Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Rei Negro, Coelho Neto


Edição de base:

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

I

A casa, antiga e vasta, acaçapada no planalto, com um largo alpendre sobre atarracados pilares, abria-se em inúmeras portas e janelas, recebendo pelos fundos o ar da malta que lhe ficava à encosta, tão perto que, às lufadas mais rijas, revoos de folhas acamavam-se-lhe no telhado denegrido e hirsuto de ervas.

À frente, no lançante do morro, o jardim verdejava escalonado em taludes, florido e copado de arvoredo alegre. Bastas roseiras embrenhavam-se, umas achaparradas, outras híspidas, expluindo em viço agreste, estirando varas que se emaranhavam nas árvores, cingiam-nas, insinuavam-se-lhes nas franças entremeando-as de rosas.

O chão, em volta dos jasmineiros, era uma alcatifa aromal mosqueada de abelhas. Papoulas plumejavam, cravos abriam-se em sangue, em borlas de neve; bogaris branqueavam em flocos e a grama dos tabuleiros, muito verde entre as aléas sinuosas, dava aos olhos uma impressão macia de úmida frescura.

Larga alameda de bambus, oscilando flexuosamente com estralejado sussurro, abobadava um caminho sereno, alfombrado de folhas. Na transparência do ar azulado cruzavam-se, de contínuo, libélulas e borboletas e sempre, docemente, soava um esvaído e trêmulo murmúrio d’água. Sebes de cedros, tosadas à altura do homem, muravam as trilhas, formavam tapigo à orla das rampas. Caramancheis em cúpulas ou à feição de cabanas ofereciam, nas horas cálidas, agasalho e frescura, e, em baixo, rente com os espinheiros, desgrenhadas casuarinas desferiam gemidos colos.

Um veio límpido descia da mata em fio serpentino, cascalhando, borbulhando nas pedras até gorgolejar num tanque ourelado de avenças e samambaias em volta do qual ererês domésticos galravam.

De manhãzinha e à tarde era um soturno, merencório arrulhar de pombos e, não raro, garças imóveis, como de mármore, refletiam-se n’água alvoroçando-se com o ladrar arremetido dos cães e partindo tumultuosamente, com estrondoso ruflo d’asas, em largo voo branco em direção aos banhados.

Da varanda alpendrada a vista abrangia um raio amplo e exuberante de terras lavradias: chãos e relevos, desde a porteira, no alto da estrada íngreme e esbarrondada, entre barrancas, até a serra longínqua, esbatida em névoa, no azul.

O rio recortava a planície em suco luminoso – a trechos desaparecia, rebrilhava adiante, sumia de novo em densa massa de bosque, fugia além, mais largo e ofuscante e perdia-se.

Vizinhas da casa, como uma póvoa feudal, espalhavam-se as construções agrárias: paióis e talhas, o moinho, o engenho d’água, chiqueiros, o aprisco e, ao alto, o curral murado de taipa cuja terra, revolta e vermelha de estravo, parecia encharcada de sangue. Claros cinéreos de queimadas, repontados de tocos, abriam cicatrizes entre as balsas. Palhoças, ranchinhos apareciam em maciços de árvores, com a roça de cana ou de milho a transbordar das cercas de pau a pique. Os terreiros de tijolo sobrepunham-se em socalcos e, amplo como um pátio de presídio, com o reforçado portão de tranca cadeiada, o "quadrado" da escravatura tresandava a espurcícia.

Portas apenas desabafavam as moradias. Era imundo e lóbrego. O ândito de terra escura reçumava humidade. As paredes escalavradas mostravam as ripas. Molambos trapejavam em cordas tendidas de muro a muro; tinas guardavam barreiras escuras e, empolada em regos entupidos de lodo onde fermentavam fezes, uma água pastosa tinha arrepios de vernina.

Pelos cantos cães morrinhentos dormitavam enrodilhados, galinhas arrufadas cacarejavam passeando ninhadas; leitões grunhiam fossando a putrilagem e crioulinhos tolhiços, avergoados de magreza, iam e vinham banzeiros, cocando perebas; pequeninos, nus, engatinhavam lambuzados, com o ranho a escorrer-lhes das ventas ou em bolo, sevandijados, refocilavam, patejavam na estrumeira borrifados de lama sob o voo zoante das moscas.

No tempo das águas o pátio alagava-se em atascadeiro e os negrinhos refestelavam no enxurdo espojando-se, trambolhando, patinhando no lameiro nauseante.

Cedo, antes do sol luzir, com a bruma ainda solta, a sineta soava a despertar. Abriam-se as senzalas lufando do interior fuliginoso e morno o acre fortum e a fumaraça espessa dos brasidos que ardiam à noite fazendo um ambiente de estufa onde, em promiscuidade sórdida, rolavam corpos seminus, lustrosos de suor, adultos e crianças e, por perto, cães cainhando baixinho com o pruir da lepra, galinhas acochadas no choco, sem falar nas enormes ratazanas que chiavam famintas, passando duma casa a outra pela buraqueira dos muros.

Ao toque de matinas a negrada saía para a forma arremangada, estremunhando, com bocejos de bruma fétida. O feitor passava a revista e o bando trasmalhava grazinando — ia ao café aguado, sorvia-o gulosamente e, ainda esmoendo restos de broa ou mandioca, cada qual tomava a enxada ou o cesto e lá iam à carpa ou à colheita humílimos, submissos como animais.

E começava o labor na fazenda. A grande roda do moinho ringia rolando no vão sombrio e limoso onde o ribeiro escachoava engasgado; chiavam os carros. No curral os bezerros berravam abarbados com o muro, farejando o cheiro de leite ordenhado. Enchia-se a escura e espaçosa cozinha, onde as negras borborinhavam e, de todos os recantos, saíam animais ao cibo: varas de porcos, aves, sujos carneiros em lotes e grandes bois de carro, d’olhos piscos, morosos, ruminando, jungidos à canga para o serviço.

E Manoel Gandra, de brim, botas de couro cru, chapéu de palha de largas abas, descia vagarosamente as escaleiras do jardim, com olhares de dono, detendo-se aqui, alhures, a examinar uma rosa mais repolhuda, a escutar, enlevado, o gorjeio dum pássaro, ou, chamando negros, mandava varrer as aléas, tosar a grama eriçada, podar um arbusto, fincar um esteio, atar um amarrilho. E assim, distraído, saboreava o café levado por asseada mucama, em bandeja de prata sortida de guloseimas, desde os sequilhos, em forma de amêndoas, até os gordos, abananados bolos de mandioca puba.

E ali ficava até a hora do almoço, interessado nas flores, abençoando velhos negros que passavam arrastando os pés inchados e esponjosos ou moleques que lhe saiam à frente com ar idiota, maltrapilhos e sujos, remelentos, estendendo a mão magra em gesto simiesco, com o corpo negro gizado a arranhaduras, como manipansos de basalto lanhados a buril.

A lavoura não lhe dava cuidado — sentia-a medrar nos outeiros encarapinhados pelos cafezais nas chans de milho e cana, nos aclives que o mandiocal alastrava, nas grotas onde os inhames de largas folhas brônzeas, escondiam aguaçais, pastos verdejando macios, a perder de vista.

A terra, a água e o sol lá estavam cercando de fecundidade as raízes e os negros auxiliavam a natureza capinando as roças, lançando fogo aos ninhos, derrubando os capoeirões para aproveitar terreno em semeaduras prósperas, ou, com um canto triste, guaiado, raspavam os ramos lustrosos cafeeiros, enchendo as peneiras de bagas vermelhas desenterravam a mandioca, cortavam a cana, quebravam o milho; e os carros desciam com um chiado crispante e os terreiros cobriam-se de café para a seca ou os paióis atestavam-se de cana ou de milho para a moagem ou, para a debulha.

Terminada a faina do beneficiamento era só reunir a tropa, jungir os bois à canga e partir. E começava o desfile.

De madrugada, ainda com a névoa enflocada em rolos espumosos, tiniam campainhas, estalavam relhos. Tropeiros giro-giravam aforçurados reunindo a récua; montavam e, com alegre alarido, punha-se o comboio em marcha com rumoroso sacolejo de cargueiros, seguindo, ora em trilha rasa, ora por veredas tesas, ao sol ou pela sombra fria e múrmura das matas, saindo em andurriais, galgando as grimpas ásperas, cascalhando em seixos, resvalando em lajes, metendo-se à água ou vencendo arcais, balofos e quentes como rescaldos.

Pousavam em ranchos — a gente estirava-se pelo chão, em couros, com um fogo alumiando, a animalada, peiada, ia e vinha na macega, tinindo chocalhos.

De manhãnzinha, antes da luz partiam. E caminhavam dias, ao sol, à chuva ou, mais agradavelmente, pelo clarão do luar, ao fresco fragrante, com uma toada a que se juntavam, em compasso, o estropear das mulas e o som rítmico das campainhas.

À vista das primeiras turmas dos trabalhadores, que andavam construindo a Estrada, dobraram-se os cuidados. Os tropeiros desviavam-se da linha, dos cortes, guardando, com mais atenção, os animais que, ao silvo dos trens de lastro, esbarravam assustados, d’orelhas fitas, refugando ou disparavam desapoderadamente mato dentro, quando não se precipitavam, de rebolão, pelos barrocais.

E era um trabalho insano para conter os medrosos, reunir os prófugos, concertar arreios e cangalhas de sorte que, ao avistarem as primeiras casas da cidade, ainda de sapé, nos matos ou entre laranjais e hortas, respiravam e, dando graças a Deus, entravam na Corte comentando a viagem, os trabalhos, as aventuras e calculando o tempo que ainda levariam a chegar os carros que haviam ficado longe, nas ladeiras escavadas em caldeirões, com as rodas entaladas no lamaçal e os carreiros desesperados aguilhoando inutilmente os fatigados bois até que, exaustos, atiravam-se na macega, enquanto os animais esfalfados, a língua pendente, babavam arquejantes atolados no lodo.

Na cidade, a negrada tomava um fartão de pagode admirando as novidades, a vida tumultuaria.

Aviadas as encomendas do senhor, carregavam os animais com as compras e partiam, com muita tropa folgada, revezando os cargueiros ao longo do caminho.

O regresso era fácil, alegre, sem risco, a não ser nos socavãos da serra onde bandidos e quilombolas tocaiavam tropeiros acometendo-os de improviso, desbaratando-os a tiro, perseguindo-os, matando os animais intrépidos e tocando a récua para valhacoutos alcantilados. Mas com os trabalhos que andavam na serra os ladrões rareavam. Citavam-se os assaltos e as vítimas eram sempre viajantes imprudentes que se afoitavam, à noite e sós, em tais paragens.

Mas a tropa da "Cachoeira", com Macambira à frente, ganhara fama desde que, numa garganta, recolhendo à fazenda com avultado carregamento, atacada por uma quadrilha rechassara os bandidos matando-lhes o chefe.

Manuel Gandra, senhor da "Cachoeira", uma das fazendas mais ricas do vale do Paraíba, chegara ao Brasil em uma leva de colonos.

Moço e robusto, airosamento aprumado, com o sangue a reçumar-lhe em cores nas faces, uma alegria vívida nos olhos garços, destro ao jogo do pau e lânguido à guitarra, impunha-se aos homens pela valentia e as mulheres adoravam-no pedindo-lhe tonadilhas e fados tristes.

Aventuroso como os da sua raça, longe de deixar-se enredar nas seduções da cidade, meteu-se atrevidamente ao sertão e, chegando à "Cachoeira", que era um maninho, engajou-se como administrador fazendo-se valer pela audácia e pelo pulso.

Camilo Feitosa, o fazendeiro, obeso e lerdo, duma obtusidade granítica, passava os dias lambiscando lambarices, a arrastar as chinelas pela casa, com o ventre enorme a espocar do cós das calças de enfiar, ou dormitando, aos roncos, à sombra das árvores, com a cainçalha em volta. À noite rebolcava em libidinagem pelas tarimbas das negras.

Viúvo, vivia com dois filhos — um rapaz e uma menina: Honório e Clara.

Eram dois selvagens criados à lei da natureza, medrando à bruta na calaçaria da roça e das senzalas.

Debalde Feitosa tentara instruí-los. Tomou professor, um velho alemão paciente, muito amigo de plantas e de insetos. De manhã, quando o bom homem procurava os alunos, as negras chasqueavam-no. O sábio sorria adiando a lição para o dia seguinte e, com o cachimbo, o herbário e um saco de talagarça, metia-se pelos matos.

Os dois irmãos madrugavam ao ar livre: o rapaz com a espingarda, a menina num rol de negrinhas, ganhando veredas cerradas, um à caça, outra aos ninhos, às frutas, à vagabundagem na espessura. Só apareciam à noitinha cansados, escalavrados com enfiadas de caça e samburás de frutas.

Às vezes encontravam o alemão e desciam juntos e Feitosa, vendo-os entrar, ria, sacolejando-se nos refegos de banha, achando graça na estroinice dos pequenos e louvando a paciência do professor.

Honório acabou desastradamente no rio, querendo atravessá-lo a nado no mais grosso e revolto duma enchente.

Clara, deitando corpo, continuou na bruteza, passando os dias entre as negras, aos palavrões e a bordoada com as mucamas, informando-se de amores obscenos, rindo do que lhe contavam, com um sem-vergonhismo crasso ou errando nos matos, a cata de frutas, banhando-se nos córregos, trepando nas árvores com os crioulos, apedrejando-os com frutas verdes ou descendo estabanadamente com um despejo de injúrias torpes para esmurrá-los, se os surpreendia agachados, espreitando-a por entre os ramos.

Às vezes, antes do banho, sentada no barranco, com a camisa úmida colada ao corpo, chapinhando com os pés n'água, ouvia estralejo de ramos. Voltava-se de golpe e, descobrindo negros, moleques acocorados nos matos, apedrejava-os, perseguia-os às palavradas até longe, correndo, com camisa tufada ao vento, as pernas nuas, os cabelos soltos prendendo-se, deixando fios nas ramagens.

Sentindo-se só, espantava-se na erva com volúpia animal, espojando-se, a enfunar a camisa, gozando o sol no corpo como a carícia de um macho.

Manuel Gandra, assumindo a direção da fazenda, teve jeitos de insinuar-se no coração da virgem agreste e o velho, inerte e pigro, ainda que os visse sempre juntos, só se apercebeu da perdição da filha quando, uma noite, no silêncio da residência, os gritos de Clara repercutiram lancinantemente.

Então, sem revolta, recebendo o neto, chamou Manuel Gandra e, comovido, quase em súplica o fê-lo aceitar a filha e, com ela, toda a vasta riqueza daquelas terras fartas.

Celebrou-se o casamento à capucha e meses depois, tendo Camilo, após abundante almoço, descido pesadamente para a rede, onde costumava dormitar à sesta, ali ficou o dia todo e a tarde acharam-no morto, com o carão balofo mascarrado de placas denegridas, a boca escancarada, retorcida em ritos, com a baba vitrificada aos cantos.

E a fazenda, energicamente administrada por Manuel Gandra, prosperou desenvolvendo-se prodigiosamente. Entraram escravos novos, construíram-se casas cobertas de telha, touros de raça berraram nas várzeas e era um encanto ver, à tarde, no caminho em aclive, o denso rebanho descer tão apinhado que parecia a própria terra esbarrondada que resvalava, ladeira abaixo.

A residência, que ameaçava ruir, fendida em brechas, foi reformada e alargada, à frente o alpendre, limpando-se-lhe o terreno em volta, escalonando-se o jardim em anfiteatro.

Quando os vizinhos viram as grandes benfeitorias da propriedade, dantes tapera, puseram-se a murmurar pelas vendas dos caminhos, pelos negócios da vila: "que o galego passava notas falsas".

Alguns, dando-se por informados, explicavam "que o dinheiro vinha do Reino em canudos de lata metidos em pipas de vinho ou em barris de manteiga". Por isto ou por aquilo, Cachoeira tornou-se a mais bela fazenda da região.

Gandra tinha gosto e, conhecendo, por experiência, a utilidade das florestas, não consentia que tocassem em árvore das que faziam sombra à casa. "Não faltavam capoeirões, fossem lenhar alhures”. Gozava sentindo o cheiro acre e sadio das resmas, ouvindo os pássaros livres e, à noite, do seu dormitório, que era um salão cercado de persianas, escutava, com enlevo, o frondejar da mata.

A mulher, alcunhada de "Capivara", à medida que rechonchava em ádipe, amolecia em inércia apassivando-se preguiçosa e balorda.

Era uma massa de chorume, obesa e flácida, rebolando aos ofegos, derreando-se nas cadeiras onde ficava esparrimada, arquejante, a cochilar vadia.    

As negras esbeiçavam muxoxos desprezíveis passando por ela, respondiam-lhe de repelão, afrontando-a com olhares enviesados e ela temia-as sempre a suspeitá-las de bruxarias, desconfiando tudo, num invencível, estarrecido temor da morte.

Se, na ausência do senhor, alguma, mais atrevida, boquejava ameaças, regelava de medo, recusando a comida, fazia promessas aos santos ou mandava chamar Egídio, velho cabinda, pai de quimbande, que conjurava os mais violentos feitiços fazendo passes com um galho de arruda ou queimando na palma da mão crustácea uma pitada de pólvora, sobre cujo resíduo sussurrava palavras mágicas, soprando-o depois e com ele expelindo o mandado funesto.

As mucamas, quando a viam carrancuda de trombas, cantavam para irritá-la, riam-lhe em rosto despejadamente, trocavam ditérios e, se a mísera, revoltava-se ameaçando queixar-se ao marido, plantavam-se-lhe na frente e, enclavinhando os dedos, arrebitando o beiço em momo sarcástico, perguntavam-lhe: "Se queria um carinho para ir mais depressa?”.

Ela engasgava apoplética, roxa de cólera, com os bócios a papejarem e as raparigas dobravam-se às chacinadas e, rebolindo as nalgas, arrastando achincalhadamente as chinelas, lá iam, muito anchas, impando descaso, numa ostentação cínica da rascoagem em que viviam com o senhor.

O filho, Julinho, crescia robusto e solto naquele meio dissoluto, entre mulatinhas zabaneiras, precocemente devassas e moleques sornas com os quais andava aos ninhos ou farandolava nos córregos e, à proporção que se desenvolvia reforçando-se, ascendia-se-lhe no sangue uma sensualidade suína que o levava a fariscar as mulatas roçando-se por elas aos reboleios, agarrando-as, apalpando-as onde as encontrava, num furor de árdega lascívia.

Pedia-lhes, lamuriando, que lhe mostrassem nudezes “queria ver, só ver”. As mais depravadas cediam “por pagode”. E o rapazelho derrubava-as, rasgava-as frenético, fussando-as, mordendo-as e elas rindo, a princípio, defendiam-se encolhidas, súbito, porém, excitadas, abarcavam-no, subjugavam-no brutalizando-o alucinadamente.

Velhas negras resmungavam quando o viam de tocaia nos caminhos ou encostado à porta dos quartos espiando as mucamas em camisa, chamando-as e cainhando como cão ao cio.

“Isso, ahn! Isso vai sê pió qu’o pai! Oia só... Criança d’outro dia...” Espocavam muxoxos. Algumas paravam a rir interessando-se na mangalaxa e açulavam-no: “Entra... Mecê tá perdendo tempo. Pontaria demorada espanta a caça.” Outras esconjuravam-no: “Crédo! qu’assanhamento...”

Manuel Gandra destinava-o à medicina, queria-o formado, fazendo curas prodigiosas. E nos jornais, batendo a cidade a carro, com o consultório apinhado, até a fama elevá-lo a médico do Paço, grande da corte, célebre no mundo. Um sonho!

E o rapazola arisco, arredio dos livros, corria à méquia ou, com um vergalho, alanhava os moleques, perseguia os animais, aviltava os velhos, ultrajava as mulheres diante dos maridos, as filhas na presença dos pais, chasqueando-as com alusões obscenas.

Os pequenitos abriam choro medroso quando lhe ouviam a voz, arrastavam-se, fugiam de gatinhas para onde as mães. Se o não podiam evitar, encolhiam-se papeando humildades e, d’olhos apavorados, a mão estendida à benção, tremendo, engoliam lágrimas na expectativa dolorosa dos pontapés e dos beliscões que lhes seviciavam o corpo.

Negros formidáveis, de bíceps hercúleos, se o viam de relho em em punho, cosiam-se covardemente com as paredes, confundiam-se com as árvores agachando-se nos matos.

Ele, às vezes, chamava-os, interpelava-os arrogante e, ordenando que se ajoelhassem, esbofeteava-os ignominiosamente.

O pai, que era generoso, repreendia a severidade, mas o rapaz resmungava amazorrado “que não aturava desaforos de negros”. E para justificar-se, mentia, caluniava.

Como os mulatinhos eram os que mais sofriam, as negras afirmavam, com ódio, que ele era açulado pela mãe. A Capivara faz por vingança porque sabe que os coitadinhos são filhos do senhor. E eram juras rancorosas, pragas de arrepiarem.

Quando Julinho completou treze anos, taludo e esperto, Manuel Gandra, apesar da choradeira da mulher, desceu com ele à Corte e internou-o em um colégio de fama, de onde só saía nas férias, quando Macambira ia buscá-lo.

Na fazenda o pequeno desforrava-se à ufa do apertado regime do internato, galopando à rédea solta, banhando-se, às parapemadas, no córrego, devastando os ninhos a bodoque, armando mundéus e arapucas e atraindo com sainetes, senão com os próprios olhos, que eram negros e grandes, de mórbido langor, as mulatinhas púberes.

E a mãe, esparrimada em enxundia, se alguma negra, por bajulação, cochichava-lhe aos ouvidos as proezas do rapaz, babando-se de júbilo vaidoso por sabê-lo já homem, pedia pormenores vergonhosos e, rindo, com um gelatinoso tremer dos refolhos do papo, aprovava os estupros, aplaudia as violências, seguindo, em mente, as ignomínias do filho pelos matos, nas cevas sensuais das balsas floridas.

“Faz muito bem. Está na idade. Se há de ser um negro, que seja ele. Está no que é seu”.

Se alguma rapariga, sabendo da desgraça da filha, ousava lamentar-se, D. Clara irrompia assomada:

— Já viram só!? Pois não é que a descarada vem fazer queixa do menino! Burra! Em vez de ficar orgulhosa por meu filho dar confiança à lambuzona da negrinha, o diabo estica as trombas como uma grande coisa. Ah! vergalho! E meneava com a cabeça rilhando os dentes podres.

Para D. Clara tanto direito tinha o filho sobre a vida e a honra dos escravos como sobre o fruto das árvores e sobre a caça dos matos. Não podia compreender que as negras se revoltassem contra a violação das filhas ou que os negros se sentissem do aviltamento das mulheres que o senhor moço apetecia. Habituara-se, desde menina, a ver os escravos jungidos aos rebolos na erva, grunindo, agatafunhando-se no furor do cio. Ria, atirava-lhes pedras, bradava enxotando-os e eles fugiam como cães acossados, metendo-se na espessura onde, de novo, engalfinhavam-se mais ardegos. Eram como animais que não conhecem o pudor e, fariscando a fêmea, rastreiam-na, afuroam-na, empolgam-na, abocanham-na, subjugam-na saciando-se instintivamente com a mesma descuidada, natural simpleza com que espostejam a carniça ou se dessedentam numa poça d’água.

E Julinho, fiado no prestígio materno e na passiva timidez das negras, estuprava crianças ainda impúberes, forçava mucamas, aforciava casadas sem temer represálias, gabando-se, muito enfatuado, a descrever as suas possuídas, elogiando-as ou com caramunhas, cuspilhando de nojo, arrependido de se haver atolado em imundices.

Só um negro ousava afrontar-se com ele quando o surpreendia em contubérnio nos matos ou n’algum desvão das tulhas ou dos paióis — era Macambira. Estacava severo, gritava à fêmea, fosse quem fosse: “Sai, negra! Vai-te embora!” e, de costas para o senhor, expulsava a rapariga, acompanhava-a com o olhar até longe e, sem dizer palavra, carrancudo, lentamente afastava-se.

II

Macambira era um belo tipo de raça. Trinta anos sadios, alto, entroncado, ereto como uma coluna, tinha, no porte esbelto, desembaraçado, a elegância viril e airosa dum atleta.

A cor retinta luzia-lhe no rosto como verniz lustroso. Pouca barba, dois laivos em cada face. A boca forte cerrava-se-lhe em lábios grossos, os olhos grandes, severos, dum brilho fixo, explosiam domínio.

A austeridade das maneiras, o ar taciturno e altivo impunham-no aos companheiros que o respeitavam e temiam, conhecendo-lhe a bravura desabrida, provada em recontros na serra e numa tocaia que lhe armaram negros duma fazenda vizinha.

Eram quatro latagões de fama. Macambira levava o cavalo a passo pela sombra fresca quando, no cotovelo do caminho, subitamente o assaltaram. Foices luziram, tiniram; vozes surdas injuriaram-no.

Relanceando um olhar rápido, reconheceu a matula e, sem perturbar-se, picou o animal d’esporas, levantou-o nas rédeas e, atirando-o sobre o grupo, atropelou dois negros, derrubando o terceiro morto, com uma brecha na fronte por onde os miolos espocaram. O último afundou no mato espavorido.

E Macambira serviu-se apenas do cabo do relho, sem valer-se da garrucha que levava de cinta. Ganhou fama.

Filho de minas, falava correntemente a língua e praticava em segredo a religião dos seus maiores, confundindo no mesmo culto Jesus, a Virgem, os santos e um ídolo monstruoso falquejado num toro.

Entre os da sua raça era tido por “muchique” e todos saudavam-no reverentemente, zumbridos em vassalagem, vendo nele o príncipe, herdeiro do herói que sucumbira humilhado na terra dos brancos.

Balbina, velha negra havida por mandingueira, sempre andrajosa e suja, com a grenha refoufinhada em tufos, tresandando à pocilga e à suarda, era a sua única intimidade. Encarregada do chiqueiro, vivia atolada na lama entre os lerdos cevados, enchendo os cochos de inhame ou metida com os carneiros sórdidos no aprisco. Mal se lhe viam os olhos radiados do sangue, sempre de rojo, espreitando com desconfiança, e, se alguém lhe falava, encolhia os ombros resmungando, a varrer o chão com o olhar variado, gesticulando repulsas e seguia rinchavelhando um risinho d’escárnio ou esganiçando cantarolas zombeteiras.

Os moleques, se a apanhavam longe da casa, juntavam-se para enfezá-la. Agachados nos matos, gritavam-lhe injúrias, apedrejavam-na.

A negra parava no caminho bramindo maldições, fazendo esconjuros, e enquanto as pedras zuniam daqui, dali, de joelhos, com as pelancas das mamas a badalhoarem, esticava retesamente os braços na direção da floresta. D’ímpeto, em arranque, encolhia-os ao peito espalmando as mãos. Duramente aduncava os dedos e, com esforço, arremessando o busto, remoendo com as mandíbulas aperradas, repuxava, atraía um quer que fosse que a sua visão sobrenatural parecia lobrigar e, de golpe, infletindo para o lado de onde partiam as pedras, atirava as mãos e ficava um momento hirta, retraindo, arreganhando os dedos como se aspergisse fluidos.

Às vezes, sentando-se num socalco, ensanguentada, quedava ao sol resmungando, cuspilhando a mascagem grossa e escura e esquecia-se, indiferente às pedras que lhe caíam perto, levantando poeira, farfalhando nas folhas. De repente assanhava-se e, furiosa, brandindo um pau, investia tronando obscenidades.

Essa era a confidente de Macambira.

Distraía-o relembrando, com saudade, os palmares copados da sua aringa.

Fora da cabilda do rei Munza, guerreiro temido desde as terras altas até as dunas da costa e dizia a Macambira, tocando-lhe o corpo:

— Ocê é zêri mêmu; é zéri túru, ocê. Quem óia ocê vê. Munza, rê di noss...

E referia, com entusiasmo épico, episódios de guerras, cenas festivas e religiosas, caçadas nas florestas densas à azagaia ou fimbo, idílios nos palmeirais e, quase sempre, em meio da narrativa, erguia-se como inspirada, punha-se a cantar baixinho, aos pinchos, bambaleando o corpo ossudo em coleios rebolidos.

E lágrimas rolavam-lhe dos olhos a quatro e quatro, pelo rosto esquálido, em contraste com os ganidos do canto bárbaro, com as caramunhas, com os ademanes com que acompanhava o tripudio.

E Macambira, enlevado naquele batuque, repetia, à meia voz, a toada lúgubre, sonhando com a terra que não conhecera por haver nascido, de estirpe de reis, no exílio da escravidão.

Triste, concentrado, mal terminava o serviço recebendo as ordens do senhor, recolhia vagarosamente à sua cabana solitária, apadrinhada com o monte, num verde laranjal e ali recebia preito e homenagem da gente da sua raça, e Balbina que, todas as noites, pisando, de leve, as folhas, sorrateira como a onça, atravessava os matos, ia vê-lo, falar-lhe da pátria perdida, dos reis mortos e dos deuses vingativos.

Ficavam os dois horas e horas à luz fumarenta da candeia ou à porta, diante do terreno onde os bacuraus piavam resmoneando, cantando soturnamente, quando não em silêncio pensativo: ela a mascar, ele puxando lentas baforadas do cachimbo.

A negra tinha sempre um caso novo, uma recordação trazida do fundo da memória triste e, ouvindo-a, Macambira devaneava, d’olhos muito abertos, fitos na extensão rasa das várzeas abrumadas, onde lhe parecia ver estendido o grande, invencível reino das malocas e, formigando, com relumbros d’armas, um povo numeroso e forte, o seu povo negro, a gente heroica e temida da sua nação guerreira.

O que mais impressionava em Macambira era a sua irredutível antipatia com a mulher. Não se lhe conhecia um apego amoroso.

Na vasta e tenebrosa cozinha tisnada de felugem, com sanefas de picuman panejando nos caibros, no “quadrado”, na roça ou à beira do córrego onde batiam roupa, as negras comentavam, com despeitada malícia, aquela aversão, atribuindo-a a bruxarias de Balbina.

Em verdade o negro, sempre casmurro, evitava as raparigas tratando-as d’alto, à distância, como enojado.

Se encontrara alguma no caminho, fechava a cara, respondendo à saudação ou a pergunta que lhe fizesse com resmungos mal humorados.

No seu coração impermeável pruía, por vezes, um remorso fugaz, principalmente quando margeava o córrego, na volta sombria do bambual. É que só ele conhecia o romance triste de uma crioula que dali se deitara a afogar, bradando o seu nome em arranque supremo de paixão.

O caso foi explicado de vários modos qual o mais trágico: ataque, quando a pobrezinha se banhava; maldade de algum perverso que abusara da desgraçada matando-a, em seguida, para que o não denunciasse; cobra mandada que a mordera por vingança de alguém... Quanta coisa! E a verdade jazia no segredo do negro.

Lina era uma bonita rapariga de vinte anos, sempre amolecida em dengue voluptuoso. Pele fina, cor de azeitona, olhos negros, grandes e pestanudos, cabelos assediados, boca carnuda e vermelha, desabotoada sobre dentes brancos e miudinhos, postos com a perfeição de pérolas em joia.

Alegre e tréfega como um passarinho, rindo de tudo e a todos, uma flor nos cabelos, no corpo ondulante o cheiro agreste da erva de S. João com que perfumava a roupa, outra não havia na fazenda tão engraçada para contar casos nem tão graciosa no reboleio elétrico, nas empinadas upas, no sapateado lépido do samba.

Rondavam-na, enlevados na sua leda mocidade, rapazes da fazenda e muitos das vizinhanças. Ela olhava-os de viés, retraindo o lábio em momo desprezível e, aos muxoxos, dando um jeito de través ao corpo, passava com pouco caso, batendo morosamente as chinelas de bico.

Mas o coração abriu-se-lhe como flor ao sol e Macambira entrou nele para matá-la.

De viva que era e buliçosa tornou-se macambuzia, evitando as companheiras e, isolando-se, com a almofada de crivo ao colo, jogando maquinalmente os bilros, cantarolava baixinho, com tristeza, entrecortando o canto de suspiros ou parava e iam-se-lhe aguando os olhos, tomavam-na soluços e, debruçando-se sobre a almofada, ficava a chorar dorida.

Fora vista diversas vezes, à noite, nas proximidades da cabana do negro e rapazes, curiosos ou ciumentos, seguindo-lhe o passo esquivo, contavam que ela ficava horas acocorada entre as laranjeiras a espreitar a habitação do apaixonado ou, indo e vindo, trepe trepe, sarapantada, arisca, cavando aqui, ali ao longo da trilha que levava à cabana.

Um molecote, para descobrir o segredo, empoleirou-se em uma árvore de onde acompanhou todos os movimentos da crioula e, ao vê-la partir, saltou ao chão, recavou o terreno nos pontos que ela revolvera, achando feixinhos de ervas, mechas de cabelos, um saquitel de feitiço, amavios africano em que se juntavam, em mixórdia, raízes, búzios, bagas partidas, um trapo sanguinolento envolvendo um pedacinho de zuarte, tudo enterrado com intenção manifesta de prender pelos passos o indiferente.

Descorçoada dos sortilégios, Lina decidiu tentá-lo, vencê-lo com a própria carne.

Sabendo, uma noite, no serão, que ele devia ir à Barra na manhã seguinte, mal dormiu e, de madrugada, saiu de casa indo postar-se à beira do córrego, na volta do bambual, de onde partiam, em esgalho, dois caminhos — um direito ao monte, outro para a vila, costeando a barranca e, metendo-se entre os bambus, despiu-se.

O frio picava pondo-lhe arrepios na carne luzidia. Amontoou a roupa nas pedras e, encolhendo-se no verde rechego, ficou à espera, num antegosto voluptuoso.

Arrulhos de pombas, cantos de sabiás entristeciam o retiro. Ouvindo passos estremeceu e, atenta, o olhar em riste, reluzindo febril, esperou arfando.

Para ficar em evidência, subiu a uma pedra em torno da qual a água, já precipitosa, rolando para a cachoeira, borbulhava, escachoava em espuma e, nua pôs-se firme, ereta, à espreita, numa traição lasciva, remordendo os beiços, com os peitos rijos a prumo, o ventre redondo aflando em estuo.

Os ramos farfalharam, rolas voaram com estreito e Macambira apareceu.

Para excitá-lo mais a crioula fingiu-se surpreendida e, com um gritinho de susto, denunciou-se, aninhando dengosamente os peitos entre os braços roliços, cerrando as coxas, baixando a cabeça e ficou imóvel, estatelada, em atitude escultural de pudor que a faria ainda mais apetecida a outro, que não o negro.

Macambira relanceou um olhar soberbo e, rindo escarninho, sem de leve vibrar à sedução formidável, prosseguiu impassível.

A rapariga estonteou atordoada, sacudiu os braços e, saltando da pedra sobre as folhas úmidas, correu, arranhando-se nos espinhos e ainda viu o negro longe, no cotovelo da trilha que o sol começava a dourar.

Remordeu-se de raiva, mas num desespero de inflamada volúpia, meteu-se-lhe na peugada lançando, em voz lancinante, um apelo de ódio e ânsia: “Macambira!” o negro nem voltou a cabeça. Rosnou uma insolência e foi-se.

Dias depois o cadáver de Lina apareceu boiando no açude, úmido, roído dos peixes, em nudez desconforme e asquerosa.

As próprias mucamas, mulatas claras, quase brancas, essas mesmas, apesar das faceirices, dos requebros ondulados dos quadris, dos suspirinhos trêmulos lançados entrecortadamente, não logravam dobrar a inflexibilidade do crioulo.

Se alguma, cruzando com ele nos corredores ou nas imediações da casa, olhava-o d’esguardo, provocando-o, ele sorria desdenhoso ou amarrava a cara investindo irado:

— Deixa de sê ofiricida, rapariga. Tem vergonha na cara. Mais respeito com quem não ti da cunfiança. Eu não gosto di dirritimento cumigo.

Solidário com a gente negra, sempre, e em tudo por ela, só não lhe sofria as imundices da luxúria. Revoltava-se contra a raivação danada que a bestializava, vituperando, com ódio frenético, quantos apanhava em contubérnios ou conchavos concupiscentes. Se surpreendia casais esgueirando-se pelos matos, à sorrelfa, tomava-lhes a frente e apartava-os.

Ouvindo assobios no macegal, seguia pelo som como caçador matreiro guiando-se pelo pio da ave, e, topando moleques em rabisaca, aos reclamos a negrinhas, corria-os a pontapés e à pedra.

À beira do córrego, no bando impudente das lavadeiras, de saias colhidas entre as pernas, não continha o furor e desbocava impropérios, provocando represálias coléricas, descomposturas e alusões obscenas.

Uma cabrocha, Donária, d’alcunha “Vaca brava”, antipática, atrevida e rixenta, virago no todo e nos vícios, desmazelada até a sordícia, sempre vota, esbagaçada, mascando talos de tamarindo, a cuspilhar, em pincho, por entre os dentes podres, certo dia, tomando a si um palavrão do negro, para afrontá-lo subiu a uma pedra, levantou a saia de repelão e, despudorada, pôs-se a bater palmadas no ventre flácido, dobrado em refegos, oferecendo-o:

— Oia, muxiba! Oia já qu’ocê não conhece.

Tá vendo? É carne, muxiba.

Foi uma cascalhada de troça ao longo da margem. Macambira sentiu o sangue subir-lhe a cabeça, a vista turvou-se-lhe, um tremor crispante fê-lo vibrar em choque. E a cabrocha, para desfeiteá-lo, agachou-se e, num gesto torpe, como se arrancasse, alguma coisa de si, fez menção de atirar-lhe em rosto:

— Toma, muxiba!

O negro arremeteu fulo, punhos cerrados, rangendo os dentes. Espavoridas, as negras meteram-se tumultuosamente n’água. A cabrocha esperou impávida, d'olhos chamejantes, o nariz franzido, fungando, de raiva, aos sorvos. Quando o viu perto lançou-se d’investida, com as mãos em ganas, ameaçando agatafunhá-lo. Antes, porém, que lhe chegasse uma bofetada desequilibrou-a.

Tonta, cambaleando, escorregou na pedra, afocinhou e, caindo de borco, o negro pisou-a, atirando-lhe pontapés ao peito, aos flancos, rugindo num furor de loucura. Vaca-brava, espumando, com um regougo de fera, debatia-se procurando lançar-lhes as mãos e rebolcava-se aos bufos, mas resvalou dum lajedo e foi n’água em mergulho.  Lesta, porém, agarrando-se às ervas, surgiu com a carapinha encharcada e pôs-se a atirar mancheias de lama, soprando a água que lhe escorria da grenha ao longo da caraça hedionda, a injuriá-lo em voz rouca, esfalfada:

— Negro perrengue! Não tem valia pra nada. Vai criar pinto, capão.

Ele deu-lhe as costas e meteu pela trilha deixando a negrada em alvoroço, a açular a cabrocha que vociferava jurando que no dia em que o apanhasse a jeito — só se Deus não quisesse! havia de tirar uma desforra direita:

— Oia, pamonha... E, como Macambira se voltasse, cerrando os dentes, ela fez com a mão esquerda um esforçado gesto de torsão e com a direita em lâmina talhou o ar num golpe rápido, concluindo: Assim, muxiba... p’ros porcos! E atuou um aceno desprezível.

E à beira d’água, no meio do córrego toldado de espuma, entre os matos, estrondou a cascalhada das negras.

Macambira sentia-se melindrado com a bruteza libidinosa daquele cio infrene. Era a sua gente, os da sua raça que se depravavam em lascívia rolando, rebolcando-se em todos os cantos e cinismo alvar de cães. Via-os a cada passo em conluios libertinos; no estalar da folhagem adivinhava conúbios torpes e batia o mato, aos berros injuriosos, enxotando casais que se atropelavam em fuga.

Eram os negros da roça que, iludindo a vigilância do feitor, esgueiravam-se agachadamente para lugares escusos, numa ardência lúbrica que os tornava ferozes; eram mucamas que desciam disfarçadamente indo ao encontro de amantes nos socavãos das tulhas; era à beira do córrego, na umidade das ervas; era nos pedregais, nos grotões, nos pastos, entre os animais, entre os toros de lenha.

Mas o que o enfurecia sobretudo era ver negrinhas metidas nos baixos do engenho, à risota, desnudando o corpo esquálido à cúpida sensualidade dos moleques, aos rebolos com eles, inconscientes do mal, brincando com a infâmia com a mesma travessa indiferença com que se penduravam dos ramos altos, vergados sobre o abismo, arriscando-se à morte por um ninho vazio ou por um fruto verde.

A intimidade com que Manuel Gandra tratava Macambira — recebendo-o no escritório, conversando com ele, confiando-lhe todos os seus negócios: pagamentos, cobranças, ouvindo sobre assuntos da fazenda, — tornava-o suspeito aos negros que não cessavam de rosnar contra a empatia do “emproado”, augurando-lhe “a vez de sentir o peso da escravidão”.

“Tá muito inchado... Caminhando é qu’a genti vê: raio di roda tá in cima i desce. Dexa tá, Deus é grande!”.

Quando, por falta grave, algum escravo era castigado, toda a gentalha assanhava-se atribuindo a pena à Macambira: “Quem havia di sê sinão ele?!” E rogavam-lhe pragas, amaldiçoavam-no, jurando vingança.

O boquejo não o incomodava, mas se algum negro, mais atrevido, passando por ele, mirava-o de esguelha, parava altivo em atitude de desafio e, encarando-o, fazia-o baixar os olhos, seguir humilde. Então ameaçava em voz surda:

— Porquêra! Mexe cumigo i dipois t’arrepende. Calado, calado até u sangue fervê, dipois... ahn!

Com a vida de trabalho e de economia ajuntara um pecúlio nas mãos de certo negociante da Barra, conhecido como receptador de furtos de café e amigo dos quilombolas, aos quais trazia sempre ao corrente dos planos dos senhores, prevenindo-os das batidas projetadas, das ofertas aos “capitães de mato” ou das diligências policiais requeridas pelos fazendeiros. Os negros exageravam as posses de Macambira orçando-as em muitos contos de réis.

A notícia dessa vaga fortuna começou a preocupar Manuel Gandra com o receio de que o negro lhe falasse em liberdade, propondo-lhe o resgate. Firme no propósito de recusar pensava, entretanto, nas consequências: a fuga ou a intervenção da justiça, como acontecera no caso do pajem de um fazendeiro vizinho que tomara advogado, ganhara a causa e saíra livre por uma bagatela e rindo.

Foi para evitar um de tais desenlaces que, depois de muito pensar, decidiu-se astuciosamente pelo casamento do negro, prendendo-o pelo coração.

Ainda que lhe conhecesse o gênio retraído, avesso a amores, desconfiava da sua inclinação por uma das mucamas, Lúcia, por havê-los, mais duma vez, surpreendido em conversa no jardim — ela, dengosa; ele, de boa sombra.

Rapariga de estimação, criada recatadamente à beira da senhora, quase como filha, era de natural tímido e meigo. Esmerada no alinho das vestes, muito composta nas maneiras, calada e modesta, afigurava-se a Macambira um ser de exceção destacando-se limpidamente, em realce gentil, da horda que fervilhava no imenso enxurdeiro.

Alta, fina e airosa, pele setinea, cor de jambo, corada nas faces em rosas de saúde, olhos grandes, pestanudos, dum verde líquido, longos cabelos lisos tirando ao castanho, com reflexos de ouro ao sol, falando em voz submissa, de uma quebreira dolente, Lúcia impressionava pela doçura e pela originalidade do tipo.

Filha de uma mulata com um alemão que trabalhara nas obras do engenho, crescera sempre mimosa, instruindo-se com uma senhora portuguesa, viúva, que se hospedara na fazenda pagando o agasalho com ensinar às mucamas. Lúcia, desde logo, revelou-se a mais inteligente e aplicada, tornando-se a preferida da mestra, que não se fartava de a louvar lastimando-lhe o destino:

 — Há por aí muita filha de fazendeiro que daria uma perna ao diabo para ter aqueles olhos, aqueles cabelos e aquelas mãos de fada. Só não faz o que não quer. E a pequena apurava-se com a idade.

Lia e escrevia com desembaraço e era exímia em trabalhos de agulha. Lavradeira perita, bordava a branco, a matiz e a ouro; talhava e cosia os seus e os vestidos da senhora, e, quando trabalhava na varanda, à sombra dos ramos pendidos do jasmineiro, era um encanto ouvi-la cantar modinhas.

Macambira não descia à corte com o comboio sem procurá-la e pedir ordens e os olhos ascendiam-se-lhe em lume alegre quando Lúcia lhe apresentava a nota das suas encomendas numa latinha miúda e fina.

Dobrava-a carinhosamente e guardava-a na bolsa com o mesmo venerado respeito com que guardaria uma oração de virtude provada contra mates e inimigos.

No regresso, entregando-lhe as compras que fizera, recusava o dinheiro e ainda ajuntava um mimo delicado da sua lembrança: vidro de cheiro, caixa de sabonetes, colar ou enfeite para o cabelo, oferecendo com vexame, trêmulo, d’olhos baixos, logo fugindo para forrar-se ao agradecimento. Se ela, porém, insistia em fazê-lo aceitar o dinheiro, recusava-se ressentido:

— Qu’é isso, Lúcia? Pois eu vou recebê pagamento da sua mão? Deixa d’história. Uma coisa à toa...

— Então... muito obrigada. E, com um riso vexado: Mas olhe que eu assim não encomendo mais nada.

E olhavam-se um momento enleados. Encardiam-se mais as rosas nas faces da morena e Macambira, com o coração aos esbarros, sentindo o rosto em fogo, tartamudeava afastando-se para que ela não lhe notasse a perturbação comprometedora.

