Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

ANTÓNIO NOBRE

 

 

 

 

Despedidas

1895-1899

 

 

 

 

Prefacio de José Pereira de Sampaio (Bruno)

PORTO

1902

ÍNDICE

Prefácio

I.  —  Sonetos: 1 a 25

II.  —  Outras poesias:

Eu chegara de França

Ladainha da Suíça

Confissão duma rapariga feia

Afirmações religiosas

Ares da Andaluzia

Contas de rezar

A ceifeira

Sensações de Baltimore

Ao mar

Dispersos

III. — O desejado

À Lisboa das naus cheia de glória

Às senhoras de Lisboa

 

A fraterna piedade de Augusto Nobre e a saudade amiga de Justino de Montalvão honraram-me com o pedido comovente de algumas linhas que acompanhassem este volume póstumo. Tendo organizado a nota que precede os fragmentos, ao diante publicados, do poema O Desejado, hesitei grandemente em aquiescer à solicitação que refiro. Temi que malignas malevolências acaso increpassem como de impertinente intrometimento essas linhas sinceras e inocentes. E elas seriam, de facto, com severidade condenáveis, desde que as ditassem pedantescas pretensões de recomendação às delicadas leituras. O nome do poeta não é somente conhecido; está decisivamente consagrado. Um prosador incorreto e seco não conseguiria senão tornar-se ridículo, quando tão improcedente estimulo fosse a impulsioná-lo.

Assim meditava e quase me resolvia por uma polida escusa, que me magoaria aliás; porém mais se radicou em meu animo o motivo antagônico que me convidara a ceder à cativante sedução do pedido, feito pelo irmão e pelo companheiro.

Lembrava-me e lembrei-me de que fora eu quem, sem sequer de vista o conhecer, apontou ao público culto o original, prometedor talento daquele moço ignorado então.

Concorrendo num efeito de beneficência, aparecera no Porto um volumezinho de versos, colaborado principalmente por acadêmicos, sob o título genérico e designativo de Um bouquet de sonetos. Eu lera as composições contidas na simpática coleção e prestei preferente cuidado àquelas que a novos, sem notoriedade ainda, pertenciam. Entre essas, primacialmente sobressaía o soneto de António Nobre, nome que eu havia notado já, por subscrever, em revistas literárias de colegiais, infantilidades onde perpassava uma réstia do fulgor divino. Fundara, por esse tempo, um diário de propaganda política A Discussão; na secção literária da folha estampei um artigo longo acerca do opúsculo que me atraíra o reparo; Gomes Leal replicou-me, com motivo de algumas afirmativas minhas, concernentemente à forma e à essência do gênero artístico. E no modesto estudo com que momentaneamente quebrei, confugindo, a monotonia acre das acerbas recriminações partidárias, indiquei o nome do jovem poeta, como o de alguém que tinha personalidade e viria a ser muito.

Veio, na verdade, a ser muito: tão fino, candidamente malicioso, doce, ingênuo era seu temperamento; tão sincera sua tristeza; tão moderno seu gosto; tão nacionalista seu sentir, na pátria e na família; tão sugestiva sua imaginação, ardorosa e melancólica!

Ora, já quando, na jubilosa plenitude da consciência estética, o escritor preparava em Paris o original definitivo do seu volume Só, como quer que ao mesmo Paris, cético e arisco na banalidade duma afetuosidade de superfície, me atirasse uma onda centrifuga do atroz redemoinho, ele mostrou-me que não esquecera as palavras do jornalista portuense, as quais só um mérito possuíam, o de se haverem coadunado com o lealismo duma emoção espontânea. Na escura rua de Trévise me procurou, abandonando por horas a sua preferida margem-esquerda, de que lhe era tão penoso afastar-se, António Nobre, uma tarde em que eu sofria cruelmente. Esta visita sensibilizou me; como me encantou a conversação do poeta, pelo tom subtil da melindrosa reserva na consolação, a um tempo caridosa e primorosa, duma alma em carne viva, como a minha por então andava.

Só no Porto novamente me reencontrei, conversando, com António Nobre; de volta do exilio eu, de regresso da ilusão de estancias salvadoras ele. Ambos viajáramos; ambos conhecêramos a glacial indiferença do homem; o poeta e o político encontrávamo-nos na identidade duma amarga desesperança tranquila. Separamo-nos depois de uma hora, melhorados para um instante.

Não o tornei a ver; sabia que ia cada vez mais a pior, neste rude Porto, fatal, física e moralmente, às naturezas susceptivelmente quintessenciadas como a dele. Súbito entrou em minha casa Justino de Montalvão, para que eu estivesse à noite na igreja, a ajudar a conduzir o nosso amigo, no seu caixão, para a sua tarima. Eis o desfecho de tudo.

Nunca me afligiu a minha aridez verbal como agora, em que me daria um orgulho inefável o poder falar do talento deste querido morto com palavras encantadas, que embebessem a leitura numa idealidade sonhada.

Pouso a pena áspera; demasiado dilacerou o papel; o dever da gratidão está cumprido; mas quedaria ainda faina para a crítica perspicaz e expressiva. Como indispensável, tocante elemento informativo, tenho aqui a fazer uma referência ao título do volume, Despedidas. Este título foi escolhido pelo poeta. Criminosa impiedade seria que doutrem emanasse.

Em uma das crises de pungente desanimo que frequentemente o assaltavam no último período da implacável enfermidade a que sucumbiu, pediu ele que, se viesse a morrer antes de poder publicar o seu livro, lhe dessem o título de Despedidas, significando este a sua retirada da vida literária; mas mais tarde deu a perceber claramente que assim o escolhera, por serem as suas últimas poesias, visto que tinha perdido a esperança de cura da doença que o torturava. Ainda só quinze dias antes da data fatal do seu trespasso, quis ele ir para a aldeia, com tenções de passar a limpo todas as suas poesias e de escrever definitivamente O Desejado, que, como se frisa na nota que lhe precede hoje os fragmentos, o poeta tinha todo in mente, mas muito incompleto nos seus cadernos de apontamentos.

Destas linhas que acima ficam se depreende que jamais lograram os versos que saem agora a lume o ser corrigidos por seu autor. Se imperfeições aqui ou ali acaso os maculem, acate-se o legitimo escrúpulo que não se atreveu a sujeitar o texto a alheia revisão minuciosa. Ele foi recebido como uma herança de coração; com inquieto sobressalto, julgou-se sacrílego que ela não fosse assaz respeitada.

Todavia, esta advertência era indispensável, para obviar a quaisquer reparos que o livro atual pudesse oferecer a uma leitura ou hostil ou sequer fria. Não é a essa espécie de crítica, a qual não compreende porque não sente, que o editor confia a obra póstuma do poeta a quem amou e cuja inolvidanda memoria o penetra duma inexaurível saudade. A verdadeira crítica, a crítica sã, fá-la-á o leitor melhormente dotado, com apurar que o livro atual, fragmentário consoante é, confirma a glória de António Nobre, cuja figura literária destacará como uma das mais acentuadas dentre as mais acentuadas da nova geração portuguesa.

JOSÉ PEREIRA DE SAMPAIO (Bruno).

 

SONETOS

1 - LÓGICA

Ai daqueles que, um dia, depuseram

Firmes crenças num bem que lhes voou!

Ai dos que neste mundo ainda esperam!

Terão a sorte de quem já esperou...

Ai dos pobrinhos, dos que já tiveram

Oiro e papeis que o vento lhes levou!

Ai dos que tem, que ainda não perderam,

Que amanhã, serão pobres como eu sou.

Ai dos que, hoje, amam e não são amados,

Que, algum dia, o serão, mas sem poder!

Ai dos que sofrem! ai dos desgraçados

Que, breve, não terão mais p'ra sofrer!

Ai dos que morrem, que lá vão levados!

Ai de nós que ainda temos de viver!

Pampilhoza, 1895.

2 - AO CAIR DAS FOLHAS

À minha irmã Maria da Glória

Pudessem suas mãos cobrir meu rosto,

Fechar-me os olhos e compor-me o leito,

Quando, sequinho, as mãos em cruz no peito,

Eu me for viajar para o Sol-posto.

De modo que me faça bom encosto,

O travesseiro comporá com jeito.

E eu tão feliz! por não estar afeito,

Hei-de sorrir, Senhor! quase com gosto.

Até com gosto, sim! Que faz quem vive

Órfão de mimos, viúvo de esperanças,

Solteiro de venturas, que não tive?

Assim, irei dormir com as crianças

Quase como elas, quase sem pecados...

E acabarão enfim os meus cuidados.

Clavadel, outubro, 1895.

3

À superiora dum convento de Paris

Não me esqueço de si, minha Mãe, fora

Onde fora. Ao contrário, lembro às vezes

Essa viagem nossa (de há alguns meses)

Sobre as águas do mar! Se fosse agora...

Oh o encanto da viagem sedutora!

Que bem me disse então dos Portugueses!

Que faria hoje! foram-se os revezes!

O que lá vai pela África, Senhora!

Depois, ao separarmo-nos no Tejo,

Disse-me (com que voz e com que modos!)

«Deus o faça feliz, ao seu desejo!»

Mas não fez, minha Mãe! Talvez no céu...

Porque afinal os homens quase todos

Têm sido e são muito mais maus do que eu...

St. Johann Am-Platz, 1896.

4

Nossos amores foram desgraçados,

Desgraçada paixão! tristes amores!

Se Deus me dá assim tamanhas dores,

É porque grandes são os meus pecados.

Quando virão os dias desejados?

Quando virá Maio para eu ver flores?

Nunca mais! ainda bem, santos horrores!

Que os pobres dias meus estão contados.

Passo os dias metido no meu moinho,

E mói que mói saudades e tristezas,

Moleiro que no mundo está sozinho.

Os lavradores destas redondezas

Queixam-se até de que a farinha à data

Tanta é que «está de rastos de barata...»

St. Johann Am-Platz, 1896.

5

Placidamente, bate-me no peito

Meu coração que tanto tem batido!

E para mim, inda este mundo é estreito

P'ra conter tudo, quanto eu hei sofrido.

Meus dias vão passando como as águas

Que o vento leva em ondas, ao mar-alto,

E se de noite eu oiço aquelas mágoas

Já não descanso mais, em sobressalto.

Placidamente, bate-me no peito

Meu coração em lutas tão desfeito,

Que com a Vida, a Dor hei confundido.

E se se ganha a Paz com o sofrimento,

Deixai-me entrar enfim nesse Convento...

Pois há quem tenha, assim como eu, sofrido!

Berne, maio, 1896.

6 - APARIÇÃO

À Virgem Santíssima

Pelas espadas que tu tens no peito,

Pelos teus olhos roxos de chorar,

Pelo manto que trazes de astros feito,

Por esse modo tão lindo de andar;

Por essa graça e esse suave jeito,

Pelo sorriso (que é de sol e luar)

Por te ouvir assim sobre o meu leito,

Por essa voz, baixinho: «Há-de sarar...»

Por tantas bênçãos que eu sinto n'alma,

Quando chegando vens, assim tão calma,

Pela cinta que trazes, cor dos céus:

Adivinhei teu nome, Aparição!

Pois consultando manso o coração

Senti dizer em mim «A Mãe de Deus!»

Lausana, junho, 1896.

7

Todas as tardes, vou Léman acima

(E leve o tempo passa nessas tardes)

A pensar em Coimbra. Que saudades!

Diogo Bernardes deste meigo Lima.

Na solidão, pensar em ti, anima,

Oh Coimbra sem par, flor das Cidades!

Os rapazes tão bons nessas idades

(Antes que a Vida ponha a mão em cima...)

Alegres cantam nos teus arrabaldes.

Por mais que tire vêm cheios os baldes,

Mar de recordações, poço sem fundo!

Freirinhas de Tentugal, passos lentos!

E o chá com bolos, dentro dos conventos!

Meu Deus! meu Deus! e eu sempre a errar no Mundo!

Lausana, junho, 1896.

8

A meu irmão Augusto

Léman azul, que, mudo e morto, jazes.

Quanto és feliz! assim pudesse eu sê-lo!

Nem a sombra dos montes, nem seu gelo,

De turvar tuas águas são capazes.

Minhas cartas inúteis de doutor

Eu rasgaria, é certo, com prazer,

Se eu pudesse um dia vir a ser

Dessas ondas, um simples pescador.

Léman azul, nas águas sossegadas,

Quantas vidas tu levas confiadas!

Pareces ver meu mal, e escarnecê-lo!

Só do meu coração, ao alto-mar,

Ninguém se quis ainda sujeitar.

Quanto és feliz! assim pudesse eu sê-lo!

Villeneuve, junho, 1896.

9

A Justino de Montalvão

Em St. Maurice (aqui perto) há um convento

De Franciscanos. Fui-me lá há dias.

Quando eu entrei, tocava a Ave-Marias.

Iam cear. Fora mugia o vento.

