Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Miragem, de Coelho Neto


Edição de base:

Biblioteca Virtual Brasileira

PRIMEIRA PARTE

I

Maio, em flor, findara entre lágrimas.

A casa do Madruga, silenciosa e fechada, parecia entregue ao tempo e às ervas que começavam a cobrir os muros. O jardim murchava à falta de rega e de trato e cabras errantes, atravessando a cerca de espinhos, andavam pelos canteiros, devastadoramente, roendo os brotos das roseiras, arrancando as mudas tenras. Porcos fossavam a terra descobrindo as raízes e os pequenos, de parceria com os animais, assaltavam o pomar devastando as árvores como uma praga.

A família emigrara para o Pati, onde a viúva fora esconder a sua tristeza e o seu luto, não podendo suportar a saudade do marido ali, entre as árvores que ele plantara, esbarrando com os objetos de que ele se servira. No dia seguinte ao do enterro, a luz bruxuleante da manhã brumosa, saiu o pequeno grupo num carrejão coberto de palha e, desoladamente, com o agudo chiar das grandes rodas, ao passo grave dos bois, lá se foram os três — a viúva e os dois filhos: Tadeu e Luíza.

Tadeu, homem feito, mas enfermiço e fraco, sem vigor para o trabalho dos campos, vivia como caixeiro em uma venda no alto do Rio Bonito. Luíza, sadia e graciosa, já púbere, de carnes exuberantes, colo rijo, lindas cores, amadurecia agarrada à mãe, bordando letras em lençarias, fazendo panos de crochê ou correndo as terras de casa, descalça, os cabelos soltos, à cata de frutos silvestres.

O morto, belo tipo de homem, nascido para mourejar, pletórico, de constituição formidável e primitiva de colosso, soberbos músculos, saúde de ferro, vivera em luta constante pela vida. Corria a tudo, de tudo entendia. As vezes viam-no passar carreando, vara ao ombro, descalço, amplo chapéu de palha à cabeça, o casaco pendurado num fueiro do carro. Diziam-lhe graças, respondia, sempre de bom humor: “Cá se vai!” E gritava, e falava a junta em voz cheia e reboante. Outras vezes aparecia tangendo tropas de muares, vendia-os, trocava-os, sempre alegre e a boca pequena dizia-se que ele comprava clandestinamente o café que os negros roubavam às tulhas das fazendas. Se lhe falavam nisso, dava de ombros, arregalando os olhos:

— Homens, olhem que é negócio! Achasse-o eu...!

E escancelava a boca em cachinada estrondosa. E os outros riam com ele.

Era um sólido másculo, de alma ingênua e meiga. Português, do Ribatejo, criado na lezíria, amava o campo. A sua mesa era abundante. Havia sempre um quinto ao torno e a dispensa regurgitava como um celeiro, porque para ele a vida “era o que se comia e bebia”. A família, se não ostentava, aparecia sem miséria em toda a parte. Às festas do Rosário e da Conceição, Luíza concorria com a sua prenda e, uma ou outra vez, alumiaram os altares círios oblativos da família Fogaça, que o homem era de muita crença e valia-se dos santos para todos os fins: para que os milhos crescessem, para que não lhe viesse o mal do fígado, pela saúde da mulher, pela asma do filho, pelo noivado da filha de que já se falava, correndo que certo Manoel do Carmo, de Ferreiros, andava a corresponder-se com ela, misteriosamente, pelo Vassourense.

O filho era o sentimento do velho: sempre doentio e magro. Vinham-lhe, às vezes, acessos de febre, ânsias, e ficava de cama semanas e semanas. Sempre que falava dele contraía-se-lhe o rosto e, sacudindo a cabeça, cheio de desesperança e de mágoa, resmungava:

— Não vai longe! E tinha por ele misericórdias de afeto, fechava os olhos a muita coisa. Pobre rapaz! É um coitado! Que se há de fazer? Deixá-lo. Há de ser o que Deus quiser.

A mãe, mais ríspida, revoltava-se:

— É um preguiçoso, um molenga, um vadio! E, se Manoel Fogaça acenava-lhe que deixasse, agourava rezinguenta:

— Que ele havia de dar o pago, o marmanjo. Metade do que ele dizia era manhã. Fosse-lhe atrás das lamúrias e havia de ver...

Uma tarde achava-se o velho no jardim, de camisa de meia e tamancos, regando os canteiros, quando o filho apareceu à cancela, sacudido por uma tosse rouca. Fogaça voltou-se e logo, alarmado, exclamou:

— Que é isso?! Já aí vens deitando a alma pela boca. Tadeu encolheu os ombros e entrou devagar, cansado, dizendo o que, até então, tentara ocultar:

“Noites em claro, com o peito ardendo em fogo e aquela tosse horrível que lhe rebentava os pulmões em sangue. De manhã estava que nem podia e tinha de ir para o balcão, de servir aos fregueses carregando pesos”.