Mas o prazer de sentir, passando por ela, o aroma da essência que lhe dera ou de ver, ornando-lhe os cabelos, o enfeite que lhe ofertara era tão intenso que ele parava e ficava sorrindo a respirar o perfume ou olhando embevecidamente a cabecinha airosa onde refulgia, entre o brilho doirado das madeixas, o grampo de plaque. Nos Serões era Lúcia quem lia para os senhores.

As mucamas, sentadas em roda, costurando ouviam-lhe a doce voz dizendo as aventuras dos romances ou os casos maravilhosos dos contos orientais.

Não raro, no silêncio atento e comovido, arquejava um soluço, lágrimas rolavam nas cambraias quando, no desenlace de um capítulo fuzilava um punhal cravando-se em peito frágil ou recém-nascido, arrebatado de recamara fidalga e levado às ocultas, em noite áspera de inverno, por pinheirais lugentes, era abandonado à neve para que, com ele, desaparecesse o vestígio ultrajante de um crime do amor.

Duma feita Manuel Gandra, retirando-se da sala em meio da leitura, deu com Macambira no corredor, imóvel, colado à porta, à escuta.

— Que fazes aí, rapaz? Se queres ouvir, entra.

Mas o negro recusou-se vexado e foi-se, levando n’alma o som da voz suave, que não era interesse pela narrativa o que ali o prendia, mas o encanto da voz de Lúcia, sempre harmoniosa, variando entre a doçura nas descrições poéticas e a plangência nos lances sentimentais.

Uma tarde, nos princípios de março, Manuel Gandra repousava no escritório ouvindo a parolagem do filho, então em férias do 3° ano do curso médico, que lhe descrevia, com arrevesados termos, a carnagem anatômica no anfiteatro, quando Macambira, de volta da vila, onde fora à cobrança, pediu licença à porta.

— Entra, disse o fazendeiro refestelado na rede.

O escravo entrou respeitoso, pediu a benção e abrindo a bolsa de couro, passou ao senhor um maço de notas. Depois de estalar o queixo num bocejo largo, Manuel Gandra perguntou:

— Contaste?

— Sim, meu sinhô; mas é bom vancê cunfiri.

Gandra remirou o dinheiro sem, ao menos, desatar o nastro que o apertava e, atafulhando-o no bolso, pôs-se de recovo, fitando no escravo um demorado olhar.

— Que diabo tens tu, rapaz? Andas triste. Sentes alguma coisa?

— Nada não, sinhô, graças a Deus.

— Não, tu não estás em ti... Também, com a vida que levas... Queres ser santo? O negro sorriu e Gandra perguntou de improviso: Homem, porque não te casas?

Macambira aprumou a cabeça sobressaltado com intempestiva pergunta e, de sobre olho carregado, como se houvesse recebido uma afronta, tartamudeou encarado no senhor:

— Uai! meu sinhô...

Os dentes alvos reluziram-lhe em sorriso instantâneo, logo, porém, se lhe fechou severamente o rosto.

— Maçambira tem medo de mulher, chasqueou Julinho.

 O negro voltou vagarosa e arrogantemente a cabeça e demorou o olhar atrevido no estudante. O rosto tremia-lhe em frêmitos, um rictus rasgou-lhe a boca franzindo-a em comissuras de ira. O fazendeiro insistiu:

— Pois não, os molengas andam por aí presos a rabos de saias e tu, um rapaz novo, forte... Não senhor! Não está direito. Precisamos ver isso. Nem os bichos do mato vivem desse modo, eles lá se arranjam. Tens casa, uma roça regular, dinheiro junto. O negro ia contestar, mas o fazendeiro atalhou-o: Não negues. Essas coisas sabem-se. E aprovou: Fazes bem: quem ajunta encontra quando precisa. Mas arranja uma rapariga, coisa que sirva, que dê com o teu gênio e casa-te.

Macambira baixou os olhos e murmurou:

— Casá pra quê, meu sinhô?

— Ora, é boa! pra quê! Para teres família, o teu cantinho alegre, pois então?

— A gente vive bem sozinho. E, sorrindo tristemente: Onde vai leva tudo que é seu, não deixa o pensamento em roda da casa, nem anda com o ciúme no coração. Iscravo é iscravo. Casamento é pra quem pode, p’ra quem si governa.

— E tu não tens liberdade? Que te falta? O negro fez lentamente um aceno negativo recusando a proposta. Que te falta?

— Eu sei, meu sinhô!? Depois de meditado silêncio, ponderou: Iscravo não casa. Branco oia, iscoie, tira o que o coração pede; negro, não: casa cumu trabaia — onde o sinhô manda. E, de novo, meneou com a cabeça negativamente, concluindo em baixa: Quero vivê nu meu sucego, cumu até aqui.

— Sossego! irrompeu o fazendeiro; o teu sossego bem sei qual é. Atirou as pernas, sentou-se na rede e, espalmando as mãos nos joelhos, d’olhos fitos no escravo, afinou com segurança: É Lúcia! Com ela casas, hein? Que dizes? Julinho, que baquetava na secretária com uma espátula de osso, pôs-se vivamente de pé, surpreso. O negro ficou atônito, piscando airadamente os olhos, num aturdimento de estuporado. Acertei, hein? Com ela é negócio feito, hein? e sorria. Anda lá que não tens mau gosto.

— Eu sou tolo, meu sinhô! Penso lá em Lúcia, uma rapariga quase branca...

— Branca! E que fosse! Brancos são os dentes e ninguém os tem mais alvos do que tu.

Julinho franziu a boca irônica, levantou-se assobiando, e saiu para o jardim bambaleando o corpo. Macambira, que não lhe perdera os movimentos, ufava, remordia os beiços, estrincava os dedos e, relanceando à porta um olhar desconfiado, disse ao senhor, entre repreensivo e tímido:

— Vancê foi falá isso na vista di nhô Julinho não tarda nada i tá na boca de tudu mundo. Vancê vai vê a caçoada qui vão fazê.

— Caçoada? Por quê?

— Vancê vai vê.

— Qual! Eles sabem com quem se metem e conhecem-me. E tornou ao assunto. Por ser clara? Que tem isso? Quantas há por aí, até estrangeiras. E eu não vou forçá-la, ela há de ir por sua vontade, e contente.

— Lúcia!?

— Pois então? Pensas que não sei o que se passa aqui? sei de tudo, e ela não esconde, nem ela nem tu. Pois se hás de andar aos cochichos pelos cantos, é melhor tratar disso quanto antes. Entendo-me com o vigário e arranjamos a coisa na primeira missa de abril. Estamos em começo de março, tens tempo de sobra para arranjar tudo. É andar.

O negro sentia a garganta ressecada, o peito aperreava-se-lhe em constrição de angústia, uma poeira estrondava-lhe aos ouvidos. Espalmou a mão a borda da secretária e pôs-se a tamborilar com os dedos, nervoso. Por fim sussurrou em voz estrangulada:

— Não sei... lá por ali muito moço branco que gosta dela. Contra a vontade, não; isso não. Vem do arrependimento mais tarde... e depois... Eu gosto dela, gosto, digo a verdade, mas não é por ela ser branca. Gosto porque ela é boa, tem propósito, não anda por aí desmandada cum’as outras. Mas a gente deve pensar muito antes di dá um passo ansim. É a vida inteira, meu sinhô sabe.

— Qual pensar! Pensar quando não se conhece a mulher. Lúcia é uma rapariga direita. Que marido melhor do que tu pode ela querer? Bonifrates não faltam, mas isso...

Macambira quedou cabisbaixo, com o rosto a arrepiar-se em crispares fulgurantes. Por fim levantou a cabeça e pediu com submissão:

— E meu sinhô fala co’ela?

— Falo, falo. Pondo-se, então, de pé, Gandra caminhou lentamente até a porta, esteve um momento a olhar o céu sob a doçura da tarde triste; e disse: Falo hoje mesmo. Voltou-se. O negro mantinha a mesma atitude estatelada. Vai. E, olha: vê se mandas limpar, amanhã cedo, aquele rego lá em cima que a água está com um gosto de lodo que não se pode. Mas o negro parecia de pedra, imóvel, com o rosto a enrugar-se em ritos como se suportasse dores lancinantes. O fazendeiro insistiu: Vai.

Então moveu-se, resfolegou desafogado e saiu em passo vagaroso.

— Benção!

— Adeus.

Atravessou o jardim como um sonâmbulo, desceu ao terreiro onde os cães, em atropelada corrida brincalhona, abocanhavam-se rolando aos rebolos.

A tarde declinava suave, estrídula de cigarras. Diluíam-se as últimas cores do sol e a sombra enevoada começava a arminhar a paisagem. O ar cheirava. Bois mugiam a espaços, longamente, e a voz eterna das águas, escachoando no “inferno” do moinho, rolava merencória e profunda.

Macambira sentou-se à borda do terreiro, ascendeu um cigarro e, descaindo o busto, inclinando a cabeça, pôs-se a estalar as unhas, alheio a tudo, no enlevo dum pensamento feliz, sem sentir a noite que o envolvia, cheia de estrelas no céu, misteriosamente múrmura de rumores que subiam da terra em vários tons acordes na melancolia.

Súbito, levantando-se d’ímpeto, firmou-se em entono arrogante, cabeça alta, olhos fitos. Cruzou os braços impondo-se em atitude augusta, logo, porém, em frenesi, metendo as mãos à gaforinha e avançando um passo, estacou encarado numa visão heroica e de amor que lhe corria ante os olhos maravilhados: as suas núpcias de rei na aringa pátria.

As descrições que Balbina lhe fizera do reino perdido, sem omitir uma árvore à paisagem, um objeto de uso, o nome do um ídolo ou de um herói, um verso aos cantos de guerra ou de amor tão fundo se lhe gravaram no espírito que, por vozes, se lhe representavam objetivamente.

Sentia-se como transportado à cabilda e, num instante fugaz, era o rei moço.

Naquele momento, com a imaginação excitada, uma nuvem escureceu-lhe a vista, amoucarando-se-lhe os ouvidos aos rumores da realidade — logo, porém, estendeu-se-lhe ante os olhos, numa transfiguração, o espetáculo maravilhoso do pensamento evocado.

Viu-se em África e rei, entre a sua gente: os sobas gineteando, cercados de lanças que se emaranhavam nos meneios em que eram destros os guerreiros robustos, vistosos sob os mantos de peles e os cocares de plumas; os feiticeiros sarapintados, brandindo punhais em torno de manipanços; músicos aos pinchos cascavelando chocalhos, tangendo atabales, separando possantes tubas ou frantas finas de cana; mulheres desnalgando-se em saracoteios lúbricos, com um guizalhar estrepitoso de búzios e seixos que formavam tangas e ornavam-lhe o peito e, entre viagens seminuas, que empunhavam flores de haste longa, balouçando-as ao ritmo do passo lânguido, Lúcia, numas andas de ramos floridos, sob flabelos e palmas, levada aos ombros de chefes, aclamada por milhares de vozes estrondosas.

Mas as estrelas reabriram-se à cintilação, subiram, de novo, no silêncio, as vozes várias da terra e a visão desvaneceu-se.

Os sapos gargarejavam alto.

— Êta! explodiu o negro num arranque. Fosse lá! Minha terra!...

Sacudiu nervosamente a cabeça e, em passo moroso, foi-se, morro acima, direito à cabana, sem ver os bacurais que esvoaçavam em surtos breves, na escuridão dos matos, faiscando, os piscos vagalumes.

E nessa noite Balbina encontrou a cabana fechada e apagada.

Rondou-a, bateu à porta, forçou a janela; por fim sentou-se no tronco que formava degrau à porta, mascando, d'olhos perdidos no luar, à espera do seu rei moço.

Macambira, contando com ela, mas querendo estar só, trancara-se e, sem ascender a candeia, deitara-se no catre, quieto, antegozando o inesperado bem que lhe fora prometido e, no enlevo de amor, fantasiava.

Um clarão de luar, que alumiava a parede de reboco, pareceu-lhe um vestido de noivado e logo a imaginação pôs nele o corpo da morena com a sua raça ingênua.

Era ela, ali estava, já dele! alta, esbelta, flexível, com a pele fina e doirada, os lindos cabelos lisos, os olhos grandes, verdes como algas, e doce sorriso, toda ela, dele e para o sempre!

O clarão escorria da parede, lento; já uma parte alumiava o chão, chegava-se timidamente ao catre com feminino pudor, e ele esperava-o sorrindo como se nele, em verdade, fosse o corpo amado.

Quebrado de fadiga, tentava resistir ao sono embevecido no idílio imaginário.

Fora havia rumores iterativos, folhas estralejavam. Por vezes a porta trepidava d’encontro à tranca, a janela rangia e a voz de Balbina rosnava impaciente.

Por fim ficou o silêncio — só as folhas das árvores, sussurrando, punham na quietude um frêmito de vida.

O negro bocejou largamente, com estrépito das mandíbulas, distendeu os braços, dobrou-os por baixo da cabeça e, estirado, imóvel, d’olhos ardidos, com o espírito já abrumado, mas ainda girando em torno da ideia fixa, ouvia os vagos murmúrios noturnos, a mais e mais sutis e longínquos até que se lhe fecharam as pálpebras e mergulhou no sono.

E o clarão do luar, subindo ao catre, deitou-se com o escravo, cobriu-o como um lençol diáfano, e só deixou quando os galhos começaram a amiudar os poleiros, nas árvores, como sentinelas em postos anunciando o dia que vinha através da névoa apagando as estrelas, despertando os ninhos.

III

Na fulgurante e tórrida estiagem que fendia a terra em lanhos, descentralizava os calangos e assanhava as moscas silvestres, que ziniam relumbrando em cores ao clarão fulvo do sol, com a barafunda e o babaréu das negras, o aceitoso sítio regadio aparentava o tumultuoso aspecto de uma aringa.

O córrego dividia-o em duas bandas díspares.       

À esquerda, era um areinho sáfaro, pedrento, espetado de áspero silvedo, com um ou outro arbusto esmarrido.

À claridade vívida, que faiscava na terra aridamente calva ou espinhada em ríspida macega, incrustada, em pontos, de lascas de malacacheta que expluíam centelhas, reluziam, aqui, ali, espelhentas poças d’água. Coqueiros, de palmas arrepeladas, derreavam-se como em delíquio farfalhando molemente a sopros mornos.

Ao longo da margem, em estendal de alvor ofuscante, a roupa corava ao sol.

Contínuas, em chirriada monótona, por vezes como chiar de carros, as cigarras mantinham o rechino enfadonho e tórpido do estio e, a espaços, dum e doutro ponto, saltavam gafanhotos com um crepitar metálico de élitros.

Nas barrancas amarelas, sulcadas em lesins e oureladas de mato intenso, lagartos papejavam abochornados. A imobilidade dizia com o silêncio e os raros ruídos do vento soavam frouxos, sinistros como lufadas de incêndio. E, para agravar o escaldo, encandeando a vista, a pedreira, escalavrada em laivo escandecido, destacava-se branca, reticulada de veios, como a nuca de um gigante encovado no areal, cuja cabeça fosse a colina redonda, coberta de silvas, como encarapinhada em grenha hirsuta. O azul, alto e translúcido, tinha diafaneidades de cristal e branduras macias de cetim.

Na banda direita, em contraste, tudo era viço e frescura, desde a relva, muito verde e úmida até as franças das árvores copadas que abriam largas sombras mosqueadas de soalhas e estrias de sol.

O córrego sonolento, ilhado de espumas vitrificadas em bolhas rutilas, descia vagaroso sob o voo irrequieto das libélulas, rebalsando frocos ao longo das margens ou condensando-os em torno das lavadeiras, brancos, rendados como folhos da camisa que lhes houvesse escorrido dos ombros amontoando-se-lhes em volta da cintura.

Eram em bando, tipos vários, negras, caboclas e mulatas.

Rapariguinhas franzinas, ainda impúberes, mulheraças fornidas e desenvoltas, velhas macilentas, saias sungadas, enrodilhadas à cinta, em camisa ou com uma simples tanga; peitos ainda em botão, mamas fartas bamboando gelatinosas ou chatas, ácidas, dependuradas em línguas moles.

Às upas d’ancas, no esforço arrancado de esfregarem a roupa, algazarravam ou guinchavam cantigas em falsete.

Negrinhos nus, em alarido alegre, chapinhavam no lodo, rebolcavam-se, trambolhavam nas peças de roupa suja, espadanavam às peruadas na sua mergulhando, surgindo aos bufidos nos borbulhões d’espuma com a carapinha como polvilhada. E pequenos engatinhavam choramingando, agarravam-se aos ramos, amparavam-se às pedras tenteando passos, equilibrando-se; outros, papo para o ar, pernas abertas, dormiam em trapos ao abrigo das moitas.

Às vezes, ao choro dum, uma negra saía d’água com as saias apegadas ao corpo, esfregando os braços enluvados de espuma, sentava-se na relva, tomava o filho ao colo e, chegando-lhe o peito à boca, ficava distraída numa felicidade doce, vendo-o sugar golfadas cheias aos goles lentos e gorgolejantes.

Bem-te-vis, das grimpas dos coqueiros, respondiam chocarreiramente à surriada dos sanhaços. Anuns voejavam nos ramos baixos e, de pausa em pausa, com a regularidade rítmica de um pêndulo soturno gemido d’ave partia da capoeira, lúgubre.

O ar abafadiço, impregnado da urente evaporação da terra, cheirava à coivara. Os matos ressequidos estralejavam. Refegas de vento revolviam folhas, bojavam roupas suspensas dos ramos, levantavam terebrantes caminhos tortuosos, tremiam em arrepio lúcido e contínuo como se as refletisse um espelho vibratório. Abafava-se.

As próprias negras seminuas, metidas n'água ou patinando no lameiro, suspendiam, a intervalos, a lábuta, ofegando exaustas.

— Ufa! Nossa Senhora! Parece fogo! Isso é trovoada que vem aí.

E o clarão acendia-se mais, dum amarelo lívido, cintilando nas folhas, crestando a terra, resplandecendo afoguadamente no azul imaculado.

O lavadouro atroava no auge da balbúrdia quando Vaca-brava apareceu arremangada, suada, com os molambos esvoaçando. Viam-se-lhe, pelos rasgões da saia, trapos da camisa sórdida e negrores da carne magra.

— Uai! Domaria... ocê pur aqui.

O mourejo cessou de golpe com a presença da cabrocha.

As negras aproveitaram o incidente para um repouso garrulo. Umas, subindo à margem, ascenderam o cachimbo, outras meteram na boca um naco de fumo mascando saboridamente. Tal espapou-se de borco fincando os cotovelos na erva úmida, com o rosto enforquilhado nas mãos; qual refestelou-se ressupina, braços abertos, arfando.

— Ocê aqui é côsa. I a modi qu’ocê andô rolando nu barro.

— Qui cara injuada, iche! Cara di quem cumeu i não gostô. Pois óia, s’é bom manda p’ra cá, qu’ocê memu já não aguenta báqui di marruá.

A gargalhada explodiu. A cabrocha voltou-se carrancuda, mediu d’alto a mulata que a troçara, uma fula, esquelética, braços muito compridos, cara ossuda, picada, de bexigas.

— Cala a boca, fedentina. Ocê não cria vergonha nessa cara? E, frenética, roufenha, arremetendo:

— Ocê não toma pagode cumigo, não, oia lá! Eu já ti dei cunfiança, pixilin? Toma sentido, bruaca. Dipois, dipois... E gingava, viro-virava, a alisar os braços másculos como desafio.

A mulata embatucou ante a fúria da cabrocha e ria vexada, esfuracando a terra com um graveto.

Mas como as injúrias continuassem levantou do repelão, sungando a saia encharcada.

— Ah! tamem... a gente não pode brincá. Ocê tem dirêto di dizê tudo i os ôtro... Quem sabi?! Tão bom cumu tão bom.

Meteu-se n’água e, atafulhando as saias entre as pernas, pôs-se a lavar resmungando. Donária, olhando-a d’esguelha, escarrou alto e cuspiu com asco e, sem lhe dar mais atenção, acenou a uma das negras.

— Oia aqui, Damiana.

— Eu?

— Ocê mêmu. Escuta aqui uma côsa.

Esfregando os braços roliços a nomeada saiu do córrego com a saia colada ao corpo, modelando-lhe as coxas gordas, o ventre ancho, e redondo.

Era uma negra moça, atarracada, retinta, com a gaforinha trançada rente, em malhas imbricadas, parecendo mais uma calote de retrós. Plantando-se diante de Vaca-brava, mãos nos quadris, com as formas anafadas muito em relevo, indagou:

— Qui é?

A cabrocla rosnou:

— Bamo saí daqui. Tá tudo d’ôio in cima di nós.

Afastaram-se. As lavadeiras, vendo-as ir muito juntas, cochichando, davam de cabeça espichando o beiço maliciosamente.

— Patifaria...

— Uhm!

As duas entraram no balsedo, sentaram-se à sombra das pitangueiras e Donária, encolhendo as pernas, com os cotovelos nos joelhos, o busto descaído, disse em tom de mistério, encarada na companheira:

— Ocê já sabi?

— U quê?

— Casamentu di Lúcia cum Macambira...?

— Ué, gente! exclamou Damiana em sobressalto. E depois dum silêncio de pasmo: História... contestou abotoando os beiços em momo de incredulidade.

— Ora! s’eu tô dizendo... Mercedes soube di nhô Julinho.

Damiana escancelava a boca, os olhos espocaram-lhe das órbitas. Cruzou os braços premindo os peitos, que rebojaram transbordando.

— Mas qu’é qu’ocê tá dizendo, criatura...!?

— É p’r’ocê vê. Casamentu ficou combinado onte.  Foi sinhô memu qui falô cum Lúcia.

— Ocê qué vê qui véio já passô rodo nela i agora qué remendá u má? Sinhô? Quá? qu’ele qué é prendê u muxiba i botá muié nele.

— Mas Lúcia...! Pasmou Damiana enclavinhando as mãos, olhos em alvo, abóbada.

— É p’r’ocê vê. Aquela songamonga. Ocê s’ispanta... Eu é que nunca m’inganei c’aquilo. Mulata di cabelu ruivo, ôio nela. A mim ela nunca inganô. Muito luxu, muita fidúcia p’ra s’istrepá nu muxiba. Porquêra!

— Ambição. Foi só modi dinheiro. Macambira tem gimbo, sinhô faz tudo o qu’ele qué. E cuspinhou: Mandiguero safado! Dêxa ela, Barbina tá lá in cima.

E falaram do negro e da mulata com maledicências torpes, rindo escarninhas.

Vaca-brava, atirando um murro à coxa, jurou que Macambira havia de pagar-lhe e, rouca, com expressão feroz:

— Só s’eu não cunhici a mãi d’aquela bicha, mais rasa du que bassôra. Aquilu, mais hoje, mais amenhã injôa a catinga du tio i vai co’ primêro qu’aparecê, cumu cachorra d’istrada. Ocê há di vê.

A outra, com um rebrilho de dentes claros.

— Eu só quiria ficá nu quartu dele na noiti du casamentu modi vê o pagodi; e riu esganiçadamente.

Donária atirou um muxoxo.

— Pois sim...! Qu’é qu’ocê pensa? trambecando memu ele há di lá. Mulata tem logo, há d’arranjá jeito.

— Sem vergonha! Este mundo... uhm! Levantaram-se. Té logo! Roupa tá í.

Donária enveredou mato a dentro e, já longe, oculta pelas árvores:

— Oia, amenhã tem zorô lá in casa. Ocê querendu levá boca...

— Brigada.

Damiana tornou ao córrego e, instantes depois, na farandola, sabedora do caso, rinchavelha, às escancaras, comentando impudentemente a sem vergonhice da mulata. E uma negra cantou de improviso:

Eu quero vê p’ra contá,

Eu quero vê modi crê

Fogu pega dentru d’aua

I u muxiba cum muié.

O comadrio delirou com a trova repetindo-a por entre risadas cascalhantes. Negras mais desabridas sambaram ao som das vozes, corcoveando aos reboleios. À noite, na cozinha, as velhas negras cachimbando, mascando acamaradadas gozaram as micagens das mucamas e dos criuolos.

Um deles, macaqueando Macambira, empinado em recacho pimpão, abarcando a cinta de uma cafusa, que fingia de Lúcia, deu volta à cozinha, através do riso e dos ditérios canalhas da assistência. Súbito, atracando-se com a rapariga, forcejando por derrubá-la, a farejar-lhe o colo, põs-se a fungar em cio, fossando, grunindo. As velhas dobraram-se em guinchadeira largada, aos empurrões umas às outras; e uma cantou, batendo as palmas:

Eu quero vê p’ra contá,

Eu quero vê modi crê...

E o crioulo e a mucama tripudiavam desconjuntando-se em rebolir obsceno, agachando-se peneiradamente; mas d’ímpeto, a um grito, pondo-se os dois a prumo, chocaram-se em umbigada. E foi um reboliço alegre e estrondoso de aplausos.

E o “quadrado”, ainda depois do toque de silêncio, com os negros sentados no limiar das portas, muito tempo rumorejou sarcástico com o zumbido da cantarola zombeteira:

Eu quéru vê p’ra contá.

Eu quero vê modi crê...

Foi no escritório, à tarde, que os noivos tiveram o primeiro encontro. Macambira dava conta do serviço que fizera na mata com três negros, limpando a fonte e o rego de onde desalagara todo o balseiro de folhas e ervas mortas, amotando as margens para canalizar a água, quando Lúcia apareceu na porta, parando no limiar.

— Senhor me chamou?

— Entra! ordenou o fazendeiro.

O negro perturbou-se. Fez uma atordoada volta olhando airadamente em torno, a remexer nos bolsos. Tirou o lenço, limpou o rosto e, atarantado, ia pondo o chapéu quando deu com o olhar em Manuel Gandra. Retraíu-se vexado, como surpreendido com falta.

O fazendeiro continha, a custo, o riso ante o ar canhestro dos dois. Mirou-os tranquilamente e disse, em tom de galhofa:

— Homem, vocês parecem crianças. Que diabo! Lúcia encostara-se ao umbral e retorcia, acanhada, a ponta do casaco. Entra duma vez, rapariga. Que estás fazendo aí fora?

A mulata adiantou-se tímida. Gandra sentou-se na rede, acendeu um charuto e, vagarosamente, como se desse uma ordem de serviço:

— Vocês já sabem do que se trata, não é? Pois entendam-se lá, marquem o dia e avenham-se. Eu estou por tudo. E pôs-se a balançar-se fumando.

Macambira sentia-se como colhido em cilada sem ver saída, e abafava; ouvia-se-lhe a respiração angusta. Relanceando olhares rápidos à Lúcia, via-lhe o colo alto arfar opresso. Acenou um gesto vago, com significação, manteve um momento o olhar fito, mas não via — era como se estivesse muito longe, isolado em prisão de altos muros, sem ar, sem luz, a morrer.

Ante o silêncio obstinado, Gandra exclamou nervoso:

— Então que é isto? Vocês perderam a fala? E tu, rapariga...?

A mulata deu d’ombros molemente, com um sorriso contrafeito.

— Eu sei... O que meu senhor fizer está bem feito. Meu senhor manda.

O negro atesou-se hostil, punhos cerrados, mandíbulas apurradas, o olhar fumíneo. Gandra acenou de cabeça em negativa e falou vagarosamente, como se ditasse as palavras:

— Não, senhora: eu não mando. Aqui não há senhor. O caso é entre vocês dois. Não disseste que querias? Lúcia, retorcendo-se, boleando o corpo, revirando a cabeça, sorria, tornava ao sério em indecisão envergonhada. Gandra insistiu com serenidade: Fala: queres ou não? Se queres, muito bem; se não...

— É... confirmou Macambira em voz cava. De novo o silêncio cobriu a cena. O negro aprumava-se tanto que parecia crescer, dilatar-se como uma sombra. E quedou silencioso, hirto, encostado à parede, o olhar morto. A mulata fez menção de falar, não se atreveu, retraindo-se com um encolher d’ombros; por fim decidiu-se:

— Então só eu é que hei de falar? O que eu tinha a dizer já disse, meu senhor sabe.

— Sim, eu sei; mas Macambira quer ouvir de ti, da tua boca. Lúcia encostou-se à secretária, de olhos baixos, resmungando em tom dengoso. Fala! tornou o fazendeiro. Ela levou o braço ao rosto escondendo os olhos, como se chorasse. Fala, rapariga. Pareces boba.

— Então a gente não tem vergonha? Assim também não...

— Vergonha de quê?

O negro olhava casmurro. De improviso, desmanchando-se em gestos desengonçados, gago, com o olhar desvairado, rompeu:

— Ocê não qué, diz; é mió. Ninguém tá forçando ocê, não é, sinhô? Ninguém tá forçando. Não qué, fala duma vez. P’ra que a gente há de ficá ansim um diante do outro perdendo tempo? Não qué, diz. Ninguém ubriga.

A mulata, surprendida com a rebentina do negro, encarou-o pasmada. Gandra fechou a cara, atirou fora o charuto e, levantando-se da rede, bradou:

— Qual não quer!

— Mas eu disse alguma coisa, gente?! choramigou a mulata.

Remordeu o lábio e, de cabeça baixa, pôs-se a bater nervosamente com o pé calçado em chinela de bico. Gandra voltou-se para Macambira. O negro era uma estátua. Lúcia deu d’ombros, resignada. Suspirou sorrindo e, caminhando para o negro d’olhar fito, estendeu-lhe a mão inclinando a cabeça num jeito de graciosa humildade:

—Tá aí, sussurrou infantilmente.

Macambira, alvoroçado, correspondeu ao gesto e, em voz branda, com uma desusada ternura a atravessar-lhe a aspereza das maneiras, como um límpido fio d'água jorrando d’entre pedras, interrogou docemente:

— Mas é do seu gosto, Lúcia?

— Ué! Então?

— Oia lá! Pensa bem! Casamento é cum’a morte, Lúcia; e os dentes reluziram-lhe em sorriso estranho.

A mulata abotoou os lábios em muxoxo e, envolvendo o negro na languidez de um olhar adormecido, redarguiu sorridente:

— Pensar o quê? O que eu tinha de pensar já pensei. E animada, encarando-o: Mas porque é que você fala em morte?

Ele embatucou arvoado, com um largo sorriso alvar no rosto luzidio, a errar com os olhos muito abertos:

— Uai! porque sim. Casamento e morte é uma vez só; e, insensivelmente, apertava-lhe a mão, triturando-a. Ela trincava o lábio, encolhia-se com uma expressão meiga de sofrimento, olhando-o d’olhos semi-cerrados no gozo dorido daquela tortura de amor.

Gandra interrompeu o colóquio:

— Bem, estamos entendidos. Agora é tratarem isso quanto antes. Casamento e jantar não se deixam esfriar.

E foram assim os esponsais de Macambira e Lúcia.

Uma manhã, como de costume, Gandra passeava no jardim e parara junto do viveiro das avenças, na humidade sombria de uma gruta de pedras limosas por onde e d’onde a água corria em filetes, pingava em lentejo estagnando no tanque cheio d’algas, quando ouviu passos crepitarem na areia. Voltou-se e viu Macambira.

Olá! O negro sorriu canhestro. Queres falar comigo?

— Sim, sinhô. Queria dizê uma côsa, meu sinhô não leve a má...

— Que é?

Então o negro, vexado, propôs tomar a jornal a uns parceiros, oficiais d’obra, para fazer um puxado, rebocar umas paredes no seu rancho. Gambra encarou-o sobrocenho, como ofendido, mas logo, desanuviando o rosto, disse em tom pausado:

— Guarda o teu dinheiro, rapaz. Pôs-se a alisar a barba; repuxando o lábio em dois dedos, esteve um momento d'olhos altos, semi-cerrados, como a calcular. Por fim perguntou: O Felix já acabou o que estava fazendo no engenho?

— Cabô sim, sinhô.

— Para vocês uma casa com dois quartos, sala, cozinha é quanto basta...?

— Uai!

— Pois eu falo com o Felix. Há aí tudo: telha, madeira, tijolos. Que mais? Umas ferragens, cal, um pouco de tinta, isso custa-te uma ninharia. Nada de remendos. Vida nova, casa nova. E voltou-se para o tanque a olhar as algas. Pois é, o que há em casa, eu dou; o resto compras. Não é assim? O negro sorriu agradecido. Três ou quatro homens arranjam-te isso em dois tempos e ficas com uma moradia, decente.

O negro, ainda que o conhecesse como homem de rasgos, generoso, mãos rotas, coração grande, ficou sem termos para agradecer. Retorcia o chapéu nas mãos sorrindo abertamente.

Despediu-se contente e, como tinha de ir à Barra, desceu ao pasto a apanhar um animal; e assobiava radiante à ideia de ter, lá em cima, em vez da cabana palhiça, esburacada e enegrecida de fuligem, uma casinha de telha, caiada, com um alpendre, que era o seu sonho.

E, três dias depois, começaram alegremente as obras.

Conhecendo o gênio franco de Macambira, os parceiros atiraram-se de boa cara ao trabalho.

Eram cinco rapagões destorcidos, três pedreiros e dois carapinas e Felix, o mestre, gordalhufo, alma alegre, um pagodista de marca, sempre de cara n’água, vozeirando ordens, às pernadas por cima das pilhas de sarrafos, pelos montes de tijolos, pelas rimas de telhas côncavas. Moleques cruzavam-se no carreiro, uns subindo com materiais, outros descendo, a correr, em tropelias, labutando por gosto.

No amassadouro eram eles que revolviam o barro, eram eles que o levavam no cocho aos pedreiros. Marinavam pelas escadas com telhas, subiam a ladeira com tábuas que estalavam matraqueando umas nas outras.

E, no recanto agreste, dantes tristonho, silencioso, o era um bulício alegre desde o amanhecer até a tardinha: marteladas, rascar de serra, troar de vigotes atirados, vozes, gritos, cantigas, assobios. Nas paredes ia entrando o emboço e Felix impava orgulhoso atafulhando-se nas maravalhas ou levantando poeira do chão pronto para receber soalho nos aposentos da frente — quarto e sala, que os outros, um quartinho para dispensa e depósito e a cozinha ficavam bem ladrilhados a tijolos e de telha vã.

À frente da casa um alpendrezinho sobre vigas de cedro oferecia o agradável repouso dum poial.

Macambira tratava os operários com largueza — era o café com bolacha, o gole de cana, o fumo e, aos domingos, uns dois mil réis a cada um.

O levantamento da cumieira foi pretexto para um regabofe de feijoada e caninha, à sombra das laranjeiras.

Pronta a casa, alvejando entre as árvores, com o telhado vermelho, as portadas verdes e, lá para o fundo, no lançante do monte, o galinheiro de ripas, o chiqueiro de tábuas, uma moenda nova, Macambira abraçou os rapazes gratificando-os generosamente. Felix teve maior maquia.

Quando o negro comunicou que a casa estava pronta, Manuel Gandra quis vê-la e lá foi a cavalo.

Andou por ela examinando tudo minuciosamente, abrindo e fechando portas e janelas; correu o terreiro, o pomar e achou que aquilo “estava digno dum lorde”. Uma casa de gosto. O negro sorria desvanecido.

— Pois olha, ficou melhor do que eu esperava. Estás muito bem. Lúcia vai gostar. Agora é conservá-la. E a tua roça está viçosa. Podes estendê-la pelo monte até a beira da mata; ali em cima a mandioca deve dar bem. Para milho e cana tens a baixada, de boa rega. Estás muito bem. E que vista! É um paraíso. Bom... Deus te ajude.

Montou e partiu.

Nas clareiras parava o animal olhando d’alto o seu vasto senhorio, terras de semeadura e mata, campo e monte, tudo farto por ali fora a perder de vista.

Um carro de bois subiu da Barra carregado: mobília nova e louça, trem de cozinha, fazendas, de um tudo.

Era noite alta quando passou a porteira sem ruído, com muita graxa nos eixos e, apesar do ladrar dos cães, ninguém acordou na fazenda. Macambira, Balbina e os carreiros transportaram a carga para a casa nova e o carro regressou antes de amanhecer.

O terreno foi todo capinado em volta da casa e o caminho alisado tão a capricho que não ficou pedra em ressalto nem depressão sensível. E era um gosto aquilo lá em cima, tudo lustroso, cheirando a verniz, louça de passarinho no armário, quatro cadeiras, cama francesa do casal, cômoda de vinhático, boa mesa, sem contar a mala que, Macambira comprara na Corte, o relógio, uma cantoneira com uma figura de gesso.

E o negro, armando na sala a rede do Norte, de varandas largas, em franjas, tomou a atitude orgulhosa de um ras que contemplasse soberanamente os seus domínios vastos.

Então resolveu convidar Lúcia para ir um domingo lá em cima, ver se estava a seu gosto.

Balbina arranjou o interior com tão apurado esmero que até flores havia em vasos de barro e em copos, sobre a mesa, na cômoda, nas prateleiras forradas a papel de cores.

Nas paredes alvas figuravam ilustrações de revistas, chromos, registos, um feixe de palhas secas benzidas e uma fotografia representando a Ceia. Na porta, por dentro, havia um sino de Salomão que o Felix pintara a capricho.

No terreiro, muito varrido, choviam as flores d’ouro duma acácia. Pássaros faziam giros largos, iam ao fundo escabroso das grotas, tornavam aos ramos, de novo partiam d’arremetida, aos trilos.

Da mata saíam revoadas com um chilreio de riso.

Por vezes um grasnido rascante talhava o ar — todas as asas colhiam-se, o espaço esvaziava-se e, alto, solitário, um lento cara-cara batia o voo perscrutando, súbito infletindo ríspido, direito a um ponto, à prêa.

Em volta de caixões, que Macambira supendera sob a aba do telhado, zumbiam enxames, galinhas ciscavam cacarejando aos pintos, galos cucuritavam nos matos; uma porca, com a sua leitigada, grunhia fussando o lodo e, preso a árvore, o cão ladrava, gania aos arrancos a corrente.

Da velha choupana não havia vestígio, só as árvores que a cercavam dantes mantinham-se de pé, mais vivas e airosas, como se houvessem remoçado, dando sombra mais larga e aroma mais doce.

E Macambira, ainda só, mas sabendo-se amado, contava os dias, muito perto da felicidade, como se fosse pelas extremas de denso bosque e já avistasse, através das abertas, ao longe, azul de céu e alvuras da cidade feliz onde devia habitar agasalhado e para o sempre no puro amor do seu sonho.

IV

Pronto desde cedo — porque de madrugada, antes das cores abrirem-se, fora ao banho na cachoeirinha do grotão — vestido de ponto em branco, gravata, botinas de couro cru, Macambira afogueava-se nos arranjos da casa, empenhado em agradar à noiva.

Tudo varrido, espanado, portas e janelas abertas, estendeu a toalha na mesa, pôs o boião de compota, a lata de biscoitos, uma garrafa de vinho fino. E cantarolava indo e vindo, com estrepitoso rinchar das botinas, a reparar, a corrigir, removendo objetos, compondo melhor um ramo, ora na sala, ora no quarto ou saindo ao terreiro, tão exigente asseio que até apanhava do chão as flores murchas, as folhas secas e ia lançá-las à grota.

Era outro — alegre, expandido, fisionomia aberta, sem a espinhenta desconfiança, a irritadiça suscetibilidade que o tornava, ferrenho e antipático.

Quanto mais corria o tempo mais se lhe abrandava em ternura o coração empedernido. Quando, porém, as franças do arvoredo reluzirem ao sol, impacientou-se.

Foi ao pequenino relógio de madeira recortada que, sobre a cômoda, batia um tic-tac lesto. Oito e meia! E ela que prometera ir cedo, de manhãzinha...!

E entrou a conjecturar: “Uhm...!” Dava-a por arrependida. Talvez vergonha das mucamas que a traziam num cortado, sempre com indiretas, rindo-lhe na cara ou cantarolando a toada da cantiga impudente. Ou seria medo de que ele, apanhando-a sozinha lá em cima, tentasse violentá-la?

Tal ideia assomou-o, acendeu-lhe nalma uma cólera frenética e, revoltado como diante do fato real, prorompeu em impropérios, repelindo, voz surda, a afrontosa, imaginária suspeita:

“Eu!? Ocê tá inganada! Eu não sou da laia desses qu’ocê conhece. Ocê tá inganada! Quem sabe!” E media a sala a passos largos, arrepelando-se, gesticulando desabridamente.

Arrugou-se-lhe a fronte em catadura feroz, os olhos, adoidados, lampejavam áscuas, retorcia as mãos, dobrava-as enclavinhadas estrincando os dedos. Súbito, atirando uma patada ao soalho, expluiu fremente: “Diabo!” Os beiços tremiam-lhe, o peito ia-se-lhe constrangendo em angústia. Sorveu ar.

Fora, no esplendor da manhã radiosa, era um sonoro guizalhar de cigarras. Caminhou até a cozinha, saiu, deu volta, foi ter ao pomar e um tumulto de ideas revolvia-se-lhe no pensamento. Avistando-o, o cão pôs-se a ganir agachado, a arrastar-se humilde, batendo a cauda; vendo-o passar indiferente, arremeteu de salto e, um momento de pé, sustido pela corrente, ladrou, rosnou, voltando, por fim, a enroscar-se na palha.

O negro raspava fronte a unhadas, refranzia o rosto. Tornou à casa.

Foi, de novo, ao relógio: ”Nove horas...” Sorriu sardônico, resmungando injúrias.

Mas estatelou-se à escuta, agarrado aos punhos da rede, a olhar atento. Era, sim. Era a voz de Lúcia, perto, no caminho. Saiu à porta e, abrindo os braços entre os umbrais, esperou. Era ela, sim.

Era ela e dizia:

— Bem feito! Quem te mandou? Eu não disse que não viesses pelo mato? Tu não tomas emenda... E apareceu entre as árvores, de branco. Uma negrinha seguia-a manquejando.

Macambira sentia-se como à beira dum brasido: intenso calor afogueava-lhe o rosto, urticava-lhe os olhos, dando-lhe igual à que sofria nas queimadas de agosto quando, em lufada adusta, o vento passava rolando bulcões de fumo. O coração pulsava aos ímpetos solapando-lhe o peito; corriam-lhe arrepios pelo rosto.

Parecia medo o que sentia vendo vir a mucama, passo a passo, meio curvada, sacudindo o lenço, a espantar as abelhas.

Custou a arrancar-se de onde estava, descer o patamar para recebê-la.

Sentia-se atraído, num fogoso desejo de precipitar-se, correr, tomá-la nos braços, mas contêve-se disfarçando a emoção na compostura grave com que a esperou junto à acácia, que pingava flores.

Dando por ele, a mucama, com as cores muito vivas nas faces, exclamou risonha e ofegando:

— Hum! Parece que não é nada e estou aqui botando a alma pela boca.

— Quem não tá custumado, cança.

Estendeu-lhe a mão e ficaram um momento encarados, sorrindo.

— E como isto está de flores! Embelezada de tudo não se fartava de olhar, elogiando: “Muito bonito! E eu que nunca tinha vindo aqui! Não, minto: vim, uma vez, em pequena, com mamãe, no tempo de ti Pedro. Mas não vê que era assim...! Tudo mato e ali, bem na beira do barranco, um ranchinho à toa. Agora sim”.

E iam-lhe os olhos a tudo: a mata, muito densa, pintalgada de flores, rolando em verdes vários pela encosta do monte, num ou noutro ponto escalvado — pedra a reluzir úmida ou costão de barranca escavacada; ao pomar, onde já as laranjeiras tinham os frutos amarelos; à acácia toda em flor

— “Como está linda! Parece de ouro!” não se conteve que não dissesse; à casa muito branca, já com um laivo de sol à frente e pombos no telhado: ”Como é fresco! E que bom cheiro!”.

Um som d’água adormentava e a chilreada dos pássaros ia bem na alegria daquele sol, no viço aquele verdor lustroso.

Lá em baixo, longe, até as montanhas, a várzea ora plana, ora ondulando em cores suaves, cortada pelo rio sereno, sombreado d’árvores ou buscando ao sol; roças, convales ainda abrumados de névoas ralas. E choupanas à beira das trilhas, com o terreiro à frente, claro, liso como assoalhado; outras que se adivinhavam pelos rolos de fumo ondulando entre as árvores; e aveludadas colinas dum verde fresco tosadas, sem sombra d’árvore. Para os lados da lavoura grande os cafezais a eito nos outeiros. Altas no céu fugiam nuvenzinhas brancas.

Lúcia voltava-se para um lado e outro olhando enternecida.

— Bonito! E depois dum silêncio; Mas à noite deve ser muito triste...

— Quando há lua nem dá vontade da gente drumi. Tudo isso fica alumiando e lá em baixo parece o mar.

Ela mirou-o maravilhada. E os dois, no mesmo enlevo, ficaram olhando os horizontes fundos, empoeirados d’ouro. A crioulinha sentara-se na soleira da porta examinando a perna escoriada.

— Tá doendo? Esfrega um bocado de cachaça.

— Qual! contrariou Lúcia.

A pequena contrafez um sorriso, repuxou a saia curta de zuarte, escondendo a perna escanifrada.

— Bamo entrá? convidou Macambira.

E Lúcia, muito mimosa, sacudindo a barra do vestido:

— Vamos. Na sala, diante da mesa servida, a mulata exagerou a surpreza: — Nossa Senhora! mas que é isto!? E riram.

Relanceando os olhos, ia vendo tudo com ar satisfeito. Ao dar com a Ceia, mudou-se-lhe a expressão do rosto em serenidade beata. Recolheu-se contrita, como se rezasse e o negro contemplava-a em êxtase, adorando-a com um olhar que a envolvia à maneira de um clarão no qual, em surtos, relumbrava a flama do desejo.

Ela suspirou docemente, persignou-se e, olhando-o:

— Vamos?

A casa ainda cheirava a tinta. E Macambirare recomendou: que não se encosta-se nas portas. Ela colheu o vestido, retraindo-se. Entraram no quarto.

Três janelas arejavam-no — uma à frente, outra ao lado olhando o costão do barranco e a terceira ao fundo, sobre o monte, ensombrada por uma magnólia de tronco rugoso e negro, como tostado, mas florida e alegre de voos e de chilreio d’aves.

