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Raios de extinta luz, de Antero de Quental
Edição de referência:
ANTERO DE QUENTAL
RAIOS DE EXTINTA LUZ
POESIAS INÉDITAS (1859-1863)
COM OUTRAS PELA PRIMEIRA VEZ COLIGIDAS
PUBLICADAS E PRECEDIDAS DE UM ESCORÇO BIOGRÁFICO
POR
TEÓFILO BRAGA
LISBOA M. GOMES, Livreiro-Editor 70, Rua Garrett, 72 1892
RAIOS DE EXTINTA LUZ
TIRAGEM ESPECIAL
ÍNDICE
Escorço biográfico de Antero de Quental
XIII — Per amica silentia lunae
XIV — Na primeira página do Inferno de Dante
XVI — Momentos de tédio (sonetos)
XXIV — Epigrama transcendental
Excertos de uma tradução do Fausto:
Romance de Goesto Ansures (ao moderno)
XXXIII — Ombra, versão italiana de Domenico Milelli
A
Wilhelm Storck, Oliveira Martins, Eça de Queirós, Alberto Sampaio, Jaime Batalha Reis, Luiz de Magalhães, Joaquim de Araújo, João de Deus, D. Carolina Michaelis de Vasconcellos, Santos Valente, Alberto Telles, António de Azevedo Castello Branco, José Ben Saúde, F. Machado de Faria e Maia, José Falcão, Manuel de Arriaga, Anselmo de Andrade, Manuel Duarte de Almeida, etc., etc.
a todos os que amaram e admiraram Antero
C.
EXPLICAÇÃO PRÉVIA
A publicação deste livro é um fenômeno literário de alta importância. Compõe-se de uma coleção de Poesias inéditas de Antero de Quental, na primeira fase artística, de 1859 a 1863, quando o seu ideal era ainda religioso, romântico e espiritualista. Fase ignorada do público, acha-se descrita pelo poeta na sua Autobiografia, quando alude à “educação católica e tradicional de um espírito naturalmente religioso, nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra conhecida.”
Ao dar à publicidade o livro revolucionário as Odes modernas, em 1865, acentuada poesia de combate, Antero rasgou todas as composições anteriores, para que não ficassem vestígios desse período contemplativo. Dera então o máximo relevo à “revolução moral e intelectual”, como o fato mais importante da sua vida, segundo confessa na Autobiografia. Truncando as suas origens artísticas, apagava uma página psicológica, tão cheia de verdade e naturalidade, que a crítica nunca poderia reconstruir.
Por uma casualidade feliz um companheiro de Antero de Quental, que por esse tempo frequentava a faculdade de medicina, copiara todas as poesias românticas: chamava-se Eduardo Xavier de Oliveira Barros Leite, falecido prematuramente em 1872. Por um enlace de família, obtive por ocasião da sua morte o caderno das poesias que copiara, e que o próprio autor, que lhe sobreviveu vinte anos, mal suspeitava terem sido conservadas. Guardei-as pois, como um valioso documento, onde estavam os primeiros germens do talento poético de Antero de Quental; publicando-as depois da sua morte desgraçada, restituímos-lhe à vida subjetiva uma página luminosa e simpática que faltava à sua obra e à literatura portuguesa.
O título do livro, Raios de extinta Luz, tem a significação do seu aparecimento póstumo, e o valor de exprimir um pressentimento do poeta, ao começar com este hemistíquio a invocação escrita em 1860 para uma colecionação projetada.
Para completar este monumento, fizemos pesquisas por álbuns particulares, onde ainda encontrámos primorosos inéditos. Ao dr. José Bernardino agradecemos a contribuição valiosa com que enriqueceu este livro; e a Joaquim de Araújo os excertos inéditos da tradução do Fausto e outras composições dispersas, que Antero reservava para incluir em uma futura edição das Odes modernas e das Primaveras românticas. Manda o dever moral que se reconheça a cooperação do ativo e inteligente livreiro-editor Manuel Gomes, que ligou a sua iniciativa à publicação das poesias ignoradas do excelso poeta. Incorporando-as neste volume, aqui ficam reunidas a primeira e a última maneira artística de Antero de Quental, podendo agora ser julgada de um modo definitivo a sua obra poética completa.
ANTERO DE QUENTAL
ESCORÇO BIOGRÁFICO
Bem conhecida é esta alta individualidade, que se manifestou entre a moderna geração com um extraordinário temperamento de lutador, e que de repente caiu em uma apatia invencível, em um desalento moral progressivo, em uma decadência física precoce, e por último no desespero, que em 11 de setembro de 1891 determinou o suicídio. Quando em tão breve espaço vemos essas belas organizações literárias, como Camilo Castello Branco, Júlio Cesar Machado e Antero de Quental truncarem a sua carreira pelo suicídio, não pode deixar de explicar-se essa fatalidade pela nevrose que neles era o estimulo do seu talento e o motor das suas desgraças. E essa mesma nevrose, que se manifestava brilhantemente pela invenção imaginosa, pela graça delicada ou pela inspiração poética, nunca lhes deixara adquirir uma disciplina mental que os levasse à análise de si mesmos, nem uma subordinação moral que os fortificasse contra o seu espontâneo pessimismo. A crítica da ação literária de Antero de Quental está implícita nesta característica do seu organismo.
Antero de Quental nasceu na Ilha de S. Miguel em 1842, em uma família de morgados; naquela pequena ilha a falta de cruzamentos nas famílias aristocráticas tem determinado uma terrível degenerescência, que se manifesta pela idiotia e pela loucura. Na família de Antero de Quental existem casos desta terrível tare héréditaire. A frequência na Universidade de Coimbra, desorientadora para as mais fortes organizações, não deixou de atuar profundamente no espírito de Antero de Quental, lançando-o em uma dissolvente anarquia mental pelos hábitos das arruaças escolares e pelas leituras radicalistas que o levavam a uma grande sobre-excitação. Foi nesta crise da adolescência que em Antero de Quental desabrochou o talento poético e a paixão revolucionaria, que deu origem a uma liga de espíritos emancipados de todo o supernaturalismo e de toda a autoridade temporal, que se denominou a Sociedade do Raio. Este título provinha das imprecações que lançavam ao espaço em ocasião de trovoadas, provocando o raio para que os fulminasse, como expressão de uma vontade individual no universo. As perseguições contra a Polônia e as lutas pela libertação e unificação da Itália, também acordaram o interesse de Antero para as questões políticas. As suas leituras favoritas eram os livros de Proudhon, de Feuerbach, de Quinet e Michelet, e isso rapidamente, vivendo em uma atmosfera de discussão permanente, de uma dialética de sofismas, agravada por uma irregularidade de vida, que veio mais tarde a determinar a doença que o embaraçou na sua atividade. Antero de Quental vivia entre um grupo de estudantes que o divinizara, considerando-o como um apostolo, um iniciador da humanidade. E ele próprio chegou a acreditar naquela missão, e passados anos, em uma carta autobiográfica, definia-se como o porta-estandarte das ideias modernas em Portugal.
Neste período da vida de Antero era ele dominado por um condiscípulo natural de Penafiel, chamado Germano Vieira de Meirelles, a quem dedicou a primeira edição das Odes modernas. Este Germano Meirelles era um tipo raquítico e aleijado, dotado de um sarcasmo maligno, resultado da sua imperfeição física; exerceu no espírito de Antero uma ação corrosiva, privando-o de todos os entusiasmos, e levando-o quase à apatia mental. Quando Germano Meirelles morreu miseravelmente, deixando duas crianças filhas naturais, Antero tomou conta delas e educou-as em sua companhia, deixando-lhes o remanescente da sua herança.
O talento de Antero revelou-se pela poesia no jornal O Acadêmico; em 1861, levado pela admiração do lirismo de João de Deus, cultivou a forma do Soneto, que estava longe ainda da beleza que atingiu na sua última fase pessimista.
As ideias políticas revolucionarias e negativistas de que se deixara possuir determinaram a primeira alteração nas suas concepções poéticas. Em 1865 publicou em Coimbra a coleção de poesias desta fase revolucionaria com o título de Odes modernas; mas os produtos da sua atividade poética, transição para as Odes modernas e Sonetos, são totalmente desconhecidos, porque Antero de Quental rasgou todas as composições que não se harmonizavam com o seu novo ideal revolucionário. Um dos adoradores de Antero de Quental, que o acompanhava nas tropelias noturnas, e que também morreu doido em 1872, Eduardo Xavier, coligira em volume essas poesias da fase romântica; é essa coleção que possuíamos que hoje publicamos, da existência da qual o próprio Antero nem suspeitava.
A crise moral de Antero começou propriamente em 1865, quando se achou sozinho em Coimbra; o curso jurídico a que ele pertencia acabara a formatura em 1863; Antero teve de repetir um ano, e ao terminar a formatura em 1864, achou-se sem estímulos que o obrigassem a sair de Coimbra. Vivia então solitário, meditabundo, desenfadando-se em digressões noturnas. Foi nesse ano de 1865, que irrompeu a celebre Questão de Coimbra; eu é que o estimulei a sair à estacada, dando réplica ás insidias de Castilho.
Antero publicou nesse ano a carta Bom senso e bom gosto, que o revelara ao país um polemista ardente, um estilista vigoroso, um espírito possuído de uma alta inspiração. Antero de Quental contraíra perante o país e a geração moderna o compromisso de pôr em obra essas generosas aspirações. De dia a dia tornava-se mais reparável o seu silêncio, mais censurável a falta de atividade literária. Antero sofria um profundo mal-estar, que o não deixava entregar-se ao remanso do estudo; saiu de Coimbra para ir viver em Penafiel com o seu amigo Germano; depois foi para Guimarães para ao pé de Alberto Sampaio; foi para o Algarve para o seu amigo Negrão; foi à América, a Paris, aos Açores, e por último fixara-se mais algum tempo em Vila do Conde. Não estava bem em parte alguma.
Os trabalhos literários não o seduziam; em Lisboa achou-se com José Fontana, que se aproveitou do seu prestígio moral para a organização do partido socialista, e junto com outros rapazes, Eça de Queiroz, Jaime Batalha Reis, inaugurou em 1871 as Conferencias democráticas do Casino, mandadas encerrar pelo ministro marquês d'Ávila.
Nestes dous atos Antero foi impelido, caindo outra vez na apatia de onde nunca mais saiu, prometendo apesar de tudo vir a publicar um Programa para os trabalhos da Geração moderna. Por ocasião da encíclica de Pio IX proclamando o Syllabus, e por ocasião da revolução de Espanha em 1868, Antero de Quental publicou dous opúsculos, mais para mostrar as suas aptidões de foliculário do que a vista clara e o seguro juízo dos acontecimentos. A sua doença moral tornava-se uma lesão física, acentuando-se a sua doença nervosa em 1874.
Na impossibilidade de toda a ordem de trabalho, mas carecendo de ocupar a imaginação no meio dos seus sofrimentos, Antero de Quental ia dia a dia burilando um ou outro soneto, em que dava expressão ao estado moral em que se achava; os amigos foram coligindo estes sonetos, vindo ao fim de algum tempo Oliveira Martins a formar um precioso volume de que ele mesmo foi o editor carinhoso. Fez a esse livro uma introdução vaga sobre intenções búdicas e intuições nirvânicas, mas não nos deu a nota viva do poeta. Os Sonetos de Antero produziram uma forte impressão, não só pela profundidade dos sentimentos como principalmente pela perfeição esmeradíssima da forma; porque os versos das Odes modernas, na expressão das paixões revolucionarias, eram pouco plásticos, e revelavam mais o filósofo do que o artista.
Nos Sonetos Antero transfigurara-se. O Dr. Storck, que acabava de traduzir em belos versos para a língua alemã a obra completa de Camões, ao receber um exemplar dos Sonetos de Antero fez a alta consagração de os traduzir para essa língua eminentemente filosófica. Para acompanhar a sua tradução pediu o Dr. Storck a Antero algumas notas biográficas; em carta de 14 de Maio de 1887 escreveu o poeta uma espécie de Autobiografia que vem junto dos Sonetos. É um documento importante, não pelos dados biográficos, que são vagos e exagerados, mas pelo alcance psicológico, porque pelas frases com que Antero se glorifica dando-se como o estilista dotado com o dom da prosa portuguesa e o porta-estandarte das ideias em Portugal, vê-se que obedecia a uma certa vesânia mental, que lhe motivava fundas decepções e terríveis desalentos. Nesta fase de espírito, Antero caiu debaixo da influência de Oliveira Martins, que não foi mais saudável do que a de Germano Meirelles. Oliveira Martins tinha sido um dos seus colaboradores na organização democrática e socialista em Lisboa, quando publicava a Republica e o Pensamento social; mas um dia abandona o seu ideal, e filia-se em um esgotado partido monárquico a que pretendeu ir levar vida nova. Foi esta apostasia uma desilusão para Antero; sofreu-a caladamente, pedindo aos amigos que lhe não falassem nisso. Vivia então em absoluto isolamento em Vila do Conde, onde era visitado como um pontífice. Em Janeiro de 1890 deu-se o fato brutal do Ultimatum do governo inglês sobre a questão africana; da natural reação do sentimento nacional contra este ato de selvagismo diplomático, nasceu no Porto o movimento de agremiação da Liga patriótica do Norte.
Para dar aos espíritos uma certa unificação moral, lembraram-se do nome de Antero de Quental; foram buscá-lo a vila do Conde, e conseguiram interessá-lo pelo movimento nacional. Presidiu a alguns comícios e a sessões preparatórias da Liga patriótica do Norte; mas o poeta não conhecia a mecânica das assembleias parlamentares, foi facilmente envolvido por todos aqueles que procuravam desnaturar um movimento tão saudável, e por fim quando a Liga patriótica se dissolveu com o mais escandaloso fiasco, Antero de Quental retirou-se à sua impotência, ferido com um desalento mortal. A data do seu testamento em 9 de setembro de 1890 revela que ele já pensava em acabar com a existência. A dissolução dos caracteres dos seus contemporâneos de Coimbra mais o desalentava; partira para a ilha de S. Miguel em Julho de 1891, e a falta de interesse e o tedio de aquela solidão aumentada pela mesquinhez da vida de Ponta Delgada, determinou a fatal resolução de 11 de setembro, em que se suicidou com dous tiros de revólver na boca. Foi uma existência verdadeiramente desgraçada; não se revelou com a pujança que possuía. Herdeiro de uma terrível nevrose, não teve a ventura de deparar uma doutrina moral, uma filosofia que lhe fortificasse o espírito; pelo contrário, as suas leituras de Schopenhauer, e a cultura do ideal pessimista em que se enlevava artisticamente, incutiram no seu espírito a ideia do suicídio que involuntariamente se tornou efetiva. A sua obra é mais um documento psicológico do que um produto estético; e neste sentido será estudada e confrontada com a de outros gênios igualmente desgraçados.
CARTA AUTOBIOGRÁFICA
DIRIGIDA AO PROFESSOR WILHELM STORCK
Tradutor dos Sonetos completos
Ponta Delgada (ilha de S. Miguel, Açores), 14 de maio de 1887.
Ex mo. Snr.
Só agora me chegou ás mãos a sua estimada carta de 23 de abril último, pelo fato de me encontrar, há dois meses, nesta ilha (que é a minha pátria) trazido aqui por urgentes negócios de família. A demora das comunicações com o continente explica este atraso.
Agradeço a v. exª. a as amáveis e para mim tão honrosas expressões de sua carta, e nada me pode ser, como poeta e como homem, mais grato do que o apreço que um tal mestre e critico manifesta pelas minhas composições, ao ponto de querer ser meu intérprete e introdutor junto do público o mais culto do mundo e que mais direito tem a ser exigente. Discípulo da Alemanha filosófica e poética, oxalá que ela receba com benignidade essas pobres flores, que uma semente sua, trazida pelo vento do século, faz desabrochar neste solo pouco preparado. Qualquer que seja a sua fortuna, toda a minha gratidão é devida ao bom e gentil espírito, que generosamente me toma pela mão, para me apresentar.
As informações biográficas e bibliográficas que v. exª. a me pede, podem reduzir-se ao seguinte: nasci nesta ilha de S. Miguel, descendente de uma das mais antigas famílias dos seus colonizadores, em abril de 1842, tendo por conseguinte perfeito 45 anos. Cursei, entre 1856 e 1864, a Universidade de Coimbra, sendo por ela bacharel formado em Direito. Confesso, porém, que não foi o estudo do Direito que me interessou e absorveu durante aqueles anos, tendo sido e ficando um insignificante legista.