Fogaça ouviu-o calado, por vezes caramunhando, de olhos úmidos. Por fim tomou-lhe o pulso e, encarado nele, disse baixinho: — Estás quente, rapaz. Estás com febre. Entra. Vai deitar-te. Não fiques aqui ao relento. Vendo, porém, que o filho hesitava, com olhares à casa, já alumiada:

— Medo da velha, hein? E sorriu. Deixa-a lá. Estás doente, que diabo! ... Quem sabe se há de ir para a Misericórdia se tens a casa de teus pais. Era o que faltava.... Trata-te e depois... Maria Augusta ao ver o filho, estacou de mãos nas cadeiras, olhos carregados, balançando ameaçadoramente o busto:

— Deixa-o, mulher. Não aumentes a aflição ao aflito. Está a arder em febre. Basta ver-lhe a cara. E lá o foi conduzindo, enxugando-lhe a testa com o seu grande lenço vermelho. E interrogava-o: Não tens fome? Pois é, preciso comer e ter cuidado contigo — nada de umidade: É deitar a horas, acordar cedo, apanhar sol nesse corpo e deixar andar o barco. Há de tomar jeito. És moço, que diabo! ... Na tua idade a natureza ajuda. Com uns chás, boas sopas e regime isso vai-se embora e ficas aí um turuna, hás de ver.

Com a filha era impertinente, ríspido. Não raro, bradava em rebentinas:

— Que não queria derretimentos. Visse bem! Desancava a pau o primeiro patife que lhe rondasse a porta! Desancava-o e a ela também. Luíza refugiava-se, chorando, junto de Maria Augusta. Sobrevinham rugas:

— Que a pobrezinha era quem pagava as favas, só porque era mulher. O outro, o maricas, lá estava repimpado na cama, comendo e bebendo à tripa forra. Esse podia fazer o que quisesse. Era só chegar com a manhã e encontrava carinho e desvelo. Para a coitada eram só palavrões e maus modos. Isso não. Tão filho era um como outro.

Manuel Fogaça, quando via a mulher abespinhada, longe de lhe dar troco, punha-se a rir estrondosamente, com o que mais a enfurecia.

— Ai, a ira! Não te danes, filha. Olha que assim nascem-te os cabelinhos brancos e vão-se-te os dentes antes do tempo.

E saía para o jardim ou estirava-se no sofá, de perna alçada, tamborilando na palha do encosto. A trautear em tom de mofa, piscando o olho brejeiro. A filha intervinha então, fingindo amuos: “Que era assim mesmo. Papai é todo dengues para Dézinho, e para mim é o que se vê: má cara e pitos a toda a hora”.

— É que fazes por isso, dizia placidamente. Vê lá se me trazem queixas dele? Já alguém o viu debruçado a cercas conversando com raparigas? Quem se gaba de lhe ter visto os dentes? Ninguém! Gente de bem quer-se assim ... E moças então! Olha que não é por trazer o rosto muito descoberto que se ganha fama de virtude. Quem se recata não se queima ao sol, já diziam os meus.

Luíza avançava colérica:

— E que é que dizem de mim? Que namoro? É essa súcia de não sei que ... Cambada de aduladores! De sorte que a gente não pode chegar à porta para ver quem passa que não digam logo que está namorando?

E impetuosa, fechando o punho, esmurrando o ar: Pois namoro! Não é da conta de ninguém. Namoro mesmo, ora ai está!

Chorava, murmurando, por entre soluços, contra os intrigantes:

— Que olhassem para as suas casas, não fariam pouco. Ela não era a única moça dali; outras havia que até passeavam de braço com os rapazes e na igreja, ao domingo, ajoelhavam-se junto deles para conversar. Dessas ninguém falava. O macaco não olha para o seu rabo. Súcia!

As lutas domésticas rematavam-se quase sempre em frente do baralho — à bisca de quatro: Fogaça e a filha, Tadeu e Maria Augusta. E novas discussões travavam-se entre os parceiros — porque um não fizera sinal do ás ou do rei e, quando sucedia ser ralada a sete era uma algazarra que se ouvia à distância: ria um par, outro bramava em fúria. Se era Fogaça quem ralava tremiam os móveis, tais eram os saltos que dava pela sala para fazer gana à mulher, bailava com as duas cartas na mão, esfregando-as. “Cá está, raladinha da silva! ”

Maria Augusta revoltava-se contra o filho: Que nem para aquilo prestava.... Pois se já estava a cochilar, o pamonha.

— Qual cochilo, senhora, tornava Fogaça; é que aqui joga-se! Queixa-te ao bispo! E ria com ambas as mãos no ventre. Maria Augusta repelia as cartas: “Que não queria mais saber de jogo” e levantava-se resmungando. Instada, porém, tornava à mesa com avisos ao filho:

— Que se estava disposto muito que bem, senão, que se fosse deitar, porque ninguém o queria ali para ver-lhe o céu da boca.

E recomeçavam.

Aos domingos saíam cedo para a missa. Fogaça vestia a andaina de pano, calçava sapatos e atava uma gravata. Maria Augusta, em grandes saias, carregada de ouro antigo, e Luíza, vestida singelamente, o ar recolhido de comungante, o livrinho entre as mãos cruzadas sobre o colo farto de mulher precoce.

Na igreja, Fogaça deixava a família e ficava no adro conversando; só entrava quando tocavam a “Sanctus”. Ajoelhava-se a um canto, benzia-se e inclinava a cabeça sobre o largo peito onde a camisa fofa espocava, com um grande botão de ouro no papo.