Macambira deixou-se estar à porta enquanto Lúcia examinava o aposento e os móveis: a cama, o lavatório de ferro, com bacia, jarro e saboneteira de louça, a cômoda, uma canastra encourada e um cabide de parede.

As gavetas aperravam rangendo e um cheiro de madeira nova enchia o quarto agradavelmente.

Na cama, o colchão alto, estalejando à pressão, travesseiros sem fronhas, uma esteira enrolada aos pés.

— Está a seu gosto?

— Que pergunta!

Saíram encaminhando-se vagarosamente para os fundos e, diante do quartinho, Macambira explicou:

— Isto é um achegosinho p’ra guadá uma coisa e outra.

— Pois então? Serve bem.

Foram à cozinha. Lá estava Balbina encorujada junto ao fogão de tijolo, toda de novo: saia e casaco de riscado, lenço vermelho à cabeça. A alegria de Lúcia, até então contida em vexame, explodiu ruidosa:

— Tia Balbina aqui... tão caladinha! E toda bonita!

A negra encarquilhou um sorriso, resmungando:

— Caçúa, caçúa... Casa tá í. Boa vida vai cabá.

— Boa vida!... disse a mulata superciliando. Pois sim...!

Ficou um momento alheada, d’olhos vagos, como perdidos num pensamento. A negra ruminava engrolando o fumo que lhe rolava na boca.

Lúcia acompanhava com o olhar triste uma andorinha que entrara pelo vão do telhado e saltava nas vigas, trissando. Um raio de sol polvilhado de átomos descia em diagonal sobre o fogão.

Macambira mandou servir o café. Passaram à sala.

Lúcia mal debicou um caju de compota e só a muita instância do noivo aceitou um biscoito. Cabisbaixa, mexia distraidamente o café quando Macambira percebeu que ela chorava. Surpreso, perguntou:

— Ocê tá chorando?

Balbina, que ficara à porta, amuou aborrecida.

— Não é nada.

Levantou a cabeça sorrindo, com as lágrimas em fio pelo rosto. De repente, afastando a cadeira, saiu da mesa, foi ficar à porta limpando os olhos.

A pequena, alheia a tudo, impanzinava-se gulosamente. Reentrado na desconfiança, Macambira encostou-se à cômoda enrolando infindavelmente um cigarro.

Lúcia tornou à sala e, vendo-o casmurro, perguntou muito meiga:

— Está zangado? Não se zangue, não. Eu sou assim esquisita. Às vezes choro sem saber porquê. Uma nuvem de tristeza, um aperto de coração. Passa logo.

Balbina interveiu enfesada:

— Ocês parece criança: chora à toa, zanga à toa... Ah!

— É gênio, tia Balbina. Sou triste mesmo, que hei de fazer? e espreitava o negro timidamente, buscando-lhe os olhos com o olhar lavado em ternura. Sentou-se na rede balançando-se de leve. Balbina, para deixá-los à vontade, passou a cozinha chamando a pequena:

— Rosa!

— Nhóra!

— Vai trazendo esses prato.

No silêncio da sala, ferido apenas pelo crispante e rítimico ranger da rede, os dois sentiram-se muito sós, como abandonados, e esquivavam-se evitando olhar-se, num vexame púdico que os atarentava e tolhia. Lúcia ia dando maior impulso ao balanço até que roçou na cômoda. Logo pôs os pés de rasto, em trava, e parou buscando, como em consulta, os olhos de Macanibira.

— Pode balançá sem susto.

— Estará bem segura? Não vá despencar comigo.

Ele deu d’ombros superiormente:

— Não tem perigo.

— Quando eu era pequena levei um tombo de rede que não sei como não morri. Tenho medo disso que me pelo!

— Esta tá firme... garantiu o negro e, de improviso, abarcando, a mãos ambas, os punhos da rede, a um lado, encolheu as pernas deixando-se cair suspenso. Lúcia, rechaçada de golpe, tombou de flanco com um gritinho:

— Ui!

Ele riu firmando-se de pé e a rede, frouxa, bambeou entrando, de novo, em balanço impelida docemente pelo negro.      

Durante um sereno momento conservaram-se calados. Lúcia, por fim, animou-se corando:

— Está de pé por gosto?

E acomodou-se aninhando-se, a fazer lugar. Ele sorriu:

— Nós dois?

— Que tem?

— Uai! já não tem medo?

— Agora não.

— Oia lá!

Sentou-se devagarinho numa das cabeças da rede, mas o seu peso levantou a mulata, ele mesmo resvalou e os dois juntaram-se, aprofundaram-se no côncavo com um rir travesso de criança. Ela encolhia-se, fazia-se pequenina e, como Macambira recomeçasse o balanço, estirou as pernas e apareceram-lhe as botinas bronzeadas. Ele pasmou:

— Ocê inda tem essas botina...?

— Então?

— Tem durado! Mais di ano.

— Mais!

Vexada do olhar demorado do noivo sumiu os pés, inclinando-se a pretexto de tirar uns carrapichos da barra do vestido. E a rede rangia morosa e pesada.

— Que mundo de abelhas aí fora!

— Tá cheio!

— E você não tem medo?

— Medo di quê? Abêia cunhece o dono.

— Pois sim... Eu é que não me fio.

Estremeceu sentindo o braço do negro que se lhe insinuava sorrateiro por traz das costas. Disfarçando, afastou-se facilitando o enlace. Ele cingiu-a, abraçou-a por fim e aconchegaram-se ombro a ombro, mantendo-se imóveis, em silêncio, como distraídos. Repentinamente, porém, voltando-se atarantada, Lúcia exclamou:

— Onde andará Rosa!?

Num sacalão o negro retirou o braço, aprumou-se e, como se despertasse, respondeu estremunhado:

— Rosa? tá lá p’ra dentro. Qué ela?

— Não...

Fez-se novo silêncio. Ele então, baixinho, brincando com as franjas da rede:

— A móde qu’ocê tem medo de mim...?

— Eu?

Ele acenou de cabeça e, pousando as palavras:

— Ocê não mi cunhece, Lúcia. Ocê não mi cunhece, não...

— Medo! eu? por quê?

— Então p’ra vi aqui ocê pricisava dessa nigrinha...?

Lúcia tornou-se séria:

— Eu logo vi... E serena, sizuda: Não foi por medo que eu trouxe Rosa comigo, foi por causa dessa gente que põe maldade em tudo. Se eu não viesse acompanhada, ora...!

— Ocê tem razão, concordou Macambira. Tem razão...

— Pois não é?

— Tem razão.

— Eu vivo lá em casa e sei. Basta Donária, com aquela boca peçonhenta, para espalhar uma porção de coisas. E ela estava no engenho quando eu passei, Deus me livre!

— Aquilo é uma peste!

— Só não fala de Nossa Senhora... nem sei mesmo porquê.

A rede ia parando. Olharam-se. Ela sorria. Perturbou-se baixando os olhos, de novo ergueu-os pálida, os lábios entreabertos, como em fadiga. Instantaneamente encardiram-se-lhe as faces. Inclinou-se um tanto à frente e, sem levantar a cabeça:

— Pode botar o braço, não me incomoda.

Ele cintou-a de novo, vencido, mas ficou pensativo, preocupado, o olhar suspenso, como atento a alguma coisa. Súbito levantou-se dando atraz com a cabeça em gesto repulsivo.

— Que é? perguntou a mulata surpreendida.

— Nada não.

Pôs-se a caminhar a passos largos, as mãos atafulhadas nos bolsos das calças. Lúcia, brincando com a varanda da rede, ainda embalou-se um momento, muito vermelha. Uma rosa escapouse-lhe dos cabelos, caiu-lhe aos pés. Macambira apanhou-a:

— Óia!

Ela recebeu-a, sompre cabisbaixa, conservando-a na mão, esquecida. Por fim levantou-se, foi à porta do corredor e chamou a pequena:

— Rosa! Anda! Vamos...

Macambira voltou-se surpreso:

— Uai! Ocê já qué i?

— Já. É tarde. Sinhá pode precisar de mim. Hoje tem gente lá p’r’almoçar.

O negro não achou palavra para dizer, envergonhado da sua fraqueza e arrependido da desfeita que fizera à noiva. Encostado à mesa, coma perna trançada, escabichava as unhas, boleando a cabeça, carrancudo. Balbina veio da cozinha com a pequena e, como a mulata se despedisse, suspeitando arrufo, resmungou aborrecida:

— Ocês... quá! Isso ansim não tá bom. S’ocês cumeça ansim cumu vai caba? Antonce dia di visita é p’r’ocês tá ansim trumbúdu?

Lúcia sorriu:

— Que é, tia Balbina?

— Qui é, bem? Ocê pensa qu’eu sô boba...

— Pois eu hei de ficar aqui o dia todo...?

— Fala, fala... Eu tô suntando só. Fala...

Lúcia estendeu a mão a Macambira:

— Té quando...?

— Até quando quizer. Sorriram. Adeus, tia Balbina. E, inclinando-se-lhe ao ouvido, segredou: Cuidadinho com a minha casa.

Foram saindo. Balbina acompanhou-os. Ainda estiveram um momento parados junto à acácia.

Então, adeus e olhou-o, muito terna.

O negro comoveu-se com a mansidão da mucama e, largando-lhe a mão, entrou em casa, tomou o chapéu:

— Eu levo ocê até lá imbaixo.

— Vai di braçu, genti. Ué! ocês não vai casá? antonce...

Riram alto e foram descendo devagar, seguindo as voltas do caminho, ora à sombra, sob a copa dos ranos buliçosos, ora à lumieira do sol, pelos escalões da ladeira entre ervaçais ressequidos.

O casamento foi em meados de março, domingo, depois da missa.

O sol, de um brilho intenso, rasgava a névoa da terra. Desnublavam-se os cerros, os vales aprofundavam-se limpos da fumarada fria. Nesgas de bruma desprendiam-se dos cabeços, esfarrapavam-se nos matos penugentas, quase fluídas; um momento paravam soltas, esgarçando-se, solvendo-se no ar. A paisagem emergia verde, orvalhada, faiscante e dourava-se, deslumbrando.

A capela, a um dos extremos da casa senhorial, enfeitada de flores e folhagem, ficou atupida de gente e ainda densa turba marulhava no corredor e muitos, que não haviam conseguido lugar rondavam fora, apinhando-se às janelas que abriam sobre o jardim.

Vaca-brava lá estava, sempre desmazelada, a carapinha em tufos, o casaco aberto, rosnando rabugenta, a repelir os que tentavam tomar-lhe a frente.

Grupos juntavam-se em volta dos canteiros, sentavam-se na relva cavaqueando. Pares de botinas, emparelhados à sombra, com as meias dobradas sobre o cano, eram vigiados pelos donos que, de calças arregaçadas, iam e vinham, descalços, refrescando os pés, doridos da caminhada que haviam feito.

E chegavam famílias — as negras, de chale à cabeça, com trouxinhas; algumas traziam crianças pela mão ou enganchadas no quadril; os negros muito risonhos, empavonados, estadeando a roupa de brim d’Angola, a distribuírem apertos de mão aos parceiros e bênçãos à molecada.

Cães magros, gafentos, cainhavam coçando-se, arrantando-se pela terra, ou enrodilhados mordicando-se frenéticos.

Crioulinhos brincavam às cabriolas; outros, ariscos, chuchando o dedo, pasmavam a tudo, muito zelosos da roupa que vestiam, virando, revirando o chapéu novo.

E o jardim rumorejava como uma feira.

Era festa grande.

A tarde da vespera fora trabalhosa e sangrenta — abatera-se um boi gordo e ainda lá estava o sangue, em negra abafeira, às moscas, perto do engenho, matara-se um cevado; cabritos, galinhas foram à faca e até tarde da noite, à luz de candeias, a cozinha refervera em alegre azafama com o preparo das carnes.

Um décimo de cachaça saíra do paiol e lá estava, sob o tendal, com torneira de chave para a distribuição.

Negros traziam às costas grande tambores, experimentavam-nos aos burunduns à soalha num precipitado rebater de mãos; outros sobraçavam violas enastradas, ponteavam cavaquinhos. E, já excitados com a ideia do batuque, à noite, saltavam coveando, sapateavam batendo os pés ligeiros. Cantos tristes, guaiados, partiam de pontos vários, às vezes interrompidos por um riso em guincho que ia crescendo comunicativamente e estrondava em gargalhada como uma centelha alegre que, levada de palhal a restolho, fosse pegando, acendendo chamas, levantando labaredas e expluisse em incêndio. Dois moços, robustos, empenharam-se em luta de agilidade e, destros, aos pulos, trocavam golpes de mãos, atiravam-se cambapés rasteiros.

Um canto, junto aos bambus, arrancharam-se negros e negras, de pé, sentados ou de cócoras, pondo cerco maravilhado a um mulato de fama que fora da Barra.

— “Era um bichão nu instrumento. P’r’um baile não havia outro!”.

De branco, chapéu mole à banda, embutido na grenha, amassava e amassava e sacava a harmônica com ar soberbo, graziando polcas, chulas e toalhas fanhosas de modinhas.

E gente de fora...! era um mundo, convidados das fazendas próximas e muitos que haviam ido fiados na hospitalidade “querendo parte no pagode, beber um gole à saúde deste ou daquele”. Festa grande!

É que, além de Macambira e Lúcia, outros casais recebiam-se e inúmeras crianças batizavam-se.

Os senhores lá estavam, menos Julinho que já havia descido para os estudos.

As mucamas, que dirigiam a festa, num farfalhar de saias engomadas, com laçarotes esvoaçante, recendendo a essências, afanavam-se acomodando crianças, fazendo lumar para os convidados e para os mais velhos, sobremodo solícitas com o padre que, na sacristia, esmoncava-se resmungando, enfezado com a demora.

Ao entrar a missa a sineta bimbalhou na forca um alegre repique e o sacrifício iniciou-se... num murmúrio de vozes surdas.

Por vezes uma criança choraminga, um cajado caía com estrépito e o padre, indo e vindo      ante o altar coberto de flores, resplandecente de ouro e luzes, zumbrindo-se em mesuras, genufletindo ou demorando em êxtase, braços abertos, o olhar suspenso, resmoneava passagens dos Evangelhos na atenção devota do auditório rústico que se atrapalhava, por vezes, ajoelhando-se uns quando outros se levantavam.

Na elevação da hóstia um negro tirou o “Bendito” e foi clamar estridente, duma plangência agoniada, logo rolando soturno para, subtamente, abrir-se em alegro triunfal, e a campainha do acólito vibrava a espaços, em ritmo, como escandindo o cântico. Terminada a missa, enquanto o padre se revestia para os sacramentos, as mucamas formaram os nubentes.

Macambira e Lúcia foram os primeiros colocados. A mulata, tímida, mas airosa num vestido branco de nanzouk, véu, capela e ramo de flores de laranjeira, ajoelhou-se, muito recolhida, em frente do negro, que vestia costume claro, feito na Corte.

Seguiam-se os mais, em duas filas, homens a um lado, mulheres a outro — eles enjorcados em anchos paletós, equilibrando-se em botinas novas, ora num, ora noutro pé, a gravata moxinifada, o lenço a despontar do bolso, corrente de prata ou de plaque anunciando relógio; elas numa variedade de trajos estapafúrdios, vestidos de cassa, com basquine, ou de morim, tufados, com recamos de fitas, um pedaço de filó trapejando à cabeça sob coroas mal postas, flores ao peito, à cinta; outras, achamboadas em tafularias, já com filhos taludos à ilharga. Uma grávida, para cada hora, muito humilde, d’olhos baixos, conservava as mãos cruzadas sobre o ventre túmido, como a esconder o vexame.

Cochichava-se em volta, espirravam risinhos, logo abafados. Por vezes uma cachinada fazia escândalo, negros voltavam-se resmungando insolências.

E um cheiro morno, almiscarado, de suor e de brim novo, impregnava o ambiente. Mas a brisa entrava bojando as cortinas da janela fronteira ao altar, desfazia o fumo do turibulo espalhando o aroma do incenso, como um fluído místico que purificasse o ar e penetrasse os corações.

O padre apareceu e logo o burburinho cessou. Mas com a ânsia de ver houve empurrões e repulsas, vozes cresceram em disputa, um rebojo tumultuoso agitou a multidão.

Gandra pôs-se de pé no estrado do altar, severo, varreu a turba com o olhar repreensivo e o silêncio restabeleceu-se.

Ele e a senhora apadrinharam Macambira e Lúcia e o padre, em atenção aos fazendeiros, foi lento no latim, grave nos gestos enquanto esteve diante deles; continuando, porém, mal se lhe entendia o araviado. Juntava os casais, unia-lhes as mãos sob a estola, se havia “alianças” indigitava-as, senão prosseguia engrolando as palavras, numa pressa de seareiro que fosse perlongando o sulco dum alfobre lançando ao acaso a sementeira sagrada.

Celebrado o último casamento o padre, postando-se entre os casais, fez uma breve predica em tom severo e, falando do amor, da virtude, dos deveres entre conjugações, da obediência aos senhores e dos benefícios da religião de Cristo era tal aspereza da sua voz, tal o seu aspeito carrancudo que os noivos curvavam-se estarrecidos como sob a violência de anátemas. Findando esbofado, despediu-os “com Deus” como se os enxotasse.

E começou a retirada dos casados aos apertões através da turba. Os maridos, atropelo, trocavam as mulheres e riam-se, faziam chalaça: ”Uai! Ocê ficô atrás... Caminha, criatura”. E iam indo, d’esguelha, esbabaforidos. Os parceiros cuprimentavam-nos, desejavam-lhes felicidade e eles sorriam, davam de cabeça, faziam convites para a cabana: “Aparece logo mais... Vai lá...”.

E a capela ficou mais folgada. Já as mucamas providenciavam para os batizados — uma com a bacia de prata, toalha de crivo ao braço; outra com a salva onde iam os Santos Óleos e o sal. Ardiam sírios e, na barafunda, as crianças choravam assustadas.

Moleques, já crescidos, faziam caramunhas, refugando com medo; outros, ao colo das mães, escancelavam-se aos berros, esperneando, emaranhados em fitas; e pequeninos, muito aconchegados ao seio materno, uns dormindo, outros em espertina curiosa, chuchando o dedo, a olharem tudo.

As madrinhas, em círculo, apresentavam os afilhados, diziam-lhes o nome e o padre ia dum a outro abreviando mascavadamente o latinório e as cerimônias sacramentais.

Por ocasião do batismo foi um reboliço — à medida que o padre despojava uma cuia d’água à cabeça da criança inclinada sobre a bacia a choradeira, comunicando-se, crescia atrodora.

Os pequeninos estremeciam, ainda deglutindo o sal, agitando-se, rompiam aos guinchos debatendo-se. Os molecotes barafustavam escabriados, esfregando a cabeça.

E ao alarido das crianças juntava-se o vozeio das mulheres, umas acalentando, outra repreendendo os filhos; as madrinhas ciciavam ninando os afilhados e eram mimalhices ou repelões carrinhos ou ameaças — esta a afagar um pequerrucho, aquela a sacudir um crioulinho pelo braço para que não cuspisse o sal nem passasse a manga do paletó pela testa limpando os Santos Oleos.

E as mães sorriam desvanecidas com a gritaria dos filhos — bom sinal, presságio feliz — e, intimamente, pediam a Deus por eles, que lhes desse uma boa sorte, satisfeitas por verem-nos cristões, isentos de culpa, recebidos na Graças celestial; e levavam-nos com mais ternura, como se naquela hora mística os houvesse recebido de Deus, das suas próprias mãos divinas, para o amor, para auxílio e consolo na vida.

Fora a sineta repicava com frenesi, pipocavan foguetes e, como em aleluia, ria-se, cantava-se e os instrumentos iam-se pondo acordes em músicas de folgança.

A mesa de Manuel Gandra, mais estirada nesse dia e opipara, ficou de ponta à ponta apertadamente cheia.

A baixela das grandes ocasiões lá estava ostentando riqueza; lá estava o numeroso aparelho de porcelana da Índia e toda a louça comum andava em serviço. O aspecto da mesa vasta, abarrotada, dava abastosa impressão de enfarte.

Havia de tudo abarrisco — pratarrazes à ufa: o sarrabulho em monte a reluzir gorduroso, travessas atestadas de costeletas, cogulos de arroz de forno enturrado em tom louro, com embutidos de azeitonas e rodeadas de paio, terrinas de ensopados, rolos de linguiça; o lombo de porco, o leitão, o perú, fritadas, postas imensas de assado e compoteiras de doces, pirâmides de balas, ladrilhos de coco e de leite, bolos, pudins, tortas, forminhas, cremes, geleias, queijos frescos, de casa e do Reino.

A vinhaça corria copiosa, aos copásios e, alegrando pomposamente a mesa, entre as abundantes victualhas, jarrões de porcelana antiga frondejavam em flores.

A sala regorgitava. Pessoas, sem lugar à mesa, enchiam um prato e, descerimoniosas, rindo, iam comer à varanda.

Era um atropelo, uma lufa-lufa de negras e de moleques trazendo terrinas, frigideiras que ainda chiavam, bandejas de copos, levando rimas de pratos, abarcando feixes de talheres.

Pisava-se comida.

As mucamas faziam prodígios atendendo a um e a outro e rindo, faceiras, propunham um passeio à roça, depois do almoço, visita às cabanas festivas e, à noite, cateretê e danças francesas no salão do engenho, já preparado.

Contemplando a comesaina, Gandra sentia-se bom; impava de orgulho à cabeceira da mesa, entre o padre e a esposa que ofegava, esparrimada na cadeira, com uma negrinha ao lado, muito lerda, sacudindo maquinalmente um ramo verde para espantar as moscas.

E era um zum-zum de cortiço nos corredores, gente que se juntava para ver, velhas negras, crioulos e negrinhas.

Cães metiam-se debaixo da mesa farejando migalhas, rosnavam; por vezes abocanhavam-se raivosos.

Um berro rolou em lamento, outro        logo e vários, soturnos, duma tristeza agourenta. Alguém explicou: “É o gado que está chorando no sangue do boi morto”. E ria-se da saudade dos animais que, em ronda melancólica, bufando, escarvavam a terra escura onde fora sacrificado o companheiro.

Mas o grande jubileu, esse era celebrado pelos recantos da fazenda, nos palhiços dos escravos.

Mal se dispersou a gente, despedindo-se à porta da capela, seguindo cada qual a seu rumo pelas trilhas da roça, começou a festança. Cabana de onde houvesse saído casamento ou batizado barulhava em pagode.

No ranchinho mais pobre havia, pelo menos, uma galinha, uma garrafa de cachaça e laranjas. Em alguns, porém, afogados em milharal ou com a roça de mandioca em volta, a fartura transbordava em regabofe no terreiro por não comportar a sala, escura de felugem, a afluência de convidados.

Comia-se em esteiras, à sombra das árvores; pedras, caixotes, toros, tudo era assento. A feijoada era servida no próprio caldeirão em que fora feita, o sarrabulho atupia a frigideira de barro, o arroz adunava-se, louro, em alguidar novo; panelas de barro, latas, tudo cheio e cheirando.

À falta de talheres arrancavam-se, à unha, nacos de leitão, com a códea encoscorada, estalavam-se carcassas de galinhas; alguns desembainham faces de ponta, abriam canivetes de mola e espetavam costeletas ou espostejavam o assado. Havia-os a comer em têstos, em tampas de latas, sentados no chão, com o codório ao lado numa tigela e laranjas que chupavam às talhadas, chuchurreando lambusadamente.

Levantavam-se com as mãos lustrosas de gordura, iam à aguazinha, perto, num bicame de telha, lavavam-se, bochechavam atirando borrifos às folhas e, metendo-se à sombra, entouridos, estiravam-se resupinos gozando a frescura em sonolenta, empanturrada preguiça.

Outros vira-mexiam irrequietos — iam à moenda, entalavam canas e o caldo gorgolejava espumante ou varejavam o pomar trazendo laranjas, bananas, o que encontravam à mão.

Era já desperdício, pretexto para graçolas, necesidade trêfega de fazer alguma coisa.

O café cheirava saboroso escoando do saco numa terrina, cada qual chegava com a sua tigela, bebia ali mesmo.

Ao fogo, na trempe de pedras, a chaleira fervia aos gorgolhões fazendo trepidar a tampa e na cinza era a batata doce a assar, eram estouros de castanhas de caju rechinando oleosas.

A lenha seca lá estava, em estância, a um canto, para a fogueira, à noite.

Ainda havia gente comendo e já os músicos, de lenço ao pescoço, o cigarro pendurado dos beiços, afinavam os instrumentos.

Palreiros, excitados, propunham brindes, cantavam-nos tilintando nos copos, levantavam hurras! Os noivos agradeciam rindo ou era a criança que, reclamada aos berros, vinha nos braços do pai ao colo materno receber os cumprimentos da rapaziada.

A ebriez acendia-se manifestando-se em alegria descompassada — um a pinotear, outro a pendurar-se dos ramos, balançando-se; este às cabriolas, aquele saracoteando com um galho ao peito, à guisa de viola, zangarreando de boca. E mais cana! ”Eh! Gente, não dêxa esfriá... Manda mãi preta, manda! c’a sua fiinha branca. Manda!“ “E pai João barrigudo!” acrescentavam. ”Dêxa de miséria, gente. Bóta p’ra fora!” E o garrafão apareceu e foi recebido com palmas.

Mas as violas romperam álacres, entraram os violões, os cavaquinhos repinicaram. “Junta, povo! Guenta!” Era o samba.

Saltaram dançadores castanholando, picando, replicando o passo, a pedir damas e, em pouco, fechou-se a roda e o zagaralhar dos instrumentos esmorecia no frenesi atroante do sapateado, ao barbariso do canto e das risadas.

A poeira subia, flutuava no ar. Pagode.

E o dia, maravilhoso! Céu azul, sol brando, aragem macia, tocada d’aromas murmurando nos ramos.

E por ali fora, alhures, estouravam roqueiras, estrugiam brados, toda a fazenda rejubilava como a uma benção do céu.

Tão intenso era o prestígio da luz, o filtro do azul inebriava tanto que um negro, já velho, seguindo, mais o cão, através da campina, parou ouvindo os vários sons dispersos.

O gado pastava livre, afogado na erva.

Esteve um momento imóvel, cabisbaixo, o rosto em sorriso; súbito, eletrizado, saltou num pincho, volteando o pau que levava atravessado ao ombro e, aos corcoveios, pôs-se a bater os pés grunhindo um canto.

O cão estacou, mirando-o, investiu latindo, aos pulos, e corria em volta, rosnava festivamente; d’ímpeto meteu-se ao pasto, ladrando aos bois que olhavam, mansos, considerando a estranha figura do negro a bailar com a própria sombra, na poeira fina e loura, ao sol.

Macambira e Lúcia, desde que subiram, não tiveram um minuto de descanço, sempre com a casa cheia: mucamas no quarto, em pagodeira, à risota, apalpando a cama, os travesseiros de fronhas de renda, com intenção maliciosa, aos segredinhos; negros pelos cantos pitando. Negras abandonadas grunhiam, cirandavam curiosas, afuroando; bisbilhotando tudo.

A sala, nublada de fumaça, tresandava a catinga, a bafios d’alcool e a sarro.

Ria-se às gargalhadas e o falario cacarejado atroava em confuso tumulto de feira. E havia muafas delambidas, carraspanas lânguidas — uns aos boléos cantando, outros d’olhos amortecidos, babosos, caramunhando piegas com as negras, que esconjuravam e repeliam aos empurrões.

Os noivos, achando graça em tudo, iam dum a outro insistindo para que petiscassem alguma coisa do que havia à mesa; pastéis, fatias de carne, sequilhos, bolos, cocadas. Havia aluá. Volta e meia Rosa aparecia com a bandeja de café; o garrafão de aguardente andava de mão em mão. Lambiscava-se, bebericava-se a rir.

Moleques cabritavam no terreiro, varejavam o pomar sacundindo as árvores que farfalhavam derrubando frutos.

Um negro, alambasado e bêbado, passou horas junto da acácia foleando a safona e tanto se enternecia com o som fanho que se dobrava voluptuosamente, com a cabeça sobre o instrumento, a ouvi-lo, gozando a música, acompanhando-a com um resmungo enfadonho.

O cão ladrava bravio, prolongava uivos e o rumor crescia com a monotonia zoante da sanfona.

Só à tarde esvaziou-se a casa, cessou o rumorejo no caminho e os noivos puderam repousar um pouco, mudar a roupa, cada um por sua vez, em quanto Rosa varria e Balbina arrumava a casa.

Jantaram ainda com sol.

Anoitecia palidamente num silêncio de êxtase quando deixaram a mesa saindo ao terreno.

A paisagem empastava-se em manchas brosladas de sol. O ocaso era uma crosta de ouro e no redente dos montes sombrios as árvores destacavam-se negras em traços fortes como embutidas no céu.

Lentos, diáfanos frouxeis de fumo enrolavam-se nos matos, subiam em espiras tênues esfrolando-se na melancolia do crepúsculo.

Pouco a pouco o cariz das nuvens foi descorando exangue, esbatendo-se em violete, diluindo-se em pérola e a noite espalhou-se sem trevas, duma transparência cerúlea, como um clarão de luar coado por um vitral. Abriram-se limpidamente estrelas infinitas e o misticismo dos serenos astros como que se estendeu a tudo, numa doçura beata.

Os matos amarelejaram lançando faiscas, atassalhando a sombra de labaredas fulvas; dentre as frondes douradas espirravam faíscas e Macambira, de pé à beira da barranca, orientando-se pelo clarão das fogueiras, que abria flânbelos no ar, designava as cabanas pelos nomes dos seus moradores.

— Oia Chico... Ali é Valentim. Naquele claro é Zé carreiro. Lá em cima, o Combe; tá fervendo no samba.

E ria expansivo. Um coqueiro fez-se todo escarlate, esbraseado; o mato fusco, em volta, reluziu, parte da cabana ressaltou da sombra em mancha sanguínea e no terreiro acesso vultos negros, esguios, como carvões pulando em labaredas, tisnavam a fulguração em frêmitos macabros.

Lúcia, de pé, olhava indiferente, como distraída. Sentia-se muito só e aquela grandeza nunca avistada, o mistério da noite, o homem ali perto, a casa onde devia cumprir-se o seu destino, tudo era novo e amedrontava a sua alma timorata. O coração, cheio de presságios, batia-lhe no peito, subiam-lhe angústias à garganta; a imagem de Julinho passava-lhe na mente como um remorso.

Instintivamente levou a mão ao ventre. Arrependia-se de não haver recusado a proposta do senhor, estaria livre do negro cuja ferocidade lhe era desconhecida. E ali estava sem defesa, de todo socorro, só e Deus. Um farfalho nas folhas fê-la estremecer de susto; voltou-se de golpe. Balbina saracoteava no terreiro empunhando facho.

— Macambira, zêri vem aí, fio! disse alvoraçada.

O negro respondeu numa língua rude, áspera e os dois, como escondendo pensamentos, combinando planos cruéis, conversaram sem que ela percebesse uma só palavra. O negro falava com arrogância e a velha trêfega, bambaleando como ébria, a sacudir o facho, que crepitava, respondia aos ganidos, com o rosto encarquilhado em esgares, brilhando ao reflexo da chama.

Cantos melancólicos subiam da redondeza em sons vagos, ora brandos, ora fortes: era o tarambote e logo estrondou o tarantantam dos tambores e resoante, bárbara, a grita do batuque atroou o silêncio azulado.

Dum e doutro ponto, num sulco de fogo, foguetes frechavam e o tumulto redobrava soturno, constante como escacho d’águas.

Rosa acendeu o lampião na sala. A brisa soprava sacudindo brandamente os ramos.

Lúcia, queixando-se de frio, ia recolber-se quando Balbina tomou-lhe o passo. Não parecia a mesma corumba lerda e sorumbática, sempre de cabeça baixa — estava transfigurada: os olhos ardiam-lhe como brasas, a boca escavada crispava-se-lhe em titus hediondo, e ágil, tigrina, volteava casquinando um risinho silvante:

— Ocê já qué dêtá? Ispéra genti qui vem í, povo di Munza. Uai!

Lúcia deteve-se medrosa, sorrindo humildemente.

— Não vou me deitar, não, tia Balbina. Vou p’ra dentro porque ando com tosse e a noite está fria.

— É, não dêta, não. Povo vem aí, gente di Munza; vem tudo, té da Barra. Tudo qui soube vem í. Ocê vai vê.

Vendo a perplexidade da mulata, Macambira explicou carinhoso, sem, todavia, esconder o orgulho:

— É genti di meu pai, genti qui foi du reino. Ocê querendo, fica; não querendo, vai.

A mucama respondeu resignada:

— Fico. Porque não hei de ficar? Não estou com sono. E Macambira falou do seu povo e sua raça, do seu reino, de Munza, repetindo o que lhe contara Balbina. E ajuntou vaidoso: Ocê é rainha.

Ela sorriu. Mas a descrição da majestade bárbara aterrou-a ainda mais. O negro afigurou-se-lhe maior, mais poderoso, mais cruel com o presságio de rei. Olhava-o estarrecida, contendo lágrimas, a tremer toda e gelada.

Por entre os matos passava fulgurando o archote de Balbina. Os atabaques ressoavam profundamente ao longe e as fogueiras, mais vivas, manchavam a noite de clarões vermelhos.

Súbito um grito vibrou longe e agudo. Macambira pôs-se firme, atento.

Um som rascante, estralejado, vinha crescendo estrídulo como um rolar de pedrouços, vozes confusas, guais em coro, trons de tambores, rechuchando de chocalhos, soldos ríspidos e, sobretudo, perene, um rouco e lúgubre grugrulho.

Balbina saltou no terreiro energúmena, desapoderada e pôs-se a zaranzar em volta, riscando com o facho um círculo de claridade. O seu corpo esquelético pinchava elástico e ouvia-se-lhe o arfar do peito cavernoso. E o rumor, mais perto, ora cavo, ora estridente, suplantava os demais ruídos.

Por trás da casa fulgurou um relume, estalidos de lenha rechinaram, subiram faíscas — era a fogueira que Balbina acendera para receber os malungos.

E o caminho aclarou-se vermelhejante, um canto heróico, de notas graves e prolongadas, encheu-o de solenidade trágica.

E ribombaram tambores, o som arranhado do gazá ringiu, cascavelaram trépidos chocalhos e, entre archotes de palma, a farandula surgiu em zanguizarra — negros e negras aos pulos reboleados, uns com plumas à cabeça, colares de cocos, manilhas e pulseiras de penas, esgrimindo paus à maneira de zargunchos, atirando, aparando golpes em duelos; outros corcoveando aos arremessos felinos, rugindo roucos; velhos, em passos arrastados, altivos, com entono senhoril de chefes, mulheres bracejando aos guinchos e, retroando puítas, marimbas, urucungos e as vozes estrugindo em borborinho horrisono que, por vezes, descaía em dolência fúnebre como um canto de morte.

De pé, ereto no limiar da casa, o vulto robusto de Macambira destacava-se soberano entre a moldura dos umbrais.

O rancho negro desenvolveu-se em hemiciclo com os músicos ao centro zangarreando, as mulheres aos guinchos, num saracoteio lúbrico, os guerreiros aos pulos, terçando fimbos e os velhos sempre solenes, bambaleando com um canto monótono.

Balbina delirava em frenesi correndo com o archote de resvalo pela terra, batendo-o num turbilhão de faíscas e o vozeiro tonitroava e mais estrondou quando a turba, apinhando-se, avançou em corrida, arremetendo à casa, como para assaltá-la. Mas Balbina prostrou-se de bruços, grulhando, e todos rojaram-se de borco, com a fronte no solo, rugindo.

Um instrumento soou, todos, em grita, levantaram-se tumultuosamente baralhando-se numa confusão de fogos fumarentos, puseram-se a um de fundo e desfilaram ante Macambira que acenava agradecendo os brados estridentes com que o aclamavam.

Lúcia, retransida, olhava o estranho espetáculo, sem compreender-lhe a significação.

À claridade rubra que alumiava o terreiro as figuras dos negros tinham expressões sinistras; e havia gente de fora, desconhecida, escravos de outras fazendas próximas, todos súditos que haviam sido do rei Munza, que Balbina convidara para a festa nupcial daquele que representava na terra do cativeiro a estirpe dos fortes reis do deserto, caçadores de leões.

Havia-os moços, pegados pequeninos e trazidos na corrente, a maioria, porém, era de velhos, grisalhos, todos com lanhos nas faces e verrugas na fronte, assinalados no berço.

E o bando evolveu em marcha batendo sonoramente os pés ao ritmo dos instrumentos precedido pela negra, e flanqueou a casa indo estanciar no terreno, ao fundo, onde a fogueira flamejava em labaredas altas, clareando os arredores até a encosta do monte.

Macambira ficou estatelado à porta, em arroubo, cabeça a prumo, sugestionado pelo estupendo cenário onde se realizava o seu sonho.

De todos os desvãos subia o burundum dos atabaques, cantos e ecoavam em sons vagos enchendo a noite dum perene ressou e, ali perto, fremia na terra o tripúdio da sua gente.

E lembrou-se de Munza, seu pai, o mísero rei, exilado no opróbio, grande, possante, altivo, mas sempre taciturno, trabalhando de enxada entre antigos vassalos, no mesmo carreiro, sob a vigilância de um feitor que o humilhava, a ele, rei de uma nação de valentes e vencedor de reis.

A dança barulhava estrupidante. O negro sentia-se atraído — o sangue estuava-lhe no peito em fervor heróico e lá em baixo, por aquelas terras além, tudo era festa de negros: cabanas acesas, fogueiras ardendo, a barafunda estrondosa do batuque, do samba, a grita ebricitada — era bem a cabilda vasta, o seu reino alvoraçado em alegrias de triunfo como depois duma guerra devastadora. E por aquelas sombras, longe, adivinhava monstros.

Voltou-se d'improviso: Lúcia estava sentada, junto à mesa, imóvel. Encarou-a um momento, como surpreendido de vê-la, adiantou-se, estendeu-lhe a mão num gesto inconsciente, aturdido com o reclamo da orgia bábara e, sem poder dominar-se, disse-lhe aos ofengos:

— Oia, Lúcia, eu vou lá fora um bocado. Ocê não zanga? Parece feio dexá eles sozinho, ocê não acha? Ela sorria submissa. Ocê não acha?

— É.

— Ocê não fica zangada?

— Zangada? Por quê?

— Ocê qué ví?

— Não. A noite está fria. Tenho medo do sereno.

— Entonce é um instantinho. Ocê querendo dêtá, dêta. Encosta a porta mod’u frio.

— Sim.

— Entonce até já.

— Até já.

Foi-se. No terreiro parou um momento olhando soberanamente os halos das fogueiras dispersas, ouvindo o retumbar dos tambores longínquos. Mas o seu povo lá estava.

Lúcia chegou à porta. A noite era linda, suave no céu todo em brilhos de estrelas. Encostou-se ao umbral. O vozerio cresceu estriduloso ao fundo como num bradar de catástrofe.

A mulata estremeceu, lágrimas rebentaram-lhe dos olhos, um grande medo apoderou-se dela: sentiu a morte e, fraca, como uma vítima ante os sacrificadores, vendo em torno canibais em fúria, recuou e, deixando-se cair em uma cadeira, inclinou-se à mesa, rompendo em pranto, certa de que, dentro em pouco, acabaria às mãos do negro e, horrorizada, levantou a cabeça relanceando assombradamente o olhar em volta como à procura do próprio cadáver.

Era tarde quando Macambira empurrou a porta que ficara encostada. Apesar da luz do lampião esbarrou em uma cadeira, derrubando-a. A mulata, que o barulho despertara, sentou-se na cama estarrecida, à escuta.

Troavam, ao longe, soturnos, os últimos rumores. O negro pigarreou. De repente fez-se escuro.

Lúcia sentiu-se como soterrada: a treva pesou-lhe, abafou-a. Deitou-se devagarinho, encolhida, contendo a respiração, a tremer, toda fria.

A porta do quarto estalou e, sentindo os passos do negro, vagarosos, sorrateiros como os dum assassino, a mulata arquejava arrepiada, com lágrimas, transida num pavor de morte.

V

Lúcia despertou em sobresalto. Sentou-se na cama assustada, nervosa, o coração precípite, relanceando airadamente o olhar. Mas na quieta penumbra reconheceu o quarto, os móveis e, num relâmpago, recordou todas as cenas da véspera, desde o casamento na tumultuosa capela até o decisivo, angustioso instante em que se achou nos braços do negro entre o amor e a morte.

Respirou largamente, a sorvo, como se voltasse à vida e esteve um momento cabisbaixa, esfiando maquinalmente as franjas da colcha; por fim imobilizou-se, d’olhar fito, numa inércia de anestesiada.

Um inseto voejava zumbindo, aos baques pelas paredes. Uma fita de sol, polvilhada de ouro, estampava um disco no mármore do lavatório.

De repente a mulata voltou-se para o travesseiro em que dormira o marido, mirou-o, apalpou-o premindo-o maciamente. Onde estaria ele? Porque saíra? Teria dado pelo mal? Então, arrojando as cobertas, examinou a camisa desde a fimbria. Nao! Não dera! Sentia ainda na boca a impressão dos seus beijos sôfregos, ouvia-lhe ainda, no hálito morno e ácido, as entrecortadas palavras que prometiam e exigiam promessas, doía-lhe ainda o corpo da lasciva tortura daquela noite. Não...! Se ele houvesse sentido... deu d’ombros arregalando os olhos, estirando o beiço.

Que horas seriam? Andavam lá fora, na sala; falavam. Pôs-se atenta, à escuta. Muito longe, nas terras baixas, chiavam carros. Devia ser tarde.

Levantou-se descalça pisando na esteira, depois na friagem do soalho. Tornou arrepiada à cama, envolveu-se na colcha, muito aconchegada e contente. Enfim...! Súbito representou-se-lhe ao vivo a traição de que fora vítima poucos dias antes do casamento.

Julhinho, que andara pelos ranchos e no “quadrado” traçando o casamento, preparou-lhe a tocaia numa volta de mato, caminho do rancho de Maria Luiza, onde ela fora por umas costuras.

Distraíra-se com a companheira, que era alegre e sabedora de casos e, quando se despediu, já a tarde escurecia. Os sapos engrolavam no açude, morcegos esvoaçavam, luci-luziam pirilampos.

Desceu pelo carreiro, atalhou por uma vereda no meio do massambará.

Ao sair no caminho deu com o senhor moço, sentado na sapopema d’uma figueira. Bateu-lhe o coração presságio. Estacou indecisa, encarada no moço que sorria cinicamente vergastando o mato com uma vara de goiabeira.

Olharam-se um momento e ela, sem pinta de sangue, trêmula, desamparada num ermo como aquele, hesitou. O estudante assobiava como distraído, flagelando lentamente os ramos com vara.

— Eu quero passar, nhô Julinho.

Ele levantou o olhar:

— Passa. Quem te pega?

— O senhor não veiu ficar aqui à toa. Eu quero passar. Podem ver o senhor aqui comigo e eu não quero. 

Ele levantou-se d’ímpeto, colérico, encolhido como para um bote. Atirou longe a vara e investiu afrontando-a injuriosamente:

— Que é, sua porca? Não queres que te vejam comigo por causa de Macambira? E desprezível, com asco: Não tem vergonha... Uma rapariga quase branca casar com um negro...

— Que é que o senhor tem com isso?

— Que tenho! Tenho muito, coisa. Não quero! Ela acenou superiormente:

— Isso agora...

Mas o rapaz avançou, agarrou-a e, falando-lhe no rosto:

— Que é que você está dizendo? diz!

Ela sacudiu-lhe a mão, desvencilhou-se e, numa rabanada, retrocedeu. Julinho tomou-lhe a frente, deu um safanão ao casaco, sacou da cava um punhal e, cerrando os dentes, ameaçou-a em voz surda, apontando-lhe a arma ao peito:

— Olha Ignácia...! Olha Ignácia!

Ela recuava espavorida, a boca aberta em hiato, batendo as mãos num frenesi de medo, gaguejando um choro de criança. Por fim atirou-se desatinadamente ao mato, mas os vestidos prenderam-se-lhe nas ervas, nos carrapichos, a galharia embaraçou-a e Julinho agarrou-a.

Voltou-se lesta, afogueada, em atitude de defesa, mas estarreceu vendo luzir a lâmina; tremia nas pernas bambas, com a vista turva, o corpo fervilhando em formigamento.

De improviso Julinho atracou-se com ela apertando-a como se a quisesse esmagar; levou-a d’encontro à árvore, suspendeu-a nos braços, deu com ela em terra, forcejando para derrubá-la; dobrando-a pela cinta e ofegavam, rugiam:

— Deixa! Deixa, seu diabo! Nhô Julinho...!

— Que é que você pensa?...

Ela curvava-se como a quebrar-se, debatia-se, procurava mordê-lo. Caíram abarcados e foi um rebolcar frenético, uma luta de feras nas ervas altas. Por fim, raivoso, subjugaudo-a, Julinho pôs-lhe um um joelho no ventre, apertou-lhe a garganta com furor homicida.

As lágrimas, então, saltaram-lhe dos olhos; debateu-se em escabujamentos evitando-lhe os beijos, cuspindo-lhe à face, ameaçando mordê-lo, mas a vista turvou-se-lhe nublada, o coração cresceu-lhe no peito, sentiu uma angútia mortal...

Quando tornou a si estava só. Era noite negra, grilos faziam estrepito, cruzavam-se vagalumes. Com o respirar da aragem era suave, harmonioso o sussurro dos ramos.

Sentou-se espavorida, gelada. Sem forças para levantar-se deixou-se ficar em lassidão dorida, chorando silenciosas lágrimas. Aterrava-a a ideia de encontrada ali por alguém que fosse espalhar a sua desgraça, denunciá-la ao noivo como uma perdida igual às outras, da mesma laia infame.

