os que cruzavam comigo olhavam-me de soslaio, com desprezo, desviando-se como de um leproso.

Poeta!

Mas como descobrira meu pai os meus primeiros versos, que eu escondera como um furto nas páginas do dicionário?!

É bem certo que o coração dos pais adivinha.

Jurei a mim mesmo nunca mais escrever canções, ainda que os versos me afluíssem prontos, com imagens e rimas, como vêm à haste as flores com a cor viçosa e trescalando aroma.

À noite, tarde, no silêncio da casa apagada, já deitado, ouvi cantar dentro de mim, muito longe, numa suave saudade.

A voz era meiga e, até de madrugada, rimei às escondidas, n’alma, canções formosas, que se perderam porque nunca as escrevi para que meu pai as não achasse, irritando-se com elas e fazendo chorar de tristeza minha pobre mãe.

Eis porque não conservei as canções da minha adolescência quando, sem ainda amar, já decantava o amor, como se sente a luz antes de ver sol.

O deserto

O deserto!

E dizer-se que esse mortório foi oceano!

Quando o khamsin assopra as areias levantam-se em turbilhões, incham em dunas movediças, rolam em madria seca, impam em escarcéus saibrosos: é o deserto a recorar-se de quando foi mar roleiro, cortado a proas altas, hoje espezinhado a patas de méharis, a cascos de ginetes, calcurriado por nômadas em caravanas.

As areias jaziam, então, ocultas no abismo como o esqueleto, num corpo. O oceano secou e, com a esterilidade, desapareceu toda a vida na sua profundeza. Ainda hoje, porém, o dibra que atravessa o escampo encontra no areai adusto resíduos da fauna equórea e no espaço, à hora da zina solar, avista miragens, espectros das cidades que assentavam ao longo das praias do antigo oceano e que pereceram no mesmo cataclismo que o levou.

Grande mar, ora bonança, ora tempestuoso, eis o que resta de ti!

Verde, outrora, e fecundo, és hoje amarelo, ressequido areal, tábida ossada oceânica reduzida a pó.

Assim eu.

Quando me lembro do que foi no tempo da mocidade e comparo-me com o que hoje sou, chamo ao deserto meu irmão. Saara, dantes oceano, hoje páramo arenoso.

E como no Saara ainda se encontram conchas, remanescentes da vida que pululou no abismo glauco, e formam-se miragens aéreas, fantasmas das cidades do imenso e opulento litoral oceânico, na minha memória, de quando em quando, surgem reminiscências de venturas e os meus extintos ideais de antanho afiguram-se-me redivivos no céu, que é o além da morte, transformados em fé, miragem da esperança, minha riqueza na juventude que, pouco a pouco, se desvaneceu em cataclismos de desilusões.

Velhas chapas

Sim, velhas chapas...

Tenho-as todas arquivadas em escaninhos, em uma câmara escura.

Tomo, de quando em quando, uma de tais, ao acaso, exponho-a à luz e logo começa a memória a revelar-se e uma cena ou figura do passado fixa-se em lembrança.

Quedo-me a contemplá-la comovido e quantas vezes se me arrasam os olhos d’água diante de tais imagens peregrinas.

Assim como uma fotografia antiga nos transporta instantaneamente a dias transcorridos, assim essas reminiscências, que nos ocorrem, súbitas, fazem-nos volver ao que foi e ao que fomos, despertam mortos, restauram o que não mais existe, recuando-nos para além do horizonte que avistamos às lindes que no tempo se sumiram.

É por andar sempre a revelar chapas antigas que tenho constantemente à vista o que passou.

Apesar de viver entre outras gentes, em uma cidade outra, em tudo diferente da que, em menino, conheci, meu coração continua a sentir os que amou e que o amaram, os de outrora, hoje mortos, e revê-os, e as casas, as ruas, a paisagem de antigamente, sombras que se levantam da saudade, como ressurgem nas velhas chapas as imagens fotografadas.

O futuro

Palavra a todo o momento pronunciada, tanto eu a ouvia de meu pai, de minha mãe, das pessoas íntimas que se interessavam por mim que ela foi, aos poucos, adquirindo, a meu ver, prestígio talismânico como o da frase com que Ali-Babá, na história, consegue arreredar a rocha que fecha a caverna dos ladrões.

Se eu prolongava os meus brinquedos, se me demorava na rua, se me deixava ficar na cama preguiçando, se cabeceava sobre os livros lá vinha a palavra e sempre engastada em frases severas:

“Olha para o Futuro! Pensa no Futuro!”