O fato importante da minha vida, durante aqueles anos, e provavelmente o mais decisivo dela, foi a espécie de revolução intelectual e moral que em mim se deu, ao sair, pobre criança arrancada do viver quase patriarcal de uma província remota e imersa no seu plácido sono histórico, para o meio da irrespeitosa agitação intelectual de um centro, onde mais ou menos vinham repercutir-se as encontradas correntes do espírito moderno. Varrida num instante toda a minha educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungentes quanto, espírito naturalmente religioso, tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida. Achei-me sem direção, estado terrível de espírito, partilhado mais ou menos por quase todos os da minha geração, a primeira em Portugal que saiu decididamente e conscientemente da velha estrada da tradição.
Se a isto se juntar a imaginação ardente, com que em excesso me dotara a natureza, o acordar das paixões amorosas próprias da primeira mocidade, a turbulência e a petulância, os fogachos e os abatimentos de um temperamento meridional, muito boa fé e boa vontade, mas muita falta de paciência e método, ficará feito o quadro das qualidades e defeitos com que, aos 18 anos, penetrei no grande mundo do pensamento e da poesia.
No meio das caóticas leituras a que então me entregava, devorando com igual voracidade romances e livros de ciências naturais, poetas e publicistas e até teólogos, a leitura do Fausto de Goethe (na tradução francesa de Blaze de Bury) e o livro de Rémusat sobre a nova filosofia alemã exerceram todavia sobre o meu espírito uma impressão profunda e duradoura: fiquei definitivamente conquistado para o Germanismo; e, se entre os franceses, preferi a todos Proudhon e Michelet, foi sem dúvida por serem estes dois os que mais se ressentem do espírito de Além-Reno. Li depois muito de Hegel, nas traduções francesas de Vera (pois só mais tarde é que aprendi alemão); não sei se o entendi bem, nem a independência do meu espírito me consentia ser discípulo: mas é certo que me seduziam as tendências grandiosas daquela estupenda síntese. Em todo o caso o Hegelianismo foi o ponto de partida das minhas especulações filosóficas, e posso dizer que foi dentro dele que se deu a minha evolução intelectual.
Como acomodava eu este culto pelas doutrinas do apologista do Estado prussiano, com o radicalismo e o socialismo de Michelet, Quinet e Proudhon? Mistérios da incoerência da mocidade! O que é certo é que, revestido com esta armadura mais brilhante do que solida, desci confiado para a arena: queria reformar tudo, eu que nem sequer estava ainda a meio caminho da formação de mim mesmo! Consumi muita atividade e algum talento, merecedor de melhor emprego, em artigos de jornais, em folhetos, em proclamações, em conferencias revolucionarias: ao mesmo tempo que conspirava a favor da União Ibérica, fundava com a outra mão sociedades operarias e introduzia, adepto de Marx e Engels, em Portugal a Associação Internacional dos Trabalhadores. Fui durante uns 7 ou 8 anos uma espécie de pequeno Lassalle, e tive a minha hora de vã popularidade.
Do que publiquei por esse tempo, aí vai o que ainda posso lembrar. O meu primeiro folheto é do ano de 1864. Intitula-se: Defesa da Carta Encíclica de S. S. Pio IX contra a chamada opinião liberal. É um protesto contra a falta de logica com que as folhas liberais atacavam o Syllabus, declarando-se ao mesmo tempo fiéis católicos. O autor, glorificando o Pontífice pela beleza da sua altitude intransigente em face do século, via nessa intransigência uma lei histórica, rezava respeitosamente um De profundis sobre a igreja condenada pela mesma grandeza da sua instituição a cair inteira mas não a render-se, e atacava a hipocrisia dos jornais liberais.
O meu último folheto é de 1871. Intitula-se: Carta ao ex mo. marquês de Ávila e Bolama, sobre a Portaria que mandou fechar as Conferencias do Casino lisbonense. As Conferencias Democráticas tinham sido fundadas por mim com o concurso de homens moços (que quase todos têm hoje nome na política) e eram muito frequentadas pelo escol da classe operaria. Pareceram perigosas ao governo, que arbitrariamente as mandou fechar. O meu folheto parece que concorreu, segundo se disse, para a queda do ministério, que, de resto, não podia durar muito, sendo dos chamados de transição. É uma diatribe, mas eloquente.
Entre esses dous extremos, coloca-se a famosa Questão Literária ou a Questão de Coimbra, que durante mais de 6 meses agitou o nosso pequeno mundo literário, e foi o ponto de partida da atual evolução da literatura portuguesa. Os novos datam todos de então. O Hegelianismo dos Coimbrões fez explosão.
O velho Castilho, o Arcade póstumo, como então lhe chamaram, viu a geração nova insurgir-se contra o sua chefatura anacrônica. Houve em tudo isto muita irreverencia e muito excesso; mas é certo que Castilho, artista primoroso mas totalmente destituído de ideia, não podia presidir, como pretendia, a uma geração ardente, que surgia, e antes de tudo aspirava a uma nova direção, a orientar-se como depois se disse, nas correntes do espírito da época. Havia na mocidade uma grande fermentação intelectual, confusa, desordenada, mas fecunda: Castilho, que a não compreendia, julgou poder suprimi-la com processos de velho pedagogo. Inde irae. Rompi eu o fogo com o folheto Bom senso e Bom gosto, carta ao ex mo. A. F. de Castilho. Seguiu-se Teófilo Braga, seguiram-se depois muitos outros, la melée devint générale. Todo o inverno de 1865 a 66 se passou neste batalhar. Quando o fumo se dissipou, o que se viu mais claramente foi que havia em Portugal um grupo de 16 a 20 rapazes, que não queriam saber da Academia nem dos Acadêmicos, que já não eram católicos nem monárquicos, que falavam de Goethe e Hegel como os velhos tinham falado de Chateaubriand e de Cousin; e de Michelet e Proudhon, como os outros de Guizot e Bastiat; que citavam nomes bárbaros e ciências desconhecidas, como glótica, filologia etc., que inspiravam talvez pouca confiança pela petulância e irreverencia, mas que inquestionavelmente tinham talento e estavam de boa fé e que, em suma, havia a esperar deles alguma cousa, quando assentassem.
Os fatos confirmaram esta impressão: os 10 ou 12 primeiros nomes da literatura de hoje saíram todos (salvos 2 ou 3) da Escola Coimbrã ou da influência dela. O Germanismo tomara pé em Portugal. Abrira-se uma nova era para o pensamento português. O velho Portugal ainda conservado artificialmente por uma literatura de convenção morrera definitivamente. Desta espécie de revolução fui eu o porta estandarte, com o que me não desvaneço sobre maneira, mas também não me arrependo. Se a uma ordem artificial se seguia uma espécie de anarquia, é isso ainda assim preferível, porque uma contém germens de vida, e da outra nada havia a esperar. Pertence ainda a essa época o folheto: Dignidade das Letras e Literaturas oficiais.
Durante o ano de 1867 e parte de 68 viajei em França e Espanha e visitei os Estados Unidos da América. No fim desse ano de 68 publiquei o folheto: Portugal perante a Revolução de Espanha. Advogava aí a União Ibérica por meio da Republica Federal, então representada em Espanha por Castellar, Pi y Margall e a maioria das Côrtes Constituintes. Era uma grande ilusão, da qual porém só desisti (como de muitas outras desse tempo) à força de golpes brutais e repetidos da experiência. Tanto custa a corrigir um certo falso idealismo nas cousas da sociedade!
O meu Discurso sobre as causas da decadência dos Povos peninsulares nos séculos XVII e XVIII, embora pisasse um terreno mais solido, o terreno da história, ressente-se ainda muito da influência das ideias políticas preconcebidas, da crítica histórica com tendências. É do ano de 1871.
Nesse ano e no seguinte tomei parte ativa no movimento socialista, que se iniciava em Lisboa, e tanto nessa cidade como no Porto escrevi bastante nos jornais políticos. Incidentemente publiquei num pequeno volume, uma série de estudos com o título de Considerações sobre a Filosofia da História literária portuguesa. Creio que é, ainda assim, o que fiz de melhor, ou pelo menos, de mais razoável em prosa. Confesso sinceramente que dou muita pouca importância a todos esses meus escritozinhos de ocasião, e até, ás vezes, preciso de certa força de reflexão para me não envergonhar de ter publicado tanta cousa pouco pensada. E todavia era aplaudido! Porque? Em primeiro lugar, creio eu, porque os que me aplaudiam não pensavam, ainda assim, mais nem melhor do que eu. Em segundo lugar, porque me concedeu a natureza o dom da prosa portuguesa, não da prosa de convenção, arremedando o estilo dos séculos XVI e XVII mas de uma prosa que tem o seu tipo na língua viva e falada hoje, analítica já nos movimentos da frase, mas na linguagem ainda e sempre portuguesa. Isso agradou, porque era o que convinha e, em suma, acabei por ser citado como modelo da prosa moderna! É certo porém que tudo aquilo são escritinhos de ocasião e que, em prosa, não produzi ainda o que se chama uma obra, isto é, uma cousa original, pessoal e aprofundada. Há muito tempo que sei escrever, mas foi necessário chegar aos 45 anos para ter que escrever. Por isso, deixemos toda essa farragem que não cito senão para corresponder ao desejo de v. exª. na matéria bibliográfica. E passemos aos versos.
Além da coleção de sonetos que v. exª. conhece, publiquei ainda mais dois volumes. Um, de 1872, com o título de Primaveras Românticas contêm os meus Juvenilia, as poesias de amor e fantasia, compostas na sua quase totalidade, entre 1860 e 65, que andavam dispersas por várias publicações periódicas, e que só em 72 reuni em volume, juntamente com mais alguma cousa posterior, do mesmo caráter e estilo. Talvez a melhor maneira de caracterizar esse volume será dizer em francês que é du Heine de deuxième qualité. Como muitas pessoas, por cá, têm achado essa semelhança, por isso a indico. A 2ª. secção dos Sonetos completos que não contêm senão composições desse período dará a v. exª. uma ideia suficiente do fundo e do estilo daquela poesia; assim como a 3ª. secção lhe dará ideia das Odes modernas, cuja 1ª edição apareceu em 1865. Não sei bem como caracterizar este livro: não é certamente medíocre; há nele paixão sincera e elevação de pensamento; mas além de declamatória e abstrata, por vezes aquela poesia é indistinta, e não define bem e tipicamente o estado de espírito que a produziu. O que ela representa perfeitamente é a singular aliança, a que atrás me referi já, do naturalismo hegeliano e do humanitarismo radical francês. Acima de tudo é, como dizem os franceses, poesia de combate: o panfletário divisa-se muitas vezes por detrás do poeta, e a igreja, a monarquia, os grandes do mundo, são o alvo das suas apóstrofes de nivelador idealista. Noutras composições, é verdade, o tom é mais calmo e patenteia-se nelas a intenção filosófica do livro, vaga sim, mas humana e elevada. A novidade, o arrojo, talvez a mesma indeterminação do pensamento, apenas vagamente idealista e humanitária, fizeram a fortuna do livro, junto da geração nova, o que prova pelo menos que veio no seu momento: é tudo quanto poderei dizer. Correspondem a este ciclo os sonetos compreendidos na 3ª secção dos Sonetos completos, muitos dos quais já entraram nas Odes modernas. Em 1874 teve este livro uma 2ª edição muito correta e contendo várias composições novas que considero, tal como é e com todos os defeitos inerente à própria essência do gênero, como definitiva.
Nesse mesmo ano de 1874 adoeci gravissimamente, com uma doença nervosa de que nunca mais pude restabelecer-me completamente. A forçada inação, a perspectiva da morte vizinha, a ruina de muitos projetos ambiciosos e uma certa acuidade de sentimentos, própria da nevrose, puseram-me novamente e mais imperiosamente do que nunca, em face do grande problema da existência. A minha antiga vida pareceu-me vã e a existência em geral incompreensível. Da luta que então combati, durante ou 5 ou 6 anos, com o meu próprio pensamento o meu próprio sentimento que me arrastavam para um pessimismo vácuo e para o desespero, dão testemunha, além de muitas poesias, que depois destruí (subsistindo apenas as que o Oliveira Martins publicou na sua introdução aos Sonetos) as composições que perfazem a secção 4ª (de 1874 a 80) do meu livrinho. Conhece-as v. exª., não preciso comentá-las. Direi somente que esta evolução de sentimento correspondia a uma evolução de pensamento. O naturalismo, ainda o mais elevado e mais harmônico, ainda o de um Goethe ou de um Hegel, não tem soluções verdadeiras, deixa a consciência suspensa, o sentimento, no que ele tem de mais profundo, por satisfazer. A sua religiosidade é falsa, e só aparente; no fundo não é mais do que um paganismo intelectual e requintado. Ora eu debatia-me desesperadamente, sem poder sair do naturalismo, dentro do qual nascera para a inteligência e me desenvolvera. Era a minha atmosfera, e todavia sentia-me asfixiar dentro dela. O Naturalismo, na sua forma empírica e científica, é o struggle for life, o horror de uma luta universal no meio da cegueira universal; na sua forma transcendente é uma dialética gelada e inerte, ou um epicurismo egoistamente contemplativo. Eram estas as consequências que eu via sair da doutrina com que me criara, da minha alma mater, agora que a interrogava com a seriedade e a energia de quem, antes de morrer, quer ao menos saber para que veio ao mundo.
A reação das forças morais e um novo esforço do pensamento salvaram-me do desespero. Ao mesmo tempo que percebia que a voz da consciência moral não pode ser a única voz sem significação no meio das vozes inúmeras do Universo, refundindo a minha educação filosófica, achava, quer nas doutrinas, quer na história, a confirmação deste ponto de vista. Voltei a ler muito os filósofos, Hartmann, Lange, Du Bois-Raymond e, indo ás origens do pensamento alemão, Leibnitz e Kant. Li ainda mais os moralistas e místicos antigos e modernos, entre todos a Teologia Germânica e os livros budistas. Achei que o misticismo, sendo o desenvolvimento psicológico, deve corresponder, a não ser a consciência humana extravagancia no meio do Universo, à essência mais funda das cousas.
O naturalismo apareceu-me, não já como a explicação última das coisas, mas apenas como o sistema exterior, a lei das aparências e a fenomenologia do Ser. No Psiquismo, isto é, no Bem e na Liberdade moral, é que encontrei a explicação última e verdadeira de tudo, não só do homem moral mas de toda a natureza, ainda nos seus momentos físicos elementares. A monadologia de Leibnitz, convenientemente reformada, presta-se perfeitamente a esta interpretação do mundo, ao mesmo tempo naturalista e espiritualista. O espírito é que é o tipo da realidade: a natureza não é mais do que uma longínqua imitação, um vago arremedo, um símbolo obscuro e imperfeito do espírito. O Universo tem pois como lei suprema o bem, essência do espírito. A liberdade, em despeito do determinismo inflexível da natureza, não é uma palavra vã: ela é possível e realiza-se na santidade. Para o santo, o mundo cessou de ser um cárcere: ele é pelo contrário o senhor do mundo, porque é o seu supremo intérprete. Só por ele é que o Universo sabe para que existe: só ele realiza o fim do Universo.
Estes pensamentos e muitos outros, mas concatenados sistematicamente, formam o que eu chamarei, embora ambiciosamente, a minha filosofia. O meu amigo Oliveira Martins apresentou-me como um budista. Ha, com efeito, muita coisa comum entre as minhas doutrinas e o Budismo, mas creio que há nelas mais alguma coisa do que isso. Parece-me que é esta a tendência do espírito moderno que, dada a sua direção e os seus pontos de partida, não pode sair do naturalismo, cada vez em maior estado de banca rota, senão por esta porta do psicodinamismo ou pan-psiquismo. Creio que é este o ponto nodal e o centro de atração da grande nebulosa do pensamento moderno, em via de condensação. Por toda a parte, mas sobretudo na Alemanha, encontram-se claros sintomas desta tendência. O ocidente produzirá pois, por seu turno, o seu Budismo, a sua doutrina mística definitiva, mas com mais sólidos alicerces e, por todos os lados, em melhores condições do que o Oriente.
Não sei se poderei realizar, como tenho desejo, a exposição dogmática das minhas ideias filosóficas. Quisera concentrar nessa obra suprema toda a atividade dos anos que me restam a viver. Desconfio, porém, que não o conseguirei; a doença que me ataca os centros nervosos, não me permite esforço tão grande e tão aturado como fora indispensável para levar a cabo tão grande empresa. Morrerei, porém, com a satisfação de ter entrevisto a direção definitiva do pensamento europeu, o Norte para onde se inclina a divina bussola do espírito humano. Morrerei também, depois de uma vida moralmente tão agitada e dolorosa, na placidez de pensamentos tão irmãos das mais intimas aspirações da alma humana e, como diziam os antigos, na paz do Senhor! — Assim o espero.