Levantou-se a custo, alquebrada, amparando-se a um tronco: É verdade!... Ficou um momento pensativa, num atordoamento. Por fim caminhou passo a passo, apoiando-se às árvores, agarrando-se às ervas, cortada de dores. Deu volta pelos fundos da casa.

À porta da cozinha, sob o alpendre, uma negra socava café no pilão. Passou ligeira, entrou em casa, atravessou o corredor deserto, meteu-se no quarto e, trancando-se por dentro, atirou-se na cama em soluços.

Pensou em dar parte aos senhores, dizer tudo, tudo! mas para que? E as outras, Lucinda, Florentina, Ignácia, Maria da Glória... Que lucraram elas contando? Troçavam-nas e, ainda por cima, a senhora descompô-las, ameaçou-as com o tronco.

Lucinda, essa então, coitada! mais leviana, perdida duma vez, dando-se a um e a outro, acabou na ponta da faca de Mangalô, por ciúme, numa noite de samba. Contar...! Morreria com o segredo ou só o diria na hora extrema...

***

E respirou — acenderam-se-lhe de alegria os olhos, abriu-se-lhe um sorriso. Estava livre! Passara o perigo! Agora era esquecer o passado, ser dele só, de Macambira, só dele! Ceder, nunca mais! E não teria sofrido o ultraje se não houvesse perdido os sentidos com medo da morte.

Contava com a perseguição de Julinho, isso era certo! Mas não cederia, nunca mais! Nem que tivesse de morrer. Sacudiu a cabeça e os cabelos soltaram-se-lhe frouxos pelos ombros, envolveram-se-lhe o busto. Os olhos fitos reluziam, as narinas batiam-lhe. Nunca mais.

E tinha pena do negro, tão crédulo, coitado! Nhô Julinho só por gabolice seria capaz de espalhar o que fizera. Detestava Macambira e a sua vaidade era possuir todas as mulheres, ter filhos de todas, ser o “garanhão”, como dizia Tiburcio.

Uma ideia atravessou-lhe o espírito. Aprumou-se hirta, lábios entreabertos, olhos dilatados, levou a mão ao ventre alisando-o, apalpou os quadris. Pôs-se de pé e, levantando a camisa, mirou-se longamente procurando no corpo os vestígios do que temia.

E se estivesse?! O sangue fugia-lhe do coração, entibiava-se amolecidamente. Caiu sentada na cama. Não, não era tempo. Só lá para o fim da semana. E esteve... esteve!... alisando as coxas, perdida no pensamento lúgubre. Levantou-se, foi à janela do fundo, forçou o loquete — estava emperrado, colado à tinta, mas girou e a janela abriu-se d’estalo.

Um jorro de luz entrou explosivamente no quarto e com ele o ar e os frescos murmúrios da manhã alegre. A magnólia reluzia ao sol e o monte estava todo domado. Era dia alto.

Cerrou a janela e ficou a olhar distraída. Um vulto esgueirou-se entre as ervas, galinhas correram em debandada.

Bateram à porta. Voltou-se sarapantada, correu a refugiar-se na cama; cobriu-se, muito encolhida.

— Ocê inda não cordô? Era Balbina. A negra empurrou a porta e apareceu, muito esguia, na fresta luminosa. Ocê inda ta drumindu?

— Não.

— Uai! É mai di dez hora. Só' vai longi. Ond' é qu'ocê qué i co'essa lombêra? Casa tá í p'r'arrumá, home tá lá fora esperandu, i ocê í nu bem bom. Pensa qu'é só casá, infiá ané nu dedu? Poi sim! Vida custa. E entrando vagarasa, mais meiga, chegou-se à cama, apanhou a colcha que arrastava e, com a mão no queixo, interrogou de cabeça, maliciosamente: Entoce? A mulata escondeu o rosto, vexada. Hum! Ocês...

— Vou levantar já, tia Balbina.

— Livantá... Livantá... Fica, tá brincandu. Qu'é qu'ocê tem qui fazê? Fica, pruveta cama. Si qué livantá, livanta; sinão dêxa. Sirviçu tá feto. Esta semana eu tô í, dipoi ocê qui s'arrumi. Té logo. Pruvêta. Qué café?

— Não, tia Balbina; eu vou lá fora. Levanto já.

A velha sorriu, atirou-lhe uma palmada ao flanco roliço e repetiu:

— Entonce!? E, acocorando-se, perguntou em segredo: Ocê qué banhu aqui?

— Não senhora. Eu vou lá.

— Não custa.

— Não senhora.

— Bom.

Foi-se, encostando a porta. Lúcia passou os braços pela cabeça, em arco, estirou-se, cruzou as pernas e esteve ainda um momento pensando como quem se inclina sobre um abismo medindo o fundo, notando as arestas de rocha de que escapou por milagre.

Lúcia enxugou uma lágrima. Macambira deu d’ombros, nervoso, respirou forte e pôs-se firme, cabeça alta, carrancudo. Logo, porém, passando-lhe um braço pela cinta, atraiu-a a si e, amparando-lhe o queixo, levantou-lhe carinhosamente o rosto e, encarando-a a fito, perguntou baixinho.

— Qu'é qu'ocê tem?  Ela coleou-lhe esquiva no braço como para escapar-lhe. Qu'é qu'ocê tem? Ocê não tá no seu naturá. Diz qui é...?

— Nada, e debruçou-se sobre os joelhos.

— Não, ocê não anda boa. Ocê não come, não dorme dirêto, é só incafuada nus canto chorando. Modi quê? Ocê sente a'guma cosa?  Olhou-a muito meigo, sorrindo. Ocê qué a gente sai amenhã di madrugada — eu tenho d'i na Barra, ocê pruvêta u carro di lenha i damo uma chegada no seu dotô Custod'o. Ele teve aqui na sumana passada... visita agora só p'r'u mês. Mió é a gente i lá. Ele vê ocê i tá cabado. Qué?

Ela acenou negativamente.

Estavam sentados no banco, sob a acácia. Um momento o silêncio enleou-os. Por fim o negro humildemente aventurou:

— Quem sabi s'ocê tá rependida, Lúcia?

Ela aprumou-se de golpe, muito direita e altiva, olhou-o remordendo o lábio, com duas compridas lágrimas nas faces, e sorriu docemente, resignada. De novo inclinou-se, apanhou uma folha no chão, pôs-se a mordicá-la, d’olhos fitos no céu que entristecia no desmaio da tarde.

A aragem fresca espalhava o aroma citrino das magnólias e o sussuro moroso das folhas tinha a doçura misteriosa de vozes que se distanciam. Toda a várzea esfumava em bruma diáfana.

Poços d’água entre as ervas brilhavam como cacos de vidro. O brejo alastrava lustroso, sumia-se no açucenal em flor, reaparecia além irradiando em veios reluzentes; o rio estava como coalhado e o açude, largo e sereno, reproduzia profundamente o céu esmaecido.

Os montes, dum azul sombrio, tinham os rebordos frizados d’ouro e longe, no cariz do horizonte, o alto recorte da serra ardia em lumaréu com as árvores em filigranas negras aplicadas em renda sobre o fundo cinábrico do ocaso.

Cigarras chiavam ziantes, outras cacarejaram e na mata zoava um perene zumbido.

Pela estrada da várzea, desenrolada em voltas brancacentas, recolhiam vagarosos bois; um, por vezes, detinha-se, estendia o pescoço e, pouco depois, rolava o mugido tristonho. Negros cruzavam-se nos carreiros, cães latiam e, dentre os matos densos, como de coivaras que começassem a arder, subiam fumos ralos.

O céu, nos redentes longínquos, ficou marchetado, como de nacar; mas as nuvens foram descorando o esbateram-se em violete pálido. Uma estrela luziu solitária. Os grilos cantaram mais alto.

Lenta, no silêncio, a sineta da capela soou Ave Marias. Os dois ergueram-se, persignaram-se. Uma voz, lá em baixo, aboiou e houve como um êxtase beato.

— Suns Cristo... Era Balbina. Rompeu do mato no alto do caminho com uma moganga e um feixe de ervas. Parou resfolegando, deixando cair a saia que levava arrepanhada, e suspirou: Ui! Essa subida mata. Adiantou-se vagarosa, encarando Macambira, perguntou, ainda ofegante: Sé falô co' sinhô? Zêri andava caçando ocê lá imbaxo...

— Sinhô?

— Quem havéra di sê? I ocês não cança di dirritimento? Esse é vida? Oia só... hum... hum! e espocou um muxoxo. Olhou o chão em torno como o cão antes de deitar-se e, entregando a moganga à mulata, disse: É di roça d'Ignácio. Deixou as ervas no banco: Esse é cambuquira.

Então agachando-se, a gemer, apoiou-se no banco e sentou-se no chão, toda encarangada. Macambira pôs-se de pé, acendeu um cigarro e disse:

— Vou vê sinhô. Isso é côsa p'ra seu Zéca... Home tá duro.

— Ocê vai na Barra?

— Amenhã di madrugada, si Deus quizé. E voltou-se para a mulata: Entonce? Bamo? Ocê vê duma vez qui tem, dá um passeio... Ma' precisa livantá cedo: carro sai ante das quatro. Qué?

— Não.

Balbina fez-se de enfezada:

— Já ocê qué levá Lúcia p'r'u pagode. Dêxa muié in casa, vai ocê só. Ninguém comi ele, não.

— Lúcia tá duente, pricisa i no dotô.

— Ah! nada... Duente? Duente di quê? só s'é di barriga cheia. Cuméça, cuméça cum muita côsa dipoi, dipoi...! Esses buzumuca u qui qué é isso mêmo. Cuméça... Ele ainda esteve um momento parado, a fumar, como à espera de que a mulata se decidisse; por fim resolveu-se: Bom, té já.

E foi-se, ladeira abaixo.

Balbina bateu com o cachimbo na palma da mão, atulhou-o de fumo, acendeu-o e pôs-se a pitar a fumaçadas lentas, distraída. Lúcia inclinou-se com os cotovelos nos joelhos, o rosto nas mãos e ficou a olhar perdidamente.

Escurecia, já a várzea desaparecera na sombra; as montanhas como que se aproximavam e desciam, abafando; a mata parecia estuar mais perto — ouvia-se-lhe o estrondoso marulho das frondes, o rechino do bambual, o esfrolar preguiçoso das palmas dos coqueiros.

Uma suindara passou no ar em voo frouxo, chirriando; morcegos descreviam voltas e, lá em baixo, a faiscação dos pirilampos fazia pensar nos duendes que assombram a gente nas encruzilhadas.

Mas o céu foi-se tornando mais claro, semeado de estrelas. Luzes brilhavam nos matos. A instantes um mugido atroava, um cão latia. Lúcia levantou-se molemente, preguiçando:

— Ond'ocê vai?

— Acender o lampião.

Foi-se. Pouco depois uma claridade explodiu na sala, logo extinguiu-se. Por fim a luz firmou-se aclarando as paredes, chegando ao limiar.

— Vem p'ra cá, tia Balbina.

— Aqui tá bom, tá fresco.

A mulata desceu a soleira, sentou-se no degrau.

A noite enchia-se de vozes estranhas: os sapos coaxavam, gargarejavam, malhavam; eram trissos, zizios sutis, estrilos, pios crebros e, de quando em quando, numa lufada mais forte, o farfalho das ramas escachoava como um rebojo d’águas.

— Sabe, tia Balbina? parece que estou pegada.

— Ocê?

— É verdade!

— Ma divera?

— Ora... até hoje, nada. E ando que só Deus sabe.

— Isso, às vezes, é fraqueza.

— Qual!

— Antonce, rapariga, é guentá. Qui vai fazê? Ocê não casô? guenta. Agora é tê cuidado, não fazê maluquice i dexá vi. Fio é Nos'Sinhô qui manda.

— É... mas a gente sofre.

— Uai!

Calaram-se. Lúcia pensou em Macambira, logo, porém, lembrou-lhe Julinho e a figura do sonhor moço impôs-se à do negro. E se fosse dele!? Podia ser... Balbina escarrou, silvou uma cusparada, e, resmungando, levantou-se. Caminhou para a casa arrastando pesadamente os pés inchados. A mulata suspirou preocupada:

— É verdade, tia Balbina...!

Mas a negra falou com autoridade:

— Natureza às vez discança. Podi sê qui não seja. Isp'rimenta um chá d'erva cidrêra. Meditou um momento. Ocês já tem um mês di casado?

— Quasi... e eu esperava no fim da primeira semana.

— É... I ocê tá triste mod'isso?

— Medo, tia Balbina. É brincadeira!?

— Ah! medo... Medo di quê? E as outra?... Oia Joana... nem peito p'ra dá di mamá... não tá í cum molecão d'aqueles...? Qu' é qui teve? Ant'isso du qu'uma febre. Não faz maluquice i dêxa tá. Eu tenho parado muito moleque, paro o d'ocê tamém. Medo... Quando a gente meno pensa bicho tá í, berrando. I Macambira já sabi?

— Não. P'ra quê?

— Uai! Cumu p'ra quê? Antonce ele não é u pai?

— Não, quando eu tiver certeza. Por ora não. Pode ser outra coisa, p'ra quê? Eu tomei água de coco, suada. Pode ser.

— Ocê é qui sabi. Pera í, dêxa eu passá.

Apoiou-se ao umbral e entrou em casa.

O segredo pesava a Balbina — tinha-o na língua a pruí-la e, no primeiro ensejo, ainda que sem propósito, comunicou-o a Macambira, asperamente, no tom enfesado com que sempre falava, até quando queria agradar. Era assim com os íntimos — rude, seca, arrabatada, resmungona, sempre de trombas, aos repelões, engrolando ditados e metáforas de mau agouro.

Era meio dia e abrasava. À beira dum aguaçal, onde as táboas altas espanejavam penachos, andavam porcos fussando, bácoros atolavam-se na lama morna, sob o voo perseguidor das moscas. Macambira subia do engenho a caminho da roça quando, ao passar perto duma grota, a negra, que apanhava inhame, bradou por ele dentre as largas folhas metálicas que reluziam ao sol. O negro estacou atarantado relançando o olhar — viu os porcos, mas não descobriu a velha e buscava-a quando ela o chamou de novo em tom ríspido, como se o repreendesse:

— Eh! Macambira, cê tá tonto?

— Uai!

A cabeça da negra, sempre refoufinhada, emergia do inhamal.

— Oia, vai preparando gimbo qui fio vem aí, tá 'scutando? Fio vem aí. Ele não percebeu a alusão e ficou a olhar arvoado. Ela insistiu caramunhando e acenando gestos expressivos. Ocê tá oiando sarapantado? Não tem qu'oiá. Fio vem aí mêmo. Subiu do carcavão agarrando-se às ervas e, em cima, com a caraça luzindo ao sol, sacudiu as mãos enlameadas, limpou-as nos molambos e, chegando-se muito ao negro, esclareceu o mistério: É Lúcia qui tá di barriga.

Macambira fechou a cara, sobrecenho; mas como a negra asseverasse, arredondando os braços ante o ventre, onde a saia sungada formava uma rodilha, soltou uma gargalhada:

— Quá!

— Quá?! Ocê vai vê. Zêri mêmo falô lá im cima, zêri mêmo. E de mãos nos quadris, impinada em recacho: Antonce? I ocês não tá casado? Cumu é? Zêri tá di mês. É juntá gimbo, fazê rôpa. Ocês pensa qu'é só casá? Pecado vem logo. Guenta!

Ainda incrédulo, d'olhos fitos nela, ele duvidou:

— Caçuada...

— Caçuada?! Ocê vai vê. Deu uma volta e, espalmando a mão no ar, em promessa: Ocê vai vê! De repente, em tom brusco: Agora não vai correndo lá im cima dizê qu'eu disse. Sunta ocê mêmo.

O negro quedou suspenso, numa emoção que o transfigurava. Os olhos acenderam-se-lhe em lume alegre, o sorriso ficou-lhe estampado no rosto.

Os porcos vinham chegando um a um afocinhando a terra; juntaram-se perto dum cupim; de repente, assustados ou como se fariscassem alguma coisa, arremeteram a correr desaparecendo no mato.

— Mecê tá falando sério, tia Balbina?

A negra franzia os olhos, abotoou os beiços encarada nele e resmungou numa rabanada:

— Hum! tá falando, ser'o, tá. Foi zêri mêmo qui disse.

— Tá bom... Ficou pensativo, d'olhos baixos, raspando a terra com a ponta do pé. Há di si criá, co'a graça di Deus. Té logo! despediu-se pondo-se a caminho, com o sorriso sempre no rosto.

— Oia lá ocê...! bradou a negra ameaçando-o com o dedo.

— Não conto, não...

— Oia lá...!

— Não tem pirigo.

Foi-se contente, orgulhoso daquela notícia, sentindo-se mais homem, triunfante no amor, pai, enfim. O sol ardia intenso. A estrada, de areia, tinha cintilações de mica. As folhas reluziam. Sentia-se a secura, a sede das plantas. O capinzal, dum amarelo dourado e seco, era como um mar de chamas. Gafanhotos estalejavam aos saltos.

A negra ficou na estrada olhando o seu príncipe com orgulho e a ternura traduzia-se-lhe em gestos vagos: meneios da cabeça, acenos das mãos. Pensava no que ele seria entre os seus no reino d'África com aquela figura esbelta, aquele ar, aquele todo viril e a força do seu braço. Grande rei! Fazia-lhe pena vê-lo ali escrava e, por causa dele, odiava a terra, odiava a gente. Quisera ver tudo em ruína, perecendo na mesma catástrofe, tudo!

Macambira ia longe e a velha, para vê-lo ainda, saltou, ágil como uma pantera, subiu à barranca, com a mão em pala ante os olhos e, quando o perdeu de vista, atirou um murro à coxa numa surda revolta contra o destino do seu príncipe, filho de Munza, rei grande.

Vagarosamente tornou à grota e lá no fundo, encoberta pela folhagem larga, pôs-se a cantarolar soturnamente uma toada bárbara.

Macambira ia longe, quase no morro.

Uma aguazinha escorria num rego tomado pela solidonia; adiante era o brejo. O negro atravessou a pinguela, meteu pelo capinzal e, estugando o passo, banhado em suor, ganhou à ladeira e subiu pela sombra fresca das árvores pensando naquele filho anunciado, sentindo-o na vida, quase certo de encontrá-lo lá em cima, meito gordo, engatinhando no terreiro, a tartarear e, acompanhando-o, protegendo-o Lúcia, ainda mais linda naquele êxtase de amor.

Chegou à casa, foi manso e manso até a porta, espiou: ninguém. Entrou pé ante pé, como um ladrão. À porta do quarto estava encostada, empurrou-a de leve. Houve um estalido e logo um grito lancinante. Ele arremessou-se.

Lúcia, em mangas de camisa, saltara da cama refugiando-se perto da cômoda, desalinhada, de olhos muito abertos, numa estagnação de pavor. Reconhecendo o negro como que ainda mais se lhe agravou a emoção: encolhia-se tiritando, encarada nele, descaindo em flacidez como para acocorar-se, a bater os dentes, a agitar em desatino as mãos.

Macambira, atônito, adiantou-se para serená-la: — Uai, Lúcia, ocê não tá mi cunhecendo? Qu'é isso?

Ela olhava-o a fito com o rosto ora a contrair-se em terror, ora a abrir-se em sorriso alvar. Por fim, em jorro, as lágrimas rebentaram-lhe dos olhos afogueados. Levou as mãos ao rosto e rompeu em soluçado pranto debruçada sobre a cômoda que estremecia. O negro adiantou-se, solícito e carinhoso, abraçou-a afagando-a:

— Qu'é isso? Tava brincando. Qui medo é esse? Passei perto, dei uma chegada aqui mode vê ocê. Dêxa disso.

Fê-la sentar-se, deu-lhe água, arrependido do que fizera. Foi-se-lhe remitindo a agitação e, em voz repassada em choro, trêmula, sussurrou:

— Que susto! Não brinca mais assim, isso faz mal.

— I ocê não me cunheceu, criatura?

— Sei lá! Assim de repente... nem sei que pensei. A gente aqui sózinha... Eu estava descançando um bocado. Nossa Senhora! nem é bom pensar!

Sentaram-se na cama, muito juntos e, como ela apanhasse o casaco, ele, sorrindo, ajudou-a a vesti-lo. Então perguntou-lhe baixinho:

— Agora diz: ocê tá mêmo?

— O que?

Ele riu. Ela compreendeu que fora traída no seu segredo, baixou os olhos e murmurou:

— Candongueira! e, com simulado despeito: Tia Balbina é um saco roto. Se eu soubesse não dizia.

— Mas é verdade?

— Não sei; desconfio. Ele abraçou-a num paroxismo, beijou-a grato. Ela aninhou-se-lhe nos braços, mimosa e, olhando-o de muito perto, face a face, disse-lhe: Agora vai bater boca por aí.

— Uai! i é vergonha?

— Olha o meu coração como está. Tomou-lhe a mão, impô-la ao peito. Está sentindo?

Grávida! Para Macambira era a suprema ventura, para Lúcia a certeza era uma angústia. Desde então nunca mais teve sossego de espírito. Acompanhava aterrada a marcha da gravidez. O ventre crescia, arredondavam-se-lhe os flancos: era como se incitasse. Sentia dores, opressões, estalos d'ossos.

Às vezes, costurando ou na cozinha mexendo as panelas, a suspeita fuzilava-lhe nalma: corria ao quarto, trancava-se e, levantando a roupa, examinava o ventre.

Que estaria ali dentro? O coração batia-lhe em ânsia, tinha alucinações: toda a casa enchia-se de vozes, ouvia passos, sentia gente. “Minha mãe do céu! que será de mim...” E, de mãos postas, ateada, imobilizava-se no terror pressago, certa do seu fim trágico, naquele mesmo quarto, entre aqueles móveis, ali!

Conhecia todas as armas de Macambira, pensava em escondê-las: a garrucha, a faca pernambucana, de lâmina cumprida e aguda, a navalha de mola. E, como se aqueles ferros mortais se animassem e, por impulso próprio, investissem com ela, tapava os olhos com as mãos, arrepiada, com um fio metálico irritando-lhe a carne, num frenesi de gritar, de fugir, de lançar-se da barranca às pedras acabando duma vez com aquilo.

Em uma crise mais forte mirando, com ódio, o ventre túmido, detestou-o como inimigo certa de que nele estava a gerar-se, a crescer, o denunciante da violência infame de Julinho. Então, no ímpeto do desvario, fechou a mão, atirou-lhe um murro. Logo, porém, arrependeu-se tocada de piedosa ternura pelo filho: talvez o tivesse machucado, matado até, coitadinho! E passou o dia em tortura, imaginando o filho morto e o castigo do céu.

E a vergonha? Ainda morta, na terra, parecia-lhe que havia de ver e ouvir as companheiras, com Vaca-brava à frente, injuriando-a, lançando-lhe em rosto a traição torpe. E via-se na cova e, em volta, à galhofa, todo o mulherio da fazenda com a depravada cabrocha desbocando palavrões. Escureciam-se-lhe os olhos como em vertigem, reabria-os à luz— era a realidade serena, a indiferença das coisas impassíveis.

E se abortasse? Era tão comum, sabia de tantos casos. Claudina tomara um cosimento de “orelha de sapo” e movera, mas Julia? fizera o mesmo, mais até, ficando entre a vida e a morte, toda inchada, quase louca, e o filho lá andava, coitado! Um langanho, sempre ranhoso, com os olhos cheios de sapiranga e em pus, o corpo aberto em feridas, os dentes podres, uma cabeça enorme, idiota, com uma carinha enrugada de velho, rindo à toa, chorando à toa, vergonha da mãe, desprezo de todos.

Havia outras coisas: casca de romã, remédios de botica, rezas, mandingas. Egídio tinha um segredo, mas obtê-lo é que era; Falar a Balbina? Não, era o mesmo que dizer a Macambira. Enfim!... havia de ser o que Deus quisesse:entregava-se nas suas mãos. Ele bem sabia que ela não tinha culpa — era uma infeliz, uma desgraçada. Ele bem sabia. Obsessa de tal cuidado, sempre apreensiva, o seu gosto era estar só, sem ver gente. Queria o silêncio. Raro descia à casa grande para evitar as graçolas das companheiras, os olhos de Vaca-brava e, a pretexto de “ânsias, aflições, dor no corpo” deixava-se ficar lá em cima com o seu terror, tirando augúrios de tudo.

Se, de manhã, descobria uma falena d'asas espalmadas no teto eram lágrimas, arrepelamentos de desespero; se ouvia a coruja à noite, contrariava o agouro com esconjuros, ia espevitar a lamparina, rezar um credo diante dos santos. As próprias abelhas domésticas, sempre laboriosas, alegrando a residência com o zumbido perene, ela tomava-as como anunciadoras sinistras e revoltava-se rezingando:

— Que mania de Macambira...! Este cheiro de cortiço já enjoa e a gente sempre com a casa cheia dessas porcarias, em risco de ser mordida.

Com o cair da tarde os seus temores cresciam, tomavam vulto as superstições. A casa parecia-lhe assombrada, sempre com avisos: era a madeira aos estalos, portas que se abriam por si mesmas, em silêncio, estrépitos nas telhas e, lá fora, correrias, vozes cochichadas, ais! lamentosos, luzes lívidas cruzando-se, bailando no ar.

Estremecia, toda arrepiada, balbuciando exorcismos, a apalpar nervosamente os bentinhos que trazia ao pescoço.

Às vezes, suspendendo o serão, ia, pé ante pé, sacudir Macambira que dormitava na rede. Forçava-o a sair armado, rondar os arredores da casa.

O cão ia-lhe no rastro farejando, latindo. O negro recolhia paciente:

— Não tem nada. Isso é bicho que anda por aí. Ocê tem medo à toa. Quem vem aqui? ladrão? ria com superioridade. Alma d'ôtro mundo? Dêxa d'isso... Alma é daqui mêmo. Quem morre, morre.

Se o cão ladrava punha-se logo atenta.

Às vezes era um uivo que atravessava doridamente o silêncio. Irritava-se, frenética: “Vai agourar o diabo!” e, descalçando-se, batia com a chinela três vezes no soalho e deixava-a virada de borco para fazer calar o animal. A cama causava-lhe horror. Desde cedo, ainda com o sol fora, começava a bocejar, lânguida de sono. No meio da costura a cabeça pendia-lhe — dobrava-se, com os braços sobre a mesa, e dormia. Balbina lidava com ela, sacudindo-a:

— Vai dêtá na cama, criatura. Ocê ansim não dorme dirêto. Tá cum sono, vai dêtá duma vez. Ela levantava-se, estendia os braços, retorcendo-se, mole, mas ficava como uma sonâmbula, amparando-se aos móveis, encostando-se às paredes, d'olhos fechados, mastigando resmungos. A negra insistia teimosa, Macambira levava-a abraçada.

Atirava-se na cama vestida e adormecia logo num sono de pedra. Alta noite despertava espantada, sentava-se na cama e, na penumbra tremente do quarto, alumiado pela lamparina de azeite, tinha visões delirantes: eram os móveis que cambaleavam deslocando-se, erguendo-se do chão em silêncio, eram sombras deslisando pelas paredes, eram águas que se despejavam d'enxurro, gemidos, círculos de fogo retraindo-se em discos, dilatando-se em ralos, voos surdos pelo quarto, pancadas à janela, sopros. Pensava em despertar o marido, mas o medo paralisava-a. Despia-se devagarinho e fria, gélida, com os dentes cerrados, o hálito escasso, examinava o homem.

Ele ali estava, enorme! o seu assassino. Parecia-lhe um gigante como os das histórias do Oriente que ela ouvira contar e lêra nos serões de casa: a cabeça desconforme, de grenha hirsuta, os braços nus, possantíssimos, peito largo coberto de um velo crespo, arfando robusto na respiração cheia e ronquida.

Sentia-lhe o cheiro caprino de mistura com um aroma morno de campina, ao sol, e tremia transida, pensando na hora em que ele, no furor do ultraje, fechando-se com ela, d'olhos flamejantes, rugiado, com a faca em punho, alumiando, agarrando-a pela garganta levando-a d'encontro à cama, rojasse-a e, subjugando-a sob os joelhos, rasgando-lhe as roupas, abafando-lhe a boca, fosse-lhe cravando fundamente a faca no colo, retalhando os peitos, depois fundo, bem fundo no ventre, revolvendo o ponto em que se gerara o filho infame, chegando com as mãos nas profundas das entranhas, ensopando-as no sangue até senti-la morta, ao lado dos tassalhos do filho, no mesmo charco.

Abria a boca para gritar, estendia os braços implorativos chorando em silêncio e, escorregando devagarinho, deitava-se muito encolhida, com as cobertas puxadas até o queixo, batendo os dentes num tiritar de medo.

Uma noite, deitada de costas, com o ouvido muito apurado aos rumores de fora e aos soídos do silêncio, sentiu que o ventre se lhe contraía e revirava, depois tremores, em seguida um choque como de murro. Soutou-se com medo. Que seria?

O ventre túrgido, liso, parecia bojado como enorme bexiga e os peitos duros, encaroçados, referviam-lhe refertos em apojadura instântanea.

Quis levantar-se, tirou as pernas da cama e ficou sentada, imóvel, atenta à espera de que se repetisse o fenômeno. Reiteraram-se os baques, reaparecerarn os tremores em vibrações fulgurantes e em escabujamentos como se o filho lhe estivesse estrebuchando nas entranhas em angústia de morte. Chamou o marido:

— Macambira, meu velho... tem paciência ... olha aqui.

O negro sentou-se estremunhado:

— Qui é? Qu'é qu'ocê tem?

— Não sei... Estou sentindo uma coisa muito esquisita. Não sei que é. E ofegava, agitava-se aflita, opressa, sem ar. Descaiu sobre os cotovelos e a sua fecundidade ressaltou. Dá cá a mão...

Tomou-a, rolou-a por todo o ventre e o negro, sentindo as convulsões, ficou boquiaberto, estático, mas logo sorriu compreendendo que era a vida ainda empolhada que buscava expandir-se: era o ímpeto do seu sangue, a força da sua carne, a energia dos seus nervos, o surto do seu amor triunfante. Tranquilizou-a:

— Não tem medo, tola; isso é criança qui tá virando. E ria, achava graça na “travessura” do filho, augurando com orgulho, de boca cheia: Êh! esse vai sê bom! Oia só, inda bem não nasceu já tá pinoteando qui nem cabrito. Esse mêmu vai sê bom. Cê tem qui vê co'ele. Não tem medo, não.

E afagou-a, fê-la deitar-se acariciando-a, batendo-lhe de leve no ombro, alisando-lhe os cabelos, amaciando-lhe os quadris redondos, sem sentir no contato daquele corpo fecundo outra emoção mais que a de piedade pelo sofrimento e o respeito sagrado que infunde o mistério.

E mais se lhe acendrou o amor reforçado pela ânsia augusta daquela vida que ele sentia abotoada na carne da mulher, já reclamando a luz, o ar livre, o mundo.

— Ah! Macambira, custa muito ser mãe! Como a gente sofre...!

Ele fazia-a andar.

À tarde, depois do jantar, iam lentamente até à orilha da mata, paravam para ver as galinhas, o porco espapaçado nas palhas úmidas, roncando; chegavam à beira da barranca alongando a vista pela paisagem vasta, entravam no pomar e, entre as laranjeiras carregadas, conversavam sobre o que havia a fazer — ele contente, ela sorumbática, sempre suspeitosa, preocupada com aquele filho que a denunciaria logo ao nascer. Queixava-se do frio, da umidade. Entravam.

A pedido de Macambira, Balbina deixou o seu  "mocambo", lá em baixo, para acompanhar Lúcia.

Dormia no quarto perto da cozinha e, sempre pronta, ainda que resmungando, animava a mulata contando-lhe fatos extraordinários:

— Ocê inda não viu nada! I quando criança chora ni barriga? Esse é qui é! Isso qu'ocê tá sintindo todo mundo sente. É bom siná, siná di criança forte. Choro é qui é... Diz qui criança qui chora ni barriga nasce divinhado. Dêxa di medo. E examinava-a: Cê não tem nada... Recomendava-lhe banhos d'ervas, repouso e sono. Ocê u qui pricisa é cume; ocê ansim niquenta não serve: fruta só não sustenta — comi carne, angú, bebi leite qui dá sustança. Ocê tá magra, varada qui nem cachorro sem dono. Dêxa di medo, come i quando botá cabeça ni travissêro não tem qui ficá variando: dorme.

Lúcia emagrecia a olhos vistos —as faces cavavam-se-lhe e os olhos encovados acaveiravaram-lhe o rosto manchado de panos. O colo e o ventre impavam cada vez mais. Macambira preocupava-se, pedia conselhos a Balbina, queria levar a mulher ao médico, na Barra.

— Ocê parece bobo... Dêxa Lúcia. Lúcia não tem nada. Isso é ansim mêmo. Magreza é d'estado dele. Não come, não dorme... uai! corpo sente, corpo não é di ferro. Dêxa ele intrá nos seis mês i isso tudo passa.

Sempre que descia à Barra o negro trazia uma lambarice: biscoitos, chocolate, maizena, figos e não esquecia o filho com uma coisa ou outra para o enxoval: um par de sapatinhos de lã, uma peça de morim, rendinhas, entremeios, fitas.

À noite, com toda a casa fechada por causa do frio, Macambira, esticado na rede, fumando, acompanhava, com interesse, as discussões de Balbina e Lúcia diante da lata, perfumada a alfazema, onde se iam ajuntando as pequeninas peças do enxoval e intervinha opinando pela cor de rosa para os bordados da manta e dos cueiros e para as fitas das toucas e das camisinhas contra a azul, que Lúcia propunha por ser a cor do manto de Nossa Senhora.

E no céu, duma pureza nítida, as estrelas cintilavam límpidas e a névoa, alvejando perdidamente em prainos e em relevos, dava à paisagem muda o algido e merencoreo aspecto das solitárias regiões polares.

VI

— S'ocê tá cum medo eu falo cum sinhô e ele manda Tibureio nu meu lugá. Tempo tá bom, tropa é sigura.

—Não, vai. Isso ainda não é p'r'agora. Você não vai e volta em quinze dias?

— Uai! in antes.

— Então... Dá tempo. Vai, senhor pode ficar aborrecido. Você já tem faltado muito ao serviço por minha causa. Não quero. Se houver alguma coisa tia Balbina está aí. Eu me arranjo com ela. Deus é grande!

— Oia lá!

Era em meiados de dezembro. A acácia vergava opulenta ao peso dos cachos de ouro e a mata, enfeitada para o Natal, reviçava em rebentos pintalgada de amarelo e roxo, com as claras folhas das embaúbas luzindo, como de alumínio, no escuro lustroso das ramagens.

Ainda esfiavam tênues fumos das últimas coivaras; brumas leves esgarçavam-se nos ares.

Macambira devia partir para a Corte com a primeira remessa de café: já as sacas estavam empilhadas nas tulhas, e a tropa apartada no pasto pequeno, tudo pronto. Mas o nervosismo de Lúcia, agravando-se a mais e mais, punha o negro em indecisão receosa.

A coitada não tinha descanço, não conseguia dormir uma hora a fio: eram logo ânsias, sufocações, peso no ventre. Levantava-se aflita andando pela casa, abrindo janelas numa angústia de asfixia. Balbina não tinha paciência — metia-se no quarto e, para deixar a esteira, era um trabalho. Saía de trombas, resmungando:

— Ah! ocê tamem é muito luxenta. Parece qu'ocê só é qui tem fio. I as ôtra? Oia Rosa, c'a barriga p'ra cada hora tá lá no duro puxand'inxada, i ocê é só risingando, chorando. Ansim tamem não. Pricisa tê pacienç'a.

Enrolava estouvadamente a trunfa, acendia o cachimbo e ficava encorujada a um canto, cabeceando cochilos.

Lúcia fez-se forte, disfarçando o sofrimento para iludir Macambira, com intenção de afastá-lo. E ele, vendo-a andar pela casa mais desembaraçada, fazendo uma coisa e outra, decidiu partir. E animou-a:

— Ocê vai vê; eu vou i vorto e ind'ocê demora. E isso mêmo não custa: na hora é um instante — é mais u medo.

Ela encolhia os ombros resignada:

— Assim como assim... tem de ser mesmo... que remédio! Quem me dera que fosse hoje, ao menos eu descançava.

Na véspera da partida, à tarde, arrumando a maleta, o negro chamou-a:

— Iscreve u qu'ocê qué...

— Não quero nada.

— P'r'ocê ...

— Não quero nada.

Passaram a tarde no banco, sob a acácia que os cobria de flores. À meia noite — havia luar o negro levantou-se devagarinho, chamou Balbina para fazer-lhe o café e na cozinha, à luz da candeia, enquanto os gravetos crepitavam, recomendou carinhoso:

— Oia, véia, toma bem conta dela, não dêxa ela. Ocê fica aqui: sinhô botô Thereza p'ra cuidá du chiquêro. Istende istêra na sala i dorme lá.

— Vai dicançado, fio di Deus. Lúcia não tem nada di maió. Ocê mêmo é qui bot'ele ansim.

O negro tornou ao quarto, entrou pé ante pé, esteve um momento parado diante da cama olhando enternecidamente. Lúcia sentiu-o, voltou-se, soergueu-se sobre o cotovelo e perguntou muito meiga:

— Você já vai?

— J'é hora.

Abraçaram-se em silêncio. Ela desprendeu-se-lhe dos braços, atirou-se nos travesseiros abafando o choro.

— Não chora, tola. Noss'Sinhô tá í. Ainda a beijou, acariciou-a: Adeu! Té a vorta.

Ela abandonou-lhe a mão inerte.

A lua velava muito alta. O terreiro parecia de cal. Toda a paisagem jazia sob uma nívea furfurina diáfana. Tiniam campainhas no silêncio.

Com a partida de Macambira encaminhou-se verdadeira romaria para o monte. A todo instante eram vozes no terreiro:

— Ó! de casa...!

— Mas que dê essa sumida?

— Então isso inda não deu de si?

— Como é que se mora num cafundó assim! Isso só mêmo di Macambira. Ciúme é o diabo!

Entravam: eram mucamas, crioulas, negras velhas e, vendo Lúcia, muito ancha, a barriga à boca, vergada, bambaleando-se em passos arrastados, eram gargalhadas, exclamações:

— Ih! com isso vem remando!

— Cê ansim mêmo é durona...

— Tá í nu qui dá casamento. Quê dê cintura?

E riam. E a mulata, muito lânguida, confessava esfalfada:

— Que já não podia mais. Até estava com medo que fossem dois. E agradecia os presentes que lhe davam: esta, uma galinha gorda para o primeiro caldo; aquela, uma dúzia d'ovos encamisados em palha de milho, um pouco de “puba” para mingau e as devotas ofereciam-lhe orações, bentinhos.

A casa borborinhava. Uma quis ver o enxoval da “criança”, e veiu a lata para cima da mesa: abriram-na, e as peças passavam de mão em mão.

— Foi ocê qui fez tudo?

— Macambira comprou alguma coisa.

Foram ao quarto muito acado, correram a casa toda espionando, farejando. Balbina deixava-se estar na cozinha resmungando com azedume e só aparecia para despedir as visitas:

— Bom, gente, ruma, chega di pagode: é hora di cuidá di casa. Cês não tem qui fazê lá imbaxo? Abri campo, bâmo, bâmo.

— Ah! tia Balbina, qui coisa! a gente não vem aqui pidi nada. Faz mal?

— Faz má, sim: muié quandu tá ansim di tempo pricisa dicanço. Visita é visita. Já viu, já falô... qu'é qui fica fazendo mais?

À tardinha, Lúcia estava sentada à soleira da porta olhando distraidamente, quando Vaca-brava apareceu no alto do caminho, entre os espinheiros, rota, imunda, com um paletó esmolambado, aberto, deixando ver a camisa sordida, em frangalhos, escorrida no peito esbagaxado. A mulata, reconhecendo-a, não pôde disfarçar o espanto e fez menção de levantar-se, mas ficou tolhida.

— Deus têja nesta casa! Êh! êh! uhm! esticou os grossos beiços relanceando em volta olhares coscuvilheiros. Antonce?

Lúcia olhava-a a fito, imóvel, como magnetizada. A cabrocha plantou-se diante dela, de mãos à cinta e, depois de mirá-la, disse em tom arrogante:

— Fica im pé, dêxa vê isso.

A mulata levantou-se como um autômato, d'olhos parados, os braços caídos ao longo do corpo, expondo-se. Vaca-brava examinou-a de beiço arregaçado:

— Hum! cê tá ruim, rapariga... e arreganhava a cara em ritos. Cê tá ruim. Senta! Lúcia obedeceu passivamente, sempre d'olhos nela. Qui pança! Coçou a grenha, escarfunchou o sovaco e, firmando o pé na soleira da porta, disse: Oia, ocê não repare, eu tenho quirido vim aqui, ma ocê sabi qui seu marido tem giriza cumigo. P'ra que busca mais intica? Mêmo aqui tem gente qui não gosta di mim. Eu sabia d'ocê p'los ôtro. Remirou-a mais: Cê tá muito alargada das cadêra; isso é macho.

Inclinou-se, meteu os olhos pela casa, devassando-a e, virando-se, olhou em volta com desprezo, cuspilhando:

— Cê não tá cum boa cara. Toma cuidado! Oia Antonica... Não brinca co' isso, não. Cê tá muito pesada. Faz uma promessa mod'isso vim dirêto i não dêxa nó na saia, óia lá!

Mas Balbina, que fora levar restos de comida ao porco, apareceu com a cuité e, vendo a cabrocha, parou carrancuda interpelando-a desabridamente:

— Qu'é qu'ocê vem chêrá aqui im cima?

— Uai! Vim vê Lúcia.

— Qui vê Lúcia, qui nada! Ocê veiu mas foi suntá. Ninguém qué sabê d'ocê aqui. Oia, si Macambira sabi qu'ocê veiu aqui cê tem qui vê.

— E eu tenho medo di Macambira?! Quem sabi si ele vai mi cume...!?

— Vai t'imbora. Cê não passa duma enredadêra. Um diabo d'asa qui ondi si mete é só p'ra fazê mexido. Vai t'imbora! Vai!

Vendo a velha adiantar-se para a cabrocha, que a olhava d'alto sacudindo a cabeça, Lúcia ficou tão nervosa que se pôs a chorar, torcendo as mãos, frenética. Vaca-brava silvou um risinho sarcástico.

— Gente! Tão vendo só! Ocê parece qui tá caducandu, tia. E, de supetão, intimpou: Oia, curumba, s'ocê dá mais um passo p'ra mim eu ti pego! Ah! tá muito concha co' essa porcaria di casa. Cupim come coisa mió. E de punhos fechados: Toma sintido cumigu! Ocê anda querendu e eu, um dia, pego ocê dirêto. Pensa qui tudu mundu tem mêdu di mandinga? Vem p'ra cá. Mandado na minha porta não fica. Vem p'ra cá.

Os olhos de Balbina fuzilaram, rolou-lhe um rugido na garganta e, crescendo, lançou mão dum pau de cerca e investiu com a cabrocha falando-lhe ombro a bombro, cara a cara.

— Repete u qu'ocê disse s'ocê si chama Donária. Repete...

— Tia Balbina... tia Balbina...!

— Repete, e empurrava-a d'esguelha, ameaçando-a com o pau.

Lúcia interveiu nervosa:

— Que é isso, gente! Deixa disso. Coisa feia. Deixa, tia Balbina. Vai, Donária. Pelo amor de Deus!

As duas mediam-se ferozes, mas a cabrocha cedeu e, vagarosamente, gingando, caminhou para a ladeira:

— Eu não te esfrego agora mêmo, sua bruaca, mod'ela. Não quero qu'ela bote o fio p'ra fora e diga dipois qui foi por minha causa. Ma ocê não perde, burra véia. Ocê tá muito fiada im Macambira, pois vai ti fiando.

Chegara aos espinheiros, voltou-se e despejou um chorrilho de torpezas. A negra respondeu:

— É tua mãe, sua porca.

E, como a cabrocha insistisse, juntando o gesto às palavras, Balbina atirou-lhe o pau que foi girando e caiu entre as folhas que farfalharam. Uma pedra bateu na parede da casa, outra tiniu no telhado. A velha correu e, apanhando torrões, calhaus, atirava-os furiosamente. A cabrocha respondia dentre os matos com uma gargalhada contínua. De repente a negra, que ficara à beira do caminho, cuspiu com asco, dizendo:

— É tua mãe, catinguda! É tua mãe.

Lúcia, de pé à porta, estava como petrificada.

Lúcia, que a cena do terreiro enervara, logo à noitinha sentiu-se mal: tremores ríspidos, uma ânsia que lhe subia à garganta em bolo, angustiando-a dores errantes, peso nos quadris. Sentou-se debruçada à mesa, com a cabeça nos braços enrodilhados. Balbina, cuja fúria ainda se não abrandra, linguajava na cozinha. Chegando, porém, à sala e vendo a mulata naquela postura inerte, interrogou-a:

— Qu'é qu'ocê tem?

—Não sei. Estou me sentindo mole, tonta, vez em quando uma dor surda nas cadeiras.

— Toma u seu banho i vai dêtá.

Mas a mulata, apreensiva, encolhendo-se toda com arrepios, murmurou sursticiosa:

— Isto é mau olhado de Donária.

— Qui nada! E a negra assanhou-se: Ocê foi si metê ... Ocê divia tê dexado eu dá uma lição naquele diabo. Negra sem vergonha! Aquilo inda acaba na ponta duma faca. Vai dêtá. Isso passa, Lúcia, porém, tinha horror ao quarto — preferia sofrer ali sentada, olhando pela porta aberta o céu estrelado, as árvores que reluziam. As magnólias embalsamavam a noite e os grilos faziam um estridor contínuo. Desabotoaram-lhe nalma leves miniscências. Vai dêtá, criatura.

