Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

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BIBLIOTECA DIGITAL do NuPILL

A velhice do Padre Eterno, de Guerra Junqueiro


Edição de referência:

Projeto Gutenberg

À MEMÓRIA

DE

Guilherme D'Azevedo

A

Eça de Queirós

ÍNDICE

Aos simples

A vinha do senhor

A caridade e a justiça

O papão

Parasitas

Resposta ao Sillabus

O batismo

Eurico

A árvore do mal

A Semana Santa

A barca de S. Pedro

Ladainha

Como se faz um monstro

Calembour

A água de Lurdes

Antonelli

O dinheiro de S. Pedro

Ao núncio Masella

Ladainha moderna

O melro

Circular

A bênção da locomotiva

A Hidra

A vala comum

A sesta do senhor abade

O Gênesis

Fantasmas

Post-scriptum

AOS SIMPLES

Ó almas que viveis puras, imaculadas

Na torre do luar da graça e da ilusão,

Vós que ainda conservais, intactas, perfumadas,

As rosas para nós há tanto desfolhadas

Na aridez sepulcral do nosso coração;

Almas, filhas da luz das manhãs harmoniosas,

Da luz que acorda o berço e que entreabre as rosas,

Da luz, olhar de Deus, da luz, benção de amor,

Que faz rir um nectário ao pé de cada abelha,

E faz cantar um ninho ao pé de cada flor;

Almas, onde resplende, almas, onde se espelha

A candura inocente e a bondade cristã,

Como num céu de Abril o arco da aliança,

Como num lago azul a estrela da manhã;

Almas, urnas de fé, de caridade, e esp'rança,

Vasos de oiro contendo aberto um lírio santo,

Um lírio imorredoiro, um lírio alabastrino,

Que os anjos do Senhor vem orvalhar com pranto,

E a piedade florir com seu clarão divino;

Almas que atravessais o lodo da existência,

Este lodo perverso, iniquo, envenenado,

Levando sobre a fronte o esplendor da inocência,

Calcando sob os pés o dragão do pecado;

Benditas sejais, vós, almas que esta alma adora,

Almas cheias de paz, humildade e alegria,

Para quem a consciência é o sol de toda a hora,

Para quem a virtude é o pão de cada dia!

Sois como a luz que doira as trevas dum monturo,

Ficando sempre branca a sorrir e a cantar;

E tudo quanto em mim há de belo ou de puro.

— Desde a esmola que eu dou à prece que eu murmuro —

É vosso: fostes vós o meu primeiro altar.

Lá da minha distante e encantadora infância,

Desse ninho de amor e saudade sem fim,

Chega-me ainda a vossa angélica fragrância

Como uma harpa eólia a cantar a distância,

Como um véu branco ao longe inda a acenar por mim!

...........................................................................

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...........................................................................

Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa,

Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.

Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares

Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,

Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.

Era a hora em que já sobre o feno das eiras

Dormia quieto e manso o impávido lebréu.

Vinham-nos das montanhas as canções das ceifeiras,

Como a alma dum justo, ia em triunfo ao céu!...

E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,

Vendo a lua subir, muda, alumiando o espaço,

Eu balbuciava a minha infantil oração,

Pedindo a Deus que está no azul do firmamento

Que mandasse um alívio a cada sofrimento,

Que mandasse uma estrela a cada escuridão.

Por todos eu orava e por todos pedia.

Pelos mortos no horror da terra negra e fria,

Por todas as paixões e por todas as magoas...

Pelos míseros que entre os uivos das procelas

Vão em noite sem lua e num barco sem velas

Errantes através do turbilhão das águas.

O meu coração puro, imaculado e santo

Ia ao trono de Deus pedir, como inda vai,

Para toda a nudez um pano do seu manto,

Para toda a miséria o orvalho do seu pranto

E para todo o crime o seu perdão de Pai!...

.............................................................

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.............................................................

A minha mãe faltou-me era eu pequenino,

Mas da sua piedade o fulgor diamantino

Ficou sempre abençoando a minha vida inteira

Como junto dum leão um sorriso divino,

Como sobre uma forca um ramo de oliveira!

*

*  *

Ó crentes, como vós, no íntimo do peito

Abrigo a mesma crença e guardo o mesmo ideal.

O horizonte é infinito e o olhar humano é estreito:

Creio que Deus é eterno e que a alma é imortal.

Toda a alma é clarão e todo o corpo é lama.

Quando a lama apodrece inda o clarão cintila:

Tirai o corpo — e fica uma língua de chama...

Tirai a alma — e resta um fragmento de argila.

E para onde vai esse clarão? Mistério...

Não sei... Mas sei que sempre há-de arder e brilhar,

Quer tivesse incendiado o crânio de Tibério,

Quer tivesse aureolado a fronte de Joanna D’Arc.

Sim, creio que depois do derradeiro sono

Há-de haver uma treva e há-de haver uma luz

Para o vício que morre ovante sobre um trono,

Para o santo que expira inerme numa cruz.

Tenho uma crença firme, uma crença robusta

Num Deus que há-de guardar por sua própria mão

Numa jaula de ferro a alma de Lucusta,

Num relicário de oiro a alma de Platão.

Mas também acredito, embora isso vos pese,

E me julgueis talvez o maior dos ateus,

Que no universo inteiro há uma só diocese

E uma só catedral com um só bispo — Deus.

E muito embora a vossa igreja se contriste

E a excomunhão papal nos abrase e destrua,

A análise é feroz como uma lança em riste

E a verdade cruel como uma espada nua.

Cultos, religiões, bíblias, dogmas, assombros,

São como a cinza vã que sepultou Pompeia.

Exumemos a fé desse montão de escombros,

Desentulhemos Deus dessa aluvião de areia.

E um dia a humanidade inteira, oceano em calma,

Há-de fazer, na mesma aspiração reunida,

Da razão e da fé os dois olhos da alma,

Da verdade e da crença os dois polos da vida.

A crença é como o luar que nas trevas flutua;

A razão é do céu o esplêndido farol:

Para a noite da morte é que Deus nos deu lua...

Para o dia da vida é que Deus fez o sol.

*

*  *

Mas, ai eu compreendo os martírios secretos

Do pobre camponês, já quase secular,

Que vê tombar por terra o seu ninho de afetos,

A casa onde nasceu seu pai, e onde os seus netos

Lhe fechariam, morto, o escurecido olhar.

Compreendo o pavor e a lividez tremente

De quem em noite má, caliginosa e fria

Atravessa a montanha à luz dum facho ardente

E uma rajada vem alucinadamente

Apagar-lho co’a asa atlética e sombria,

Deixando-o fulminado e quase sem sentidos

A ouvir o ulular das feras e os bramidos

Do ciclone que explui rouco do sorvedoiro

E se enrosca furioso aos plátanos partidos

A estrangulá-los, como uma jiboia um toiro.

Compreendo a agonia, o desespero insano

Do naufrago na rocha, entre o abismo do oceano,

Vendo rolar, rugir os glaucos vagalhões

Como uma cordilheira hercúlea de montanhas,

Com jaulas colossais de bronze nas entranhas,

E um domador lá dentro a chicotear trovões.

...............................................................

...............................................................

O vosso facho, o vosso abrigo, o vosso porto,

É um Deus que para nós há muito que está morto,

E que inda imaginais no entretanto imortal.

Vivei e adormecei nessa crença ilusória,

Já não podeis transpor os mil anos da historia

Que vão do vosso credo absurdo ao nosso ideal.

Vivei e adormecei nessa ilusão sagrada,

Fitando até morrer os olhos de Jesus,

Como o efêmero vão que dura um quase nada,

Que nasce de manhã num raio da alvorada,

E expira ao pôr do sol noutro raio de luz.

Eu bem sei que essa crença ignorante e sincera,

Não é a que ilumina as bandas do Porvir.

Mas vós sois o Passado, e a crença é como a hera

Que sustenta e dá inda um tom de primavera

Aos velhos torreões góticos a cair.

Sim, essa crença é um erro, uma ilusão, é certo;

Mas triste de quem vai pelo areal deserto

Vagabundo, esfaimado e nu como Caim,

Sem nunca ver ao longe os palácios radiantes

Duma cidade de oiro e mármore e diamantes

No quimérico azul dessa amplidão sem fim!

Quem há-de arrancar pois do seu piedoso engaste

O vosso ingênuo ideal, ó trêmulos velhinhos,

Se a quimera é uma rosa e a existência uma haste,

Rosa cheia de aroma e haste cheia de espinhos!

Quem vos há-de cortar a flor da vossa esp'rança,

Quem vos há-de apagar a angélica visão,

Se essa luz para vós é como uma criança

Que guia numa estrada um cego pela mão!

Quem vos há-de acordar desse sonho encantado?!

Quem vos há-de mostrar a evidência cruel?!

Ah! deixemos a ave ao ramo já quebrado,

E deixemos fazer ao enxame doirado

No tronco que está morto o seu favo de mel!

Ó velhos aldeões, exaustos de fadiga,

Que andais de sol a sol na terra a mourejar,

Roubar-vos da voss'alma a vossa crença antiga

Seria como quem roubasse a uma mendiga

As três achas que leva à noite para o lar!

Oh, não! guardai-a bem essa crença de outrora;

É ela quem vos dá a paz benigna e santa,

Como a paz dum vergel inundado de aurora,

Onde o trabalho ri e onde a miséria canta.

Guardai-a sim, guardai! E quando a morte em breve

Vos entre na choupana esquálida e feroz,

A agonia será bem rápida e bem leve,

Porque um anjo de Deus mais alvo do que a neve

Há-de estender sorrindo as asas sobre vós.

E vós conhecereis em seu olhar materno

Que é o anjo que embalou vosso sono infantil,

E que hoje vem do céu mandado pelo Eterno,

Para sorrir na morte ao vosso branco inverno,

Como sorriu no berço ao vosso claro Abril.

E ao pender-vos gelada a vossa fronte alabastrina

Irá levar a Deus o vosso coração,

Tão manso e virginal, tão novo e tão perfeito,

Que Deus há-de beijá-lo e aquecê-lo no peito,

Como se acaso fosse uma pomba divina,

Que viesse cair-lhe exânime na mão!

A VINHA DO SENHOR

I

Existiu noutro tempo uma vinha piedosa

Doirada pelo sol da alma de Jesus,

Uma vinha que dava uns frutos cor de rosa,

Vermelhos como o sangue e puros como a luz.

Inundavam-na d'água os olhos de Maria,

E os virgens corações dos mártires, dos crentes

Eram a terra funda aonde se embebia

A mística raiz dos pâmpanos virentes.

Produzia um licor balsâmico, divino,

Que aos cegos dava luz, aos tristes dava esp'rança,

E que fazia ver na areia do destino

A miragem feliz da bem-aventurança.

Aos mortos restituía o movimento e a fala;

Escravizava a carne, as tentações, a dor,

E transformou em santa a impura de Magdala,

Como transforma Abril um verme numa flor.

Bebê-lo era beber uma virtuosa essência

Que ungia o coração de perfumes ideais,

Pondo no lábio um riso ingênuo de inocência,

Como o d'água a correr, virgem, dos mananciais.

Dava um tal esplendor às almas, tal pureza

Que nos Circos de Roma até se viu baixar

Diante da nudez das virgens sem defesa

Ao magro leão da Nubia o coruscante olhar.

II

Mas passado algum tempo a humanidade inteira

De tal modo gostou desse licor sublime,

Que o êxtase cristão tornou-se em bebedeira,

E o sonho em pesadelo, e o pesadelo em crime.

Nas solidões do claustro as virgens inflamadas

Co'as fortes atrações da mística ambrosia

Torciam-se febris, convulsas, desvairadas,

Meretrizes de Deus numa piedosa orgia.

É que no vinho antigo ia à noite o demônio

Lançar co'a garra adunca uma infernal mistura

De mandrágora e ópio e heléboro e estramônio,

Verde-negro e viscoso extrato de loucura.

Quando uivava de noite o vento nas campinas

Via-se pela sombra, obliquo, Satanás,

Colhendo aos pés da forca ou buscando entre as ruinas

Ervas, vegetações, prenhes de essências más.

Era o filtro subtil dessas plantas de morte

Que fazia da alma um dervixe incoerente,

Uma bussola doida à procura do norte

Uma cega a tatear no vácuo, ansiosamente!...

E a taça do veneno estonteador e amargo

No fúnebre banquete ia de mão em mão,

Produzindo o delírio, a síncope, o letargo

E em cada olhar sinistro uma cruel visão.

Uns viam a espectral sarabanda frenética

De esqueletos a rir e a dançar com furor

Em torno à Morte podre, impudente, epiléptica,

Com dois ossos em cruz rufando num tambor.

Outros viam chegado o pavoroso instante

Em que um monstro do fogo, um dragão aerólito,

Dava na terra um nó co’a cauda flamejante,

Arrebatando-a, a arder, através do infinito.

E então para fugir ao desespero e ao pânico

Bebiam com mais ânsia o filtro singular.

Até a epilepsia, ao turbilhão tetânico

Do sabat desgrenhado e erótico, a espumar!

E à força de beber o trágico veneno

Tombou por terra exausta a humanidade enfim,

Como em Londres, de noite, ao pé dum antro obsceno

Cai sob a lama inerte um bêbado de gim.

III

Mas nisto despontou a esplêndida manhã

Dum mundo juvenil, robusto, afrodisíaco:

A Renascença foi para a embriaguez cristã

A excitação vital dum frasco de amoníaco.

E na vinha de Deus ainda florescente

Começou a nascer por essa ocasião

Um bicho que enterrava escandalosamente

Nos pâmpanos da crença as unhas da razão.

Propagou-se o flagelo; o mal recrudesceu;

A colheita ficou em duas terças partes;

Chega o oidium Lutero, o verme Galileu,

E cai-lhe o temporal de Newton e Descartes.

Em balde Carlos nove, Inácio e Torquemada,

Catando esses pulgões das bíblicas videiras,

Os entregam à roda, ao cadafalso, à espada,

Ou os queimam por junto aos centos nas fogueiras.

O estrago cada vez era maior, mais forte;

Apesar da realeza, o trono e a sacristia

Andarem sacudindo o enxofrador da morte

No formigueiro vil das pragas da heresia.

Por último Voltaire — filoxera invade

Essa encosta plantada outrora por Jesus,

E das cepas ideais da escura meia idade

Ficaram simplesmente uns velhos troncos nus.

IV

Mas como havia ainda alguns consumidores

Desse vinho que o sol deixou de fecundar,

Uns velhos cardeais, hábeis exploradores,

Reuniram-se em concilio afim de os imitar.

E é assim que Antonelli, o verdadeiro papa,

O químico da fé, um grande industrial,

Fabrica para o mundo ingênuo uma zurrapa

Que ele assevera que é o antigo vinho ideal.

Para isso combina os vários elementos

Que compõem esta droga: o nome de Maria,

Anjos e querubins, infernos e tormentos,

Bastante estupidez e imensa hipocrisia.

Põe isto tudo a ferver, liga, combina, mexe,

E, filtrando através duns textos de latim,

Eis preparado o vinho, ou antes o campeche,

Que a saúde da alma há-de arruinar por fim.

Mas como o paladar de muitos europeus

Quase prefere já (horrível impiedade!)

À falsificação do vinho do bom Deus

O vinho genuíno e puro da verdade;

E como já por isso, (assim como era dantes)

A Igreja não nos queime e o rei não nos enforque,

A cúria procurou mercados mais distantes,

O Japão, o Peru, a Austrália e Nova York.

Os commis-voyageurs de Roma — os Lazaristas

Com as carregações vão através do oceano,

Por toda a parte abrindo os armazéns papistas,

A fim de dar consumo ao vinho ultramontano.

Em cada igreja existe uma taberna franca

Para impingir a tal mixórdia, o tal horror,

Ou seca ou doce, ou velha ou nova, ou tinta ou branca,

Segundo as condições e a fé do bebedor.

Para Espanha vão muito uns vinhos infernais,

Um veneno explosivo e forte que produz

Um delírio tremente — o General Narvais,

E um vomito de sangue — o cura Santa Cruz.

Portugal quer vinagre. A Itália quer falerno.

Veuillot quer aguarrás que ponha a língua em brasa.

E John Bull, por exemplo, um pouco mais moderno,

Manda ao diabo a botica, e faz a droga em casa.

Ao povo, esse animal, que o Padre Eterno monta,

Como é pobre, coitado, então a Santa Sé

Fabrica lhe uma borra incrível, muito em conta,

Um pouco de melaço e um pouco de aguapé.

A fina flor cristã, a flor altiva e nobre,

O rico sangue azul do bairro S. Germano,

Para quem o bom Deus é um gentil-homem pobre

A quem se dá de esmola alguns milhões por ano.

Essa como detesta os vinhos maus, baratos,

Como é de raça ilustre e débil compleição,

Mandam-lhe um elixir que serve para os flatos,

Ou para pôr no lenço ao ir à comunhão.

De resto há quem, bebendo essa tisana impura,

Sinta a impressão que outrora o néctar produzia.

São milagres da fé. Ditosa a criatura

Que no ruibarbo encontra o sabor da ambrosia.

E eu não vos vou magoar, ó almas cor de rosa

Que inda achais neste vinho o esquecimento e a paz!

Não insulto quem bebe a droga venenosa;

Acuso simplesmente o charlatão que a faz.