À porta, finda a cerimônia, apartavam-se — as mulheres recolhiam-se à casa, ele subia ao Rio Bonito para abençoar o filho. Encostava-se ao balcão, bebia um trago e conversavam. Despedia-se por fim e descia, com ligeiras paradas aqui, ali, indagando de uns, mandando lembranças a outros, cumprimento aqui, graçola adiante; e tomava o caminho de casa vagarosamente. Almoçava, dormia um sono e o resto do dia dedicava ao jardim e ao poleiro, onde vários galos terríveis preparavam-se para as rinhas, no sítio do Correia, para as bandas de Massambará.

II

Flamejava violento o sol do meio-dia e, através do silêncio abafado, tiniam vibrantes pancadas de malho num ferreiro próximo. A estrada seca rutilava e havia no ar adusto e trêmulo um cheiro acre de erva esturricada, como se lavrasse incêndio na várzea. De longe em longe passavam tropas vascolejando bruacas e surrões e estalavam chicotadas ríspidas. Em torno da casa, cercada de colmeias, zumbiam enxames de abelhas.

Maria Augusta e Luíza cosiam sob o alpendre quando viram chegar à cancela um pequenote, esbaforido e arquejante. “Que é?” Indagou Maria Augusta com mau modo, e o pequeno, esticando-se nas pontas dos pés, bradou para que bem lhe ouvissem a voz: “É seu Manuel...” E, voltando-se para a estrada, atirou o braço em gesto largo.

— Mas que é? Que é que você quer com seu Manuel?

— Caiu e o carro virou por cima dele. Parece que está morto.

Maria Augusta levantou-se de ímpeto, com a boca aberta como se lhe faltasse o ar, os olhos imensos, fixos, brilhando em fulgor de loucura. Luíza, estonteada, de pé, olhava-a de mãos postas, tremendo:

— Que é, mamãe? Que foi? Mas Maria Augusta já havia atirado para longe o pano que cosia e precipitou-se para o jardim, soluçando sem lágrimas, de mão a cabeça, a exclamar alucinada:

— Ai meu Deus! Que será de mim?! Meu pobre Manuel! Meu pobre marido!

Luíza, paralisada em espanto, andava com os olhos tontos de um para outro lado, aturdida. Tremiam-lhe os lábios e o colo ondulava precipitadamente. Mas como a mãe desaparecesse, arrojou-se descalça, aos gritos, agitando os braços em desespero.

Turco, que dormia entre as taiobas, despertou e seguiu-as, ladrando. Maria Augusta já havia alcançado a estrada e enchia o ar com exclamações aflitas vendo vir o grupo que trazia o marido. Ficou estatelada, sem ânimo de avançar, apertando freneticamente a cabeça entre as mãos. E soluçava: “Não o queria ver! Não tinha coragem!”

Luíza agarrou-se lhe aos ombros, chorando: “Meu pai! Meu paizinho!” Acudiram mulheres da vizinhança e cercaram-nas animando-as com palavras de conforto: “Que tivessem paciência! Que se conformassem com a vontade de Deus.”

Crianças apinhavam-se pasmadas; algumas choramingavam e o grupo aproximava-se lentamente, funebremente, como em enterro — homens suados, em mangas de camisa, trabalhadores, negros, um rancho compacto, moroso e grave. Uma nuvem dourada de poeira toldava o ar e o sol abrasava caindo de chapa sobre a turba.

Maria Augusta, que se debatia entre as mulheres, libertou-se e investiu impetuosamente, com regougos, desgrenhada. O grupo abriu-se e ela pôde chegar até junto do marido, que vinha estendido sobre uma taboa, manchada de lama, pálido e rígido como um cadáver. A camisa, aberta e rota, deixava inteiramente nus o largo peito másculo coberto de velo negro e crespo, os braços formidáveis, o robusto pescoço, que se destacava da alvura dos ombros marmóreos, pelo tanado da cor, quase brônzea, adquirida nas soalheiras dos campos. A fisionomia estava horrivelmente contraída como a do estuporado, as pupilas vítreas e dilatadas. Uma lágrima descia-lhe morosa e triste pela face salpicada de lama; copioso suor inundava-lhe o rosto álgido. As mãos crispadas, os dedos em flexão tetânica, o polegar cruzando a palma da mão, duro e rijo, em resistência de anquilose.

Maria Augusta atirou-se de joelhos e os homens pousaram em terra a taboa, afastando-se diante das duas mulheres que se abraçavam com o corpo como se o quisessem arrebatar e, de rastros pela poeira ardente, procuravam, com palavras de ternura, chamar à vida o morto amado.

Subitamente, porém, um homem surgiu arquejante, atravessou o agrupamento e ajoelhou-se entre as mulheres baixando a cabeça sobre o corpo imóvel. Tremiam-lhe os ombros e todo ele vibrava agitado violentamente pelos soluços. Mas sobrevindo-lhe um acesso de tosse, ergueu a cabeça abafando a boca com a mão e viram-lhe o rosto demudado, os olhos fundos e mais pálido do que o que ali estava estirado em meio da estrada, inerte, ao sol. Era Tadeu.

As lágrimas desciam-lhe dos olhos em fios, os soluços precipitavam-se, apenas interrompidos pela tosse cavernosa e rascante.

Não disse palavra. A notícia surpreendeu-o quando descia para o Fura olho com o carrinho de mão, levando compras.

Nazário, o ferrador, foi quem conseguiu desviar a família de junta do esquife rústico garantindo “que Fogaça ainda respirava e que o melhor era carregarem-no para casa, que ali assim ao sol até lhe podia dar a gangrena.” Recuaram os três, os homens tomaram a taboa e o bando pôs-se de novo em marcha.