Um pálido Cristo, ao fundo da sala,

Espalha em redor seu alvo clarão;

E, quando se reflete a Cruz pelo chão,

Os frades ingênuos não ousam pisá-la.

«Meu irmão...» disseram, ao verem-me à porta.

Vontade, Senhor, tive eu de chorar!

Tão só me sentia, pela noite morta...

E quando na volta, à luz das estrelas,

Meu doido passado me vim a evocar,

Pensei no perdão duma alma da aquelas.

Bex, junho, 1896.

10

Senhora! a todas as novenas ides,

E porque vós lá ides, vou também.

É um descanso sem par às minhas lides,

Aos meus males, e em suma faz-me bem.

Essas graças que tendes (vós sorrides?)

Só nas flores as vejo, em mais ninguém.

Se o vosso corpo é magro como as vides,

Os cachos de uvas que o cabelo tem!

Fazeis-me andar numa continua roda,

Pelas igrejas da cidade toda,

S. Luiz de França, Encarnação e mais.

Senhora! assim comigo em beato dais,

Faço-me frade e vou para um convento...

E adeus! que lá se vai o casamento!

Lisboa, janeiro, 1897.

11

Há já duzentos soes, há quatro luas,

Que te pedi que a Igreja abandonasses.

Tu és cruel, Senhora! continuas,

Como se agora apenas começasses.

Á sexta-feira e ao sábado jejuas,

E tanto te pedi que não jejuasses.

E o que dói mais, Senhora, é que insinuas

Em voz que tanto dói: «Se me imitasses...»

Nenhuns pecados tens. És anjo e santa.

Boa como o céu, simples como a planta,

Cozes p'ros pobres, fazes boas-obras!

Quais são os teus pecados? pecadores

Senhora! são os vossos confessores.

Homens e basta: são maus como as cobras!

Lisboa, 1897.

12 - MONÓLOGO DE OUTUBRO

A meu irmão Augusto

Outono, meu Outono, ah! não te vás embora!

Ás minhas, eu comparo as tuas estranhezas.

Ah! nos teus dias não há Julhos nem aurora,

E só crepúsculos... Crepúsculos são tristezas!

E tu que já passaste o Outono só comigo

Não pensas ao cair de tantas agonias

Nas minhas, que tu sabes, ó meu melhor amigo?

Caí, folhas, caí! tombai melancolias!

Ides morrer, folhas! mas morrer que importa?

Lá vai mais uma... mal nasceu e já vai morta.

Levais saudades? Coitadinha, sois tão nova!

Tendes razão? Nem sei a falar a verdade.

Tombar quisera eu, só p'ra esquecer. Saudade,

Irmão, não a terei também, lá pela cova?...

Foz, 1897.

13

Pedi-te a fé, Senhor! pedi-te a graça,

Mas não te curvas nunca, p'ra me ouvir.

Tudo acaba no mundo... tudo passa,

Mas só meu mal se foi e torna a vir.

Não busco a morte com arma ou veneno,

Mas enfim pode vir quando quiser.

Eu estarei de pé, firme e sereno,

Sorrir-lhe-ei até, quando vier.

Tristes vaidades deste pobre mundo!

Já me parecem tais como elas são:

Tristes misérias deste mar sem fundo.

Se tive algumas eu, na mocidade,

Não foram elas mais que uma ilusão.

E um dia eu ri da minha ingenuidade!

Lisboa, janeiro, 1898.

14

O mar que embala, às noites, o teu sono

É o mesmo, flor! que à noite embala o meu.

Mas em vão canta a minha ama do Outono,

Pois pouco dorme quem muito sofreu.

Mas tu feliz qual rainha sobre o trono,

Dormes e sonhas... no que, bem sei eu!

O teu cabelo solto ao abandono,

As mãos erguidas de falar ao céu...

Feliz! feliz de ti, doce Constança!

Reza por mim, na tua voz quimérica,

Uma Ave-Maria de Esperança!

Por minha saúde e glória (Deus ma dê)

Por essa viagem que vou dar a América...

Quando, um dia, voltar, dir-te-ei porquê!

Ilha da Madeira, maio, 1898.

15 – MAMÃ

Toda a Paz, todo o Amor, toda a Bondade,

Toda a Ternura que de ti me vêm,

Amparam-me esta triste mocidade

Como nos tempos em que tinha Mãe.

Quanto eu te devo! Ódios, impiedade,

Indignações e raivas contra alguém,

Loucuras de rapaz, tédios, vaidade,

Tudo isso perdi — e ainda bem!

Salvaste-me! Trouxeste-me a Esperança!

Nunca ma tires não, linda criança,

(Linda e tão boa não o farás, talvez!)

Pois que perder-te, meu amor, agora,

Ai que desgraça horrível! isso fora

Perder a minha Mãe, segunda vez.

Ilha da Madeira, 1898.

16

Há vinte anos já, que andas na Terra,

Há vinte dias só, que te conheço!

Eu andava perdido pela serra,

E o que eu era então, já não pareço.

Há vinte dias só que te conheço,

Ó meu beijo de Luz! minha Quimera!

És a Graça de Deus (com que estremeço)

Talvez, o que no mundo, inda me espera.

Sonho da minh'alma! Ó meu céu de estio!

Pois não tens piedade deste frio

Que sinto em mim, na minha solidão!

Minha bênção de Cristo, prometida,

Não serás tu a Paz da minha vida?

Oh! não me digas não, que és Ilusão!

Quinta Almeida. Funchal, abril, 1898.

17 - RIQUINHA

Sofrer calada as suas próprias dores

E chorar como suas as dos mais,

Tal a Rainha do seu nome, em flores

Transforma pedras e em sorrisos ais.

A toda a parte leva o sol e amores,

É a Saúde dos Enfermos nos Casais;

E, no mar-alto, os velhos pescadores

Invocam-na entre espuma e temporais!

Quem será ela, tão piedosa e doce!

Com uns tais olhos que não tinha visto

Será a Virgem? Oxalá que fosse!

Oh! flor mais bela do jardim desta Ilha!

Fora outrora, talvez, filha de Cristo,

Se Cristo houvesse tido alguma filha!

Ilha da Madeira, 1898.

18 - O TEU RETRATO

Deus fez a noite com o teu olhar,

Deus fez as ondas com os teus cabelos;

Com a tua coragem fez castelos

Que pôs, como defesa, à beira-mar.

Com um sorriso teu, fez o luar

(Que é sorriso de noite, ao viandante)

E eu que andava pelo mundo, errante,

Já não ando perdido em alto-mar!

Do céu de Portugal fez a tua alma!

E ao ver-te sempre assim, tão pura e calma,

Da minha Noite, eu fiz a Claridade!

Ó meu anjo de luz e de esperança,

Será em ti afinal que descansa

O triste fim da minha mocidade!

Ilha da Madeira, junho, 1898.

19 - SESTANÇA

Ia em meio da minha Mocidade,

Perdido de afeições, ao vento agreste,

Quando na Vida tu me apareceste,

Sestança, minha Irmã da Caridade!

Ninguém de mim dó teve, nem piedade,

Ninguém n'a tinha, só tu a tiveste:

Quantas velas à Virgem acendeste!

Quantas rezas nos templos da cidade!

Que te fiz eu, Espelho das Mulheres!

Para assim merecer um tal cuidado

E tudo quanto ainda me fizeres?

Bendito seja Deus que me escutou!

Bendito seja o Pai que te há procriado!

Bendita seja a Mãe que te gerou!

Ilha da Madeira. Quinta da Saúde, 29-7-1898.

20 - EMÍLIAS

(A uma senhora que não quer ser Emília)

Emília és, quer queiras, ou não queiras:

Que lindo nome o teu, soante de brisas!

É um nome de pastoras e moleiras,

Loira morgada do solar dos Nizas!

Muitas Emílias há, entre ceifeiras,

Há Emílias nos serões das descamisas...

Se tu, Senhor! dás nome às Amendoeiras

Com o nome de Emília é que as batizas!

Que Santa Emília te acompanhe, Rainha!

E com a tua Mãe seja madrinha,

Quando ela, um dia, te levar à Igreja!

E, ó pura Glória, que em teus olhos brilha!

Doces presságios meus, que a tua filha

Seja loira também e Emília seja!

Ilha da Madeira, novembro, 20, 1898.

21

O coração dos homens com a idade,

A pouco e pouco, vai arrefecendo...

Quão diversos me vão aparecendo

Do que eram ao abrir da mocidade!

O sorriso não tem já lealdade,

Lágrimas são difíceis... não as tendo.

Palavras não vos faltam, estou vendo

Mostrar o que sentis só por vaidade.

Já não me ilude, a Glória que sonhei.

Perdi a fé em tudo quanto amei.

Mas só agora, eu sei o que é viver!

Não fazes bem, assim, em rir de mim!

Tenho tido na vida horrores sem fim,

Mas só agora, eu sei o que é sofrer!

Ilha da Madeira, dezembro, 1898.

22

O Senhor, cuja Lei é sempre justa,

Deu-me uma infortunada mocidade,

Talvez para eu saber (o que é verdade)

Quanto é bom ser feliz, mas quanto custa!

Feliz de quem no mundo sem piedade,

Encontrou alma que lhe entenda a sua,

Que o mesmo é que ter na mão a Lua

Tão longe nessa triste Eternidade!

Os meus dias passavam tristemente

Quando encontrei o teu olhar ridente:

Foi a bênção de luz da Mãe de Deus!

Vais deixar-me de novo, só na vida!

Ao cabo de viagem tão comprida

Talvez sintas mais perto os olhos meus!

Ilha da Madeira, janeiro de 1899.

23 - ADEUS A CONSTANÇA

Vai o teu Pai andar ao sol de verão,

E mais à chuva e ao vento; e só depois

Poderá ter a colheita desse pão

Que semeou cantando ao pé dos bois.

Feliz que eu fui em te encontrar na vida,

Minha doce Constança desejada!

Antes de ver-te a ti não via nada,

Nem para mim a lua era nascida.

Tu vais partir em breve com teu Pai

Por esse mar que tão piedoso está.

Não sede amargas, ondas, mas chorai!

Vais ver campos em flor que te conhecem...

E se a colheita se fizesse já,

Talvez na volta as ondas te trouxessem!

Ilha da Madeira, 1899.

24 - ANTES DE PARTIR

Vários Poetas vieram à Madeira

(Pela fama que tem) a ares do Mar:

Uns p'ra, breve, voltarem à lareira,

Outros, ai deles! para aqui ficar.

Esta ilha é Portugal, mesma é a bandeira,

Morrer nesta ilha não deve custar,

Mas para mim sempre é terra estrangeira,

Á minha pátria quero, enfim, voltar.

Ilhas amadas! Céu cheio de luas!

Ah como é triste andar por essas ruas,

Pálido, de olhos grandes, a tossir!

Eu vou-me embora, adeus! mas volto a vê-las,

Vou com as ondas, voltarei com elas,

Mas como elas p'ra tornar a ir!

Ilha da Madeira, fevereiro, 1899.

25

Meu pobre amigo! Sempre silencioso!

Assim eu fui. Cismava, lia, lia...

Mudei no entanto de Filosofia.

Não creio em nada! e fui tão religioso!

Tomei parte no Exército glorioso

Que foi bater-se por Israel, um dia!

Cri no Amor, no Bem, na Virgem Maria,

Não creio em nada! tudo é mentiroso!

Não vale a pena amar e ser amado,

Nem ter filhos dum seio de mulher

Que ainda nos vêm fazer mais desgraçado!

Não vale a pena um grande poeta ser,

Não vale a pena ser rei nem soldado

E venha a Morte, quando Deus quiser!

St. Johann-am-Platz, outubro, 1899.

 

OUTRAS POESIAS

 

A FRANCISCO CEZIMBRA

Eu chegara de França uns quatro dias antes

E via-me tão só num deserto sem fim,

Lá deixara a alegria, amores, estudantes,

Via a vida, aqui, negra adiante de mim.

Que havia de fazer? Eu não tinha um desejo,

Nada no mundo me podia estimular!

Ai quantas vezes, ao passar junto do Tejo,

Perdoa-me, Senhor! pensei em me afogar!

Perdoa-me, Senhor! tu deves perdoar

Pois para que me deste assim um coração!

Tudo quanto via me dava que cismar

De tudo tinha dó, de tudo compaixão.

Ó meus amigos de Coimbra! que saudades

Eu sentia ao pensar nos tempos de ilusões!

Porque chamaria eu agora, só vaidades

Ao que outrora p'ra nós tinham sido visões?

E conheci depois a fase lastimosa

(Ó meus amigos certos, não ma queirais lembrar)

Em que descri de tudo, até da meiga rosa

Que via entre velas, aos pés dalgum altar.

De tudo ri então, Senhor, como um perdido

Mas era um rizo mau, Francisco, que feria...

Tu cuja alma em flor ainda me sorria

Como pudeste tu, meu rizo ter vencido?

1895.