Que seria o Futuro?

E eu imaginava tudo dentro dessa palavra — saúde, riquezas, honras, glória... sei lá!

Brincando, era interrompido pela voz terrível e logo corria aos livros. Cedo, ainda escuro, em manhãs de frio, deixava a cama pela mesa de estudo. À noite, quanta vez lutei com o sono e até a dores resisti tudo por medo da tal palavra que eu ouvia sempre, ora em resmungos amuados de meu pai, ora em promessas carinhosas de minha mãe! E se me queixava do excessivo rigor com que me prendiam, respondia-me à ameaça:

“Deus queira que te não arrependas no futuro!”

Tanto ouvi essa palavra que ela se me incutiu na consciência e, pela vida adiante, ainda que não mais a ouvisse das bocas que se calaram na morte, ouvia-a dentro de mim, em eco, e ainda a ouço contando sempre com o que nela se me anuncia.

Infelizmente, porém, essa palavra que me não deixa, desde pequenino e pela qual tanto me sacrifiquei, foge à minha frente como recuam os horizontes diante dos peregrinos.

O Futuro... Onde está ele? Por que o não alcanço? Que mistério é esse que me traz iludido desde a infância e, ainda agora me engana: o Futuro?

E sigo, começo a curvar-me ao peso do Tempo, inclino-me para a terra... E o Futuro? Quem sabe lá o que ele é e onde se esconde.

Sombra que me seguiu de manhã, sombra que vai na minha frente à tarde, sombra que me há de envolver na noite eterna... o Futuro!...

Toda uma vida em busca da ilusão.

A vizinha

Sete anos, talvez nem tanto tinha eu quando isto foi.

Uma noite, estava eu brincando com os meus soldadinhos de chumbo, quando a vizinha, que se achava de visita em nossa casa, chegou-se a mim e, passando-me maciamente a mão pelos cabelos, disse a minha mãe:

— É sempre uma companhia. Tudo é a gente não estar só, sentir alguém consigo. A escuridão amedronta, uma lamparina, entretanto, é quanto basta para desassombrá-la. Mamãe, volvendo para mim os olhos meigos, falou-me com um que de tristeza, acariciando-me o rosto:

— Vais hoje fazer companhia à vizinha, que está só.

E a vizinha ajuntou sorrindo:

— Serás o meu maridinho enquanto o outro não chegar. Queres?

Sorri contente a uma e outra e, guardando, às pressas, os meus soldadinhos, tomei a benção a mamãe. E fomos.

A vizinha era linda e o que eu nela mais admirava eram os olhos grandes, verdes e pestanudos, que pareciam dois medalhões em uma parede muito branca.

Não fiz caso dos doces que ela me deu, tão encantado estava pela casa toda forrada de papel claro, com figuras e flores, as janelas veladas a cortinas, reposteiros às portas, flores frescas em vasos, os móveis muito reluzentes e o soalho escorregadio e brilhante. Casa pequenina, encolhida, aconchegada, cheia de tapetes e com as cadeiras vestidas, como se sentissem frio.

A vizinha despiu-me, deitou-me na cama larga, de travesseiros altos. Na mesinha de cabeceira a lamparina ardia dentro de uma flor de porcelana azul.

O colchão era macio como um colo e o travesseiro tão fofo que a minha cabeça afundou entre dois seios.

A vizinha parecia procurar alguma coisa às tontas: saía, entrava cantarolando baixinho. Parou, por fim, diante do espelho e, soltando os cabelos, pôs-se a penteá-los devagarinho. De repente apagou o gás e a luz branda da lamparina espalhou-se em poeira loura.

O quarto encheu-se de sombras trêmulas como as que ondulam n’água, e o vulto airoso da vizinha movia-se como através de uma névoa, com finas irradiações de ouro dos cabelos.

Houve um arrufado sussurro de roupa, o baque de um sapatinho, de outro, passos moles, surdos no tapete e a cama arfou, como se suspirasse. Suave calor correu-me arrepiadamente pelo corpo a um leve, avelulado contato liso e arisco. E a vizinha, inclinando-se sobre mim, perguntou-me baixinho:

— Já estás dormindo?

— Não senhora, respondi num fio trêmulo de voz.

Crebros sons, como azoado zumbir de abelhas, encheram-me os ouvidos.

Tive medo. De quê? Não sei...

Sete anos, talvez, tinha eu quando isto foi e até hoje...

Ressurreição

A saudade, flor da memória, ao invés da sensitiva, que se confrange, tímida, ao mais leve contato, desabotoa se por ela, sutil, desliza uma lembrança. Como à açucena é à noite que mais se lhe aviva o aroma.