Os últimos 21 Sonetos do meu livrinho dão um reflexo desta fase final do meu espírito e representam simbólica e sentimentalmente as minhas atuais ideias sobre o mundo e a vida humana. É bem pouco para tão vasto assumpto, mas não estava na minha mão fazer mais, nem melhor. Fazer versos foi sempre em mim cousa perfeitamente involuntária; pelo menos ganhei com isso fazê-los sempre perfeitamente sinceros. Estimo este livrinho dos Sonetos por acompanhar, como a notação de um diário íntimo e sem mais preocupações do que a exatidão das notas de um diário, as fases sucessivas da minha vida intelectual e sentimental. Ele forma uma espécie de autobiografia de um pensamento e como que as memorias de uma consciência.
Se entrei em tão largos desenvolvimentos biográficos, foi por entender que, sem eles, se havia de perder a maior parte do interesse que a leitura dos meus Sonetos pode inspirar. Os críticos alemães acharão talvez interessante observar as reações provocadas pela inoculação do Germanismo, no espírito não preparado de um meridional, descendente dos navegadores católicos do século XVI. Poderá essa ser mais uma página, embora tênue, na história do Germanismo na Europa, e porventura parecerá curiosa aos que se ocupam de psicologia comparada dos povos.
Ao bom e amável espírito que me introduz, a mim neófito, nesses grandes círculos do pensamento e do saber, tributo, além de muita simpatia, indelével gratidão.
E sou de v. exª. com a máxima consideração
A OBRA POÉTICA DE ANTERO DE QUENTAL
1. Sonetos de Antero. Editor Sténio. Coimbra, Imprensa Literária, 1861. In-8º de XII e 23 pág. Contém 21 Sonetos, dos quais 16 foram incorporados nos Sonetos completos; os 5 restantes ficam incluídos nos Raios de extinta Luz. O prólogo é uma apresentação em verso por Santos Valente. A carta a João de Deus sobre a teoria do Soneto foi reproduzida no vol. II do Círculo camoniano.
2. Beatrice. Coimbra. Imprensa da Universidade, 1863. In-8º grande, de 40 pág. Este poemeto, formado de trechos líricos, está incorporado nas Primaveras românticas.
3. Fiat lux. Coimbra. Imprensa da Universidade, 1864. In-8º grande, de 16 pág. Extremamente raro, por que foi rasgado pelo autor poucos dias depois de publicado. Fica incorporado este poemeto nos Raios de extinta Luz.
4. Odes modernas. Coimbra. Imprensa da Universidade, 1865. In-8º grande, de 160 pág. O texto termina a pág. 150, sendo as últimas 10 pág. ocupadas por uma nota.
____ Segunda edição (Contendo várias composições inéditas). Porto, 1875. In-8º pequeno, de 186 pág. Nesta foi cortada a carta dedicatória a Germano Meirelles, e bem assim a dedicatória dos Sonetos A Ideia, a Camilo Castello Branco; os versos que começam: “Como a serpente larga a pele antiga” (pág. 100), À Irlanda (pág. 121), e as duas quadras sobre Maomé e o Cristo (pág. 133).
5. Primaveras românticas (Versos dos vinte anos). Porto, Imprensa Portuguesa, 1871. Com retrato fotográfico. In-8º grande, VII e 202 pág. Uma grande parte destes versos fora primeiramente publicada no Século XIX, jornal de Penafiel, em 1864, e outros com o pseudônimo de Carlos Fradique Mendes. (Vid. nº 2).
6. Sonetos (Biblioteca da Renascença, I). Porto, Imprensa Portuguesa, 1881. In-8º pequeno, de 32 pág. e 4 não numeradas. Contém 28 Sonetos coligidos por Joaquim de Araújo.
7. Sonetos completos. Publicados por J. P. de Oliveira Martins. Porto, Livraria Portuense de Lopes e Cia. — Editores. 1886. In-8º pequeno; 48 pág. de introdução por Oliveira Martins, e 126 de texto. — Contém a coleção dos Sonetos da Biblioteca da Renascença, e todos os Sonetos dispersos pelas outras obras de Antero, à exceção de 5 Sonetos desprezados (Vid. nº) e do Soneto Acusação (Aos homens de sangue de Versalhes em 1871), que vem nas Odes modernas, a pág. 167 (Vid. nº 4).
____ Segunda edição. Porto, 1891. Acrescentada com a tradução alemã do Dr. Wilhelm Storck, e algumas versões italianas.
8. Cadências Vagas. Separata dos versos coligidos por Joaquim de Araújo para o volume dos Raios de extinta Luz. Lisboa, Tipografia da Academia real das Ciências, 1892. In-16º, VIII e 72 pág. (Tiragem restrita).
9. Raios de extinta Luz. Poesias inéditas (1859-1863) com outras pela primeira vez coligidas. Publicadas e precedidas de um Escorço biográfico por Teófilo Braga. Lisboa. M. Gomes. Livreiro-Editor, 70, Rua Garrett (Chiado), 72. Tipografia da Academia real das Ciências, 1892. In-16º, de XLVIII pág. de introdução, e 258 pág. de texto. Entram nesta coleção as seguintes:
I. Poesia de Antero de Quental recitada na noite de 13 de maio de 1862, no Teatro Acadêmico, por A. Fialho Machado.
II. A Gennaro Perrelli, Ao artista e patriota italiano. Imprensa Literária (Sem data).
III. À Itália. Poesia de Antero, recitada no Teatro Acadêmico por A. Fialho Machado, na noite de 22 de outubro de 1862. Coimbra, Imprensa Literária.
IV. Zara. Poesia. Imprensa portuguesa. Porto. Folha solta, com restrita tiragem para as pessoas da família do Dr. António Joaquim de Araújo.
V. A casa do Coração. Impressa sobre um fundo litografado, com o retrato de Antero, e distribuída no Sarau da Liga das Artes Gráficas, no Porto, em honra do ilustre morto.
________
ORDEM PARA UMA EDIÇÃO DEFINITIVA DAS OBRAS POÉTICAS COMPLETAS DE ANTERO
I. Raios de extinta Luz (1859 a 1863).
II. Primaveras românticas (1863 a 1865).
III. Odes modernas (1865 a 1871).
IV. Sonetos completos (1860 a 1884).
PALAVRAS ALADAS
Raios de extinta luz, ecos perdidos
De voz que se sumiu no espaço absorta —
Meus cantos voarão de idade em idade,
Como folhas que ao longe o vento espalha.
Não sabe a folha já mirrada e seca,
Que um sopro do tufão levou revolta,
Que outro sopro talvez desfaça em breve —
Não sabe a triste o ramo onde nascera,
A seiva que a nutriu, quando inda bela,
O tronco que adornou com verde gala,
E onde entre irmãs folgou por tarde amena?
Soltos do tronco, sem calor, sem vida,
Filhos órfãos que um seio não aquece,
Um seio maternal ébrio de afetos,
Meus cantos voarão de idade em idade,
Como folhas que ao longe o vento espalha.
Mas se alguém, vendo a folha abandonada,
Lembrar e vir na mente o tempo antigo
Em que bela, vestindo pompa e galas,
Brilhou rica de seiva e luz e vida;
Se na mente sonhar a pura essência
Que animara esse pó aí revolto;
Se corpo der à sombra fugitiva,
E a voz unir ao eco, e o foco ao raio;
Se alguém souber do canto o sentir íntimo,
Oh, esse há de entender a vida, a crença
Dessa alma que animara outrora o canto.
Se alguém tiver no peito a urna mística
Onde o Amor se recolhe, esse há-de amar-me;
Se livre, por tiranos não comprado,
Pulsar um coração, esse comigo
Há-de a aurora saudar do novo dia;
Se uma alma recordar a eterna pátria
Que lhe dera o Senhor, do céu saudosa
Comigo a Deus num hino há-de elevar-se.
Aos mais será mistério o canto e a lira,
À Liberdade, a Amor e a Deus votada:
E já, soltos do tronco onde medraram,
Meus cantos voarão de idade em idade,
Como folhas que ao longe o vento espalha.
Coimbra, novembro, 1860.
LAÇO D'AMOR
A poesia As Estrelas apareceu pela primeira vez publicada na segunda parte da Beatrice (p. 27 a 31), mas sem título, e com a epígrafe Excelsior. O poeta leu-ma em 1861 com o título As Estrelas, como uma das suas melhores Odes. No manuscrito que possuo tem a data: — Figueira, Setembro — 1860; não apresenta variantes apreciáveis da edição do 1863, por isso a não reproduzimos.
T. B.
Ao amigo Santos Valente enviando-lhe para o seu Álbum a poesia AS ESTRELAS
Que hei-de dar de melhor? Ai, nestes tempos
De pobres afeições, de tíbias crenças,
— Fonte que os sóis do estio têm secado —
Aonde há fé tão viva, que trasborde,
Enchendo um peito noutro peito amigo?
Que esperanças cá da terra há hi tão firmes,
Tão ricas de futuro, que dois seres
Possam firmar-se nelas sem receio
E abandonar-se todo ao seu arrimo,
Qual braço de mulher em braço de homem?
E quem pode encontrar-se em igual via,
E ir, com norte igual, seguir seu rumo
Quando tantos caminhos vão cruzando
Nestes tempos o mundo do espírito?
Ah, neste sec'lo, amigo, solitário
Cada qual segue triste a sua estrada,
Caminheiro de um dia, e silencioso,
Contando, como o avaro, os tristes restos
Das suas ilusões, das suas crenças,
A si pergunta o que ficou de tudo;
Olha as bandas longínquas do horizonte
E de novo interroga, em desalento,
Se o futuro lhe guarda alguma esp'rança,
Se o abismo é o termo da jornada?!
Se lá de longe em longe alguma tenda,
Se uma fonte que ensombra alta palmeira.
Lhe alveja no deserto; se inda um pouco
Lhe repousa a cabeça afadigada,
Não faz, crente no Deus que o tem guiado,
A oração da noite, a ação de graças
E, antes que cerre as pálpebras, medita…
No repouso só busca o esquecimento:
Dorme o sono agitado de uma noite
Sob a tenda que o acaso lhe depara;
De manhã, sem levar uma saudade,
Sem as deixar também, ei-lo seguindo
Do fatal peregrinar a longa via.
Que lhe importa o passado ou o futuro?
P'ra dor que sofre em si tudo é presente,
Aqui, ali, em toda a parte o punge…
Quem lhe dera esquecer, não recordar-se…
Orações? são incenso cujo aroma
É de lágrimas… e as dele se hão secado!
Orgulhoso na dor, da dor o orgulho
Fá-lo erguer solitário e silencioso,
Como se ergue o granito no deserto
Ermo, nu… se medita… e só consigo.
Assim vai cada qual seguindo o rumo
Que o acaso ou o fado lhe depara:
Quem se pode encontrar? que laço estreito
Há que os aperte? Ideia ou sentimento
Aonde em crença igual juntos comunguem?
………………………………….
………………………………….
………………………………….
Contudo Deus existe! e nós, seus filhos,
— Ingratos — se numa hora o olvidámos,
Dentro temos a voz de eterno brado!
Quem pode renegar seu pai? Nós somos
Como esse Adão oculto no arvoredo
Que não quer responder a quem o chama:
Porém se a voz do pai clamou três vezes,
Não pode resistir — ”Eis-me presente.” —
Dissidentes no mais, Deus nos reúne:
No ímpio, ou crente, em todos Deus existe
E todos chama a si, e a todos ama.
Nós somos como rios que descendem
De vária serra, e em vário leito correm:
Mas, que importa? essas serpes tortuosas,
Após rodeios mil, após mil voltas,
Vão todas dar no mar; some-as o Oceano.
Que importa a crença vária e o vário afeto?
Este laço de amor a todos une:
— Existe um Deus que é Pai; somos seus filhos.
Coimbra, maio, 1861.
III
FORÇA — AMOR
O que destrói os mundos,
E dá que os mar's frementes,
Em volta aos continentes,
Cavem abismos fundos;
Sem luz, amor, encanto,
Se envolva em negro manto
Aonde o mal se acoite;
E deu ao lábio o riso,
À planta o pomo liso.
Seio de mãe ao filho;
Do amor, da luz, do afeto,
O que sustenta o inseto
E a planta desvalida;
— Em densas trevas morre,
E disse ao vento — corre,
Assola, espalha, arranca;
De puro incenso, fumo;
E deixa, em mar sem rumo,
O homem lutar co'a sorte;
Do amor o foco imenso,
Que abrasa em fogo intenso,
Se à mente nos acode;
Mandar a morte e o pranto,
Em vez do doce encanto,
Que imenso amor revele!
— Espirito infecundo —
Espalha sobre o mundo
Estas vinganças sevas.
Daquele seio imenso,
Só manda à terra o incenso
E o bálsamo que a lave!
………………………………….
— ”Estranhas ver a morte?
De vida andas repleto:
O Deus, o Deus do afeto
Também é o Deus forte:
— Envolto em sonho aéreo —
O revolto mistério
De mais revoltas horas! —
IV
PAZ EM DEUS
…pax hominibus bona voluntate.
O Deus que me criou pôs-me no peito
Um tesouro tão rico de esperança,
Que não há quem mo roube ou quem mo gaste;
E pôs-me n'alma fonte tão perene
Daquele Eterno-Amor, que de lá desce,
Que não há sol ou calma que ma seque.
A fonte que nasceu em solo árido
Se um dia murmurou, morreu no outro;
Mas a que vem dos montes, que o céu tocam,
Descendo lentamente e sem ruído,
‘Té que brota entre as flores da campina,
Essa não morre com a luz de um dia…
Fonte de puras águas abundantes,
Traz do céu sua origem. Lá se esconde,
Entre nuvens, o foco que a alimenta:
Eterna, como o céu donde partira,
E serena, como ele, a paz e a vida,
Como ele, tem no seio e dele manam.
Assim daquele amor. Constante e puro,
Que ardor ou calma ou sol pode secá-lo?
Que pó da terra conspurcar-lhe o brilho?
A maldade dos homens não te mancha,
Oh minha paz, oh minha pomba cândida!
Na terra o caçador te aponta a flecha,
E o tiro parte em vão. Como tocar-te,
Se tão alto voaste, e o dardo apenas
Mediu a meia altura que levavas?
A flecha cai na terra… ao céu tu foges!
Vai pomba imaculada! irei contigo
Abrigar-me também no seio eterno,
Quando um dia o Senhor julgar que é finda
A missão que me deu de aqui servi-lo.
Aqui fica-me a esp'rança que me alente,
Fica a luz que me guia, o Amor, a crença.
E foi Deus quem me deu o meu tesouro,
Como à ave que voa deu a pena,
Que a libra pelo espaço; e ao olho morto
Do ancião, a luz que aponta melhor mundo.
Na assembleia dos homens, se um, olhando-me
Disser — ”Aquele é rei” — irei prostrar-me
Diante do Senhor, abrindo o espírito
À voz que dentro dele Deus murmura;
E Deus vendo-me puro na consciência
Dirá — ”Ergue-te em paz: não és culpado” — !
Se sentir dentro d'alma alguma f'rida
Vertendo sangue e fel, em dor extrema,
Buscarei no Senhor o meu alivio:
E o Senhor, pondo um dedo sobre a chaga,
Dirá — ”Fica-te em paz: estás curado” — !
Oh minha doce paz! por ti se cumpram
Os decretos do Eterno: tu me escuda
Dos tiros que a maldade em mim dispara;
A força do leão põe-me na mente,
A mansidão da pomba dentro d'alma.
Oh pomba ingênua, pomba imaculada,
Filha do céu ao céu voemos juntos.
Janeiro, 1861.
V
NUMA NOITE DE PRIMAVERA
(DO POEMA VASCO)
1º FRAGMENTO
Esta quadra d'amor quanto nos punge,
Com tão doce pungir! Como sorrindo
Nos mata de desejos; nos esmaga
Sob o peso infinito dos anelos,
Que esta vida e mil outras não fartaram!
Esta quadra d'amor, com seus sorrisos,
Quanto nos punge o peito, ai, quanto mata!
Tal é a essência do Amor; tal Deus há posto
Um veneno no mal, na flor um áspide!
Prazer e dor, sereis talvez um único,
Único ser, que nos penetra e abrasa
Num fogo que nos doe, mas que é tão doce?
Punhal, que ferindo o peito, nos consola,
Mas, que a afagar nos vai roubando a vida,
Antegosto do que é o céu e o inferno?
Será isto o amor? será?… quem sabe?
Talvez! Se é laço universal e único
Deve o bem como o mal juntar num todo;
Se é vida é também morte; se é saudade,
É desejo também; e se algum anjo
O criou, há demônio que o perturba;
Se é um sol que nos brilha dentro d'alma,
Também queima e devora, também mata!