Tadeu seguiu ao lado do pai, com os olhos marejados de água postos tristemente no rosto impassível e trágico do moribundo, que guardava indelevelmente o ricto do momento da agonia. De vez em vez subia-lhe um soluço, olhava vagamente como a pedir conforto aos que o cercavam. Mas as lágrimas irrompiam copiosas, violentas, irresistíveis. Escondia o rosto nas mãos e seguia sem ver, resmoneando palavras incompreensíveis e, lentamente, afastando dos olhos as mãos lavadas em pranto, voltava à contemplação dolorosa, arquejando de sofrimento.

Maria Augusta seguia amparada pelas mulheres, pedindo, através dos soluços, “que lhe contassem a desgraça.”

— Ninguém podia dizer como fora, afirmou Nazário. Ele vinha descendo a rua Bonita com o carro — bois novos, sôfregos.... Ninguém podia dizer a verdade: que fora assim, que fora assado. Ninguém vira. Dizia-se que um tronco de cabiúna, rolando do carro, apanhara-o em cheio. Fora ainda por Deus que os bois não se lembraram de andar; um passo mais que tivessem dado e ele teria sido feito em bagaço, ali mesmo. Ele, porém, era de opinião que aquilo não passava de um choque e lembrava o que acontecera, no caminho de Mendes, ao Catalani, que ficara debaixo de uma pilha de sacos de café donde o haviam retirado como morto e, entretanto, ainda por ali andava arrotando grandezas e caloteando Deus e o mundo.

Luíza preocupava-se com o coração, queria saber “se não ficara ofendido?” Indagava “se não saíra sangue?”

Nazário, grave, consolava:

— Descansem; não há de ser nada. O doutor não tarda. E, alteando a voz: “Vão ver que amanhã ou depois ele está aí lépido e são como um pêro. É um touro! Isso é lá homem para morrer assim?! Perdeu os sentidos, é o que é, mas também a coisa não foi para brincadeira — um diabo de viga capaz de sustentar o edifício da Câmara...”

Diante da casa houve pequena pausa enquanto um homem abria a cancela para que entrassem os que transportavam o corpo. Tadeu tomou a frente guiando os padioleiros através do jardim, até à varanda, com muitas recomendações:

— Que fossem devagar, pela sombra, evitando solavancos. Maria Augusta, abraçada à filha, segada à distância, lastimando-se: “Grande Deus de misericórdia! Que será de nós?!”

Nazário ficou à porta impedindo a invasão: “Que diabo queriam lá fazer? Deixassem-se de bisbilhotices. Tudo era folia para aquela gente.”

E empurrava as crianças, tirando-as da cerca aos safanões violentos:

— Chica! Pensam vocês que isto é circo, cambada? Está um pobre homem a morrer e essa canalha aqui assim a fazer uma bulha de seiscentos diabos. Chica!

E, com razões e violências, conseguiu arredar a onda de curiosos e só quando os padioleiros reapareceram resolveu-se “a entrar um bocado para ver o coitado.”

Haviam-no estendido no leito, de braços abertos, a cabeça alta sobre os travesseiros; tinha o peito nu e úmido de suor.

A respiração flébil, quase imperceptível; mal se lhe sentia o pulso, mas as lentas pulsações da artéria eram indício de vida.

Tadeu, em azáfama estouvada, andava pela casa procurando arnica e bradava: “Que fossem buscar o médico, que trouxessem qualquer.” Maria Augusta não saía do quarto. Sentara-se à cabeceira do marido e, imóvel, como petrificada, percebia-se-lhe apenas o ondular do colo e as lágrimas que desciam silenciosas e grossas dos olhos minguados e roxos. Luíza correra a acender o oratório.

Nazário aproximava-se do quarto, pé ante pé, quando uma mulher apareceu à porta com ar de espanto, o dedo nos lábios: “Então? Que é? Vai mal?” Indagou Nazário baixinho. “Entre, mas devagar. Parece que ele está recobrando os sentidos.” O ferrador insinuou-se pela porta entreaberta.

Fogaça parecia libertar-se do colapso agudo, saía da inibição provocada pelo traumatismo. Os braços moviam-se lentamente com tremores leves, a fisionomia compunha-se; um soluço fugiu-lhe da garganta opressa e os olhos foram readquirindo o brilho natural. Aquecia-se e já se lhe podia sentir a respiração, posto que ainda flébil, a pequenos sopros. Maria Augusta ajoelhara-se no beiral da cama e procurava falar-lhe. Torcia as mãos e ansiava, de olhos cravados no homem, acompanhando-lhe atenciosamente todos os movimentos. Mas Nazário adiantou-se:

— Que era melhor não dizer nada. Esperasse. Ele estava melhorando, deixassem.

Fogaça, efetivamente, começava a reanimar- se: — os braços, em lentas flexões, esfregavam-se pela cama, a cabeça oscilava como em agonia e as pálpebras baixavam, subiam, pesadas, morosas, deixando ver os olhos sempre quietos, mas já sem o tom baço e frio que os velava. Por fim a perna curvou-se e os lábios abriram-se sorvendo um grande hausto profundo. Maria Augusta não se conteve — lançou-se quase sobre o corpo, exclamando em delírio de ternura:

— Meu Manuel! Meu Manuel! Sou eu! Não me conheces? Sou eu, Maria Augusta. Então, meu velho? Então?!