Sob a aparência de morte, conserva a vida latente, e, para que ressurja, como reverdece a rosa de Jericó, se a molham, ou como ressoa a harpa eólia à aragem basta que uma reminiscência nela esperte.

Então recorda, e recordar é tanto como abrir túmulos, trazer a morte à vida, ressuscitar, enfim, ainda que, por instantes, como o relâmpago nos dá na treva da tormenta a visão efêmera da luz.

O alfarrabista

Era na rua S. José, quase cá esquina da rua da Ajuda, uma casa baixa, de três portas. Tudo era ali velhice: o prédio, os livros, o dono, os fregueses.

Quando eu lá ia, as mais das vezes à noite, era certo encontrar velhotes examinando livros ou em cavaqueira com o alfarrabista. Eu encostava-me ao balcão e punha-me a folhear obras ilustradas, ouvindo o sussurro monótono das conversas, às vezes, exaltadas, em discussões que obrigavam o dono da casa a recorrer às prateleiras ou aos cafundós entulhados da loja, de onde tornava com exemplares de edições raras, que exibia aos palreiros.

Eu admirava aquele homem, que conhecia tantos livros, quantos? Sabia eu lá!

Chegava um freguês, pedia-lhe uma obra, fosse o que fosse — lá ia ele arrastando os passos, direito ao lugar em que a tinha e trazia-a. Não fariam tanto os meus mestres, homens formados, de fama, e aquele velhote, tão simples, tinha tudo na cabeça, um mundo dos autores gregos, latinos, ingleses, franceses, espanhóis, italianos... Portugueses, então, isso... eram todos!

Uma noite, lá entrando, achei-o só, a cochilar diante da escrivaninha alta. Fui-me direito aos livros de figuras e folheava um deles quando o velhote deu por mim:

— Sempre a ver figuras, han? Isso é nada. O melhor dos livros está nas letras; o resto... e esticou o beiço com desprezo. Isso de figuras, capas de luxo, lombos dourados, são enfeites; útil é o que está impresso. Tenho ali dentro uns bacamartes, poucos, que não dou por todos esses livrecos enfeitados, que aí estão. Em livros o que se quer é o miolo. E desceu do banco, dirigindo-se a mim:

— Olhe, vem por aqui, de vez em quando, um senhor, velho, talvez mais do que eu, de casaco no fio, que vale mais, ele só, do que muitas academias. Dizem-no de sangue fidalgo. A gente, ao vê-lo, tem até vontade de lhe dar esmola. Pois aquilo é que é saber! E quantos pelintrotes me entram por esta loja dentro, muito embonecados e cheios de empáfias, à procura de livros que eu tenho até vergonha de vender. É assim. Ver livros e ver homens é tudo o mesmo, quando a gente os conhece.

Animado por aquela prova de confiança que, pela primeira vez, me dava o alfarrabista, naturalmente porque não tinha os velhotes para a palestra, disse-lhe:

— O senhor é que deve saber muito.

Ele levantou a cabeça empenujada a falripas e encarou-me, risonho:

— Saber muito? Eu? Por que diz isso?

— Ora porque... Vivendo no meio de livros, como vive, conhecendo-os, como os conhece... Pois eu não vejo?

— Está você enganado, menino. Quem me dera conhecer um só deles! Um só! Vendo-os, isso sim! Daí, porém, a conhecê-los vai muito. Nós, livreiros, somos como certos milionários que vivem na riqueza sem aproveitá-la: ajuntam, ajuntam para os herdeiros. Se eu disser a você que mal sei fazer uns garranchos para assinar meu nome... Que quer? Filho de pobres, não cheguei a andar um ano na escola, saí logo para o mundo, a cuidar da vida. Sei apenas o bastante para acertar com o título das obras e os nomes dos autores. O mais é prática: são sessenta anos de livraria, a ouvir os que sabem, a comprar e a vender.

Camões, Vieira, Bernardes, Lucena, Camillo, Garret, Castilhos e estrangeiros, conheço-os a todos pelos nomes, só pelos nomes. Você, menino como é, com certeza sabe mais do que eu.

Olhe, os mineiros que tiram o ouro da terra, que passam a vida inteira no fundo das minas, acabam, às vezes, na estrada, com as unhas roídas pelo pedregulho do ouro, sem um catre para morrer. Assim sou eu.