 

LADAINHA DA SUÍÇA

A Martinho de Brederode

Quando cheguei aqui, dizia baixo o povo

Pelas ruas, vendo-me passar:

— Vem tão doentinho, olhai! e é ainda tão novo...

E assim sozinho, sem ninguém para o tratar!

(Que boa a Suíça! que bom é este povo!)

Raparigas de luar, pastoras destes Andes,

Diziam entre si: Quem será este senhor?

Todo de preto, tão pálido, olhos tão grandes!

E rezavam por mim, baixinho, com amor.

(Ó pastoras tão meigas destes Andes!)

Por fim entrei receoso em uma casa imensa

Com Jesus Cristo ao fundo e velas e alecrim.

Treme-me ainda hoje a minha alma se nela pensa:

Rezas... doentes... ais... corredores sem fim!...

(Ah que tristeza a dessa casa imensa!)

No alto da escada umas Irmãs da Caridade

Vieram, a sorrir, perguntar: «Como vai?»

No olhar delas (tão doce!) havia tal bondade,

Que me julguei feliz, até sorrir, olhai!

(Minhas boas Irmãs da Caridade!)

Uma delas guiou-me ao quarto onde a paisagem

Ante meus olhos se estendia e os deslumbrou...

— «E então como passou? Gostou da sua viagem?

E a Nossa-Suíça que tal acha, não gostou?»

(Ó Suíça da divina paisagem!)

Não me deixava com perguntas. Era Suíça

E não deixara nunca esta alva nação.

Ignorava o que era a Verdade, a Justiça:

Tudo nela era instinto, inocência e perdão.

(Que ingênua és ainda, Suíça!)

— Vá, quero que me diga o seu nome, primeiro

E depois donde vem, quem é... pelo falar...

— Venho da beira-mar, e sou um marinheiro.

E ela tornou-me: O mar! eu nunca vi o mar!

(Nos meus olhos o viste tu primeiro.)

Com que doçura, com que mimo e com que graça

Me arranjou tudo! Até meu leito quis abrir.

E como uma ama diz ao menino que a enlaça,

Disse-me: «Boas noites. Faça por dormir!...»

(Ó Suíça cheia de graça!)

E eu assim fiz. Adormeci, feliz, sereno,

E no outro dia eu já estava melhor.

Passados três, passei de pálido a moreno

Passado um mês, «não é nada» disse o doutor.

(Oh! quanto eu era então feliz, sereno!)

E a boa Irmã toda contente e dedicada

Que sempre estava à escuta em biquinhos de pé

— Vê, tantos sustos! e afinal não era nada!

E se ele disse «não é nada» é que não é!

(Ó boa Irmã, de voz tão delicada!)

Falou verdade o bom doutor. Ergueu-se em breve

A minha doida mocidade arrependida.

Benditos sejais vós, Alpes cheios de neve!

Benditos sejais vós que me salvaste a vida!

(E o meu coração que doce paz vos deve!)

Bendita sejas tu, ó Suíça meiga e boa!

Gloriosa entre os mais povos, sê bendita!

Bendita sejas tu, de Cristiânia a Lisboa!

Bendita sejas tu entre as nações, bendita!

(Bendita sejas, minha Suíça boa!)

Lausana, 1896.

 

CONFISSÃO DUMA RAPARIGA FEIA

(INCOMPLETA)

Há raparigas neste mundo,

Há raparigas que são feias,

Mas nenhuma tanto como eu.

De mim tenho nojo profundo,

Ciúmes do Sol, das luas cheias,

Que vão tão lindas pelo céu!

Nos arraiais, nas romarias,

Adelaides, Joanas, Marias,

Todas tem par, mas menos eu.

Todas bailam, rindo e cantando,

E eu fico-me a olhá-las cismando

Na sorte que o Senhor me deu!

Se eu fosse cega ou aleijada,

Talvez ficasse resignada,

Porque havia de queixar-me eu?

Mas sendo sã, sendo perfeita

Tua vontade seja feita,

Senhor! é sorte, é fado meu!

..................................

 

AFIRMAÇÕES RELIGIOSAS

Ó meus queridos! Ó meus Santos limoeiros!

Ó bons e simples padroeiros!

Santos da minha muita devoção!

Padres choupos! ó castanheiros!

Basta de livros, basta de livreiros!

Sinto-me farto de civilização!

Rezai por mim, ó minhas boas freiras

Rezai por mim escuras oliveiras

De Coimbra, em Santo António de Olivais:

Tornai-me simples como eu era dantes,

Sol de Junho queima as minhas estantes

Poupa-me a Bíblia, Antero... e pouco mais!

No mar da Vida cheia de perigos

Mais monstros há, diziam os antigos,

Que lá nas águas desse outro mar.

O que pensais vós a respeito disto,

Ó navegantes desse mar de Cristo!

Heróis, que tanto tendes que contar?

Chorai por mim, ó prantos dos salgueiros,

Pois entre os tristes eu sou dos primeiros!

Lamentos ao luar, dos pinheirais,

E vós ó sombra triste das figueiras!

Chorai por mim ó flor das amendoeiras

Chorai também ó verdes canaviais!

E quando enfim, já farto de sofrer

Eu um dia me for adormecer

Para onde há paz, maior que num convento:

Cobri-me de vestes, ó folhas de Outono,

Ai não me deixeis no meu abandono!

Chorai-me ciprestes, batidos do vento...

1897.

 

ARES DA ANDALUZIA

Ó formosa Andaluzia!

Terra de Nossa Senhora!

Ó formosa Andaluzia

Onde o luar parece dia

Onde é dia a toda a hora!

Ai eu tenho sete musas

Quais delas prefiro eu?

Ai eu tenho sete musas,

Três delas são andaluzas

Porque as outras são do céu.

Málaga, terra de encantos,

Terra das vinhas doiradas!

Málaga, terra de encantos!

Igrejas cheias de Santos,

E Virgens cheias de espadas!

Vossa boca tem desejos

Que a boca das mais não tem...

Vossa boca tem desejos

E já morria por beijos

No ventre da vossa mãe!

Ó meninas de Sevilha

Sou doente, vinde amparar-me,

Ó meninas de Sevilha

Deixai-me a vossa mantilha

Que eu não quero constipar-me!

Ó menina, olá, a mais alta

Porque foge e me olha assim?

Ó menina olá a mais alta,

Se a beleza não lhe falta,

Não julgue que é mais que a mim.

Ai esta Vida é tão curta!

Ai o Amor dura um instante,

Ai esta Vida é tão curta!

Dormir, um dia, entre murta

Nos braços duma outra amante!...

Olhos de Cádiz tão pretos

(E o mar ao pé tão azul!)

Olhos de Cádiz tão pretos

De luto por Esqueletos

Que o mar traz com vento sul.

Já sorvi na minha boca

Beijos de toda a Nação!

Já sorvi na minha boca

Tanto mel, cabeça louca!

Mas assim como estes, não!

Menina das pandeiretas!

Que contente que hoje estais!

Menina das pandeiretas!

Tão séria, de capas pretas,

Ao lado de vossos Paes.

Vem beber a mocidade

Com a tua trança solta.

Vem beber a mocidade

Não torna a vir esta idade

E o Amor como ela não volta.

Ó seios como pombinhos

Ó seios por quem bateis?

Ó seios como pombinhos

Tão alegres nos seus ninhos

Não sei eu, mas vós sabeis...

 

CONTAS DE REZAR

    A Maria dos Prazeres

    Misericórdia dos mares!

    Que escrevi para tu leres,

    Que eu fiz para tu rezares!

MARIA DOS PRAZERES.                       ANTÓNIO SEM ELES.

Maria é! Violeta da Humildade

Onda do mar das Índias! sempre triste!

Porque andará tão triste nessa idade

Se o Deus em que ela crê para ela existe?

Maria é! Violeta da Humildade!

Onda do mar das Índias! tão modesta

E tão grande que ela é! Que dor funesta

A faz andar tão triste nessa idade?

E eu digo ao vê-la entrar, meiga e modesta,

Na Igreja, quando ajoelha e se persigna:

«Parece incrível faça parte desta

Humanidade mentirosa e indigna!»

Quanto ela é Santa! quanto ela é boa!

Até tem dó e compaixão por mim...

Mal diria eu que a trágica Lisboa

Tinha em seus muros uma Santa assim!

Ella nasceu para assistir às guerras

Ella nasceu p'ra atravessar os mares

Ella nasceu para ir a longas terras

Ella nasceu para proteger os lares!

Ella nasceu para ir com portugueses,

Ao que a vida arriscou, sarar-lhe as feridas,

Com remédios, ao pé, meses e meses,

Ou dar-lhe a unção com suas mãos compridas!

Ella nasceu para levar consigo

Um exército leal, místico e forte.

Ser a última a dobrar ante o inimigo

E a primeira a morrer, sorrindo à morte!

Ella nasceu p'ra comandar armadas

Vestir a blusa azul dos marinheiros.

Morrer que importa? Sobre águas salgadas

No imenso oceano não faltam coveiros!

Ella é formosa e grande entre as mulheres,

Sua doçura é toda de veludo...

Mas as respostas que dão malmequeres!

Tristes, Senhor! como na vida é tudo!

Quando ela passa toda cor de cera,

Devagarinho e de missal na mão,

Vai tão ligeira, lembra uma galera

Que segue viagem de vento à feição!

Os seus olhos são negros e tão belos

Que grandes são! têm penas disfarçadas...

Que são eles? Ogivas de castelos

Com duas meninas sempre debruçadas.

O seu cabelo é negro e imenso e roça

Pelo chão, como a noite e a escuridade,

Aparta-o ao meio assim... Parece Nossa

Senhora, quando tinha a sua idade!

A sua voz baixinha vem da alma,

Tudo o que há nela é do que eu gosto mais.

É assim que fala a aragem pela calma

Quando mareantes pedem temporais.

Vozes assim só se ouvem no convento

Á oração em silencio habituado,

Que Deus entende a voz do Pensamento:

Pode falar-se a Deus e estar calado!

Os seios lembram duas pombas gêmeas

No seu ninho a dormir, muito quietinhas.

Amor, protege o sono delas, teme-as,

Não acordes as pombas coitadinhas!

Que dizer do seu corpo esbelto de asa!

Tão delgado, onde passa o seu anel?

É o mais lindo Torreão da sua Casa!

É uma nau da Índia, a S. Gabriel.

Os seus braços são débeis! mas exaltam

E sustentam em mim toda a Esperança!

Os seus braços, Senhor! são os que faltam

A certa Vênus que se admira em França!

O seu sorriso é o sol, quando aparece,

Vê-la sorrir é ver o sol cantar;

Mas o seu habitual, ai não se esquece!

É o sol às tardes quando cai no mar...

A sua boca é uma romã vermelha,

Mostrando em risos os seus grãos de opala.

Favo de beijos, que dá mel à abelha,

A sua boca é uma flor com fala!

Lisboa, 1898.

 

A CEIFEIRA

(INCOMPLETA)

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Porque é que te odeiam os homens se os levas

           A um mundo melhor?

Ó velha hospedeira da aldeia do nada,

Tenho as malas prontas, vou breve partir.

Prepara-me um quarto na tua pousada

Que tenha a janela para o sul voltada

E fontes à roda para eu dormir...

 

SENSAÇÕES DE BALTIMORE

(INCOMPLETA)

Cidade triste entre as tristes,

     Oh Baltimore!

Mal eu diria que na terra existes

Cidade dos Poetas e dos Tristes,

Com teus sinos clamando «Never-more.»

Os comboios relâmpagos voando,

Pela cidade de Baltimore,

Levam uns sinos que de quando em quando

Ferem os ares, o coração magoando

E os sinos clamam «Never-more, never-more».

...........................................

Baltimore, 1897.

 

AO MAR

(SONETO ANTIGO)

Ó meu amigo Mar, meu companheiro

De infância! dos meus tempos de colégio,

Quando p'ra vir nadar como um poveiro

Eu gazeava à lição do mestre-régio!

Recordas-te de mim, do Anto trigueiro?

(O contrário seria um sacrilégio)

Lembras-te ainda desse marinheiro

De boina e de cachimbo? Ó mar protege-o!

Que tua mão oceânica me ajude,

Leva-me sempre pelo bom caminho,

Não me faltes nas horas de aflição.

Dá-me talento e paz, dá-me saúde,

Que um dia eu possa enfim, poeta velhinho!

Trazer meus netos a beijar-te a mão...

 

DISPERSOS

1

— Sofro por ti nesta ausência,

Tanto que não sei dizer.

— Meu António! Tem paciência!

Sofrer por mim é sofrer?

2

Ah quem me dera abraçar-te

Contra o peito, assim, assim...

Levar-me a morte e levar-te

Toda abraçadinha a mim!

3

Ai ela é tão pequenina

Que, quando ao meu colo vai,

Diz o povo: uma menina

Que vai ao colo do Pai!

4

És tão fraca, tão fraquinha,

Que, ao passar, uma andorinha

Com um simples encontrão

Podia deitar-te ao chão.