Nazário insistiu:

— Estás a teimar. Olha que podes magoá-lo mais. Ele está todo machucado.

— Deixe-me, pelo amor de Deus! Deixe-me! dizia a mulher tomando nas mãos aflitas a cabeça do marido.

Tadeu, que espreitava à porta, entrou sorrateiramente:

— Melhorou? Melhorou? E vendo a mãe, carinhosa, desveladamente inclinada sobre o pai, avançou, com o rosto aberto em sorriso. Mas o ferrador interpôs-se:

— Não vás também fazer asneiras.... Deixa-te estar onde estás. Que é do médico? Deixa lá o homem que está melhorando. Vocês é que estão com vontade de o ver morto. Não é com lágrimas que se curam feridas.

E Tadeu, tímido, estacou ao lado de Nazário, contemplando, de longe, o corpo do pai.

— Ah! Meu Deus! Suspirou por fim o enfermo, com esforço; e os olhos, como se acordassem, correram o quarto de relance, fixando-se no rosto de Maria Augusta.

— Ah! Meu Manuel! Que foi isto, meu velho? Que foi?

Fogaça esticou o lábio com indiferença e cerrou os olhos, abrindo-os, logo depois, docemente:

— Dá-me água, disse num fio de voz difícil. Dá-me água e manda chamar o Galdino.

Tadeu aproximou-se comovido e trêmulo e Fogaça, dando com os olhos nele, sorriu tristemente.

— Já foram buscá-lo, meu pai. Está melhor?

— Melhor ... e, com uma grande resignação: “Estou aqui deitado esperando o sono” e os olhos moveram-se procurando o céu. Melhor! .... Procurou estender a mão ao filho, mas o braço abateu inerte sobre a cama. Balbuciou o nome de Luíza.

— Quer que a chame, papai?

— Sim ... e dá-me água, tenho muita sede. Trincou os lábios, levou a mão ao flanco franzindo o rosto.

— Está doendo?

Acenou com a cabeça — que sim.

Maria Augusta, que saíra, reapareceu anunciando o doutor. Nazário correu a colocar uma cadeira junto à cama e adiantou-se solícito para receber o médico: um homem magro, alto, esguio, de pera esfarripada. Entrou no aposento falando a todos, pelos nomes, intimamente, e foi direito ao leito.

De pé, com os olhos no rosto de Fogaça, indagou em tom alegre:

— Então que é isso? O rei dos homens...!?

Fogaça sorriu esforçando-se para mudar de posição.

— Nada. Nada. Deixa-te estar como estás.

Houve um recuo respeitoso. Tadeu e Nazário foram ficar junto à porta. Maria Augusta encostou-se ao respaldo do leito e Luíza, que entrara, estacou olhando com grandes olhos, trazendo ainda na mão um rosário de contas agrestes. O médico examinou o enfermo minuciosamente. De quando em quando o rosto de Fogaça crispava-se em rictos. “Doe-te?” Ele afirmou com o olhar lânguido. “Não é nada,” serenou o médico: “questão de dias.” Espalmou a mão sobre a fronte álgida: “Não tem febre...” e, imperativamente, com o indicador a prumo:

— Nada de conversas, estás ouvindo? Nada de falas aqui no quarto. Voltou-se para os que o cercavam: Toda a tranquilidade é pouca. E descansem.

— Ouviu?! Observou Nazário a Maria Augusta. Conversas, lá fora.

Tadeu acompanhou o médico à porta:

— Vai receitar, doutor?

— Está visto.

— Mas não é coisa de perigo...?

— Perigo, perigo... Isso é conforme. Depende principalmente de vocês. O estado dele não é bom, não é, falando verdade, mas também não é desesperador. Nada de conversas aqui dentro, o mais absoluto silêncio. Qualquer emoção pode matá-lo, o choque foi grande. Nem sei mesmo como ele resistiu.

O médico acabava de sair, ouvia-se-lhe ainda a palavra precipitada, pelo corredor, a recomendar cuidados, e já Fogaça, ansioso, agitava-se na cama fincando os cotovelos para soerguer o corpo. Nazário, que o acompanhava, acudiu:

— Não te mexas, homem; olha o que disse o médico. Deixa-te estar quieto. Queres vir mais para cima? Pois vamos lá..., mas devagarinho, devagarinho.

Tomou-o, então, pelas axilas, arrastou-o de leve, muito de leve, puxando-lhe em seguida o lençol para o peito, com delicada solicitude.

— Assim estás bem. Agora deixa-te estar calado. Tens muito tempo para a prosa.

Sentou-se na cadeira ao lado, cruzando devagarinho os pés enormes, tisnados, que balançavam velhas chinelas de ourelo, negras da poeira ferruginosa da forja. Fogaça volvia os olhos com lentidão, agitando-se em movimentos brandos, ora encolhendo uma perna, ora repousando um braço sobre o ventre. Nazário não o perdia de vista e, calado, imóvel, quando desviava os olhos do enfermo, ficava a contemplar, num espelho, em frente, o seu próprio rosto, magro, queimado, a barba espessa e ruiva, os olhos miúdos, a fronte curta e sarapintada de sardas.

Fora soavam passos, tiniam louças.