Vivo aqui no meio de livros, comprando-os, vendendo-os, velhos e novos, de tudo: coisas de poesia, romances, história, línguas, religiões, ciências e, entretanto, para ler uma notícia nos jornais sabe Deus o que me custa. É assim, meu menino: nós somos como os mineiros que passam a vida escavando ouro e acabam sempre na miséria... tendo enriquecido a muitos. Os livros são para quem os compra, meu menino.

Hoje, lembrando-me do velho alfarrabista, vejo, através da sua frase, a dolorosa verdade que também se ajusta à minha vida:

Os livros são para quem os compra!...

O meu cofre

Oh! Se me lembro! Era um lindo cofre de cristal com fecho de ouro, cheio de esperanças. O meu prazer era expô-lo ao sol para o ver brilhar.

“Não andes com esse cofre por toda a parte, diziam-me. Podem roubar-t’o e, se te cair das mãos, frágil como ele é...”

Eu ria de tais conselhos.

— Como é lindo! Exclamavam todos, e eu, contente e orgulhoso, abria-o para mostrar o meu tesouro. Um dia pediram-m’o para vê-lo. Tolo que eu era! Dei-o. Tanto a pessoa o virou nas mãos, tanto o abriu e fechou que, por descuido ou maldade, o deixou cair nas pedras.

O que eu chorei! Pus-me a apanhar os cacos: um, aqui; outro, ali.

Vendo-me alguém em tal trabalho interrogou-me:

— Que andas a procurar nas pedras do caminho?

— Os pedacinhos do cofre das minhas esperanças. Quebraram-m’o. Quero ver se o conserto.

— Consertá-lo!... Cofres desses, uma vez quebrados, não há consertá-los mais. Por mais que busques, sempre faltará um nadinha e pelo orifício que dele ficar ir-se-á tudo que no cofre houver.

Palavras verdadeiras!

Tanto catei entre as pedras os mínimos fragmentos que, pacientemente, consegui recompor todo o cofre. O que lhe ficou faltando era tão pouco que só eu o percebia. Esse pouco, entretanto, era tudo porque por aí se escoaram todas as minhas esperanças.

Vazio, fiz com ele o que se faz com os vasos delicados que exigem peso para firmar-se onde ficam: enchi-o de saudades, areia do coração, sobre a qual rolam os dias, que são as ondas do tempo, depositando no fundo tudo que nele cai.

Cofre da minha ventura!... Até hoje procuro o escassilho que lhe falta, tão pequenino, mas que abriu uma fenda quase imperceptível por onde se foram todas as minhas esperanças e por onde entram as desilusões.

Bem me haviam dito:

“Cofres desses, uma vez quebrados, não há concertá-los mais”.

Lágrimas

A casa, em desarranjo de fadiga, recendia a cera e a flores murchas.

Na surdina de vozes cochichadas sentiam-se lágrimas como se adivinha, por entre o sussurro lânguido das folhas, o derivar, vagaroso e manso, de um fio d’água oculto.

O cão ia e vinha, arisco, farejando o soalho, os móveis, as pessoas ou, fincando as patas, arrebitava o focinho como se houvesse encontrado no ar o rastro do que se fora.

Antes me não houvessem chamado de tão longe para chegar inutilmente, depois de tudo acabado.

O coração inchava-me no peito.

Mas onde se me teriam escondido as lágrimas?

A dor intensa esteriliza. Como nos dias caniculares, com o céu tempestuosamente denegrido, o calor estua estanque, atroam trovões surdos e inflamam-se relâmpagos zebrados de coriscos, sem que das nuvens caia uma gota d’água, assim em minh’alma acumulavam-se agonias afuziladas de lembranças e reminiscências, lágrimas, porém, nem uma!

E eu tinha vergonha de não chorar.

“Que indiferença! Diriam. Nem uma lágrima pelo pai!”

E eu pedia-as intimamente, pedia-as como os roceiros rezam pedindo chuvas quando o sol lhes resseca e mata as plantações.

E os olhos áridos, adustos, requeimando-me!

Quando ficamos sós na casa fechada, mamãe abraçou-se comigo falando-me dele, dos seus últimos instantes.

O cheiro da cera e das flores murchas tornou-se mais forte no abandono em que ficamos, ela e eu, na treva do luto.

Recolhi ao meu quarto.

A casa adormeceu cansada. Sentei-me à beira da cama: olhos fitos na escuridão da sala, ouvidos à escuta no silêncio.

Senti que alguém se aproximava em ruído. O coração cresceu-me inda mais tomando-me todo o peito.

Regelei.