A CARIDADE E A JUSTIÇA

No topo do calvário erguia-se uma cruz,

E pregado sobre ela o corpo do Jesus,

Noite sinistra e má. Nuvens esverdeadas

Corriam pelo ar como grandes manadas

De búfalos. A lua ensanguentada e fria,

Triste como um soluço imenso de Maria,

Lançava sobre a paz das coisas naturais

A merencória luz feita de brancos ais.

As árvores que outrora em dias de calor

Abrigaram Jesus, cheias de mágoa e dor,

Sonhavam, na mudez hercúlea dos heróis.

Deixaram de cantar todos os rouxinóis,

Um silêncio pesado amortalhava o mundo.

Unicamente ao longe o velho mar profundo

Descantava chorando os salmos da agonia.

Jesus, quase a expirar, cheio de dor, sorria.

Os abutres cruéis pairavam lentamente

A farejar-lhe o corpo; às vezes de repente

Uma nuvem toldava a face do luar,

E um clarão de gangrena, estranho, singular,

Lançava sob a cruz uns tons esverdeados.

Crocitavam ao longe os corvos esfaimados;

Mas passado um instante a lua branca e pura

Irrompia outra vez da grande nevoa escura,

E inundavam-se então as chagas de Jesus

Nas pulverizações balsâmicas da luz.

No momento em que havia a grande escuridão,

Cristo sentiu alguém aproximar-se, e então

Olhou e viu surgir no horror das trevas mudas

O cobarde perfil sacrílego de Judas.

O traidor, contemplando o olhar do Nazareno,

Tão cheio de desdém, tão nobre, tão sereno,

Convulso de terror fugiu... Mas nesse instante

Surgiu-lhe frente a frente um vulto de gigante,

Que bradou:

— É chegado enfim o teu castigo

O traidor teve medo e balbuciou:

— Amigo,

Que pretendes de mim? dize, por quem esperas?

Quem és tu? —

— “O Remorso, um caçador de feras,

Disse o gigante. Eu ando há mais de seis mil anos

A caçar pelo mundo as almas dos tiranos,

Do traidor, do ladrão, do vil, do celerado;

E depois de as prender tenho-as encarcerado

Na enormíssima jaula atroz da expiação.

E quando eu entro ali na imensa confusão

De tigres, de leões, de abutres, de chacais,

De rugidos febris e de gritos bestiais,

Fica tudo a tremer, quieto de horror e espanto.

Caim baixa a pupila e vai deitar-se a um canto.

E quando em suma algum dos monstros quer lutar

Azorrago-o co'a luz febril do meu olhar,

Dando-lhe um pontapé, como num cão mendigo.

Já sabes quem eu sou, Judas; anda comigo!”

Como um preso que quer comprar um carcereiro,

Judas tirou do manto a bolça do dinheiro,

Dizendo-lhe:

— Aqui tens, e deixa-me partir...

O gigante fitou-o e começou a rir.

Houve um grande silêncio. O infame Iscariote,

Como um negro que vê a ponta dum chicote,

Tremia. Finalmente o vulto respondeu:

“Judas, podes guardar esse dinheiro; é teu.

O oiro da traição pertence-lhe ao traidor,

Como o riso à inocência e como o aroma à flor.

Esse oiro é para ti o eterno pesadelo.

Oh! guarda-o, guarda-o bem, que eu quero derretê-lo,

E lançar-to depois caustico, vivo, ardente,

Lançar-to gota a gota, inexoravelmente

Em cima da consciência, a podrida, a execrável!

Com ele hei de fundir a algema inquebrantável,

A grilheta que a tua esquálida memoria

Trará, arrastará pelas galés da História,

Durante a eternidade ilimitada e calma.

Essa bolsa que aí tens é o cancro da tua alma:

Já se agarrou a ti, ligou-se ao criminoso,

Como a lepra nojenta ao peito do leproso,

Como o ímã ao ferro e o verme à podridão.

Não poderás jamais largá-la da tua mão!

És traidor, assassino, hipócrita, perjuro;

A tua alma lançada em cima dum monturo

Faria nodoa. És tudo o que há de mais vil,

Desde o ventre do sapo à baba do reptil.

Sai da existência! dize à sombra que te acoite.

Monstro, procura a paz! verme, procura a noite!

Que o sol não veja mais um único momento

O teu olhar obliquo e o teu perfil nojento.

Esse crime, bandido, é um crime que profana,

Todas as grandes leis da vida universal.

Esconde-te na morte, assim como um chacal

No seu covil. Adeus, causas-me nojo e asco.

Deixo dentro de ti, Judas, o teu carrasco!

És livre; adeus. Já brilha o astro matutino,

E eu, caçador feroz, cumprindo o meu destino,

Continuarei caçando os javalis nos matos.”

E dito isto partiu a procurar Pilatos.

Vinha rompendo ao longe a fresca madrugada.

Judas, ficando só, meteu-se pela estrada,

Caminhando ligeiro, impávido, terrível,

Como um homem que leva um fim imprescritível

Uma ideia qualquer, heroica e sobranceira;

De repente estacou. Havia uma figueira

Projetando na estrada a larga sombra escura;

Judas, desenrolando a corda da cintura,

Subiu acima, atou-a a um ramo vigoroso,

Dando um laço à garganta. O seu olhar odioso

Tinha nesse momento um brilho diamantino,

Reto como um juiz, forte como um destino.

Nisto ecoou através do negro céu profundo

A voz celestial de Jesus moribundo,

Que lhe disse:

— “Traidor, concedo-te o perdão.

Além de meu carrasco és inda o meu irmão.

Pregaste-me na cruz; é o mesmo, fica em paz.

Eu costumo esquecer o mal que alguém me faz.

Eu tenho até prazer, bem vês, no sacrifício.

Não te cause remorso o meu atroz suplicio,

Estes golpes cruéis, estas horríveis dores.

As chagas para mim são outras tantas flores!”

Judas fitou ao longe os cerros do calvário,

E erguendo-se viril, soberbo, extraordinário,

Exclamou:

— “Não aceito a tua compaixão.

A Justiça dos bons consiste no perdão.

Um justo não perdoa. A justiça é implacável.

A minha ação é infame, hedionda, miserável;

Preguei-te nessa cruz, vendi-te aos Fariseus.

Pois bem, sendo eu um monstro e sendo tu um Deus,

Vais ver como esse monstro, ó pobre Cristo nu,

É maior do que Deus, mais justo do que tu:

À tua caridade humanitária e doce,

Eu prefiro o dever terrível!”

E enforcou-se.

O PAPÃO

As crianças têm medo à noite, às horas mortas

Do papão que as espera, hediondo, atrás das portas,

Para as levar no bolso ou no capuz dum frade.

Não te rias da infância, ó velha humanidade,

Que tu também tens medo ao bárbaro papão,

Que ruge pela boca enorme do trovão,

Que abençoa os punhais sangrentos dos tiranos,

Um papão que não faz a barba há seis mil anos,

E que mora, segundo os bonzos têm escrito,

Lá em cima, de trás da porta do Infinito.

PARASITAS

No meio duma feira, uns poucos de palhaços

Andavam a mostrar em cima dum jumento

Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,

Aborto que lhes dava um grande rendimento.

Os magros histriões, hipócritas, devassos,

Exploravam assim a flor do sentimento,

E o monstro arregalava os grandes olhos baços,

Uns olhos sem calor e sem entendimento.

E toda a gente deu esmola aos tais ciganos;

Deram esmola até mendigos quase nus.

E eu, ao ver este quadro, apóstolos romanos,

Eu lembrei-me de vós, funâmbulos da Cruz.

Que andais pelo universo há mil e tantos anos

Exibindo, explorando o corpo de Jesus.

RESPOSTA AO SILLABUS

Fanáticos, ouvi as coisas que eu vos digo:

Dentro dessa prisão cruel do dogma antigo

A consciência não pode estar paralisada,

Como num velho catre uma velha entrevada.

Tudo se modifica e tudo se renova:

Da escura podridão nojenta de uma cova

Sae uma flor vermelha a rir alegremente.

A ideia também muda a pel' como a serpente.

O que era ontem grão é hoje a seara imensa.

A Verdade saiu desse casulo — a Crença,

Assim como saiu do velho o mundo novo.

Recolher outra vez a águia no seu ovo

É impossível; quebrou o involucro ao nascer.

Como é que podes tu ó Egreja, pretender,

Cerrando na tua mão um box enorme — o inferno,

Levar aos encontrões o espírito moderno,

Levá-lo para trás, para o passado escuro,

Como um bandido leva um homem contra um muro?!

A trajetória imensa e fulva da verdade

Não se pode suster com a facilidade

Com que Josué susteve o sol no firmamento.

Atirar a justiça, a ideia, o pensamento

Às fogueiras da fé, ó bonzos, é impossível:

Reduzirdes a cinza o que? O incombustível!

Loucos! ide dizer ao velho Torquemada

Que queime se é capaz num forno uma alvorada!

....................................................... Sacristas,

Ajuntai, reuni os balandraus papistas,

As fardas sepulcrais do exército da fé,

A capa de Tartufo, a loba de Claret,

A cogula do monge, enfim, tudo que seja

Cor da noite; arrancai o velho crepe a igreja,

Dos caixões descosei os panos funerários,

Tisnai co'a vossa língua as alvas e os sudários,

E se inda precisais mais sombras, mais farrapos,

Pedi ao corvo a asa, o ventre imundo aos sapos,

Fabricai disto tudo uma cortina imensa,

E tapando com ela o sol da nossa crença,

Nem mesmo assim fareis o eclipse da aurora!

A consciência não é a besta duma nora.

Lembrai-vos que o Progresso é um carro sem travão,

E que apagar em nós o facho da razão

É o mesmo que apagar o sol quando flameja

Com um apagador de lata duma igreja.

Bonzos, podeis dizer à humanidade — Para! —

Co'a foice excomunhão podeis ceifar a ceara

Da heresia; podeis, segundo as ordenanças,

Meter pedras de sal na boca das crianças,

Fazer do Deus do amor o Deus barbaridade,

Chamar à estupidez irmã da caridade

E jesuíta a Jesus e Cristo a Carlos sete;

Vós podeis discutir junto da campa o frete,

Recoveiros de Deus, o frete que é preciso

Para irdes levar lá cima ao paraíso

A alma dum defunto; ó bonzos, vós podeis

Ir pedir emprestado um exército aos reis

E defender com ele o papa, o vaticano,

Do cerco que lhe faz o pensamento humano,

Pondo adiante dum dogma a boca dum canhão;

Podeis encarcerar dentro da inquisição

Galileu; vós podeis, anões, contra os ciclopes

Roncar latim, zurrar sermões, brandir hissopes,

Que não conseguireis que a Liberdade vista

A batina pingada e rota dum sacrista,

Que o direito se ordene, e que a Justiça queira

Ir a Roma tomar, contrita, o véu de freira!

O BATISMO

Exeat de vobis spiritus malignas.

ritual.

Batizais: arrancais dum anjo um satanás.

Desinfetais Ariel banhando-o em aguarrás

De igreja e no latim que um malandro expectora,

Dizeis à noite: — limpa a túnica da aurora,

E ao rouxinol dizeis: — pede a benção da c'ruja.

Dais os lírios em flor ao rol da roupa suja,

Representais a farsa estúpida e sombria

Dum cônego a lavar um astro numa pia,

Finalmente extraís da inocência o pecado,

Que é o mesmo que extrair duma rosa um cevado,

E tudo isto por quê?

Porque na bíblia um mono

Devora uma maçã sem licença do dono!

EURICO

Cód. civil art. 1057 e 4031

Eurico, Eurico, ó pálida figura,

Lastimoso, romântico levita,

Que nos serros do Calpe em noite escura

Ergues as mãos à abobada infinita;

Rasga a página santa da Escritura;

O espírito de luz que em nós habita

Já não consente essa ideal loucura

Que faz do amor uma paixão maldita.

Deixa a soidão dos montes escalvados;

Não soltes mais os trenos inflamados,

Nem tenhas medo às garras do demônio.

Beija a Hermengarda, a tímida donzela.

E vai de braço dado tu e ela

Contrair civilmente o matrimônio.

A ÁRVORE DO MAL

Por debaixo do azul sereno, entre a fragrância

Dos mirtos, dos rosais,

Viviam numa doce e numa eterna infância

Nossos primeiros pais.

Seus corpos juvenis, mais alvos do que a lua,

Mais puros que os diamantes,

Conservavam ainda a virgindade nua

Das coisas ignorantes.

Pôs Deus nesse jardim com sua mão astuta

Ao lado da inocência

A Árvore do Mal que produzia a fruta

Venenosa da ciência.

E, apesar de conter venenos homicidas

E o gérmen do pecado,

Era Deus quem comia à noite, às escondidas,

Esse fruto vedado.

Por isso Jeová tinha ciência infinda,

Tinha um poder secreto,

E Adão que não provara os frutos era ainda

Um anjo analfabeto.

Eva colheu um dia o belo fruto impuro,

O fruto da Razão.

Nesse instante sublime Eva tinha o Futuro

Na palma da sua mão!

O homem, abandonado a submissão covarde,

Viu o fruto e comeu.

Esse fruto é a luz que a Júpiter mais tarde

Roubará Prometeu.

E ao ver igual a si a estátua que criara,

O homem réprobo e nu,

Jeová exclamou: “Maldita seja a seara

Cuja semente és tu!”

Veio depois a Egreja e repetiu aos crentes

De toda a humanidade:

“Maldito seja sempre o que enterrar os dentes

Nos frutos da Verdade!”

A Egreja permitia esse vedado pomo

Somente aos sacerdotes.

Da árvore do mal fugia o mundo, como

Os lobos dos archotes.

Se o sábio que buscava o oiro nas retortas

Ia como um ladrão

Roubar timidamente, à noite, às horas mortas

Algum fruto do chão,

Tiravam-lhe da boca esse fruto daninho

Duma maneira suave:

Atando-lhe à garganta uma corda de linho

Suspensa duma trave.

Um dia um visionário, alma vertiginosa,

Espírito imortal,

Foi deitar-se, que horror! à sombra temerosa

Da Árvore do Mal.

A Egreja ao ver aquela intrépida heresia

Lança-lhe excomunhões;

Tomba por terra um fruto... e Newton descobria

A lei das atrações!

Sacudi, sacudi, a árvore maldita,

Que os astros tombarão,

Como se sacudisse a abobada infinita

Deus com a própria mão!

E quando o mundo inteiro enfim houver comido

Até à saciedade

O fruto que lhe estava há tanto proibido,

O fruto da Verdade,

Homens, dizei então a Jeová: — “Tirano,

Vai-te embora daqui!

Construímos de novo o paraíso humano;

Fizemo-lo sem ti.

“Expulsaste do Olimpo a humanidade outrora,

Ó déspota feroz;

Pois bem, o Olimpo é nosso, e Jeová, agora

Expulsamos-te nós!

A SEMANA SANTA

I

Não podendo dormir no horror da sepultura,

Na podridão escura

Da terra imunda e fria,

Voltaire despedaçando o féretro chumbado,

E cingindo o lençol ao corpo esverdeado

Ressuscitou um dia.

Pairava-lhe no lábio o riso fulminante

Com que outrora gravou nas crenças virginais,

Como num rico espelho a aresta dum diamante,

Tamanhas abjecções, sarcasmos tão brutais.

Mas era ao mesmo tempo o riso heroico e bom

Que os tiranos prostrava em misero desmaio,

Riso a que sucedeu o verbo de Danton,

Como a um trovão sucede o lampejar dum raio.

Dormira febrilmente um longo sono inquieto

Em quanto andava o mundo a executar-lhe os planos,

E vinha ver enfim, diabólico arquiteto,

O estado da sua obra ao cabo de cem anos,

Ó sátiro divino, ó monstro da ironia,

Gênio que Deus conduz e Satanás impele,

Que esmagas hoje o infame, e escreves no outro dia

Com a tinta do enxurro os versos da Pucelle;

Tu és feito de luz e feito de baixezas,

Feito de heroicidade e de protérvias más;

Corromperam-te a alma os braços das duquesas

E encarquilhou-te a face o rir de Satanás.

Rasgas ao mundo novo a estrada do futuro

Cantando ao mesmo tempo o sórdido deboche:

És como um Juvenal dentro dum Epicuro,

Ó arlequim-titã, ó semi-deus-gavroche.

Nesse lábio mordente esse sorriso eterno

Faz frio como a ponta aguda duma espada;

O teu gênio, Voltaire, é como o sol do inverno,

Dá muitíssima luz, mas não aquece nada.

Em vão por sobre a paz dos campos desolados

Ele entorna do azul seus vivos esplendores;

Não cantam rouxinóis nas sebes dos valados,

Não faz nascer o trigo e germinar as flores.

É que nunca soubeste o que é a dor profunda

Que estala fibra a fibra os grandes corações;

É que nunca choraste, ó Prometeu corcunda,

Como Dante chorou, como chorou Camões

Voltaire, ó rachador de velhos preconceitos,

Aos golpes de teu riso, a golpes de machado

Caíram sobre a terra atléticos, desfeitos

Na floresta da noite os cedros do passado.

Mataste a tradição, o dogma, o privilégio,

Assobiaste a rir a fé de nossos pais,

E andaste pelo azul, hediondo sacrilégio!

A correr à pedrada os deuses imortais.

Empunhando o alvião terrível da verdade

Tu minaste, Voltaire, infatigavelmente

O alicerce de bronze à velha sociedade.