Houve um longo silêncio. Nazário, com a cabeça inclinada ao peito, cochilava, estremunhando, de instante a instante, de olhos piscos; e fitava Fogaça que parecia adormecido, mas lentamente as pálpebras abriam-se e os olhos, do enfermo rolavam tristes nas órbitas cercadas de uma orla escura, que as tornava profundas como as das caveiras. A porta entreabria-se a espaços e uma cabeça espiava acenando a Nazário, que deitava o rosto sobre a palma da mão e cerrava os olhos, a mostrar que o outro dormia. Saíam sem rumor.

De repente o enfermo estremeceu, curvando-se em arco, com um olhar de indizível terror, a boca crispada deixando escapar um arquejo rouco. Grugulejos roncavam-lhe no peito como se o ar rolasse em borborinhos nos pulmões, os olhos reviravam-se-lhe angustiados, arranques faziam ranger a cama. Nazário precipitou-se de golpe, agarrou-lhe a cabeça, que se firmara no sínciput, o pescoço curvado em torção violenta, os músculos rijos, retesos; e todo ele tornava-se lívido e gelado. O suor umedecia-lhe a fronte álgida, os dedos contraíam-se-lhe com estalos secos, o ventre empinava-se a mais e mais. Nazário inclinou- se e, encarado nele, pôs-se a falar baixinho, inquieto:

— Eh! Manuel! Então, Manuel...? Deixa-te estar. Olha o que disse o médico. Que é isso? Anda daí.

Mas Fogaça, hirto, fitava os olhos enormes, desorbitados e baços, a boca retorcida e fremente. Um longo arroto gorgolejou-lhe na garganta e ele oscilou como agitado em tremor nervoso. As pálpebras vibraram frementes e, amarfanhando o lençol nas mãos crispadas, pôs-se a arfar, aos haustos lentos, de olhos coalhados, vítreos. Nazário olhava-o aturdido; tomou-lhe o pulso, apalpou-lhe o peito, sacudiu-o de leve, chamando-o Manuel... Manuel! Repentinamente, voltando-se para a porta, como se falasse a alguém, exclamou apavorado:

— Morreu.... Esteve um momento a relancear os olhos pelo quarto, tonto, hebetado e tornou ao amigo, abalando-o como para despertá-lo: Manuel! Ó homem! ... Ora está! ... Estatelado, boquiaberto, olhos dilatados de espanto, o ferrador resmungava sem compreender o que via. Súbito, como espavorido, lançou-se do quarto descalço, surgindo na sala de jantar, onde se achava a família, preparando os curativos, e disse:

— Vocês querem saber? Parece que o Manuel morreu.... Houve um pasmo silencioso, entreolhado.

Em arrancada de louco, Tadeu arremessou-se, mas estacou voltando-se para a mãe, como se ainda duvidasse e lhe quisesse ler na fisionomia a confirmação da verdade. Mas Maria Augusta, trêmula, mal se podia erguer:

— Como...? Morreu como...!? Indagou ela atirando os braços em desesperado gesto. Como...? Pois o doutor não disse que não havia perigo...?!

Mas no mesmo instante, assomada, atirou-se pelo corredor, aos gritos, e todos seguiram-na em tumulto, com uma balbúrdia de falas e de brados.

As portas do quarto abriram-se de par em par diante do grupo atônito, que se precipitava alongando os olhos, querendo ver o morto.

À beira do leito Maria Augusta deteve-se ofegante, com os olhos ardentes cravados no marido. O rosto foi-se-lhe decompondo em esgar de espasmo, fortes anseios sacudiram-na, mas de repente atirou-se de bruços, às gargalhadas, estrebuchando, debatendo-se, rasgando as roupas, repuxando os cabelos. Agarraram-na conseguindo, a muito custo, arrastá-la do quarto. Tadeu, em estúpida impassibilidade, apalpava o pai, beijava-o, balbuciando. E Nazário dizia, em voz estrangulada:

Não sei...  Não sei...  Foi num momento. Não sei como se morre assim. Nunca vi! E tocava o coração com um resto de esperança. Nem um gemido...  Nada!

Tadeu ajoelhou-se junto ao leito. Quase no mesmo instante, porém, ergueu-se e foi buscar ao oratório um velho crucifixo, deitando-o sobre o peito do pai.

Sentia-se lhe a agonia represada: os olhos, de um brilho fulguro, umedeciam-se, logo secando como se a febre, que os inflamava; sorvesse o pranto; o peito estuava-lhe angustioso, opresso. Quedou airado, agarrando, sacudindo a cabeça a mãos ambas, como em acesso de loucura.

Mas quando a irmã apareceu desvairada, aos gritos, pôs-se a tremer, balbuciante, e arremeteu-lhe ao encontro com as lágrimas a jorros:

— Está morto, Luíza. O nosso bom pai já não existe. Olha, Luíza, o nosso pai...

E os dois, de joelhos, atiraram os braços sobre o corpo ainda tépido, apertando-o, com aflitíssimos soluços, balançando-o com desespero, a ponto da cruz rolar para o chão, caindo sobre a esteira. Nazário apanhou-a respeitosamente e, depois de beijá-la, colocou-a sobre o travesseiro, ao lado do cadáver.

Fora, havia rumor de luta e os gritos de Maria Augusta repercutiam.

Uma mulher entrou vagarosamente com duas velas acesas, mas estacou à porta, indecisa, olhando vagamente o grupo.