O relógio pôs-se a bater vagaroso e grave, horas enormes e reboantes que pareciam rolar alto, uma a uma, cheias, pesadas. Contei doze.

A última foi a mais longa, custou a entrar no silêncio, como certas abelhas retardatárias que esvoaçam, zumbindo, em volta do cortiço antes de infletirem ao aivado.

Estremeci em arrepio, como se uma rajada gélida de inverno me houvesse retransido. E tal desaba, em fúria violenta, a primeira bátega da tempestade, assim me rebentaram as lágrimas dos olhos.

Tu bem as viste, meu pai! Tu bem as viste, porque estavas ali comigo! E foste tu que as arrancaste do meu coração para que eu não perecesse na enchente que subia em saudades, desde a minha infância pequenina, quando me levantavas nos braços até a ternura dos teus olhos azuis, para que brincasse, à luz do teu sorriso, com a neve das tuas barbas e dos teus cabelos brancos.

O vagalume

Os anos são mais vivazes nas Mulheres abrindo-lhes o coração mais cedo do que aos homens.

É próprio das plantas delicadas serem mais sensíveis ao sol do que as árvores robustas, que exigem muito tempo para crescer e florir.

Tínhamos, pouco mais ou menos, a mesma idade, ela, entretanto, conhecia segredos íntimos da vida que, para mim, eram ainda mistérios.

Só uma vez a venci em conhecimentos, explica-se, porém, que tal se desse porque, sendo ela da cidade, pouco sabia das coisas da natureza, que mais se aprendem na roça onde tudo se nos apresenta tal como saiu das mãos de Deus, sem artifício algum.

Foi assim que, uma noite, acercando-se delia um vagalume — era, talvez, a primeira vez que via dessas moscas da sombra, que se alumiam a si mesmas — levantou-se para fugir-lhe, com medo de que a queimasse.

Ri-me do seu pavor e, para mostrar-lhe a inocência do inseto, tomei-o em dois dedos e apresentei-lh’o vaidoso. E ela, ao vê-lo fulgir sem ofender-me, perguntou maravilhada:

— Não queima?

E, posto que ainda medrosa, atreveu-se a imitar-me, só, então, convencendo-se do que lhe eu dissera.

— É curioso! Exclamou.

E pôs-se a examinar minuciosamente o inseto, sorrindo ao vê-lo lampejar. Por fim, encarando-me, asseverou convicta:

— É verdade! Não queima!

E eu, fitando-lhe os olhos lindos, também sorri e disse, sem que ela percebesse a intenção das minhas palavras:

— Se toda a luz queimasse sei de alguém que já estaria cega.

— Quem é? Perguntou ela, alumiando-me com o olhar.

Não tive coragem de lh’o dizer.

Das Dores

Simplificavam-lhe o nome em Das Dôres.

Era alta, fina, muito branca e airosa à maneira dos lírios, e, com os longos cabelos soltos, o seu rosto, emoldurado em negro, parecia um camafeu lavrado em ônix.

Tinha eu, então, doze anos e ela quinze.

Brincávamos de namorados e ela abraçava-me, envolvendo-me na treva cheirosa e macia dos cabelos.

Se as flores falassem, seria com aroma igual ao que lhe saia da boca úmida e vermelha.

Nesse tempo a minha leitura predileta eram os contos de fadas.

Uma tarde, achando-nos sós na sala, Das Dôres apertou-me nos braços, perguntando-me tremulamente:

— Por que me olhas assim?

E eu respondi sorrindo:

— Porque me lembro de uma história em que há um palácio, todo de mármore, onde jazem duas princesas encantadas, vigiadas por dois gigantes negros como os teus olhos.

— E as princesas?

— São as meninas.

Ela estremeceu trincando o lábio e, agarrando-me a cabeça a mãos ambas, colou, com ânsia, a sua boca à minha como se m’a quisesse esmagar e um beijo imenso desceu pesadamente em minh’alma.

Correram anos. A vida separou-nos.

Um dia anunciaram-me uma senhora. Mandei-a entrar.

Chegando à sala dei com uma velhinha murcha, encolhida humildemente a um canto, torcendo as franjas do chale que lhe envolvia o busto magro. Ao ver-me levantou-se tímida e, de cabeça baixa, como envergonhada, disse-me o seu nome: Das Dôres,

Num ímpeto recuei ao passado e só achei ruínas. A desgraçada, com a sua presença, destruíra o encanto da minha mocidade.

O que se perde no passado deve lá jazer para o sempre como ficou nas profundas do mar a taça do rei de Tule.