E é isto amor? será! será! quem sabe?
De vida mais completa é antegosto,
De melhor existir que além começa:
Talvez! então o amor será a morte?
Triste noiva, é mister esp'rar-lhe a vinda
Para amar e gozar e viver muito?!
Celebre-se o himeneu sobre uma campa:
Aguarde-se a hora extrema, como aurora
De um bem, que além da vida só começa;
E contando os momentos como sec'los,
O primeiro dos dias seja o último…
Mas será isto amor? será!… quem sabe?
Talvez!… Mas quando a lousa funerária
Rangendo, cobre um corpo estremecido:
Quando a terra só pode dar-lhe os osc'los,
Que inda há pouco lhe dávamos convulsos,
Que vem, que vem aos olhos? Vem só lágrimas
E ao peito vem só dor! O luto, o pranto
Se assentam sobre as campas, não a esp'rança!
E será isto amor? será!… quem sabe?
Mas as lousas são frias. Quem pernoita
Na devesa onde só o eterno sono
Se dorme… não! ninguém por lá pernoita!
As dores, como gazes, se evaporam;
No ambiente da vida os ais não podem
Muito tempo ecoar; há tanta lágrima,
Tantas consolações para os que sofrem!
Não duram, não!… a mão que enxuga o pranto
Beija-se… e mais… e mais… encontra-se a alma
Com quem se casa a pobre solitária:
E a outra! a outra lá! partiu-se o laço…
E é isto amor? será! será?… quem sabe?
Feliz do que viaja em mundo novo!…
Triste do que ficou sobre uma lousa
Assentado a chorar: o que é da esp'rança?
Nunca saiu da campa voz amiga
A consolar a dor! Fica-lhe apenas
Um prêmio, triste prêmio! o das lágrimas:
Esse — se foi constante — há-de cingir-lhe
A fronte com a c'roa… do martírio…
E será isto amor? será!… quem sabe?
………………………………….
………………………………….
Será! será! Que importa, se é tão doce,
Se mata com um sorriso, entre caricias!
Vai, razão fria! vai… isto ou aquilo
Que importa seja o amor?! É sempre belo
— Um momento sequer — gozar a vida.
É belo o amor; é bela a vida; é belo
Tudo aonde o Senhor a mão há posto…
E o Senhor fez o mundo! e a ti, ó noite,
Noite de primavera, deu-te estrelas,
Que são almas no espaço a procurar-se;
A ti, mulher, a ti deu-te o mistério
De matar ou dar vida… e a mim, sim! — creio —
Inda há-de dar-me uma hora de ventura!
………………………………….
Oh! dai-me a taça do veneno doce,
Que mata embriagando! Dai-me prestes
Uma taça de amor aonde libe!…
Abril, 1861.
VI
SALMO
(CXXXII DE DAVI)
Do amor é santo o laço!
O forte ao fraco ajude:
Ao irmão mais fraco escude
Do irmão mais forte o braço.
E a graça do Senhor virá sobre eles:
Virá, bem como um óleo perfumado,
Que na fronte de Arão caído, escorre,
Que inunda a barba toda, e vem descendo
'Té que a fimbria da túnica lhe beija.
Virá, bem como o orvalho sobre o monte
Sacrossanto de Hermon, e sobre o cimo,
O cimo de Sion, que Deus amara:
Porque sobre as justas frontes
Dos irmãos que estreita o amor,
— Mais que o orvalho sobre os montes —
Desce a graça do Senhor.
Novembro, 1860.
VII
À BEIRA-MAR
O CREPÚSCULO
Oh! vem Maria! sobre a rocha erguida
Em asp'ra costa, sobranceira ao mar,
Vamos sozinhos ver as brancas ondas
Sobre os rochedos, em cachões, saltar!
Ali, bem juntos, ao cair da tarde,
De mãos trocadas a falar de amor,
Quero, ao contar-te mil segredos d'alma,
Ver-te nas faces virginal pudor.
É próprio o sitio, é propicia a hora,
Incerta, dúbia entre sombra e luz;
Já descem trevas pelos fundos vales,
Inda algum brilho sobre o mar reluz:
Inda no dorso das inquietas ondas
Dourada fita tremeluz, além;
Mas, já ao longe, da campina os viços,
Envolvem sombras que dos montes vêm.
Gigante imenso de esplendor e brilho,
O sol, um instante, viu-se ali nutar;
Depois cansado, declinando rápido
A lassa fronte repousou no mar.
Semelha ao entrar-lhe pelo seio túmido,
Que de mil fogos inda foi tingir,
Medalha de ouro, que em caldeira imensa,
A pouco e pouco visse alguém fundir.
Em tanto a sombra vai descendo os montes
E envolve as terras misterioso véu;
Já se divisa, vergonhosa e tímida,
Pálida estrela tremular no céu:
Como em teu seio, pura virgem, nasce
Ligeira mágoa de fugaz pesar,
Que vai crescendo, e transmudada em lágrimas
Te vem dos olhos nos cristais brilhar:
Como nos brota dentro de alma, e lavra
A pouco e pouco no veloz crescer,
Algum afeto que em paixão tornado
Nos vem no peito com fulgor arder:
Assim da estrela nasce o brilho, e cresce
A pouco e pouco pelo céu de anil;
Ponto luzente, no começo apenas,
Por fim brilhante, entre safiras mil.
Soidão calada pela terra alarga-se
Preludio augusto da noturna voz;
Em doce enlevo, cisma o homem ‘stático
Em Deus, consigo meditando a sós.
Hora saudosa de incerteza mística,
De luta harmônica entre sombra e luz.
Por ti nos desce sobre o seio ardente
A santa crença que p'ra Deus conduz!
Hora em que é grato no regaço amigo
De alguma esperança de melhor porvir,
Olvidar mágoas de um presente incerto,
E, esp'rando, e crendo, nessa fé dormir.
Em que amor gera dentro de alma os laços
Que as almas ligam com estreito nó,
E que no arroubo de amoroso rapto
Funde dois seres numa vida só.
E eu também quero sentir n'alma os íntimos
Celestes gozos que esta hora tem;
Em livro aberto ler um nome augusto
Que em letras de ouro vejo escrito além.
Que é minha esp'rança de melhor porvir,
Quero estas mágoas ir depor e apenas
Guardar um peito para amor sentir.
E antes que as terras iluminem fogos,
Com a luz divina que o Senhor lhe deu;
E antes que morram esses brilhos últimos
Do sol nas dobras do noturno véu;
Quero ao soído gemedor das ondas
Casar as mágoas deste imenso amor,
Ardente e puro, como aqueles lumes
Candentes focos de vivaz fulgor.
Quero nas horas do crepúsculo ameno
Sobre o rochedo sobranceiro ao mar,
Aos pés da virgem que escolheu minha alma
Ler-lhe nos olhos confissões sem par.
VIII
ASPIRAÇÃO
Porque é que minha alma anseia
De visões e mágoas cheia,
Porque ao longe devaneia
Minha mente sem cessar?
Porque à tarde, em fins do dia,
Ao cair da maresia,
Vou sobre a costa bravia
Mágoas carpir sobre o mar?
— Já de há muito à mágoa afeito —
Nesse momento imperfeito,
Misto de trevas e luz,
Quando tudo, ao longe e ao perto,
Se veste de um brilho incerto
E eu, desta alma no deserto,
Só diviso a paz na Cruz?
Porque ao murmúrio das fontes,
Quando a sombra desce os montes,
Fito o olhar nos horizontes
E fico mudo a cismar!
Porque à noite, à lua cheia,
“Por noites da minha aldeia”,
Choro e riu e devaneia
Meu agitado pensar?
Oh! quem é que assim me inspira
À mente que me delira,
Ao coração que suspira
Alívios, consolo e paz?
Quem faz que além desta vida
Veja uma outra prometida
E anseie essa pátria querida,
Não esta pátria falaz?
— Que tal ouvir não encerra —
O que este peito descerra
Num hino de tanta fé:
Eu cismo ás vezes de amores,
Porém são outros ardores,
Outros são os seus fervores,
Outro amor que este não é…
Que me acodem à memoria
Como a visão ilusória,
Que brilha e que se desfaz:
De ouro e nome tenho sede; —
Do poder aspiro à sede…
Mas toda esta gloria cede
À gloria de luz e paz!
Que aqui dentro anda secreto,
Como de vaso repleto
Trasborda puro o licor!
Oh! inunda-me este oceano
De um amor tão sobre-humano,
Tão puro de todo o engano…
Que nem sei se é isto amor!
Aonde a alma me descansa
Em pura e santa bonança,
Tão bafejada de Deus,
Que não pode — eu bem o vejo —
Descender-me este desejo
Senão da pátria que invejo…
Oh! esta esp'rança é dos céus!
És tu Senhor que me inflamas
Naquelas ardentes chamas,
Que me dão tão pura luz!
És tu, oh Pai! que da altura,
Olhando a minha amargura,
Me estendes a mão segura,
A mão que a ti nos conduz!
Guiada por luz ingente
Desse fanal que não mente,
Já p'ra ti desprende o voo…
Oh! quem tem essa luz querida,
Não tem outra prometida,
Não pode amar outra vida…
Senhor! eu busco-te… eu vou!
IX
A PIRÂMIDE NO DESERTO
Além na solidão, sobre os desertos,
Tu só te ergues altiva e apontas céus;
E deixas, sobranceira ás tempestades,
Rugir de um mar de areia os escarcéus!
Tu só! Quem te criou? Mistério imenso
Ao nascer te encobriu, te envolve o ser…
E agora eis-te, rival das serranias,
Como elas condenada a não morrer.
Tu só! Além, na extrema do horizonte,
Passa o Árabe no auge do furor,
Luz-lhe na mão o alfanje, o olhar fuzila,
Vão com ele em tropel morte e terror!
Mas lá surge do acaso arroxeado,
Ao mando de medonho furacão,
Nuvem de ardente pó que rui sobre ele,
Que o sepulta em deserto, árido chão.
Mas tu sorris ás fúrias da tormenta,
Não temendo arrostá-la inda uma vez,
E ela, a que troou pelos espaços,
Vem tremendo morrer-te aí aos pés.
Do cimo sublimado, erguido ás nuvens,
Vês os sec'los nascer, ruir no pó;
E em meio da ruina dos impérios
Ficas tu, ó gigante, eterno e só!
Além, nesse deserto a quem assombras,
Que vidas, que paixões se hão revolvido!
E a todas o deserto, qual sudário,
Nas dobras da mortalha há envolvido.
Um nome ou um lugar na solidão:
Dizer — Ali, Palmira foi cidade —
— Aqui, foi um herói Napoleão. —
Tu só podes dizê-lo. Quem mais sabe,
Que pó envolve agora o que morreu?
Quem pode diferençar, num mar infindo,
Um pó de um outro pó que o envolveu?
Só tu! Na solidão, sobre os desertos,
Tu só te ergues altiva, e apontas céus;
E deixas, sobranceira às tempestades,
Rugir de um mar de areia os escarcéus!
X
DESALENTO-CONFORTO
DESALENTO
A Sorte, amigo, a sorte é dura ás vezes!
Agora nos afaga e nos alenta;
E logo nos oprimem seus revezes…
Após leda bonança vem tormenta;
Sucede a noite escura ao claro dia,
E ao rápido prazer a mágoa lenta!
Assim de minha ardente fantasia
Aos sonhos perfumados de venturas
Que a beijar-me a fronte eu já sentia,
Ai! seguiram-se tristes amarguras
Que a vida a pouco e pouco vão comendo;
Deixando espinhos só onde as verduras
Eram brandos aromas rescendendo!
Alberto Telles
CONFORTO
(PARÁFRASE DO SONETO ANTECEDENTE)
A Sorte só p'ra o fraco é dura ás vezes!
P'ra o forte, que a virtude e crença alenta,
P'ra esse não há sortes nem revezes…
Porque após da bonança vem tormenta,
Porque a noite sucede ao claro dia,
É força definhar em mágoa lenta?
Não! que aos males, que gera a fantasia,
O sábio opõe as intimas venturas
Da virtude e da fé que em si sentia.
Não chores mais, poeta, as amarguras
Que só os bens da terra vão comendo:
A consciência é jardim onde as verduras
Mil perfumes p'ra o céu vão rescendendo.
XI
A SENDA DO CALVÁRIO
Ave, Christus!
Deixai, deixai passar o homem forte,
O ungido do Senhor;
Se a cruz que arrasta agora é cruz de morte
Também é cruz de amor!
Deixai! na praça o povo aglomerado
Vomita a injuria ali;
E ele, sereno o rosto e resignado,
Olha o céu, e sorri.
Sorri… não fero riso de desprezo
Que ao passar pelo lábio perde o encanto,
Mas riso que transluz por entre o pranto
Ao que da cruz de amor arrasta o peso.
Sorri… Que mais importa ao homem forte
Ou desprezo ou louvor,
Se da estrela seguiu, que foi seu norte,
O mágico palor?
Tem dentro, como em erguida fortaleza,
A fé, voz que lhe vai bradando — ”Avante!
É teu premio o opróbrio do ignorante,
De tal morte morrer, tua grandeza! — ”
E diz, vendo a consciência onde serena
Lê a imagem de Deus,
E do futuro vendo a praia amena:
— ”Posso subir aos céus!
Posso agora, depondo em terra o peso
Da missão dolorosa desta vida,
Buscar a pátria minha prometida,
Donde o divino amor transluz acesso. — ”
Ai pode! Herói, e mártir, deixa a terra,
Que é cumprida a missão:
O Mundo o teu preceito guarda e encerra
Na mente e coração…
Morres tu; mas a ideia que deixaste
Não morre, como a luz em fim do dia,
Nem o fogo do céu que em ti ardia,
Nem o exemplo sublime, que legaste!
Oh, mártir! cada lágrima chovida
Nessa senda de dor,
Conquista mais um espírito p'ra vida,
Para a luz do Senhor;
E um dia (e talvez cedo venha o dia)
De cada dor que aí te curva agora,
Nascerá qual da noite nasce a aurora
Um mundo de verdade e de harmonia!
………………………………….
Deixai, deixai passar o homem forte,
O ungido do Senhor;
Se a cruz que arrasta agora é cruz de morte,
Também é cruz de amor!
S. Miguel, julho de 1859.
XII
A JOÃO DE DEUS
DEPOIS DE LER A SUA POESIA
Fique em silêncio eterno a minha lira;
Pomba do céu tu vai; Deus te bem fade,
Nesta alma em teu lugar guardo a saudade,
Se a essência sobrevive à flor que expira.
………………………………….
Foi o canto do cisne, o canto derradeiro
Daquela augusta voz que se esvaiu no ar;
Adeus da terna amante ao seu amor primeiro
Que eterno ela julgou, mas cedo viu findar;
Último adeus de quem, há pouco ainda crente
— Numa hora apenas — vê, qual sombra na corrente,
Morrer-lhe as ilusões co'a morte desse amor
E triste se envolveu no véu de uma erma dor.
Sofreu da soledade… E onde há hi um peito
Que não sofra também, ainda ao mal afeito?
Sofreu da soledade em que a alma lhe ficou,
Depois que ao longe e triste o eco se finou
Daquela única voz, que ainda repetia
A sua voz, bem como, à tarde em fins do dia,
A nuvem que passou reflete um raio ao sol,
Que mesmo oculto a tinge aos fogos do arrebol.
Sofreu quando da sorte a mão pesada veio
Poisar-lhe sobre o peito e comprimiu ali
A ânsia que animara o arfar daquele seio,
Seio que só bateu — poesia! — amor! — por ti!
E ele então disse: “Aqui deponho a minha lira:
Se esta alma a outros céus, a outra pátria aspira,
Se esta ânsia infinita não posso aqui fartar,
Que val' — eco sem voz — que val' o meu cantar?
Val' mais que eu, em silêncio, espere o grande dia,
Cuja aurora imortal, em luz, em poesia,
Me há-de envolver, e assim levar-me àquele céu.
Céu do que amou, creu, esperou e sofreu.
Entanto — esp'rando — viva em silêncio profundo,
Deixando em vão rugir, — qual voz do mar — o mundo;
Aqui guardo a saudade, esse talismã só,
Como da flor já seca inda se guarda o pó. — ”
Cobriu o rosto após co'o manto da tristeza;
O sol daquele céu fugiu ao longe… além…
E a noite sem luar, sem brilho, sem beleza
Ao negro que ia lá veio ajuntar também.
………………………………….
………………………………….
Poeta, essa não é tua missão. Curvar-se
Um momento é do homem; porém não prostrar-se
Gemendo em desalento, e face contra o chão,
Como quem aceitou da dor a escravidão.