— Entre e deixe ficar as velas, disse Nazário. Entre. Os mortos não podem estar sem luz.

E a mulher pousou em silêncio os castiçais sobre o leito.

III

Leves, tênues, fluíam os alvos nevoeiros toucando os cimos, baixando sobre as veigas, em extensa e diáfana amplidão brumosa, ora serena, ora ondeante e revolta como o fumo que o vento abate e rola, aflante, à flor da terra, pairando, fugindo até esgarçar-se, sumir-se no ar.

Caía melancolicamente o crepúsculo de maio, já de inverno, frio e triste. Os sinos da Matriz dobravam a finados.

Estavam a enterrar Fogaça.

Nazário, que o fora acompanhar ao cemitério, consolava Tadeu.

Maria Augusta e Luíza, derreadas pela vigília e pelo sofrimento, haviam ficado em casa. Tadeu saíra com uma coroa, deixando-se estar ao lado do pai até o momento desesperado dos primeiros rumores da terra caindo, às ruflas sobre o caixão.

Nazário conteve-se enquanto pôde, mas a dor angustiosa e sincera do órfão comunicou-se-lhe a alma sensível, de sorte que as suas últimas palavras de consolo saíram-lhe por entre lágrimas e soluços e quando, para evitar maiores agonias, quis deixar junto ao túmulo a coroa de saudades para descerem, Tadeu opôs-se: “Queria ficar mais um pouco com o pai. Mais um instantinho. Era a sua despedida.”

Os que haviam subido com o morto, logo que o coveiro atirou as primeiras passadas de terra despediram-se com abraços e desceram. Outros ficaram ainda revendo túmulos, relembrando amigos, parentes, que ali jaziam sob lajes, com uma cruz à cabeceira.

Tadeu torcia as mãos, e quando alguém se aproximava para abraçá-lo, rompia a chorar, debruçando a cabeça sobre o ombro de quem o apertava nos braços, e guaiava:

— Ai! Meu pai! Meu pobre pai! Coitado! Meu pobre pai!

Pouco a pouco, porém, foram desertando todos e Nazário falou a Tadeu.

Vamos indo, rapaz. A noite está a cair. Tua mãe e tua irmã estão lá em casa sós. É preciso acompanhá-las. Que diabo! Tens razão, mas... a vida é assim mesmo. Também perdi meu pai, sei o que isto é. Mas descansa, ele está com Deus. Coragem, anda daí. Agora o chefe da casa és tu, entendes? Tens obrigação de ser forte. Se entras a desesperar que será das pobres mulheres?! Vamos.

Mas Tadeu, que baixara os olhos, descobriu o Turco deitado sobre a terra fresca, com a cabeça enorme estendida entre as patas, a língua pendente, arquejando.

—    Ah, Turco! Também vieste, meu velho! ...

O cão levantou os olhos meigos e agitou a cauda, fitando-o.

— Meu pobre Turco...!

 O cão pôs-se de pé e, ganindo surdamente, rebolando-se, aproximou-se, de cabeça alta, olhando-o enternecido.

— Então que é isto, rapaz! Vamos daí, anda.

Mas o coveiro passou para o lado em que se achava o grupo, pedindo licença:

— Tivessem paciência, tinha de acabar aquilo antes da noite, porque o corpo não podia ficar ao tempo.

Desceram vagarosamente. Nas figueiras bravas ciciavam as últimas cigarras e já fulgiam nos vales os primeiros vagalumes. O ar frio recendia docemente. O casario espalhado pelos declives, ia perdendo a alvura e já a penumbra crepuscular fechava os horizontes. Apareciam luzes e, triste, como o toque fúnebre do enterro, o sino vibrou de novo, religiosamente, na mansuetude vesperal, os dobres da Ave Maria e por longo tempo gemeu no espaço o som dolente.

Os dois homens estacaram no alto, defronte do cemitério. Nazário, profundamente religioso, persignou-se com os olhos no céu, balbuciando. Tadeu voltou-se para lançar um derradeiro olhar ao sítio em que lhe ficava o pai.

O coveiro, curvado, atulhava a cova a lentas passadas cheias e a terra atorroada soou a princípio túmida, soturna, depois balofa, caindo, por fim, sem ruído.

Chiavam carretas, tiniam alegremente campainhas de tropas. Nazário tirou a bolsa de fumo, enrolou um cigarro e ofereceu-o a Tadeu:

— Olha, fuma. A vida é isto. Que se há de fazer? Hoje um, amanhã outro. Para que há de a gente amofinar-se? O que não tem remédio.... Custa, não há dúvida, mas.... Como passassem diante da Matriz, já aberta e iluminada para o Mês de Maria, o ferrador acrescentou:

— Com este é que nós devemos agarrar para que nos guie nesta vida e nos receba na outra. Com Este é que nós achamos sempre. E, de chapéu na mão, persignou-se de novo.

Tadeu propôs saírem dali. Estava a chegar gente. Era melhor evitarem os pêsames, as palavras de sentimento que mais agravam a tristeza.