Mas também te levantava

Sem grande custo: bastava

Beijar-te (nem isso, até)

Logo te punhas em pé!

5

Espreitei à tua porta,

Quis ver-te a dormir, sorrindo...

Mas ai! só vendo-te morta,

Saberei como és dormindo!

6

— Dá-me um beijinho, que eu peço?

— Isso sim!  — Furto-lho então!

— Não que eu meto-o num processo

Pelo crime de ladrão!

7

O teu sono — ai que ventura

Tantos sonhos, que sei eu?

O meu é uma noite escura

Com uma estrela no céu!

8

Coração, bates saudades

Saudades tão tristes são,

Lembra-me o sino às Trindades,

O sino faz: Dlão! dlão! dlão!

9

Ai! na hora da partida,

Parte-se o coração!

Ai! como é triste a Vida!

Uns ficam... outros vão...

10

O coração apodrece,

Apodrece como o mais

Mas a dor, ai! reverdece,

Essa não morre jamais.

11

És morena, moreninha,

Morena de andar ao sol!

No dia em que fores minha

Como hás de ser moreninha

Na brancura do lençol!

12

São as meninas da Ilha da Madeira

Ternas, graciosas, pálidas, ideais;

Fica-se doido, vendo-se a primeira,

Doido se fica, se se veem as mais;

Qual é a mais bela da Ilha da Madeira.

     Se são todas iguais?

13

Há um lindo lugar, em Trás-os-Montes,

Com uma casa só, a casa dela.

O mais é o pôr-do-sol, bouças e fontes

Que compõem a sua parentela.

Encanto de possuir uns tais parentes!

Fidalga excepcional que é a Purinha!

Que ela nas veias tem sangue dos poentes,

E os cravos brancos chamam-lhe: Priminha!

Oh que ascendência! que família estranha!

Onde há fidalgos com uns tais avós?

Sois os seus Paes, pinheiros da montanha,

E assim ela é altinha como vós!

14

Amo-te toda porque és linda, linda, linda!

Teus olhos, tua voz, teu sorriso, eu sei lá!

Mas o que eu amo mais, o que amo mais ainda,

É a alminha de Deus que dentro de ti está.

15

Uma alma chega ao pé do seio da Purinha!

E bate devagar, docemente: «truz! truz!»

— Quem é? (responde lá de dentro uma vozinha)

— (António...) e logo veio à porta, com a luz.

16

Mamã te chamo porque me trazes ao peito,

Filha te chamo pelo mimo que te dou,

Irmã te chamo porque te tenho respeito,

Noivinha te chamo porque teu noivo sou!

17

Na sexta-feira às dez horas olha p'ra lua,

Que eu, tão longe, ai tão longe! hei-de olhá-la também:

Assim minha alma encontrar-se-á lá com a tua!

E quem se encontra, filha!, é porque se quer bem!

18

Tu és altinha como eu, embora

Eu seja um homem e tu uma criança!

Tanto que ao irmos pela estrada, agora,

Ouvi dizer: «Que lindo par de França!»

19

Teus olhos são dois céus. E neles leio

O que nos outros leem os pastores:

Estrela da manhã dos meus amores!

Sete estrelo que vais do céu em meio!

20

Ai que saudade! O amor das Estrangeiras!

Que chegam, sabe Deus donde e com que fito,

E um dia, lá se vão andorinhas ligeiras,

E nunca poisam, andorinhas sem Egito!

21

No vosso leito, à cabeceira, ponde isto,

Ponde este livro ao pé do vosso coração:

Adormecei rezando a «Imitação de Cristo»

E «Nun’Álvares», que é de Cristo a imitação.

 

O DESEJADO

O poema, cujos fragmentos são agora publicados, não seria uma composição de caráter peculiarmente épico mas sim melhormente lírico. Autorizaria esta conjectura o tom subjetivo do talento do poeta e ela é confirmada pelo que ele chegou a realizar da sua concepção. Assim, quanto de narrativamente histórico houvesse de ser objeto da sua obra viria coado através da imaginação do autor. Ele propunha-se evocar não uma figura de crônica mas um tipo de lenda, e o seu alvo era fazer sentir ao leitor o encanto idealista e romanesco do sebastianismo, considerado como elemento de estimulo para a fé na nacionalidade e como incentivo e consolação nas esperanças e nas decepções da pátria.

Pelo que ficou depreende-se que o autor desenhara a largo traço o programa da sua obra; mas em suas diversas secções não trabalhou com assiduidade igual. Uma leitura atenta dos fragmentos pareceu permitir coordena-los numa ordem clara de sucessão, marcando-se com adequado sinal tipográfico as interrupções que aí aparecem. Nesta melindrosa faina foi de inestimável valia a cooperação prestada pela benemerência de pessoa distintíssima, a Exma. Sra. D. Constança da Gama, que tivera ensejo de ouvir do poeta os diversos episódios compostos, bem como a explanação genérica de sua fantasia e de seu intento.

O livro abriria, como abre, por uma dedicatória geral à Lisboa das naus, cheia de glória, a qual seria seguida de uma invocação, em oferecimento, às Senhoras de Lisboa, que é uma espécie de introdução à história de Anrique. Esta, diz o autor tê-la ouvido ao mar e vem contá-la a elas, pedindo uma lágrima para os sofrimentos do seu herói. A este apresenta-o o poeta como penando das mais amargas desilusões e possuído da triste convicção de que nada na vida o poderia abalar ainda ou comover sequer, depois de ter devaneado tanto sonho e de haver visto tantas quimeras suas caídas por terra e murchas logo ao despertar.

Anrique enganara-se, porém; a sua alma generosa e confiante ainda haveria de vibrar muito e mui doridamente; e, nos seus primeiros versos, que não ficaram definitivamente concluídos, António Nobre fazia a confidencia às Senhoras de Lisboa do arrebatamento passional de Anrique, escarnecido pelo prosaico positivismo que zomba do seu afã da glória, como se ela fosse dote que se oferecesse. A feição simbolista do poema de António Nobre demonstra-se, neste lance concepcional, pela representação da Lua, imagem do quanto é vã e irrealizável a aspiração a um alvo intangível, sonho inefável desfeito em fumo.

Em Anrique se personifica a abstração; e, abandonando seu solar português, o sonhador abala-se na busca do ideal para terras de Espanha, finalmente de França, onde vamos encontrá-lo em Paris, exausto e desvairado pela insatisfação dum desejo alto e incoercível. A Paris erroneamente se encaminhara já no fito de encontrar da ciência transcendental o remédio oculto a males irremediáveis; e são pungentes as alusões e referencias que a todo o instante aparecem à história própria do poeta, em sua ideação e em seu cruel sofrimento.

Em Paris recebe Anrique a hospitalidade dum convento, onde é acolhido pelos carinhos paternos de um velho e santo monge, que, embora Anrique não lhe tenha aberto a altiva alma, tenta perscrutar-lhe a ferida, para lhe aplicar salutífero balsamo.

Em uma dessas melancólicas tardes que parece haverem exercido sobre o poeta uma misteriosa influencia e que ele toca com um encanto vago e penetrante, o seu herói Anrique, que divaga, na fase mística e exaltada em que se encontra, pelas ruas, sem proposito exato e à mercê de mil flutuantes pensamentos, entra, ao acaso, no templo de um convento de freiras, justamente na ocasião em que elas iam começar a entoar a sua novena da tarde. às primeiras notas daquele cântico suave, Anrique queda-se extático, no arroubo que o trespassa e embebe, como um eco de saudade irrefletida e apaixonada. É que em uma das frescas vozes que ali alevantavam hinos de amor divino, Anrique julgara encontrar a reminiscência de uma outra voz puríssima, doce e harmoniosa, que deixara lá para longe, para além das serras, em Portugal, quando não fora mais que a muito natural semelhança de duas vozes meigas de rapariga.

No frêmito da ilusão jubilosa e magoadora, uma excitada alucinação o faz delirar, em lamentos onde a incoerência da palavra é o transunto de uma aniquiladora tristeza. Como natural reação, logo em sua alma e de seus lábios rebenta uma explosão de força e de entusiasmo, saudando o seu amor com palavras frenéticas e desvairadas, em como que parece lançar um repto e vibrar um desafio. Prestes acode o desalento final e, após consolações inúteis do bom frade, nas palavras de Anrique põe o poeta toda a resignada amargura da sua alma.

Já então de todo a quimera parisiense se diluíra. Já de todo Anrique se voltara novamente e de vez para o seu Portugal. De regresso ao reino, afoita-o o encontrar-se com a sua bem-amada; singrando vem Tejo acima a barca que o reconduz. Um ardor imenso o impulsiona e move; Anrique saúda com férvido entusiasmo o passado heroico de Lisboa; mas a atroz realidade do presente surge perante o ímpeto épico como uma sátira trágica. Ao passado volve olhos cobiçosos da esperança no futuro; e a compensação profética que se lhe desenha é-lhe figurada na vinda fantasiosa do Desejado, do quimérico D. Sebastião, do lendário «Rei-Menino», que foi o símbolo de todo o anelo e de toda a fé, que foi a encarnação ideal de todos os sonhos de império, de todas as aspirações messiânicas do povo português.

Porém, Anrique não demora muito neste pensamento exterior; logo o preocupa a sua torsionante crise moral; por completo o toma a ideia de que é chegado enfim à terra onde, há tantos anos, o espera sua noiva. Então, saúda-a, também a ela, com palavras que patenteiam a ansiedade que sente de repousar afinal de suas infrutuosas fadigas contemplativas.

Mas do velho solar só restam ruinas; pelo filho prodigo que volta, só aguarda a velha ama Thereza. Acorre, contudo, o povo numa dura e indiscreta curiosidade; e do coração de Anrique soltam-se involuntariamente lamentos acres, pela traição daquela que ele amara. Aí, ele conta, a si mesmo, alheado, a história da sua aflitiva agonia interior, onde mais doem na recordação as ingenuidades e os cândidos embustes da quadra florente e ilusionante.

Este é o episódio capital da crise subjetiva que perpassa na trama lírica do poema de António Nobre. Depois desta desconsoladora estada em Portugal, Anrique resolve-se a voltar a França, na saudade, agora corrosiva, do sossego tumular dos claustros. Ali o esperam os resignados conselhos; ali ele se votará a uma confissão sincera e plena, embora pretenda a aparência duma dignidade soberba e orgulhosa, sob a máscara duma indiferença gélida.

Infelizmente para as boas letras, o poeta não pôde levar a cabo o seu amplo proposito; mas para o cabal entendimento da ordenada sequência da sua fantasia cremos que estas linhas darão alguma luz. Assim, suspendemo-nos, ansiosos de que, desprendendo-se de nossa companhia, o leitor, de per si, aprecie e encareça, com legítimos gabos, as composições que seguem, algumas das quais, sem favor, se podem qualificar de maravilhosamente belas.

 

À LISBOA DAS NAUS CHEIA DE GLÓRIA

I

Lisboa à beira-mar, cheia de vistas,

Ó Lisboa das meigas Procissões!

Ó Lisboa de Irmãs e de fadistas!

Ó Lisboa dos líricos pregões...

Lisboa com o Tejo das Conquistas,

Mais os ossos prováveis de Camões!

Ó Lisboa de mármore, Lisboa!

Quem nunca te viu, não viu coisa boa...

II

És tu a mesma de que fala a História?

Eu quero ver-te, aonde é que estás, aonde?

Não sei quem és, perdi-te de memória,

Dize-me, aonde é que o teu perfil se esconde?

Ó Lisboa das Naus, cheia de glória,

Ó Lisboa das Crônicas, responde!

E carregadas vinham almadias

Com noz, pimenta e mais especiarias...

III

Ai canta, canta ao luar, minha guitarra,

A Lisboa dos Poetas Cavaleiros!

Galeras doidas por soltar a amarra,

Cidade de morenos marinheiros,

Com navios entrando e saindo a barra

De proa para países estrangeiros!

Uns p'ra França, acenando Adeus! Adeus!

Outros p'ras Índias, outros... sabe-o Deus!

IV

Ó Lisboa das ruas misteriosas!

Da Triste Feia, de João de Deus,

Beco da Índia, Rua das Fermosas,

Beco do Fala-Só (os versos meus...)

E outra rua que eu sei de duas Rosas,

Beco do Imaginário, dos Judeus,

Travessa (julgo eu) das Isabéis,

E outras mais que eu ignoro e vós sabeis.

V

Meiga Lisboa, mística cidade!

(Ao longe o sonho desse mar sem fim.)

Que pena faz morrer na mocidade!

Teus sinos, breve, dobrarão por mim.

Mandai meu corpo em grande velocidade,

Mandai meu corpo p'ra Lisboa, sim?

Quando eu morrer (porque isto pouco dura)

Meus Irmãos, dai-me ali a sepultura!

VI

Luar de Lisboa! aonde o há igual no Mundo?

Lembra leite a escorrer de tetas nuas!