— Daqui a pouco.

Por onde andaria Macambira? talvez já na cidade. A cidade...! e ela que tanto desejava vê-la com as suas lojas sortidas, as suas igrejas grandes, as ruas cheias de gente, o mar...

O ventre entrou a contrair-se-lhe em convulsões preguiçosas; a instantes, espaçadamente, eram torsões, frêmitos, repuxamentos; depois aquietava-se e uma quebreira amolentava-a. As pernas iam- se-lhe entorpecendo, os pés formigavam-lhe dormentes.

Ocorreu-lhe a lembrança de uma festa a que fora, com outras, na Barra. Que alegria! O carro de bois aos trancos pelos caminhos esbarrondados, adernando, empinando-se nas subidas, numa chiadeira que doía nos ouvidos. A vila aparecendo entre árvores, com o rio acachoado e turvo e logo se lhe afigurou o circo armado num largo, gente apinhada em volta, tabuleiros de doces, música, um palhaço preto num palanque fazendo gatimonhas e na multidão basbaque uma gargalhada continuada. Depois o leilão de prendas e a igreja iluminada, cheirando à canela e a incenso, com a linda imagem de Nossa Senhora sorrindo no altar, entre círios e palmas d'ouro.

Súbito, como se lhe houvesse rebentado o cós da saia afrouxando-lhe a cinta, sentiu-se aliviada dum peso, respirou mais livre, em hausto, e, instintivamente, levando a mão ao ventre, deu por uma depressão, um sulco fundo que a dividia como se fora golpeada. Pôs-se de pé alarmada, apalpando-se. Chamou a velha, fez-lhe ver aquilo.

— Foi de repente, tia Balbina.

A negra examinou-a sem dizer palavra; por fim aconselhou:

— Qué sabê, Lúcia? mió é ocê i p'ra cama. Côsa parece qui tá aí. Barriga caiu, isso não fáia. Mió ó ocê dêtá.

— Mas é p'ra hoje!? perguntou aterrada.

— Uai!

Forte compressão nos flancos fê-la dobrar-se, logo um peso insuportável na bexiga, um vácuo no estômago, enjoo. Então ansiada, aflita e com medo, quis andar, mover-se, mas tinha as pernas como de chumbo. Uma dor fulgura atravessou-lhe o ventre como se um estilete a varasse. Encostou-se à mesa, amparando a barriga a mãos ambas. Balbina insistiu:

— Bamo, fia.

Passou-lhe o braço pela cinta, levou-a devarinho ao quarto; quis despi-la, ela opôs-se, consentindo apenas em deitar-se para ser examinada e tremia arrepiadamente. A velha foi rápida.

— Côsa é p'r'hoje mêmo, afirmou; siná tá aí. Agora é ocê dêxá di moleza. Fica í quieto enquanto eu vê tudo. Não tem medo, não. Cê ajudando um bocado é um instante.

A mulata atribuía a “sua desgraça” à Vaca-brava. Desvaneceram-se-lhe as últimas esperanças, não tinha mais dúvida sobre a sua sorte: a cabrocha pusera-lhe mau olhado, estava perdida. Sentou-se chorando e via o seu fim trágico: a vingança de Macambira.

Mas os fatos baralhavam-se, confundiam-se-lhe tumultuosamente no espírito: ora era a cena com Julinho, ora era a fúria do marido logo resolvida em ternura. Ouvia-lhe os passos, sentia-lhe o cheiro acre do corpo, tiniam-lhe aos ouvidos sons de campainhas — era a tropa, seguia-a através dos campos, Macambira à frente.

Dores apuavam-na, oprimiam-na. O quarto aterrava-a a mais e mais à medida que escurecia. Se pudesse ficar lá fora...! E olhava estarrecida. Numa dor mais forte atirou-se à cama amarfanhando as cobertas, trincando os beiços. Quis cruzar as pernas, não pode: estava sem ação, tolhida, paralisada pelo sofrimento. Nas têmporas as artérias túrgidas batiam-lhe às marteladas; o coração crescia-lhe harto e túmido. Balbina apareceu e ela ouviu bater uma bacia d'encontro à cama.

— Antouce?

— Ah! tia Balbina... arquejou.

— Dêta... dêta... Ocê vai vê... Eu tô cuidando di tudo modi na hora não havê trapaiação. Para aí. Tem pacienç'a. Cê u qui não deve é tá jugando corpo ansim, criança tá perto. Pera í.

Saiu. Logo, porém, tornou com o lampião, deixou-o na cômoda. Voltou à sala e Lúcia ouviu ranger a porta, rascar a chave.

Sentiu-se atemorisada, opressa como se sobre ela houvesse caído a lápide de um túmulo. A porta fechada... porquê? para quê? Quis chamar a velha, pedir que deixasse a porta aberta, mas a dor cingiu-a: dobrou-se toda, em arco, atirou-se de flanco, mordendo os travesseiros. Um grito escapou-lhe em convulso tremor.

— Ah! minha Nossa Senhora!...

A negra acudiu e, vendo-a prostrada, animou-a:

— Antonce, fia... Pera í... Dêxa vê.

— Não posso mais! Eu morro, tia Balbina. Parece que estão me rasgando por dentro. Foi Donária, tia Balbina. Isso não era pra hoje. Foi ela.

— É... Ocê foi s'assustá. Ma dêxa aquele diabo! Macambira há di sabê. Ma não tem nada. Dêta. Agora é tê corage. Tem di vi. Dêta. Nossa Senhora tá í. Nôte tá cheia d'estrela, cê vai cê filiz.

—Me dá as minhas orações, tia Balbina: na cômoda, na gaveta de cá.

A negra rebuscou, trouxe um punhado de bugigangas: bentinhos, rosários, um coto de vela de cera. A mulata recebeu tudo desatinada atafulhando debaixo do travesseiro.

— Ah! tia Balbina, nunca pensei...!

A negra foi-lhe tirando a roupa, deitou-a e sentou-se no chão com a lata do enxoval aberta, separando peças que ia ajuntando na tampa.

Volta e meia Lúcia levantava-se urgida e mole, lerda, debruçava-se ao respaldar da cama, encostava-se à cômoda ou deitava-se abandonadamente. As palpebras pesavam-lhe:

— Estou caindo de sono! Se eu pudesse dormir...

— Drôme.

Sossegou em modorra, mas uns sons absurdos: burundum de tambores, vozeada rouca, estrupido de passos sapateados puseram-na em sobresalto.

— Que é, tia Balbina!?

— U quê?

— Esse barulho...?

— Onde? Não tem baruio ninhum. Cê tá sonhando. Drôme.

Nesse instante uma dor mais violenta assaltou-a, como que a envolveu. Sentou-se num espanto, d'olhos muito abertos, a boca escancolada à falta de ar. De repente atirou-se de borco retorcendo-se, rebolcando-se, rangendo os dentes, debatendo-se, a rugir, a arquejar aos arrancos. Balbina procurava contê-la:

— Não faz ansim. Cê si machuca.

— Ah! tia Balbina... suspirou exausta, alagada em suor.

A noite passava vagarosa, a luz do lampião amortecia, lívida. O galo bateu asas, cantou.

Lúcia soergueu-se sobre os cotovelos com um gemido surdo, trêmulo, guaiado, que se prolongou em grito lancinante. A negra inclinou-se sobre ela, dizendo:

— Bom... agora é só tê corage. Mãe du céu tá aí. Tem corage, lembra di Macambira. Bamo. Bamo. Tá aí já... juda natureza.

E o grito de Lúcia repercutia esgargalhado, tornando-se rouco, estertoroso como se um punhal se lhe fosse cravando na garganta e a voz, a princípio livre e clara, saísse, por fim, rolando em borbotões de sangue.

— Uai! exclamou a negra assombrada. Lúcia sentou-se de golpe, num impulso de mola. Balbina estava boquiaberta, com todo o rosto encarquilhado em feição de nojo. Curvara-se sobre a cama amparada às mãos e cacarejava horrorisada: Eh! Eh! Eh!

— Que é, tia Balbina?

Ágil, como se saísse dum sono bem dormido, a mulata pôs-se de gatinhas, inclinando-se para o filho que se remexia mole, oleoso, garguitando um gasnido gosmento. A negra olhava aparvalhada. Apanhou o recém-nascido, levantou-o nas mãos chegando-o à claridade amarela do lampião. Mirou-o e um rónquido trovejou-lhe no peito:

— Esse qui é?

—Tia Balbina! exclamou a mulata estendendo os braços, súplice, como a implorar o filho que espernegava muito langanhento.

— Esse qui é? A mulata embatucou. Misericórdia! regougou a velha.

— Dá cá ele. Deixa eu ver. Dá cá, tia Balbina.

— Quá! Depô-lo na cama e, cruzando os braços, a negra quedou d'olhos fitos, como alheada, meneando a espaços com a cabeça. Lúcia ajoelhou-se, tomou o filho que lhe escorregava nas mãos, viscido e flácido, cravou nele os olhos, onde já havia ternura e logo os levantou para a velha. Encararam-se em silêncio.

— Esse qui é? Cê inganô Macambira.

Lúcia desceu sobre os calcanhares e, faltando-lhe apoio, tombou de flanco. O pequenito esganiçava coleando como uma lesma. Ela tremia, arquejava, os lábios batiam-lhe em palpitações frementes. Sentia a vida escoar-se-lhe a jorros. A velha falava airada.

— Modi quê? Esse qui é? fio di branco, vergonha. Cumu? Cê não tem qui dizê. Cê inganô ele.

Ela quis falar, defender-se, mas desatou em pranto e a negra olhava o infante, balançando a cabeça. E, triste, pôs-se a dizer o seu pensamento:

— É ansim mêmo. Cumu não? nêgo é nego, branco é branco. É ansim mêmo. Tá í. Zêri quis... tá í. Agora tudo vai tomá pagode. Eh... Fio di nego... óia só.

Espirrou-lhe um risinho navalhante. Lúcia caiu de costas prostrada, contendo os soluços.

No silêncio havia estalidos: era o pequeno que chuchava os punhos. A negra respirou desabafando e, aproximando-se da cama, ordenou severa:

— Dêta dirêto... dêxa mudá cama.

Lúcia encolheu-se com medo, apertando o filho no braço, muito chegado ao seio e, ora voltando-se, ora soerguendo-se enquanto a negra substituía os lençóis, não a deixava com o olhar espavorido.

— Tá aí. Fez uma trouxa da roupa que retirara. Cê vê qui qué mais.

— Mais nada.

Deixou-a, saiu como se a abandonasse.

Os galos amiudavam. Um largo suspiro esvaziou-lhe o peito. E ali estava o filho. Ela bem o sentira no ventre durante todo aquele tempo. Ali o tinha!

E refez-se naquele ambiente de angústia, que tresandava à seiva humana, a tarde trágica da violação. Tudo eram ervas emaranhadas, árvores bravias, espinheiros e capins cortantes, urtigas cáusticas e estrepes, a terra ainda morna do sol e já em sombra noturna e Julinho na tocaia.

Via-o, sentia-o que lhe dilacerava as entranhas deixando-lhe no fundo aquela vergonha que crescia, rompia-lhe as carnes e ali estava: saíra-lhe do corpo como sai o punhal de uma ferida: em ondas de sangue. Ali estava. A cabeça doia-lhe como se lh'a apertasse um capacete de ferro, constringia-se-lhe a garganta num travo que lhe suspendia o hálito.

As sombras animavam-se despegando-se das paredes como papel solto, subindo do soalho em fumaradas, afetando formas bizarras, esguias, aladas, pairando, rastejando, esvoaçando.

Fez um esforço para voltar-se: lutou aos gorgolões a vida.

Balbina deixara-a só com a Morte, era ela que a rondava com um lúgubre cortejo. Mas a negra entrou com uma chaleira, arrastou a bacia, temperou o banho, tirou-lhe o pequeno do braço e, de cócoras, pôs-se a lavá-lo.

Ela tremia sem ânimo de falar. O silêncio da velha apavorava-a. Não era Balbina, era uma das sombras do quarto que se lhe apoderara do filho.

Chegou-se mais para a beira da cama transida, arrepiada, sentindo que lhe arrancavam os cabelos, acompanhando, a fito, tudo que a velha fazia. Viu-a retirar o pequeno d'água, deitado ao colo, contemplá-lo um momento, depois virá-lo, revirá-lo enfaixando-o.

Parecia-lhe, por vezes, que ela o ia estrangular — ficava estarrecida e foi com verdadeiro alívio, contente, que, de novo, o sentiu no braço, muito cheiroso, esfregando-se nela como se farejasse o leite.

A negra abria largamente a porta, saiu com a bacia. Tornou, instantes depois, com uma lata onde ardiam brasas, esfarelou por elas a mistura de alfazema, benjoim e açúcar e começou a defumar o quarto pelos cantos.

O ambiente nublou-se: rolos de fumo espesso subiam caracolando, condensavam-se em nuvem, rolavam, estendiam-se em véu denso.

Por fim, como se nada mais lhe cumprisse fazer, dando por finda a sua missão, Balbina perguntou:

— Cê qué qui fala cum sinhô ú cumu é? Macambira chega. Mió é sinhô sabê.

Falava com voz estranha: não parecia a mesma vira-mexe rezinguenta — tinha uma serenidade de sentença.

Lúcia chamou-a, então, muito humilde, quis que se sentasse à beira da cama; ela deixou-se estar de pé, braços cruzados, rígida.

— Escuta, tia Balbina, vosmecê está com raiva de mim, eu não tive culpa. Foi nhô Julinho. Vosmecê sabe como ele é. Olhe... e descreveu-lhe a cena entrecortadamente, estuando de fadiga, às rajadas de choro. A negra não a interrompeu: ouviu impassível, sem um gesto. Eu devia ter dito... não devia ter casado. Foi medo... medo de nhô Julinho e de Macambira... e vergonha, tia Balbina.

A negra não disse palavra: apanhou a lata onde as brasas morriam e saiu.

O silêncio era terrífico, picado, a quando e quando, de sons vagos, como vagalumes na treva. Lúcia estremeceu num abalo irritado, pruído em aflição frenética, arrepanhando o lençol, estirando, encolhendo as pernas. Uma nuvem empanou-lhe os olhos, depois a vista purpureou-se-lhe: via tudo em rubro, enxameado de moscas lucilantes, vermiculado de estrias, num irisamento que deslumbrava.

As centelhas agregavam-se em brasido, esparziam-se em chuveiro; foi depois um fogareu de onde subiam labaredas de bordos azulados. De improviso a treva. Foi-se-lhe apagando a consciência, imobilizou-se com o braço estendido amparando o filho que adormecera.

A porta abriu-se. Um sopro de ar puro invadiu o quarto. Balbina entrou devagarinho, como quem espreita.

— Dia tá aí. Cê qué qui fala cum sinhô ú cumu é?

O lampião morrinhava fuliginoso e no silêncio morno, como se um animal andasse por ali a roer, havia, de instante a instante, um chuchurreio: era o pequeno que sugava os pulsos.

A negra repetiu mais perto:

— Dia tá aí. Cê qué qui fala cum sinhô? Sem resposta, ficou um instante indecisa — talvez fosse melhor deixá-la dormindo. Mas caminhou até a cama: Eu vou vê Rosa modi m'ajudá. Cê qué qui fala? Tocou-a de leve para despertá-la, balançou-a brandamente, chamando-a: Lúcia...! Então, com uma dúvida sombria: Cê qué vê qu'é mêmo...!

Inclinou-se-lhe no rosto, chamando-a mais alto:

— Lúcia! Oia...! Considerou um momento e insistiu: Lúcia!

Apalpou-lhe o rosto macilento, o colo farto e panos que se lhe enrolavam nos pés, foi abrir a janela.

Uma luz baça clareou o interior: na cama, revolta e empastada de máculas, a mulata, imóvel, a cabeça entalada entre travesseiros, olhos semicerrados, os dentes à flor dos lábios lívidos, parecia de cera. O recém-nascido debatia-se ainda amparado pelo braço inerte.

A negra coçou a cabeça arrepeladamente, em atordoado desespero:

— Oia só essa pobre coitada! De mão ao queixo esteve a contemplar piedosamente o cadáver. Por fim, meneando com a cabeça, traçou no ar o sinal da cruz: Deus Noss'Sinhô te perdoe. O pequenito abria preguiçosamente os olhos franzindo o rosto.

A negra olhou-o sem pena: Cê ficô? Cê vai vê. Branco ansim memu cê vai vê vida. Não vê qui sinhô modi cô perdi iscravo. Cê vai vê.

Tomou o lampião, levou-o à cozinha, limpou-o e, tornando com ele aceso, pô-lo sobre a cômoda.

Então fechou a janela e, sem mais olhar a cama, onde jazia a morta e o recém-nascido continuava a chupar os pulsos, traçou um pano à guisa de chalé, fechou a casa e saiu.

VII

Abandonando o caminho trilhado, Balbina enveredou por um atalho no mato intenso, tão atupido de ramas que só pela ondulação das ervas se lhe podiam seguir as voltas. Era um antigo carreiro tortuoso, rolando em escalões, com a irregularidade das terras aluviais, até uma rechan coberta de penugem parda, findando abruptamente em arriba sobre a estrada.

A negra, chegando à borda da escarpa, sentou-se e, agarrando-se aos arbustos, deixou-se escorregar de raspão, firmando os pés aqui, ali em tocos e em relevos, que destorroavam esboroando-se.

Topando na estrada sacudiu a saia, enrolou a trunfa e partiu ligeira, por vezes impelida em corridinhas nas rampas mais derribadas. O sol, ainda brando, anuviava de ouro as copas úmidas, as folhas trêmulas brilhavam e os brejais distantes, cobertos de lírios, eram como rastros de névoa entre o verde tenro dos capins flexuosos.

Raso, transparente arroio fluía silencioso sobre seixos claros. A negra atravessou-o arrepiando a linha da corrente e ganhou um alto acogulado de cupins.

Parou no meio do sapê alongando o olhar preocupado — lá ia a negrada, caminho da roça. A instantes, fulcite, lampejava um ferro e a chusma coleava, sumia entre as árvores, aparecia adiante, lenta, ora em fila, ora em grupos, dispersando-se no cafesal.

Um carro descia chiando e nos terreiros andavam negros amontoando café que outros rodavam, espalhavam em estendal, à seca.

Pássaros esvoaçavam aos chilros numa alegria brincalhona, perseguindo-se às voltas, mergulhando nas frondes. Por vezes um cão ladrava, um mugido prolongava-se em ecos pelas quebradas.

Balbina pôs-se a caminho dobrando o comoro pelo lançante suave todo espalhado de ramas de mandioca. A terra frouxa guardava-lhe as palmilhas, por vezes era um formigueiro balofo e onde se lhe afundavam os pés, como em lodo.

E a casa grande surgiu além, na eminência, com a sua ampla varanda, onde havia gente, o jardim em retalhos verdes degruados pelos caminhos alvos, os densos caramancheis, o bambual nemoroso, espelhos d'água e alta, solene, a linha das casuarinas esfarrapadas franjando o azul de plumas balouçantes.

Só então a negra como que teve consciência da gravidade da sua missão. Parou hesitante, pensando:

“Esse é hora di sinhô ta lá...”. Fitou no além o olhar de ave. “Cumu é? Zêri tá lá... fio tá lá... Antonce?” E, cruzando estabanadamente os braços, empinando a cabeça em gesto altivo de interrogação: “Qui vai fazê?” Demorou na atitude como à espera duma resposta. “Uai!” deu d'ombros e prosseguiu em passo moderado para estacar adiante, d'olhos baixos, pensando: O senhor ia interrogá-la. Já o via sobrecenho, atribuindo-lhe a morte da mulata, ameaçando-a com o bacalhau e o tronco, mandando agarrá-la. E falou alvoroçada de medo: “Qui vai fazê, sinhô? Zêri teve criança, criança tá í, vivo. Gente fez tudo modi sangui pará, sangui tá í. Cumu é? Genti morri ni mão di dotô quanto mái... Tava lá sozinho, mái zêri. Dô vem di repente. Cumo é? Muié di nhô Bentu, antonce? dotô não tava lá? i ele não morrê? Qui vai fazê? Sinhô podi mandá castigá, genti não podi mái di qui Deus. Genti fez tudo, morte chegô. Qui vai fazê?” Bateu as mãos uma à outra, como a sacudir de si a responsabilidade, e retomou o andar, alheada de tudo, dentro do pensamento sombrio, naquela preocupação do desastre, resmungando, gesticulando como se ensaiasse a própria defesa.

Uma negra engelhadinha, corcovada, a cabeça toda em frocos brancos, o rosto murcho, escaveirado, subia a custo a ladeira abordoada a um pau. Cruzando com Balbina levantou a cabeça, encarou-a franzindo os olhos e, reconhcendo-a, sorriu encarquilhada:

— É ocê, tia? Donde vai?

— Vê sinhô. Cê tá boa?

— Ansim. I lá im cima? e, cruzando as mãos sobre o cajado, firmou-se disposta à trela; mas Balbina passou sem resposta, fechando a cara e, adiante, estalou um muxoxo enfezado: Ah!

A fazenda rumorejava agitada na faina rude: era um reboliço nos terreiros — gente a ir e vir, moleques à solta barafustando aos tropelões, burburinho de vozes, ruído de engenhos. Pelas trilhas do campo lentos bois caminhavam livres demandando as pastagens e no ar luzídio os pássaros multiplicavam-se surdindo de todos os pontos como em profusa soltada.

Passando pelo moinho, apesar do estrondoso escacho d'água, Balbina ouviu uma cantoria alegre. Era Mariano, um que não podia vê-la que não a provocasse, troçando, só pelo prazer de assanhá-la. Como se o canto do rapaz a ofendesse, injuriou-o:

— Canta, sanhado! Cê tanto há di cantá qu'inda acaba rebentado n'istrada, qui nem cigarra. Boca di cumúa...!

Um brando de gansos apareceu-lhe à frente, lentos, orgulhosos, o pescoço esticado, olhando como vedetas. Ajuntaram-se amotinados e, empinando-se, romperam em grasnada. Ela passou indiferente. Algum chamou-a de longe, houve um farfalho de folhas, logo respondido:

—Juga! juga pedra, cachorro. Cê há d'achá.

Não se voltou, dura no andar, aos resmungos, acenando gestos vagos, com a obsessão da cena lúgubre que deixára em casa. À beira do valo, defronte das casuarinas, procurou um passo mais fácil. Desceu a barranca, galgou adiante e, apoiando-se às coxas, vagarosa, vergada, suando em bicas, chegou ao jardim. Andava uma mucama com uma cesta colhendo flores.

— Ondi tá sinhô, Filomena?

— Estava lá em cima, nos bambus. Como vai Lúcia, tia Balbina?

Deu d’ombros e continuou na direção indicada.

Num banco, sob um toldo de trepadeiras floridas, D. Clara, com as mãos cruzadas no ventre enorme e flácido, morrinhava achaparrada. A negra passou sem vê-la, com o olhar nos bambus cerrados.

Entrou na alameda sombria e logo avistou o senhor fiscalizando a limpeza do solo acamado de folhas secas e de tubos palhiços que estalejavam. Dois negros passavam o encinho ajuntando as versas em cúmulos. Aproximando-se do senhor, que lhe dava as costas, estendeu a mão:

— Benção...

Gandra voltou-se e, vendo-a, fez um gesto indiferente e rápido como se a despedisse. Ela não se moveu e, para chamar-lhe a atenção, tossiu.

— Que é? Que queres aqui?

— Qué falá cum sinhô.

— Comigo? Pois fala. Que é? e encarou-a aborrecido.

Ela chegou-se misteriosa, coçando o peito, e repetiu:

— Qué falá cum sinhô só.

Gandra ficou surprendido da confidência e, depois de breve hesitação:

— Comigo! E eu não estou só? Fala. Que é?

Os negros raspavam a folhagem, de quando em quando, porém, um deles levantava a cabeça e relançava um olhar curioso. A negra sussurrou matreira:

— Zêri tá oiando.

Gandra intimou-a irritado:

— Homem, fala! Que é? Anda, tenho que fazer.

Balbina, como em alcovitice, curvando-se, muito chegada ao fazendeiro, cochichou:

— Lúcia teve criança, sinhô.

— E então?

— Sinhô pricisa i lá. Zêri morrê.

Gandra teve um sobresalto:

— Como! Morreu?!

— Modi choque. Sangui não parô mái. E, baixinho, em voz cava: Sinhô vai lá vê criança. Criança é branco, é fio di nhô Julinho, zêri disse.

— Hein! Filho de Júlio? Piscando os olhos atarantado, entre espanto e furor, o fazendeiro avançou um passo para a negra: Que história...?

— Sinhô vai vê.

Gandra franziu o rosto num ritus frenético, repuxou a barba atufando-a na boca; um momento remordeu-a, mascou-a. De repente, em voz surda:

— E quem está lá?

— Tem ninguém. Casa tá fechado. Zêri só: mãe i fio. Remexeu na cinta, tirou uma chave. Eu vim modi sinhô vê qui faz. Macambira chega aí. Cumu é?

Gandra balançava a cabeça; mediu lentos passos engalfinhando os dedos na barba. De improviso, numa resolução, bradou:

— Chico!

Num pronto, pondo-se a prumo, um dos negros respondeu:

— Nhô!

— Vai lá embaixo, correndo, manda ensilhar o Pampa e trá-lo aqui. Depressa! O negro encostou o encinho e abalou como um gamo. Dá cá a chave. Vai-te embora. A negra deu volta. Olha — e ameaçando-a com o indicador: Nem palavra, estás ouvindo? Se me constar que andas por aí a bater boca é tronco, estás ouvindo? A negra mantinha- se cabisbaixa, em silêncio humilde. Vai-te embora!

— Benção...

Foi-se. Deixando o bambual, respirou desafogadamente e, vendo o rego por onde a água descia límpida, traquinando nas pedras, agachou-se, pôs-se de bruços e, inclinando a cabeça, bebeu aos sorvos. Desceu ágil, atravessou o vale evitando os caminhos frequentados e, ganhando a árdua subida, ia por ela, lenta, cançadamente quando ouviu estropeada. Voltou-se: lá ia o senhor no Pampa. Ela cortou a estrada, embrenhou-se no mato afuroando atalhos nas macegas ásperas.

Quando a negra chegou ao alto, Gandra, que prendera o animal à cerca, caminhava vagarosamente no terreiro, cabisbaixo, as mãos para as costas. Aos latidos do cão voltou-se carrancudo. Balbina, escorrendo em suor, parara à distância, perto da acácia, coçando lentamente a testa que reluzia. O silêncio era como um muro entre os dois e foi ela que o vingou, perguntando timidamente, com ar de espanto:

— Sinhô viu?

O fazendeiro mascava nervoso e, d'ímpeto, arremessando um gesto de cólera, bramiu:

— Bandalheiras! São todas as mesmas. Por essa eu poria a mão no fogo... e está aí.

A negra atreveu-se:

— Eh! sinhô... nhô Julinho forçô ela.

— Qual forçou, nem meio forçou. Assanhamentos. E, estendendo o braço na direção da casa, num gesto duro e cruel: E essa criança é levá-la, tirá-la d'aqui. Morreu, morreu, está acabado. Macambira não tem que saber. Sem levantar os olhos a negra meneava com a cabeça, caramunhando esgares. Um rapaz direito... Mas não, é o diabo do pagode, a calaçaria.

Foi até a beira do barranco e parou com o olhar ao longe, pensando.

— Sinhô qué botá criança fora?

Ele voltou-se, encarou a negra ferrenho:

— Sei lá! O que não quero é que Macambira saiba disso. Estou farto de porcarias! Pouca vergonha! Então, revoltado contra o filho, murmurou; É demais! Um dia encontra... E atirando uma patada à terra: Nem cães! Balbina continuava imóvel. Vai arranjar aquilo que está um nojo. Veste-a. Enterra-se hoje mesmo. Uma ideia sinistra roçou-lhe o espírito: levantou a cabeça de golpe, o olhar alto, mas deu d'ombros: Enfim... e, continuando o pensamento, que a piedade atenuara, disse à negra: É tirá-lo daqui, não o quero ver.

A negra enleada, na indecisão do que faria, raspava molemente o braço arremangado. Levantou um olhar repassado em ternura, chegou a mexer com os beiços num aceno de fala, mas mudamente, curvada, caminhou para a casa, entrou vagarosa desaparecendo na penumbra onde o silêncio era de morte.

As sombras começavam a sair das árvores. O terreiro, onde rastejavam folhas, estava todo em sol. Uma aragem lenta, a sopros regulares, balançava levemente os ramos. E, em cima, o azul nítido, fino, sem mancha de nuvem, tinha a lustrosa transparência d'água.

Gandra recomeçou o passeio indo e vindo entre a acácia e a barranca penseroso, remoendo uma cólera surda, com o olhar ora apagado, ora afuzilando áscuas. Fechava rijamente os punhos, atirava murros, comia furiosamente a barba atochada aos molhos na boca, e, num assomo mais vivo, berrou para o espaço uma exclamação obscena.

Logo, como se aquele arranque o desafogasse, rebuscou nos bolsos, tirou um charuto, trincou-o e, acendendo-o, caminhou para onde o Pampa a largos, apressados passos como na ânsia de uma resolução.

Desprendeu o animal que, ressentido do sol e acossado das moscas, batia nervosamente as patas, tascava o freio; montou-o e, guiando para a casa, berrou à porta pela negra. Balbina apareceu logo, açodada:

— Eu vou ver isso. Tu não me sais daqui... E a porta fechada, estás ouvindo? Eu virei com os negros. E venha quem vier, seja quem for, não entra. Veste o corpo, arranja tudo e, logo à tardinha, faz-se o enterro. Quanto ao pequeno... voltou-se na sela coçando nervosamente o pescoço, um momento concentrou-se, irritado; por fim, como para repelir o pensamento cruel que o rondava, disse adiando: Mais tarde. Temos tempo. Vê-se depois. E escondê-lo por enquanto... Mas olha lá, tu...!

— Uai, sinhô!

— Bom. É isso.

Tocou o animal. Ainda junto dos espinheiros conteve-o, ficou a considerar meneando a cabeça. Por fim estugou-o,

Balbina, à porta, ouviu o tropel, o frolar dos ramos durante algum tempo.

O arvoredo brilhava, o calor subia na fulguração do sol. Como se a terra se fosse inflamando em centelhas, granitos micantes alumiavam. Rumores vagos, confusos, rolavam na viração.

A negra persignou-se com a mão aberta e falou para a profundeza:

— Cê modi que não faz? uai! Cê não é dono? modi quê não faz? Modi quê? Nego é qu'há di matá modi caí n'inferno? Mata ocê mêmo, zêri tá í. Mata ocê mêmo — e fez um gesto largo como para convidar alguém a entrar. Mata ocê. Cê n'é bobo! Cê tá íalumiando, Noss'Sinhô tá nu cé, oiando tudu. Furmiga é tistimunha, i furmiga tá í junto ni corrêção. Cê qué matá, mata. Criança tem curpa? matá modi quê? mata ocê.

Sentou-se muito encolhida, com os cotovelos nos joelhos, o rosto encravado nas mãos e quedou sorumbática.

Terra d’África! Palmares. A areia mole, acendrada, ondula em rugas, avulta em dunas. A cacimba esgagala-se à sombra duma árvore de tronco imenso e larga, escura, espalhada folhagem — cercam-na em círculo os colmados cônicos, como formigueiros enormes.

Búfalos e camelos repousam deitados, ruminando em modorra. Guerreiros, com plumas na grenha, exercitam-se aos pinchos desengonçados, crianças arrastam palmas, guindam-se aos coqueiros, rolam na terra, formigam em bolo à volta duma gamela; mulheres, na beira da cacimba, preguineam inertes. Aves gralham. Uma cegonha passa esticada no ar rútilo em voo esfuziante. Ardem fogueiras sem chama em turbilhões de fumo. O sol vibro, escalda.

A choça de Munza, mais alta, mais ampla, tem uma lança fincada à entrada.

Ah! Tempo... Um suspiro levantou-lhe o peito. Pôs-se a resmungar um canto triste. Os olhos viam muito longe, no passado. Êh! Macambira... Fosse lá! Quem ousaria afrontá-lo daquele modo? Quem!?

E passou-lhe pela visão o grande feito de Munza: a destruição de um kraal a ferro e fogo e a morte do chefe inimigo, um soba agigantado e ferocíssimo, cuja voz atroava mais forte do que as buzinas de corno e no reboliço da peleja vencia o fragor das armas e o barbariso dos combatentes. Via-o cair às mãos de Munza, via-o amarrado ao tronco de um coqueiro e, em torno, em tripúdio, a gente negra brandindo os limbos, fazendo estrondar os escudos às pranchadas das azagaias. Via-o sangrar talhado pelo ferro real, ouvia-o braimir à injúria dum escarro, golfar sangue do flanco a um pontaço de lança, por fim desaparecer no tumulto acirrado, e, um momento, fimbos, zargunchas, azagaias ouriçando-se alanharem-no, alancearem-no, atassalharem-no e a dança cada vez mais confusa e frenética ao estridor bárbaro da grita canibalesca. Eh!

Um grito cainhado, esganido, tirou-a do êxtase:

— Uhm! Uhm!

Voltou-se atenta ao choro do recém-nascido:

— Cê tá divinhando? divinha. É branco mêmo qui manda. Se não quis sê branco? guenta. Não é négo qui qué dá sumiço a ocê, é branco mêmo, sangui d'ocê. Grita, bota boca nu mundu. Pai d'ocê é dono di tudu; grita, chama zêri mod'ele vim tomá conta d'ocê. Cê não tá í? grita.

Mas teve pena: tão pequenino, inocente, sem mãe.

— É, cês faz as côsa, nego é qui paga. Levantou-se, parou um momento à porta do quarto — a criança gritava estranguladamente como se a esganassem. Grita... Cê é bom!

E, tirando da prateleira uma xícara, foi à cozinha temperar água com açúcar.

Nuvens brancas, ralas como espuma em água de lavadouro, flutuavam espalhadamente toldando o céu, intorcadências de claridade e sombra anunciavam mudança de tempo. O mormaço era sufocante. O ar, parado e denso, abafava como as fumaradas de agosto. Quando o sol aparecia, amarelo e fusco, acendia-se um calor de febre.

Insetos reclinavam nos matos secos e um cheiro morno, acre, de macega tostada, picava. Cigarras chiavam como em fritura e, a espaços, frouxo, aborrido, um sopro de aragem levantava o calor.

Balbina, que amortalhara Lúcia num lençol, tornando-a esguia como uma múmia, deixando o pequeno no quarto do fundo, remanchava relamboria quando ouviu tropel no terreiro e logo a voz do senhor chamando-a. Abriu a porta. Manuel Gandra, no Pampa, vermelho e suado da estafa ao sol, disse sem apear:

— Trouxe a gente mais cedo. Vai chover à tarde e não vale a pena esperar. Onde está o pequeno? A negra fez um gesto, ia responder, mas ele continuou: — Eu vou até a Barra, acompanho ao cemitério. À noite, se não chover, podes levar o pequeno. Não o deixes por aqui perto.

A negra murmurou baixinho:

— Sim, sinhô...

— Olha, lembrou Gandra, o melhor é levá-lo para a Barra, deixá-lo na porta da igreja. A negra afirmou de cabeça, sem levantar os olhos. E amanhã lavas a casa, pões tudo em ordem e está acabado. Veio aqui alguém?

— Não, sinhô.

— Bom. É isso...

Falava como atordoado. Com um largo lenço vermelho limpou o rosto afogueado e, atafulhando-o nas mangas, enxugou os pulsos. Então apeou e, levando o cavalo para a sombra, laçou as rédeas num galho. Instantes depois dois reforçados negros apareceram com uma rede.

Gandra precedeu-os na casa, entrou no quarto, abriu largamente as janelas. Os negros estenderam a rede no chão e, em pontas de pés, com supersticioso respeito, chegaram à cama e, um ao tronco outro, aos pés, levantaram o corpo, que amolecia, depuseram-no na rede, cruzaram as varandas, e, enfiando o pau, ergueram-no, tomaram-no aos ombros, saindo vagarosos, com os chapéus enrolados, metidos na cinta. Gandra montou.

— Vamos pelo caminho da estiva.

E guiou para a ladeira. Os negros seguiram-no em passo acertado. Balbina acompanhou-os de longe até o pomar. Gandra rompia a marcha curvando-se na sela para passar sob os ramos, e a negra, parando entre as laranjeiras, abençoou a morta:

— Deus te dê o céu!

As cigarras romperam em chirriada alegre, o sol abriu-se lívido, um momento fulgurou intenso, mas a luz foi abrandando, amortecendo, sombras rápidas varreram a torra e escureceu lumbremente como se anoitecesse.

À negra, enclavinhando as mãos e balançando a cabeça, ficou d'olhos baixos pensando no desenlace daquele amor, tão suave e tão curto, que ela vira nascer, crescer no coração de Macambira como explue, vinga e floresce uma planta num vão de rocha onde os ventos depositaram um pouco de terra fértil. E a desgraça levara tudo! Ele, sem saber nada, longe, apressando a volta... ela, coitada! lá ia. E lembrou-lhe Julinho:

— Esse mêmo não acaba bem. Quá! E subia a passos vagarosos, parando por vezes. As abelhas enxameavam zumbindo na florescência aromal das laranjeiras. Esse mêmo não acaba bem.

Um lagarto fugiu farfalhando nas folhas. A negra ficou a olhar o ponto onde o animal desaparecera, arisco.

— Antonce Deus não tá lá im cima? Nhô Julinho tem birra di Macambira, modi que? prugunta. Macambira é dirêto, não vai co'ele. Estacou aprumada: Zêri é branco, fio di branco... e, com orgulho, enchendo a voz: Macambira é fio di Munza! Fazenda táí; reino tá lá. Modi cô? Cô qui é? Antonce só modi cô zêri podi fazê tudu? Uhm! Terra tá í, osso tá í: tudu é u mêmo.

Chegou à porta da casa e lembrou-se do recém-nascido que lá estava sozinho, numa esteira, dormindo talvez, talvez esperto, olhando na sombra. Respirou largamente e, recordando a rocomendação do senhor, levantou os olhos para o céu onde pesadas nuvens carregadas d'água rolavam escuras na direção dos montes azulados.

— Esse mêmo não vai hoje. Chuva tá í.

E, numa piedade enternecida, apertou-se-lhe o coração à ideia do abandono da criança à porta da igreja, na praça deserta por onde, à noite, andavam animais soltos farejando, fussando famintos. Os porcos...! E estremeceu num arrepio de horror benzendo-se com o sinal da cruz.

VIII

O vento morno, pesado, lufando a lentas bafagens, espalhava um cheiro adusto de terras ressequidas. Túmidas nuvens plúmbeas sotopunham-se; a espaços fuzis estriavam-nas. Rolos de pó, remoinhando em espiras terebrantes, corriam à flor do solo revoluteando folhas secas, até esgarçarem-se em polvorada, ao vento.

Os ruídos vibravam claros, repercutindo como em caverna. Relampejava em frêmitos. Escurecia rápido. Chegavam pombos em fuga; andorinhas volteavam atordoadas; soavam pios tímidos nos ramos.

Longínquos, com reboante fragor, tronavam trovões soturnos. E o calor subia da terra seca como em borralho.

Balbina chegou à porta, considerou o céu escuro e baixo, que parecia rolar na fumarada espessa dos nimbos e, ao relumbrar um relâmpago, persignou-se.

Ao longe revolviam-se turbilhões de poeira abrumando a paisagem. Gente corria nas veredas do campo; bois amotinados galopavam aos magotes, à cauda alçada; bezerros trasmalhavam aos galões, escornando a esmo e tornavam à manada, aos pinchos.

E todo o arvoredo estortegava-se, debatia-se desgrenhado, em angústia, como se lutasse desesperadamente para arrancar-se da terra e fugir ante a catástrofe iminente.

Afigurava-se um cataclismo a pino. Detonações explodiam no pávido silêncio. Uivos cresciam, passavam no esfúsio do vento, perdiam-se ao longe como no desapoderado investir de matilhas hidrófobas. Nevoeiros ralos rompiam-se nos ramos.

A negra olhava pensando em Lúcia. Fechou as janalas — a casa ficou em noite escura e o cheiro da morta reapareceu ácido, enjoativo, impregnando o ambiente. Moscas esvoaçavam assanhadas como em carniça.

A negra imaginava a caminhada longa com a criança, à noite, por aquele tempo ríspido.

— Cumu vai sê?!

Eram barrocais, bibocas pedrentas, matos enredados, depois a várzea rasa, e nua, com os cupins a prumo, como vultos tocaiados na sombra, servindo de poleiro ao saci nas noites aziagas.

— Cumu vai saí ansim?

Cresceu a aflição das árvores: os bambuais vergavam-se em mesuras e o estrondo ribombava à fulguração sulfúrea dos relâmpagos. Mas um estampido seco estalou ríspido, violenta rajada arrepiou a paisagem e a chuva áspera, grossa, chegou estrepitosa, tão densa que fechou a vista a tudo, como um muro de aço. Acre e morno subiu da terra um bafio de barro virgem.

E a chuva jorrou torrencial. Os relâmpagos sucediam-se em deflagrações fosfóreas, e, como num despenhar de fragas, aos esbarros, raios estrepitavam.

Balbina acendeu o lampião da sala e, alumiando-se com a candeia, dirigiu-se ao quarto onde deixara o recém-nascido. Encontrou-o dormindo.

A alma áspera da negra enterneceu-se diante da criança:

— Tão pequenina, um dia só e sem mãe...!

Longe dela tinha assomos de revolta, rebentinas de ódio, ameaçando abandoná-la:

— Cê vai vê!

Contemplando-a, porém, na inocência do sono ou d'olhos abertos remexendo-se nos trapos, o coração fundia-se-lhe em ternura. Ia logo buscar a xícara d'água com açúcar e abeberava-se às colherinhas, pacientemente, comentando-lhe a gula, quando ouvia os estalidos dos lábios ávidos, sorvendo.

— Cê isganado mêmo... uhm! Cê pensa qu'eu tá qui mod'inchê barriga d'ocê? Poi sim...

E a criança chuchurreava sôfrega.

Sentada no chão, junto da esteira onde jazia o infante, a negra imaginava tristonha:

Caminho da Barra. Lá ia, com ele ao colo. Já avistava a igreja. Justamente chegava ao adro quando o quarto alumiou-se súbito como em explosão e toda a casa tremeu a um estrondo. O pequeno sobressaltou-se.

Supersticiosa, a negra imediatamente ligou o pensamento ao fenômeno concluindo — que era Deus que protegia a criança com a tempestade, talvez por intercessão da finada, espalhando raios e inundando os caminhos para que ela não pudesse sair. Então, arrepiada de medo ante a ameaça divina, como para ser ouvida no céu, falou alto à criança que despertara.

— É, ocê tá oiando. Quem mandô foi sinhô mêmo. Nêgo faz qui sinhô manda. Cê fica aqui. Idipoi? cumu é? Quem vai criá ocê? preta véia? uai! porco tá lá. Macambira? Macambira vemí. Cê tá nu bem bom, preta véia é qui vai vê.

Mas a resolução estava assentada: a tempestade era ordem do céu e o seu coração obedecia contente.

Acendeu o cachimbo e, encolhendo às pernas, com o queixo fincado nos joelhos, o olhar parado, pôs-se a pitar, mazomba.

Que fazer? E se fugisse com ele? Havia tantos mocambos por aqueles cafundós da serra... Melchior lá estava, Barnabé, Felício, Chico Bexiga, Tito... Este até tinha casa, roça, criação e gente armada para defendê-lo. Era um rei pequeno lá em cima. Uma vez por outra aparecia na Barra, à noite, para fazer sortimento no armazém. E seu Narciso... nem como coisa! Não vê!

Tito, além de cutuba, era fechado. Quando deram em cima dele, a tiro, no Rodeio, foi o mesmo que nada. Três turunas da escolta ficaram estendidos e ele ganhou o mato, muito fresco, com os seus macambas. Podia ir para lá, mas Tito tinha tanta gana aos brancos que era capaz de fazer alguma ao inocente. Meneou com a cabeça. Não lhe ocorria uma ideia.

A chuva escachoava nas telhas e o vento esfusiava, lúgubre. O pequeno pôs-se a choramigar. Preparou-lhe a beberragem e, ministrando-a com solicitude maternal, pensava no que seria dali por diante. Como havia de criá-lo? Leite não faltava: era só ir ao pasto onde as vacas andavam soltas ou então lá em baixo, na pedreira, cercar uma cabra e ordenhá-la. Mas se vissem!? Teve um frenesi, arrepelando-se; desenrolou a trunfa, refonfinhou a carapinha. Enfim... Nosso Senhor estava lá em cima. E, escutando as bategas da chuva, tranquilizou-se, certa de que, no momento do perigo, a Providência seria por ela.

Amanheceu chovendo. Choveu todo o dia, miudinho, até a tarde. A noite estiou com estrelas. Ela receava a chegada de Macambira.

O negro podia aparecer de repente... e então? Resolveu transferir-se de madrugada para o seu rancho, com o pequeno.

Deitou-se junto da esteira. Lá para as tantas acordou. Que horas seriam? O relógio parara à falta de corda. Abriu a porta: fazia frio, mas o céu era um crivo de estrelas. Devia andar por meia noite.

A espaços o cão gemia uivos, os sapos barulhavam em grasnada. Correu a casa examinando portas e janelas e, apanhando a criança, atabafou-a, apagou o lampião e a candeia, fechou a porta por fora e foi-se.

Descia devagar na trova múrmura das frondes, sondando o caminho resvaloso. Por vezes atolava-se em poças, escorregava em lameiros. Os matos apegavam-se-lhe às roupas, os galhos batiam-lhe no rosto, ainda gotejantes. Havia sussurros misteriosos. Em baixo, o córrego, muito cheio, rolava rumorejando. A negra procurou passagem. A pinguela mergulhara e as alpondras desapareciam alagadas. Sapos, gias enormes saltavam chapinhando, e a água fusca por vezes tremeluzia como ao alumiar dum fósforo.