A morte da casa

Entre os dias, porque havia justamente de ser esse o da minha levada àquela rua a onde eu nunca mais tornava, desde que dela saíra? Houvesse ali passado na véspera e teria ainda encontrado a casa de pé, intacta; uns dias mais e acharia apenas o chão vazio de tudo que, então, me recordava saudosamente o tempo que se depositou no meu coração, como a areia escoada assenta no fundo da ampulheta.

A minha casa!

Demoliam-na sem pena despindo-a das paredes que a recatavam, como se a expusessem, nua, aos olhos de todos, desde a sala, até a mais íntima das suas alcovas.

Ali estava ela destelhada, toda ao sol, com as pedras e os tijolos dos seus muros em montes, o seu velho e puído madeiramento em pilhas e, às soltas pelos escombros, retalhos de papéis vários, como pedaços de pele.

Por eles, um a um, eu reconstruía e reanimava os aposentos de onde os haviam arrancado: o azul com frisos de ouro, da sala de visitas; o de painéis de caça, da sala de jantar; o de ramalhetes, do meu quarto: ramalhetes de flores imaginárias que, entretanto, enfeitaram e perfumaram a minha infância e a minha adolescência.

Em uma das paredes do que fora o meu quarto restava uma cruz em mancha. Era a sombra do crucifixo que velava à minha cabeceira.

As próprias paredes têm memória...

Na fina poeira que se espalhava em nuvens de ouro, ao sol, que sombras seriam aquelas que meus olhos, só eles, percebiam?

Pobres manes!

E os lugares da casa, os queridos lugares!...

Ali ficava a mesa de jantar e, junto dela, a cadeirinha em que mamãe cosia. Pouco adiante a preguiceira de lona, onde meu pai, à noite, com a porta aberta à viração, dormitava o seu primeiro sono.

O meu quarto, a minha cama de ferro, a minha mesa de estudo e campo de manobras dos meus soldadinhos de chumbo.

E junto à janela, onde oscilava a gaiola do canário, era o reino encantado da velhinha que, no silêncio das horas recolhidas, me falava de gênios, príncipes e fadas e das maravilhas das Mil e uma noites.

Rolaram vigas com estrondo, toda uma parede aluiu. E a casa, pouco a pouco, ia revertendo ao pó, como um corpo humano.

Pobre cantinho de saudade! Canto da minha pobreza feliz! Ninho dos meus primeiros sonhos! Casa dos meus pais... Meu lar!...

Dos teus moradores naquele tempo só um ficou na vida para assistir-te na morte.

Amanhã haverá uma casa nova no chão que foi teu e outros a encherão de vida até que lhe chegue, a seu turno, o dia de morrer, como te chegou a ti, nascedouro, que foste, das minhas primeiras ilusões.

Porque havia eu de passar naquela rua justamente no dia em que se desmantelava às mãos dos homens o agasalho carinhoso de onde saí de coração puro e olhos inocentes para as tempestades da vida?!

O meu castelo

Não há palácio de rei que se compare, em grandeza e esplendor, ao castelo que erigi em região agreste, onde nem sussurro chegava da vida tumultuaria.

Arquitetado em um bloco, as suas torres, crivadas de ameias, topetavam com as cristas das mais altas montanhas e, quando se abriam no céu as auroras boreais, chovendo límpidas estrelas, ele acendia-se em brilhos diamantinos.

Era todo de gelo o meu solar.

Imenso! Nos seus vastos salões e pátios e ao longo das galerias diáfanas, o frio era de transir. Nos jardins hialinos, as flores do cristal, quanto mais áspero era o inverno, mais viçosas reluziam.

E eu era o soberano de um povo taciturno, todo de sombras pálidas: áulicos e guerreiros, pajens e damas, fâmulos e escravas de formosura como jamais hei visto. Se, porém, eu me chegava a alguma de tais sombras logo, como por encanto, fosse qual fosse, desaparecia.

Tudo se evaporava à minha aproximação e, poderoso, eu era um fraco; rico, era paupérrimo; cercado de numerosa grey, vivia sempre só; senhor das mais belas mulheres do mundo, não achava uma que recebesse os meus beijos e tendo diante dos olhos lautas, floridas mesas de festins, curtia fome como o mendigo que esmola à beira dos caminhos.

Um dia, cansado de tanta invernia e de tanto engano, pedi a Deus um raio de sol que me alumiasse e aquecesse. E veio o sol.

Ai! de mim... Todo o alteroso castelo, que abarbava com as cumeadas mais altivas, fundiu-se com tudo que nele havia, correndo, em rio, para o oceano.