Do teu riso cruel a onda dissolvente

Foi como os vagalhões, aríetes do mar,

Que cavam sob a rocha um tão profundo abismo

Que a rocha fica quase assente sobre o ar.

Tu minaste, Voltaire, a rocha despotismo.

E depois de ter feito a escavação noturna,

Como fazem no monte as feras sanguinárias,

Encheste até à boca essa medonha furna

Com barris de petróleo e bombas incendiarias

E em quanto o níveo pé soberbo de Antonieta

Da França estrangulava a suplicante voz,

Tu lançavas de longe a trágica luneta,

Velho Fauno cruel, rindo com riso atroz.

Até que um dia enfim exausto de cansaço,

Sentindo já sem força as garras de condor,

Tu chegaste, Arouet, sem te tremer o braço,

Ao rastilho da mina o fogo abrasador.

Cobriu-se então o azul duma tormenta escura,

Ecoou lugubremente o estrondo de trovão,

Viste arder o rastilho até uma certa altura,

E foste-te esconder, a rir, na sepultura

Mal se ia aproximando a hora da explosão.

Quando ressuscitou Voltaire ficou atônito

Vendo os nossos chapéus e as nossas calças pretas,

Mas como desejava andar no mundo incógnito,

E não ler o seu nome impresso nas gazetas,

Oh, a necessidade a quanto nos obriga!

Voltaire o diplomata, o cortesão taful

Largou a juba de oiro, a cabeleira antiga

E foi vestir-se à moda aos armazéns do Pool.

Na sexta-feira santa os templos percorria

Voltaire para observar os crentes verdadeiros

No dia da paixão, no lutuoso dia

Em que se faz de Cristo o deus dos confeiteiros.

Arouet, ao ver aquela estúpida farsada,

Foi acordar Jesus na sua campa ignorada

E disse-lhe:

II

— “Anda ver ó Cristo estes bandidos.

Que rostos tão floridos,

Que belas digestões!

Ó pálido Jesus, ó cismador antigo,

Levanta-te da campa e vem daí comigo

A ver estes ladrões.

Nós vamos passear juntos, de braço dado,

Mas vestirás primeiro um fraque bem talhado

De fino pano inglês,

E Hás-de pôr na cabeça este chapéu redondo,

Para ficar gentil, para ficar hediondo

Como qualquer burguês.

Tu odeias de certo estas casacas pretas,

Mas não quero, Jesus, que tu me comprometas

Com esse balandrau muitíssimo ratão.

Se eu fosse ao boulevard contigo e alguém me visse,

Ninguém oh, flor do tom! ninguém, oh canalhice!

Me apertaria a mão.

O talhe dum colete e os pontos duma luva,

A menor frioleira, um simples guarda-chuva,

Substituíram hoje as regras de Lavater:

Passando eu por acaso enodoado e roto,

Diriam: “Que chapéu! que pulha! que maroto!

Aquele homem não tem nem sombras de caráter!”

Anda, veste a farpela. Agora, sim senhor!

Muito grotesco és, meu pobre Redentor!

Vais a comprometer-me, ó alma do Diabo!

Que figura infeliz, inteiramente chata!...

Pelo menos corrige o laço da gravata

E põe na boutonière este jasmim do Cabo.

Necessitas de ter maneiras delicadas

E a arte de dizer uns pequeninos nadas

Com chic e distinção. Ser Deus é muito bom;

Mas é preciso ser um deus da fina roda,

Um deus do nosso tempo, um deus da última moda,

Um deus petit-crevé, um deus à Benoiton.

Se amanhã por acaso alguém, medita nisto,

Te fosse apresentar — Sua Ex. o Cristo —

Nos devotos salões do bairro São-Germano,

Oh escândalo! oh farsa! oh padre omnipotente!

As duquesas, sorrindo aristocratamente,

Achavam-te decerto um Deus provinciano.

Saiamos para a rua. A gente anda de luto,

Porque consta que outrora um visionário, um bruto,

Se deixara morrer pregado num madeiro.

E hoje em memória disto os pais compram às filhas,

Três caixas de pastilhas

Na loja dum doceiro.

Quanta mulher formosa aí nesses balcões!

Que lindas tentações,

Meu pálido judeu!

Deixa por um instante as regiões serenas;

Namora estas pequenas,

Que elas hão de gostar do teu perfil hebreu.

Arranja um casamento e aprende a ter juízo.

A noiva pouco importa; o dote é que preciso

Discuti-lo. Olha lá, os pais que sejam velhos!...

Que vá para o diabo o reino da Utopia!

E hão-de te nomear sócio da academia

E, quem sabe! talvez barão dos Evangelhos.

Penetremos na igreja a ver esta farsada.

Uns entram para ver a casa iluminada,

Os dândis é por chic, os velhos por decoro;

Estes é para ouvir tocar umas quadrilhas,

E os outros, que sei eu!... para vender as filhas,

Para matar o tempo ou arranjar namoro.

Lá vai o pregador dizer a seremonata

Tossiu cuspiu, sorriu, bebeu a sua orchata

E começa a falar. Tem uns bonitos dentes.

E com gesto facundo e voz amaneirada

Receita una enfiada

De tropos excelentes.

Acabou se. O auditório

Gostou do farelório

Como gostámos nós.

Soltam-se exclamações por entre algum rumor:

Muito bem! muito bem!É um grande pregador!

Foi um rico sermão!E que bonita voz!

E é esta a tua casa, ó meu pobre Jesus!

Não te bastou a cruz;

Era preciso o altar,

Que destino cruel, que trágica ironia!

Nasces na estrebaria,

Vives no lupanar!

Desfila pela rua imensa multidão.

Saiu a procissão;

Paremos um instante. É curioso isto.

Que farsas imbecis, que velhas pompas mudas!

Lá vai pegando ao palio o teu amigo Judas,

Que está, como tu vês, comendador de Cristo!

Os anjos teatrais caminham lentamente

Com asas de galão feitas expressamente

Nas lojas de Paris.

Pobres anjos do céu! querem martirizá-los:

Vão cheios de suor e apertam-lhe os calos

As botas de verniz.

Agora passas tu num palanquim bordado.

Cuidado!

Muito trabalho tem quem faz religiões!

Repara como vais, olha que bela túnica:

É pavorosa, é única!

Of'receu-ta um burguês num dia de eleições.

E atrás do velho andor e atrás das velhas opas

Vão desfilando agora os esquadrões das tropas

Com gesto marcial.

Tu que amavas os bons, os simples e as crianças,

Seguido como os reis dum matagal de lanças,

Meu pobre general!

Terminou a função. É negro o firmamento.

Ai que aborrecimento!

Ó meu Jesus, que tedio!

Para poder dormir, para poder cear,

Que há-de a gente fazer? vamos ao lupanar,

Não há outro remédio.

Ali tens, meu amigo, os cônegos vermelhos:

Que rostos joviais, brunidos como espelhos,

Que riso debochado e gesto vinolento!

E à noite, a esta hora, uns padres sem batinas

Do certo não virão pregar às concubinas

O 6º mandamento!

Os teus guardas fieis depois da procissão,

Já roucos de cantar um velho cantochão,

Deixaram-te no templo abandonado e só.

Uns vieram beijar as carnes prostituídas,

E os outros foram ler no quarto, às escondidas,

Romances de Bollot.

E como a noite é linda! a branca lua passa,

Ostentando na fronte a palidez devassa

Duma infeliz mulher.

Quando tudo fermenta e tudo anda de rastros

Já não deve admirar que a sífilis chegue aos astros

E precisem também xarope de Gibert!

Meu Pai, vamos cear. É quase madrugada;

É a hora do tom, a hora consagrada

Para os ricos festins à viva luz do gás.

É a hora da morte, a hora do ataúde,

E a mesma em que repoisa a cândida virtude

Nos braços de Faublas.

Anda não tenhas medo, entra no restaurante.

A sala está repleta. A púrpura brilhante

Dos desejos inflama os sonhos tentadores.

O champanhe sacode os crânios embriagados,

E os crimes sensuais e os vícios delicados

Rompem num turbilhão de venenosas flores.

O punch, iluminando as faces cadavéricas,

Faz-nos imaginar as saturnais quiméricas

Que à noite deve haver na morgue de Paris,

Aonde as cortesãs, mais roxas que as violetas,

Ao luar cantarão as verdes cançonetas

Das podridões gentis.

Volteiam pelo ar os ditos picarescos,

Elásticos, febris, doidos, funambulescos,

Como gnomos de luz vestidos de histriões,

Dançando, tilintando os guizos argentinos,

Fazendo à luz do gás trejeitos libertinos

Com o riso cruel das alucinações.

Ceemos. Manda vir as coisas que preferes;

E que nos vão buscar duas ou três mulheres,

Que as há perto daqui;

O mais, pede por boca, o meu divino mestre;

Mas escuta, olha lá, não peças mel silvestre,

Porque já se não usa e riem se de ti.

E agora é destampar a rubra fantasia!

Bebe, pragueja, ri, inventa, calúnia,

Anda! mostra que tens espírito, ladrão!

Não quero ver chorar os olhos teus contritos;

Sê canalha com graça, infame com bons ditos,

Vamos, sensaborão!

Conta-nos em voz alta historias bem galantes,

Segredos irritantes,

Vergonhas sensuais,

Adultérios da moda, escândalos, misérias,

Tudo isto, já se vê, com ótimas pilherias,

Bastante originais.

Tu precisas perder esse teu ar de adventício

E um certo horror ao vício,

Dum pedantismo ignaro;

Formosura sem vicio é coisa que não tenta;

O vício, meu amigo, é bom como a pimenta,

E o defeito que tem é ser um pouco caro.

Conversemos, alegra a tua fronte augusta.

Sê espirituoso, inventa, o que te custa!

Uma infâmia qualquer muitíssimo engenhosa...

Tens um amigo? bem, vamos caluniá-lo;

Tens amantes? melhor, eu dou-te o meu cavalo

E dás-me a mais formosa.

Parece que o rubor te vai subindo às faces...

Ó Filho, não me maces!

Ó Filho, tem piedade!

Deixa-te de sermões; no fim de contas eu

Sou muito bom cristão... um poucochinho ateu,

Como um cristão qualquer da fina sociedade.

Saiamos; rompe a aurora. A burguesia dorme,

Como a jiboia enorme

Que ressona, depois de devorar um toiro;

Ó jiboia feliz, ó burguesia, ó pança,

Dorme com segurança

Que a forca está de guarda aos teus bezerros de oiro.

E chama-se Progresso, ó Deus, esta farsada!

Isto é o cinismo alvar e em pelo, à desfilada,

É a prostituição ignóbil da mulher,

São desejos brutais, é carne em plena orgia,

Enfim a saturnal da podre burguesia,

Que reza como o papa e ri como Voltaire.

Morrendo o velho Deus, o velho Deus tirano,

Este mundo burguês, católico-romano

Encontrou-se sem fé, sem dogma, sem moral;

A justiça era ele o Padre-omnipotente;

Esse Padre morreu; ficou nos simplesmente

Um único evangelho — o código penal.

A consciência humana é um monte de destroços.

Foram-se as orações, foram-se os padres-nossos,

Tombou a fé, tombou o céu, tombou o altar;

E o velho Deus-castigo e o velho Deus-receio

É simplesmente um freio

Para conter a raiva à besta popular.

A crassa burguesia, essa recua fradesca,

Opípara, animal, selênica, grotesca,

Namora a Deusa-carne e adora o Deus-milhão;

E as almas, fermentando assim nesta impureza,

Resvalam sensuais do leito para a mesa.

Da mesa para o chão.

Vendem-se a peso de oiro as languidas donzelas,

Mais torpes que as cadelas,

Que ao menos dão de graça o libertino amor,

E o Dever, a Saúde, o Justo, o Verdadeiro,

Esses ricos metais fundem-se no braseiro

Dum sensualismo expresso, atroz, devorador.

A agiotagem, a bolsa, a cotação dos fundos,

É o princípio rei dominador dos mundos,

É um sangue vital, forte como o cognac.

Engordai, engordai ó bravos homens sérios,

Que servis para dar esterco aos cemitérios

E música à Offenbach.

A vergonha morreu, a dignidade foi-se.

O mundo oficial é um vergonhoso alcoice,

E a plebe tripudiando em hórridas orgias

Lança sobre o Direito um pustulento escarro,

E acende, cambaleando, a ponta do cigarro

Na fogueira que abrasa o Louvre e as Tulhérias.

A família é um bordel. Os leitos sensuais

São verdadeiramente esgotos seminais,

Eróticas latrinas,

Onde entre o tumultuar dum debochado gozo

Se fábrica de noite o sangue escrofuloso

Das raças libertinas.

Calemo-nos. Eu oiço as ferraduras de Argus.

É a Ordem e a Lei; correm a trotes largos,

Vêm nesta direção, esconde-te, Jesus!

Metamo-nos aqui num beco, anda ligeiro!

Que, se sabem quem és, meu velho petroleiro,

Mandam-te pendurar segunda vez na cruz.

E agora, Filho, adeus. Eu vou dormir um pouco,

E tu, meu pobre louco,

Descansa inda que seja um breve quarto de hora;

Tingem-se de vermelho as bandas do Oriente,

É hoje a Aleluia, e necessariamente

Tens de ressuscitar logo ao romper de aurora.

Eu mais feliz que tu, simples mortal que sou,

Eu, meu amigo, vou

Dormir até que chegue a hora do jantar.

Adeus, e ressuscita apenas surja o dia;

Se queres vem dormir à minha hospedaria,

Que eu mando-te acordar.”

E Arouet partiu, soltando uma cruel risada

E Jesus ficou só na noite desolada,

Naquela colossal Babilônia impudente,

Entre quatro milhões do almas — quatro milhões

De tigres, do reptis, de abutres e de leões

Agachados na sombra ameaçadoramente!...

Quem a visse do alto essa Londres deserta

Com a fosforescência esmorecida, incerta

Da luz do gás a arder sob um céu tumular,

Julgaria estar vendo um grande monstro escuro,

Como que um Leviatã pútrido num monturo

Imenso a fermentar.

A noite era sinistra. Os ventos a galope

Resfolegavam como as forjas dum ciclope

Com uivos de alienado e rugidos de feras.

E o mar bramia ao longe atlético, espumante

Qual marmita profunda a ferver trovejante

Sobre cem mil crateras.

E Cristo foi andando errante, vagabundo

Através dessa vasta imperatriz do mundo,

Opulenta Gomorra hidrópica do vício,

Que Deus não enxofrou talvez, como costuma,

Porque além de estar caro o enxofre, Deus em suma

Já não pode arruinar-se em fogos de artificio.

E ele ia vendo os mil palácios portentosos

Onde a besta feliz dormia, ébria de gozos,

Um inefável sono.

Em quanto que a miséria anônima, esfaimada

Às três da madrugada

Disputava o jantar no enxurro aos cães sem dono.

As altas catedrais, aonde a burguesia

Vai arrotar um pouco à missa do meio-dia;

Tinham como que o ar dum teatro fechado

O aspecto mercantil dum armazém colosso,

Em que Deus ao balcão vende os dogmas por grosso

E o céu por atacado.

Os bancos, Pantagruéis do milhão, monumentos

De mármore e granito e bronze, sonolentos

Molochs, cuja pança obesa é um matadouro,

Na virtuosa paz de monstros em descanso

Digeriam de manso

Nos seus ventres de ferro um Himalaia de oiro.

Nos mundos hospitais, onde enfim a desgraça

Tem a consolação do agonizar de graça,

Santos, monstros, heróis, — Tropmans, Valjeans, Phrinés —

Ansiavam no estertor do transe derradeiro,

— Lixo que um bonzo vai entregar a um coveiro

Para o calcar aos pés.

E era aquela imundície humana a humanidade!

Tinha valido bem a pena na verdade

Pregado numa cruz morrer como um ladrão,

Para ao cabo de dois mil anos vir achar

Pilatos sob o trono e Caifás sobre o altar

De diadema na fronte e báculo na mão!

Arrasou-se de pranto o olhar do Nazareno,

Aquele olhar profundo, aquele olhar sereno

Que outrora deu alivio a tantos corações,

E a linha virginal de seu perfil suave

Turbou-se, apresentando o aspecto mudo e grave

Das nobres aflições.

E marmóreo, espectral, com a fronte sombria

Banhada no suor sangrento da agonia

Foi deitar-se outra vez na leiva tumular,

Atleta que expirou transido de mil dores

E quer dormir, dormir entre as ervas e as flores

Onde escorre piedosa a branca luz do luar.

E quando a cristandade à volta do meio-dia

Correu ao templo a ver o entremez da Aleluia,

Em lugar dum Jesus banal de ciclorama

Subindo ao firmamento,

De olhos azuis num céu de anil, túnica ao vento,

Sobre nuvens de gloria, de algodão em rama,

Viu-se na tela um Cristo em fúria, um visionário,

Truculento, febril, colérico, incendiário,

Como que um salteador fugido das galés,

Na boca uma blasfêmia e no olhar um archote,

Expulsando da igreja os cristãos a chicote

E expulsando do altar o papa a pontapés!