Poeta é quem tem fé, quem busca no futuro
A crença que lhe nega este presente impuro:
Não quem deixa cair a lira, não quem vai
Pedir ao desalento abrigo e amor de pai.
É virtude sofrer, nunca perder a crença;
É ter esp'rança tal que a dor mais crua vença;
É não pedir seu prêmio aos homens, mas a Deus,
E passar neste vale, o olhar fito nos céus.
Tal é tua missão: — Lutar! O sofrimento,
Ao pé do eterno bem, o que é mais que um momento?
Coimbra, Março, 1861
Como a poesia de João de Deus citada na epígrafe da p. 73, não foi incorporada nas coleções das Flores do Campo e Folhas Soltas, transcrevemo-la aqui para inteligência do texto dos nossos cadernos manuscritos de Coimbra, notando as variantes da primeira estrofe.
ADEUS
Fique em silêncio eterno a minha lira;
Vai, eflúvio de Deus! Deus te bem fade:
Nesta alma, em teu lugar fica _a saudade,
Se a essência sobrevive à flor que expira.
Dizer-te adeus! não pude; quando ocorre
Tal voz ao lábio, o lábio empalidece,
Como a nota da lira nos falece
Ante a lua que cai, e o sol que morre:
Ante o sopro que varre o cedro e o vime,
Ante o sublime aspecto do oceano,
Ante a esposa do mártir sobre-humano,
Ante tudo o que é grande e que é sublime.
Embora!… quando a lâmpada crepita
Já falta d'óleo, languida esvoaça;
A nuvem estala; ruge a onda e passa,
Guarda silêncio a abobada infinita.
XIII
PER AMICA SILENTIA LUNAE
Guardai in alto………….
………………………………….
I
Eu amo a noite ás horas sossegadas
Que o Senhor manda à terra, como bálsamo
A tanta dor que a punge, e o sol do dia
Parece escarnecer com tanto brilho,
Nem sabe respeitar; quando o silêncio
Com manto protetor envolve os tristes,
Os que choram saudades; quando o orvalho
Refresca o seio à flor, e em cada balsa
A viração perpassa suspirando;
Quando é mais puro o ar, mais doce a brisa,
Mais sumidos, mais vagos os rumores,
E detrás da montanha, saudosa
Como a virgem dos sonhos, surge a lua.
II
Eu amo então a noite. — Paz e esperança
A quem sofre, buscando algum alívio;
Ao feliz exultando de alegrias
A lembrança de Deus a quem as deve;
A quem descreu de achar inda na terra
Ventura que lhe foge… o olvido ao menos;
A toda a crença um exultar de afetos;
A todo o desconforto, uma esperança;
A toda a natureza, amor e vida;
Eis o tesouro santo que nos abre
— A nós e ao mundo — a noite, eis seu tributo.
É doce então abrir os seios d'alma
Aos eflúvios do céu: flor que hão crestado
Ardentias do sol, e ainda tímida
Palpitando entre o susto e a esperança,
Retoma agora aos poucos novo alento
Ao sentir-se segura, e abrindo o cálix
Estremece de amor a cada gota
Dos orvalhos do céu: como que a vida
Solta de tanto laço que a comprime,
Como gás que ao calor se há dilatado,
Se expande livre agora e cresce e absorve
Em si mil harmonias, mil poderes
Que esse universo tem: como as correntes
Ocultas, que os oceanos comunicam,
A natureza e o espírito permutam
Simpatias e forças, em que a alma
Mais cresce e mais compreende, e mais abrange,
E neste permutar de força e força
Quase na vida universal se funda.
III
Passa a lua; do alto olhando a terra
Procura o triste por lhe dar alívio;
Perpassa a viração e busca do ermo
A florinha minada que refresque;
Corre manso o regato, e banha a erva
Que um pé calcou, e o sol deixou crestada;
Tremula a estrela, símbolo de esperanças,
Enviam-se harmonias as esferas;
Tudo amor, tudo afetos comunica;
E o espírito do homem busca livre
Da sob'rana harmonia a eterna fórmula,
Do eterno amor o foco, a pátria sua.
Lembranças de um viver já pressentido,
Ou memorias — talvez — de uma outra vida,
Que nos relembra vaga, e como em sonhos,
E sobre o fundo desta se destacam
Como pela penumbra um vulto incerto…
Aspirações, memorias, ou saudades,
O que nos enche o peito e nos enleva
Como um sonho de amor — e mais ainda —
Senão este mistério do futuro,
Esta atração do ser a vida nova,
Que se foge e se busca e nos revela
A vida universal, então sentida
Mais forte na harmonia do Universo?
IV
Busca-se, anseia-se, e o alvejar da campa
Mais que o sorriso de uma amante é doce;
A lembrança da morte mais que a esp'rança
Do poder ou da gloria nos enleva;
Terrores, incertezas se dissipam,
E sem saudade, sem temor se anela
Mais mundo, mais espaço, e viver novo!
V
E quem pode temer? Teme o que um dia
Sonhou na mente uma ambição terrena
E mais não vê por todo esse universo,
E além dele não vê sublime e grande:
O, que engolfado nos prazeres do mundo,
Esqueceu o seu Deus e seus destinos
Nem sonha mais ventura além da campa:
O que pungido por cruel espinho
De uma dúvida atroz, sente a cada hora
Cair-lhe a uma e uma cada crença
De sobre alma, deixando-a erma e nua,
Como as úmidas pregas de um sudário,
Aos poucos desdobrado, deixam ver-se
Os descarnados membros do cadáver.
VI
Mas quem se assenta ás horas do mistério,
Entre as flores do prado, ou sobre a encosta
Da colina virente e olhando a lua
Que banha em luz a esfera cristalina,
Inveja quem habita nesses mundos…
E fita o olhar por esse espaço, e cuida
Sondar-lhe o infinito; quem anela
Desvendar-lhe os mistérios e buscando
A região que se sonha e não se avista
Dá-la por pátria à sua alma… oh! esse
A viagem não teme, antes anseia,
Quebrada a forma deste ser, alar-se
Em busca de outra mais perfeita, e sempre
De degrau em degrau, de esfera em esfera,
— Metempsicose eterna! — sublimar-se
Na progressão deste ascender constante
Da parte ao todo, do mortal principio
Em busca de um futuro inatingível,
Porém melhor cada hora, e a cada passo.
E quem pode temê-la, essa viagem,
Quando fitando o olhar no alto, avista
Banhado em luz o espaço imenso e puro,
Patente e franca a estrada do Universo,
E como que visível o infinito?
Quando tudo no céu e pela terra
Parece, como irmão, dar-nos confiança
Em nós e em si para seguir avante?
Quando se sente palpitar no seio
Não só já a mesquinha vida própria
Mas todo o grande ser do que é criado?
Quando nas aras do Universo, o espírito
Comunga, como irmão, na mesma crença,
Com tudo quanto vive, e a mais aspira,
Ah! quem pode temer, noite de encanto,
Noite pura e sagrada ao Deus de afeto,
Protegido por tua luz amiga,
A aspiração dos imortais destinos.
Um pouco mais ao peregrinar constante,
A entrevista do infinito e do homem?
VII
Por ti, noite de amor, por ti nos desce
Tanta ventura ao seio; e como o orvalho
Que o pó da terra ressequido e árido,
Que o vento impele, fixa sobre o solo
E como que consola e alivia,
Assim como teu eflúvio o triste espírito
Que incerto das paixões refoge à dúvida,
Numa crença fixaste — a crença eterna
Do amor universal, todo harmonias,
Porque és afetos toda! Em cada balsa
Descanta um rouxinol; a cada rosa
Uma brisa osculou; em cada fonte
Brilha um raio da lua; em cada peito
Murmura um eco que de amor só fala!
NA PRIMEIRA PÁGINA DO INFERNO DO DANTE
(C. C. P. P.)
Este é o livro das vinganças nobres,
O inferno dos que têm o céu na terra:
Nem vingança; justiça.
— Oh vós que as lágrimas
Trazeis sempre nos olhos, sem que sequem,
Lázaros no banquete da existência,
Oh filhos do dever! lede este livro,
Porque através de um mundo de misérias,
Do largo peregrinar chegando ao termo,
Heis-de ouvir, lá das bandas do futuro,
A grande voz do Cristo, a voz eterna,
Erguer-se sobre os filhos da verdade:
“ — Felizes dos que sofrem — terão prêmio:
Feliz do pobre e triste, órfão de afetos,
Será rico: no céu seu pai o espera!”
Coimbra, dezembro, 1861.
DANTE — DIVINA COMÉDIA
PURGATÓRIO, CANTO VI)
Oh Itália aviltada! Oh não sem rumo
No meio da tormenta!
E era esta a rainha das províncias?
Hoje… cloaca informe!
Outrora mal bradasse: — ”Pátria, Pátria!”
Um cidadão, um filho,
Alma nobre — acolhia-lo no seio
No seio que lhe abrias!
Agora espreita cada um o peito
Do vizinho e olha o gladio:
E os que estreita no cinto o mesmo muro
E o mesmo fosso… comem-se!
Alonga, alonga, oh triste, pelas praias
Teus olhos macerados;
Desce-os, desce, infeliz, ao próprio seio…
A paz! onde a encontraste?
Julho, 1862.
MOMENTOS DE TÉDIO
SONETOS
I
Sinite parvulos ad me venire
Ventura! aurora d'outro eterno dia —
Amor — Verdade — Bem — Quanto desprende
Seu voo cá da terra e quanto estende
Azas no céu, só busca esta harmonia,
E as alturas fechadas! tudo esfria
E morre, lá por cima, e não se entende…
Certo é que o fruto só p'ra terra pende,
Parece que p'ra terra a luz se cria!
Há tanto quem sem luta espere havê-la!
Sem se erguer, quedo o mundo, cuide vê-la…
Talvez, se assim quedasse, a possuísse!
Chama-se isto voar! Toda essa altura
Dava-a bem por uma hora de ventura…
Antes minha alma não voasse… e visse!
A UM CRUCIFIXO
(Primeira elaboração do Soneto de p. 20 dos Sonetos Completos)
Dieu n'est pas! Dieu n'est plus
Há mil anos, oh Cristo, ergueste os magros braços,
E clamaste da cruz: “Há Deus!” e olhaste, oh crente,
O horizonte futuro, e viste em tua mente
O alvor do céu banhar de luz esses espaços!
Porque morreu sem eco o eco de teus passos?
E de tua palavra (oh Verbo!) o som fremente?
Morreste! ó dorme em paz: não volvas, que descrente
Arrojaras de novo à campa os membros lassos!…
Há mil anos! há mil! Que é dela a tua esp'rança?
Ainda, como então, Amor — traduz — Vingança,
E é o int'resse glacial das almas o sudário!
Ainda, como então, viras o mundo exangue?
E ouviras perguntar: “De que serviu o sangue
Com que regaste, oh Cristo, as urzes do Calvário?!”
Coimbra, Novembro, 1862.
_____
VARIANTE DO 2º TERCETO
Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário.
DECOMPOSIÇÃO
“Eu não sou dos que a pátria só adoram”
Como adora o regato a própria serra:
Deus numa gleba apenas não se encerra;
Se visita esses mundos, que demoram
De céu a céu, também cafres o imploram.
Mas deixai que uma lágrima sincera
Possam os olhos dar, olhando-a, à terra
De onde a primeira vez aos céus se foram.
Sim, ver-te, Portugal! eu choro ao ver-te!…
Como ao Leão gigante do Ocidente
Lhe cai a garra, e em nada se converte!…
Não é isto o que eu choro: o que me dói,
É como aquela juba omnipotente,
Em penas de pavão se decompõe!…
NIHIL
Homem! Homem! mendigo do Infinito!
Abres a boca e estendes os teus braços
A ver se os astros caem dos espaços
A encher o vácuo imenso do finito!
Porque sobes à rocha de granito?
Porque é que dás no ar tantos abraços?
E cuidas amarrar com férreos laços
Um reflexo da sombra de um esp'rito?
Vê que o céu, por escárnio, a luz nos lança!
Que, à tua voz, a voz da imensidão
Responde com imensa gargalhada!
A ideia fechou a porta à esp'rança,
Quando lhe foi pedir gasalho e pão…
Deixou-a cara a cara com o Nada!!…
QUINZE ANOS
(Primeira elaboração do Soneto de p. 30 dos Sonetos Completos)
Eu amo a vasta sombra das montanhas
Que estendem sobre os largos continentes
Os seus braços de rocha negra, ingentes,
Bem como braços colossais de aranhas.
Dali o nosso olhar vê tão estranhas
Coisas, por esse céu! e tão ardentes
Visões amostra o mar de ondas trementes
E as estrelas, dali, vê-as tamanhas.
Amo a grandeza tenebrosa e vasta:
A grande ideia como um grande fruito
De um'árvore colossal que isto domina;
Mas tu, criança, sê tu boa… e basta,
Sabe amar e sorrir… mulher, é muito…
Mas a ti só te quero pequenina…
SARCASMOS
Está deserta a estrada do Infinito,
É apenas o céu do nada espelho,
A eternidade é fóssil: Deus é velho,
E o homem olha o céu de fito em fito!
A cruz de Cristo está feita um palito,
Embrulham-se caminhos no Evangelho;
Cada qual dá a Deus o seu conselho:
Nem já é Verbo o verbo… é só um Dito!
Nada disto me dá a mim cansado;
Mas morrer Satanás também de frio…
Mas não haver já mal que se combata…
Não poder já ao demo um condenado
Render a alma imortal… por desfastio…
É isto o que me dói, o que me mata!…
AMOR DE FILHA
(NO ÁLBUM DE UMA SENHORA)
e as Mães a fonte dela…
Ainda a trabalhar, dedos formosos!
Nem tanto afinco: Deus também não quer
Que se cumpra o preceito tanto à letra;
Preceito é trabalhar, não que se estraguem
Esses formosos dedos de mulher.
Já o sol se escondeu atrás da serra,
E o bordado não cessas de bordar;
Quando abri de manhã esta janela,
Já lá estavas no posto, de olhos roxos,
Como se foram roxos de chorar!
Forte trabalho! não me enganas, bela!
Bem sei eu quem te dá tamanho ardor…
Pois nem um olhar a quem passou na rua,
Dizendo: — É bela! e olhando-te? nem isso?…
Ai tanto trabalhar! só por amor…
Que importa o que passou? no peito um nome
Te domina, e na mente uma imagem só…
Feliz cabeça, que há-de ornar em breve
O bordado gentil em que trabalhas
Com esse afinco, que causou meu dó.
Feliz! sim; que lhe guarda aquele peito
Largo e rico tesouro de afeição;
Pois magoar estes olhos, e estes dedos
Formosos estragar — homem ditoso —
Só faz o amor que vem do coração!…
Tu, que talvez repouses no ócio brando,
(Se não corres talvez de flor em flor)
Vê tu que sacrifícios imerecidos!…
Mas um menino cego é quem nos vence,
Que a isto e a mais obriga o louco amor!
………………………………….
Mas, não! Quem lá no fundo, meio oculto
Entrevejo na sombra, como quem
Teme do dia a luz — luz orgulhosa,
Luz que ao feliz afaga, ao triste aflige —
Quem triste e só, se oculta mais além?
Quem, se o dia findou, recebe o beijo
E outro recebe logo que é manhã?
Quem — enquanto a alampada noturna
Alumia a vigília — sente em sonhos
Uma lágrima de amor molhar-lhe as cãs?
Perdão, mulher! e mais que mulher, filha,
Perdão! louco julguei e ímpio também,
Que tinhas outro amor: como se possa
Ter uma filha amor ou pensamento
Que todo não pertença a sua mãe!
Feliz, quem — pobre — tem um tal arrimo;
Quem — cega — pode ver uma tal luz:
Quem — cega e pobre e triste e desprezada —
Tem uma mão de filha que piedosa
‘Té aos degraus do tumulo a conduz!…
………………………………….
É nobre o teu trabalho, mulher bela —
Bela daquela luz que vem dos céus,
A quem nas aras da fiel piedade
Sacrifica ilusões da mocidade
E segue o seu caminho crente em Deus!
Nem mais um riso, amigos! Respeitemos
O que ela faz ali com tanto ardor;
Não são enfeites vãos, do prazer sócios,
É o pão de uma mãe que ali granjeia,
Trabalha por amor… mas outro amor.
Trabalha e enxuga o pranto à velha enferma:
Trabalha noite e dia; é Deus que o quer:
Que importa à filha, quando a mãe lhe sofre,
Que o sol nasça ou decline, ou que se estraguem
Os seus formosos dedos de mulher?
GARGALHADAS
(NO ÁLBUM DO SEU CONDISCÍPULO DR. JOSÉ BERNARDINO)
Bem é falar de tristezas
Por estes tempos de risos,
Em que passa a Gargalhada
Na face dos paraísos,
Forte — mas triste, mas frio —
Que leva as folhas co'as flores,
Como as enchentes do rio.