A negra meteu-se afoita pelo capinzal, chafurdou estarrecendo à friagem, com água até às coxas, mas seguiu e, alcançando a margem oposta, toda em lama, meteu pelo vassoural direita ao carreiro que levava ao rancho, num socavão de pedras lutulentas.

Na tristeza do sítio áspero, escalavrado das enxurradas do morro, onde explodia uma vegetação agreste, aos tufos ríspidos e emaranhados, ora em borbotões de ramas, ora hirta e dura, em feixes espatulados, ermava o rancho. Era um mundeu bambeando aos rangidos nos esteios podres, mal escorados, descaindo sobre as bananeiras que se apinhavam em touceiral, ao fundo, num terreno escuro, sempre atascado em lameiro do transbordo perene duma mina que brotava entre pedras.

Os muros, em parte destorroados do rebeco, eram um xadrez de ripas tisnadas como tições por entre as quais o sol luzia e o vento zargunchava. O sapê, esfiapado, esvoaçava em falripas franjando o beiral do teto e, por entre a palha cinzenta, pelas taliscas das paredes o fumo esgarçava-se como saindo duma fogueira morta. Em volta era mato bravo, com pitangueiras e limoeiros cobertos de erva de passarinho.

Joás espinhentos, cocurutos verdes de melão de S. Caetano, piteiras espalmas e o folhedo escuro e largo dos inhames davam à lúgubre covanca um aspecto hirsuto de abandonada miséria.

O massambará crescia por ali fora ondulando; um aboboral alastrava viçoso, cobria lombas de rochas, subia tufado pelos muros da choça espalhando-se em cima, como em latada. Uma telha, entalada em pedrouço, jorrava água límpida numa tina que transbordava em atascal; ao lado a moenda e o galinheiro, cercado de bambus, com um jacá suspenso dum cepo para os pintos.

No interior a penúria era sórdida. Chão de pocilga, esburacado; molambos sujos trapejando em cordas, teias d'aranhas em colgaduras. Um jirau baixo forrado de palha de milho, com um estraçalhado cobertor azul; um pote d'água bojudo, manchado como de lepra, prateleiras amarradas às ripas, um caixote servindo de mesa atulhado de bugigangas: cuités, latas, combucas, vidros.

Minhocas colubreavam pelos cantos na terra fofa, baratas fervilhavam e correções de formigas filetavam o solo em traços iterativos.

À noite, à luz baça da candeia ou ao livor dos tições do borralho, eram correrias o chiar de ratos, estrídulos de grilos, zoar de bezouros; sapos pulavam ou, esparrimando-se, d'olhos esbogalhados, acompanhavam as vira-voltas da negra macambúsia que, umas vezes, evitava pisá-los, desviando-se, outras vezes, rezinguenta, repelia-os a ponta-pés:

— Sai, diabo!

Quem passasse, à noite, pelo labrusco, ouviria a voz da solitária: conversas longas, discussões, risos, ameaças. Era ela a falar com o lume das achas, com a fumaça borralheira, com as sevandijas fimículas que verminavam na sombra, com o vento, com os discos de luar, com os rumores vagos do arvoredo.

Mugidos longínquos provocavam-lhe comentários:

— Cê tá chamando muié? Esse é hora? Dia não chegá? Vai drumi, seu bandáio! Ou então: Uai! quem sabi s'ocê é mió qu'a genti? Fio di genti mêmo passa noite sózinho, bizerro não podi passá... Dêxa di luxo! Qu'ê qu'ocê tá berrando? ocê tamen não é escrava? guenta. Mundu é ansim. Noss'Sinhô deu lête ocê mod'ocê criá fio, branco bebe. I nós? Uai! nós é genti i lête di négo onde é qui vai? Prugunta! I nêgo berra? chora calado i vai criandu sinhô...

Outras vezes cantava sapateando, rebolando o corpo esquálido em saracoteios peneirados.

Tais colóquios misteriosos, surpreendidos por alguém, criavam a negra a fama sinistra de feiticeira. Da narrativa sarapantada do primeiro informante saiu e desenhoveu-se a lenda que a tornou temida e o seu antro, já desviado das trilhas frequentadas, isolou-se ainda mais no terror que inspirava.

E o que se dizia na roça e nas senzalas era de estarrecer.

Negros referiam encontros assombrados com aventesmas e animais disformes: mulas sem cabeça, catitus monstruosos, de cerdas faiscantes, que passavam a galope taramelando os colmilhos, montados por anões negros, que eram sacis; esqueletos arrastando sudários, sapos, corujas, morcegos.

Outros juravam ter ouvido gritos lancinantes, guaiados angustiosos à beira do açude vendo surgir das águas vultos de neblina que se retorciam no ar gemendo nomes de afogados.

Marciano campeiro, crioulo afoito, entrando com a boiada uma tarde, deu por falta do touro inglês. Fechou o curral e tocou-se mato dentro, à procura do bicho.

Foi anoitecendo. Era um poder de vagalumes que iluminava os ramos. Entra aqui, sai ali, sobe morro, desce morro, nada! O bicho era mocambeiro e, ganhando o cerrado, nem Santo Antônio o descobria.

No capoeirão era escuro que nem breu e parecia que havia gente chamando: “Psio! Psio!” Nossa Senhora d'Ajuda!

Saiu no limpo. O céu estava todo estrelado, uma lua grande boiava lá em cima.

De repente tudo escureceu, começou a roncar trovoada, cada relâmpago que cegava, raio caía que nem chuva. Nossa Senhora! Olhou. O coração ficando pequenino, tremia das pernas a ponto de cambalear.

Que seria aquilo? Lá longe, o céu cheio de estrelas, a lua clara e ali aquele inferno de trovoada e raios.

Foi, então, que reconheceu o lugar: estava na grota, pertinho do rancho de Balbina, perdido! Virgem dos Aflitos! Quis fazer uma oração, não pode. O braço duro não se dobrava para o sinal da cruz. Estava perdido duma vez!

De repente um estrondo por ali fora como numa derrubada, e as árvores arrancaram-se da terra, crescendo, sacudindo-se e saíam aos pulos, pedras saltavam batendo umas nas outras, fogo rabeando nos matos, a água dos atoleiros fervendo aos borbotões, que nem calda em tacha; e cada bicho!... Almas com as mortalhas soltas, suindarias guinchando, gias barrigudas em pé, que nem gente, cada uma do tamanho duma criança, tudo dançando, e a trovoada batucando que nem caxambú e coriscos fuzilando.

De supetão, com um tiro, a porta do rancho abriu-se, bufando uma lufada de fogo e Balbina apareceu, nua, com uma cobra enrolada na cintura, dois ossos de defunto nas mãos, um cururu pendurado em cada maminha, os dentes grandes alumiando, os olhos lançando chispas, e atirou-se aos gritos, no meio da sarabanda.

O medo deu com ele em terra, desacordado.

Despertou de madrugada, com o canto do galo. Deus Nosso Senhor não o deixasse sair de onde estava se mentia. Achou-se no meio do pasto, perto dum cupim, e o touro inglês junto dele, deitado, ruminando. A lua dobrava a serra, lá em baixo. Nossa Senhora dos Aflitos! que noite! A negra pouco se lhe dava o que diziam. Não bolissem com ela, o mais... falar? cada um diz o que quer.

A chuva alagara o terreno côncavo da grota. As veredas eram caneiros aglutinantes onde a erva atascava-se acamada, esponjando lama ao piso. Um grosso, pastoso tijuco amolecia o terreiro.

A noite parecia mais negra e lúgubre naquele recanto. Piques de lume espetavam a sombra entre as densas folhagens. Contínuo estrilar de grilos, roncarejo monótono de sapos faziam estranho estridor no silêncio.

Por vezes o vento arrufava os ramos; estalidocrebros trepidavam, corriam murmúrios a quando e quando; o mato como que se arrepiava com um sussurro trêmulo. A negra seguia devagarinho, sondando o terreno, receosa de atolar-se. Aqui, ali no lameiro estriavam-se fisgas de claridade ou era um brilho de estrela tremeluzindo na lisura espelhada do atascal.

Junto do rancho era tão profundo o lamarão que a negra, sentindo afundar-se, recuou, deu avolta por cima das pedras, agarrando-se às piteiras.

A água do bicame acachoava em enxurrada. Bananeiras caídas formavam tapumes altos.

A choça sofrera com os embates do vento que levara a porta dentro.

Balbina passou d'esguelha e, no interior, sentiu o sol espapaçado, chapinhou em poças, escorregando esparridamente em pastas víscidas. Foi, pelo tino, ao jirau, apalpou-o: estava encharcado. Os panos que pediam das cordas roçavam-lhe humildemente pelo rosto; os muros tressuavam. Hesitou.

— Esse moiado ansim...

Envolveu a criança, deitou-a no jirau, riscou fósforo e acendeu a candeia.

Uma luz triste desnudou a miséria do pouso assolado: o chão lurido reluzia e um frio, mais áspero do que lá fora, regelava ali dentro.

— Esse não tá bom, não. Criança ansim não vai lá...

Relanceou o olhar em volta com esgares aborrecidos de nojo. Ajuntou gravetos, um pouco de palha seca e fez fogo. As paredes vermelhejaram, a fumaça espalhou-se rasteira, ondulou mais cheia, subiu em rolo esgarçando-se ao alto.

A criança choramigou.

— Eh! cê agora é qui qué chorá? Tem pacienç'a. Pera um pôco. Chuva istragô tudo. Qu'é qu'ocê qué? Tá frio, tá mêmo, ma tem pacienç'a. Qu'um pôco calô vem, dêxa fogo pegá.

Pôs uma lata com água ao lume e, sentindo-a morna, adoçou-a e deu-a ao pequeno, aconchegando-o depois ao colo até adormecê-lo. Deitou-o e, ajuntando molambos, que tirou dum caixote, acolchoou-lhe um leito agasalhado.

— Tá í. Agora drôme.

Então, acendendo o cachimbo, sentou-se encolhida à beira do fogo, imóvel, olhando agudamente a chama, como em fascinação.

Revia a cena dolorosa lá de cima: a confissão, a agonia da mulata, o corpo em sangue, o enterro, Manuel Gandra ordenando o abandono da criança e Deus falando na trovoada. De repente sentiu o sapê estralejar, a porta ringiu, tremeu como empurrada. Voos surdos circulavam, vozes em cochichos, um choro triste que ia e vinha e um frio, um frio...! A prumou a cabeça à escuta. A criança tossiu, choramingou agitada. E, lá fora, trissos, rastejar de passos frouxos, soídos vagos, estalos d'asas.

A negra estremeceu, voltou-se de golpe, ferrenha, como irritada com os rumores da noite. Um momento, d'olhar duro, fitou a porta, vagarosamente relanceou a vista pelo teto, por todos os cantos. Soergueu-se, deixou o cachimbo no caixote e, de cócoras, quedou atenta.

Houve um barulho acachoado como da queda duma árvore. A negra desvariou assombrada. Um frio de neve gelou-a, arrepiaram-se-lhe as carnes e os cabelos, eriçando-se, como que lhe cresciam aos ímpetos. Encolheu-se resvalando olhares desconfiados. De repente, porém, como arrancada, levantou-se e, ereta, hirta, remoendo as mandíbulas, os olhos alumiando, fitou a porta como à espera da aparição.

Avançou um passo duro e bradou em voz rouca:

— Cê tá í? Tiritava, as mãos iam-se-lhe engenhando, aduncas; o coração batia-lhe precípite. Faltava-lhe o ar. Cê tá í?

Esperou resposta, ouvindo hiperestesicamente os mais leves ruídos no siêncio.

— É ocê, rapariga? Qu'é qu'ocê qué? Cê tá rondando fio mod'eu? Sussega, eu não fá má criança. S'é p'ra levá, levá; é mió. Qu'é qu'ele fica fazendo sem ocê? Mundo é mundo, cê sabi; cativero tá í. De novo, mais áspera, a tosse sacudiu o pequeno. Oia só. Esse é frio. Frio já intrô nele.

Agasalhou-o mais, encostou a porta, forçou o loquete e traçou uma cruz no ar como para defender a entrada do rancho ameaçado pela morte. Esteve um momento parada a escarfunchar a carapinha, pensando. Por fim sentou-se no caixote, tomou o cachimbo, mas os olhos cerraram-se-lhe; bocejeu alto, as mãos caíram-lhe nas coxas e, inclinando a cabeça, adormeceu.

No rancho, em silêncio, ao luci-luzir mortiço do braseiro, surdiram sorrateiramente gordas ratazanas.

De madrugada Balbina saiu do rancho encostando a porta e foi-se pelos matos a caminho do curral, no outeiro. Seguia cabisbaixa, casmurra, evitando os lameiros, indiferente à beleza da manhã que alumiava de ouro a fresca e lustrosa paisagem.

A covança erma, em silêncio, começava a aclarar-se: as pedras róridas luziam, as folhas largas dos inhames ganhavam uns tons cinábricos e a erva, esmaltada de orvalho, fulgia em cintilações faiscantes.

A água cantava perene, em fio claro, entre pedras. Arrufos de voos, pios denunciavam aves. O céu, dum azul fino e brilhante, transluzia, o arvoredo brilhava e, longe, na orla da serra, frocos de névoa rala esgarçavam-se esfumadamente.

Súbito um ruído esfrolou o bananal cerrado, sucederam-se golpes regulares e, logo, fragoroso, o estardalhaço duma derrubada. Pombos voaram profugos e, pouco depois, uma negra, com uma penca de bananas verdes, surgiu na vereda atolada em folhagens podres. Esteve um momento parada, como à espreita; por fim desceu, beirando o caneiro, até o bicame. Pôs-se de cócoras e, concheando as mãos, bebeu largamente, a sorvos chuchurreados, lavando a cara, bochechando e metendo os dedos d'esfregão na boca. Era Vaca-brava.

Sabendo que Balbina vivia lá em cima tomando conta da casa de Macambira, dava-lhe no bananal levando-lhe o fruto melhor e, ainda, por maldade, devastava o plantio golpeando troncos, detorando folhas, espesinhando rebentos com fúria destruidora.

— Ah! gente pranta, cuida, sua im cima i nem cumu côsa; essa peste dêxa tudu nu mato i óia só: bananêra nem podi: cada cacho qui faz gosto. Diabo da curumba!

E cuspilhava, lanhando à faca os troncos que ficavam a sangrar seiva.

Refrescada levantou-se, sacudiu os braços, golfou e ia tomar a carga às costas quando se pôs de recacho, a cabeça a prumo, o olhar duro e fito, atenta:

— Uai! choro di criança... A modi qui é. Cê qué vê? E Ficou à escuta: É mêmo. Tem criança chorando aqui. Caminhou direita ao rancho e encostou-se à porta, meio curvada, imóvel: É mêmo. Êh! tia danada! Isso é mandinga qu'ela anda fazendo, mandinga braba.

Experimentou a porta e, sentindo-a solta, empurrou-a levando-a de raspão no lodo onde emperrava.

O bafo de umidade e sujeira fê-la franzir o nariz:

— Uhm! Fedô qui nem chiquêro. Cruz! Abocou para dentro: Ó de casa!

Silêncio. Então atreveu-se, certa de que a negra não estava.

Um raio de sol insinuou-se pela aberta lustrando o lodo. Dentro a terra úmida, arregoada, tinha soalhas de luz.

Hesitou, inteiriçada de pavor supersticioso. Balbina podia estar por ali em algum canto com os seus feitiços.

A escuridão parecia-lhe verminada de taturanas, estriada de cobras flâmineas: eram clarões coados das frinchas do teto, das taliscas das paredes que reluziam no solo lutulento. Uma vara de fogo atravessava-se ao fundo e dela pendia larga teia de aranha trêmula brilhando radiosamente como um sol. Chapinhava em visco.

Pouco a pouco, porém, habituando-se à sombra, foi distinguindo o que a cercava no desmantelo relaxado e imundo da baiuca: panos, caixotes, pilhas de gravetos, ramas e, como a criança choramigava rezingando, guiando-se-lhe pela voz, foi descobrí-la no jirau embrulhada em trapos úmidos. Tomou-a atabalhoadamente numa pressa de ladra, saiu com dia à porta, mirou-a ao sol, com espanto. A criança remexia-se mole d'olhos fechados, no encandeamento da claridade.

— Uai! Branco...! Cumu é, genti? Ond'é qu'ela foi achá isso? Descobriu o corpinho envolto em panos sórdidos que tresendavam. É macho. Ficou-se a considerá-lo, pensativa: magro, lívido, lânguido. Qui langonha! De repente, exclamou: Cê qué vê!

Foi-se-lhe acendendo o olhar e escancelou a boca desdentada num hiato de triunfo:

— Ah! Ess'embelêgo é fio di Lúcia, é mêmo. Tá ixplicado. É fio di Lúcia.

Repentinamente, embrulhando a criança na traparia fétida, estalou uma gargalhada cruel!

— Toma, canáia! fio di nhô Julinho. Paga, muxiba! Paga, safado! E rugiu: Mata u fio agora, mata u fio, curumba, cum'ocê matô a mãe, modi ninguém sabê. Canáia! Canáia! Oia só: branquinho qui nem leite. Abri os ôio, dêxa vê. Forçoua palpebra da criança: Oio azú... Tá dirêto. O pequeno esganiçou, mas a negra, frenética, levantando-o nos braços, esfregou-lhe o rosto pelo corpo como a farejá-lo gulosa. Cê tá í... Cê tá í. Agora quero vê muxiba contá prosa. Agora sim. Tá qui!

E, triunfante, levantou a criança nas mãos, como para mostrá-la ao sol, aos montes, ao arvoredo, à natureza, toda numa necessidade perversa de testemunhas para a sua vingança:

— Tá qui, tá qui, fio di nhô Julinho. Agora sim, canáia! Agora é qui bamo vê!

E, na alegria feroz, rinchavelhava, sapateava, tripudiando na lama com o pequeno aos bailões nos braços.

Contente da descoberta, antegosando o escândalo, a cabrocha reentrou com a criança e depô-la no jirau refungando de nojo ao cheiro que se desabafava do corpinho lânguido.

Levando a pontapés a trapalhagem espalhada no chão, coscovilhava afuroando nos cantos, emborcando vasilhas, revirando caixotes, sacudindo molambos. Baratas saíam aos enxames, algumas em voo aturdido, minhocas espichavam-se, coleavam lúbricas, uma férvida sevandijada debandava e a cabrocha, aos muxoxos e resmungos, saracoteava, sapateava com repugnância asquerosa vendo remexer molemente a sórdida vermina.

Ao choramigar da criança plantou-se diante do jirau, de mãos à ilharga, olhando. Tinha vontade de arrebatar o pequeno, sair com ele por ali fora, mostrando-o a toda a negrada, só para tirar vingança do muxiba. Esganiçou uma gargalhada imaginando à cara de Macambira quando soubesse da coisa. Tanta empáfia, tanta fidúcia com a mulata e estava ali a “poia” do outro. Deu um safanão à saia, sungou a camisa que lhe escorria dos ombros e aprumou-se arrogante:

— Agora sim, quero vê.

Cuspilhou d'esguicho e deu volta, de rabanada. À porta, porém, estacou, vendo Balbina que chegava mui de passo, com uma lata à cabeça, um feixe de ervas debaixo do braço. Quis recuar, esconder-se, mas a negra descobriu-a e, reconhecendo-a, rugiu assanhada:

— Cê! Cê aqui, sô diabo! Qu'é qu'ocê tá chêrando ni casa dos ôtro, muafa? É cachaça qu'ocê tá caçando, vagabunda? Sai já! Sai já p'ra fóra! Ruma! Encararam-se em atitude de desafio. Bâmo! Bâmo! Ruma daí, sua ladrona. Ruma! e agarrou-lhe o braço.

A cabrocha livrou-se de repelão, fugiu com o corpo e, investindo d'arranque, sem dar tempo à negra de defender-se, atirou-lhe as mãos ao peito derrubando-a. A lata rolou na lama caleando-a de leite, e a velha, escabujando, com um garguitar de raiva, forcejava para levantar-se e quando Vaca-Brava, em fúria, atirando-se-lhe em cima, pôs-se a espesinhá-la às patadas, dizendo ofegantemente, em voz surda:

— Cê qui pensa?! Eu ti acabo, burra véia! Eu ti acabo! Quem sabi s'eu sô Lúcia, qu'ocê matô mod'u fio? Comigu cê tá inganada, sô diabo!

E acacanhava-a. A negra gania empastada em lodo, aos reboleios, com os braços pela cabeça defendendo o rosto. E a cabrocha encarniçava-se a mais e mais e, como se lhe não bastasse maltratá-la aos pés, agachou-se e, ajoelhando-se-lhe no peito magro, pôs-se a esbofeteá-la, a esmurrá-la às punhadas. Por fim, satisfeita, impando de orgulho, deixou-a como morta e meteu-se pelos matos, a rir, gingando, a arrepanhar a roupa esfrangalhada.

Balbina ficou atirada, sem poder mover-se, até que, lentamente, estendeu um braço como quem desperta, virou-se, sentou-se a custo e ficou largo tempo imóvel, airada, volvendo olhares vagos.

O leite derramado fazia um coalho branco no lameiro. A velha mirou-o com pena e sacudiu a cabeça resignada murmurando:

— Tá bom...

Pôs-se de joelhos, ergueu-se dorida e, de pé com o pano da trunfa desenrolado, estirou os braços magros, dizendo lamurienta:

— Noss'Sinhô ajud'ocê. U qu'océ fez numa preta véia, qui pudia sê sua mãe, Deus Nos'Sinhô tá oiando. Vai, sombra d'ocê mêmo há di vingá eu.

E traçou uma cruz no ar. E manca, coxeando, a amparar-se, entrou no rancho e, lá dentro, de repente, como se os ossos se lhe houvessem derretido, desabou no chão em trouxa, e, estorcendo-se, pôs-se a gemer baixinho.

A criança vagia. De quando em quando, como se a espetassem, esguelava um grito lancinante, debatendo-se, com a cabeça aos boléos, e recaía no anseio erebro, em rítimo cançado. A negra arrastou-se até o jirau, soergueu-se, apalpou o corpo flácido do pequenito:

— Eh! eh! Cê mêmo não vai lá... E esse diabo, inda mái, foi derramá o lête. E agora? Qu'é qu'eu vai dá ocê?

Cobriu-o, e sentou-se à beira do jirau, acendeu o pito e ficou banzando. De repente, como em resposta a um pensamento, deu d'ombros. Seguia Vaca-brava, via-a a palrar à beira do córrego, no quadrado, à porta dos ranchos, na roça, ajuntando gente para contar o caso e a notícia espalhava-se pela fazenda e a cabrocha, fanfarronando, diria como a deixara caída na lama, moída a pontapés e murros, pôs-se de pé, a tremer de ódio, numa necessidade de desforço, mas ouvindo o grito da criança, revoltou-se e, estabanadamente, tirou-a dos panos.

— Ah! Cê tamem... Qu'é qu'ocê qué?

Pôs-se a niná-la; mas sentiu uma esfrolada no sapê do rancho: levantou a cabeça e os olhos encheram-se-lhe de moinha de palha como se o teto se fosse pulverisando. As pancadas sucediam-se em cima no colmado, nas paredes; torrões de barro desprendiam-se. Ela compreendeu: era a molecada que lhe apedrejava a casa. Deixou a criança e, aos trancos, mal se podendo ter nas pernas, saiu à porta vociferando:

— Oia, canáia, cês não bole cum quem tá quieto.

Mas as pedras esfusiavam, batiam no palhiço, frouxas, destorroavam o adobe das paredes, farfalhavam no bananal e a velha, para não ser alcançada, recolheu-se, fechou a porta, e, na penumbra estriada de sol, junto do jirau onde a criança arquejava, ficou a ouvir o estrondar das pedras e a grita da molecagem que atacava o rancho.

IX

Fim de tarde estival. Ocaso esplêndido. O sol fulgido, engastado entre dois cimos, irradiava em leque sobre o redente da serra afogueada. Frondes coruscavam em lumareus, colinas pareciam cobertas de velocinos. Lampejavam relumes na planície: placas rútilas de poças, discos, estrias d'água; um remanso liso do rio cintilava vítreo espelhando fulgurantemente o fogo vivo das nuvens. Tênue poeira solar esfumava em purpurina e ouro os longos da paisagem.

Cigarras cantavam assíduas e, dentre as macegas esturricadas, subia o estrépito dos grilos. Trescalava acre um cheiro quente de terra seca e de ervaçais queimados. Névoas de fumo diáfano rolavam lentas, evoluindo acima das cabanas.

A noite subia vagrosa, serena, empalidecendo o céu onde apareciam, piscando, pequeninas estrelas. As saracuras cantavam nos banhados. Vago, misterioso murmúrio tremia no silêncio como surdina de reza. A espaços, alvoroçadamente, levantava-se o grasnar dos gansos.

Turmas de escravos desciam em filas lentas, coleando pelos caminhos sossegados onde já era escuro e bacuráus piavam.

Chegavam carros. Carneiros arrebanhados descendo resvaladiamente as rampas, muito unidos, como que rolavam dando a impressão de surdos esbarrondamentos. Pontas de gado abeiravam-se das cercas. Por vezes um grito alegre repercutia.

Esbatia-se em violete o cariz do horizonte onde as nuvens como que se dissolviam e o perfil da serra e do arvoredo desenhava-se duro, em negror, no fundo céu macio.

Começava, aqui, ali o lúgubre coaxar dos sapos. Rolas gemiam quérulas; acendiam-se indecisos pirilampos.

Alumiou-se uma das janelas da casa. A sineta tiniu no “quadrado”. Ave Marias.

Justamente nesse instante a porteira guinchou estrídula no alto e logo uma récua sôfrega precipitou-se atropeladamente, ladeira abaixo, sacolejando ceirões e fardos. Por último, lerdo, solavancando, um carretão com toldo de esteira.

Tropeiros, arremetendo aos gritos, lançavam os cavalos pelos barrocais ou riba acima procurando cortar a frente ao lote desabrido. Os animais, reconhecendo a “querência”, desembestavam desensofridos e era um aturdido tumulto como de combôio em destroço: gritos, pragas, galopes arrancados: um macho que tresmalhara espantado cabritando pela encosta; outro, empacado, d'orelhas fitas, mirando, a medo, o valo; vários em magote espremendo-se aos apertões. Era a tropa de Macambira que regressava da Corte.

A fazenda alvoroçou-se com a tumultuosa entrada. Saiu gente ao terreiro; as mucamas afluíram à varanda em grazinada alegre e no jardim estrondava a algazarra dos moleques.

Manuel Gandra apareceu à porta do escritório, a própria D. Clara, sempre ofegante, enorme no amplo roupão de chita, rebolou curiosa até a cadeira de verga. Era uma festa na monotonia banzeira da fazenda. Por fim Macambira assomou no alto, firme no macho árdego. Esteve um momento parado, destacando-se, a prumo, sobre o fundo do céu ainda claro, com a imobilidade de uma estátua. Vagarosamente, a passo cauteloso, o animal veio descendo, sondando o piso no caminho escalavrado, e o negro sempre direito, como uma figura de bronze, inflexível.

Um molecote, agachado entre os bambus, brandou-lhe:

— Lúcia morreu, Macambira.

O negro passou indiferente e, abandonando as rédeas ao macho, olhava ao longe, a fito, como procurando na colina, entre as árvores escuras, a casa do seu enlevo.

A tropa ajuntou-se no terreiro e foi logo uma barafunda dos que haviam feito encomendas — crioulos, negras, mucamas em falario. E os tropeiros azafamados resmungavam repelindo os insofridos e iam desatando as cangalhas, soltando a mulada. Os animais, aliviados, sacudiam-se, deitavam-se espojando-se e, um a um, a passo, ou investindo aos pinotes, cabeça baixa, orelhas murchas, partiam em direção ao pasto.

Acenderam-se candeias e, enquanto uma turma recolhia ao paiol ceirões e fardos, Macambira, com a bolsa a tiracolo, adaga à ilharga e a garrucha no cinturão, subiu a prestar contas.

O negro caminhava de cabeça baixa, vergado, vencendo lentamente o aclive. Entrou na escuridão das casuarinas, atravessou a cerca de espinheiros e chegara ao caminho liso do jardim, que o luar parecia cobrir de areia, quando um vulto, que descia estabanado, estacou de golpe. Um muxoxo de nojo explodiu e o negro quedou firme, em altitude hostil, reconhecendo Vaca-brava. A cabrocha desviou-se, atirou de repelão o chale aos ombros e, com uma rabanada, para evitar o encontro, meteu-se pelo gramado, resmungando por entre casquinadas irritantes. Macambira estremeceu e, ainda que tentasse prosseguir, não pode: o sangue fervia-lhe em furor frenético. Voltou-se d'ímpeto e, em voz surda, interpelou Donária.

— Qu'é qu'ocê tá rindo, sua vagabunda?

Uma gargalhada cascalhou.

— Quem não pode co' tempo não inventa moda. Pai di fio... océ?! Pois sim!...

O negro atirou-lhe uma injúria e ela, já longe, esganiçou:

— Tico-tico! Capão! Ocê vai achá a marca, muxiba. E ria estridentemente.

Ainda que não compreendesse a alusão da cabrocha, Macambira emperrou desconfiado. Instinctivamente levou a mão à coronha da garrucha, voltou-se e ficou a olhar, airado, com os músculos da face em crispações de cólera.

— Cá! rangeu na garganta, meneando com a cabeça. Inquanto eu não dé uma lição nessa bicha ela não se disingana cumigo.

E ocorreu-lhe, súbita, uma ideia. Cravou os olhos no chão claro conjecturando.

— S'eu duvido! Um diabo desses é capaz di tudo. Pensava na morte de Lúcia, cuja notícia tivera logo ao chegar na Barra. Aperrou as mandíbulas rilhando os dentes. Ah! peste!... E, caminhando devagar, parando de instante a instante, revia a cena daquela tarde.

O armazém do Narciso regorgitava como uma feira. Fora, a mulada junta e, presos aos esteios, machos de sela, cavados, burros de cangalha; carretas com os bois amodorrados, uns de pé, imóveis, como adormecidos sob a canga, outros deitados, ruminando; porcos fussando o lodo, cabras, sujos carneiros abadalhocados de grumos imundos, galinhas ciscando em estrumeiras e uma moscaria zoante azucrinando os animais, que não cessavam de espanar as ancas com a cauda, de bater as orelhas, de patejar no enxurdo.

Ele entrou alegre, saudando o povareu garrulo: tropeiros, carreiros, trabalhadores da linha e o mulherio frascário que andava à gandaia, tudo bebericando, chasqueando num ambiente estonteante de fumo e álcool.

Uma sanfona zaguinchava fanhosa. Abeirando-se do balcão, pediu um capilé e o pequeno trasfegava a beberagem em dois copásios quando Narciso, pondo-lhe a mão ao ombro, disse, olhando-o de frente, com ar compungido:

— Então lá se foi a coitada, hein? Ele voltou-se arrebatado:

— Qui coitada?

— Tua mulher. Pois então? Aquilo foi descuido ou, quem sabe lá! maluquice. Essas rapariga não têm juizo, í com a barriga à boca e abusam. Eu não me canço de dizer. O resultado é esse.

A fisionomia do negro assombrava-se.

— Mas qu'é qu'ocê tá parolando aí? Fala duma vez. Qui é?

— Pois que há de ser? E olhou-o a fito. Então não sabes? Não sabes que Lúcia morreu?

Macambira estremeceu dos pés à cabeça, baqueando, e, como se o negociante o houvesse ofendido, atirou-lhe no rosto, em voz arquejada e soturna, com os olhos esbogalhados, chispantes como brasas:

— Cumu é? Qu'é qu'ocê tá dizendo? Lúcia!? Ocê tá sonhando, Narciso?

O negociante apelou para um carreiro:

— Pergunta a Romão.

O nomeado, um mulataço bexigoso e vesgo, mal encarado, virou o codório e, caramunhando, depois de passar o braço pelos beiços e cuspilhar d'esguicho, acenou de cbeça, resmungando:

— Hum! Hum!

Outros confirmaram acercando-se de Macambira, que ficou num círculo, relanceado em torno o olhar atônito, como animal acuado.

— Cês qué tomá pagode cumigo, disse com um risinho trágico.

— Pagode?! Uai! Morte é côsa di pagode?

Um velhote acrescentou:

— Lesbão tá í fora. Prigunta.

Macambira rompeu d'arranque o ajuntamento e saiu ao alpendre. Efetivamente lá estava o coveiro sentado, pitando com enlevada pachorra. Aquilo, fora, tresandava nauseantemente à lama e a esterco e o mosqueiro zoava enxameando o ar.

— Tio Lesbão, é verdade mêmo qu'ocê interrô Lúcia?

O coveiro, um cabra seco, ossudo, levantou a cabeça refoufinhada, tirou o cachimbo da boca e, ruminando um momento com as gengivas sem dentes, depois de olhar Macambira, encolheu molemente os ombros e, descaindo de busto, com os cotovelos nos joelhos, quedou alheado.

—Fala! intimou Macambira. Ocê interrô Lúcia? O velho respondeu de mau humor:

— Havia di dêxá à toa, qui nem carniça, não é? Tá lá! e atirou o braço num gesto vago.

Macambira estarreceu bebetado, de boca aberta, os olhos lânguidos, mole. As pernas bambeavam-lhe frouxas e o beiço penso, flácido, descobria-lhe os dentes claros. Esteve um momente a olhar o coveiro, mudo, numa idiotia pungente. Por fim, insistindo, perguntou:

— Morreu? O outro arregaçou lentamente a calça e pôs-se a coçar a perna magra, escalavrando-a a unhadas. Morreu di quê, tio Lesbão? Di quê?

— A modi qui foi di parto?

— I criança? Ocê interrô criança tamen?

— Só si veiu junto. E, acendendo o cachimbo pôs-se a pitar tranquilo.

Macambira tornou ao armazém, encostou-se ao balcão.

— Antonce? Perguntaram.

Ele não respondeu, arvoado. De instante arrancava-se-lhe um suspiro do peito. O coração crescia-lhe como uma esponja que fosse encharcando, faltava-lhe o ar. Tomou um gole d'água, saiu, reuniu a tropa e pôs-se a caminho. Pensou em dar uma chegada ao cemitério, ver a cova, mas era tarde. E ele tão longe, sem saber! Se estivesse ali ela não teria morrido, mas só com a preta velha, coitada! O senhor... não vê que ele ia pagar médico para uma escrava...! nem para a mulher, quanto mais...!

Um raio de luz, batendo-lhe nos olhos, encandeou-lhe; estava diante da casa grande. Caminhara sem sentir, distraído na lembrança daquela tarde magoada. As mucamas conversavam no alpendre aos cochichos, aos risinhos. Ele seguiu lento, cançado, até a porta do escritório. Gandra embalava-se na rede:

— Suns Cristo!

— Entra.

Olharam-se em silêncio, a fito. Macambira abriu a bolsa atochada e retirou a correspondência do senhor: cartas, notas de venda, farturas e um maço de dinheiro. Gandra levantou-se preguiçosamente, procurou os óculos, e, abancando-se, pôs-se a conferir o recebido. Contou o dinheiro, examinou as notas de compra e venda e, guardando os valores no cofre, espetou num gancho o resto da papelada. Então, tornando à rede, pediu notícias de Julinho:

“Se estivera com ele? Como o deixara? E os correspondentes? Se trouxera todas as encomendas? Que novidades havia na Corte?”.

O negro respondia em termos breves, cerce, e angústia crescia-lhe no peito, que arfava. De repente, ajuntando as mãos em súplica, avançou um passo e, curvando as pernas, em menção de ajoelhar-se, exclamou em voz surda e trêmula:

— I Lúcia, sinhô!

O fazendeiro encarou-o um momento interdito; deu d'ombros e, pondo o charuto à beira da mesa, suspirou:

— É verdade! Quando Balbina me procurou já ela estava morta. Uma pena! Rapariga moça, cheia de vida!... Também tu... Se me houvesses dito que ela estava a termo eu não te teria mandado à Corte, tinha aí o Tibúrcio! Calou-se, logo, porém, olhando-o: Mas queres saber? isso quando tem de acontecer... só Deus! O negro mantinha-se cabisbaixo, imóvel. Agora é ter coragem. A vida é assim mesmo. Que se há de fazer? Deixou a rede, pôs-se a andar pelo escritório, a esmo, mascando o charuto. É assim, continuou em solilóquio, umas têm os filhos por aí, no mato, como animais, tomam-nos ao colo, descem com eles e três, quatro dias depois estão frescas, puxando enxada. Outras... é assim.

— E criança, sinhô?

— Nasceu morta.

— I sinhô viu? perguntou o negro, como desconfiado.

Gandra levantou a cabeça de golpe, encarou-o severo, afirmando em tom enérgico:

— Sim, vi! Como não!? Por quê? O escravo deu d'ombros; e houve um pesado, molestoso silêncio. O fazendeiro pôs-se a caminhar pensativo. De repente lembrou: É melhor ficares cá em baixo. A casa, lá, tem estado fechada.

— Tia Balbina saiu?

— Isso com certeza. Ninguém gosta de ficar onde houve defunto. Arranja-te hoje por aqui e amanhã...

O negro interrompeu-o:

— E não comes?

— Não tenho vontade. Sinhô não quê mais nada?

— Não. Amanhã.

— Então vancê dê licença. Benção!

— Vai com Deus.

Macambira saiu lentamente, como vergado a um grande peso e foi-se, preferindo a escuridão dos caminhos onde o arvoredo interceptava o luar.

As mucamas, no alpendre, chalravam às gargalhadas. Um cão latiu na escada. Sapos saltavam. Vagalumes, cruzando-se, acendiam brasas na espessura das moitas.

Chegando às casuarinas, pareceu-lhe que uma mulher de branco estava parada junto à corça de espinheiros. Olhou a fito, pensando na morta, com a pávida certeza de que era ela que ali o esperava. Mas avançou e logo a aparição resolveu-se no que era: claridade do luar nos ramos.

Insensivelmente, foi apressando o andar. Os passos alargavam-se, aligeiravam-se-lhe a mais e mais e, no frescor da folhagem, o seu hálito ofegante lufava.

Por vezes, num ramalhado mais denso, abaixava-se e os galhos sacudidos, abrindo raros, deixavam passar filtrados clarões de lua. Uma cigarra cantou.

O negro começava a sentir a casa, reconhecia certas árvores, certos socalcos e depressões da ladeira. Para atalhar a subida meteu sofregamente pelo mato agarrando-se a ervas rijas, a troncos, guindou-se por um barrocal a pique entrando no pomar que rebrilhava no silêncio frio.

Sombras esgueiravam-se ariscas com um farfalho trépido de versas, um voo surdo estuou, houve um frolar de ramas e logo chirrio d'ave. E a casa apareceu alva, fechada, alargando uma sombra negra pelo terreiro silente e alumiado. Ele saiu no limpo, parou relanceando o olhar em volta — a terra, em baixo, estendia-se clara, numa solidão melancólica e a serra longínqua, escura, agarrada ao céu, tinha estrelas nos cimos. O negro esteve olhando, a recordar miudamente, numa espalhada saudade que abrangia céus e terras, o tempo e, em tudo, a morta.

Lá estava a acácia do noivado, a árvore das confidências, toldo dos amores felizes. Um banquinho tosco jazia atirado junto à cancela do pomar. Era nele que Lúcia costumava sentar-se, à noite, à porta da casa, olhando, calada e triste, as estrelas do céu, como se pressentisse o seu acabamento trágico. Apanhou-o, pô-lo de pé devagarinho, carinhosamente, como apiedado de o ver em abandono. Caminhou direito à casa, bateu à porta, empurrou-a; bateu de novo, chamando:

— Tia Balbina! Silêncio! Deu volta forçando as janelas, a porta do fundo. Tia Balbina! Ninguém! Quedou roendo as unhas. A sombra do galinheiro atraiu-o como um ser vivo. Foi ate lá, encostou-se às ripas, olhando. Deserto! E o cão? e o porco? tudo que era vida sumira. As árvores frondejavam com a respiração da noite, subiam ruídos trêmulos dos matos e o aroma dos lírios pairava suavíssimo. Por vezes uma estrela corria esfiada no ar.

O negro caminhou até a barreira, parou merencóreo. Uma voz humana, doce, falou docemente entre as árvores, chamou com meiguice:

— Psio!

Ele ficou hirto, à escuta, com o coração aos ímpetos. Era Lúcia! Olhou, certo de vê-la. Como que o luar alumiou mais claro, em palidez mortal; súbito cerrou-se em luto, mas logo branqueou, mais triste.

Quem andaria assim abrindo e fechando a lua? E se a casa se abrisse de repente, iluminada, e Lúcia aparecesse à porta, com o filho nos braços, chamando-o? Teve medo. Um frio gélido arrepiou-o, entrou-lhe no sangue. Os cabelos aspavam-lhe o crânio, a pele arrufava-se-lhe. Coisas saltavam-lhe diante dos olhos: eram pontos negros revoluteando, discos de fogo. As ervas ondulavam estranhamente, árvores moviam-se como desenraizadas. Um penedo inclinou-se a pique ameaçando cair, logo, porém, apareceu a prumo, fixo. Houve um riso estrídulo. Ele olhava e os olhos ardiam-lhe como a um vivo calor de chama. Instantaneamente uma cachoeira atoalhou o pendor da montanha. Foi um momento e as árvores reassumiram o seu torrão; de novo, porém, a precipitosa alvura d'águas rebrilhou, escachoou para desaparecer subitânea sob o negror do arvoredo.

Que seria aquilo? aquelas fantasmagorias? aquelas vozes vagas? aquelas iterações de claridade e sombra, aqueles movimentos de terra e d'águas inexistentes?

Quedou-se atento, relanceando em volta olhares de assombrado, mas dominou-se, enérgico e, vagarosamente, caminhou para o terreiro. Em como a presença de seres invisíveis, que o rodavam aereamente roçando por ele brandas, finas plumas de asas. Diante da casa estacou, a olhar airado. No silêncio funéreo por vezes trepidava um estralejo. De longe, das águas adormecidas, das úmidas ervagens, lá em baixo, subia erebro, monótono o coaxo lúgubre dos sapos e pelas sombras, incessantemente, era um tremeluzir de lumes que faiscavam e morriam.

O negro continha-se, mas o peito enchia-se-lhe de angústia, oprimia-o, abafava-o; a garganta apertava-se-lhe como em estrangulamento e o coração, inchado, parecia prestes a rebentar. Parou diante da porta.

Era ali que os dois costumavam ficar, à tarde, ele fumando, ela sempre triste, suspirando presságios. Viu-a como em um relâmpago. De repente, rebentaram-lhe as lágrimas dos olhos e, de pé, hirto, impassível, deixou correr o pranto e, enrolando um cigarro, acendeu-o chupando-o aos haustos. D'ímpeto, atirou longe o cigarro, ainda olhou saudosamente a casa, toda branca, o alumiado arredor, a acácia, o pomar reluzindo em brilho metálico aos reflexos da lua, e partiu resolutamente, a passos largos, até a vereda íngreme, esboroada em escaleiras e carcavões, entre silvas ásperas, deixando-se escorregar de resvalo em rastolhada estuante pela folharia.

Em baixo resfolgou cansado, limpou o rosto e atufou-se até a cintura no alto massambará, atravessando a pinguela, oscilante sobre a água rasa do córrego, lenta e cintilando em tremulina argêntea.

Pegando o rumo da covanca, seguiu direto ao rancho de Balbina. Entrou no bananal chapinhando no esponjoso rebalso de lodo e folhas podres, que reçumavam. Desceu a barranca onde a calha gargarejava entre as pedras e, saindo no terreiro, viu luz através das fendas do rancho entaliscado.

Chgou à porta sem ruído, empurrou-a de leve e, sentindo-a ceder, passou d'esguelha. Balbina, sentada de costas para a entrada, à beira de um lume de gravetos, cujo clarão alumiava bruxoleantemente os muros, tinha tão pendida a cabeça sobre o peito que, vista assim, por trás, parecia um busto de decapitada.

O negro ficou um momento parado, olhando a baiuca colgada de falripas de sapê, com os caibros negros de tisne luzindo como envernizados. Trapos fraldejavam em cordas; pelo chão espalhavam-se em cascalhada, entre burundangas, palhas, folhas secas, bagaços de cana. Fedia e o fumo acre da lenha tornava o ambiente estitico, irritante.

Adiantava-se sutil, rente do catre, quando ouviu um rascar serrilhado. Parou atento, olhando; inclinou-se para ver de perto e distinguiu uma forma viva na trapalhagem sórdida. Afastou os molambos e descobriu o corpinho esquálido do infante, inerte, agitando-se, de longe em longe, em vibrações de espasmo. A espaços saiam-lhe da garganta, em gasnitos, borborismos de dispinéa. Os olhos do negro abriram-se desmesuradamente, pasmados, relumbrando, fitos naquela miséria humana que ia tristemente acabando. Teve um presentimento. O coração bateu-lhe de golpe num afluxo de sangue; atordoou. As pernas afrouxaram-se-lhe, sentia-se como esvaído. Riscou um fósforo, debruçou-se sobre o jirau e, com a luz bem no rosto do pequenito em halo, via-lhe a cor pálida, os olhos cerrados, a boca entreaberta e lívida, todo o corpinho frágil, o peito ripado de magreza, o ventre tumido, às upas. Tornou com a luz ao rosto e só via a cor, a cor branca. Aprumou-se ereto, sorvendo a haustos o ar, numa sufocação augusta. A criança nem abria os olhos; um como gemido humilde saía-lhe, a instantes, do peito.

— Véia! bradou Macambira.

A negra estremeceu, voltou-se estremunhada e, dando com o negro, sem reconhecê-lo de pronto, pôs-se de pé.