A BARCA DE S. PEDRO

Na barca de S. Pedro ex-santo, hoje banqueiro,

São tantos os caixões com bulas da cruzada,

E tanto o oiro em barra, as joias, o dinheiro,

O navio é tão velho e a carga é tão pesada;

Os anéis, os cetins, as púrpuras, as rendas,

As mitras de oiro fino, os bentos, as imagens,

As pratas, os cristais, os vinhos, as of'rendas,

Os meninos do coro, os fâmulos, os pajens;

O maciço tropel de cônegos vermelhos,

De sacristas, bedéis, archeiros, missionários,

E o damasco, o veludo, os bronzes, os espelhos,

O sillabus, a cúria, as forcas, os rosários;

As pipas e os toneis com águas milagrosas,

Que ainda causam hoje o mais profundo assombro;

Dos velhos cardeais as cortesãs formosas,

E o cura Santa Cruz de bacamarte ao ombro;

Esta orgia pagã, esta riqueza imensa

Atulham de tal forma a barca ultramontana,

É tão desenfreado o vento da descrença,

E o mar é tão revolto, a carga é tão mundana;

Que a barca do senhor, outrora dirigida

Por doze galileus descalços, quase nus,

Ella que atravessava o grande mar da vida

Tendo só por farol os olhos de Jesus;

A barca que através do horror da tempestade,

Arvorando no mastro o pavilhão da Esp'rança,

Levava os corações de toda a cristandade

Ao grande porto ideal da Bem-aventurança;

Hoje ao peso cruel deste deboche hediondo

Essa barca da Egreja, esse colosso antigo

Soçobrará, o Deus, com pavoroso estrondo,

Indo dormir ao pé dos galeões de Vigo.

LADAINHA

s. Inácio

Bendito quem nos dá o pão de cada dia.

coro de santos

Bendita a Estupidez, bendita a Hipocrisia.

s. Inácio

Bendita seja a forca erguida sobre o mundo.

coro de santos

Bendito Carlos sete e D. Miguel segundo.

s. Inácio

Bendito seja o tigre e o lobo carniceiro.

coro de santos

Bendito seja El-Rei D. João terceiro.

s. Inácio

Benditas sejais vós, ovelhas de Maria.

coro de santos

E mais a vossa lã, e mais quem n'a tosquia.

s. Inácio

Benditos os chacais, benditas as toupeiras.

coro de santos

E a língua da verdade e as línguas das fogueiras.

s. Inácio

Benditos os febris venenos orientais.

coro de santos

E o Santo padre Bórgia e muitos Santos mais...

s. Inácio

Bendita a nossa Fé, bendita a nossa Egreja.

coro de santos

Bendito o nosso ventre! Amém. Bendito seja!

COMO SE FAZ UM MONSTRO

I

Ele era nesse tempo uma criança loira

Vivendo na abundância agreste da lavoira,

Ao vento, a chuva, ao sol, pastoreando os gados,

Deitando-se ao luar nas pedras dos eirados,

Atravessando à noite os solitários montes,

Dormindo a boa sesta ao pé das claras fontes,

Trepando aos pinheirais, às fragas, aos barrancos,

No rijo e negro pão cravando os dentes brancos,

Radioso como a aurora e bom como a alegria.

Quando no azul do céu cantava a cotovia,

Aos primeiros clarões vibrantes da alvorada

Transportava ao casebre o leite da manada,

Acordando, a assobiar e a rir pelos caminhos,

Os lebréus nos portais e as aves nos seus ninhos.

E à tarde quando o sol, extraordinário Rubens,

Na fantasmagoria esplêndida das nuvens,

Colorista febril, lança, desfaz, derrama

O topázio, o rubi, a prata, o oiro, a chama,

Ele ia então sozinho, alegre intemerato,

Conduzindo a beber ao tremulo regato,

A golpes de verdasca e gritos estridentes,

Num ruidoso tropel os grandes bois pacientes.

O seu olhar azul de limpidez virtuosa,

Onde brilhava a audácia heroica e valorosa

A candura infantil e a inteligência rara,

O timbre da sua voz imperiosa e clara,

A linha do seu corpo altivamente reta,

Tudo lhe dava o ar soberbo dum atleta

Em miniatura.

II

Um dia o pai, um bravo aldeão,

Chamou-o ao pé de si, e disse-lhe:

“João:

À força de trabalho e a força de canseiras

A moirejar no monte e a levar gado às feiras,

Consegui ajuntar ao canto do baú

Alguns pintos. Vocês são dois rapazes; tu,

Além de ser mais novo, és mais inteligente.

Vou botar-te ao latim; quero fazer-te agente.

Hás-de me dar ainda um grande pregador.

Hoje padre é melhor talvez que ser doutor.

Aquilo é grande vida; é vida regalada.

Olha, sabes que mais? manda ao diabo a enxada.

Aquilo é que é vidinha! aquilo é que é descanso!

Arrecada-se a côngrua, engrola-se o ripanço,

Arranja-se um sermão aí com quatro tretas,

Vai-se escorropichando o vinho das galhetas,

E a missa seis vinténs e doze os batizados.

Depois independente e sem nenhuns cuidados!

Olha, João, vê tu o nosso padre cura:

É, sem tirar nem pôr, uma cavalgadura.

Vi-o chegar aqui mais roto que os ciganos;

Pois tem feito um casão em meia dúzia de anos.

Isto é desenganar; padres sabem-na toda...

É o sermão, é a missa, é o enterro, é a boda,

É pinga da melhor, é tudo quando há!

Quando o abade morrer Hás-de vir tu p'ra cá.

Despacha-te o doutor nas cortes; quando não

Votamos contra ele, e foi-se-lhe a eleição.

Mas que é isso, rapaz? Nada de choradeira!

É tratar da merenda, e quinta ou sexta-feira

Toca pr'o seminário. Eu quero ir para a cova

Só depois de ti ouvir cantar a missa nova.”

III

Numa tarde de outono a sonolento trote

Um macho conduzia em cima do albardão,

Já coluna da igreja, o novo sacerdote,

O muitíssimo ilustre e digno padre João.

Ao entrarem na aldeia os dois irracionais,

Dos foguetes ao grande e jubiloso estrepito

Um velho recebeu nos braços paternais,

Em vez do alegre filho, um monstro já decrepito

Que acabava de vir das jaulas clericais.

Que transfiguram! que radical mudança!

Em lugar da inocente, angélica criança,

Voltava um chimpanzé estúpido e bisonho.

Com o ar de quem anda alucinadamente

Preso nas espirais diabólicas dum sonho.

Seu corpo juvenil, robusto e florescente

Vergava para o chão exausto de cansaço:

Os dogmas são de bronze, e a lã duma batina

Já vai pesando mais que as armaduras de aço.

A ignorância profunda, a estupidez suína

A luxúria de igreja, ardente, clandestina,

O remorso, o terror, o fanatismo inquieto,

Tudo isto perpassava em turbilhão confuso

Na atonia cruel daquele hediondo aspecto,

Na morna fixidez daquele olhar obtuso.

Metida nas prisões escuras de Loyola

A sua alma infantil, não tendo luz nem ar.

Foi com os rouxinóis, que dentro da gaiola

Perdem toda alegria, e morrem sem cantar.

IV

Como ninguém ignora, os sórdidos palhaços

Compram, roubam às mães as loiras criancinhas,

Torcem-lhes o pescoço, as mãos, os pés, os braços,

Transformam-lhes num junco elástico as espinhas,

E exibem-nas depois nos palcos das barracas

Dando saltos mortais e devorando facas

Ante o espanto imbecil da ingênua multidão;

E para lhes cobrir a lividez plangente

Costumam-lhes pintar carnavalescamente

Na face de alvaiade um rir de vermelhão.

Também o jesuitismo hipócrita-romano,

Palhaço clerical, anda pelos caminhos

A comprar, a furtar, assim como um cigano,

As crianças às mães, os rouxinóis aos ninhos.

Vão levá-las depois ao negro seminário,

Às terríveis galés, ao sacro matadoiro,

E escondem-nas da luz, assim como o usurário

Esconde também dela os seus punhados de oiro.

Dentro da estupidez e da superstição,

Casamata da fé, guardam-lhes a razão,

A análise, esse forte e venenoso fluido,

Que, andando em liberdade, ao mínimo descuido

Poderia estoirar com trágica explosão.

O que o palhaço faz ao corpo da criança

Fazem-lho à alma, até que dela reste enfim,

Em lugar do histrião que nas barracas dança,

O pobre missionário, o inútil manequim,

O histrião que nos prega a bem-aventurança

A murros do missal e a roncos de latim.

As almas infantis são brandas como a neve,

São pérolas de leite em urnas virginais.

Tudo quanto se grava e quanto ali se escreve

Cristaliza em seguida e não se apaga mais.

Desta forma consegue o astucioso clero

Transformar de repente uma criança loira

Num pássaro noturno estúpido e sincero.

É abrir-lhe na cabeça a golpes de tesoira

A marca industrial do fabricante — um zero!

CALEMBOUR

Ó Jesuítas, vós sois dum faro tão astuto,

Tendes tal corrupção e tal velhacaria,

Que é incrível até que o filho de Maria

Não seja inda velhaco e não seja corrupto,

Andando há tanto tempo em tão má companhia.

A ÁGUA DE LOURDES

Se ergueis uma capela à água milagrosa,

Esse elixir divino,

Então erguei também um templo à caparosa

E outro templo ao quinino.

Se a água faz milagre, o que eu vos não discuto,

E por isso a adorais,

Ajoelhemos então em face do bismuto

E doutras drogas mais.

Façamos da magnésia e clorofórmio e arnica

As hóstias do sacrário;

Transformemos o templo enfim numa botica

E Deus num boticário.

Que a vossa água opere imensas maravilhas

Eu não duvido nada:

É o Espírito Santo engarrafado em bilhas,

É o milagre à canada.

Desde que se espalhou pelo universo o eco

Do milagre feliz,

Tartufo nunca mais encheu o seu caneco

Em outro chafariz!

ANTONELLI

Uma loba emprenhou um dia de Tartufo,

E Antonelli nasceu deste consórcio bufo.

O seu lábio despreza; o seu olhar dardeja.

Cassagnac de Deus, guarda-costas da Egreja,

Redige as pastorais brutais de que se nutre

C'um tinteiro de treva e uma pena de abutre.

Bossuet-Ferrabraz e Falstaff-Isaías.

Bebe petróleo negro e gim nas sacristias.

Não há pomba mais tigre ou Santo mais demônio:

Fera, — como Caim! rato, — como Polônio!

Naquele olhar noturno, inquisidor, que assusta,

Há Nero a murmurar nas sombras com Locusta.

O cabeção que traz na batina de lila

Eriçam-no punhais: era dum cão de fila.

O tigre deu-lhe o amor e o bode a castidade,

Para um dia expulsar do mundo a Liberdade

Fez um látego atroz, que corta e que esfarrapa,

Atando uma serpente ao báculo de um papa.

Quando observo esse monstro, essa alimária brava,

Hercules que talhou dum hissope uma clava,

Ao ver-lhe os rins de bronze, e ao ver-lhe a ereta fronte,

Creio estar contemplando ao longe, no horizonte,

Entre o rubro esplendor duma manhã sonora,

Um búfalo de treva às cornadas na aurora!

O DINHEIRO DE S. PEDRO

De tal modo imitou o papa a singeleza

Do mártir do Calvário,

Que à força de gastar os bens com a pobreza

Tornou-se milionário.

Tu hoje podes ver, ó filho de Maria,

O teu vigário humilde

Conversando na bolsa em fundos da Turquia

Com o Barão Rotschild.

A cruz da redenção, que deu ao mundo a vida

Por te haver dado a morte.

Tem-na no seu bureau o padre santo erguida

Sobre uma caixa forte.

E toda essa riqueza imensa, acumulada

Por tantos financeiros,

O que é a economia, oh Deus! foi começada

Só com trinta dinheiros!

AO NÚNCIO MASELLA

O Padre Eterno está coberto do mazelas,

E tu, (teu nome o atesta, ó bonzo,) és uma delas.

Masella, escuta:

Deus, o Deus em que acredito,

Essa luz que alumina essa noite — o infinito,

Esse eflúvio de amor que em tudo anda disperso,

Espírito que, enchendo o abismo do universo.

Cabe com todo o seu vastíssimo esplendor

Num olhar de criança ou num cálix de flor,

Esse Deus imortal, único, bom, clemente,

O Deus de quem tu es o herege e eu sou o crente,

Esse Deus ó Masella, é um Deus plebeu e humilde,

Cuja firma não dá nos banqueiros Rotschild

Credito algum, um Deus descalço e proletário.

Que em vez de libras guarda em seu profundo erário

Montões de astros, um Deus do tal maneira vil,

Que não tem cortesãos, não tem lista civil,

Nem bispos, nem cardiais, nem sacristães, nem tropa,

Nem núncios para dar pelas cortes da Europa

Em doirados salões e esplêndidas estufas

Festins onde se serve o Evangelho com trufas,

A Bíblia com champanhe, e a alma de Jesus,

Bem picada, recheando os faisões e os perus!

Embaixador de quem? de Cristo? não; do papa.

Quem é o papa?

Um Deus inventado à socapa,

Um Deus para fazer o qual bastam apenas

Quatro coisas: — cardeais, papel, tinteiro e penas.

Deita-se numa saca uma lista qualquer.

Qualquer nome — Gregório, ou Bórgia, ou Lacenaire,

Ou Papavoine — e pronto! em dois minutos fica

Manipulado um Deus autêntico, obra rica,

Tonsurado, sagrado, infalível, divino...

Quer dizer, saiu Deus duma bolsa do quino!

É um Deus por concurso, um Deus feitos por tretas,

E em cuja divindade ideal há favas pretas!

Apesar disso é Deus. Vai pousar-lhe no seio

O Espírito Santo, esse pombo correio

Da Providência. É ele o redentor e o oraculo.

A humanidade vai adiante do seu báculo,

Soluçando, ululando, exausta, ensanguentada

Pavoroso tropel de sombras pela estrada

Do destino fatal. O pensamento humano

É simplesmente um cão sabujo e ultramontano,

Um cão vadio, um cão faminto, um cão impuro,

Que o papa recolheu de noite num monturo,

E a quem às vezes dá com parcimônia bíblica

A pitança dum Breve e o osso duma Encíclica.

Um papa é isto: — um juiz sem lei; omnipotente.

Czar das consciências. Pode irremissivelmente

Chamuscá-las em fogo, ou torrá-las em brasas,

Ou fazer-lhes nascer das costas um par de asas.

O globo é para ele a bola dum bilhar.

Domina os reis. O Trono é o lacaio do Altar.

Seus templos são prisões e seus dogmas algemas.

Cingem-lhe a fronte augusta e nobre os três diademas,

E na potente mão, invencível harpeu,

Tem as chaves do inferno... e a gazua do céu.

Masella, o teatro é velho, a receita é pequena,

E há mil anos que está a mesma farsa em cena.

Abaixo a farsa! Abaixo o pardieiro divino,

O céu, que já não tem nem sombras de inquilino.

Serafins, querubins, anjos, legião eterna

Dos eleitos, tudo isso andou, pôs-se na perna,

Deixando lá ficar, ó cáfila de ingratos!

O cadáver dum Deus roído pelos ratos.

Abaixo o inferno, aonde os demos, meus Irmãos,

Não têm fogo se quer para aquecer as mãos;

Porquê lá onde a cúria os rebeldes despenha

Há sobra do infiéis, mas há falta de lenha.

Já nem é forno; aquilo é adega sombria,

Onde o defluxo faz a corte à pneumonia,

E onde não há nariz precito que ande enxuto.

Cada heresiarca suja um lenço por minuto,

De modo que hoje o inferno (oxalá que mo evites,

Masella!) é de temer por causa das bronquites.

Abaixo o purgatório! Entre chama ex-faminta,

Que reclama com ânsia algumas mãos de tinta,

Gelam réprobos nus, réprobos em pelote,

Que precisam dum fogo, ó céus, ou dum capote!

Abaixo a farsa! abaixo o entremez da paixão,

Porque o Cristo é de gesso e a cruz de papelão.

Abaixo essa parodia infame em que agoniza

Num Gólgota de lona um clown sem camisa

Que, depois de expirar convulso, de repente

Salta abaixo da cruz funambulescamente,

E arranca às multidões assombradas e mudas

A esportula — que cai no saquitel do Judas.

Não! o mártir que fez com o seu olhar sublime

O luar do Perdão para a noite do Crime,

E que abriu com a luz da bem-aventurança

Neste cárcere — a vida, esta janela — a Esp'rança,

O semideus que está, com um farol de gloria

No topo da montanha escalvada da historia

Contemplando o infinito e iluminando a terra,

Essa alma que a flor da alma humana encerra,

Não é vossa, não é de qualquer confraria

Que dispõe duma adega escura, duma pia

E dum padre, não tem o domicilio em Roma,

Não é vinho nem pão que se beba ou se coma,

Merendando, em família. Ess'alma Universal,

Essa concentração divina do Ideal

É de quem sofre, é de quem geme, é de quem chora,

É de todos que vão pela existência fora

Tristes — santo, ou herói, ou escravo, ou proscrito,

Calcando o lodo e olhando os astros no Infinito.

Quando Cristo inclinou, morrendo, a fronte calma,

Foi a Egreja buscar-lhe o corpo e o mundo a alma.

A Egreja recolheu a cinza e nós a luz.

E, louca! julgou ser a esposa de Jesus,

Porque estreitava ao peito um cadáver gelado!

Dez séculos durou na treva esse noivado.

Dez séculos passou a fúnebre bacante

Num sepulcro a oscular as gangrenas do amante,

Unido a cada chaga imunda um beijo em flor,

Tentando reviver ao furioso calor

Desses beijos um corpo inanimado e frio.