Desde a rocha até à flor,
Desde o amor da virtude
'Té à virtude do amor.
Que a gente vê, a tremer,
Sob-la tarde, nas estradas,
Como demônios correr;
Que a rocha escarra no mar
E a onda depois atira,
Com escárnio, por esse ar;
Ao partir-se-lhe a cadeia:
E o torvelinho que atira
No deserto os grãos de areia;
No abraço dos turbilhões
E, de olhos postos no inferno,
Lança ao céu as maldições:
Pó da terra e diamantes,
Águas correntes e charcos,
Os de perto e os mais distantes;
Vozes do peito gementes,
De envolto as feras bravias
Com as aves inocentes;
Depois das malhas, na eira,
Ou gotas de água rolando
De alta nau na larga esteira —
Em desesp'rados abraços,
Ruindo pelas quebradas,
Rolando pelos espaços,
E — agora — feitos desertos,
Como legião de demônios
Rugindo infernais concertos;
Como em cidade assaltada,
Sob esses tufões gelados
Da tormenta — Gargalhada!
São esses ventos de morte;
E dum ao outro horizonte;
E dum modo e d'outra sorte.
E os simuns do seu deserto;
O que a gente vê ao longe,
O que a gente sente ao perto;
Que se chama… indagação;
A gargalhada do cético,
Que tem nome… negação:
Que tem nome — fé e crença;
A gargalhada do ímpio,
Que se chama… indiferença:
Que se chama… Revolução:
E a gargalhada de Deus,
Que tem nome… Escuridão;
Ei-las ‘hi[1] vêm, as tormentas,
De todos os horizontes,
Subindo de todos vales,
Descendo de todos montes.
Já como lavas ruindo:
Já nuvem, já mar, já fogo,
Mas sempre, sempre caindo,
Desde a França… e são revoltas;
Da Alemanha… e são ideias;
Desde a América… e são fardos;
E da Rússia… e são cadeias;
De fumo enchendo os portos;
Do Oriente… e são os sonhos;
E da Itália… Cristos mortos;
À noite, por traz dos brejos,
— Mão na faca e mão nas costas —
E dê cá… e são bocejos.
E são os ventos assim…
Levando os cedros do monte
Como os lírios do jardim…
E, contudo, no meio da alegria
Terrível, que enche o espaço como o eco
Das grandes trovoadas — e debaixo
De tantos ventos e de tantos climas,
A Alma — a flor do Paraiso antigo —
Lírio belo do vale — peito humano,
A Sulamita da Sião celeste —
A Psiquê triste e pálida, que vaga
Nas praias do infinito — a Alma, oh homens,
Em meio do folgar que vai no mundo,
Cada vez chora mais e mais soluça,
E mais saudosa — a eterna expatriada! —
………………………...………..............................….
………………………....…….............................…….
É que o rir do leão sempre é rugido —
E isto, que sai da boca tenebrosa
Do mundo — e o mundo escuro diz Progresso,
E Força, e Vida, e Lei — isto é soluço
Que sai do peito condenado, — e quando
Vai a sair, para iludir o misero,
Diz à boca: “Olha tu como nós rimos”…
Mas não é mais que o arranco da agonia!
Nem pode ser. — Aquele riso enorme
Quando sai é co'o ruído das tormentas
E, como as grandes águas, vai rolando,
E esmaga… e não consola!
É como a orgia
Que cuidando folgar… se está matando!
E como esses que dizem dos rochedos
Que brincam com as ondas… quando as partem!
Não é o riso belo da Harmonia,
É apenas gargalhada de Possessos!
Há dentro deste mundo algum demônio,
Que o obriga a torcer assim a boca
Lá quando mais se agita e mais lhe dói!
Senão, olhai e vede essa alegria
— Quer seja Ideia ou Força ou Arte, ou seja
A Industria ou o Prazer — de qualquer lado
Que rebente dos lábios — vede como
Faz frio a quem a vê! como entristece
Ver o gigante louco dar-se beijos
Como em mulher formosa… e ao longe, ao longe
Todo o campo alastrado de flor's mortas!
……………........................................…………………….
…………........................................……………………….
Um dia há-de surgir!
E a venda, desses olhos,
Por fim também cair!
Fechar a horrível boca!
E ser canto suave
Essa atroada rouca!
Então!…..……….......……
………………..............……
…………….............………
……….............……………
Que louco desvairar!…
Então!!… Mas — Hoje — esta hora…
É toda p'ra chorar!
Coimbra, novembro, 1863.
À ITALIA
POESIA RECITADA NO TEATRO ACADÊMICO POR A. FIALHO DE MACHADO
na noite de 22 de outubro de 1862
Itália e Portugal! que duas pátrias!
Ambas tão belas, tão amadas ambas!
Uma, a pátria do berço; outra a das almas:
Uma, a das artes; outra a dos combates!
Oh! deixai que hoje, aqui, sobre o meu peito,
As estreite, a final. — Há quanto tempo
Eu quisera juntar-vos, pelas frontes,
Beijar-vos, bem unidas, soluçando,
Como quem, tendo pai, mãe encontrasse.
Portugal! nobre filho de guerreiros!
Viste, primeiro, o sol da liberdade,
Mais feliz, não maior e nem mais digno
Que tua irmã, a Itália. — Ela, entretanto,
Chorava, olhando o céu, negro de nuvens!
Cobriram-na de afrontas! sobre os ombros
A toga negra, já como sudário:
O seu corpo partido em dez retalhos:
O estrangeiro assentado nos seus lares…
E não se via sol no céu da Itália!
Dizei-me vós, se pode o grande rio
Existir, sem que as fontes o basteçam?
Se pode quem nasceu fadado ás glorias,
Esquecido morrer? Se os fortes netos
De Mario e de Catão, ir assentar-se
Sozinhos sobre o tumulo dos fortes
— Olhos no chão e pulsos algemados?
Se é possível que exista um povo — um povo! —
Sem ser livre, e sem sol o céu da Itália?!
Tem, por sol, a liberdade!
Riqueza… de claridade…
Mas se foi Deus quem lha deu?!
’Stava o povo escravizado
E par'cia, de esquecido,
Prostrar-se tão compungido
Ante os pés de seu Senhor?!
Bastou-lhe o brado dum bravo
Para se erguer, — ei-lo em pé!
E aos tiranos, aos senhores,
Aos fortes, cheios de fé,
Bastou-lhes ouvir os clamores
Dessa turba esfomeada
Raia a nova claridade,
A aurora da liberdade,
Dum proscrito no palor!
Meias gastas e olvidadas,
E, ainda vestido de dó,
Com esforço sobre-humano,
Ergue os ombros… e o tirano
Treme… nuta… ei-lo no pó!…
Altos colossos por terra?
Quem é que faz duma guerra
A festa do mundo inteiro?
Não!
A Justiça!…
Deus! — o único juiz
Dos povos na grande liça!
Ele dá ao triste
Alívios… não ódios vis!
A essa Itália que hoje existe
Segredou-lhe, em quanto opressa,
Como sagrada promessa,
Em vez de iras da vingança,
Estas palavras d'esperança:
“A flor murcha, a gota d'água;
“Cruz, o moribundo exangue;
“Um filho, a fera mais seva;
“Amor, o mártir; a treva,
“Um raio de claridade…
“E o povo, que é vida e sangue,
“Não há-de ter liberdade?!”
A GENNARO PERRELLI
AO ARTISTA E AO PATRIOTA ITALIANO
A arte é como a luz: brilha do alto,
Mas quer livre brilhar: do Deus do belo
Ela é religião: seu templo imenso
Quer sacerdotes mas rejeita o bonzo.
E o artista é como astro gravitando
Em céu e espaço livre: acaso o servo
Pode entoar um canto de ventura?
Grilhão de escravo, desperta
Na arte tal majestade,
Tal sentir e tal verdade —
Vede essa fronte inspirada
Do artista, alumiada
Ao clarão da liberdade!
GUITARRILHA DE SATÃ
Estes versos apareceram pela primeira vez publicados com o pseudônimo de Carlos Fradique Mendes.
Estranha aparição
Que em minhas noites vejo,
Ó filha do desejo!
Ó filha da soidão!
E donde vens ignoro:
Sei só que tremo e choro
Como de frio e fome!
Suspiros, ais, rugidos,
Dera ideais queridos,
Deuses e fé que sigo.
E os cultos salvadores,
E os Gólgotas e as dores
E as Bíblias dos Messias!
Corre a meus braços breve,
Sejas de fogo ou neve,
Sejas cristal ou lama!
Sou santo, se és divina;
Se és Laís ou Messalina,
Sou Nero, ó minha amante!
SERENATA
Desta poesia escreveu o autor ao sr. dr. Wilhelm Storck, em carta por este comunicada a J. de Araújo: “A… Serenata nunca foi impressa que eu saiba, embora não seja de modo algum inédita, pois tendo sido composta há 4 anos, na Ilha de S. Miguel, a pedido de um grupo de rapazes, que ali formaram uma sociedade cantante, é lá muito conhecida e cantada por esses e outros nos seus passeios musicais em belas noites de verão.”
Storck traduziu esta poesia. Acerca da tradução escrevia-lhe D. Carolina Michaëlis, em maio de 1891: “A. de Q. recebeu a sua tradução da Serenata, a qual lhe agrada extraordinariamente. Antepõe-na ao original dele, e diz que lhe soa como uma canção alemã.”
Ai, que eu bem a vi tombar!
Era a noite pura e bela,
Murmurava ao longe o mar…
Perfume, encanto, fulgor…
Só no fundo da minha alma
Que desconforto e que dor!
Embalada ao som do mar…
Caiu do céu uma estrela,
Triste do que a viu tombar!
Uma entre tantas, não mais!
Era uma ilusão perdida,
Era um ai entre mil ais!
Louco, incerto coração,
Só por um astro apagado,
Por uma morta ilusão?
Como chora ao longe o mar!
Caiu do céu uma estrela,
Ai de mim que a vi tombar!
O POSSESSO
(Comentário ás Litanies de Satã)
Não creio em ti, Deus-Padre omnipotente,
Criador desse espaço constelado,
Que do Caos e o Nada conglobado
Arrancaste o Universo refervente;
Não creio em ti, Deus-Filho, em cuja mente
Foi o Bem inefável feito e nado;
E não creio no Espirito gerado
Do eterno Amor, como uma chama ardente;
Saibam-no a terra e os céus: do Credo antigo,
Cheio de Graça e Fé, refúgio e abrigo,
Benção da noite e prece da manhã,
Só creio no Pecado inelutável,
Na Maldição primeira inexpiável,
E no eterno reinado de Satã!
Quando o Tedio, com plúmbeo capacete,
Esmaga a fronte ao homem desolado,
E o Fausto pensador vê a seu lado
A Negação sentada ao seu bufete,
Seu lábio é vil três vezes, se repete
Preces vãs e esconjuros, humilhado:
O nome de Homem, trágico e sagrado,
Só a quem desafia a Deus compete!
É grata a maldição à alma robusta
Do que nenhum pavor divino assusta,
E no Vazio ergueu seu templo e altar…
Mais fecundo que o Céu, criou o Inferno
A blasfêmia. — Honra, pois, e preito eterno
A Satã, que nos deu o blasfemar!
EPIGRAMA TRANSCENDENTAL
Quem vos fez, céu profundo e luminoso,
Terra fecunda, poderoso oceano,
E a ti deu vida, coração humano,
Que és todo um céu e um mar misterioso,
Bem sabia que o céu, o mar, a terra,
Tinham de ser só cárcere e geena;
Que havia a vida ser só luto e pena,
E campo, o coração, de eterna guerra.
Por isso o estranho artífice sombrio,
Que, concebendo o plano da obra ingente,
Irônico talvez, talvez demente,
Logo se arrependeu e o confundiu;
Não deu seu nome, como o arconte epônimo,
À obra de sua mente e sua mão:
O Criador furtou-se à Criação…
E sendo um mau autor ficou — anônimo.
NA SEPULTURA DE ZARA
Estes belos versos não eram destinados à imprensa, e apareceram publicados em uma revista de Lisboa, sem consentimento do autor ou da família da menina cuja morte pranteiam. Antero recusara-se a imprimi-los, como se vê da seguinte carta que apareceu entre os papeis de Eduardo Coimbra e que a mãe do malogrado moço, a srª. D. Anna Coimbra ofereceu com vários outros documentos ao mais querido amigo de seu filho:
São reservados, e pertencem ao nosso Joaquim os versos a que alude. É claro que sem licença dele não devem imprimir-se. Deixe-os no tumulo da desditosa criança, que lá falam melhor aos que a estremeceram. Se porém combinarem trasladá-los para qualquer publicação, adicione o meu amigo ao nome da pobre Zara o do desolado irmão. Para ele foram feitos, a ele serão dedicados.
E nada mais por hoje, meu amado poeta
ZARA
A Joaquim de Araújo
Feliz de quem passou por entre a mágoa
E as paixões da existência tumultuosa,
Inconsciente, como passa a rosa,
E leve, como a sombra sobre a água.
Era-te a vida um sonho. Indefinido
E tênue, mas suave e transparente…
Acordaste, sorriste… e vagamente
Continuastes o sonho interrompido.
1881.
TRADUÇÃO ALEMÃ DE WILHELM STORCK
Glückselig wer vorüberging am Weh
Des Lebens und der Leidenschaft Getose
Unwissend, wie vorübergeht die Rose,
Und flüchtig, wie der Schatten ob der See.
Dein Leben war ein Traum, begriffen kaum
Und leicht und Lieblichkeit D'u trankest;
Du wachtest auf und lacheltest und sankest
Züruck in Deinen unterbroch'nen Traum.
XXVI
GLOSA CAMONIANA
Dous ou três dias antes da morte de Eduardo Coimbra (8, outubro, 84) escreveu Antero esta bela quadra junto do leito, em que o moço poeta, quase agonizante, lhe pedia “um improviso” para a carteira-álbum que pouco antes mandara comprar. Essa carteira ofereceu-a a mãe do poeta em recordação dolorosa, ao fiel amigo, que rubricara nela o seu nome, junto do de Antero, e que dias depois lhe entregava a chave do caixão do pobre Eduardo.
(NA CARTEIRA DE EDUARDO COIMBRA)
Pés em chagas, seguimos pela via
Dolorosa, em demanda da Verdade;
Mas achá-la entre os homens ninguém há-de…
Triste o que espera! triste o que confia!
AS FADAS
Estes versos foram escritos em Lisboa, para a coleção — Tesouro poético da infância, que o próprio autor coordenou. Foram lidos no dia imediato a João de Deus, “que deles se mostrou satisfeito”, como Antero escrevia a um amigo. “Para mim, poeta de gênero apocalíptico, foi um verdadeiro tour de force.”
As fadas… eu creio nelas!
Umas são moças e belas,
Outras, velhas de pasmar…
Umas vivem nos rochedos,
Outras, pelos arvoredos,
Outras, à beira do mar…
Escondem-se, enquanto é dia,
Saem só ao escurecer…
Outras, debaixo da terra,
Nas grutas verdes da serra,
É que se vão esconder…
Que rainhas, nem princesas
Nenhuma assim se vestiu!
Porque as riquezas das fadas
São sabidas, celebradas
Por toda a gente que as viu…
Quando a noite é clara e amena
E a lua vai mais serena,
Qualquer as pode espreitar,
Fazendo roda, ocupadas
Em dobar suas meadas
De ouro e de prata, ao luar.
Sentadinhas entre as flores
Horas se ficam sem fim,
Cantando suas cantigas,
Fiando suas estrigas,
Em roca de oiro e marfim.
Viviana ama as espumas
Das ondas nos areais,
Vive junto ao mar, sozinha,
Mas costuma ser madrinha
Nos batizados reais.
Ás vezes, moça e formosa,
E outras, velha, a rir, a rir…
Ora festiva, ora grave,
E voa como uma ave,
Se a gente lhe quer bulir.
De Titânia, a pequenina,
Que dorme sobre um jasmim?
De cem outras, cuja gloria
Enche as páginas da historia
Dos reinos de El-Rei Merlin?
Outras, na terra, nos mares;
E todas trazem na mão
Aquela vara famosa,
A vara maravilhosa,
A varinha do condão.
O que elas querem, num pronto,
Fez-se ali! parece um conto…
Mesmo de fadas… eu sei!
São condões que dão à gente,
Ou dinheiro reluzente
Ou joias, que nem um rei!
Se quis ser sua madrinha,
Uma fada… ai, que feliz!