Luar assim tão meigo, tão profundo,

Como a cair dum céu cheio de luas!

Não deixo de o beber nem um segundo,

Mal o vejo apontar por essas ruas...

Pregoeiro gentil lá grita a espaços:

«Vai alta a lua!» de Soares de Passos.

VII

Formosa Cintra, onde, alto, as águias pairam,

Cintra das solidões! beijo da Terra!

Cintra dos noivos, que ao luar desvairam,

Que vão fazer o seu ninho na serra;

Cintra do Mar! Cintra de Lord Byron,

Meu nobre camarada de Inglaterra!

Cintra dos Moiros com os seus adarves,

E, ao longe, em frente, o Reino dos Algarves!

VIII

Romântica Lisboa de Garrett!

Ó Garrett adorado das mulheres,

Hei-de ir deixar-te, em breve, o meu bilhete

Á tua linda casa dos Prazeres.

Mas qual seria a melhor hora, às sete,

Garrett, para tu me receberes?

O teu porteiro disse-me, a sorrir,

Que tu passas os dias a dormir...

IX

Pois tenho pena, amigo, tenho pena;

Levanta-te daí, meu dorminhoco!

Que falta fazes à Lisboa amena!

Anda ver Portugal! parece louco...

Que pátria grande! como está pequena!

E tu dormindo sempre aí no «choco».

Ah! como tu, dorme também a Arte...

Pois vou-me aos toiros, que o comboio parte!

X

Ó Lisboa vermelha das toiradas!

Nadam no Ar amores e alegrias.

Vede os Capinhas, os gentis Espadas,

Cavaleiros, fazendo cortesias...

Que graça ingênua! farpas enfeitadas!

O Povo, ao Sol, cheirando às maresias!

Vede a alegria que lhe vai nas almas!

Vede a branca Rainha, dando palmas!

XI

Ó suaves mulheres do meu desejo,

Com mãos tão brancas feitas p'ra carícias!

Ondinas dos Galeões! Ninfas do Tejo!

Animaizinhos cheios de delicias...

Vosso passado quão longínquo o vejo!

Vós sois Árabes, Celtas e Fenícias!

Lisboa das Varinas e Marquesas...

Que bonitas que são as Portuguesas!

XII

Senhoras! ainda sou menino e moço,

Mas amores não tenho nem carinhos!

Vida tão triste suportar não posso:

Vós que ides à novena, aos Inglesinhos.

Senhoras, rezai por mim um Padre Nosso,

Nessa voz que tem beijos e é de arminhos.

Rezai por mim, vereis, — vossos pecados,

(Se acaso os tendes), vos serão perdoados...

XIII

Rezai, rezai, Senhoras por aquele

Que no Mundo sofreu todas as dores!

Ódios, traições, torturas, — que sabe ele!

Perigos de água, e ferro e fogo, horrores!

E que, hoje, aqui está, só osso e pele,

A espera que o enterrem entre as flores...

Ouvi: estão os sinos a tocar:

Senhoras de Lisboa! ide rezar.

 

ÀS SENHORAS DE LISBOA

Ainda bem, Senhor! que deste a noite ao mundo.

Gosto do sol, oh certamente! mas segundo

O meu humor. à noite, há esquecimento, há paz,

De dia, apenas tenho um ou outro rapaz

Para a palestra. Ah sim! e o mar também às vezes.

Mas agora (há aqui uns três ou quatro meses)

Faço da noite dia. As grandes descobertas

Que eu descobri! Estou de janelas abertas

Quando os outros estão de janelas fechadas...

Ó fontes a correr como línguas de espadas,

Ó fontes a furar quais mineiros a frágua,

Ó fontes a rezar, como freirinhas d'água,

Com ladainhas na voz, de joelhos nas encostas,

E só vos falta estar, como elas de mãos postas!

Ouvi, lá rezam: sob o céu todo estrelado,

«Padre-Nosso! que estás no céu, santificado...»

Noites e dias sem parar um só momento,

Só vós me ouvis, e eu só a vós e mais o vento.

Que dor é a vossa! qual será? não sei, não sei

Chorai, fontes, chorai! Fontes correi, correi!

Águas, só de perdão, suspiros e piedades,

Ó fontes de Belém! Ó fontes de saudades!

Contai para eu cismar, uma bonita historia

Qualquer, a que vos vier mais depressa à memória.

Contai que eu sou ainda uma criança, gosto

Tanto de histórias! pelas luas brancas de agosto!

Ó rios a contar histórias, como as criadas,

Histórias de ladrões, mais histórias de fadas,

A do Zé do Telhado e da triste viúva

Que só saía à rua pelas noites de chuva!

E essa (que faz chorar) de Pedro Malas Artes!

Os tristes ventos a assoprar das quatro partes:

São os ventos do sul: (cegos pedindo esmolas,

Sofrem tanto com ele!) mais o vento das Rolas;

Mais o que vem do oeste, que abre e fecha as portas

E geme nos pinheirais, pelas noites mortas

Erguendo as folhas secas, caídas pela terra.

Mais o vento do norte, o vento da Inglaterra

Que azula o céu e o rio, e deu ao mar a glória

De levar as Naus do Gama à Índia da vitória.

E o mar, Senhor! o mar, ai! como chora às Luas!

Pelos seus golfos e canais (as suas ruas)

Sonetos de ais que só compreende quem ama:

E de noivos a quem deu o lençol e a cama.

As descobertas dos meus Paes, dos Portugueses:

(Pois quando está p'ra isso também conta às vezes)

O mar! como ele conta às noites tanta história,

Contos de cavaleiros sublimes de vitória;

Contos de espadas nuas, em mãos desses guerreiros,

E contos de segredo que ouviu aos marinheiros

Lá pelas noites calmas, à luz da lua branca,

Quando choram seus males, que só a lua estanca.

O mar! O mar, oh sim! O mar é meu amigo.

Quantas vezes a rir, vem conversar comigo

Nessas noites tão longas de infinda solidão

Em que vela no mundo, tão só meu coração!

Quantas vezes na hora em que dormem crianças

E as flores dormem também, e dormem as esp'ranças

Para embalar o peito de quem no mundo as tem;

Á hora em que há mais treva nas sombras desta terra,

(Que tantas sombras, ai! de dia mesmo encerra.)

Á hora em que há mais luz no céu todo estrelado,

Eu fico só e cismo, nas dores do meu passado.

E quando enfim eu choro, pensando nessas magoas

Lá oiço a voz sublime daquelas grandes águas

Que querem vir chorar comigo e conversar.

História é uma dele, esta que vou contar;

Ouvi-a em alta noite escura de janeiro

E p'ra ma vir contar, o Mar chorou primeiro.

................................................

Senhoras escutai-a! se tendes coração,

Se dais esmola ao pobre, com vossa própria mão:

Lembrai-vos que ouvir a voz duma desgraça

Também é caridade, Senhoras cheias de graça!

Dai-me um pranto vosso a este sofrimento,

Senhoras! uma lágrima. Com ela me contento.

................................................

Senhora minha, perdão

Anjo do meu coração

Pois a escrever eu me afoito?

Estamos no julho, a oito

Dia de Vasco da Gama

(Doravante assim se chama)

Ai as saudades que eu tenho!

Pois olha escrevo-te e venho

Dar-te notícias do teu

Apaixonado. Sou eu.

Anrique, pastor de ovelhas.

Tenho-as brancas e vermelhas,

Pretas, de todo o tamanho.

Tivesse-te eu no rebanho

Porém como tu ainda

Não vi nenhuma mais linda.

Eu pensei que tu amavas

O teu pastor, mas brincavas.

Mas amo-te eu, muito embora.

Não sou amado, Senhora?

— Não o és, nem nunca o hás-de ser —

Pois seja o que Deus quiser!

Vou pelas serras mais altas

Mas vejo que tu me faltas

E logo fico a pensar

Que bom e triste é amar!

Um amor sem esperança

É um bem que não se alcança.

Nasci debaixo dum signo

Que em nada me é benigno;

Já não pode ser desfeito

O que está feito, está feito.

Ai de mim! não sou amado!

Ai de mim, triste e coitado!

Fumo saindo dos casais

Que aspirações vós levais!

As minhas não vão tão alto:

............................

São bem simples e modestas:

Bons dias e boas sestas!

Com mui pouco me sustento:

O amor é meu alimento.

O meu pão de cada dia,

Lágrimas, minha água fria,

Quem me dera andar contigo

No mar cheio de perigo!

Ir à África numa Nau

Na San Rafael de pau,

Como os nossos Portugueses!

E andar por lá sete meses,

Sete anos, ou mesmo mais

Sem medo dos temporais!

Outros há pior de passar...

Já tantos tive no mar

Já tantos tive na terra

Que já nenhum me faz guerra.

Nós dois sós, e porque não?

Sem maior tripulação.

Eu seria o comandante

Daquela nau almirante!

Oh que formosa serias

Queimada das maresias!

Vestida de marinheiro

Ai sobe! sobe! gajeiro

Aquele topo real,

Diz adeus a Portugal,

Que lá nos vamos, Adeus!

E partiríamos com Deus!

Oh que viagem venturosa!

Pela Azia religiosa

Mais pelas terras do sul

Com mar e céu sempre azul!

Ver no céu planetas novos

Ver pela terra outros povos,

Outras leis, novos costumes,

Capelas cheias de lumes,

Á Califórnia do Oiro

E lá achar um tesoiro.

Ver (que isso nunca se perde)

O celebre «raio verde»

Do sol-pôr no mar da América!

Oh! a viagem quimérica!

De gatas, como as gatinhas,

...........................

Tu subirias aos mastros

(Tão altos que vão aos astros)

Sem receios das procelas!

E dobrarias as velas

A bujarrona, a latina.

Com tuas mãos de menina!

Oh! vem daí comigo! eu parto!

Quando estivesses de quarto

A mão no leme segura

A nau iria à ventura

Ó suspiro das aragens!

Ó fantásticas miragens!

Não tenhas medo. Morrer

Não custa nada, é viver.

Custa menos que se pensa.

O principal é ter crença.

Morre o corpo, a alma abre asa

E vai: é mudar de casa...

Mas nem sempre há mares grossos

E que houvesse! Os padres nossos

Fazem muito em tua boca.

Voz doce acalma voz rouca!

Tu não temes temporal

És filha de Portugal!

Se morrêssemos, que importa!

Que bela serias morta!

Minha Senhora da Esp'rança

Já na Bem-aventurança!

Ir contigo p’ro outro mundo,

E juntos para o profundo

Para esses mares salgados,

Num abraço amortalhados!

Meu pensamento flutua

Perdoa (lá vem a Lua)

Esta carta tão comprida!

Mas eu amo nesta vida

Duas coisas, tu primeiro

Depois o mar, sou poveiro!

Mas hoje, Senhora minha,

Sou pastor sem pastorinha,

Ainda ontem era estudante

Porque não sou navegante!

Foi sempre a minha paixão;

Era a minha vocação.

Mas a minha Mãe não quis

Talvez fosse mais feliz.

Ah, Senhora! vou deixar-te!

Minha Mãe por toda a parte

Anrique! Anrique, onde estás?

A pregação que ela faz

Tudo por amor de ti

(E já lhe oiço a voz daqui)

E as ovelhas? Ai, Senhor!

Não sirvo para pastor.

Cada uma p'ra seu lado

Não dou conta do recado.

Minha Mãe ralha que ralha

Ai, Senhor! Jesus me valha.

E adeus que me vou embora

Pois, boas noites, Senhora!

Ah! eu estou, aqui, tão bem...

E lá torna a minha Mãe

— Anrique, Anrique, onde estás?

— Onde te somes, rapaz!

Tem razão, é já tão tarde!

Na lareira o lume arde

E fuma, acesa a candeia:

Minha Mãe que faz a ceia!

Há que tempo ela passou

Com a lenha que encontrou!

Desprezada nos caminhos...

Nós somos mui pobrezinhos!

E eu, aqui, à lua, à farta.

Pronto. Acabo, aqui, a carta.

Adeus! são horas de eu me ir

Cear, rezar... e dormir.

Nossa-Senhora me ajude!

A minha Mãe não se ilude

Com toda esta demora

Ella bem sabe, Senhora!

E lá torna a Mãe: Anrique

Queres que eu me mortifique?

Anda cear, não tens fome?

Jesus! Jesus! Santo Nome!

Eu bem sei e bem no entendo.

O que são Mães! Em me vendo

Quando todo me concentro

Que trago paixão cá dentro.

Isto já há muitos meses.

Mas nada diz. Só às vezes

Quando não como e me deito

Assim... a tossir do peito,

Também não quer ela comer

E aventura-se a dizer:

«Amores — filho, paixões

Só trazem consumições»

E assim é, assim, Mãezinha!

Pois adeus, Senhora minha!

..........................

Vai alta a Lua branca, serena, silenciosa

Da luz dos Boulevards, fugindo desdenhosa.