Que tragédia dantesca esse himeneu sombrio!

Pobre Heloisa da morte, o teu casto Abeillard

Nem para ti abriu o azul do seu olhar,

Nem murmurou baixinho uma palavra só!

E o Deus tornou-se em lodo abjeto e o lodo em pó!

E na campa nupcial, no tálamo — sentina,

Da carcaça dum Deus fúnebre Messalina,

Putrefata expiraste ao pé da podridão.

É que um cadáver, seja ou dum Cristo ou dum cão.

Matéria morta, exala a mesma pestilência.

Só a alma é imortal; só essa pura essência,

Jamais se decompõe ou jamais se aniquila.

O corpo é simplesmente a alampada de argila;

A alma, eis o clarão. Por isso o Nazareno

Pertence ao mundo. Tu escolheste o veneno,

O cadáver, e nós o Espírito, a alvorada.

E foi com essa hóstia esplêndida e sagrada,

Com a alma de luz do Filho e Maria

Que o mundo celebrou a grande eucaristia,

Igreja!... O coração da vítima inocente

Comungamo-lo nós: diluiu-se etereamente,

Cheio de paz e amor, no coração humano.

Foi um sol que expirou. Onde tombou? No oceano.

Mas como, p'ra poder explorar sem canseira

Com o inferno — essa mina, a terra — essa melgueira,

O velho Padre-Santo, o Redentor-Tichborue,

Precisa dum Jesus sangrento que lhe adorne

O altar, e aos pés do altar necessita que esteja

Toda banhada em pranto a noiva eterna, a Egreja,

E como o noivo e a noiva ambos tinham morrido,

O Padre Santo, que é um padre divertido,

Mandou escriturar então por um cornaca

Uma Egreja a um bordel e um Cristo a uma barraca.

Fora esse Deus! Abaixo esse Deus salafrário,

Deus com ramo de loiro à porta do Calvário,

Deus que marcha ao suplicio, à epopeia da Dor

Com Cireneu na frente a rufar num tambor,

Deus de quem Harpagão é caixeiro e Tartufo

Guarda livros, um Deus palhaço, um Cristo bufo,

Um mártir de aluguel, ébrio, que se apregoa

Com guizos a tinir nos espinhos da c'roa,

Um Deus a quem Mandrin passou folha corrida,

Um Deus que fez da morte o seu modo de vida,

Um Deus que representa a farsa da Paixão

Pintado, ensanguentado a vinho e a vermelhão,

Um Deus que sobe ao céu, acrobata farnésio,

Em aeróstato, a vai no banho dum trapézio

A fazer o sinal da cruz e a prancha com limpeza

Idêntica, arrojando à multidão surpresa

Bênçãos angelicais variadas e embrulhadas

Em prospectos, e enfim descendo às gargalhadas,

Para ir repartir em qualquer sacristia

Os lucros da função por toda a companhia!

Que regabofe! O Cristo, um magro ator de fama,

Estropeado galã senil depois do drama,

Lava o gesso e o zarcão da tramoia sangrenta

Com a esponja do fel na pia da água benta.

A Magdalena, vesga e sórdida rameira,

Guarda os seios de estopa, o prato, a cabeleira,

Limpa a maceração do olhar, que causa asco,

Feita a rolha queimada e inútil dalgum frasco

De mercúrio ou de absinto, e, como uma alcateia,

Atira-se esfaimada ao bacalhau da ceia.

O bom do Cireneu, a transpirar, pragueja;

Manda aos quintos a cruz e manda ao diabo a igreja;

Despe a farpela, e bebe a rir alegremente,

Dum trago só, canada e meia de aguardente.

Pilatos o pançudo e calvo safardana

Ronca, dormindo. A vil soldadesca romana

Tira as barbas, e põe muitíssimo pacata

Num baú — os morriões e espadagões de lata.

O bom e o mau ladrão jogam a bisca. O anjo

Que partira o sepulcro, um robusto marmanjo,

Desaparafusando as asas de oiro e o nimbo,

Pede ao velho Caifás lume para o cachimbo

E grave e silencioso, a um canto o tesoureiro

— Judas — reparte, empilha em montes o dinheiro

Da recita, tirando o quinhão do empresário

— O Papa — a quem pertence o Teatro do Calvário.

E dividida a prosa e ruminada a orgia,

Ao sagrado e doirado alvorecer do dia,

Lá vai esse roldão de sevandijas podres,

Cambaleante tropel de ventres feitos odres.

Indo dormir talvez, oh pandega, oh delicia!

Jesus co'a Madalena — à esquadra de polícia.

Vamos! basta de farsa, e basta de farsantes!

Mil bombas a vapor jorrem desinfetantes

Nesse velho bordel da Igreja — o vaticano,

Cólera! faz-te mar, Justiça! faz-te oceano,

E inundai, submergi o Versalhes maldito

De Jeová — Rei-sol macróbio do infinito.

Vamos, fogo ao covil! E enquanto os salteadores,

Núncios, bispos, cardeais, cônegos, monsenhores,

— Truculenta manada obesa de hipopótamos —

Virgem-mãe dos heróis, ó Liberdade! enxota-mos,

E faze-mos transpor, a grunhir, sem demoras

As fronteiras do globo em vinte e quatro horas!

LADAINHA MODERNA

S. Leão 13 — dai-nos bons bispados,

S. Leão 13 — que nos possam dar

S. Leão 13 — vinte mil cruzados.

S. Leão 13 — fora o pé de altar.

Santo Antonelli — dai-nos confessadas

Santo Antonelli — novas, já se vê;

Santo Antonelli — é melhor casadas,

Santo Antonelli — bem sabeis por quê...

Ó Santo Bórgia — há tanta gente avara!...

Ó Santo Bórgia — há tantos imbecis!...

Ó Santo Bórgia — como se prepara,

Ó Santo Bórgia — o tal xarope... diz!...

Santa de Lourdes — sois incomparável!

Santa de Lourdes — muita água deita

Santa de Lourdes — vossa inesgotável

Santa de Lourdes — fonte... de receita!

Ó Santa madre — míseros, mesquinhos,

Ó Santa madre — vemo-nos atônitos,

Ó Santa madre — p'ra educar sobrinhos

Ó Santa madre que tem pais incógnitos.

Ó Santa igreja mete-nos, no buxo

Ó Santa igreja — p'ra dar tom à fibra,

Ó Santa igreja — alguns te-déuns de luxo

Ó Santa igreja — e muita missa a libra

Santo Cinismo — chapa-nos nas faces

Santo Cinismo — um tal estanho enfim,

Santo Cinismo — que tu mesmo embaces

Santo Cinismo — ao ver cinismo assim.

Santa Intrujice — entrega as almas toscas

Santa Intrujice — às nossas artimanhas...

Santa Intrujice — Deus destina as moscas

Santa Intrujice — ao papo das aranhas.

S. Regabofe — dai-nos bambochatas

S. Regabofe — até rolar no chão...

S. Regabofe — pipa e sermonatas!

S. Regabofe — porco e cantochão!

Santa Barriga — única santa nossa,

Santa Barriga — grande santa és!

Santa Barriga — alarga, estende, engrossa

Santa Barriga — e vai da boca aos pés

Santa Preguiça — Santa que consolas,

Santa Preguiça — não há nada igual

Santa Preguiça — a um bom colchão de molas

Santa Preguiça — e mais etcet'ra e tal!...

S. Venha-a-nós — realiza este desejo,

S. Venha-a-nós — ingênuo e timorato:

S. Venha-a-nós — faz do universo um queijo

S. Venha-a-nós — e faz de nós um rato!

O MELRO

O melro, eu conheci-o:

Era negro, vibrante, luzidio,

Madrugador, jovial;

Logo de manhã cedo

Começava a soltar dentre o arvoredo

Verdadeiras risadas de cristal.

E assim que o padre cura abria a porta

Que dá para o passal,

Repicando umas finas ironias,

O melro dentre a horta

Dizia-lhe: “Bons dias!”

E o velho padre cura

Não gostava daquelas cortesias.

O cura era um velhote conservado,

Malicioso, alegre, prazenteiro;

Não tinha pombas brancas no telhado,

Nem rosas no canteiro;

Andava às lebres pelo monte, a pé,

Livre de reumatismos,

Graças a Deus, e graças a Noé.

O melro desprezava os exorcismos

Que o padre lhe dizia:

Cantava, assobiava alegremente,

Até que ultimamente

O velho disse um dia:

“Nada, já não tem jeito! este ladrão

Dá cabo dos trigais!

Qual seria a razão

Por que Deus fez os melros e os pardais?!”

E o melro no entretanto,

Honesto como um santo,

Mal vinha no oriente

A madrugada clara

Já ele andava jovial, inquieto,

Comendo alegremente, honradamente,

Todos os parasitas da seara

Desde a formiga ao mais pequeno inseto.

E apesar disto o rude proletário,

O bom trabalhador,

Nunca exigiu aumento de salário.

Que grande tolo o padre confessor!

Foi para a eira o trigo;

E armando uns espantalhos

Disse o abade consigo:

“Acabaram-se as penas e os trabalhos.”

Mas logo do manhã, maldito espanto!

O abade, inda na cama,

Ouviu do melro o costumado canto,

Ficou ardendo em chama;

Pega na caçadeira,

Levanta-se dum salto,

E vê o melro a assobiar na eira

Em cima do seu velho chapéu alto!

Chegou a coisa a termo

Que o bom do padre cura andava enfermo,

Não falava nem ria,

Minado por tão íntimo desgosto;

E o vermelho oleoso do seu rosto

Tornava-se amarelo dia a dia.

E foi tal a paixão, a desventura,

(Muito embora o leitor não me acredite)

Que o bom do padre cura

Perdera... o apetite!

*

*  *

Andando no quintal um certo dia

Lendo em voz alta o Velho Testamento

Enxergou por acaso (que alegria!

Que ditoso momento!)

Um ninho com seis melros escondido

Entre uma carvalheira.

E ao vê-los exclamou enfurecido:

“A mãe comeu o fruto proibido;

Esse fruto era a minha sementeira:

Era o pão, e era o milho;

Transmitiu-se o pecado.

E, se a mãe não pagou, que pague o filho,

É doutrina da Egreja. Estou vingado!”

E engaiolando os pobres passaritos

Soltava exclamações:

“É uma praga. Malditos!

Dão-me cabo de tudo estes ladrões!

Raios os partam! andai lá que enfim...”

E deixando a gaiola pendurada

Continuou a ler o seu latim

Fungando uma pitada.

*

*  *

Vinha tombando a noite silenciosa;

E caia por sobre a natureza

Uma serena paz religiosa,

Uma bela tristeza

Harmônica, viril, indefinida.

A luz crepuscular

Infiltra-nos na alma dolorida

Um misticismo heroico e salutar.

As árvores, de luz inda doiradas,

Sobre os montes longínquos, solitários,

Tinham tomado as formas rendilhadas

Das plantas dos herbários.

Recolhiam-se a casa os lavradores.

Dormiam virginais as coisas mansas:

Os rebanhos e as flores,

As aves e as crianças.

Ia subindo a escada o velho abade;

A sua negra, atlética figura

Destacava na frouxa claridade,

Como uma nódoa escura.

E introduzindo a chave no portal

Murmurou entre dentes:

“Tal e qual... tal e qual!...

Guisados com arroz são excelentes.”

*

*  *

Nasceu a lua. As folhas dos arbustos

Tinham o brilho meigo, aveludado

Do sorriso dos mártires, dos justos.

Um eflúvio dormente e perfumado

Embebedava as seivas luxuriantes.

Todas as forças vivas da matéria

Murmuravam diálogos gigantes

Pela amplidão etérea.

São precisos silêncios virginais,

Disposições simpáticas, nervosas,

Para ouvir estas falas silenciosas

Dos mudos vegetais.

As orvalhadas, frescas espessuras

Pressentiam-se quase a germinar.

Desmaiavam-se as cândidas verduras

Nos Magnetismos brancos do luar.

.....................................................

*

*  *

E nisto o melro foi direito ao ninho.

Para o agasalhar andou buscando

Umas penugens doces como arminho,

Um feltrozito acetinado e brando.

Chegou lá, e viu tudo.

Partiu como uma frecha; e louco e mudo

Correu por todo o matagal; em vão!

Mas eis que solta de repente um grito

Indo encontrar os filhos na prisão.

“Quem vos meteu aqui?!” O mais velhito

Todo tremente, murmurou então:

“Foi aquele homem negro. — Quando veio

Chamei, chamei... Andavas tu na horta...

Ai que susto, que susto! Ele é tão feio!...

Tive-lhe tanto medo!... Abre esta porta,

E esconde-nos debaixo da tua asa!

Olha, já vão florindo as açucenas;

Vamos a construir a nossa casa

Num bonito lugar...

Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas

Para voar, voar!”

E o melro alucinado

Clamou:

“Senhor! Senhor!

É por ventura crime ou é pecado

Que eu tenha muito amor

A estes inocentes?!

Ó natureza, ó Deus, como consentes

Que me roubem assim os meus filhinhos,

Os filhos que eu criei!

Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos,

Quanta noite perdida

Nem eu sei...

E tudo, tudo em vão!

Filhos da minha vida!

Filhos do coração!!...

Não bastaria a natureza inteira,

Não bastaria o céu para voardes,

E prendem-vos assim desta maneira!...

Covardes!

A luz, a luz, o movimento insano

Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa...

Encarcerar a asa

É encarcerar o pensamento humano.

A culpa tive-a eu! quase à noitinha

Parti, deixei-os sós ...

A culpa tive-a eu, a culpa é minha,

De mais ninguém!... Que atroz!

E eu devia sabê-lo!

Eu tinha obrigação de adivinhar...

Remorso eterno! eterno pesadelo!...

..........................................................

Falta-me a luz e o ar!... Oh, quem me dera

Ser abutre ou ser fera

Para partir o cárcere maldito!...

E como a noite é límpida e formosa!

Nem um ai, nem um grito...

Que noite triste! oh noite silenciosa!...”

*

*  *

E a natureza fresca, omnipotente,

Sorria castamente

Com o sorriso alegre dos heróis.

Nas sebes orvalhadas,

Entre folhas luzentes como espadas,

Cantavam rouxinóis.

Os vegetais felizes

Mergulhavam as sôfregas raízes

A procurar na terra as seivas boas,

Com a avidez e as raivas tenebrosas

Das pequeninas feras vigorosas

Sugando à noite os peitos das leoas.

A lua triste, a lua merencória,

Desdêmona marmórea,

Rolava pelo azul da imensidade,

Imersa numa luz serena e fria,

Branca como a harmonia,

Pura como a verdade.

E entre a luz do luar e os sons e as flores,

Na atonia cruel das grandes dores,

O melro solitário

Jazia inerte, exânime, sereno,

Bem como outrora a mãe do Nazareno

Na noite do calvário!...

Segundo o seu costume habitual,

Logo de madrugada

O padre-cura foi para o quintal,

Levando a bíblia e sobraçando a enxada.

Antes de dizer missa,

O velho abade inevitavelmente

Tratava da hortaliça

E rezava a Deus Padre Onipotente

Vários trechos latinos,

Salvando desta forma juntamente

As ervilhas, as almas e os pepinos.

E já de longe ia bradando:

— “Olé!

Dormiram bem?... Estimo...

Eu lhes darei o mimo,

Canalha vil, grandíssima ralé!

Então vocês, seus almas do diabo,

Julgavam que isto que era só dar cabo,

Da horta e do pomar,

E bico alegre e estomago contente,

E o camelo do cura que se aguente,

Que engrole o seu latim e vá bugiar!...

Grandes larápios!... Era o que faltava.

Vocês irem ao milho,

E a mim mandar-me à fava!

Pois muito bem, agora que vos pilho

Eu vos ensinarei, meus safardanas!

Vocês são mariolões, são ratazanas,

Têm bico é certo, mas não têm tonsura...

E nas manhas um melro nunca chega

Às manhas naturais dum padre-cura.

O melhor vinho que encontrar na adega

É para hoje, olé!... Que bambochata!

Que petisqueira! Melros com chouriço!...

E então a Fortunata

Que tem um dedo e um jeito para isso!...

Hei-de comer-vos todos um a um,

Lambendo os beiços, com tal gana enfim

Que comendo-vos todos, mesmo assim

Eu fico ainda quase que em jejum!

E depois de vos ter dentro da pança,

Depois de vos jantar,

Vocês verão como o velhote dança,

Como ele é melro e sabe assobiar!...”

Mas nisto o padre cura titubeante,

Quase desfalecendo,

Atônito de horror, parou diante

Deste drama estupendo:

O melro, ao ver aproximar o abade,

Despertou da atonia,

Lançando-se furioso contra a grade

Do cárcere. Torcia,

Para os partir os ferros da prisão,

Crispando as unhas convulsivamente

Com a fúria dum leão,

Batalha inútil, desespero ardente!

Quebrou as garras, depenou as asas

E alucinado, exangue,

Os olhos como brasas,

Herói febril, a gotejar em sangue,

Partiu num voo arrebatado e louco.

Trazendo dentro em pouco

Preso no bico um ramo de veneno,

E belo e grande e trágico e sereno

Disse:

“Meus filhos, a existência é boa

Só quando é livre. A liberdade é a lei.

Prende-se a asa, mas a alma voa...