— Cê quem é?

— Macambira.

Ela estatelou estarrecida, com um olhar idiota, a boca aberta. Súbito soprou a candeia que ardia em cima do caixote. Fios de luar zebraram os muros e o clarão da fogueirinha fez-se ainda mais vermelho.

— Cê apago a candeia mod'eu?

— Foi vento.

— Vento!?...

—I pra quê luz? Fica assim mêmo. Lua tá í. Cê quando chegô?

— Que criança é essa? perguntou o negro de improviso.

Aturdida, a velha não deu resposta, enrolando a trunfa, sem atrover-se a levantar os olhos para Macambira, que se conservava imóvel, encarado nela, com o braço duramente estendido, apontando a criança, que agonizava.

— Esse é fio de Lúcia, não é? Fala verdade! Esse é fio di Lúcia? A velha regougou atônita. Macambira bateu com o pé, rugindo: Fala verdade!

— Uai! Cê inda que zangá cumigo? Tomou a candeia, acendeu-a ao lume dos gravetos e, colocando-a, de novo, sobre o caixote, falou serena? Dêxa, fio; dêxa. Morte tá í. Cê não tá vendo? Morte tá í.

Macambira acompanhava com olhar sobrecenho a velha que remancheava tomando e logo deixando objetos.

— Esse é fio di Lúcia, não é?

A criança abriu a boca com um descolamento. Balbina cobriu-a, traço-lhe sobre o corpo o sinal da cruz. O chirrio da coruja arrepiou asperamente o silêncio.

— Oia, disse a velha, morte tá passando.

— Fala! insistiu o negro; e ela, sempre macia:

— Dêxa, rapaz. Noss'Sinhô tá lá im cima oiando. Má qu'a genti faz é aqui mêmo qui paga. Dêxa. Qué qu'ocê vai fazê agora? Bateu as mãos uma na outra como a alijar culpa e, esticando o pescoço, com o queixo apontado em esporão, disse: Qui vai fazê? Tá nu céu, peno di mais. Cê lembra tristeza dela? Tá í. Senta, Macambira. Não teve curpa, não. Foi nhô Julinho.

O negro vibrou eletrizado, sapateou de furor e um urro rouco trovejou-lhe na garganta. A velha prosseguiu mansamente:

— Nhô Julinho rondava ela — moça, bonita... Ela sempre de cara fechada, dando p'ra traz. Mas uma vez, di tardinha, quase na véspera du casamentu, ali junto di figuêra, nu caminho do açude, ele armô ispéra. Lugá deserto, ela só, cumu vai fazê? Ele garrô ela, fez u qui quis i foi s'imbora. Ela pudia contá sinhô, mas p'ra quê? Cê não lembra Lucinda? Sinhá ficô qui nem jararaca, inda mandô surrá rapariga, largô dipois à toa até Mangaló fazê u qui fez. Quexá p'ra quê? A ocê sim, a ocê ela divia tê contado, ma ocê sabe: medo, vergonha. Escravidão é assim mêmo. Genti não vali nada, anda nu mundu à toa, qui nem foia n'água. Qui vai fazê? Sinhô manda. Cê mêmo, cê vira contra sinhô? Ele manda, ocê faz; cê mêmo, fio di Munza. Cê não tá í, cativo, quanto mais dia, coitada! O negro resfolegou alto. Lúcia era boa di coração, Macambira; quiria bem ocê; rapariga séria. Eu vi. Foi mardadi di nhô Julinho. Cê não magina quand'ela mi contô — tava já nas urtima: sangui correndo, ela sem sinti, chorando e falando, chorando e falando; i jurou. Tamem não disse mais nada, foi qui nem cunfissão.

O Negro abateu à beira do grau, sentado, inclinou-se com os cotovelos nos joelhos, a cabeça nas mãos e ficou imóvel, apenas as pontas dos pés batiam nervosamente.

— Dêxa, Macambira, Noss'Sinhô tá oiando.

Chegou com a candeia ao rosto da criança, viu-lhe os olhos entreabertos, encostou-lhe a mão ao peito, apalpou-lhe as faces, roçou os dedos pela fronte onde fios penugentos de cabelo punham um reflexo dourado e afastou-se vagarosa.

— Oia, Macambira, sai daí, criança cabô.

O negro levantou-se, lançou um olhar ao pequenino cadáver e foi sentar-se perto da fogueirinha.

Aproximando o caixote do jirau, Balbina pôs-lhe em cima a candeia para alumiar o defunto, e suspirou como aliviada. Macambira raspava lentamente a fronte com a mão espalmada, os olhos pasmados no lume. As mandíbulas, duramente aperradas, esmolam cólera; por vezes, fechando os punhos, metia-os pela barba, a finco. A sua respiração era lenta, espaçada e lufava. De repente, pôs-se de pé, dobrou-se para trás, retesando os braços e, sem uma palavra, paulatino, seguiu para a porta. Abriu-a largamente fazendo-a estalejar e todo o rancho estremeceu, frágil, como a um abalo da terra.

— Ond'ocê vai?

Saiu sem responder. Fora, o ar da noite, puro e frio, envolveu-o como em umidade. Levantou os olhos para o céu e ficou como enlevado no luar. A água da calha cantava na sombra, e tudo mais era quieto. Raro, de longe em longe, um soído na erva e trépido, como um latir longínquo, que era o grasnar das rans e das pererecas nos aguaçais. Relançou a vista em torno como à procura dum ser vivo naquela imensa inércia que o luar alvo amortalhava. Caminhou.

— Ond'ocê vai, fio di Deus? perguntou Balbina aparecendo à porta do rancho.

Mas o negro já ia longe. Entrou no capinzal, surgiu adiante, num chão liso, desapareceu por fim no coqueiral cujo palmar, muito unido, rebrilhava cintilantemente como um aqueduto abundante corrido sobre colunas.

Sentado no patamar do escritório, ainda lerdo de sono, um moleque segurava as rédeas do Pampa quando Macambira apareceu em tal desalinho, tão demudado de feições que parecia ter vindo de esforçado trabalho ou de luta renhida. O pequeno levantou estremunhadamente os olhos remelosos e, estendendo a mão engelhada, murmurou:

— Benção!

O negro não deu resposta e entrou. Uma mulata, que arrumava a secretária, suspendeu o serviço espantada d'arrogância do parceiro que olhava d'alto, carrancudo, relanceando a sala.

— Que dê sinhô?

— Tá lá dentro.

No mesmo instante, porém, houve um tinir d'esporas e Gandra assomou à porta interior, de branco, botas de couro cru, relho ao punho e o largo chapéu de palha com que saiu à roça. Dando com o escravo, parou, vagarosamente acendeu o charuto, e, lento, mirando o negro d'olhos cerrados, perguntou secamente:

— Que há? Macambira encarou-o altivo e o fazendeiro, sentindo o furor que lhe acendia chamas no olhar, logo o atribuiu ao caso de Lúcia. Despedindo a mucama: Vai-te embora! Encostou-se à secretária, cruzou a perna e encarou o negro. Que há?

Macambira não tinha sossego, virando, revirando a cabeça, retorcendo as mãos, mordendo os braços, mascando como animal árdego que tasca desensofridamente o freio. Gandra, impassível, esperava a explosão. De golpe, num jato, em voz surda, o negro perguntou:

— Sinhô viu fio di Lúcia?

Gandra franziu e sobr'olho, trincou o charuto sem, contudo, denunciar irritação e, serena, pausadamente, respondeu:

— Vi.

— I antonce?

Cruzou violentamente os braços, com um ruído cavo do peito largo. E encararam-se mudos. Gandra tirou o charuto da boca, sacudiu-lhe a cinza e disse em tom macio:

— Olha, eu podia responder-te como costume... Fez uma pausa, olhando d'alto, a fito, e ordenou em tom seco: Tira o chapéu. Só então Macambira se apercebeu da falta de respeito e, humildemente, vexado, descobriu-se. Eu podia mandar-te embora, continuou o fazendeiro, não o faço porque vejo que não estás em ti e porque, até hoje, tens sido um bom rapaz. Se eu soubesse do que tinha havido com Julinho teria sido o primeiro a prevenir-te. Quis que te casasses com a rapariga porque sempre a tive em boa conta: quieta, direita, trabalhadora, a mulher que te convinha. Mas eu não ando ali pelos matos, não me meto com essa súcia e isso de mulheres quando se desencaminham nem Deus as guarda.

— Mas foi nhô Julinho, sinhô.

— Qual nhô Julinho! Quando a mulher não quer não há homem que a vença. Metem-se na cachaçaria e, se apanham barriga, aqui d'El-Rei, botam a boca no mundo! que fulano fez e aconteceu. Ninguém força mulheres. Ou vão por gosto ou ninguém as leva. Esta é que é a verdade, e tu sabes.

— Ela contô tudo a Balbina, antes di morrê, sinhô. Foi nhô Julinho. Sinhô sabe: nhô Julinho não gosta di mim, vive sempre cum pirraça, inticando. Não foi tanto por ela, foi mais mode mi fazê má, tanto qu'ele espero u pedido di casamento i só depois dela noiva foi que ele abusô.

— E ela? Porque não te disse? Quer dizer que, se não houvesse ficado grávida, teria abafado a pouca vergonha, não é? Quem a denunciou?

— Noss'Sinhô... murmurou o negro.

— Qual história! Enganou-te, pagou. Está morta, que mais?

— E eu, meu sinhô? Nhô Julinho não gosta di mim, tem ogirisa cumigo, vancê sabe. Ele fez isso só p'ra mi fazê má. Tanta muié aí à toa i havia di cê Lúcia, depois di noiva? Vancê não tá vendo tenção? Modi que?

— E ela! explodiu Gandra, e ela porque não te disse antes? Então a desonra foi o filho, não a patifaria? História: São todas da mesma laia. Uma canalha! Só mesmo a chicote. E, lembrando-se da ordem que dera à Balbina, e que não fora cumprida, rugiu entre dentes: Aquela burra vai ver! Vai ver! O negro remoeu fulo, meteu a mão pelos cabelos, repuxou a barba em estuo de cólera. Gandra passeava: Tudo uma corja! Piores que porcas!

— É, meu sinhô, é assim mêmo. Branco é branco; eu já sabia; negro não tem nada, muié di negro é di tudu mundo. Nhô Julinho fez bem. Ficou cabisbaixo, ruminando. De repente, em voz decidida, impôs: Então vancê vê minha carta, diz quanto é, eu pago e vou-me embora.

Gandra aprumou a cabeça e, d'ímpeto, o olhar faiscante, os lábios lívidos, atirando uma rolhada à secretária, rugiu, batendo as palavras entre os dentes cerrados:

— Vais-te embora! e avançava contra o negro encolhido, ameaçando investida. Vais-te embora! Então isto aqui é rancho ou que é? Eu estou aqui para ouvir intimações ou para dar ordens? Com quem estás falando?

— Eu não tô intimando, meu sinhô... Mas meu sinhô sabe... tartamudeou o negro.

Gandra ainda repetiu no estúo da cólera:

— Com quem estás falando?

O negro explicou-se humilhado:

— Meu sinhô sabe... essa gente toda não gosta di mim porque meu sinhô mi trata bem, tem confiança im mim. Agora, com isso, mou sinhô vai vê: toda a gente vai tomá pagode i um homem tem sangue. Eu não quero fazê uma disgraça, respeito meu sinhô i a casa, mas a gente tem sangue.

— Quem é que te falta com o respeito? Quem é? Se alguém te disser ou fizer alguma coisa, eu estou aqui. E acabemos com isto. O que passou, passou. De novo lembrou-lhe a velha Balbina, culpada de tudo, por não haver enjeitado a criança, como lhe fora ordenado. Aquela burra! Votou-se para Macambira: E onde está a criança, onde a viste?

— Criança morreu. Tá lá nu rancho di Balbina.

— Está lá, hein?

— Tá sim, sinhô.

— Pois sim. Rilhou os dentes. Pois está tudo acabado. Vai tomar conta do serviço e, se alguém bolir contigo, vem dizer-me.

Macambira retirou-se de cabeça baixa e Gandra pôs-se a medir o escritório a lentas passadas, sacudindo nervosamente o relho. Súbito, numa resolução, saiu, montou a cavalo partindo a galope direto às casuarinas.

Macambira caminhava a passo, deixava-se ir como um sonâmbulo, seguindo instintivamente os volteados caminhos, por entre ramos que gotejavam. A manhã reluzia, fresca e balsâmica e pelo ar luminoso, de uma transparência de espelho, eram voos felizes e sons de trabalho: rinchos de carros, rangidos ásperos de serra, marteladas e soturno, monótono, o bater de um pilão sob o telheiro, na aba da cozinha.

 O negro descia resmoneando, gesticulando. Por vezes parava cabisbaixo repuxando um galho d'árvore, arrancava folhas e ficava a enrolá-las sorrindo ou de cenho fechado.

Vozes, risos partindo do bambual tiraram-no do pensamento ferrenho. Levantou a cabeça — era um rancho de mucamas, toalha às costas, cabelos soltos ou refoufinhados, brilhando d'água. Vinham em pagode, aos empurrões, à risota. Sentindo-se, porém, observadas retraíram-se, sérias, cochichando, às cotoveladas umas às outras. Mas uma voz rouquejou entre elas:

— Ah! já ocês cumeça co' medo. Medo di quê? Antonce a gente não podi ri? Uai! Quem mandô? Sés já viram cajuêro dá banana? Antonce? E um muxoxo explodiu.

Macambira estacou reconhecendo Vaca-brava. Era a cabrocha que fanfarronava no meio das mucamas.

Como para afrontar o negro adiantou-se ao bando, apanhou no chão um galho seco e, agachando-se, de mãos nos joelhos, desatou a rir. As outras não se contiveram e espocaram à gargalhada, correndo, ladeira acima, com as toalhas palpitando ao vento que nem asas. Vaca-brava ficou isolada e, vendo as companheiras longe, bradou-lhes:

— Cês fugiu p'ra ri? Uai! Sinhô não se importa qu'a gente ria quanto mais...

O negro arfava seguindo, com o olhar em fogo, os movimentos da cabrocha. De repente, arrancando-se de onde estava, a passo largo e decidido, enfrentou-a interpelando-a com desabrimento.

— Cê qué tomá pagode cumigo? qué? Cê tá mangando? diz! Cê não s'imenda mêmo, sua porquêra? Qu'é qu'ocê tem di ri?

A negra encarou-o, mediu-o dos pés e cabeça retorcendo os beiços com desprezo:

— Qui é? Qu'é qu'ocê tem qu'a gente ria? É da tua conta? Ora...! e deu d'ombros.

— Cê tá, rindo di mim, cê i essas biraias da tua iguala. Diz: é di mim?

— S'a genti ri é purqui tem di quê.

— Cumu ê? Indagou em tom de fúria, corcoveado e, sem mais, abotoando-a pela camisa, sacudiu-a aos sacalões, rasgando-a e a cabrocha, aos boléos, injuriava-o, cuspia-o, mas atingida por uma bofetada, atordoou, perdeu o equilíbrio, rolando sobre um canteiro. Macambira levantou o pé e tê-la-ia açacanhada se ela, coleando com ligeireza de cobra, não escapasse ágil insinuando-se no banual. Então, acovardada diante da cólera, cada vez mais incendida, do parceiro, ameaçou-o:

— Cê bati eu grito sinhô. Cê não bati.

E encolhia-se, escudando o rosto com o braço, a recuar de rasto. O negro mirou-a com desprezo e, chegando-se-lhe muito perto, curvou-se e disse-lhe com a voz em silvo, um dedo hirto, quase a espetar-lhe a cara:

— Oia, cê vai inchendo, vai inchendo até um dia. Tanto faz cadeia cumu senzala, tá uvindo? Assunta bem no qu'eu tô dizendo. Eu t'estripo! Eu t'acabo c'a raça! Vai rindo! Porquêra!

A cabrocha levantou-se e, compondo a roupa estraçalhada, meteu-se por entre os bambus. O negro rilhava os dentes vendo-a seguir. E ela resmungava:

— Já viu m'a côsa ansim? Gente vem seu caminho sussegado e um perrengue desses, purquê tá di calundú, implica dessa mancra. Diabo du tripa murcha! Quem mandô? E, já longe, voltando-se arremangada: Cê tá azedo? pois óia, quem fez cama não fui eu. Qué batê? bati ni nhô Julinho, ni mim não, que não tenho nada co' peixe. Diabo do muxiba! Pelanca só i qué fazê di genti.

O negro atirou uma patada ao solo, bramindo, de punhos cerrados:

— Cê cála essa boca, vagabunda. Oia qu'eu ti pego!

— Pega nada! Bati ni nhô Julinho. Quem mandô cumê resto? Cê n'é valentão? bati ni nhô Julinho.

E foi-se, gingando, a apartar os ramos às braçadas. Ele não se tirou do lugar, olhando, como encandeado. Então pareceu-lhe que tudo, em torno, entrava na assuada aviltante: a aguazinha do rego, serpeando em meandros, estribilhava hilare; as folhas pareciam convulsionadas de riso, tremendo nos ramos à aragem; e eram aves que remontavam, desciam, descrevendo círculos, chilreando como se o apupassem, borboletas em voos zombeteiros roçando-lhe quase o rosto; um beija-flor pairou tão perto, com um ruílo de troça, que ele, institivamente, desviou a cabeça e enxotou-o; calangos fugiam ágeis, rastolheiros, como se também o houvessem chasqueado e, medrosos da sua fúria, corressem a entaliscar-se; um bem-te-vi troteava no topo duma palmeira; o próprio sol, lá em cima, rútilo, tinha esgares sarcásticos. Era tudo. Ele relanceava olhares esgazeados, remoendo ideias de vingança, pensamentos de ódio. Sentia o peito túmido, harto, o sangue pulsando a estos; um fogo incendia-lhe o rosto, queimava-lhe os olhos; os ouvidos atroavam zoeira. Voltou-se para a casa dos senhores, clara ao sol: lá estavam as mucamas na varanda, rindo. Biraias! Meneou com a cabeça e, cruzando os braços, vencido, desceu vagarosamente, pensando:

“Ah! reino d'África, gente negra, guerreiros dos palmares...! Fosse lá! Como aquilo tudo ficaria, duma hora para outra, com os devastadores de aringas. Um mundo de gente desapoderada, arrojando-se aos tropelões pelos caminhos, saindo d'ímpeto dos matos, resvalando pela encosta das barreiras, gente de guerra, com cócares na grenha, brandindo armas, mulheres aos ganidos, correndo em fúria, com os filhos enganchados à cinta e azagaias em punho, feras fremindo e nuvens de flechas silvando; a casa cercada, assaltada, invadida de roldão, com estrondo; portas fendidas a machado, paredes derrubadas e a turba, em sanha frenética, apinhando-se no delírio do excídio, patejando em sangue e escombros; e o fogo, por fim, labaredas altas, rubras, envolvendo a casa, lambendo o ar, expluindo de rolos de fumo espesso; e a grita triunfal dos negros nus, o som rouco das buzinas, o tripúdio selvagem em volta do incêndio onde estralejavam caibros e estouravam corpos como lenha verde nas fogueiras de S. João. E ele, senhor de tudo, dono da terra, rei! espalhando gente por campo e monte, pondo guardas nas estradas, sentinelas nos coqueiros e arrasando, incendiando, vingando a raça, o seu reino, Munza, o seu ódio e o sofrimento secular da África”.

Enlevado no sonho sorria transfigurado e o sol punha-lhe no rosto rebrilhos como de bronze. Sacudiu nervosamente os braços acima da cabeça num gesto de triunfo, aclamando o seu povo. Ficou estático; pouco a pouco, porém, reentrando na realidade, deixou pender a cabeça, quedando imóvel. Logo, porém, reagindo, pôs-se firme, com um ritos bravio, cravou os olhos na casa senhorial, depois, numa volta rápida, lançou a vista para a colina. Lá estava a sua casinha deserta, branca como uma nuvem, entre o arvoredo lustroso. Pôs-se a caminho.

Passou pelas casuarinas, entrou no campo. Um cavaleiro apontou ao longo: era Manuel Gandra. Reconhecendo-o, o negro meteu-se no mato acocorado, à espreita, o ouvido atento. O sangue afluiu-lhe à cabeça: teve ímpeto de saltar ao caminho, agarrar o freio do cavalo, derrubar o senhor, estrangulá-lo ali mesmo; mas o animal passou muito faceiro na marcha esquipada, com o fazendeiro direito na sela, segurando o rolho fincado na coxa. Levantou-se e saiu e, repuxando lentamente a barba áspera, arrependeu-se de não haver ousado o assalto.

O campo estava deserto e cheirava a calor. Longe, à beira do córrego, um velho boi pastava. Anuns piavam voejando de galho em galho. Seguiu direto à covanca.

O rancho era ainda mais miserável à luz do dia — via-se-lhe toda a arruinada pobreza e a imundice. A porta estava aberta. Entrou. Dentro, a penumbra tinha rasgões de sol e um cheiro azedo e úmido. Pouco a pouco os objetos foram resaindo como se surgissem do escuro, a sombra tornava-se transparente: lá estava tudo: o jirau, o caixote, as prateleiras, panos em cordas, o brasido morto, em cinza. Um ofego, quase gemido, arquejava angustioso. Ele olhou buscando em torno:

— Véia!

— É ocê, fio? A voz saiu duma trouxa que jazia a um canto. É ocê, Macambira?

— Qu'é qu'ocê tem? Tá gemendo?

— Foi sinhô. Sinhô veiu aqui, bateu eu, pisô. Tá céga, fio. Modi qui vasô vista.

 Macambira pôs-se de cócoras perto da negra, toda enrolada em molambos, e, tateando, tocou-a. Ela tomou-lhe a mão levando-a à frente.

O negro teve um arrepio sentindo uma protuberância úmida.

— Esse é sangui?

— É.

— Cê não vê?

— Não vê, não. Sinhô rumô modi criança; mandô interrá. Cê foi dizê...

O negro teve pena e, esquecido de si, pela piedade que lhe inspirava a velha, que era a sua raça, a história viva do seu reino, levantou-a e, quase nos braços, foi levando-a devagarinho para o terreno. À luz do sol a negra encolheu-se, baixou a cabeça tapando os olhos com as mãos.

— Dêxa vê.

— Dói, fio.

Docemente, porém, ele afastou-lhe as mãos e descobriu-lhe a fronte em sangue, tumefata, encalombada e, sobre os olhos, em pasta, sangue e terra.

Guiou-a até a calha, sentou-a em uma pedra:

— Oia, lava aí.

A velha curvou-se e, estendendo à água as mãos em concha, pôs-se a banhar a testa, os olhos. Levantou, por fim, o rosto deformado e, forçando as pálpebras inchadas, entreabriu-as pesadamente.

— Tá vendo?

— Tá. E voltava à cabeça de um lado para outro, firmando a vista. Vê, sim.

Houve um silêncio.

— Criança morreu mêmo?

— Morrê.

— I antonce?

— Sinhô mandô interrá lá in cima, ni cafesá véio. Cê qué aí p'ra mim, Macambira?

— Vou.

— Antonce junta tudo. Leva já. Sinhô achando ele aí... uhm! O sangue expluiu de novo escorrendo para os olhos. Inclinou-se à calha e, lavando a ferida, recomendava: Imbruia num pano i vai.

Macambira entrou no rancho, apanhou o cadáver frio, embrulhou-o em trapos e saiu.

— Onde tá inxada?

— Oia í perto da porta.

Lá estava. Tomou-a e, sobraçando o fardo fúnebre, enxada ao ombro, ainda recomendou à negra:

— Vai lavando firida i dipois botá vum-vum-vum. Foi só na testa. Eu vou indo.

— Vai cum Noss'Sinhô.

— Té logo.

— Té logo.

O cafezal velho esmarria num lançante de morro de terra seca, exausta, afofada pelas formigas. As árvores excíduas, de galhos avaretados, pareciam raízes invertidas; aqui, ali resistia ainda uma folhagem verde, mas enredada de ervas parasitas; e o mato exúbere alastrava afogando os roncos. Altas gramíneas penachudas esfiavam paina ao vento e o sapé cerrado, denunciando a anemia do solo fatigado, flexuava crepitando como a um fogo latente.

O negro metia-se pela coivara viva evitando os claros para que o não descobrissem, e procurava um sítio escuso onde fizesse a cova quando, voltando-se, avistou, na colina fronteira, a sua casinha. Ficou a olhar enternecido, com o coração aos embates, recordando o que passara, os dias de ventura na traição.

O sol queimava e, em baixo, toda a campina rasa como que expirava um fluído trêmulo através do qual tudo vibrava, como em paroxismo.

Árvores, floridas de amarelo e roxo, mancharam alegremente a mata e, ao longo do córrego cintilante, os lírios lânguidos estendiam duas orlas alvacentas.

Os caminhos reticulavam a campina, subiam pelos outeiros em fitas coleantes e ele reconhecia-os, sabia-lhes o rumo e entrava por eles em pensamento até ranchinhos de parceiros, tejupares de roça, fontes entre inhames e samambaias, grotas e culturas.

Lá longe, no azulado da distância, era a Barra e além, alta no horizonte, a serrania dos mocambeiros. Subiu mais.

A terra mole, solta, corria-lhe esfarelada sob os passos ou os pés afundavam-se-lhe em cômoros balofos de onde saíam aos borbotões formigas assanhadas. Bojudas casas de maribondos formavam negros tumores em galhos, ninhos pendiam em corbelhas ou entalavam-se em forquilhas de ramos. Por vezes, fugitivamente, um lagarto rastolhava arisco ou ora um rápido esfiar de cobra insinuando-se no capinzal. Por fim, num limpo, escondido por um corço de árvores, pousou o fardo e pôs-se a cavar.

A terra cedia, friável como areia seca, e, em pouco, com esforço fácil, a cova estava aberta, larga e funda bastante para o pequeno corpo.

Então desembrulhou o cadáver, descobriu-o e, de cócoras, fiou-se a mirá-lo. Parecia de cera, engelhadinho, com a face manchada de roxo, as mãozinhas enrugadas como de frio. Cheirava a azedo e, da boca entreaberta esputava, em fio, um muco diáfano.

O negro lembrou-se de Lúcia e recompôs lascivamente o crime do senhor moço, a infâmia contra a sua honra, a vilta covarde, lá em baixo, na sapobemba da figueira brava. Assim se fizera aquele corpo que ali estava. E os olhos abriram-se-lhe fitos no cadáver, como à espera dum prodígio.

As formigas chegavam metendo-se pelos trapos úmidos e fétidos, já percorriam o corpo inerte, explorando-o. Ele enxotou-se; voltaram em maior número entrando pela boca exsudante, pelos ouvidos, fervilhando em volta dos olhos vitrais do defunto. O negro irritou-se e, com um molambo, sacudiu os insetos contumazes. Tomou, então, o cadáver, depô-lo no fundo da cova e, com as mãos, empurrou a terra, cobrindo-o.

Aplainada a cova, bateu-a com enxada, depois, para que não ficasse vestígio, puxou folhas secas e galhos, espalhou-os em cima e levantou-se. Doía-lhe o dorso e o sol, dando-lhe em cheio, fazia-lhe reluzir o rosto suado.

Olhou em torno assegurando-se da solidão, depois, plantando-se sobre a cova, pôs-se a sapatear em cima, calcando-a, para que os tatus não a profanassem. Concluída a tarefa, raspou o suor da fronte, tomou a enxada e desceu.

X

A notícia do “filho branco” espalhara-se rapidamente levada pelos negros da “Cachoeira” e nas vendas das estradas, nos negócios, deste a Barra até Vassouras, o caso fez rumor. No armazém do Narciso, durante muito tempo, constituiu o assunto das conversas. Uns riam, outros revoltavam-se: “Que se Macambira era negro de vergonha aquilo não ficava assim. Patifarias tais precisavam de um exemplo que servisse emenda”. E vinham à baila outros escândalos:

— Mas que é pior? isso ou o que se deu na Varginha? Lá foi a sinhá moça que tisnou o filho.

— Pois sim, mas o negro acabou no tronco castrado.

— Ora! mas comeu do bom. Mais vale um gosto, meu amigo...

E cada qual, sabedor dos segredos daquelas terras, referia um fato de remate trágico: infanticídios, casamentos arranjados à pressa, a peso de ouro, mortes súbitas de senhoras e desaparecimentos de pajens, torturas de mulatas, como a Claudina, de Santa Fé, a quem a senhora mandara arrancar todos os dentes a torquez, só porque o senhor os achara lindos; a paixão desvairada e cínica de certa fazendeira viúva, já murcha, que se amasiara com o cocheiro, mandando matar a vergalha uma chinela por havê-la encontrado em colóquio com o crioulo.

Na fazenda comentava-se o caso à boca cheia: na roça, no “quadrado”, na cozinha, nos ranchos, de dia e de noite, à risota ou surdamente, com ódio ao branco.

— I criança?

— Uai! Não vê qu'havia di ficá aí! Prugunta Barbina, cumedêra di genti.

D. Clara, no meio das mucamas que costuravam, defendia o filho:

— Tudo é Julinho. Julinho é pai de curral. Vão ver que foi algum desses porcarias de mascates que andam por aí e atiram a culpa p'ra cima de meu filho, coitado! Umas sonsas! Pensam que não sei? Por uma peça de fita à toa ou por um maço de grampos estão aí se metendo com o primeiro carcamano.

— Ah! sinhá... vancê também.

— Ah! o quê!? Pois se foi ele fez muito bem. Agora um negro daqueles casar com uma rapariga que podia ser sua senhora. Onde se viu isso?! Era mesmo para ela ter nojo; e cuspilhava com esgar de enjoo.

— P'ra que casô?

— Casou porque Manuel quis. Eu nunca vi Lúcia mostrar inclinação por Macambira, nem por ninguém. Era aqui em casa, metida com as suas costuras, de noite lendo p'ra gente, brincando. Nunca foi rapariga de pagode.

— Isso é verdade, confirmavam as mucamas.

— Pois então? Mas também obrigarem uma rapariga limpa a emporcalhar-se com um negro, era mesmo para uma coisa assim. Não foi por meu gosto que ela casou, isso não foi. Enfim...

Vaca-brava trazia a negrada em alvoroço espalhando novidades sobre o negro:

— Muxiba anda di crista caída qui nem pirú di gogo. Perdeu a prôa. Barba, oia, tá ansim, e apinhava os dedos; cabelo qui nem bassôra. Deus não dorme. Tá í nu qui deu impáfia di rei. Eu só quero vê o pimpão quando nhô Julinho chegá. Sinhô mêmo a modi qui já virô candeia co' ele. Bicho anda jururú i sirviço tá í parado. Tibúrcio agora é qui tá di cima. Eu não jurei à toa, uai! Inda hei di vê aquele cascão ali nu duro, puxand’inxada nu cafesá. Só si não há Deus no céu. Ora! E ria com sarcasmo cruel.

Efetivamente Macambira andava arredio, sempre pelos matos, banzando nos caminhos. Raro em raro aparecia em casa para falar ao senhor, ficava à porta do escritório, cabisbaixo, à espera e, ao ver Manuel Gandra, adiantava-se estendendo a mão, com um murmúrio humilde. O fazendeiro respondia carrancudo e passava deixando-o esquecido.

Uma manhã Tibúrcio, chamado ao escritório, saiu a correr, vestiu-se, encilhou um animal e partiu para a Barra. Logo se soube que o crioulo fora levar cartas e fazer pagamentos. Era a destituição de Macambira. As mucamas, instigadas por Vaca-brava, interrogaram a senhora: “Se era verdade que Tibúrcio estava em lugar de Macambira?” D. Clara pasmou boquiaberta, as gordas mãos espalmadas no ventre:

— Não sei, gente. Quem disse?

— Uai! Pois quem faz agora os recados de senhor é Tibúrcio.

D. Clara perguntou ao marido e Gandra deu d'ombros, respondeu azedo:

— Sim, o negro anda apatetado, a falar só, não me aparece, sempre metido nos matos, muito relaxado. Deixá-lo! Parece até que deu em beber. São todos assim. Muito bons até certo tempo, de repente desandam e acabou. Se não endireitar passo-o adiante. Depois, chega de aborrecimentos, não quero histórias aqui em casa: mexem com ele, Donária principalmente, e pode haver alguma coisa. Chega!

À noite toda a fazenda repetia as palavras de Manuel Gandra e Vaca-brava exultava com a resolução do senhor.

— Isso mêmo é qui sinhô devi di fazê. Negro é pra trabaiá i não p'r'andá malucando pur í, assombrando a genti di noite.

Deu-se, porém, uma reviravolta na fazenda: as velhas africanas tomaram o partido de Macambira e, uma noite, como a cabrocha entrasse na cozinha, dizendo que topara com o “muxiba” perto do engenho, falando só, Joana Benguela, uma giganta, de gênio arrebatado e força d'homem, saiu-lhe à frente ameaçadora:

— Cala essa boca! Cê divia tê vergonha i não falá tanto. Cê acha dirêto u qui nhô Julinho fez? Cum'ocê é di tudu mundo pensa qu'us ôtro é cu'ocê. Aduladêra! S'ocê tivesse vergonha na cara nem tocava ni nome di Macambira.

As velhas concordaram e a cabrocha, surprendida da rebentina, relanceava os olhos pela cozinha escura, alumiada ao centro por um fuliginoso lampeão de azeite, com o fogão vermelhejando ao fundo como uma forja.

— Antonce faz má falá?

— Faz, sim! rugiu a Benguela. Cê é negra, dêxa d'andá punindo p'r'us branco. Não podi falá, cala a boca, faz cumu nos. S'ôcê tivesse fia, ocê havia di sabê, mas barriga di burra é ansim mêmo: ronca só. A cabrocha voltou-se de safanão, atirando o chale aos ombros e subiu resmungando; e Joana, dirigindo-se lentamente para o fogão, a escorvar o cachimbo, concluiu: Negra ruim! e atitou com a língua no céu da boca.

— É ansim mêmo, concordaram as outras, cê é qui diz verdade.

E assim se foi fazendo, entre os malungos, uma forte corrente de simpatia por Macambira e, os que dantes riam e troçavam o companheiro, entraram a lamentá-lo, com ódio aos brancos e às mulatas da “panelinha” deles.

O negro, porém, amazorrado, evitava os parceiros, retraía-se se encontrava algum no seu caminho. Magro, fulo, a grenha inculta, a roupa em desalinho e suja, pouco andava de dia e os que o descobriam, à distância, logo o perdiam de vista porque ele afundava nos matos ou sumía-se nas grotas, arisco como quilombola.

Às vezes, à noite, aparecia luz na casa da colina, espalhava-se a notícia, saía gente a ver, negros ajuntavam-se no terreiro olhando, conjecturando:

— Macambira tá lá im cima.

— Não vá ele tá matutando a'guma côsa...

— Quá nada, coitado! É saudade. Vai oiá seu canto, lembrá di Lúcia. Coração... uhm! cê sabi lá! Esses mêmo qui não fala são us qui sente mais. Cê não vê cum'ele ficô? Dex'ele, coitado! Tá penando.

A mata era o asilo de Macambira. Retraindo-se, a princípio, desconfiado de todos, passava os dias errante, batendo estradas, picando veredas, sempre longe dos ranchos, refugindo à gente. Quando o sol queimava, metia-se à sombra, estirado, fumando para afugentar as mutucas, o olhar perdido, banzeiro. Comia qualquer coisa dissaboridamente e, com o fresco da tarde, à hora melancólica das cigarras, recolhia-se a um tejupar, na roça de milho, ou punha-se a caminho, direto à Barra, onde chegava à noite.

No armazém do Narciso, ponto de conversa, mangalaxa e jogo, era sempre certo o ajuntamento: bebia-se com algazarra e eram sanfonas e violas no alpendre, sambas de pagode, gandaieiras ébrias aos reboleios entre os madraços, muito obscenas e sórdidas, filando cigarros, pedindo goles, e, carimbo e o truco, aos berros.

O negro, para não ser visto, entrava pelos fundos, fazia compras descontando no seu pecúlio, e regressava carregado de viveres, chumbo e pólvora, o necessário para viver no mato. Ainda, por vezes, apresentou-se na fazenda, postando-se à porta do escritório, à espera de ordens, mas diante do desprezo de Manuel Gandra e sabendo que Tibúrcio fora chamado para substituí-lo, nunca mais apareceu.

— Macambira ganhô mundo, diziam na roça.

— Quá nada. Tá mêmo. Sinhô é qui não qué pegá ele, sabe qui tá maluco, i p'ra quê? Ind'ôtro dia topei co' ele ali na baixinha.

— I antonce?

— Eh! tá mêmo qui só visto: guenzo, fuvêro. Esse mêmo, coitado! esse mêmo não vai longe, cês vai vê. Mais hoje, mais amenhã urubu tá í rondando carniça. Cês vai vê. Si sinhô quisesse panhá ele era só fazê uma tucaia lá im cima ou botá gente, di noite, nu rancho di Barbina. Sinhô não qué.

E era verdade. Gandra, convencido de que o negro ensandecera, desistira de persegui-lo e, se falavam nisso, dava d'ombros, resignado com o prejuízo. E Macambira vivia como mocambeiro.

Refugiado na mata, varejando profundamente os labirintos da solidão, conhecia-a de ponta a ponta, desde as samambaias da orla até a lagoa apauladas saracuras e ererês cantavam e lentos jacarés, rastejando no lodo, de vez em vez empinavam-se, engalfinhando-se com um latido rouco.

Afeiçoando-se ao vasto homísio, amava enternecidamente as árvores, afagava-as, detinha-se a mirá-las parado diante dos troncos que subiam lisos, eretos, em colunas ou torcicolosos, escalavrados, destacando-se como ao peso das frondes bastas.

O sol entrava a custo, escasso, às migas d'ouro palhetando o chão mole, alfombrado de versas úmidas. Em certos pontos da espessura, sob a ramagem densa e negra, a sombra era noturna e orvalhava a lentejos, sem descontinuar.

O negro atolava-se em aguaçais, esparrinhando os pés em lodo. Grossos cipós, retorcidos à maneira de cordoalhas, pendiam dos ramos cabeludos, outros cruzavam-se em redouças, outros coleavam em estiras pelo chão ou enrolados, vincando os troncos, apertavam-nos estrangulando-os. Sapopembas formavam parapeitos verdinhentos e eram clareiras alcatifadas de finas relvas e arbustos delicados de folhas rendilhadas, palmeirinhas flexíveis, fetos em parassóis e refolhudos maciços de ervas subindo aos galhos das árvores e despejando-se de cima em colgaduras floridas.

Abafeiras luziam em pútrido rebalso e um mundo de insetos pululava à flor da vasa, em torno dos caniçais, por entre os ramos encoscorados e penugentos, desde as moscas rebrilhando em cores maravilhosas e as libélulas céleres, d'asas vítreas, até negros besouros luzidios, tudo voando em confuso giro-vagar, crepitando, esfuziando, a zumbir, a zoinar, a uivos súbitos passando rápidos em infletida de dardos.

Teias de aranhas tremeluziam entre ramas e, pelo raso, aos corcoveios, eram sevandijas lânguidas, viscosas, expluindo da fermentação humente.

Por vezes, nas grimpas, soava, breve, um pio d'ave ou era uma chalrada hílare que irrompia e logo, marulhoso, o frulhar da abalada de um bando de periquitos; e profundo, soturno, a espaços, surdia, lento e lúgubre, um gemido de rola.

Em contraste com a tristeza que pairava um sagui saltava dum galho a outro, marinhava pelos cipós, ágil e trêfego, ou era então um serelepe arteiro, a cauda alçada que, num pincho, agarrando-se a um ramo, oscilava funambulesco, formava o pulo e, lépido, escalava o tronco, e logo começava uma saraivada de sementes.

Voos surdos ruflavam na altura e, pelo chão pastoso, através de fitas de sol, gordas formigas trilhavam carreando achegas, insetos pernilongos, de um verde tenro de novedio, caminhavam morosos ou grandes borboletas, de um azul lustroso, saíam das ramas como flores aladas.

O negro, familiarizado com aquela vida fantasmagórica, olhava indiferente. Reminiscências súbitas detinham-no: concentrava-se. Súbito, episódios trágicos ou de ventura atravessavam-lhe a memória e a solidão animava-se: era uma cena meiga, sob a acácia: Lúcia e ele, juntinhos; era uma manhã em que ele a deixara no alto do caminho rindo dum escorregão em que resvalara; era a figura antipática de Vaca-brava ou então o crime, o rebolco dos corpos debaixo d'árvore, a nudez de Lúcia, a luta, por fim os dois unidos, colando as bocas estremecidamente, d'olhos cerrados, a respiração suspensa.

O peito arfava-lhe opresso, acendiam-se-lhe os olhos, estralavam-lhe os dentes.

Mas a selva tirava-o do sofrimento com o seu prestígio — um reclamo d'ave, lá em cima, ou o rastolhar arisco de animal rasteiro.

Tinha na mata as suas preferências: uma nascente tão ensombrada d'arvoredo que a água, sob os pendidos ramos, emaranhados de filandras, parecia negra. Nascia em grota toda encrespada vegetação, entre pedras cobertas de limo espesso efiltrava-se em fios caindo com cristalino e trebelhado som entre pedras, em torno das quais fervia em espuma até derivar correntia, saindo viva e alegre na clareira onde rebrilhava límpida sobre um fundo raso de areias claras.

Outra preferência: certa árvore grossa, retorsa, com o tronco avergoado à maneira de um feixe de sarmentos, como um corpo escorchado a que se vissem, em ressalto, e nus, os músculos e os nervos. Fios dourados desgrenhavam-se-lhe da ramaria versuda.

Era debaixo da árvore ou à beira da nascente que o negro gostava de ficar esquecidas horas, raspando a terra, esmagando folhas ou fazendo com a mão comporta à correnteza fria.

Isolado, vivia como em domínio próprio; ali só ele, senhor na solidão. Tendo sempre vivas na mente as descrições que lhe fizera Balbina do reino selvagem de Munza, se ouvia estralejar um galho logo se punha em guarda, adaga em punho, o olhar agudo e atento ao bote de fera imaginária ou à traição de alguém. Relanceava a vista em torno, perscrutando, batia os matos, sacudia os ramos, agachava-se para espiar pelos interstícios dos galhos, por entre os troncos, acuando em desafio. Eôô! Rolavam ecos cavernosos e o silêncio restabelecia-se cortado apenas, de quando em quando, por então caminhava decidido, afoito, como para afrontar-se com o inimigo, num desejo de lutar, de ferir, de ver sangue. Tudo era cerrado, denso, num intrincamento impenetrável. Para avançar ia talhando a facão as enrediças, abatendo ramagens, detorando cipós, e o mato, úmido e frio, chegava-lhe ao peito, ramos fustigavam-no, raízes, liames embaraçavam-lhe os pés. Sentia insetos ásperos andarem-lhe no pescoço, sacudia-os sem repugnância ou tomava-os entre os dedos devolvendo-os ao mato para que vives­sem. E não encontrava sombra hostil.

Quando sentia fome, fazia um foguinho, assava um pedaço de carne-seca, amassava um pirão d'água e comia à beira da nascente ou junto da árvore e ficava em torpor de preguiça, fumando airado; às vezes cochilava com o facão nas pernas, pronto para investir.

À tarde era um rumor confuso no recesso frondoso: aves que se aninhavam, correrias no folhedo, fugas precípites pelos galhos, guinchos, silvos, chalreios, trissos, e o uru, com o seu canto funé­reo, anunciando a noite.

Um tom cerúleo abrumava a selva resfriada, o solo esponjava, como encharcado, e o aroma silvestre espalhava-se em hálito balsâmico. O ar fino tornava-se mais sensível ao som – ouviam-se o cair lento, esfrolado das folhas, o murmúrio d'água, o papeio dos ninhos adormidos.

Corridinhas sutis rastoalhavam nas folhas. Súbito, estrondan­do nas copas, uma palma de coqueiro rolava do alto.

Escurecia aos poucos tristemente; aqui, ali um gasnir de perereca, um grasnar de rã, grulhos de cururu, e começavam a aparecer centelhas, a mata enxameava-se de vaga-lumes. Fantástico fogueio punha efervescências no âmbito obscuro: eram pelo chão, nos troncos, nos ramos, aereamente, luzes efêmeras, indo e vindo, girogirando, lívidas; lagartas acesas golpeando a treva, insinuando-se na folharia, e mariposas pesadas passando em voo lento, fugindo à sombra, na atração magnética do luar.

O negro estirava-se sem sono, a escutar os ruídos vagos, e sonhava, de olhos abertos, o seu sonho augusto, o seu sonho de rei.

A floresta adormecia. No silêncio misterioso as águas circula­vam ligeiras, com um som leve, e a brisa, lá em cima, nas copas, fazia um sussurro brando de respiração.

A terra esfervia baixinho em pruir de porejo, e um cheiro forte, seminal, de seiva exalava-se dos vegetais. Crebro, aos estalidos, pingava o estilicídio das folhas róridas; pipilos denunciavam o sonho dos ninhos, e, alumiando a treva ferrugínea, em ronda, os pirilampos multiplicavam-se.

Abriam-se clarões pálidos, escorriam lumieiras como um lei­te translúcido das árvores e a mata transfigurava-se, povoava-se encantada, acordando para uma vida fantástica: eram vultos afi­lados, de alvas e longas túnicas, movendo-se em meneios espec­trais, por vezes, em alor sereno, como se subissem em ascensão de fumo: eram profundezas merencórias de capelas, com um vasto altar de mármore, nichos, imagens; eram grutas denticuladas de estalactites; eram ruínas colossais, edifícios inacabados de arqui­tetura estranha e, por ali dentro, através das árvores desfiguradas, construções de um fastígio maravilhoso, estruturas bizarras, formas caprichosas de um mundo de encantamento e, como se a gente sutil que por ali andava surdamente, calada, fosse deixando pegadas pelo chão, palmilhas claras iam aparecendo e brilhavam sobre as folhas mortas.