São palácios, num momento…
Beleza, que é um portento…
Riqueza, que nem se diz…
Ciência, discernimento,
Graças, chiste, discrição…
Vê-se o pobre inocentinho
Feito um sábio, um adivinho,
Que aos mais sábios vai à mão!
São muito desconfiadas;
Quem as vê não há-de rir.
Querem elas que as respeitem,
E não gostam que as espreitem,
Nem se lhes há-de mentir.
A mais risonha, a mais bela,
Torna-se logo tão má,
Tão cruel, tão vingativa!
É inimiga agressiva,
É serpente que ali está!
Semeiam cousas horríveis,
Que nascem logo no chão…
Línguas de fogo que estalam!
Sapos com azas, que falam!
Um anão preto! um dragão!
O nariz faz-se serpente,
A dar pulos, a crescer…
É-se morcego ou veado…
E anda-se assim encantado,
Enquanto a fada quiser!
For, de noite, e vir as fadas
Nos altos mirando o céu,
Deve com jeito falar-lhes
Muito cortês e tirar-lhes
Até ao chão o chapéu.
Está ás vezes somente
Numa palavra que diz;
Por uma palavra, engraça
Uma fada com quem passa,
E torna-o logo feliz.
Mas sem sono, inda acordado,
Me ponho a considerar
Que condão eu pediria,
Se uma fada, um belo dia,
Me quisesse a mim fadar…
Um reino? um vestido de ouro?
Ou um leito de marfim?
Ou um palácio encantado,
Com seu lago prateado
E com pavões no jardim?
Pedir também que me desse
Um condão, para falar
A língua dos passarinhos,
Que conversam nos seus ninhos…
Ou então, saber voar!
Alguma fada, engraçando
Comigo (podia ser!)
Me tocasse da varinha,
E fosse minha madrinha
Mesmo a dormir, sem a ver…
E me achasse… eu sei? me achasse
Feito um príncipe, um emir!…
Até já, imaginando,
Se estão meus olhos fechando…
Deixa-me já, já dormir!
O SOL DO BELO
RECITADA NA NOITE DE 13 DE MAIO DE 1862, NO TEATRO ACADÊMICO, POR A. FIALHO MACHADO
O sol do belo a todos alumia!
Sua auréola cinge cada fronte
Bem como o rei do dia, mal desponte,
Dá luz igual a todo o ser criado!
Este baptismo santo envolve e lava
Todos na mesma onda inspiradora!
Queima com a mesma chama abrasadora!
Orvalha em igual pranto derramado!
Juntas as almas, que o sentir enlaça,
Comungam, como irmãs, na mesma taça!
Vê-os, agora, artista. — Eles estendem-te
Os seus braços e o afeto é que os impele!
Esse braço, que vezes mil repele
O laço, que em vão, tenta escravizá-lo…
A corrupção hipócrita de tantos…
Que sabe resistir a quem o oprime…
É esse que, num ímpeto sublime,
Se ergue a ti, se ergue ao irmão para estreitá-lo.
É que a alma, que não verga à tirania,
Curva-se, livre, ao belo que a alumia!
Sim! aqueles que do alto de um vão trono
— Mal firme trono que estremece ao vento —
Pedem, como tributo de um momento,
Respeito, amor, afeto à mocidade,
(Mas pedem como quem ordena a escravos)
Não são esses aqui os respeitados!
Não são esses que são aqui amados!
Não escuta voz de império a liberdade!
Mas quem de amor nos lábios traz doçura
Esse é que leva a flor de uma alma pura!
Pura e nobre! Embora, despeitados,
Lhe chamem louco e frio a esse peito…
Não se acreditam vozes de despeito.
Frio! quem diz que é frio o peito moço?
Que o sentimento é extinto nestas almas?
Di-lo a velhice que não tem no seio
Nem uma voz de amor, nem um anseio,
A dar ao belo, que arrebata o nosso: —
Di-lo quem a deseja corrompida…
Porém na mocidade habita a vida!
A vida! sim! Bem como em cofre de ouro
Se guarda o que há melhor, o que há mais puro,
Deu-lhe o Senhor a guarda do futuro,
Confiou-lhe em deposito essas gemas
— O amor, a fé, o belo, a liberdade!
O amor! o que nos dá sentir profundo!
A fé! a que nos mostra melhor mundo!
A liberdade! a que espedaça algemas!
O belo! a nossa flâmula brilhante!
E sobre tudo, a voz que brada — avante!
IBÉRIA
(Do Século XIX, de Penafiel, nº 20, 1864).
I
Flor dos povos! oh tu que inda te embalas,
E inda em botão, aos ventos do futuro!
Que tens por vasos e jardins e salas
Toda a vasta extensão do tempo escuro!
E frontes gloriosas a adorná-las,
A fronte da história, o grande auguro!
Lírio que sais do seio à humanidade
Como filha melhor — Fraternidade!
Deixa que escreva aqui teu nome todo,
E já daqui aspire teu perfume!
E, arredando co'as mãos o frio lodo
Do presente, me aqueça a esse teu lume!
Deixa beijar-te em sonho, e deste modo
Trazer-te unida ao seio, que consume
Esta ânsia ardente de destino novo,
E este fogo roubado ao seio do povo!
Porque te vemos só quando sonhamos…
E, irmã! só nos sorris em nosso sono…
E, a dormir, doce amiga, te beijamos!
Tu — só em nossas almas — tens teu trono
Ainda! mas, sem ver-te, te adoramos,
E, como um cão fiel segue o seu dono,
Trazemos ante o olhar tua lembrança,
E caminhamos cheios de confiança!
Fraternidade! esta palavra é suave,
Como antegosto de melhor destino!
Como a onda de um Ganges que nos lave!
E como a posse de um penhor divino!
Como o voo sereno de uma ave
Que, sendo apenas ponto pequenino,
Entanto faz, transpondo ao longe um monte,
Sonhar com melhor céu e outro horizonte!
O grande céu! o céu da humanidade!
Onde os povos serão constelações,
E, destilando a luz da liberdade,
Serão astros e estrelas as nações!
Onde há-de o grande laço da igualdade
Reunir a vontade e os corações!
Cobrindo-os, a dormir, os mesmos céus,
Terão todos também o mesmo Deus.
Não vejo outro Evangelho de ouro escrito
Dentro no homem, — nem sei que outro areal,
Outro cabo, outro monte de granito,
Do grande navegar surja a final!
Guiados pelo instinto do infinito
É para lá que os povos — nau real! —
Hão a proa virar lá quando um dia
Marearem pela bússola harmonia!
II
Hão-de então, como irmãos, reconhecer-se
Os amigos — há tanto tempo ausentes!
Hão então (caso novo e estranho!) ver-se
Face a face as nações, sem que dementes
As entranhas se rasguem! e há-de ler-se
Um protocolo, em letras de ouro, ingentes,
Escrito, sem emenda e sem errata,
Por mãos do amor — o grande diplomata!
III
Ele é quem concilia as diferenças,
Quem nos concílios há-de erguer a voz,
Tirando nova ideia e novas crenças
Das esfriadas cinzas dos avós!
E, sem trabalhos, e sem dores imensas,
E sem rios de sangue e pranto após,
Rasgando o ventre à velha liberdade
Sairá à luz a jovem Igualdade!
É doce ver assim, à luz da esperança,
Pelo futuro dentro, as cousas belas…
Prever do céu humano essa mudança,
Que em sóis converte as mínimas estrelas!
Do passado infeliz eis a vingança!
E dos mortos as faces amarelas,
Corando de ventura e de alegria,
Hão-de surgir, enfim, à luz do dia!
IV
E nós também, também comungaremos
Na grande comunhão das novas gentes:
Também os nossos braços ergueremos
— Braços livres de jovens impacientes —
E o cinto deste Velho quebraremos,
De aonde a espada e o cetro estão pendentes,
(Já tão gastos!) lançando-os à ribeira…
Para o coroar de palmas e oliveira!
Espanha — irmã! que boda alegre a nossa!
Como hão-de então teus seios palpitar!
Que ribeira de lágrimas tão grossa
Teu branco véu de noiva há-de estancar!
Como há-de parecer pequena poça
Para os banhos, então, o grande mar!
E entornar-nos volúpia nos desejos
O misto de ódio antigo e novos beijos!
Mas tu 'stás presa!… e nós… 'stamos dementes!
Separa-nos o abismo! os teus algozes…
A cruz de Inácio… e as garras inclementes
Dos leões orgulhosos e ferozes…
E a estupidez do povo dos valentes,
Destes pardais de atroadoras vozes…
Entre nós nos cavaram oceanos…
Sejam-lhe ponte os corpos dos tiranos!
Porque beijas teus ferros, pobre louca,
E cuidas 'star beijando cousa santa?
E, tendo em tuas mãos cousa tão pouca,
Tão tênue como a capa de uma santa,
Pensas avassalar a terra amouca,
E te ergues com vaidade e gloria tanta?
Oh! tu, cuidando os orbes abraçar,
Só ruinas abraças — Trono e Altar!
Lembre-te a voz do Cid! a atroadora
Voz que se ouvia ao longe nos combates!
Porque tu estás feita salmeadora
No coro das igrejas — porque bates
No peito, em vez de erguer dominadora
A tua mão em meio de combates,
E livre e bela, oh Espanha, olhar os céus
Procurando por lá teu novo Deus!
V
Como nos amaremos, doce amiga!
Como então amaremos! que noivado
O nosso não será!… Não tem a espiga
No campo cor melhor, nem mais doirado
Esplendor, do que tu, bela inimiga.
Hás-de ver a ventura… quando o estrado
Do leito nupcial for Liberdade,
E for dossel o céu — Fraternidade.
VERSÕES E IMITAÇÕES
EXCERTOS DE UMA TRADUÇÃO DO FAUSTO
DEDICATÓRIA
Ainda uma outra vez, imagens flutuantes,
Vos ergueis ante mim, como outrora radiantes
Ante mim, que vos fito em vago enleio incerto!
Voais… mas eu hesito em vos reter agora…
Assusta o meu olhar a luz da vossa aurora,
E teme as ilusões, meu coração desperto!
Que aérea multidão! que virginais coreias!
Meu velho coração, pois que inda te incendeias
Não é melhor ceder? sim, sim, rejuvenesce!
Dentre as nevoas surgi, visões do tempo antigo!
Sim, levai-me também no vosso bando amigo,
Levai-me aonde há luz e cantos, e alvorece!
Reconheço entre vós as sombras fugidias
De outro tempo melhor, de mais alegres dias:
Meu coração evoca imagens adoradas…
Sussurra em torno a mim voz de saudoso encanto:
É o primeiro amor, que passa como um canto
De antigas tradições vagamente escutadas…
E as lágrimas, também, correm silenciosas!
O lamento dorido, as mágoas saudosas,
Renovam-se; desperta a dor que dormitava…
Sim, a dor, ante mim, mostra-me os dias idos,
E nomeia-me os bens, sob meus pés fundidos,
Quando em minha ilusão julguei que os abraçava!
Almas a quem cantei, não me ouvireis agora!
O círculo fiel dos amigos d'outrora
Desfez-se como a voz deste canto primeiro!
Rodeia-me hoje a turba: o seu aplauso é triste:
Quem folgou de escutar-me, em tempo, se inda existe
Disperso erra no mundo, ah! num mundo estrangeiro…
Como a saudade então, uma longa saudade,
Desse reino encantado, onde há paz e verdade,
Me fala ao coração numa queixa sumida!
Meu canto sobe e desce, incerto e flutuante,
Sobe e desce indeciso e com tom murmurante,
Bem como uma harpa eólia aos ventos suspendida.
E tremo sem saber porquê, e lentamente
Sinto o pranto nascer, correndo docemente,
Ungindo o coração que embala e adormece…
O que tenho, o que sou, mal o vejo a distância…
É a nuvem no mar, é um sonho de infância…
Só, à luz da saudade, o passado aparece!
NA CATEDRAL
Ofícios; órgão e canto. MARGARIDA no meio da multidão. O ESPIRITO RUIM por detrás dela.
O ESPÍRITO RUIM
Como foste, como eu te conheci,
E como estás mudada, Margarida!
Que pensamento é que te traz aqui?
Ainda adormecida,
Tua alma há pouco, lembras-te? buscava,
Esta sombra do altar — mas não chorava,
Não, não chorava as lágrimas que choras!
Rezar era então brinco de criança,
Para ti, inocente…
Lias nas tuas Horas
As tuas orações — e docemente
Sorria a Deus tua infantil confiança…
Margarida!
Quantas ruinas em tão curta vida!
Que pensamento oculto te tortura?
E, no teu coração,
Que pecado te rói essa alma impura?
Não rezes: Deus não te ouve a oração!
Rezas por tua mãe? por ti foi morta,
Sim, morta lentamente, a infeliz!
Olha o sangue espalhado à tua porta…
De quem é ele, diz?
E escuta! nesse seio criminoso
O que é que já se move?
Sim, o que é que se agita, e te comove
Com um pressentimento doloroso?
MARGARIDA
Ai de mim! ai de mim! quem pudesse livrar-me
Desta turba cruel de negros pensamentos!
Vejo-os de toda a parte e a todos os momentos,
Erguer-se em volta a mim, correndo a torturar-me!
CORO E ÓRGÃO
Solvet saeclum in favilla.
O ESPÍRITO RUIM
Cai sobre ti a cólera do céu!
Soa a trombeta! as campas se quebrantam!
A terra estremeceu,
Os mortos se levantam.
Também teu miserável coração,
Que dormia desfeito,
Já renasce das cinzas, já o chamam
Para os fogos eternos que se inflamam…
Teu pobre coração
Estala-te também dentro do peito!
MARGARIDA
Oh! quem me dera ao menos daqui fora!
Esta música faz-me uma aflição!
Este órgão parece alguém que chora…
Parte-me o coração!
CORO E ÓRGÃO
Quidquid latet apparebit,
Nil inultum remanebit.
MARGARIDA
A abobada estremece!
Estas pedras, parece
Que querem desabar!
Sufocam-me de espanto
Estes tetos escuros!
Afrontam-me estes muros!
Mais ar! mais ar!
O ESPÍRITO RUIM
Esconde-te infeliz! e onde irá ocultar
Seu pecado e vergonha essa alma desonrada?
Mais ar? pedes mais ar?
Ai de ti desgraçada!
CORO E ÓRGÃO
Quid sum miser, tunc dicturus,
Quem patronum rogaturus
Cum vix justus sit securus?
O ESPÍRITO RUIM
Os justos no céu de horror e desgosto…
De ti, de te ver, desviam o rosto…
Estende o inferno as mãos para aqui…
Ai, de ti!
CORO E ÓRGÃO
Quid sum miser, tunc dicturus.
MARGARIDA
(Cai desmaiada)
A CANÇÃO DO REI DE THULE
Era uma vez um bom rei
Em Thule — essa ilha distante,
Ao morrer, deixou-lhe a amante
Um copo de ouro de lei.
Todo lavrado a primor;
Se fosse o cálix divino
Não lhe tinha mais amor.
Não tinham outra alegria:
E só por ele bebia,
Nos seus banquetes reais.
Pôs-se o rei a meditar
Grandezas da sua sorte
Seus reinos à beira-mar.
Palácios, vilas, cidades:
De nada tinha saudades,
A não ser do copo de ouro.
Naquelas salas sem fim,
Mandou armar uma mesa
Para um último festim.
Os seus fiéis cavaleiros,
Para os brindes derradeiros
No castelo à beira-mar.
E com entranhada mágoa,
Pôs nas ondas o olhar vago
E atirou com a taça à água.
'Té que as ondas a levaram:
Os olhos se lhe toldaram,
E não bebeu mais em vida!
(DO POETA HÚNGARO SANDOR PETÖFI)
O que é a Dor? Um mar. E a alegria?
Pérola oculta nesse mar fremente.
Quantas vezes a pérola encantada,
Entre as rochas profundas sepultada,
Se dissolve esquecida, lentamente,
E nunca chega a ver a luz do dia?
IMITADO DO ALEMÃO
(No Álbum da filha de João de Deus)
O coração tem dois quartos:
Moram ali, sem se ver,
Num a Dor, noutro o Prazer.
Acorda cheio de ardor,
No seu, adormece a Dor…
Canta e ri mais devagar…
Não vá a Dor acordar…
IMITADAS DO ALEMÃO
Rebentam flores mil das minhas lágrimas,
E só serpentes nascem dos meus cantos;
É que os meus cantos são envenenados,
E só puros, só doces os meus prantos.
Se queres conhecer o homem e o mundo,
Não desvies de ti o olhar profundo;
Mas foge de te ouvir e de te ver,
Se a ti mesmo te queres conhecer.
(POSTO EM LINGUAGEM MODERNA)
No figueiral figueiredo,
Lá no figueiral entrei.