É a hora em que Paris começa a louca vida

Na trágica cidade ao sol adormecida.

O Paris de Baudelaire! Paris da minha pena

Que em tempos já molhei nas águas do teu Sena

Que mistérios eu leio, Paris, no teu folgar!

Que mistérios eu vejo, passando os Boulevards!

Ó vede a palidez da luz daquele gás,

Vede a cor mortuária, que aos rostos ele traz!

Olhai p'ras criancinhas que passam sob a chuva;

Olhai p'ro pranto fácil dos olhos da viúva

Que pede aqui cantando, e canta ali chorando,

E assim de pranto e riso seu pão vai amassando;

Ó Paris de Verlaine e poetas sonhadores!

Mais de mendigos ricos, de fidalgos salteadores;

Paris que me acolheste na agreste mocidade

Eu não te amo não, mas dou-te uma saudade.

Senhoras, como o Sena vai triste, amarelento,

Turvado pelas rugas sulcadas pelo vento.

Não vejo aqui, Senhoras, a luz do vosso Tejo

Nem vejo o céu azul, Senhoras!... mas eu vejo

Uns olhos fitos n'água... uns olhos lusitanos,

Que pela luz que tem não contam muitos anos.

E a lua que anda fugida, lá pelo céu profundo

Deixou cair no rio, o seu retrato, ao fundo.

.............................................

Senhoras, Anrique ouvira a voz duma das freiras

E quando no adro branco, as notas derradeiras

Perderam-se voando, julgou num som dorido

Reconhecer a voz do seu amor perdido!

São sonhos de poeta; mas sonhos como lírios

Tão brancos como eles... vermelhos nos martírios!

.............................................

Vinde daí, Senhoras, comigo quereis ouvir?

Ingênuo é o seu cantar... talvez vos faça rir!

«Vi-te há pouco rezando nas novenas

Ai tão linda, tão pálida, meu Deus!

Quais são as tuas dores, as tuas penas,

Por quem levantas tuas mãos aos céus!

«Cantai, ó freiras Beneditinas,

    Cantai, cantai,

Cantai novenas, cantai matinas,

    Cantai, cantai.

«No Boul'Mich, os castanheiros da Índia

Começam a despir as folhagens, ao luar,

Que belas armações, para galeras da Índia

Se ainda houvesse Índias, neste mundo, a conquistar!

«Tudo tão triste! todos tão tristes!

Olhai, são poucas todas cautelas

Doentes do peito, cuidado, ouvistes?

Tirai do armário vossas flanelas!

«Cantai o canto Gregoriano

    Para eu chorar!...

Cantai ó freiras! durante um ano

    Para eu... chorar!...

«Andam meus olhos lusitanos

    A procurar-te,

Minha quimera! tenho vinte anos!

    Eu quero amar-te!

«Ó sinos de toda a França

Cantai, cantai o meu mal,

Tão alto, essa voz não cansa,

Que ela os oiça em Portugal!

«Cantai o canto Gregoriano

    Para eu chorar!...

Cantai ó freiras durante um ano

    Para eu... chorar!...»

...................................

Morrera já o Sol; os altos castanheiros

Choravam à voz do vento, quais lúgubres troveiros,

Os choupos retorciam os troncos já despidos,

Parecendo erguer ao céu seus braços ressequidos,

Ao darem as «Trindades» no claustro, de mansinho,

Fugiu um bando de aves pousadas no caminho.

A cruz meio inclinada parecia desmaiar

Perdida na cor pálida da luz crepuscular;

Eram mistérios da hora nervosa da tardinha

Em que se adianta a morte, e treme a alma minha!

A hora em que perdido do Lar, dos meus Irmãos,

Cismando no meu Lar, eu junto as frias mãos;

A hora em que o traidor por mais que faça esforços

Não pode em si calar o susto dos remorsos;

A hora em que se acende o lume nas lareiras

E ladram cães ao longe, em vela pelas eiras;

A hora em que entristece na rua o caminhante,

E para vendo o Sol cair agonizante;

E as raparigas trémulas se vão fechar as portas,

Ouvindo ao longe as rãs, gritar em águas-mortas!

Ó Senhora de altas Esferas!

Castelã das minhas quimeras!

    Ó meu amor!

Amor místico, amor celeste

Que tu pelo Natal me deste,

    Senhor! Senhor!

Sou forte agora, e temeroso,

Sou um rei Todo Poderoso

    Senão olhai!

Só diante de ti me humilho

Senhor! Senhor! Sou teu filho

    E tu meu Pai!

Venham armadas de Inglaterra

Venham as naus de toda a terra,

    De todo o mar!

Que eu só por entre elas e o Oceano,

Na minha nau a todo o pano,

    Hei-de passar!

Venha o exército da Alemanha,

Mais seus aliados, mais a Espanha,

    Hei-de vencer!

Tu és grande, és forte, Guilherme!

Tu és um mundo, eu sou um verme...

    Vamos a ver!

Venha uma imensa tempestade,

Caiam raios sobre a cidade,

    Venham trovões!

Que eu irei só para as janelas,

Sem Santa-Barbara, sem velas,

    Sem orações!

Soldados de Alsácia e Lorena!

(A bela França assim mo ordena)

    Vamos! Então?

Atirai balas aos meus peitos,

Que eu apanho-as, como confeitos,

    Na minha mão!

Venham Filósofos, Doutores,

Venha Spinoza, outros maiores,

    Gregos, Judeus;

Venham Estoicos, Pessimistas,

Cínicos, os Positivistas...

    Eu creio em Deus!

Ó morte, minha amiga de outrora

Que fazes aí, há mais duma hora!

    Queres-me? Ah sim?

Cortei as relações contigo

Ó vai-te! já não sou teu amigo,

    Nem tu de mim!

Ó Luiz de Camões e da Esperança!

Ao pé de ti sou uma criança,

    Mas ouve cá.

Vamos cantar ao desafio,

Á sua janela, sobre o rio,

    Ver qual mais dá...

Ó troveiros de toda a parte

D. Pedro!, D. Diniz!, D. Duarte!

    O que sois vós?

Minha lira é do seu cabelo,

E os meus versos, quereis sabê-lo?

    São a sua voz!

Ó vento cantante do Norte!

Minha lira agreste é mais forte

    Do que a tua!

Vinde todos, troveiros do ar,

Em desafio comigo a cantar

    Por essa rua!

....................................

Vem entrando a barra a galera «Maria»

Que vem de tão longe e tão linda que vem!

Toca em terra o sino p'ra missa do dia

Em frente, em Santa Maria de Belém!

Mareantes trigueiros no alto dos mastros,

Aí dobram as velas não são mais precisas!

Ai que lindas eram, às luas e aos astros!

Que doidas, aos ventos! que meigas, às brisas!

Desdobra as amarras! apresta a fateixa!

Pois todos em breve a nau vão deixar;

Ó terra! Que saudade a de quem te deixa

Ó terra! pela aventura do alto mar!

Entra o piloto e abraçam-se estes e aqueles.

Abraçam-se e riem tanto à vontade...

Abraços que levam almas dentro deles,

Sorrisos de bocas que falam verdade!

Só as intende (capitães, não as sentis)

Quem, algum dia, passou as águas salgadas

Quem, um dia, as passou numa hora infeliz

Quem, um dia, as passou, com as frontes curvadas.

E «Maria» vai indo pelo Tejo acima,

E cisma Anrique: «Que lindo Portugal!»

Vem as ninfas, vai uma dá-lhe uma rima,

Vai outra (gostam dele) e vai faz-lhe um sinal.

E Anrique cisma: «Quem não te viu ainda!

Ó minha Lisboa de mármore! Lisboa

De ruinas e de glórias! Tu és linda

Entre as cidades mais lindas, ó Lisboa!»

Ó minha Lisboa! com oiros tão constantes

Pelas serras e céus e pelo rio! Com seus

Jerônimos dos Poetas e Mareantes!

Lisboa branca de João de Deus!

I

Ó Lisboa! num século bem perto

Quando a África e as Azias se mostrarem

Civilizadas, sem um só deserto,

E as esquadras do mundo inteiro entrarem

Naquele Tejo sobre o mundo aberto,

Para dos grandes ventos descansarem,

Ó Lisboa (não são glórias quiméricas)

Voltada sobre as Azias e as Américas!

II

Porque é que Deus aqui te pôs à entrada

Senão para destinos imperiais?

Do mar da Índia a viração salgada

Respirá-la tu, antes dos mais.

A ver és tu, primeira, a alvorada

E a última o sol nos fins ocidentais.

Lisboa! quando eras pequenina

Houve uma fada que te leu a sina?

III

O que já foste tu, noutras idades

Grande e famosa acima das Nações,

Tu de novo o serás, porque as cidades

Têm várias mortes e ressurreições,

Outras infâncias, novas mocidades,

Novas conquistas, outros galeões...

Ó coragens, ó cóleras, tormentos,

Trovões, Índias, relâmpagos e ventos!

IV

Velha Lisboa, minha mãe-madrinha!

Tu voltarás a ser o que já foste,

E não, não cuides que é ilusão minha,

Pois nenhuma já tenho a que me encoste!

Não sei que dentro em mim mo adivinha

Não sei que voz mo diz de que eu mais goste.

E bem no sabes de bem longe: os Poetas

Não se enganam — são bruxos, são Profetas!

V

Lá onde escoa o Tejo, os Escultores

De entre a água erguerão altos heróis

Poetas, Santos e Navegadores:

Nun'Álvares sorrindo aos seus does-does,

Feridas de Astros! admiráveis flores!

(Com auroras e poentes como os soes...)

Luiz de Souza, cismático, e Frei Gil,

Pedr'Álvares, a mão para o Brasil!...

VI

Vasco da Gama a apontar lá para onde

Nasce o sol, terra da sua Índia amada,

Outro a olhar lá, onde o sol se esconde,

Camões olhando triste a onda salgada;

Mas a onda passa, passa e não responde...

Que a leva o fado, vai muito apressada...

Todos tão vivos, os heróis colossos,

Que dir-se-ia que têm sangue e ossos.

VII

E do seu forte, S. Julião, em suma,

Sobre toda esta glória e esta magoa,

Luas conta a desfiar uma por uma,

(Ondas do mar) Salve Rainhas d'água

E Ave Marias, de doirada espuma...

E os outros, no deserto dessa frágua

Pela noite o acompanham; e assim

Rezam todos por séculos sem fim.

VIII

Eu confio em ti reza de Heróis,

E confiar em ti, não é vaidade.

Vossos nomes de bronze são faróis

Que luz darão, à nossa tempestade.

O nosso Rei... (cabelo em caracóis!)

Já não dorme no Paço... Piedade!

Deixareis a Pátria engrandecida

Por vossas mãos p'ra sempre ser vencida?

IX

Cor do céu a bandeira e cor de neve

Não a vejo na torre a flutuar!

Senhor! Vós bem sabeis que o Rei não deve

Outras armas que a vossa apresentar.

Se assim deixais que outro povo a leve,

Porque a deste ao nosso p'ra guardar?

Não é ele o mesmo que em Ourique

A aclamou nas mãos do teu Henrique?

X

Anda tudo tão triste em Portugal!

Que é dos sonhos de glória e de ambição?

Quantas flores do nosso laranjal

Eu irei ver caídas pelo chão!

Meus irmãos Portugueses, fazeis mal

De ter ainda no peito um coração.

Talvez só eu! (Amor ai tu me entendes!)

Possa ainda ter a paz que já não tendes.

XI

Talvez só eu irmãos! mas é que a mim

Deve o Senhor as flores com que se enfeita

A mocidade!... que é dele o meu jardim!

Dizei-me vós irmãos, na vida estreita

Toda a desgraça não terá um fim?

Se a ventura não pode ser perfeita

Tenho agora a Pátria em sepultura!

Que mais quereis na taça de amargura?

XII

Virá, um dia, carregado de oiros,

Marfins e pratas que do céu herdou,

O rei menino que se foi aos moiros

Que foi aos moiros e ainda não voltou.

Tem olhos verdes e cabelos loiros,

Ah não se enganem, (ainda não chegou)

Virá El-Rei-Menino do Estrangeiro,

Numa certa manhã de nevoeiro...

XIII

Tem loiros os cabelos, e é criança,

Tem olhos verdes de luar noturno:

Olhos verdes, são olhos de esperança!

Olhos verdes, são Luas de Saturno!

Veio da África mais a sua lança

Vai p’ro mundo, rezando taciturno.

Tão pobrezinho, olhai! estende a mão:

«Quem dá esmola a D. Sebastião?»

XIV

Esperai, esperai, ó Portugueses!

Que ele há-de vir, um dia! Esperai.

Para os mortos os séculos são meses,

Ou menos que isso, nem um dia, um ai.

Tende paciência! finarão revezes;

E até lá, Portugueses! trabalhai.

Que El-Rei-Menino não tarda a surgir,

Que ele há-de vir, há-de vir, há-de vir!