Ó filhos, voemos pelo azul!... Comei! —”

E mais sublime do que Cristo quando

Morreu na cruz, maior do que Catão,

Matou os quatros filhos, trespassando

Quatro vezes o próprio coração!

Soltou, fitando o abade, uma pungente

Gargalhada de lágrimas, de dor,

E partiu pelo espaço heroicamente,

Indo cair, já morto, de repente

Num carcavão com silveirais em flor.

E o velho abade, lívido de espanto,

Exclamou afinal:

“Tudo que existe é imaculado e é santo!

Há em toda a miséria o mesmo pranto,

E em todo o coração há um grito igual.

Deus semeou de almas o universo todo.

Tudo o que vive ri e canta e chora...

Tudo foi feito com o mesmo lodo,

Purificado com a mesma aurora.

Ó mistério sagrado da existência,

Só hoje te adivinho,

Ao ver que a alma tom a mesma essência

Pela dor, pelo amor, pela inocência,

Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!

Só hoje sei que em toda a criatura.

Desde a mais bela até à mais impura,

Ou numa pomba ou numa fera brava,

Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!...

..............................................................

..............................................................

Ah, Deus é bem maior do que eu julgava!...”

E quedou silencioso. O velho mundo,

Das suas crenças antigas, num momento,

Viu-o sumir exausto, moribundo

Nos abismos sem fundo

Do tenebroso mar do Pensamento.

E chorou e chorou... A Egreja, a Crença.

Rude montanha pavorosa, escura,

Que enchia o globo com a sombra imensa

Dos seus setenta séculos de altura;

O Himalaia de dogmas triunfantes,

Mais eternos que o bronze e que o granito,

Onde aos profetas Deus falava dantes

Entre raios e nuvens trovejantes

Lá dos confins sidéreos do infinito;

Esse colosso enorme, em dois instantes

Viu-o tremer, fender-se e desabar

Numa ruina espantosa,

Só de tocar-lhe a asa vaporosa

Duma avezinha tremula, a expirar!...

........................................................

........................................................

E, arremessando a bíblia, o velho abade

Murmurou:

“Há mais fé e há mais verdade

Há mais Deus com certeza

Nos cardos secos dum rochedo nu

Que nessa bíblia antiga... Ó Natureza,

A única bíblia verdadeira és tu!...”

Nota

O fato em que se baseia este poemeto, conquanto pouco conhecido, é absolutamente verdadeiro.

Os melros e algumas outras aves, como os pintassilgos e os rouxinóis, quando lhes encarceram os filhos, envenenam-nos. Muitas vezes, (sarcasmo trágico, crueldade sublime!) deixando-os vivos, arrancam-lhes a língua!

Ora nem todos os melros, pintassilgos e rouxinóis assassinam os filhos, quando lhos prendem. Só o fazem os mais extraordinários, os mais heroicos. O que nos demonstra que a ação é livre e responsável, e não um simples produto duma fatalidade orgânica.

É pena que Michelet ignorasse este fato. Que páginas divinas que ele não teria escrito! L'Oiseau ficou incompleto.

CIRCULAR

(Fragmento)

Deus & Filho. Bazar da fé. Venda forçada.

Pela barca de Pedro, a Judas consignada,

Chega um rico sortido em modas da estação.

Ver para crer! Surpresa! Atenção, ocasião

Única! aproveitai, comprai! Pechincha certa!

Ao bazar do Calvário! Ao Nazareno! Alerta,

Cristãos! É o desfazer da feira. Último dia!

Toda a casta de objeto ou de quinquilharia

Que esteja em relação com negócios de igreja.

Velas especiais para quando troveja,

Aplacando de pronto a cólera divina.

Sem cheiro e sem mistura alguma de estearina.

Santa Barbara, a quem a fé cristã se roja,

Quando atroa, não gasta as velas doutra loja,

Nem outras recomenda o concilio de Trento.

Em pacotes de seis. Por junto abatimento.

Água de Lourdes, fresca. Em pipas, ao quartilho

E em garrafa. Exigir a marca — Deus & Filho —

Na etiqueta, e na rolha, a fogo — Providência —

Genuína só a há à venda nesta agência.

Dez anos de sucesso e mil milhões de curas

Eficaz contra a caspa e contra as mordeduras

De cobra cascavel ou cão danado ou pulga

Ou percevejo. Faz, Tartufo assim o julga,

Nascer ao mesmo tempo o apetite e o cabelo,

Boa no hemorroidal e útil no sarampelo.

Reumatismos, terçãs e outras moléstias varias

Cura-as num pronto. Expulsa as bichas solitárias

E expulsa o Demo. Purga: os ventres desentupe-os.

Sem cólicas, com três ou quatro semicúpios.

Em cegos de nascença e tísicos de peito

Isso então é instantâneo, é certo o seu efeito.

Uma perna amputada unta-se, e em dois instantes

Torna a crescer e fica inda maior que dantes.

Em leicenços não falha. Em dor de dentes, isso

É bebê-la e ficar sem dor. Não há feitiço

Que resista. Uma vez uma morta tomou-a,

Espirrou e ficou inteiramente boa!

Prevenimos no entanto o público defunto

Que casos destes há uns trinta e dois por junto

Apenas. Endireita a espinhela caída,

Extrai calos, reduz fleimões, prolonga a vida,

Marca a roupa, e sem dano algum e sem fedor

Torna o cabelo e a barba à primitiva cor.

Relíquias. Sortimento a capricho. Em ossadas

Dos apóstolos, hoje as mais acreditadas

No mercado, chegou variedade infinita,

Cabeças de S. João, só vendo se acredita,

Onze mil! onze mil, e damo-las sem ganho!

Os preços é segundo o feitio e o tamanho.

(E convém declarar e advertir desde já

Que ossos de imitação não se encontra por cá.

Atestados legais e autênticos o provam.)

Há um monumental e rico S. Cristóvão,

Oito metros de largo e uns oitenta de altura,

Que, como não tem tido até hoje procura,

Decidimos vender, para liquidação,

A retalho. É de graça: o quilo a meio tostão.

O público achará sempre neste bazar

De qualquer santo, ainda o mais particular,

Um esqueleto ou dois continuamente à venda.

Desejando porção, fazem-se de encomenda.

Desconto extraordinário em transações por grosso.

Garante-se o fabrico e a solidez do osso

Que empregamos. A todo o esqueleto montado

Nesta casa vai junto, e em forma, um atestado

Escrito sobre a pel' e pela própria mão

Do próprio santo, a quem a carcaça em questão

Pertencera, e que diz: — Eu juro à fé de Deus

Que estes ossos, tal qual estão, eram os meus. —

Aviso: é bom comprar peças sobresselentes:

Pelo menos um sacro, um nariz e alguns dentes.

Encontram-se também avulso qualquer delas

Cóccix, peroneus, omoplatas, costelas.

Tíbias, tarsos, enfim tudo que uma alma pia

Possa achar num manual cristão de osteologia.

Em dedos do Destino há um soberbo exemplar:

É o mesmo que escreveu outrora a Baltasar

No salão do festim a trágica sentença,

Dá-se por dez tostões essa caneta imensa

Do Destino há também o olho verdadeiro,

Em vidro ou em cristal, por dúzia ou por milheiro,

Negros, verdes, azuis, obra muito barata,

Engastado em oiro, em níquel ou em lata.

E hoje a grande moda, e são dum belo efeito

Para botões de punho e alfinetes de peito.

Há enfim mais de dez milhões de toneladas,

De crânios sem valor, e de antigas ossadas,

Que o caruncho roeu e converteu em cisco,

Como são vinte mil braços de S. Francisco,

Et cet'ra... Esse calcário, (inútil nesta casa,)

Vende-se para esterco a três vinténs a rasa.

Vera-cruz. Qualidade esplêndida, extrafina

Autêntica; a melhor que vem da Palestina.

Em pó, em serradura, em lascas, aos bocados,

E posta em obra — desde a cama de casados,

Desde o piano d'Erard ou da credencia até

Ao báculo do bispo e ao steeck do crevé.

Trabalhada a primor em mil objetos vários:

Em facas de cortar papel ou em rosários,

Em imagens do papa ou em boquilhas, em

Cabides, castiçais, presepes de Bethlem,

Bandejas para chá, agnus-Dei, crucifixos,

Lavatórios, etc. Ao rabais. Preços fixos.

Nos nossos armazéns com serras a vapor

Vendemo-la igualmente, a cruz do Redentor,

Em ripas; em pranchões e em traves colossais

Para marcenaria e construções navais.

..................................................................

..................................................................

Como hoje o negócio está muito bicudo,

Trespassa-se o armazém do Calvário com tudo

Que tem dentro. Escrever para o nosso bazar,

Largo dos Intrujões, 5, 1.º andar.

A BÊNÇÃO DA LOCOMOTIVA

A obra está completa. A máquina flameja,

Desenrolando o fumo em ondas pelo ar.

Mas antes de partir mandem chamar a Egreja

Que é preciso que um bispo a venha batizar.

Como ela é com certeza o fruto de Cain,

A filha da razão, da independência humana,

Botem-lhe na fornalha uns trechos em latim,

E convertam-na à fé Católica Romana.

Devem nela existir diabólicos pecados,

Porque é feita de cobre e ferro; e estes metais

Saem da natureza, ímpios, excomungados,

Como saímos nós dos ventres maternais!

Vamos, esconjurai-lhe o demo que ela encerra,

Extrai a heresia ao aço lampejante!

Ella acaba de vir das forjas de Inglaterra,

E há-de ser com certeza um pouco protestante.

Para que o monstro corra em fervido galope,

Como um sonho febril, num doido turbilhão,

Além do maquinista e necessário o hissope,

E muita teologia... além dalgum carvão.

Atirem-lhe uma hóstia à boca famulenta,

Preguem-lhe alguns sermões, ensinem-na a rezar,

E lancem na caldeira um jorro d'água benta,

Que com água do céu talvez não possa andar.

A HIDRA

(Vendo passar seminaristas)

Olhai, vede-os passar em legiões escuras,

Intonsos, apesar de todas as tonsuras,

Com um ar imbecil, caliginoso, estranho,

Marcados a tesoira assim como um rebanho,

E envoltos em cruéis balandraus de entremez,

— As lobas, sob as quais há lobos muita vez!...

Ó galuchos da Fé, recrutas do Divino,

Que um chocalho de bronze hiperbólico — um sino —

Faz erguer, faz dormir, faz deitar, faz andar,

Eu não sinto por vós, marionetes do altar,

Nem ódio nem rancor. Sois vítimas. Loyola

Dobra-vos a cerviz com a canga da estola,

E jungindo-vos, bois noturnos, ao arado,

Rasga convosco o negro e fúnebre valado

Aonde o vosso Deus semeia para a infância

A flor da estupidez e o trigo da ignorância.

A Egreja, a cortesã sensual de ventre obeso,

Ontem mulher de Cristo e hoje mulher de Creso,

Para a rapina odiosa e vil de que se nutre

Mochos, deu-vos a calva ortodoxa do abutre!

Matilha de Leão XIII a vossa preza é o mundo,

Tartufo, bode obsceno e teólogo profundo,

Ensina-vos, conforme o ritual mais perfeito,

A cruzar, como S. Francisco, as mãos no peito,

Sob a sotaina arqueando a gravidez das panças,

A impor jejuns, benzer caixões salgar crianças,

A grunhir, a ladrar sermões, missas cantadas,

E a escriturar o céu por partidas dobradas.

Não vos odeio não, pálidos salafrários;

Vós sois unicamente os comparsas mortuários

Do papa, esse Barnum que assombra a multidão,

Com o Espírito Santo a vir comer-lhe a mão

Satanás a frigir (sarrabulhada trágica!)

Heresiarcas de estopa em caldeirão de mágica,

E Jeová, um urso estúpido e cruel

A lamber-lhe a sandália, a babujar-lhe o anel,

E a ameaçar furibundo este mundo precito

A rufos de trovões no tambor do infinito.

A Egreja é uma serpente escura, bicho imundo,

Gigantesco reptil que dá a volta ao mundo,

E em cujas espirais ébrias de raiva insana

Um Laocoonte imortal — a consciência humana;

Há século se estorce em convulsão atroz.

Os elos desse monstro implacável sois vós,

Sacristas. A cabeça é o papa.

Ora as serpentes

Têm a força na cauda e o veneno nos dentes.

A VALA COMUM

I

Vala comum — tasca nojenta,

Mesa redonda sepulcral,

Aonde a toalha crapulenta

É um lençol roto do hospital,

E aonde as larvas proletárias

Devoram — lúgubres festins! —

Crânios de heróis, ventres de parias,

Carcaças podres de arlequins,

Ao contemplar-te, ó libertina,

Um nojo imenso me acomete:

Tens a avidez de Messalina

Na boca negra de MacBeth!

Na treva aziaga o crime o os vícios,

Para o menu do teu jantar,

Dão-te as crianças dos hospícios

E as barregãs do lupanar.

Em teu estomago de hiena

Vão-se abismar, monstro cruel,

Rios de sangue com gangrena

E ondas de lágrima com fel.

Cloaca pútrida e funérea,

Feira da ladra hedionda e vil,

És o saguão onde a miséria

Despeja à noite o seu barril.

Trituras, lobrega sarjeta,

Sem que o horror te engasgue e abafe

Os seios virgens de Julieta

E a pança obscena de Faltstaff.

Cinismo atroz que a alma oprime,

Fétida e fúnebre impudência!

A boca esquálida do crime

Posta na boca da inocência!

O abutre e a pomba, o cardo e a anêmona

Na mesma leiva apodrecida:

Tropman chegando-se a Desdêmona,

E Papavoine a Margarida!

Virtude, amor, crime, deboche

Promiscuamente a fermentar!

Mimi Pinson e Rigolboche!

Cain e Abel! estrume e luar!

Oh, bulimia tenebrosa!

Monstruosidade apocalíptica

Tudo te serve: ou cancro ou rosa,

Ou flor doirada ou flor sifilítica.

Anjos que vem do paraíso,

Candura etérea e perfumada,

Feitos dum beijo e dum sorriso,

Nalgum jardim, de madrugada.

Vão confundir-se nessa goela,

Nessa pestifera anarquia

Com quantas lepras uma viela

Possa escarrar numa enxovia!

As guilhotinas homicidas

Pelo carrasco, o fiel criado,

Mandam-te o lunch às escondidas

No seu panier ensanguentado,

E o cadafalso, um salteador,

Na noite lívida estrangula

Feras, que arroja no estertor

Aos antros podres da tua gula.

Nada que te encha ou te sufoque.

Monstro, absorver é o teu destino.

Depois da ceia de Moloch,

Ruges co'a fome de Hugolino

Sempre a comer, monstro insensato,

E a boca sempre escancarada!

O esquife, harpia, eis o teu prato!

E o teu talher — a pá e a enxada!

Vala comum, despenhadeiro

De lírios brancos e de sapos,

Furna onde o Nada, esse trapeiro,

Faz o armazém dos seus farrapos.

Quantos heróis — oh raiva, oh ódio!

Teu lobo amargo apodreceu

Desde Aristogiton e Harmódio

Até Camões e Galileu!

Deus que te fez sempre esfaimada,

Deu-te também, pança gigante,

Por cozinheiro Torquemada,

E Bonaparte por marchante.

Atila e Nero — o tigre e o lobo,

Noventa e três, Saint Barthelemy,

Eis hecatombes para o globo

Que são banquetes para ti.

Quando famélica te nutres

Dum Warterloo, grandiosa prosa,

Sustentas todos os abutres

Só co'as migalhas da tua mesa!

Para o teu último festim,

Gargântua sórdido e voraz,

Foi aos açougues de Berlim

A Morte a encher o seu cabaz.

Es magro e fúnebre molosso

Há milhões de anos sempre a uivar:

Ó Guerra, traz-me o meu almoço!

Ó Peste, traz-me o meu jantar!

Servo, Felá, Moujik, Escravo,

Plebe sem pão, mendigos nus,

Bocas que têm ainda o travo

Do fel da esponja de Jesus;

Mártires, vítimas, proscritos,

Legião de heróis resplandecente,

Que ensanguentados e malditos

Revoluteiam febrilmente,

Raios no olhar, grilhões nos pulsos,

Ao céu em brasa a fronte erguida,

Nos sete círculos convulsos,

Do inferno trágico da Vida;

Todo esse exército ululante

Quo em rouco e pávido tropel

Vem pela história humana adiante,

Desde Cain até Rossel;

Tudo que estoira de miséria,

Tudo o que ruge na opressão,

Desde o grilheta da Sibéria

Até ao paria do Hindustão;

Todo esse bárbaro massacre,

Da guerra, enorme Leviatã,

Zama, Farsália, S. João d'Acre,

Jena, Austerlitz, Sedan;

Todo esse vomito de horrores

E do catástrofes sombrias,

Profundo atlântico de dores,

Negro Himalaia de agonias,

Todo esse lodo Deus impele-o

Ao teu estomago sem dó:

És a barriga de Vitellio,

Cheia das pústulas de Jó!...

II

E entre esse tábidos fermentos,

Entre esses horror de coisa más,

Fossa à procura de alimentos,

Um porco imundo — Satanás.

Essa latrina de Pandora,

Pensando bem, é a final

A escarradeira onde expectora

Jeová a bílis imortal.

Como ele é velho, com o frio

Tosse; o Prudhomme diz-lhe então:

— Deus, aqui tens este bacio...

Não vás cuspir no meu salão.