Fiquei como o naufrago que as vagas arrojam a ilhéu deserto. E aqui estou em miséria e sem ânimo de pôr mãos à obra nova.

Consumi toda a minha descuidada mocidade construindo um castelo de gelo que, ao dar-lhe em cima o sol, desfez-se com tudo que continha.

Pobres das minhas ilusões! Pobre de mim!

Porque, em vez de obra tão trabalhosa e tão frágil, não fiz eu, como o pastor da montanha, uma simples cabana de lodo e palha?

Quanto tempo perdido em construção que se converteu em água de levada, água que vai fluindo melancólica, movendo corações sensíveis, até perder-se no esquecimento!

E, todavia, apesar do desamparo em que me acho, por haver empregado tão mal toda a existência, tenho saudade do castelo de gelo, povoado de sombras pálidas, no qual passei em sofrimento os melhores dias da minha vida.

A fogueira

Fora-se de todo a claridade que a fogueira, então reduzida a brasas tíbias, momentos antes espalhava em volta. Reanimá-la, como? Se eu apenas dispunha de um pouco de folhas secas. Ajuntei-as à pressa, achegando-as ao lume tênue.

Sentindo-se do calor as folhas encolheram-se encarquilhadamente. Logo um fio de fumo exíguo exsurgiu terebrante; uma centelha faiscou desenvolvendo-se em corisco que vermiculou, sesgo, por entre as versas. Era o lume que revivia.

Então debrucei-me ansioso e, sem pensar no que fazia, soprei o rescaldo à boca cheia.

As cinzas revolutearam em surto, envolveram-me o rosto empanando-me aridamente os olhos. Não fossem as lágrimas, que logo os inundaram, e não sei se eles teriam resistido ao queimor vivo.

Por que havia eu de tentar o absurdo? A chama não se reanima senão a troco de combustível. Cinzas hão se reacendem e, sopradas, revoltam-se.

Quando, reabrindo os olhos, contemplei a fogueira, já as folhas secas se haviam consumido, as derradeiras brasas vasquejavam e do que fora clarão, flamejo alegre e crepito, restava apenas o cineral.

E a noite, calada e fria, com estrelas mortiças, ficou dominando o campo escuro e tácito.

Por que insistir em evocações do passado? O que se queimou não torna a lume. Debruçar-se sobre dias idos, tentar reviver a Juventude é tanto como soprar um fogo morto. Folhas secas, que valem? Saudades não bastam para alimentar a vida e, se alguém se obstina em revocá-las sofre, como eu sofri tentando reavivar a sopro a fogueira que, em vez de chamas, com cinza apenas respondeu à minha tentativa insana.

Ruínas

Vinga-te da Eternidade, ó Tempo pérfido! Vinga-te desmantelando o abrigo em que Deus a instalou.

Como não a podes vencer vais, pouco a pouco, demolindo a sua habitação, como fazem senhorios cruéis quando se querem livrar de maus inquilinos. Covardia sem nome a tua, ó Tempo!

Pobre corpo, casa de aluguel construída de barro frágil! Começas a esboroar-te e tomas uma cor lívida como a das folhas, no outono, e todo te engelhas em lesins.

E tu, Alma, minh’alma, manténs-te a mesma, com todos os desejos alerta, com todo o vigor que tinhas quando, na manhã da mocidade e ainda pelo dia adiante, debruçando-te à janela dos olhos, contemplavas a Vida em pleno sol.

Porque há de a alma resistir sobre escombros, invulnerável às frechas do tempo, exposta às tentações infernais, como Job no fumeiro de Hus? Porque não acabar com o corpo, envelhecendo com ele, perecendo com ele, como se extingue o aroma quando murcha a flor?

O que mais dói em tal contraste é a ironia da vida que prossegue e, como as ruínas são lúgubres e desconfortáveis, todos lhes refugem à sombra. A alma, entretanto, chama pelos que transitam, brada-lhes aflita, acena-lhes ansiosa e desejosa. Debalde! Todos a desprezam. Alguns fazem mais: injuriam-na com a esmola da Piedade.

Suplício tremendo o do enterrado vivo! Lá fora a Vida e a Alma, sentindo-a, avistando-a inveja-lhe a ventura e a Vida foge-lhe, evita-a por vê-la alapardada em ruínas, coberta de hera, vegetação tristonha e inflória da velhice.

Não seria melhor que a moradora morresse antes da casa ou que sucumbisse com ela no desabamento?

Tristes dos que envelhecem conservando n’alma o viço da mocidade!