Lá vem, lá vem minha Amada,

Rainha de Portugal.

Vem com a capa estrelada,

Debaixo dum palio real

Todo de seda vermelha,

Com saias de oiro e coral.

Vê o povo que ajoelha

E faz o «pelo sinal!»

Que linda é! que formosa!

Que graça ela tem a andar!

Pajens vestidos de rosa

Vão à frente a encaminhar,

Tirando as pedras da rua

Não vá ela tropeçar,

Tão leve, parece a Lua,

Tão leve que vai no ar!

Vinde ver, vinde às janelas,

Meninas de Portugal!

Deixai o bordado, as telas,

Deixai a agulha e dedal.

Não temais a feia inveja

Vinde vê-la cada qual.

E que em honra dela seja

Esta noite o arraial.

Sua beleza é tamanha

Que pertence a Portugal.

Como obra de arte, estranha,

É um poema, é uma catedral.

Aos Lusíadas semelhante,

Aos Jerônimos igual,

Onde os poetas e o mareante

Dormem o sono final!

Nem Mafra com seu convento

Tem maior a altivez

.......................................

Não se esquece, visto uma vez!

Seu corpo é uma obra de graça

E de que suave palidez!

A minha amada é a Alcobaça

Onde jaz a linda Ignez!

É fidalga de nascença,

Mais do que os Reis, do que vós.

Já poetas na Renascença

Cantaram seus bisavós.

Mas mais fidalga é ela ainda

Por sua alma (sem Avós).

Ah! lá vem ela tão linda

E vem rezando por nós!

A minha Amada é fidalga

Que tem no mar seus brasões.

Tem na boca aromas de alga

Brisas da Índia e outras regiões,

O que prova donde vejo

Já no tempo de Camões

Era sobrinha do Tejo

E prima dos Galeões!

É toda de casos belos

A tua nobreza fina,

Toda torres e castelos

Com legendas de menina.

Excedes Reis e Profetas

...........................................

Menos os Santos e Poetas

Que têm costela divina!

— Quatorze luas já foram passadas,

Desde que eu a perdi e ao seu amor;

Meu coração tem ainda as janelas fechadas,

Ainda vestem de luto os meus criados, Senhor.

O POVO

Quimeras tombadas! Quimeras tombadas!

— A sorte deu-me já cabelos pretos

Ai não preciso de os enlutar.

— «Mas olhe as brancas... meu senhor»

O branco é luto, podes, Ama, descansar!

O COVEIRO

O branco é luto: são brancos os esqueletos!

— Ó ilusões que em ti pus tão amigas!

Oh! a esperança que em minha alma é morta!

Antes eu te visse cobertinha de bexigas

Ou em farrapos, a pedir, de porta em porta...

TODOS

Antes a visses morta!

Antes a visses morta!

— Dei-te o meu coração a ti, bela entre todas,

Coração, que a ninguém ainda se dobrara,

Chego do mar, venho assistir às tuas bodas,

Ah! no mar salgado, porque não ficara.

UM PASTOR

Toca a noivado em Santa Clara

Dobra a defuntos três léguas em roda!

— Fugiu-me a minha amada e com ela a fortuna,

Meu Lar por terra! sem ninguém na multidão.

Fiquei na vida só, como o Conde de Luna,

Mais sua espada. Ai do meu pobre coração!

(Meu coração cala-te ou fala baixo: massa

Os mais a nossa dor. Sim cala-te é melhor)

A procissão das Dores em mim sinto que passa

E passa... e passa... e cada vez será pior.

TEREZA

Não que o fim duma desgraça

É o começo doutra maior!

— Parti um dia, numa romagem,

Levando a Esponja, o Fel, a Cruz!

Regresso altivo dessa viagem

Feliz, ansioso. (E nunca o supus)

TEREZA.

Senhor Doutor, tenha coragem

Olhe que mais sofreu Jesus.

— E que vejo eu, Senhor! O meu prato sem sopa,

Meu Lar em pó, o amor dela já não é o meu.

Minhas camisas, hoje, são de estopa,

Foram de seda... Que vejo eu!

OS VIZINHOS

Foste à pandega por essa Europa,

Aí tens o pago que o Senhor te deu!

O mundo deu-me cabelos pretos

Ai não preciso de os enlutar!

...................................................

E mais em breve porque vou cegar...

UM CEGO

A Anrique ceguinho dirão

Olhe não vá tropeçar...

— Amar a ela e dela ser amado,

Ir em breve pedir a sua mão!

E de repente tudo escangalhado!

Ai que desgraça! como os outros são!

THEREZA

E que menino tão estimado!

E tudo nele é perfeição!

— «Anrique meu amor, filho de Porto-Cale!»

Me dizia ela... Ai do meu coração!

Amor já me não tem, não há já Portugal...

E que vejo, Senhor! de ruinas pelo chão!

OS MENDIGOS

Tantos vadios sem nada na mão

Sempre à espera de D. Sebastião.

— Ó D. Sebastião a ti comparo,

El-Rei de Portugal, a minha sorte,

Se te encontrasse na vida, serias meu amparo,

Ser-mo hás talvez depois da morte.

D. Sebastião, rei dos desgraçados,

D. Sebastião, rei dos vencidos,

El-Rei dos que amam sem ser amados

El-Rei dos gênios incompreendidos.

Saí, um dia, a barra à procura da glória,

Entre soluços e orações, cuja memoria

Me faz tremer. (Ah foi numa tarde de outono,

Que linda! O mar espreguiçava-se com sono...)

Por essa barra saem, cheios de pecados,

Bandidos com seus crimes e mais os degredados,

Traidores à Pátria e ao Rei, infelizes e ladrões.

Por lá saiu, também, numa noite, Camões.

No barco em que segui viagem nessa água,

Levava aos ombros um baú cheio de Magoa

E mais um saco de Dor que por lá me ficou.

De volta trago três, que aquele não chegou.

Os Homens conheci nessa jornada pelo mundo.

Não lhes quero mal, seu erro é tão profundo!

..................................................

..................................................

Todos partiram, todos fugiram.

Os ladrões assaltaram-me à estrada

Quiseram-me matar. Não conseguiram.

Ninguém me resta, não me resta nada!

Fui enganado nos meus leais amores.

Já tive de salvar a minha vida a espada.

No meu jardim semeei lilases,

Passado tempo vi nascer ortigas;

Cada dia que nova dor me trazes?

Lavrei canduras e colhi intrigas,

Nasceram ódios onde pus perdões.

Não digas mais meu coração! não digas

Procriei gigantes vi nascer anões,

Plantei nesta alma vinhas da piedade

E vindimei, Senhor! Ingratidões!

Nunca se deve ter tanta bondade,

Quando é excessiva e tanto dó inspira

E uma falta até de dignidade.

Ora eu assim cercado de mentira,

Longe de tudo e todos, e enganado

(Quando se foi tão criança o que admira!)

Vi-me sem Deus, só, triste e em tal estado

Que se o contasse choraríeis... Não!

Não falta em que empregar pranto salgado.

Que infortúnio, meu Deus! que decepção!

Minha crença católica perdi-a,

Já não sei persignar-me com a mão.

Durante meses, sempre, dia a dia,

Ainda fui, por habito, à Igreja:

Não sabia rezar a Ave-Maria!

Chegava ainda até «bendita sejas...»

E ao ver a Virgem de olhos sobre mim

Corava de pudor como as cerejas.

Nunca na Terra se viu nada assim!

Minha vida mudou-se de repente.

A tosse veio... vós sabeis o fim.

Foi a queda do Império do Ocidente!

Foi o desastre de Alcácer-Quibir!

A Espanha veio com Philippe à frente!

Que mais viria e estava para vir?

E fui a França consultar um Bruxo

Que eu já de há muito desejava ouvir.

Á porta havia uma cruz de hera e buxo

E ao centro, no jardim, dentre uma frágua,

Erguia-se em girandola um repuxo.

Bolas de sabugueiro à mercê da água

Iam e vinham, graças de meninos,

Ascensões de prazer quedas de mágoa!

Era a sorte a brincar com os destinos...

Não deixava de ter engenho o dianho

Do Bruxo! Mas que símbolos tão finos!

Entrei. E vi um Velho alto, tamanho,

De barbas brancas a tocar-lhe os joelhos.

— Sois vós o Bruxo?  — «Sim! esse é o meu ganho!»

Tinha um sorriso que só têm os velhos.

E os lábios brancos (de quem já não ama)

Que contrastavam com os meus, vermelhos.

— Venho de longe, aqui, por vossa fama.

Vosso nome chegou ao meu país.

— O teu país, Senhor! como se chama?

Não: dá-me a mão, ela melhor mo diz:

«Oh vens de Portugal? Oh se o conheço!

Manda-me para cá muito infeliz...»

Ouvindo tais palavras, estremeço.

Nele fixo os meus olhos de admirado

E que me diga os fados eu lhe peço.

Sombrio, o Bruxo assenta-se, calado,

Numa cadeira antiga, ao pé do lume.

Eu assentei-me tímido, ao seu lado.

Ó momento que um século resume!

O São Paulo do Amor! Mártir cristão,

Que ao ver a espada já lhe sente o gume!

Na sua mão tomou a minha mão.

Seus olhos frios crava-mos na palma,

Mas de repente muda de expressão.

Que passado, Senhor! tem dó desta alma!

Catástrofes! Naufrágios! tantos perigos!...

Mas eu logo acudi, com grande calma:

— Basta. Deixai-me em paz o tempo antigo.

Eu conhecia-o já antes de vós.

P'ra que lembrar-mo? Sede meu amigo!

Numa sala contigua, etérea voz

Rezava a ladainha, eram mulheres.

— «Estrela da manhã! — ora por nós!»

— «Nada te digo, pois que assim o queres!

Ouves? Lá dentro, rezam minhas filhas.

E rezarão o tempo que quiseres.»

E continuou a ler: «Que maravilhas!

Que mão estranha! mão de tempestade!

Mares, golfos, canais, cabos e ilhas!

Vais em meio da tua mocidade.

Tens vindo em tua nau, desde criança,

Por um sombrio mar da antiguidade.

Agora, aqui, o temporal descansa

E vê: segundo a altura do quadrante

Dobras o Cabo da Boa-Esperança!

Coragem! meu sombrio navegante!

Paciência! mais um pouco e aportarás

Á Índia! mais tua esquadra de almirante!

Ali, te aguardam Bens te espera a Paz

A boa Glória e mais do que isso, até,

Um grande amor, — e ali te coroarás!»

O Velho disse. E, logo, pus-me em pé.

Mui feliz, não querendo ouvir o resto,

Que eu sei o vazio que este mundo é.

Adeus! disse eu àquele sábio honesto,

Formoso e de olhos grandes como céus!

Adeus! e parti logo, altivo e presto.

Caía o sol no oceano. Orei a Deus.

Uma nau me esperava... Erguemos ferro

E abalamo-nos de França. Adeus! Adeus!

Que pecado Senhor! ou grande erro

No mundo cometi que me dás tantos

Trabalhos, como na África em desterro?

Não posso ser bem sabes como os Santos.

Mas quantos homens neste mundo avisto

Tão felizes (e maus!) quantos e quantos!

E se não fui eu que pequei, ó Cristo!

Pecariam os meus antepassados?

Quem foram eles? Vem contar-me isto!

Religiosos, marítimos, soldados?

E justas são as leis com que me aterras

Sendo eles os únicos culpados?

Na Arábia, na Fenícia ou outras terras

Causaram, vai em séculos, paixões

Fomes e sedes, ou atearam guerras?

Comeu a terra os ossos desses leões,

As suas cinzas foram-se nos ventos

E eu sofro, após quinhentas gerações?

Que injusta cousa! que desleais tormentos!

Que faz rezar, à noite, de mãos postas,

De que serve cumprir teus mandamentos?!

Quem sabe se não foram meus avós,

Senhor! Que tanto e tanto te ofenderam,

Mas meus arqui-primeiros bisavós?

Quando os vulcões da terra arrefeceram,

E lentamente, aos poucos, e as primeiras

Eflorações da vida apareceram;

Talvez, que um tigre eu fosse, que nas carreiras

E uivando, à lua, e destruísse as matas

Que levaste a criar noites inteiras!

Talvez, no dia em que baixaste

Á terra, para ver a tua obra

Vestido d'alvas vestes como pratas,

Fosse eu, cobarde! a pequenina cobra

Oculta entre jasmins que te mordeu...

Quando ias a colher algum... de sobra!

Outrora o sol ardia no alto céu,

Pediste sombra à árvore num monte

Que ergueu a rama e essa árvore... era eu!

Quando o sol caía, à tarde, no horizonte,

Todo vermelho como agora, vede!

Sequioso, ias beber a água da fonte,

E eu (que era água) não quis matar-te a sede!

Quem sabe se uma vez, pela noitinha,

Foste ensaiar o mar, deitando a rede,

E cobiçou o peixe que lá vinha

E ta furtou, (brinquedos de criança!)