E às vezes do alto do infinito,

Talvez depois dum mau jantar,

O Padre Eterno faz cabrito

E enche o bacio a transbordar.

E o pote enorme onde cuspinha

O truculento Manitu,

Sem ninguém ver, logo à noitinha

Vai despejá-lo Belzebu.

Vai despejá-lo, ó crueldade!

Lá nessas tórridas galés,

Onde Deus assa a humanidade

No fogo — a que ele aquece os pés!

Porque, ó eternos deserdados

Da raça impura de Cain,

Morrendo sois encaixotados

Sem água benta e sem latim.

Se algum vos dão é já com ranço,

É já latim para hospitais,

Feito com cisco de ripanço

E as varreduras dos missais.

A igreja dá, barata feira!

Ao vosso último estertor

Óleos de azeite de purgueira

E hóstias de trapos com bolor.

Por isso a vala é um alçapão

De donde rui a todo instante

Um tremedal de podridão

Num mar de enxofre flamejante.

Castigo bárbaro e nefando!

Em monstruosos caldeirões

Ondas de pez tonitruando,

Roucos, uivando, aos borbotões,

E dentro vós, pobres cativos,

Em sangue, em chagas, todos nus,

A morrer sempre e sempre vivos,

Sempre a coser e sempre crus!

Em lagos rútilos de estanho,

Bramindo pragas em latim,

Milhões de hereges tomam banho...

Olhai que espiga um banho assim!...

Estes frígidos em certans,

Dentro do azeite que extravasa.

Outros perneando, como rãs,

Na empalação dum raio em brasa!

Uns são torrados sobre grelhas.

E os diabos vem continuamente

Naquelas nádegas vermelhas

Cravar com fúria o seu tridente!

Muitos estoira-lhes a pança

Entre os coléricos anéis

De vinte cilhas, que lembrança!

Feitas de cobras cascavéis!

E em torno aos fulgidos braseiros

Onde um bom Deus, poderoso e justo

Rebenta as almas aos milheiros,

Como as castanhas num magusto,

Pincham selváticos fandangos

Satãs frenéticos e maus,

Rabudos como orangotangos,

Cornudos como Menelaus!

E é por não dar uns seis ou sete

Tostões ao odre de um abade

Que a Providência vos derrete,

Ímpios, por toda a eternidade!

Côngrua e folar — palha e bolota

Ao teu abade, ímpio, não dás?

Pois bem, Deus põe-te de compota

Num molho ardente de aguarrás.

Ah, tu rebelde, ah, tu faminto,

Nunca a chorar foste depor

Três mil remorsos com um pinto

Nas mãos dum padre confessor?

Ah, tu mandaste a Egreja à fava?

Nunca compraste uma cartilha?

Cose-te em pez, torra-te em lava.

Anda, meu besta, meu pandilha!

É em quanto Deus te frita os untos

E o coração numa panela,

Que vida airada os bons defuntos

Passam no céu!... que vida aquela!

Pois cá por baixo aos maganões

Nunca também lhes faltou nada;

Tiveram crenças e milhões...

Deus gosta assim de gente honrada.

Comeram ótimos jantares,

Perfeitamente digeridos;

Foram cristãos e titulares.

Bons pais, bons filhos, bons maridos.

Aos seus palácios luculianos

(O que é virtude e pundonor!)

Durante quase oitenta anos

Não bateu nunca um só credor!

Amaram todos os pecados,

Que são mortais, mas são gentis,

Com todo o encanto fabricados

Para os banqueiros, em Paris.

Dormira sempre num bom leito

Co'as mais formosas cortesãs.

E o ventre sempre satisfeito,

E livre... todas as manhãs.

Gozaram sim, mas na verdade

Foram à missa muitas vezes,

Com toda a pompa e majestade

Dentro dos seus landeaus ingleses.

Se algum remorso impertinente

As almas castas lhes mordia,

Catava-o logo com um pente

Um bispo numa sacristia.

Crendo nos dogmas mais profundos,

E achando a vida um bom lameiro

Tiveram sempre Autor dos Mundos

Por um perfeito cavalheiro.

Deram de graça a vários santos,

A Jesus Cristo e à mãe das Dores

C'roas, chinós, túnicas, mantos,

Borzeguins de oiro e resplendores.

Por isso o tal Autor, que acabo

Do vos citar, os tratou bem;

Deus é levado do diabo

Só para os pulhas sem vintém.

E quando ao cabo da função,

— Velhos sem dentes, já na espinha,

A Morte, de chapéu na mão,

Lhes foi tocar à campainha,

Para espicharem dignamente,

Agasalhados na sua cama,

O papa enviou-lhes de presente

A benção neste telegrama:

“Remete benção Divindade.

Legado Pedro quinze contos.

Escrevi céu Hotel Trindade

Tenham chegada quartos prontos.”

E após um grande funeral,

A que assistiu o high-life inteiro,

Desde o arcebispo ao general

E desde o príncipe ao banqueiro,

Seus corpos, onde não remexe

O verme vil que trinca os parias

Embalsamados do escabeche

Em grandes latas funerárias,

No palacete duma campa

Foram guardados, qual tesoiro,

Dentro dum cofre em cuja tampa

Há versos maus em letras de oiro.

E as almas, prontas para a festa

Do seu olímpico noivado,

Com uma aureola na testa

E asas soberbas no costado,

Partiram leves, sub-reptícias.

Entre o esplendor de cem auroras,

Lá para o Reino de Delicias.

Onde estarão a estas horas

Feitas bebés, comendo um queque,

Tocando frauta ou tamboril,

Ou arrastando a asa em leque

Ingenuamente... às onze mil.

Ah, miserável, ah precito,

Que lá dos báratros cristãos

Ergues ao Tigre do infinito

Os dois archotes das tuas mãos,

Vê tu como é conveniente,

E justo em todos os sentidos,

Herdar um homem dum parente

Seiscentos contos garantidos,

Gozar, sem medo à vida eterna,

Toda esta bela patuscada,

Desde a luxúria mais moderna

À gula mais civilizada,

E ao terminar tão bom fadário

Morrer, ouvindo alguns latins,

Com treze quilos de calcário,

— Onze na alma, e dois nos rins;

E, na mais intima harmonia

Com Satanás e com Jesus,

Ir para a cova à luz do dia,

De farda rica e de grã-cruz,

E entre tocheiros deslumbrantes

Ser bem comido e bem jantado

Por alguns vermes elegantes

Num gabinete reservado!...

A SESTA DO SENHOR ABADE

O meio-dia bateu já na torre da Egreja.

A aldeia é silenciosa e triste. O sol flameja.

Entre o surdo murmúrio abrasador da luz,

Como num grande forno, os grandes montes nus

Recosem-se, espirrando as urzes dentre as fragas.

Um mendigo demente e coberto de chagas

Dorme estirado ao sol numa modorra espessa;

E o mosqueiro febril nas lepras da cabeça

Enterra-lhe zumbindo o caustico das lanças.

Andam só pela rua os porcos e as crianças.

Fome, desolação, luto, viuvez, miséria

Na aldeia morta. A terra esquálida e funérea

Em lugar das canções da abundância e do amor,

Do trigo verde a rir dentro da sebe em flor,

Calcinada e cruel cospe violentamente

Só o cardo torcido, epilético, ardente,

Rompendo duro e hostil, como a praga blasfema

Dum assassino quando um carcereiro o algema.

Secaram-se de todo as fontes e os regatos.

As cobras na aridez crepitante dos matos

Silvam. O ar carboniza as árvores sequiosas

Numa rútila poeira intensa de ventosas.

Dos montes nus além nas secas epidermes

Os rebanhos são como um pulular de vermes.

E a bobada do céu, concha de zinco em brasa,

Onde não passa a nodoa aérea duma asa,

Implacável contempla a terra solitária,

Como um sultão fitando a carcaça dum paria!

E o tifo germinou nesta miséria adusta.

A epidemia, a alma errante de Locusta.

Diabólica e subtil fermenta envenenada

No asfixiante esplendor da atmosfera esbraseada.

Dentro da escuridão soturna dos casebres

Os velhos aldeões, minados pelas febres.

Agonizam; e em seu delírio derradeiro,

Entre o côncavo som da enxada do coveiro

E o rouco salmodiar dos latins agoirentos,

Ouvem loucos de dor os fúnebres lamentos

Dos magros bois de olhar moribundo e sereno.

Que estão lá baixo ao pé do estabulo sem feno,

A mugir, a mugir, por terra, abandonados

Junto ao velho esqueleto inútil dos arados!

A espaços da profunda e trágica nudez

Duma choupana irrompe um grito de viuvez,

Um clamor de orfandade... E o sino chora então

Lágrimas sepulcrais de bronze na amplidão.

A cólera de Deus, cujo olhar incendeia,

Correu como uma loba hidrófoba na aldeia.

Não há lume no lar, nem há pão nos armários.

Entre os dedos das mães famintas os rosários

Passam piedosamente e inutilmente, em quanto

A Morte, a hiena magra e vesga, espreita a um canto

Um berço onde agoniza um anjo, ó dor cruel!

Como um roto mendigo à porta dum vergel

Sofregamente espreita algum fruto outoniço

A tombar já sem cor dum ramo já sem viço!

E a aldeia invoca, implora os anjos tutelares.

Morre de fome e veste as santas nos altares

Com oiro e com brocado, Os círios noite e dia

Alumiam a branca imagem de Maria,

Como trêmulos ais de luz agonizantes

A erguer-se para o céu! Procissões ululantes

De penitências vão convulsas, desgrenhadas,

Esfacelando os pés nas pedras das calçadas,

Dilacerando o peito, arrancando os cabelos.

E com mil visões torvas de pesadelos,

Uivando a Deus em rouco e bárbaro clamor

Que seja pai que veja essa infinita dor,

E lance àquela imensa angústia, àquela magoa

Um olhar onde enfim brilhe uma gota d'água!

..................................................................

Em vão, em vão, em vão! A tarde o sol frenético

Morre congestionado, estonteado, apoplético,

E de manhã explui na lividez do oriente,

Caustico, a chamejar como um remorso ardente!

E nas noites febris, sem ar, sem rouxinóis,

E que o azul é um braseiro esplêndido de soes

E em que parece que há dispersas na atmosfera

As vaporizações surdas duma cratera,

Por detrás da montanha aspérrima, escalvada,

A lua cheia, rubra, opaca, ensanguentada,

Num silêncio soturno, esmagador, que oprime,

Rompe sinistra — como a aparição dum crime!

E contudo naquela aridez flamejante,

Sem um ramo frondoso em que uma ave cante,

Naquele ilimitado incêndio abrasador,

Oh sarcasmo cruel! há dois oásis em flor,

Com duas tropicais pletoras de verdura:

Um é o cemitério, o outro o passal do cura.

No cemitério a Vida impetuosa e forte

Rompe a cantar do ventre ubérrimo da Morte.

Pâmpanos, silveirais, cardos, ortigas, rosas,

Plantas meigas de idílio e plantas tenebrosas,

A mandrágora, a murta, a madressilva, o feto,

Tudo isto a latejar, a fecundar, repleto,

Num emaranhamento anárquico pulula

Doido de sol, febril de seiva, ébrio de gula!

Há uma saturnal junto de cada cova,

Um cadáver que chega é uma iguaria nova,

Que os vermes decompõem em gangrenas protervas

Para a sofreguidão muda, obscura das ervas.

E quando do seu antro a larva tumular

Diz à planta: “Aqui tens na mesa o teu jantar,

Vem comê-lo!” milhões de raízes — reptis,

Sanguessugas que têm por bocas bisturis,

Vão haurir, absorver, vampirizar no fundo

Dessa cloaca obscena esse banquete imundo,

Um fétido e viscoso esterquilínio de horrores,

Que é o pão que Deus fez para engordar as flores!

E da tumba do hospício hora a hora resvala

Uma carga de entulho humano para a vala.

Juntam-se aos nove e aos dez, rimas de carne morta,

Na mesma cova. A idade e o sexo pouco importa.

Confundem-se no podre açougue subterrâneo.

E em quanto uma raiz de lírio suga um crânio

E uma pústula dá o perfume a um nectário,

No azul celeste paira o corvo sanguinário,

O tumulo suspenso, o esquife que se eleva,

Brandindo em cada flanco uma foice de treva!

............................... Dir-se-ia que o Destino,

O velho Thug, o velho e trágico assassino,

Depois de uma hecatombe insensata e brutal,

A escondera, lançando em cima um madrigal,

Um manto de verdura e corolas vermelhas,

Todo estrelado do oiro em brasa das abelhas.

E o presbitério? Olhai:

Branco como um noivado.

Trepadeiras à porta e pombas no telhado.

Há nesse ninho oculto em verdura frondosa

Como que um bem-estar simples e cor de rosa.

Era um ninho discreto, um bom ninho fiel,

Para sugar um favo a três luas de mel.

Anacreonte, o velho erótico divino,

Contente encerraria ali o seu destino,

Pobre, alegre, feliz, sem remorsos, sem dores,

A calvície jovial sob um chinó de flores,

O copo sobre a mesa, a musa sob os joelhos,

Ao ar livre, a cantar os desejos vermelhos,

A beleza, o prazer, a juventude e o sol,

Com a graça dum melro e a voz dum rouxinol.

Vejamos essa estância idílica e tranquila.

Mas cuidado! há lá dentro um padre e um cão de fila.

E ambos mordem. Mas, como ambos roncam a sesta,

Entremos. Logo aqui no pátio pela fresta

Da tenebrosa adega aberto um poucachinho

Sai um aroma intenso e rico de bom vinho.

O abade é beberrão. Casca-lhe muito e bem.

Lá pinga como a dele isso ninguém na tem.

Sabe da poda, é mestre! A adega até dá gosto

Entrar a gente lá numa tarde de Agosto.

Que frescura, que asseio e que néctar! Noé

Precisaria ali da capa de Jafé

A todo o instante, e o próprio abade e mais a ama

Tem feito dessa adega o seu quarto de cama

Várias vezes... O amor pela-se por bom vinho.

Se Vênus foi sua mãe, Baco foi seu padrinho.

Sensata opinião que o nosso abade aprova,

Sobretudo se o vinho é velho e a mulher nova.

Nos rotundos toneis e nas cubas inchadas,

Panças monumentais prenhes de gargalhadas,

Dormem alegremente e silenciosamente

Os trinta mil pifões que o Padre-Omnipotente,

Em seu alto desígnio e infinita bondade,

Destinou para o odre insaciável do abade.

E na fresqueira — um rico e secular tesoiro —

Ambrosias ideias velhíssimas, cor do oiro,

Murmuram baixo em voz cristalina e maviosa

Uma canção de amor entre um beijo e uma rosa,

E em que a rosa abre ao beijo as pétalas vermelhas

Sob frêmito alado e diáfano de abelhas.

Com tão raro elixir, que é como um sol poente,

Que já não dá calor, mas que ilumina a gente,

O próprio Satanás, faço-lhe essa justiça,

Não tinha repugnância alguma em dizer missa,

E eu mesmo, é minha vergonhosa confissão,

Mas em suma, que diabo!... eu dava em sacristão!

E junto à adega existe a tulha sempre cheia...

Mas subamos depressa enquanto o abade orneia

A dormir pois se acorda e me conhece, foi-se

A visita e per cima arruma-me algum coice.

Vamos pé ante pé, devagarinho. A sala

É vasta e branca. Tem nos muros a adorná-la

Sagrados corações de Jesus flamejantes,

Mães, de Deus com olhar no céu e dez trinchantes,

A traspassar-lhe o peito, um Pio nono a cores.

Cordeirinhos pascais, anjos, araras, flores,

Tudo em missanga, e enfim um D. Miguel primeiro

A froque, que eu comprava a peso de dinheiro.

Do teto enegrecido em bátegas jucundas

Pendem belas maçãs camoesas rubicundas,

Cachos de uvas ainda a rir, peras marmelas,

Encaixilhado tudo à volta com morcelas.

Em seis baús de coiro e em arcas de castanho

Guarda o cura o bragal precioso, o rico amanho

Caseirinho, — lençóis duma finura extrema,

Às grosas, rescendendo alecrim e alfazema!

E, segundo se diz, também deve haver nessas

Arcas monumentais muita soma de peças.

Ao fundo a livraria: uma pequena estante

Numa banca ordinária e simples de estudante.

No centro tem um vão com um Cristo inaudito

Nas vascas do caruncho agonizando aflito,

Burlesco manipanso alvar de formas toscas,

Negro — das dejecções sacrílegas das moscas.

Soltos na estante em quatro ou cinco prateleiras

Ripanços de orações, de sermões e de asneiras,

Que fornecem há já trinta anos exatos

Pão de espírito ao cura e pão do corpo aos ratos.

E entre os livros há tudo. É uma loja de adelo.

Pacotes com rapé, um baralho, um marmelo,

Esporas, saquitéis com semente, de ervilha,

Garfos, um grande corno, um copo, uma rodilha.

Malgas com marmelada e frascos com compotas,

E até mesmo um chapéu sebento e um par de botas!

Sobre a mesa o tinteiro e o solidéu. E aberto

Um breviário tal, que cheirado de perto

Fulmina, um breviário exótico, onde enfim

Há já muito mais sebo e traça que latim!

E a todo e qualquer canto em rumas assassinas,

Marmeleiros, bordões e mocas e clavinas.