A grande saudade

Porque há de ser tão desigual em sua ação o Tempo? Tu, Cidade, quanto mais anos ganhas mais te renovas e aformoseias. Nós...

Os teus anfractos, Cidade, os teus campos de pascigo, as tuas hortas aguadiças, o teu humilde casário colonial, de telhados limosos, desapareceram e nos sítios em que, dantes eram ora aveludam-se gramados, florescem jardins, avultam construções titânicas ou sorriem, por entre moitas floridas, vilas graciosas.

E os homens de antanho passam como sombras por essas metamorfoses.

Com a mesma foice lavras e mutilas; com o mesmo hálito reviças e regelas.

Por que tanta desigualdade, ó Tempo?

Na Cidade o ferro, que é o teu símbolo, opera como o do lavrador nas terras de granjeio; nos homens golpeia vincos e o teu hálito gélido aneva-lhes os cabelos. Por quê?

As tuas ruas, Cidade, dantes estreitas e tortuosas, expluindo ervagens pelos interstícios dos lajedos, estendidas em renques de casebres, sombrias em pleno verão e enlameando-se espapaçadamente ao mais brando chuvisco... foram-se. Hoje os que por elas transitaram reveem-nas em miragens no horizonte longínquo da saudade.

E as chácaras dos arrabaldes, tão remotos outr’ora, hoje tão próximos? E os campos de verde-gaio, vastos, com uma cabaninha perdida, à maneira de ilha no oceano? E os riozinhos orlados de açucenas, que desciam, traquinas, até o centro mais povoado, trazendo folhas e flores das florestas? E o arvoredo umbroso das montanhas que, às vezes, se vestiam de nuvens? Tudo, enfim, que eu conheci e tanto amei desde a infância e pela mocidade além?

E as gentes: velhinhos, moços e crianças? É crível que todos já se hajam recolhido ao seio da Morte?

E os pregões das ruas, os alegres pregões dos vendedores de tanta coisa, por que se calaram?

Porque não retinem, claros ou não reboam soturnos os sinos que enchiam os ares de revoadas de sons? E as festas: festas de igreja com palanque no adro juncado de folhas de canela e mangueira, fogos de artifício, barracas, circo de cavalinhos, perto, estrondando zabumbas? E as cavalhadas, com torneios de canas entre cristãos e mouros? E as festas de gala, com luminárias? E os bailes, os jogos familiares, as feiras, os ranchos pastoris de Natal, as serenatas em noites de luar?... Que é feito de tudo isso? Eram velharias, levaste-as da Cidade dando-lhe em troca o que hoje a exorna e movimenta tumultuosamente.

E, se assim procedes com a Cidade por que somente em nós te acirras, Tempo injusto? Por que não farás conosco o que fazes com ela transformando-a e rejuvenescendo-a?

Os próprios dias e as noites não são os mesmos de antigamente — outra é neles a luz; outros são os ruídos; outras as músicas; outros os divertimentos — tudo é novo.

Está para nós a Cidade como o leito dos rios para as águas — ele jaz, permanece; elas passam em curso para o mar largo, perdem-se no verde imenso e de tudo que refletiram na defluência sonora nada lhes fica.

Mais felizes do que nós, sem dúvida, são as águas versáteis, por isso correm leves, ligeiras, aliviadas do que tanto nos pesa, isso que chamamos — saudade.

Arruínam-se, perecem as construções urbanas, vão-se-lhes os escombros levados em enterros, fica o chão raso... Tal sumiço, porém, é como o das sementes que, encovadas, rebentam com a primavera, exsurgem ao sol e viçam em plantas que dão flor e fruto.

Nós... pobres efêmeros que somos! Nós acabamos a pouco e pouco, uns lentamente, agoniadamente, em vasquejos torturados; outros a súbitas, num sopro, como apaga nas lâmpadas a chama.

Quando eu conheci a Vida, em ti, Cidade, tinhas o ar merencório de uma mendiga ao sol.

Viste-me pequenino e eu lembro-me de ti, encarquilhada em becos lúgubres, em travessas sórdidas, com umas casas baixas, lúgubres, sempre fechadas como cacifros de catacumbas. Hoje!...

Porque há de ser assim desigual o Tempo, remoçando a uns e envelhecendo a outros?

Que saudade de ti, das tuas ruínas, Cidade que eu conheci decrépita no tempo da minha infância e através da qual, hoje moça e formosa, arrasto penosamente a minha velhice triste.

Errata

Na pag. 173, linha 3, onde se lê; — onde se depositam – leia-se – onde jazem.