Ramos reluziam prateados, troncos envolviam-se em faixas argênteas e a claridade brincava luzindo, desaparecendo iterativa, em fantasmagoria deslumbrante.

Era o luar que penetrava o interior da espessura coando-se pelos raros, descendo em cheio pelas abertas, aqui em fita, além alagando a jorros, ou amiudado em nimbos e em estrias que ame­dalhavam, reticulavam o ândito tenebroso.

Frêmitos voluptuosos agitavam o arvoredo, e o negro, como hipnotizado, ficava a olhar as aparições e, por elas, entrava no delírio da grandeza extinta, na majestade perdida, tomando as vi­sualidades pela representação da própria vida, a selva pelo reino, os aspectos de sombra e luz pelos edifícios da sua corte e os ruídos pelo burburinho do seu povo.

Então lembrava-se de Balbina, desejando-lhe que fos­se explicando tudo, mostrando: o palácio real entre palmeiras, as cubatas dos guerreiros numa caiçara de lanças, o templo dos deu­ses com as velhas sacrificadoras, e lhe dissesse o nome dos heróis evocando-os da sombra, fazendo-os vir até ele, com as peles dos mantos de rasto, as armas agudas rebrilhando.

E pensava em Lúcia, trazia-a da morte, linda como no tempo do noivado, com o corpo fino, flexível, o boleio gracioso nos qua­dris, o sorriso meigo, a doçura dos olhos tristes, a tremer de pudor nos seus braços. E aspirava-lhe o aroma sensual do colo, sentia-lhe o hálito suave, afagava-a, ouvia-lhe a voz, baixinho, de improviso, porém, eram os dois que lhe apareciam em espasmo infame, ela e Julinho.

Punha-se de pé, violento, ofegando, com um gosto de sangue na boca, os punhos cerrados, num frenesi de furor. E logo se lhe afigurava o “filho branco”: via-o morto, tal qual o achara no ran­cho, deitado numa esteira de luz de onde se levantava devagari­nho, pairando, remontando até desaparecer.

Arrancava o facão da baínha e atirava golpes a esmo combatendo essas e outras alucinações e descia da mata apressado, ora por veredas escuras, esbarrando em toros, barafustando em ervagens, ora em plena claridade, com o céu à vista, a resmungar ameaças.

De todos os vãos vozes sutis diziam, com sarcasmo, o seu nome e o de Lúcia, chamavam-no chasqueando, riam às cascalhadas.

Macambira parava atento, agressivo, à escuta: as vozes calavam-se, mas, ao longe, no trebelho d'água corrente, outra vez a ironia, outra vez a assuada, depois, comunicando-se, era de toda a parte e de tudo, daqui, de alhures, “psius, risos, Macambira! Julinho...” a troça irrisória e, diante dele, as luzes dos pirilampos faiscavam como se lhe fossem alumiando o caminho, levando-o para a vingança.

Era em noites dessas que aparecia luz na casa da colina.

— Eh! curumba anda agora trambecando qui nem cobra qui perdeu veneno, dizia Vaca-Brava falando de Balbina.

A velha, com o sumiço de Macambira, tornou-se de uma irritabilidade frenética. Desconfiada de todos, mais retraída que nunca, vivia aos resmungos, em solilóquio arvoado. Se, ao passar por alguém, surpreendia um sorriso, um olhar, estacava assanha­da explodindo em injúrias. Mal avistava um moleque, apanhava pedras, ameaçando-o. Parecia bêbeda no andar airado, aos cam­baleios, parando estatelada, agachando-se a bater na terra aos murros desesperados.

No chiqueiro espancava os porcos, desalagava do lodo os cevados dorminhocos atirando-lhes pontapés odientos, e, errando pelos caminhos, trombuda, trapejando os molambos enlameados, com um pau na mão e pedras no papo da camisa sórdida, gesticulava, falava às árvores, aos matos ou, postando-se à beira d'água, conversava com a própria sombra, lançando perguntas e respon­dendo-as, em diálogo singular:

— Antonce cê fugiu mêmo? Cê fugiu...? — Uai! i havia di ficá? —Cumu não? I cê tá ni mato, não é? Amenhã sinhô vem í di calun­du i véia é qui paga. É ansim mêmo. — I ocê mode quê não vem? caminho não tá í? — Modi quê não vem... modi quê não vem... Quedê perna? cê não tá vendo? e arregaçava a saia esfrangalhada expondo os cambitos, que reluziam como envernizados. É co'es­ses qu'eu vá fugí?

Anuns piavam perto, bambaleando-se em arbustos; lambaris deslizavam n'água. Tinha, então furores:

— Qui é? cês tamém qué pagode, sôs porquera? Pera í qu'o já insino ocês.

Ia de pedras sobre as aves, que abalavam em voo raso, aos pios agourentos, apedrejava a água afugentando os peixinhos, e rabeando assus­tados negros cardumes de girinos desapareciam nas madrigueiras ou sob as raízes ribeirinhas.

À noite, no rancho, acocorada diante do lume, interrogava, de olhos fitos na fumaça ardida que subia dos gravetos:

— Má ondi é qui tá Macambira!? Ondi! Antonce é ansim?

E enfezada, sacudin­do, de repelão, os trapos, com a boca atupida de fumo, resmungava abafas contra o negro que se fora sem preveni-la, abandonando-a, como aos outros.

— Quá! Esse é ansim mêmo. É ansim mêmo... Se se encostava no jirau, era para cogitações.

A noite passava vagarosa, e ela ruminava, ora de recovo, ora sentada, cabeceando, sempre com o pensamento no negro, cria do seu amor, seu príncipe. E sofria, irritada, uma saudade pungente e resmungava, arrepelava-se, maldizia-se com as lágrimas correndo em fio pelo rosto escaveirado.

Às vezes, no correr da noite, saía para o terreiro, ficava a olhar os vultos das árvores, os lençóis do luar no campo, as estrelas lá em cima. Sob o bafejo da brisa tépida embalsamada do aroma das açucenas, e contemplando a sombra alta e profunda da serrania, ao longe, dizia tristemente:

— Cê foi. Cê tá í. Mió! Véia é qui vai pagá. Abria o casaco, arregaçava as mangas e, apalpando-se, apertando, sob a pele encosco­rada, as arcas do peito, os braços mirrados, os maxilares, dizia:

— É osso só, carne, quedê? e resignada: Mió mêmo: cabá duma vez. Qu'é qui fica fazendo aqui? Mió mêmo. Os morcegos esvoaça­vam aos trissos: Cês tá rondando? Qué eu? Uai! Leva! Qu'é qui tá esperando? Leva! E apelava para a morte, esperava-a, ouvia-lhe o andar sutil nas folhas róridas, via-lhe a sombra esguia e tirita­va como de frio. É mió mêmo.

A água gorgolejava perene, e, esfriando, apesar de janeiro, as estrelas como que adormeciam e uma quietude grande pairava em sono sobre a terra escura.

As bananeiras preguiçavam com um lento marulho, grilos cantavam estrídulos, às vezes, trágico, um ríspido rascar raspava a altura e um som contínuo, fino, como de tímpanos abafados, subia no silêncio.

A negra deixava-se ficar ao relento, sentada numa pedra, mascando, e cochilava.

Longe um galo desferia o canto da madrugada, outros amiudavam; o cheiro balsâmico das silvas tornava-se mais forte.

O nascente listrava-se das primeiras barras; clareava baço, e as névoas, como se acordassem, levantavam-se preguiçosas, estremunhando, indecisas, em finos retalhos que afumavam as moitas, em cúmulos que enchiam os convales, como pedaços de céu caídos.

Cruzavam-se voos, trilos, arrulhos, pios de reclamo soavam ali por fora. Douravam-se os redentes, acendiam-se os visos e a paisagem ressaía da sombra fresca e álacre, repousada, vívida, luzindo de orvalho.

Mugiam gados, folhas começavam a cintilar. Eram inúmeras e alegres as vozes dos galos por aqueles matos. Aqui, ali, acima das copas, um fumo ralo subia. A espaços, lento, o sino soava despertando a fazenda. O céu ia ficando azul.

Então a negra levantava-se alquebrada, gemendo, arrastava os passos para o rancho, bamba, com as pernas doridas, ainda volta­va-se contemplando enlevadamente o céu:

— Hum! Dia tá í. Persignava-se: Lovado seja Noss'Sinhô Suns Cristo...! E, olhando a serrania, resplandecente de ouro e prata, sol e névoas, pensava nos que viviam naquelas brenhas, livres entre escarpas e matos ínvios: Tito, Barnabé, Melquior e tantos mais... E quedava, encarada no remonte, como querendo descobrir o vulto agigantado de Macambira no mais alto da serra, na glória fúlgura do sol, como um rei no seu trono, entre escudos e lanças.

De manhãzinha, com uma trouxa à cabeça, Joana subia vagarosamente a ladeira, caminho do lavadouro, quando avistou Balbina curvada junto de um cupim, arrancando ervas.

— Eh! tia... velha ergueu-se hostil, mas reconhecendo a Benguela serenou, sacudindo as mãos terrosas, e adiantou-se a passo. Qu'é qu'ocê tá bongando aí?

— Tanchage.

Olharam-se um momento, e Joana interrogou-a sobre Macambira. A velha deu de ombros; a outra sorriu incrédu­la. “Cê não sabe?” Balbina acenou de cabeça negando. “Ah! dexa di parte cumigo. Tão cê não sabe di Macambira? Cê mêmo qui tá aí? Cê...! Cê não tá co' ele lá im cima?

— Lá im cima, donde?

— Lá! e Joana mostrou a colina.

A velha exclamou surpresa:

— Lá?

— Antonce? Home, a modi qu'ocê discunfia di mim. Oia qu'o não sou Donária.

— Não é discunfiá, ma ocê tá falando í cosa di brinquedo.

— Brinquedo?... Antonce cê não sabe qui Macambira parece lá im cima di noite? Cê não vê luz?

A velha pasmava para a malunga:

— Cê tá falando sér'o?

— Antonce...?

— Pur essa luz qui tá lumiando... dês qui Macambira foi s'imbo­ra nunca mais. I cê vê luz?

— Uai! Tudu vê.

— I sinhô?

— Sinhô diz qu'ele tá gira. Pra quê?

A velha sacudiu a cabeça doída da ingratidão de Gandra.

— Não sabi dele, não, Juana. Jur'ocê. Vivi lá mitida nu meu canto... E ficou pensando, de olhos no chão. I qu'é qu'ele vem fazê?

— Uai! Oiá casa. Cê assunta, vigia di noite qu'ocê vê. Luz vem, luz vai, some. Mode qu'ele corre tudu, oiando. Bom. Té logo, si Deus quisé. E foi-se.

Balbina ficou atordoada, esquecida do que fazia. Desceu a passo; a meio caminho, porém, lembrando-se, tornou ao cupim, ajuntou a tanchagem em molho e, metendo-se pelos matos, enve­redou guiando para a covanca. Parava pensativa, conjecturando: “Modi quê? Sinhô pega i dipoi...?” Quando chegou ao rancho, desa­bafou:

— Esse mêmo! Tá gira... Gira modi quê? Esse mêmo. Nego é qui nem cana; mói, mói i bota bagaço fora. Esse mêmo. Ôtro já tá í. Vai vê tempo quenti.

Aludia a Julinho, que chegara da Corte e já andava a rastrear as rapariguinhas, numa ostentação de costumes claros e gravatas esvoaçantes.

Aprovado nos exames, entrara na fazenda como um triunfador.

Quase médico, narrava os labores da vida estudiosa: autópsias no anfiteatro, vigílias nas enfermarias, operações difíceis que praticara com elogios dos mestres e admiração dos colegas e, à mesa, entre o baboso desvanecimento dos pais e a curiosidade basba­que das mucamas que serviam, descrevia os horrores do hospital: mortes agoniadas, epidemias pútridas, amputações, partos e monstruosidades que apareciam: uma Cafarnaum de misérias e aberrações, e ele, abnegado por amor da ciência, verdadeira reli­gião, entre sangue e pus, curando e consolando como o próprio Cristo. E, cortando o bife, fazia-o a capricho, com a perícia atenta com que um operador requintasse num complicado caso de alta cirurgia.

Gandra impava de orgulho, D. Clara escutava-o embevecida, de olhos lânguidos e úmidos, arfando comovida, a imaginar o “pobrezinho” naquele horror, com risco de apanhar uma moléstia daquelas. E os carinhos redobravam solícitos compensando-o do ano de árdua fadiga.

— Bom, agora descansa, dizia Manuel Gandra. Trata de co­mer, de passear.

Achavam-no pálido, abatido e enchiam-lhe os bolsos, empurravam-no para a calaçaria. O cavalo, de arreios novos, passeava-o pela redondeza: ia às fazendas onde havia mo­ças, à Barra, então em festivo alvoroço com uma companhia de cavalinhos e por aquelas bibocas da roça. E onde quer que apare­cesse era uma alegria barulhenta: “Está aí o Dr. Julinho!”, e eram correrias de moças, barafunda de mucamas.

Negros paravam na estrada para vê-lo passar, pediam-lhe remédios queixando-se de achaques, outros mostravam-lhe úlceras ou pernas monstruosas em refolhos de elefantíase. E ele lá ia, pimpão, fariscando mulatas, à caça de colos púberes, num dese­jo árdego de mulher. A negralhada comentava à surdina:

— Agora mêmo é qu'isso vai pegá fogo. Bicho tá aí, zarro! E riam.

Balbina, alheia aos escândalos da fazenda, sempre solitária no seu antro, só começou a preocupar-se com o senhor moço depois que ouviu Joana:

— Cê tá muito ancho! Vai inchendo barriga, vai! Mato tá aí, dono di mato tá ispiand'ocê. Vai inchendo barriga, vai!

Mal anoitecia, deixava o rancho, girovagando inquieta, aflita, de olhos na colina, à espreita. Era aqui, era ali nos matos rasteiros ou trepada numa pedra, a olhar a fito enfezando-se com tudo: com o crepitar dos ramos, com o estrídulo dos grilos, com o coaxo dos sapos, com o murmúrio d'água. Duvidava de Joana:

— Esse mêmo... Vai vê qu'é mintira. Onde tá luz? Onde?

Amanhecia ao tempo, tiritando, com os úmidos farrapos apegados ao corpo, e, quando o sol luzia, fazendo brilhar a mata florida, às manchas roxas e amarelas das quaresmas e dos ipês, e a campina cintilante de orvalho picada de boninas de ouro, a negra recolhia-se desanimada, tomava um gole de café, metia o fumo na boca e, saindo para o chiqueiro, a cuidar dos porcos, resmungava contra a Benguela:

— Dex'ocê... Ocê tomô pagode cumigo? Cê há d'achá, buzumuca. Cê há d'achá.

Às vezes vaga-lumes iludiam-na. Punha-se alerta, de olhos esgazeados, trêmula:

— Mode qu'é luz...

Mas desenganava-se. Uma noite, tarde — a lua brilhava no meio do céu, límpida, — a negra, que estava de ronda, estremeceu vendo luz na casa da colina: toda uma janela iluminada, como dantes.

— Eh! ê! exclamou. Esse é mêmo. E riu esganiçadamente em alvoroçada alegria. Esse é mêmo. Convencida, atirou-se pelos matos, às tontas, sem sentir as aspas dos gravetos que se lhe agarravam aos molambos, arranhando-a. Corria a trechos, de arre­metida. Atravessou a pinguela, ganhou a ladeira.

A trilha estava encoivarada: mato, ramos enredados em ta­pigo. Foi subindo esbaforida, afundando em caldeirões, escorre­gando em lisuras úmidas. Agarrava-se a ramos, a troncos, crava­va as unhas na terra, e, quando chegou acima, sôfrega, tudo era maninho.

A terra, abandonada, explodira em vassoural bravio. A casa estava sitiada de ervagem, e a cerca do pomar era uma sebe folhuda: o aboboral, alastrando livre, espalhara rama sobre tudo, acima da macega, pelos troncos das árvores até a copa, numa exuberância assoladora.

— “Eh! ê! Mato tá cumendu tudu.”

Pela janela aberta, despejando luz na braveza triste, via-se a sala, outrora alegre. A negra estacou indecisa. Havia gente, mas seria mesmo Macambira? Quis chamar. Hesitou. Foi avançando no ervaçal sorrateira e atenta, contendo o hálito. Uma sombra apareceu na parede interior da casa, e, logo em seguida, o vulto do negro. A velha levantou-se de golpe, a tremer; um grito escapou-se-lhe do peito:

— Fio! Escureceu súbito. Macambira! Fio! Oia eu! e rompia o mato.

— Véia! bradou o negro.

— É eu, fio?

— É ocê?

— É eu! E Macambira surgiu à janela. É eu! Oia! E estendia-lhe duramente os braços. Ocê, Macambira... Cê? E chora­va, nervosa, forcejando no peitoril para galgar a janela na ânsia daquele desejado encontro.

Mas a porta abriu-se rangendo, ras­pando emperradamente o soalho terroso, e a velha precipitou-se atirando-se de joelhos e abraçando-se às pernas do negro.

— É ocê mêmo, fio! É mêmo! É mêmo!... e beijava-lhe os joelhos, afagan­do-o carinhosamente. — É mêmo! É mêmo! Cende luz! Dexa vê ocê. Cende! E volubilizava num falario tartareado, rindo por entre arranques de soluços.

O negro riscou um fósforo, acendeu o lampião, e a velha, pondo-se-lhe à frente, estarreceu comovida, mirando-o, de olhos aperta­dos, mãos postas:

— Ah! Fio... cê...! E o pranto despejava-se-lhe pelo rosto, a jorros.

Magro, com os ossos à flor da pele fula, a grenha alta, revolta, híspida como piaçava, a barba arrepiada e dura, olhos no fundo, em brasas, Macambira parecia mais alto e envelhecido.

Um capote de baeta descia-lhe enrugado dos ombros, e, abrindo-se-lhe as abas, aparecia o cinto de couro com uma garrucha atravessada ao meio e adaga ao flanco.

— Cê cumu sobe? – perguntou Macambira.

— Quê?

— Qu'eu tava aqui?

— Foi Juana qui disse. Tudu mundo sabi qu'ocê vem, sinhô, tudu sabi. Cê acendi luz, zêri vê.

— Sinhô sabi?

— Cumu não? O negro sorriu tristemente, medindo a sala a lentas passadas.

— I ond'é qu'ocê vivi, fio? Ond'é?

Macambira deu de ombros.

— Cê não come, disse com piedosa ternura. Magrém ansim é di não cumê. Cê tá duente, Macambira, cê tá s'acabando mod'us otro, pra quê? Oia, cê tá ansim, nhô Julinho... nem cumu cosa.

— Tá í!? exclamou o negro pondo-se, de um salto, diante da velha.

— Chegô faz dia. Tá í. Cê não magina: mêma cosa di sempre: rapariguinha anda qui nem caça qui senti cachorro.

O negro arquejava de olhos fuzilantes.

— Cê viu ele?

— Uai! Tá lá mêmo... Di dia anda pur aí sapecando criança, pe­gando muié. Diz qui tá rondando fia di Coroné Moreira, du Areá. Otros diz qui anda cuma moça dos cavalinho, vai di noite pra Barra.

— Sozinho? perguntou o negro.

— Antonce! Munta cavalo di tardinha i vais'imbora.

— Eh! rosnou Macambira com um sorriso sinistro, apertando nervosamente os punhos, rilhando estalejadamente os dentes. Retesou os braços, a tremer de ira, e, avançando, como de assalto, curvou-se diante de Balbina, falando-lhe em rosto, de olhos fitos: Cê qué fazê uma cosa? Qué? Vida cabô pra mim. Cê tá vendo magrém? Tá vendo? E com uma voz surda, que a cólera fatigava: Cê qué vê? Oia! abriu, de ímpeto, o capote, esbagachou a ca­misa, mostrando o peito largo, ripado pelas costelas. Tá ansim. Vida pra quê? Fez uma pausa triste. Súbito, agarrando-a por um braço: Cê qué fazê uma cosa? Qué? Baixou a voz, em segre­do: Oia, eu fico aqui di noite, cê, lá imbaxo, bota tenção ni nhô Julinho, vê ele. Quando ele fô na Barra, mode muié, tá uvindu?, cê acende fogo im cima da pedra, perto di bananera, mod'eu vê.

— P'ra quê, fio?

— Cê qué u não? Diz! Fala! A velha, hesitante, coçava arrepeladamente a cabeça. Cê acende fogo...

— I ocê?

— Dexa eu. Qué? – Irritou-se frenético: Eh! Cê tá mole...!

Deu uma volta pela sala torcendo a barba dura.

— Bamo. Fala. Diz qu'é qu'ocê qué.

— Cê acende fogo na pedra.

— Cê qué pegá nhô Julinho...?

O negro atitou com a língua, e ríspido:

— Cê qué u não?

— Qué. Fala. Mas oia lá! Cê vê bem, Macambira; lembra di Marcelino...

— Dêxa! Vida, pra quê? Cê não tá vendo mata? Quem vai lá? Tito não tá siguro? Quem vai lá? E explodiu arremessando inteiriçadamente os braços num impulso de força vingativa, com um ricto que o desfigurava: Eh! véia...

Caminhou rugindo; sentou-se cabisbaixo, pensando. De repente, pondo-se de pé, enérgico, falou pausado:

— Oia, véia, cabeça and'ansim, e descrevia círculos no ar com o indicador. Sangui tá fervendo, sangui di Munza.

— Os olhos da velha relumbraram, passou-lhe um arrepio pelo corpo. Não tá dirêto, não. Di noite vê genti, iscuta falá, mata fic'ansim, e apinhou os dedos. Não tá dirêto, não. Sangui tá fervendo. E os dois, compreendendo-se, encararam-se mudos, em conivência sinistra. E a velha aconselhou em voz prudente:

— Paga essa luz, Macambira. Paga! Genti tá lá imbaxo, oiando. N'abusa, não; paga. Ela própria soprou o lampião. O luar rastreou a sala escura e os dois caminharam. A velha saiu. Macambira fe­chou a porta e, saltando a janela, puxou-a a si.

A noite resplandecia. Estiveram, um instante, parados no meio da macega. Macambira adiantou-se até a acácia, sentou-se no banco. A árvore vergava ao peso dos corimbos de ouro, como no tempo do noivado. E era tudo que restava da felicidade antiga, o mais era miséria e devastação.

A própria casa fendia-se, brechas zebravam os muros, a erva crescia em tufos no telhado, ramos trepavam pelas paredes, os cortiços, desmantelados, pensos, ermavam sob o telheiro.

No pomar acendiam-se lumes prófugos. Por entre as árvores, lá embaixo, viam-se muros alvos, terreiros claros, como de már­more, e a campina enfarinhada de luar. Os dois contemplavam a solidão em silêncio.

— Antonce... disse, por fim, Macambira, levantando-se e estendendo a mão à velha.

— Cê já vai?

— É hora.

— Adeu! I oia lá cum'ocê faz...?

— Dêxa! Não tem medo. Oia, véia, anunciou, em tom miste­rioso, apontando o céu límpido e estrelado: Zêri tá lá im cima oiando. Cê mêmo não fala? Zêri tá lá im cima.

A velha acenou de cabeça e quedou em êxtase religioso, relanceando um olhar medroso à lua e às estrelas brilhantes.

— Tá bom, fio! Vai! Adeu! Noss'Sinhô cumpanh'ocê.

Apertaram-se demoradamente as mãos. Balbina foi-se pelo vassoural intenso, ganhou a vereda matejada. Agarrando-se a um tronco vagarosa, cuidadosa, resvalou ao primeiro socalco. Firmada, en­tão, voltou-se olhando enternecida: Macambira lá estava, alto, a prumo, no meio do matagal.

— Adeu, fio.

— Adeu?

— Vai cum Noss'Sinhora.

— Oia lá! Não isquece?

— Adeu! E perderam-se de vista.

De volta à mata, logo a penetrá-la, no obscuro das folhas densas, começou para Macambira um lento, aflitivo suplício. Apesar de cansado, bocejando em quebreira, não conseguiu pregar olho, azoado por acusma bárbara, ouvindo gritos que atroavam a profundeza, estrondos de esbarrondamentos. Olhava em torno, adiantando-se tripetrepe para examinar de perto albores estra­nhos; punha-se à escuta distinguindo palavras, vozes várias em conversa. Achou-se entre os juncais, à beira da lagoa, sem consciên­cia de haver caminhado tanto.

Trabalhado pela ideia fixa esperava, com ânsia, a madrugada, e mal clareou, com o barulho da vida, pôs-se a imaginar a vingan­ça, com requintes de ferocidade que ensaiava talhando troncos a golpes vivos de adaga, detorando ramos, escorchando caules, esfuracando estipes de coqueiros.

Errava à toa abrindo veredas nas silvas, roçando mato, distraindo-se em esforço inútil para não sentir o tempo vagaroso. E era na espessura um contínuo farfalho de galharias decepadas.

Encarniçava-se em furores, arremetendo com a adaga a mãos ambas, saltando, agachando-se, aos urros, em arremedo de luta, injuriando os vegetais aos palavrões, lembrando-lhes o crime in­fame, e a folhagem caía, acumulava-se, exalando um cheiro acre de resina e seiva.

Saía de tais cenas exausto, alagado em suor, e contemplava, orgulhoso, a destruição tripudiando sobre a ramaria em monte. Limpava ao capote a larga lâmina da adaga, experimentava-lhe o fio na palma da mão e, contente, satisfeito, saciado de excídio, prosseguia embrenhando-se. Adiante, porém, reacendia-se-lhe a ira: parava carrancudo, pé atrás, brandia o ferro e investia aos golpes que estrondavam no silêncio sombrio.

Volta e meia lançava olhares por entre os escassilhos das frondes a ver a altura do sol e arrepelava-se frenético, revoltado contra a morosidade do astro.

Sentia o vagar em tudo: a brisa arfava lânguida, mal balan­çando as folhas, as águas, sempre ligeiras, desciam preguiçosas, remansando-se em rebalsos; os próprios animais como que se ressentiam da marcha das horas tardas. Acompanhava-os no voo lerdo, no andar negligente: falava-lhes irritado: “Cês a mode qui tá drumindo...” E o sol a coar-se vívido pelos raros das franças.

Deitou-se recostado a um tronco, estirou as pernas, fechou os olhos provocando o sono.

Uma cigarra chiou. Era a tarde. Pôs-se de pé, rápido, reuniu, à pressa, os apetrechos: uma corda de linho, que enrolou à cinta, a adaga, a garrucha, e atirou-se a caminho, com alegria selvagem.

Saiu numa clareira. Lá estava, em cima o céu azul, ainda radio­so e quente, as copas das árvores luzindo em pleno sol e, no es­plendor, o voo numeroso e alegre de aves e de borboletas. “Mode qu'esse dia não caba mais!...”.

Enfezado, encantoou-se encolhido, tirou da bolsa um pedaço de carne-seca e, crua, desfibrando-a, pôs-se a comer distraído, ati­rando, de vez em vez, à boca punhados de farinha.

Mal, porém, começou a empalidecer a tarde, a ânsia tornou-se-lhe em delírio: pôs-se a andar inquieto, resmungando, exercitava os braços vergando ramos, atirando golpes, arrancando arbustos com as raízes. E sorria, contente de si, dos músculos que lhe rete­savam ampolados, rijos como de ferro: “Cê vai vê logo mais...!”

Por voltas desviadas seguiu, aberrando-se, a prolongar o caminho para chegar com a noite à orla da floresta.

De olhos afeitos à treva, caminhava no labirinto com a segurança fácil de animal notívago. Descia rampas, subia alcandores, ladeava marnotas, seguro, firme no piso, indiferente ao rumorejo noturno vago, sutil no ambiente misterioso.

Quando sentiu perto a saída, o coração bateu-lhe sôfrego, ressecou-se-lhe asperamente a boca, e os cabelos eriçavam-se-lhe com uma sensação evulsiva, como se lh'os fossem arrancando do couro.

Passou as últimas árvores, chegando ao mato ralo na vertente do monte, onde começava a lavoura.

Foram-se-lhe os olhos na direção da covanca. Escuro. Cerrou os punhos de ódio e ficou olhando, a ranger os dentes. Lá estava a casa-grande iluminada, lá estava o quadrado com a lanterna no poste, e, por ali fora, entre o mato denso, luzinhas piscavam.

Sentou-se. Era cedo, talvez. Falavam, lá embaixo. Cães latiam. Pancadas regulares caíam túmidas no silêncio. Por vezes era um grito como de vaqueiro aboiando.

À claridade amarela da varanda distinguia vultos. “Eh!” Os olhos fitos enchiam-se-lhe de visões: umas que passavam perto, fluindo serenamente no ar, em alor de brumas; cavaleiros ao longe, for­mas translúcidas, esguias, colubreando na sombra, lumes.

E Balbina? Estaria doente? Teria o senhor sabido de seu encon­tro com ele na colina? Lembrou-se de Vaca-Brava e estremeceu de cólera: “Ah! negra...!” Procurou, com o olhar, a casa do tronco, perto do moinho. Podia ser. Mas não: estava escura. Que haveria? Teve ímpetos de gritar, de descer à covanca.

Levantou-se, pôs-se a andar desesperado. Entrou no mato, acen­deu o cigarro e ficou lá dentro, pensando. De novo saiu à orilha, desceu por entre o cafezal, à espreita. Nada! E ali passou a noite em vigília, com sede sicária, uma vontade frenética de retalhar carne, espostejar, deventrar, revolver entranhas moles, atolando-se em sangueira, ouvindo o rouquejo gargarejado do estertor e respondendo, a rir, com afrontas e golpes fundos.

Amanhecia. Os campos alongavam-se, verdes, com estriados brilhos d'água na claridade brumosa. A serra recortava-se muito azul estampada no céu onde estendiam-se, em laivos fulvos, os primeiros estratos de ouro e púrpura. O sino tiniu lento.

Macambira ainda relanceou o olhar em volta como à procura de alguma coisa e quedou abstraído, encarado no além. Por fim, abarroado, estremecendo em frêmito de raiva, atirou um murro ao espaço e remergulhou na mata.

No ar cerúleo da tarde, sob o voo errático dos morcegos, aqui, ali, esgarçando-se das moitas, fluíam fumos diáfanos fundindo-se no espaço enevoado. Já o céu tinha estrelas, lumes piscavam entre as árvores e, junto à sebe, na orla escura das casuarinas, branquea­va um trecho de muro, solitário, funéreo como um túmulo.

Longo estendal níveo marcava com açucenas os meandros do córrego, o aroma enchia o ar e, perene, tristonha, começava em ressoo a surdina noturna.

Embaixo, na pedra da covanca, perto do bananal, crescia um fogacho, resplandecendo em chamas, que abriam em volta largo clarão dourado.

A instantes um vulto esgueirava-se sorrateiro, lançava ao fogo ramos secos, folhas. A claridade apagava-se afogada em grossa e negra fumarada, que rolava, alastrava aos bulcões, subia, ondu­lando em nuvem. Súbito explodiam labaredas altas, com salpicos de faíscas, relumbrando, cada vez mais vivas, à medida que a noite escurecia.

Lá em cima, à beira da mata, espiando entre as ramas, dois olhos cervais luziam fitos na fogueira de pedra.

Súbito Macambira surgiu no roçado, desceu ligeiro até as primeiras árvores do cafezal, onde estacou, olhando, a certificar-se se era mesmo na pedra da covanca que ardia a fogueira. Era lá?

No clarão trêmulo das chamas o rancho vermelhejava, oscilan­do como abalado; as folhas largas das bananeiras fulguravam, e na poça, sob a calha, a água incendiava-se radiosa aos reflexos do relume.

O negro sorriu e, sem desviar a vista da mira resplandecente, correu a mão pela cintura onde trazia enrolada a corda de linho, apalpou a adaga, tateou a garrucha.

Os nervos vibravam-lhe a choques súbitos, o sangue fervia-lhe a estos, esturricava-se-lhe a boca em febre, a pele arrepiava-se-lhe em crispações irritadas. Por vezes como que lhe faltavam as per­nas, amolecia frouxo.

A “casa-grande” iluminou-se, luziu solitário o lampião do quadrado.

— Bom! disse o negro; cê agora vai vê. E lentamente, curva­do, com o dorso a doer-lhe como ao peso de um fardo insuportá­vel, regressou à mata.

Já havia escolhido o ponto para a tocaia: lá embaixo, na por­teira do sino, raleiro de aspereza agreste, lúrido, escavacado, pe­drento, apertado entre rochas e barrancas a pique. Tinham-no por mal-assombrado: que, em noites de sexta-feira, às tantas, um sino dobrava às badaladas lúgubres e almas surdiam voejando ou correndo, sem ruído, pela terra seca e nua, atrás de gados esqueléticos que galopavam com um chocalhar sinistro.

Dali nem estrondo de arma de fogo chegaria à casa, quanto mais voz de gente. E que chegasse! Quem ousaria descer a tal pa­ragem antes do cantar do galo! Ali, sim!

E era o caminho do moço, por ser atalho breve que evitava os alagadiços da baixada. A mata, nessa noite sem lua, parecia mais enxameada de vaga-lumes: era um fagulhar contínuo na escuri­dão, e, através do negrume faiscante, Macambira seguia cansado, aborrido, suando, a tresandar catinga como fera ao cio.

Os olhos ardiam-lhe cinzados das longas vigílias, e flácido, extenuado, a cabeça oca, uma zoada enfezante nos ouvidos, como de mosqueiro em lixo, arfava a haustos, apoiando-se aos troncos. Às súbitas, porém, assomos de ira revigoravam-no: partia desabri­do, a correr, apartando furiosamente os ramos entravados, e, com farfalho estrondoso, abalsava-se aos galões tigrinos, quebrando galhos, arrancando da ramaria, a empuxões raivosos, longos, emaranhados fios de cipós. Fez alto à escuta, como se ouvisse algo.

Um barulho atroava soturnamente a brenha. Batuque ao lon­ge... Seria? E logo lembrou-lhe o reino bárbaro.

Era a sua gente que chegava em som de guerra, prestes para a vingança longamente esperada. Vinham todos: os sobas, os feiticeiros, a horda ferina, o mulherio frenético, toda a cabilda em tumulto.

Estremeceu espavorido. Firmando-se a uma árvore, sentiu o tronco mover-se, pulsar como corpo humano. Retirou a mão amedrontado.

As ervas ziniam. Um estampido estrondou na espessura trevo­sa, asas estalaram; houve um instantâneo esfuziar na altura das copas.

Eh! E o negro, de olhos esbugalhados, o coração aos baques, desembainhou a adaga, pondo-se em guarda. O silêncio caiu, mais atrás tornou-se a escuridão, apenas, de quando em quando, sibilava um ziado, acendia-se um halo na treva, um galho estralejava.

Pôs-se a caminho sarapantado, e, na incerteza das horas, receoso de perder aquela ocasião, precipitou-se por veredas tortuosas, saltando buraras, varando mataria cerrada, vadeando águas, des­cendo resvaladouros e corcovas eriçadas da macega ríspida.

Saiu no claro. A lua, tórpida, em unha, cortava o céu profundo.

Embaixo era o negror; pouco a pouco, porém, seus olhos conhecedores foram desvendando o caminho engasgado entre barrancas e penhas, como o leito seco de uma torrente, sinuoso, ondulado, subindo, precipitando-se em íngremes declives beira­do de mato, para remontar adiante e, no alto, como uma cerca, a porteira do sino.

Desceu cauteloso o lançante do morro firmando-se em arestas, agarrando-se a raízes: a terra corria-lhe sob os pés, rolava atorroada em blocos, refervilhando e batendo embaixo, balofa. Quando pôs pé no caminho, respirou largo, a peito cheio. Uma coruja abalou em voo surdo. O negro teve um arrepio de pavor esconjurando a ave, que se entranhou na mata com um chirrio de agouro.

Parado, a pensar, de olhos muito abertos, viu aspas hirtas em feixe, um tufo eriçado de puas – era uma touça de piteiras altas formando como uma sebe acúlea. Bom lugar! Ali sim?

Olhava atento o abrigo alanceado quando lhe ocorreu uma ideia. Estacou imóvel, o olhar alto. E sorriu. “Quero vê! Tem di pará memo. Quero vê!” Desenrolou a corda que o cingia e, levan­do-a de rasto, meteu-se a caminho, ladeira acima, ao longo das piteiras híspidas.

Chegando à porteira escancarada, empurrou-a de leve, lento, para que não rinchasse, fechou-a, passou-lhe a corda, amarrou-a ao mourão a fortes, retesadas voltas, e, assim como fazia uma rija laçada, resmungava contente, antegozando a vingança traiçoeira. “Cê topa aqui i para mêmo... Oh! si para! Quero vê só!” E arfava aos ahns! repuxando a corda aos sacalões e descaindo no esforço. “Para memo!” Deu mais uma laçada e, firmando as mãos na por­teira, puxou-a a si, de arranque. “Agora sim, tá dirêto. Agora sim... bamo vê. Cê é home, passa.”

Resfolegou satisfeito, correu o braço pela fronte limpando o suor e dirigiu-se vagarosamente para o piteiral.

Ia sentar-se quando ouviu estropeada, como de galope próxi­mo. O sangue fugiu-lhe, ficou suspenso, sem fôlego. Agachou-se e, de quatro, espiando por entre as espatas, esperou em ânsia.

O ruído morreu no silêncio apenas interrompido pela algazar­ra estrídula dos sapos no açude. Sentou-se com a adaga sobre as pernas, pronta. Tirou um cigarro do bolso, logo o esmagou, estraçalhou nervoso. E ficou pensando, revendo tudo: os dias de outro­ra, a sua doce vida, a casa feliz e, linda, lânguida, cheirando a flor, a que morrera traindo-o. Aperrou duramente as mandíbulas estale­jando os dentes, vergou uma das folhas das piteiras quebrando-a, rasgando-a a fibras, e pôs-se, de ímpeto, de pé, sôfrego, desejando desesperadamente o moço.

Longe era a escuridão silente, e largo, luzindo lôbrego, com um talho de lua ao meio, o açude morto.

Pensava: Ter-se-ia enganado tomando um foguinho de campo pela fogueira combinada? Mas não, vira bem.

Olhou o céu. Devia ser tarde. Com certeza Julinho ficara na Barra, de pagode com a moça dos cavalinhos. Impaciente, imaginando hipóteses absurdas, escarapelava-se irritado e mais lhe acirravam o ódio à imobilidade, o silêncio daquele imenso vazio.

Tudo dormia calmo, a terra escura e as estrelas, lá em cima. Leve, a instantes, ao sopro lento da aragem, corria um frêmito nos ramos.

O ouvido fino e atento não perdia o ruído mais brando; os olhos alongados devassavam profundamente, nada mais que o negru­me, e rasos, coriscando no açude, arrepiados lampejos fuscos.

De repente o coração pôs-se-lhe a bater, crebro. Firmou-se a prumo, hirto, erguendo-se nas pontas dos pés, avisado por um pressentimento.

Seria?! Águas não as havia ali que escachoassem, o ar estava parado, não bulia folha, entretanto um rumor aproximava-se, ora surdo, frouxo, ora trépido, como de galope. Estatelou-se, de borco, as mãos espalmadas, o ouvido no chão, à escuta. O coração batia-lhe tão forte que ressoava. Soerguendo-se, e, de cabeça alta, sorveu um largo fôlego como se farejasse gulosamente e, de novo, estirou-se imóvel. Não havia dúvida.

Com alegria canibal, raivando, a rilhar os dentes, ria surdo, aos bufidos. Ergueu-se lesto, de um salto achou-se junto da porteira, e, agarrando-a a mãos ambas, sacudiu-a de sacalão, assegurando-se da resistência. Serenando, olhou o terreno em volta, arregaçando lentamente as mangas da camisa e, de ímpeto, curvando os braços em rija flexão, oprimiu-os duramente ao peito; súbito esticou-os de arremesso forcejando, a estalar os dentes, com um meneio fe­roz da cabeça e rugindo. Bufou cansado. Despiu o capote, lançou-o na touceira e, arrancando a adaga, mirou-a, repassou-a no bíceps, brandiu-a nervosamente.

O ruído ressoava perto, cascalhando nas pedras. Houve um resfôlego e, no mesmo instante, na volta do caminho, branqueou um vulto neblinando a sombra. Era Julinho, no ruço, marchador garboso, mas passarinheiro como ele só.

O negro acocorou-se contendo o fôlego, encolheu-se entre as espatas, a um passo da porteira. Fosse por sentir a casa perto ou porque o moço o estugasse, o animal arrancou a galope esperto, ladeira acima, com um ranger de correame novo.

O negro via-o chegar e agachava-se renteando com a terra, a tremer nas pernas, o coração aos baques, falta de ar, a vista airada.

O ruço fincava as patas, investia aos galões vencendo o aclive. Passou por ele, arfando. Junto à porteira cabeou árdego, ladeou de flanco, a sacudir a cabeça com um tinir fino de metais.

Julinho descaiu no estribo, agarrou a porteira, puxou-a e, com a inesperada resistência, desequilibrou-se, pendeu, quase tombou da sela. Firmou-se, puxou de novo, e sacudia-a frenético quando descobriu a corda cruzando-se entre as travessas e o grosso mou­rão de braúna. “Que estupidez! Quem será a besta que amarrou isto?!” Lentamente apeou com as rédeas no braço, remexeu nos bolsos, resmungando. Mas o animal arrifou arisco, recuou es­corregando na rampa. O moço voltou-se para contê-lo e estacou assombrado, tremendo, a boca em hiato, os olhos muito abertos: o negro estava diante dele, impassível. A voz gargarejou-lhe rouca em constrição de terror.

— Quem é!?

Macambira encarava-o quieto.

— Cê não cunhece? Oia bem. Tamo aqui. Julinho recuava estarrecido, com um choro trêmulo, agitando as mãos tíbias. O negro deixava-o ir gozando-lhe o terror misérrimo. Onde qu'ocê vai?

Quando o viu encostado à porteira, que rangia abalada, avan­çou decidido, lançou-lhe a mão à garganta, e houve um rebrilho pálido, um grito longo de angústia, e o sangue jorrou a golfos. De novo o ferro fuzilou, embebeu-se no corpo, fundo, ainda saiu, tor­nou a esmo.

O corpo pendeu flácido, resvalou, descaiu, e o negro, atiran­do-se-lhe em cima, crivou-o a pontaços. Ajoelhou-se-lhe sobre o peito sentindo-o escabujar e, empunhando a adaga a mãos ambas, pôs-se a atirar golpes de talho num furor de chacina, aos ahns esfalfados, como um lenhador a fender tronco. Depois ergueu-se, contemplou o cadáver, ainda o picou nas pernas, alanhou-lhe o rosto e, espetando-lhe a adaga no peito, pesou com todo o corpo sobre o punho da arma, a rugir.

Pôs-se, então, de pé, orgulhoso, levantou os olhos para o céu. Uma estria lívida coriscou na escuridão, a mata densa, ferrugínea, sacudia-se desabaladamente, desarreigava-se como se descesse do morro em massa; vozes roucas, lúgubres, barbarizavam na espessura, retiniam sons de guerra, e o negro, alucinado, brandindo a adaga sangrenta, regougou heroico proclamando a vitória, a vingança da cabilda, o feito maior na raça.

Pôs-se a girogirar tonto, sapateou em tripúdio, bradando para a fazenda adormecida, ao longe:

— Eh! véia... vem vê!

E atirou-se, ladeira abaixo, em desapoderada corrida. Os matos rastolharam estrepitosos, e o ruço irrompeu desabrido, passou em fuga diante do negro, desaparecendo no macegal. Macambira estacou atônito, olhou em torno, sarapantado, e, numa dúvida, subiu a barranca até a porteira, acocorou-se junto ao cadáver, riscou um fósforo, alumiou-lhe o rosto e, vendo-o desfigurado a talhos, mascarrado a sangue, rugiu surdo, com a face contraída em rito:

— Ehn! Ehn! I agora?! Agora tá í. Vai vê lá im cima s'ocê topa co'ela. Vai vê...

E sacudiu o cadáver, que rebolou molemente.

Barras sanguíneas broslavam o horizonte, a paisagem emergia, úmida, da sombra, e começava alegremente o ruído do ressurgimento diurno.

O negro sentou-se na barranca e, escarvando a terra, olhava ao longe, perdidamente, murmurando palavras vagas, acenando ges­tos de frenesi. De improviso, a uma ideia, levantou-se, apanhou à pressa o capote, ganhou a vereda íngreme e subiu a correr.

Do alto, entre as árvores, espalhou um lento olhar de devassa. De repente, com um grito, levantou a adaga, que alumiou fúlgura, brandiu-a desfolhando ramos.

O céu encardia-se, os cimos clareavam, fina moinha de ouro polvilhava os cerros. Voltou-se encarado na serrania dos quilom­bolas e esteve a olhar longamente, imóvel como uma estátua. Estrondos atroaram a mata: alarido, grita bárbara, sons estranhos, ululos. As ervas ondulavam como a um grande vento, e a luz era purpúrea: céus e terras vermelhejavam sangrentos.

O negro respirava forte, olhando, maravilhado, o espetáculo grandioso: era a carnificina anunciada, a guerra alta dos deuses e a guerra dos mártires que ressurgiam da terra, Munza à frente, glorioso. Era nas nuvens, era na montanha e no raso – sangue e fogo por tudo.

Lá vinham, em manadas, os cirros e os estratos, e pelos campos, pelos morros corriam sobas, guerreiros ferozes, velhas, crianças; plumejavam cocares, reluziam ferros, troavam buzinas; era a devastação, a vingança dos ídolos e dos negros, a vitória da religião e da raça.

E Macambira, vibrando de entusiasmo heroico, agitou a adaga, que rebrilhava ao sol, e, rápido, como investindo em assalto, gal­gou os escalões do morro desaparecendo na brenha, aos brados, no delírio do sangue, na alucinação do excídio.