E pendendo sombria e, trágica dum muro,

Come se fosse a pel' dum grande monstro escuro,

A loba, um balandrau de dobra espectrais,

Feito para espantar as almas e os pardais,

Contigua à sala existe a alcova. É lá que dorme

O hipopótamo. Vede: O catre e desconforme;

Cabiam nesse vasto enxergão à vontade

A preguiça dum porco e a luxúria dum frade,

O cura espapaçado, esbandalhado, ronca,

Inunda-lhe o suor odioso a testa bronca,

O cachaço taurino e as papeiras que vão

Desde o queixo ao umbigo em graça ondulação.

A boca comilona, erótica, sensual

Traz à lembrança o fauno obsceno e o canibal.

E a dentadura podre, esse armazém de guano,

É qual desmantelado aqueduto romano.

Que sórdido animal! que bandulho! que bojo!

Tem cerdas na cabeça e nas orelhas tojo!

E o nariz? o nariz! que farol! que obelisco!

Pantagruel deu-lhe a cor, Gargântua deu-lhe o risco.

É o nariz de Falstaff, épico, em grande gala,

Purpureado e incendiado a fogos de bengala.

De quando em quando a ama, hercúlea mocetona,

— Um peixão! — sempre alegre e sempre brincalhona,

Vem ligeiro enxotar com precauções imensas

Os insetos sem fé e os moscamos sem crenças,

Que ousam depor, que horror! a tal coisa indecente

Nos rubros alcantis desse nariz ingente.

Eu nunca vi, meu Deus, nariz tão esquisito!

Ruge como um trovão, silva com um apito!

É talvez o nariz por onde tocará

Trombeta o Criador no val' de Josafá!

Dos mais complexos sons percorre a escala... alcoólica:

Umas vezes imita uma frauta bucólica

E outras um cavernoso órgão de Rilhafolles,

Com um grande Titan bêbado a dar as foles.

Às vezes um fragor rouco de temporal

Quer bramir através do Himalaia nasal

Do abade, mas achando os dois toneis do monte

Entupido de esterco infecto e de simonte,

Retrocede e lá vai por outro sorvedoiro

Expluir — com profundo e tremebundo estoiro!...

...................................................................

Mas que satisfação beatifica se nota

Na vasta estupidez daquela cara idiota!

E sabeis por que dorme olímpico e risonho

O abade? É porque teve inda há pouco esse sonho:

Sonhou ver desfilar, oh ventura ilusória!

Um préstito pagão, um cortejo de gloria,

A aclamá-lo. Na frente uma vara sombria

De bácoros roncava em coro esta poesia:

Deus fez o porco para o frade.

Deus destinou-nos os presuntos

Para os seus untos,

Senhor abade.

Grunhamos, pois, grunhamos todos juntos:

Viva o abade! Viva o abade!!

Sucediam-se logo em manadas e em bando

Perdizes e perus e patos conclamando:

Patos, perus, galinhas e perdizes

Somos felizes!

Oh, que ventura!

Como é doce morrer tendo a certeza

De bem assados em manteiga inglesa

Ir para a mesa

Do senhor cura!

Oh, que ventura! oh, que ventura!...

Num carro triunfal trovejava depois

Um tonel arrastado a cem juntas de bois:

O sonho, o canto e a dança

Vivem na minha pança,

Que trilogia!

Sonhar, dançar, cantar!

A tristeza morreu um belo dia

Num lagar.

Vá, Padre-mestre, com bizarria!

Cântaro à boca, toca a virar!

Meu Padre mestre, nunca o teu bico

Provou ainda vinho tão rico,

Sem confeição!

Vinho como este

Nunca o bebeste,

Não!

Vá Padre-mestre, põe-me um repuxo,

Muda-me todo para o seu buxo,

Meu tubarão!

Depois rolemos, às gargalhadas,

Dando umbigadas,

Dando pançadas

No chão!...

Um gracioso tropel de donzelas formosas,

Frescas e virginais como botões de rosas,

A saia curta, o rir brejeiro, o arzinho honesto,

Deixando ver a perna e fantasiar o resto,

Vinha cantando atrás esta canção feliz,

Ao som de teorbas de oiro e avenas pastoris:

Somos trezentas sessenta e seis,

Olhos maganos, bocas em flor...

Dignas de reis!

E vimos todas, senhor Prior,

Dar-vos aquilo que vós sabeis...

Somos trezentas sessenta e seis!

Um calendário de ano bissexto,

Feito de amor!

Livro novinho!... papel e testo!...

Abra-lhe as folhas sem medo ao sexto,

Abra-lhe as folhas, Padre Prior!

Caminhavam por fim, ronceiros, de vagar,

Os grandes carroções da Côngrua e Pé de Altar,

Puxados a duas mil parelhas de jumentos,

Zurrando esta epopeia heroica aos quatro ventos:

Senhor Pároco, toda a freguesia,

Uns quatro mil onagros,

Muito magros

Vem trazer isto a Vossa Senhoria.

Desculpe, senhor Pároco, a ousadia...

A oferta é bem mesquinha, é desgraçada.

Uns oitocentos moios simplesmente

De milho, de feijão, trigo e cevada.

E nós sabemos que um tão mau presente

Para o seu dente

Não chega a nada! não chega a nada!

Mas é boa a intenção:

Nós reservamos para si o grão,

E para nós a palha unicamente

Dar ao senhor Prior

Miséria assim, é vergonhoso até...

Mas aceite este mimo sem valor...

Senhor Pároco aceite-o, por quem é!...

E agora, senhor Pároco, a sua benção,

Porque os onagros pensão

Que ela salva das chamas infernais;

E em paga de tal dom, de tal carinho

Rogaremos ao céu pelo focinho

Lhe permita engordar cada vez mais.

Boa pinga e bom porco alentejano,

E sempre nédio e alegre e satisfeito!...

Senhor Pároco, viva!... até p'ro ano...

Até p'ro ano... e muito bom proveito!...

O abade, vendo aquela espantosa ovação,

Cresceu como uma torre e inchou como um balão.

E ao mirar-se com garbo heroico e triunfal

Surpreendeu-se de anel e cruz episcopal!

E, impando de vangloria e atônito de espanto,

Inchou mais meia légua e cresceu outro tanto!

Contemplou-se depois com majestade ufana,

E, oh céus! viu-se vestido em púrpura romana!

Cardeal! cardeal! cardeal! que honra, que posição!

E subiu de tal forma ovante na amplidão

Que o Himalaia, envolto em suas neves eternas,

Disse a um condor: — Vai ver lá cima aquelas pernas; —

— Cardeal! Não será sonho ou magico feitiço?!

Eu Cardeal!!... — Apertou entre as mãos o toutiço,

E em lugar dum chapéu tingido com zurrapas,

Encontrou o diadema olímpico dos papas!

Papa!... E de tal maneira ergueu a fronte sua

Que com ela partiu os chavelhos da lua!

Em torno do nariz e à volta das orelhas

Zumbiam-lhe tremendo os astros, como abelhas.

Ser papa! ser rei do céu e o rei do mundo!

E lá do alto do abismo esplêndido e profundo

Lançou o mar e à terra a sua benção sagrada.

E o mar mudou-se em vinho e a terra numa empada!

E o colosso voraz, de ver coisas tão belas,

Debruçou-se, agachou-se, escancarou as goelas,

E engoliu duma vez o assombroso folar,

Bebendo-lhe por cima o vinho todo — o mar!

Depois empanturrado, inflado, um pouco torto,

Atirou-se a dormir mais pesado que um morto,

Arrotando trovões............................................

......................................................................

E em quanto o abade ronca e grunhe sem cuidados

Dobram plangentemente os sinos afinados,

Cortam o espaço os ais do estertor derradeiro,

E entre as germinações frescas do bom lameiro

A égua abacial co’a respectiva cria,

(A quem, se fosse dele, o abade chamaria

Afilhada) lanzuda opípara, pacata,

Livre, sem albardão, sem freio e sem arreata.

Na monástica paz dos ventres satisfeitos

Com luzerna viçosa e tenra até os peitos

Envolta no esplendor fulvo do sol poente,

Mansa, fitando o azul, — rincha ortodoxamente!

O GÊNESIS

Jeová, por alcunha antiga — o Padre Eterno

Deus muitíssimo padre e muito pouco eterno,

Teve uma ideia suja, uma ideia infeliz:

Pôs-se a esgaravatar co’o dedo no nariz,

Tirou desse nariz o que um nariz encerra,

Deitou depois isso cá baixo, e fez a terra.

Em seguida tirou da cabeça o chapéu,

Pô-lo em cima da terra, e zás, formou o céu.

Mas o chapéu azul do Padre Omnipotente

Era um velho penante, um penante indecente,

Já muito carcomido e muito esburacado,

E eis aí porque o céu ficou todo estrelado.

Depois o Criador (honra lhe seja feita!)

Achou a sua obra uma obra imperfeita,

Mundo sarrafaçal, globo de fancaria,

Que nem um aprendiz de Deus assignaria,

E furioso escarrou no mundo sublunar,

E a saliva ao cair na terra fez o mar.

Depois, para que a Egreja arranjasse entre os povos

Com bulas da cruzada alguns cruzados novos,

E Tartufo pudesse inda dessa maneira

Jejuar, sem comer de carne à sexta-feira,

Jeová fez então para a crença devota

A enguia, o bacalhau e a pescada marmota.

Em seguida meteu a mão pelo sovaco,

Mais profundo e maior que a caverna de Caco,

E arrancando de lá parasitas estranhos,

De toda a qualidade e todos os tamanhos

Lançou sobre a terra, e deste modo insonte

Fez ele o megatério e fez o mastodonte.

Depois, para provar em suma quanto pode

Um Criador, tirou dois pelos do bigode,

Cortou-os em milhões e milhões de bocados,

(Obra em que ele estragou quatrocentos machados)

Dispersou-os no globo, e foi desta maneira

Que nasceu o carvalho o plátano e a palmeira.

...................................................................

Por fim com barro vil, assombro da olaria!

O que é que imaginais que o Criador faria?

Um pote? não; um bicho, um bípede com rabo,

A que uns chamam Adão e outros Simão. Ao cabo

O pobre Criador sentindo-se já fraco.

(Coitado, tinha feito o universo e um macaco

Em seis dias!) pensou: — Deixem-nos de asneiras.

Trago já uma dor horrível nas cadeiras,

Fastio... Isto dá cabo até duma pessoa...

Nada, toca a dormir uma sonata boa! —

Descalçou-se, tirou os oc'los e chinó,

Pitadeou com delicia alguns trovões em pó,

Abriu, para cair num sono repentino,

O alfarrábio chamado o livro do Destino.

E enflanelando bem a carcaça caduca,

Com o barrete azul celeste até à nuca,

Fez ortodoxamente o seu sinal da cruz

Como qualquer de nós, tossiu, soprou à luz,

E de pança p'ro ar, num repoiso bendito,

Espojou-se, estirou-se ao longe do infinito

Num imenso enxergão de nevoa e luz doirada.

E até hoje, que eu saiba, inda não fez mais nada.

FANTASMAS

I

O vigário de Deus na terra disse um dia

Aos batalhões do clero:

Tragam-me o manto de oiro e seda que cobria

As espáduas de Nero.

E trouxeram-lhe o manto, um manto do brocado,

Da púrpura mais fina,

Com escarros de lodo obsceno, inda empastado

No sangue de Agripina.

E o papa continuou: “Preciso armar o braço,

Para ditar as leis;

Fabriquem-me uma espada enorme com o aço

Das espadas dos réis.”

E trouxeram-lhe o gladio. O papa ficou mudo,

Num assombro de espectro.

De súbito exclamou: “Ainda não é tudo;

Tragam-me agora um cetro!”

Trouxeram-lho. E depois dum silêncio profundo

Rugiu como um leão:

“Tragam-me agora o mundo!” E puseram-lhe o mundo

Na palma da sua mão.

E sopesando o globo e arrancando o montante

Enorme da bainha,

Bradou pela amplidão: “Sou Júpiter-tonante!

Humanidade, és minha!

Eu tenho o gladio e o cetro, a excomunhão e a bula;

Sou o Deus, sou a Fé.

Miserável reptil, Humanidade, oscula

A ponta do meu pé!”

E sentando-se sobre o coração da Itália

O sátrapa romano

Estendeu desdenhoso o bico da sandália

Para o gênero humano!

II

Nesse instante um fantasma entrou nos régios paços.

Sereno e formidável.

Encarou fixamente o rei, cruzando os braços

No peito inabalável,

E trovejou, deixando o papa sacrossanto

Lívido, espavorido:

“Sou a Fraternidade. Entrega-me esse manto

E essa espada bandido!”

Despedaçou-lhe o gladio e a túnica purpúrea,

E saiu triunfal.

E o papa horrorizado, espumando de fúria,

Uivou como um chacal:

“Nesta invencível mão de abutre encarquilhada

Guarda o melhor tesoiro.

Ficou-me ainda o cetro. Era de ferro a espada...

Prefiro o cetro... é de oiro!”

E o papa viu então, oh trágica ansiedade

Um vulto sobre-humano

Avançar e bramir: — O meu nome é Igualdade;

Dá-me o cetro, tirano! —

Quebrou o cetro e foi-se. E o papa, como um lobo

Sombrio respondeu:

“Na minha forte mão ainda sustento o globo...

Ainda o globo é meu!...”

E desatou a rir... um riso sanguinário

De pantera. Depois

Surgiu novo fantasma hercúleo, extraordinário,

Maior que os outros dois.

E como o rebentar potente dum trovão

Que abala a imensidade

O fantasma rugiu: — Não me conheces, não!

Chamo-me a Liberdade!

“Venho buscar o mundo. Entrega-o, salteador!

É meu o globo, harpia!”

E arrancou-lho. Soltando um grito, no estertor

Convulso da agonia,

Tombou por terra o papa. E repentinamente

Viu surgir-lhe do lado

Um esqueleto a rir, todo fosforescente,

Podre, desengonçado,

Que lhe disse: — Morreu, ó Papa, o nosso império,

Morreu o mundo antigo.

Tu chamas-te Alexandre, eu chamo-me Tibério...

Vem-te deitar comigo!...

E como um caçador fantástico que leva,

Sangrenta e moribunda,

Uma hiena a gemer, de rastos, pela treva

Numa noite profunda,

O esqueleto levou para a cripta sombria

O cadáver do irmão,

Indo dormir os dois na eterna mancebia

Da mesma podridão!

Post scriptum

Quando eu morrer abram-me o peito

E desta jaula, onde houve um leão,

Tirem, o cárcere era estreito,

Meu velho e altivo coração.

Depois sem dó e sem respeito,

Sem um murmúrio de oração,

Lancem-no assim, vai satisfeito,

À vala obscura, à podridão,

Para que durma e se desfaça

No lodo amargo da Desgraça,

Por quem bateu continuamente,

Como um tambor que entre a metralha

Estoira ao fim duma batalha,

Rouco, furioso, ansioso, ardente!

Nota

Em seguida à morte de D. João comecei a escrever um novo poema — A Morte do Padre Eterno[1], cujo plano completo, até aos mínimos detalhes, estava de há muito elaborado no meu espírito.

Mas em torno desta ideia principal germinou um grande número de ideias acessórias, donde nasceu um livro novo A Velhice do Padre Eterno, coleção de 50 poesias, que são 50 balas que, partindo de diversos pontos, vão todas bater no mesmo alvo.

Em 1879 estava adiantada a Morte do Padre Eterno e quase concluída a Velhice.

Uma enfermidade de quatro anos sucessivos interrompeu a obra.

Volvendo a saúde, voltou o trabalho. O trabalho nasce espontaneamente da alegria, como um fruto nasce espontaneamente duma flor.

Público hoje o 1º volume da Velhice do Padre Eterno. O 2.º, já na imprensa, sairá a luz com brevidade. No 1.º volume predomina a sátira, no segundo a epopeia. Os dois completam-se. A crítica, só reunidos, os poderá julgar inteiramente.

Creio, se a saúde me não faltar, que a Morte do Padre Eterno dentro de um ano estará impressa.

E depois de morto D. João e morto Jeová, resta-me ressuscitar Jesus e desagrilhoar Prometeu.

Esse último poema, o Prometeu Libertado, será o fecho da trilogia, o complemento da minha obra.

Terei os anos de vida necessários para escrever esse livro? Não sei; no entanto rogo a Deus do fundo da minha alma que me deixe terminar com um hino de esperança e de harmonia uma batalha de cóleras e de sarcasmos.

O plano está concebido há muito. A ideia é simples e creio que bela. A primeira parte é a epopeia do Trabalho, a glorificação de Prometeu pela humanidade e pela natureza.

Na segunda parte de Jesus Cristo, levantando-se do seu tumulo, vem fulminar o abutre e desacorrentar Prometeu.

O herói é libertado pelo santo. A crença e a ciência, a razão e a fé, depois dum combate do milhares de séculos reúnem-se finalmente numa paz luminosa, numa comunhão indestrutível.

A liberdade de Prometeu significa o desaparecimento de todas as tiranias, e a ressurreição de Jesus a morte de todos os dogmas. Um é a justiça humana, e outro a aspiração imortal para uma justiça absoluta. O Cáucaso e o Gólgota ficam sendo para a humanidade os dois grandes altares da religião eterna Futuro!

Julho — 1885.

Guerra Junqueiro.

Notas

[1] A Morte de Jeová era o título primitivo.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 



[1] A Morte de Jeová era o título primitivo.