Alguma onda do mar, minha avozinha?

Mas mesmo assim, Senhor! Senhor de esp'rança!

Como devo sofrer perseguições?

(Eu concordo) é legitima vingança?

Ah não! eu não descendo de leões

Nem da vil cobra que se vai de rastros,

Que só concebe e dá à luz traições!

Nem dos pinheiros altos como mastros

Nem das águas que vão regando os milhos:

Nós os poetas descendemos de astros,

Nós os poetas, Senhor! somos teus filhos!

... Assim cismava eu pelo mar alto

Sob o luar partindo-se em vidrilhos...

Quando numa manhã de azul cobalto,

Ao acordar, me vi no claro Tejo

Orei a Deus. E logo saí dum salto.

Meses passaram, longos! que nem vejo

Que diferença em séculos, ou meses:

O tempo marca-o a ânsia do Desejo!

Que fazia eu? Nada. Cismava, às vezes,

Errante, ao «Deus-dará» da vida:

Sempre assim fomos nós, os Portugueses!

Ora em dia de Santa Aparecida

(Mais uns minutos, esperai, Senhores,

Que eu acabo esta história tão comprida),

Errava num montado entre pastores

Quando, súbito, vi uma Donzela

Tão linda! num Solar, colhendo flores.

Oh doçura de carne ou de estrela!

Que esvelteza e que graça de alfenim!

Meu coração disse-me baixo: «É ela!»

Qual de vós, Homens! Já não teve assim

Uma visão, vendo erguer-se entre

Nuvens, a vossa torre de marfim?

Deixai que a minha alma se concentre.

Deixai! que esse dia é maior que quando

Minha Mãezinha me pariu do ventre.

Quedei-me, ao vê-la, em extasis olhando.

Dobraram-se-me os joelhos e ajoelhei;

Meus lábios moviam-se... rezando!

Quem será ela? a filha de algum Rei?

Atrás seguiam-na duas aias velhas:

Quem será ela, quem será? Não sei.

Era em Agosto. O sol ardia. Abelhas

Voavam, ao sol, enquanto ela lia

Um livro de horas com folhas vermelhas.

Que paz! nem uma árvore bulia!

E calavam-se as fontes! Que doçura!

Mas de repente uma voz chamou: «Maria!»

Maria se chamava! Oh que ventura!

Partiu. Eu quis segui-la, mas não pude!

Que torpor esse que ainda hoje dura!

A virgem me proteja e Deus me ajude!

Vai alta a noite, eu caio de fadiga,

Bambas as cordas do meu velho alaúde!

Ó Gênio, não te partas sem que eu diga

O encanto, mais a graça encantadora

Daquela virgem Castelã antiga.

Minha fronte vergou-se, cismadora:

— Quem será ela, mística visão!

Parece com seu Ar Nossa Senhora!

Mas eu já tive tanta decepção

(Lede, lede, o princípio desta história)

Que contive essa súbita paixão.

Tudo na Vida engana, até a Glória.

Para deixar de o crer fora preciso

Lavar no Letes minha fiel memória.

Assim pensava eu, meio indeciso,

Quando na estrada junto a mim passava

Um velhinho a rezar ao Paraiso.

Num cajado de lodo se apoiava.

E detinha-se, às vezes, um momento,

Erguia ao céu o olhar, e suspirava.

As barbas brancas, flutuando ao vento;

Devia ter um século de idade

E talvez vinte ou mais de sofrimento!

Parou ao ver-me e olhou-me com bondade:

Depois na sua voz meiga de brisa:

— Uma esmola, Senhor, por caridade!

Uma lembrança dentro em mim se enraíza.

— Dou-te, bom velho! tudo que quiseres,

Se em troca me dás vestes e camisa.

O velhinho sorriu como as mulheres.

A quinzena me deu, e eu dei-lhe a minha,

Que na botoeira tinha malmequeres...

Ninguém a essa hora pela estrada vinha.

Tudo despiu, me deu: fiquei perfeito.

E eu dei-lhe em troca tudo quanto tinha.

Mas não estava ainda satisfeito,

As suas barbas brancas eu queria,

Comprar-lhas era falta de respeito!

Comprar-lhas nunca eu me atreveria!

Mas o bom velho o pensamento ouviu,

Que aquele olhar excepcional ouvia.

Ó grandes barbas! que ainda ninguém viu!

Ó grandes barbas! como eram belas!

Tal como outrora as de D. João, em Diu!

— Não lhas vendo, Senhor! mas dou-lhas, qué-las?

Ó povo português! quanto és simpático!

Ó povo português das caravelas!

Cortou-as. Deu-mas. Eu fiquei extático.

Beijei-lhe as mãos curvado... E o bom velhinho

Lá se foi, a cismar... tossindo... asmático...

O sol caía ao longe no caminho!

Não tarda a noite, já lhe sinto os passos,

Mas há tempo: ela anda devagarinho.

Enfarpelei sem grandes embaraços;

A toillete tem poucos elementos,

Muitos remendos sim, rotos os braços...

Perdia-se o velho, ao longe, em passos lentos;

«Que nome tens, amigo?» lhe gritei.

«Manoel». E digo eu, «dos Sofrimentos».

Caía a noite: com pressa caminhava.

Segui os passos deixados por Maria

Que flores na mão, andando, desfolhava.

Não era aviso que assim daria?

O meu olhar teria percebido?

Que luz de esperança a minha alma via!

Entrei no pátio, Senhores! Mas que atrevido

Irão achar o pobre esfarrapado!

Um mendigo velho... e tão mal vestido!

Pedi esmola e parei sobressaltado.

Enquanto alguns me enchiam a sacola

Um olhar lindo em mim era fixado.

E que olhar p'ra mim! tanta doçura evola!

Senhores, eu não me tinha enganado...

(Assim julguei então... a Vida foi-me escola!...)

Ella passou, de manso, para o meu lado

E murmurou o meu nome, assim, baixinho...

Disse-me depois que o houvera sonhado!

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TEREZA

— «E depois, menino, sabemos já o resto...

Para que mortifica assim o coração?»

— Ai minha Thereza! tu tens talvez razão:

Esse amor primeiro foi-me tão funesto!

O os meus dias idos em contemplação!

O os meus loucos sonhos que daí eu trouxe!

Falava eu às flores, como se ela fosse:

«Maria» eu lhes chamava, cego de paixão.

Hei-de gravar-te em bronze e tornar-te imortal!

Eu hei-de lançar o teu nome aos quatro ventos!

Eu, o humilde Snr. Manoel dos Sofrimentos,

Eu, por graça de Deus, poeta de Portugal.

— Quem é, Thereza, que bate à porta

Quem vem a esta hora quebrar meu sono?

— Ninguém é, meu Senhor, a noite é morta,

São folhas a cair, que é já outono...

«Quando eu era moça e menina,

        A-i-ó-ai!

Um velho, um dia, leu-me a sina.

Há que tempos que isso lá vai!

        A-i-ó-ai!»

(O vento continua uivando).

— Quem é, Thereza, que oiço clamores,

Vai ver à porta, vai num instante!

— Sossegue, durma, são os lavradores,

Que passam para a feira de Amarante...

E vá de roda! e vá de roda!

        Olé!

E vira e vira e já virou!

E na tarde da minha boda

Houve baile, houve baile, olé!

Tomou parte a aldeia toda,

E vá de roda! e vá de roda!

Olé!

(O vento uiva sempre).

— Quem é, Thereza? quem é, Thereza?

Quem é, Thereza, que bate à porta?

— Olhe a Fortuna não é com certeza,

Por isso... durma, durma, que lhe importa?

(O vento uiva, uiva).

— Não ouves, Thereza, três pancadinhas?

Vai ver: é a D. Felicidade.

— Mas as senhoras não saem sozinhas

Numa aldeia, nem mesmo na cidade...

Durma menino, a dormir

Não sofre tanta paixão,

Os sonhos que lhe hão de vir

Afasto-os eu, com a mão.

Durma menino, a dormir

Não ouve o seu coração,

E p'ra o ajudar a dormir

Eu canto-lhe uma canção:

Era uma vez, num paço sobre o Tejo,

Um moço Rei... de lindos olhos verdes;

(Senhor! se a luz dos vossos, perderdes,

Tereis os dele que sempre abertos vejo.)

Andava o moço Rei com seu gibão

De prata branca, reluzente de oiros.

Tinha em anéis os seus cabelos loiros,

No céu era anjo e cá... Sebastião.

(O vento geme, geme sempre).

— Quem é, Thereza? quem é, Thereza?

Não ouves passos, que vão pela serra

Não ouves gritos, quem é, Thereza?

— É D. Sebastião que vai para a guerra.

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Por uma tarde de chuvinha miúda e vento,

Destas tardes, meu Deus! que fogem os paquetes,

E a chuva tomba sem parar um só momento,

A chuva que parece de pontas de alfinetes,

Por uma tarde triste assim, é que Anrique

Partiu. De novo abandonou o seu solar.

Da sua aldeia os pobres pedem-lhe que fique,

E Thereza bem faz também pelo guardar.

Por uma tarde de chuvinha miúda e vento,

Anrique foi bater à porta dum convento.

Bateu à porta, um Frade veio-lhe falar.

«Que desejais, Irmão»? e respondeu: «Entrar».

Frades! meus Frades! ai abri-me a porta!

Abri-me a porta, que eu pretendo entrar.

Eu trago a alma toda ferida, morta,

Só vós, Fradinhos, ma podeis curar!

Há quantos anos vós estais fechados

Nestas muralhas de granito e cal!

Ah se soubésseis, Frades corcovados!

O que vai lá por fora, em Portugal!

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Anrique, até que enfim cedes às magoas!

Até que enfim eu vejo-te chorar!

Chorai, chorai, ó longos fios de águas!

Ó olhos grandes como os globos do Ar!

Ah chora Anrique, chora nos meus braços

O moço Poeta que te está a cantar!

Choremos entre beijos, entre abraços,

Também eu choro por te ver chorar!

Ah chora Anrique, chora, não te escondas!

Tens pudor que te venham encontrar?

Choram os canaviais, choram as ondas,

Só os cínicos não podem chorar!...

Ah chora, Anrique, chora no meu peito,

Assim baixinho, lento, devagar!

Custa-te muito? não estás afeito!

Chora, meu filho, que é tão bom chorar!

Anrique ouve-me bem, minha criança!

Nem tudo se perdeu com o teu Lar.

Ainda tens na vida uma esperança...

Meu pobre Anrique, és tão lindo a chorar!

Teu coração está morto, bem morto.

Nada no mundo o poderá salvar.

Ah! moço que tu és, que desconforto!

Tens razão, oh se tens! para chorar!

Tens razão, Anrique; mas no entanto,

Quem sofreu como tu sem descansar,

Anrique, ou dá num cínico, ou num santo:

Não és cínico, não, sabes chorar.

Ouve-me, Anrique: nesses céus existe

Um homem, Pai da Terra e mais do Mar,

Que fez o Mundo (por sinal tão triste)

E os olhos, não p'ra o ver, mas p'ra chorar.

Vá! oferece-lhe a tua mocidade.

Vá! vai sofrer por ele e trabalhar.

Ah bem sei que custa tanto, nessa idade...

Mas que hás-de tu fazer? Chorar? Chorar?

Não tens na vida uma alma amiga

(Tu bem no sabes) para te amparar.

Só eu, embora curvo de fadiga,

Tenho paciência p'ra te ouvir chorar!

Todos os mais, malvados e egoístas,

(Que tudo a Deus, um dia, hão de pagar)

Não te poriam nem sequer a vista,

Fugiriam, ao verem-te chorar!

A adversidade é uma maravilha

Que certas almas sabem respeitar,

Mas aos olhos dos mais a dor humilha...

Ah quanto é grande ver um rei chorar!

Ah pensa, pensa bem na tua sorte,

Cautela, Anrique, nada de brincar.

Há outros males piores do que a morte,

Cautela, Anrique, vamos trabalhar.

Vai trabalhar por Deus. — «Mas como e aonde?

Não vos disse que morto é Portugal?

P'ro trabalho quem antes era conde!» —

— Ai meu Anrique, não te fica mal!

Não me dizes que lá por Portugal

Andam as almas todas quebrantadas?

Vai, meu filho, vai para Portugal

Vai levantar as flores, já tão quebradas.

Anda, meu filho: vai dizer baixinho

A esse povo do Mar, que é teu irmão,

Que não fraqueje nunca no caminho,

Que espere em pé o seu D. Sebastião.

Anrique, vai gritar por essa rua

— Virá um dia o «Sempre-Desejado»!

Deu a vida por vós, Tu, dá-lhe a tua,

Esquece nele todo o teu passado.

Procura bem Anrique, em Portugal;

Procura-o na flor das primaveras,

Procura-o na sombra do olival;

Procura à luz de todas as quimeras...

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Acabou de se imprimir este livro aos dezoito de março de 1902 segundo aniversário da morte do Poeta.