ANTONIO FLORENCIO FERREIRA
TROVAS
IMPRENSA DE LIBANIO DA SILVA 29 — Rua das Gaveas — 31 LISBOA
Para satisfazer ao pedido de amigos e corrigir as deformidades que se encontram nalgumas cópias, imprimo agora as modestas quadras que principiaram a ser conhecidas sob o título de Canções de Amor, por me ser impossível publicar de momento o livro que conterá, além das modernas, as principais composições dos meus volumes de versos, que de há muito não aparecem no mercado.
I
Sem padre, sem cruz, sem nada?
Vês aqueloutro, pomposo,
Do templo a frente enlutada?
Talvez o do outro o não seja…
Mas ambos, de igual doutrina,
São filhos da mesma Igreja.
É o afeto desta mãe,
Que ao rico dispensa afagos
E ao pobre atira o desdém!
II
Que sabem quanto fazemos;
São capazes de informar-nos
Se nos devem, se devemos…
Nossas tenções inquirir,
Manda-se lá… inteirada
Por certo que há de sair!
III
Eternos, que não têm fim,
É a maior das blasfêmias,
Heresia, quanto a mim…
Se os homens, por maus que sejam,
Tal não podem legislar,
Porque a Morte aos criminosos
Vem da pena libertar,
No rancor e na secura
É de embrenhar nosso espírito
Nuns abismos de amargura!
IV
Questões de filosofia;
Pode nelas haver ciência,
Mas não podem ter poesia.
V
Mulheres que festejei;
Vistes o amor em quimeras?
Nunca iludir-vos pensei!
Essa ideia presunçosa?
Esquecestes esta máxima:
«Sê modesta, não vaidosa.»
VI
Como é velho o teu palor!
Mas, como tu, sempre encanta,
Velha embora, a luz do amor!
VII
Dormido ao terno embalar
Da poesia que se evola
Do teu mimoso afagar!
Que sonhos devera ter!
Nos braços de huris, de fadas
Mais gozo não pode haver!
VIII
Já se não usa a sangria…
Por isso, caso hoje raro,
Ele sangra noite e dia.
A lanceta… o seu olhar;
A ligadura… seus beijos,
Que não tardei a furtar.
O meu pobre coração,
Á espera de que mais beijos
O estanquem e ponham são!
IX
Nas vagas de iroso mar,
Uma vez que nelas ouça,
Mesmo ao longe, o teu cantar!
Da cratera dum vulcão,
Uma vez que assim o indique
Tua nívea, linda mão!
Que importa viver sem ti?…
Nem sequer um ai sonhaste,
Quando em tantos me exauri!
X
Que nunca a sede perdeu,
Encontrar em vão procuro
Amor que se iguale ao meu!
XI
Que me devem enterrar,
Para do sol e das aves
A despedida aceitar.
Esses mimos de ternura,
E dar-tos quando gelada
Baixares à sepultura.
XII
Vai ao encontro da tua,
Qual noturno caminhante
Ansioso da luz da lua.
A teu lado, sem saber
Se nessa vida é que existo,
Se na que torno a volver!
XIII
Não se pode aniquilar;
Digam às rolas que matem,
Aos lobos que vão rolar…
Á inexperiência mentir,
Mas, ou mais cedo, ou mais tarde,
Bom, ou mau, tem de surgir.
XIV
Tlim, tlim, tlim, tlim, tlim! — Quem bate?
— «O Amor.» — Que pretende? — «Entrar.»
— Vá-se embora! — «Então é gelo
O que a tantos vai queimar?…»
XV
Não me encantas! salgueiral,
Estas veias do Mondego,
Tempos idos, nada val'…
Oh! muito longe daqui!
Ela, tão distante, vejo-a!
Olho, e sempre a vejo a si!
XVI
Não te quero despertar…
Ha de ser devagarinho
Que trovas te vou soltar.
Uma cama irei fazer;
De jasmins e de saudades
O travesseiro há de ser.
Lindos, belos, perfumados,
Os meus olhos, da vigília,
Tristes, languidos, magoados…
XVII
Com esta luz verde e ouro!
Que namorados gorjeios!
E de frutos, que tesouro!
O que me faz vacilar,
É se do sol se douraram,
Se tu que os foste enfeitar!
XVIII
Remorsos… — visão pungente!
Ditoso de quem for justo!
Feliz do que não os sente!
Nem invejas, nem rancores!
Remorso é de arrependidos,
Do inferno aqueles horrores!
XIX
Dos que costumo trocar:
Falam, suspiram, seduzem,
Querem minh'alma arrancar!
Encerram tanta doçura,
Que me parece abrangerem
Dos anjos toda a ternura!
XX
Fui contemplar o portal
Da residência que logras,
Supus ver lá um rival.
Condenado, morto, enfim,
Que imaginar que te roubam,
Que te separam de mim!
XXI
A noite! a noite!… as estrelas!…
Foi o sol que se escondeu,
Ou teu corpo, exceto os olhos,
Que num manto se envolveu?
XXII
Daquele, que não és tal…
Achas bem o que pratico,
Do que faz me dizes mal.
Pelas mãos metes os pés…
Leve o demo tais amigos,
Amigos como tu és!
XXIII
Coitada! chorosa vem!
Pede esmola… dão-lha, alegra-se,
Talvez pensando nalguém!
Nenhuma esp'rança luzir!
Tinha inveja da mendiga,
Não mais tornava a sorrir!
XXIV
Mas — firmeza — é de amizade;
Não gostava deste asserto
No vigor da mocidade…
XXV
Todos, no mundo a chorar?
Dele também não saímos
Sem um suspiro exalar!
Do ventre de nossa mãe…
Suspiramos pelas glórias
Que outra vida em si contém!
XXVI
Semelha a lua no céu,
Que tem fases, mas subsiste;
Creio assim o afeto meu.
Ou presente, ou invisível,
Não posso deixar de amar-te,
O olvido não é possível!
XXVII
Inda há pouco, à beira-mar!
Tu no meu braço apoiada,
Eu num dolente cantar!
Teu intimo removeram!
Vinha a noite… pelas faces
As lágrimas te correram!
Num estranho murmurar,
Disseste que com as ondas
Te podia comparar!
— «Elas vinham, não voltavam…»
Poesia? pressentimento?
Sorri, chamei-te criança,
Não soubeste o meu tormento!
XXVIII
Dum Imortal, o mesmo é
Que levantadas estatuas
Denegrir desde o sopé.
XXIX
Águia que um dardo abateu!
Mães que chorais vossos filhos,
Quem me adorava — morreu!
Tão gravada no meu peito,
Que pode ler-se inda quando
Em cinzas eu seja feito!
Em que te foste operar!
Partiste, e não mais voltaste,
Vidente da beira-mar!
Sem vaidades, quero ver
Dentro de ti, como outrora,
Viva a imagem do seu ser!
Que hei de sempre conservar,
Segreda-me os seus desvelos
Quando a febre me assaltar!
Nosso convívio risonho,
E julgo durar instantes,
E parece tudo um sonho!
Subiste ao céu! oh! sim, creio!
Indigno de nele entrar,
Tenho a certeza, ao chamar-te,
De me vires oscular!
Para um destino cumprir;
O meu iguala o das aves:
Cantar enquanto existir.
Ainda junto de mim!
Que importa faltar o corpo,
Se noss'alma não tem fim?
Vem receber o meu pranto!
Correi, correi, minhas lágrimas,
Vós sois, também, mudo canto!
Destas quadras te ditei,
Qual seria o meu suplicio
No remate que lhes dei!