Seis donzelas encontrara,
Seis donzelas encontrei;
Para elas caminhara,
Para elas caminhei;
Chorando a todas achara,
A todas chorando achei;
Logo ali lhes perguntara,
Logo ali lhes perguntei,
Quem foi que ousou maltratá-las,
Tratá-las de tão má lei?
Lá no figueiral entrei.
Uma delas respondera:
— Cavaleiro, não o sei…
Mal haja, mal haja a terra
Que tem mau e fraco rei,
Que se eu as armas vestira,
Por minha fé, que não sei
Se homem ousara levar-me,
Levar-me de tão má lei…
Com Deus ide cavaleiro,
Ide com Deus, que não sei
Se onde me falais agora
Nunca mais vos falarei.
Lá no figueiral entrei.
Eu então lhe replicara:
— Por minha fé, não irei;
Antes olhos dessa cara
Bem caros os comprarei;
A longas terras distantes
Só por seguir-vos me irei;
Por caminhos desvairados
Atrás de vós andarei;
Línguas moiras de aravias
Por vós eu as falarei;
Moiros se me aparecerem
A todos os matarei.
Lá no figueiral entrei.
Nisto o moiro que as guardara,
Perto dali encontrei:
Se ele bem me ameaçara,
Eu melhor o ameacei;
Um tronco seco esgalhara,
Um tronco seco esgalhei;
Com ele a todos matara,
A todos desbaratei;
As donzelas libertara,
Todas sim as libertei;
Aquela que me falara
Com ela me casarei.
No figueiral figueiredo,
Lá no figueiral entrei.
SONETOS DESPREZADOS
Incorporamos aqui os Sonetos IV, X, XVI, XVII e XX, da coleção de Coimbra, de 1861, não incluídos no volume dos Sonetos completos.
Terra do exilio! Aqui também as flores
Têm perfume e matiz; também vicejam
Rosas no prado, e pelo prado adejam
Zéfiros brandos suspirando amores:
Também cá tem a terra seus primores;
Pelos vales as fontes rumorejam;
Têm as moitas seus sopros, que bafejam,
E o céu tem sua luz e seus ardores.
Em toda a natureza há amor e cantos,
Em toda a natureza Deus se encerra…
E contudo esta é a causa de meus prantos!
Eu sou bem como a flor que não descerra
Em clima alheio. Que importam teus encantos?
Não és, terra do exilio, a minha terra.
PROPTER SOLATIUM
Renasço, amigos, vivo! Há pouco ainda
Disse ao viver: “Afunda-te no nada!”
E já, bem vedes, surjo à luz dourada,
— No lábio o rir, no peito esp'rança infinda!
Ah, flor da vida! flor viçosa e linda!
Envolto na mortalha regelada
Do só pensar — perdão! — foste olvidada…
Flor do sentir e crer e amar… bem-vinda!
A vida! como a sinto, ardente, imensa!
Não única! tomando a imensidade!
Livre! perante Deus surgindo forte!
Que amor! que luz! que pira vasta, intensa!
Plenitude! harmonia! realidade!
Mas melhor que tudo isto é sempre a morte!
Fica-te em paz! não pode a mão do homem
Partir o seio à alvéloa queixosa,
Quando o canto soltar, e a voz chorosa
Erguer lá contra as mágoas que a consomem.
Respeito o teu sacrário: embora tomem
Por orgulho o respeito; eu colho a rosa
Mas não a flor modesta e melindrosa,
Que se oculta entre as mais… e que as mais somem.
Mais que amor tenho crença: essa existência
Pede-me um culto por quem dera a vida,
Por que dou esta dor, que aqui se encerra.
Mulher! mulher! de que valera a essência,
A essência pura, a uma alma que é descrida?
Fica-te em paz: fique eu com minha guerra!
Corre aos braços da mãe o filho amado;
— Por olvidar, volvendo a sua história —
Corre à mente do inf'liz doce memória;
Corre à luz de um olhar o olhar buscado;
Vem o alivio animar peito magoado;
Corre o forte a buscar na morte a gloria;
Desfeita do viver sombra ilusória,
Foge o espírito livre ao seu ansiado.
Tudo busca quem o ama: a luz dourada
Busca do seu viver, como no escuro
Quem avista uma luz lhe vai ao encontro.
Só tu, ventura! uma vez sonhada;
Só tu, sombra de amor! que em vão procuro,
Só tu, foges de mim, só não te encontro!
Senhor! eu sou teu filho! eu sou aquele
Que tanta vez pecou, porém, contrito
Tanta vez tem erguido a ti o grito
Da águia que o tufão no alto compele.
E a águia sofre também, como ave imbele,
E mais que ela (que põe mais alto o fito)
Mas da águia que lutou, o brado aflito,
Senhor! o teu ouvido não repele.
Eu não caio, meu Deus, sem ter lutado;
Fraco sou, por que sou de barro e limo,
Porém, na tua Lei medito e cismo.
E eu sou teu filho! A um filho desgraçado
Que há-de um pai recusar? Oh, dá-me arrimo,
Estende-me tua mão por sobre o abismo.
FIAT LUX!
(POEMETO)
Et terra erat inanis et vacua.
Tinham os astros já mil anos, — tinham
Talvez cem mil — ou tinham um minuto —
(Pois quem sabe contar horas ou séculos
No relógio — que tem o firmamento
Por quadrante, — e algarismos, sóis e estrelas?)
'Stavam há muito ali.
O velho Caos,
O oleiro do infinito, que entre as duas
Mãos — o tempo e o espaço — os amassara,
Cansou por fim também de fazer mundos,
Não tendo já mais barro, nem mais raios
Com que o barro pintar.
As mãos, que estavam sujas do trabalho,
E esfregando uma palma contra a outra,
Soprou depois os restos, sem ver onde,
Por esse abismo além.
Migalha dos banquetes do Princípio!
Triste parto das sombras, atirado
Sobre o berço de luz do firmamento!
Morcego horrível, meio tonto e cego,
Caído no salão de lustres de astros!
O pó soprado, informe bola escura,
Como filho enjeitado, que se esconde
Pela sombra dos muros, foi rolando
Pelos cantos do espaço, envolto em trevas…
Que o não vissem os sóis.
E foi descendo,
Estranho, negro, horrível, monstruoso.
E, quanto era maior a treva, ainda
Mais o medo crescia que o olhassem…
E mais o horror de si o endoudecia…
E mais girava, imenso já de inchado
De terror e delírio!
Como um viveiro imenso de fulgores
Atiravam, de sol em sol, as notas
Do eterno concerto…
*
E foi rolando,
Vertiginoso e bêbado de horrores!
O feio, ébrio da mesma fealdade!
O mal, possesso do seu mal! As trevas
Cheias de medo de se ver tão negras!
E o firmamento arfava num delírio
De harmonia e ventura! O espaço ardente
Suava luz — girando no infinito —
Pelos poros do céu… que são estrelas.
*
Oh! como a ave da noite eterna, ao ver-se
Dentro do dia eterno… endoidecia!
Como rolava tonta a um lado e ao outro
Batendo as duas azas — Sombra e Espanto, —
Por todo esse infinito já não via
Um só buraco que a escondesse!
*
O Abismo
— Escravo, mas herói — chorava mudo…
E engolia os soluços.
Despojado,
Que lhe havia ele dar?
*
Oh! a beleza é cruel! A altura é fria!
E impiedosa e feroz! A ave aérea
Não tem dó do inseto! A virgem branca
Pisa o negro reptil! o louro infante
Crucifica o morcego! Os astros de ouro
Viram a Terra assim… e não choraram!
*
Um riso louco, então, feito de raios
Infinitos de luz, encheu o espaço!
O giro das esferas cambaleava
E estorcia-se, doido, em grandes frouxos
De hilaridade e brilho! E o eco eterno
Que em vez de voz, repete os esplendores,
Confuso co'as mil ondas tumultuosas
Parecia tempestade de harmonia.
Todo o céu se inclinava, incendiado
Numa aurora boreal prodigiosa,
Vendo o truão horrível do infinito!
*
Foi então que o Abismo, o triste escravo
Dos senhores da luz — partido, opresso
Co'a imensa dor daquele rir, — não pôde
Suster-se mais.
Vir subindo um suspiro — e quantos ecos
Da antiga confusão há ‘hi no espaço:
E todas as tristezas que ficaram
Dos combates de outrora: e os sofrimentos
De quantas lutas houve, antes do tempo:
E essas mil dores, e essas mil torturas,
Que custou cada sol: todo esse inferno
De negrumes, que o céu lançou, despindo-os,
Quando quis ser só luz… de ais e gemidos
Quando quis ser só canto… a parte infame
Que na injusta partilha coube ao Abismo…
Tudo isto, no suspiro do cativo,
— Triste, mas grave; queixa, mas não súplica…
Antes acusação, — na voz debaixo
Tudo isto ali subiu!
*
Os grandes astros
Enfiaram de pasmo e emudeceram!
E, se em seios de luz há ‘hi remorsos,
Sentiram-no nessa hora…
*
Então abriram-se
As portas do silêncio — e, como um sopro
Que agitasse as esferas, voz sem timbre
(Se há ouvir…) se ouviu: “Quem faz chorar o Abismo?”
*
Oh! o grande bem e a grande formosura,
Que tendo a estrela e o céu, inclina a face
Para a grande abjecção! A Aurora imensa,
Que quer saber quem escurece a Treva!
A ventura sem fim, que se conturba
Porque a desgraça sofre!
Sentiu que seus mil males vacilavam,
Sobre a base da eterna injúria, e se iam
Co'o esse sopro de amor. — E estranho, e pávido,
Duvidou se sofria e teve, em sonho,
Como visões do céu donde o lançaram…
E quase perdoou…
*
Oh, gota de piedade, que adoçaste
Aquele oceano de injustiça! Oh, lágrima
Toda feita de bem!… Bebeu-te o Abismo!
*
E a Terra informe viu.
De algum poço — que o fundo das montanhas
Guarda velado pela treva — pode
Ouvir, cheio de horror, o eco primeiro
De uma pedra descendo: como o centro
Da mina pode ver o alvião primeiro
Que a abre de par em par, — assim a Terra
Viu a coisa sem nome que descia
Pelo infinito abaixo.
*
Olhou transida.
Era uma Mão — que parecia treva,
Tanto brilhava! E vinha-se alongando
Com cinco dedos — cinco continentes
De luz — fixa, sem cor, indefinível,
Leviatã de brilho, pelo éter
Descia — e as ondas de harmonia erguiam-se
Como em tormenta de esplendor — horrível…
Tanto era belo!
'Té aonde a visão abre os espaços,
A orla do infinito radiava.
*
E cada sol, e cada estrela, vendo
Aquela Mão descer, dizia — Certo
Que me vem afagar! — E estremecia.
E a Mão passou em face das estrelas…
Mas não as viu. — Passou o grande coro
Dos sóis… e não os viu. — A Via-Láctea…
E não a viu. — E foi seguindo avante.
*
Lá onde o escuro é tanto que sufoca
O tempo, no nevoeiro esquecimento,
Onde em vaga fronteira se confundem
O ser e o não ser — lá para o extremo,
É onde a Mão já ia…
*
E os grandes astros,
De sol em sol, de um horizonte ao outro,
Inquietos, através do éter imenso,
Lançavam vozes de ouro, perguntando
“Onde vai o Senhor?”
*
E a Mão descia.
Já não havia mais. Tinha chegado
Por defronte da Terra. E nessa hora
Dois infinitos — um de horror, e o outro
Infinito esplendor, se contemplaram.
*
E os astros de ouro pelo céu disseram:
“Eis que Deus vai brincar também co'a Terra!”
E a Mão estava.
E a Terra negra olhava-a,
Como um selvagem um espelho; o susto
Co'o prazer inefável combatiam-se
Lá dentro… e a massa informe estremecia.
Convulsa se agitava. Fascinada
Parecia recuar… e aproximava-se!
E, num último esforço, dando um salto
Enorme, por fugir — caiu no centro
Daquela Mão.
*
E os astros murmuravam
Aos sóis: “Certo que Deus a precipita!”
*
Mas a Mão não se abriu para lançá-la.
Os grandes dedos sobre a massa horrível
Se fecharam. Pareciam, sobre o corpo
Tenebroso, que tinham apertado,
Cinco chagas de luz.
*
Os cinco dedos entre si disseram:
“Que havemos nós fazer a isto?” E todos
Imóveis ali estavam.
E entre os dedos
Donde — bem como um sapo entre os dois seios
De uma virgem — a Terra olhava o espaço,
Pareceram-lhe ao longe os grandes astros
Como pontinhos negros.
Roubado à eternidade é quanto basta,
Quer se seja morrão, quer seja estrela.
*
Então a grande Mão abriu-se e disse
À Terra: Vai! — E como águia sublime
Desde os Alpes se atira, a Terra ergueu-se,
Levando um voo imenso entre as estrelas!
*
Viam-se-lhe luzir no dorso negro
Cinco traços de luz! Leito de brilho
Aonde os cinco dedos se poisaram!
E lepra de esplendor!
*
Rolou no espaço.
E os astros entre si se consultaram:
“Dar-lhe-emos nós lugar?”
Falou e disse: — Eu vejo-lhe no dorso
Uma mancha de luz — a Natureza!
E a Lira disse: — Eu vejo-lhe outra forma
Resplendente — é Ideia!
— Eu vejo-lhe um sinal de afago — é Alma!
E Vênus disse: — Eu vejo reluzir-lhe
Uma cicatriz de luz — é Amor!
Então, o Setestrelo: — Eu adoro-lhe
Como o sitio de um beijo do Eterno…
— É Imortalidade!
*
E o coro imenso
Abriu-se e deu lugar à Terra escura,
De cuja face cinco grandes f'ridas
Gotejavam a luz — a Natureza,
Que tem de Deus a força; a Ideia, filha
Da imensidade dele; a Alma, eterna
Como seu ser; o Amor, que é olhar dele;
E a Imortalidade luminosa,
Que é o berço onde nele repousámos.
*
…………………………...................................……….
……………...................................…………………….
……………...................................…………………….
E, agora, oh Terra! que és, entre mil rodas,
Uma roda do carro — vai rolando
E desprende, ao rodar por sobre o tempo,
Tuas cinco faíscas prodigiosas,
Pela estrada do Ser — a Eternidade!
OMBRA
(DA ANTERO DE QUENTAL)
Quando Cristo sentì che la sua ora
Giunta era alfine, a quei che lo cercavano
Grave, calmo, sereno appresentossi.
Venia la turba in arme! Ma di tanti
Non un sol si attentó muovere il passo
E por la mano in su il figliuol dell'uomo.
Tutti con bassi gli occhi, a Gesú innanzi
Inerme, nascondean l'armi. Ma quegli,
Che il doveva tradir, fattosi presso,
Lo strinse fra le braccia mormorando
Dio ti salvi Maestro! E, siccome era
Pattuito, baciollo in sulla faccia.
Cosí gli altri avanzandosi, lo presero.
Ma Gesú, gli occhi al ciel, senza vederli
Li perdonava e li seguia sereno.
Era scabro il cammino. In cima a un monte
Saliano; e da' due fianchi e giuso al basso,
Su la terra era notte. E, quando al fine
Aggiunser la più eccelsa erta del colle,
Di repente fu visto illuminarsi
Uno de' lati d'una blanda e dolce
Luce; ma immensa. E quanta terra in quella
Dal monte all'oceàn capia, su cui,
Dall'alto riflettendosi, la viva
Face splendea, si rischiarava tutta
Da valle a monte, e risalia la bianca
Luce a mezzo l'azzurro arco del cielo.
E puro somigliava albor lunare
O da quel lato rinascente aurora.
Ed era questo il lume che su Giuda
Non risplendea,
Era tenebra fonda e parea come
Di quei triste il delitto ella ascondesse
Tutt'all'ingiro, in procellosa notte
Biancicante di neve all'orizzonte.
Cosí, divisa in due parti la terra,
Involta questa rimanea nell'ombra.
……………………………...............................…….
Fu da quest' ombra che la chiesa nacque.
Domenico Milelli, Rottami, p. 39. 1890.
FIM
Acabado de imprimir EM 10 DE JUNHO DE 1892 comemorando o 312º ano DA MORTE DE CAMÕES
NA TIPOGRAFIA DA ACADEMIA REAL DAS CIÊNCIAS
para
*M. GOMES*, LIVREIRO-EDITOR
estabelecido na
Rua Garrett (Chiado), 70-72
LISBOA.
70, RUA GARRETT (CHIADO), 72 — LISBOA
Livreiro de Suas Majestades e Altezas
[1] Neste caso, preferimos manter a grafia original, para dar conta da aférese de a no advérbio ahi.