— E que não querem dizer nada, acudiu Nazário. A verdade é que ninguém sente. Muita coisa: Sinto muito e porque mais isto e mais aquilo e mal nos deixam o pescoço, vão ao gole e ao resto. Qual! Sentimento é o dos que perdem, esse é que é. Que eu sinta, que diabo! É natural. Nascemos na mesma terra e aqui chegamos juntos. Ele foi lá para as suas lavouras, eu voltei à minha forja, depois de ter também tentado o negócio dos negros. Mal ou bem sempre nos demos e tu sabes o que éramos um para outro. Que eu sinta, vá lá..., mas essa súcia?! Esse bêbedo do Manéquinho pode lá sentir alguma coisa? Um canalha que anda sempre a tresandar a cachaça! Um patife que não se fartava de falar do Manuel, a chorar como uma cachoeira. Bêbedo! ... Não o rachei ontem com um murro, porque, enfim, estava diante de um corpo, mas cá por dentro... eu é que sei! A maior parte da gente que lá esteve ontem a fazer quarto não foi senão por causa da comezaina e do gole. Essa súcia, meu filho, conheço-a toda... todinha! digo-o eu.

Haviam chegado à casa. Nazário deteve-se:

— Vai e deixa-te de choros. Trata de consolar as mulheres e põe-te firme. Coragem! E até já. Vou aqui à casa e volto a ter com vocês.

Apertaram-se as mãos. Nazário partiu e Tadeu esteve ainda algum tempo à cancela, olhando o céu, que a noite estrelava, como se visse passar, subindo para o Paraíso, leve, luminosa, na névoa fina do crepúsculo, a alma santa do que partira.

Demorou-se absorvido e só voltou à realidade a um afago do cão, que não arredava os olhos do seu rosto, como se o quisesse consolar com a sua enternecida mudez.

IV

Arrastaram-se taciturnos os últimos meses de inverno e de saudade. Setembro entrou radioso dissipando as derradeiras névoas, enxugando as derradeiras lágrimas. A casa do “Madruga” abriu-se de novo para receber a família que voltava do exílio, onde fora anojar.

Tadeu partira à frente “para cuidar da vida” dissera, mas o motivo real fora a tristeza que lhe infundia o sítio do padrinho, uma tapera merencória, onde apenas havia o rumor do monjolo e o murmúrio das águas, com dois bois magros, esfalfados, que passavam os dias errando pelos pastos.

No dia seguinte ao da missa do sétimo dia, Tadeu, que sentia saudades da casa, despediu- se da mãe e da irmã e, apesar da insistência do padrinho para que ficasse mais uns dias, alegando afazeres, partiu do Pati, a pé, aproveitando a fresca da manhã.

Não se sentia bem naquela casa tumultuosa, cheia de mulheres que rezingavam e crias que lhe invadiam o quarto remexendo em tudo. Desconfiava das mulatas que cochichavam pelos corredores, espocando muxoxos, olhando-o de esguelha, com menoscabo.

Quando o chamavam para a mesa ia sempre contrafeito, acanhado, aceitando cerimoniosamente os pratos que lhe serviam, comendo em silêncio, de cabeça baixa e, mal terminava as refeições, saía para a chácara ou trancava-se no quarto, deitando-se ou debruçando-se à janela, a desfiar o sonho de fortuna com que contava restaurar o lar em esteios ainda mais fortes do que os que firmara o pai, tão fundamente abalados com a sua morte.

Caminhando, deixava-se penetrar da alegria da terra orvalhada e cheia de passarinhos, revoada de insetos. Tudo aquilo parecia-lhe viver sadiamente e bem dizer a vida, desde a poeira que se levantava a seus pés, até as montanhas longínquas, muito azuis, aqui, ali dourando-se com o sol.

Um cheiro adocicado de mato impregnava o ar fino. E ele seguia, ora pela chã, nas trilhas direitas, margeadas de ervas floridas, ora vencendo aclives escavados, fundos sulcos das rodas dos carros de bois.

Parava nas alturas espalhando a vista pela paisagem circundante. Via-a toda verde, viçosa em milharais e pastos. Ali, um engenho, um moinho além com a água a chofrar na grande roda; carros de lavoura, gente trabalhando nas roças, cafezais a eito pelas colinas encarapinhadas.

Longe, no alto, branqueando, casarões de fazendas, com o terreiro à frente, as senzalas em volta, os currais murados.

O sol subia alumiando calidamente em ouro. Tadeu não sentia o calor, tão enlevado ia naquele devaneio feliz. Porque não havia ele de conseguir o que outros conseguiam: tirar riqueza da terra próspera? E já lhe não bastava a chácara do Madruga —queria tudo o que via, aquelas campinas, aqueles vales, aqueles montes, espalhava por eles olhar de dono, chamando-os a si, não com ambição egoística, mas com a intenção generosa de amparar a mãe e a irmã, tirando, em colheitas fartas, a abundância e a alegria para o lar, dando-lhes, a elas, em dobro, o que as coitadas tinham por perdido, enterrado na mesma cova em que jazia o homem bom e forte.

Via-se no campo, ao sol, cavando para semear e já as sementes brotando, a flor abrindo-se e o fruto amadurecendo — a paz, a prosperidade, a vida correndo tranquila e suave à proporção que os cabelos maternos, raros e embranquecidos, iam dando ao rosto sereno de Maria Augusta a expressão virtuosa e benévola da velhice.

Que seria delas, pensava, se lhes faltasse a sua proteção? A mãe, viúva, desamparada e pobre, com uma casa e um palmo de terra por semear, teria inevitavelmente uma triste velhice de miséria e de amargores; e a irmã, formosa e moça, que seria dela se a não defendesse o carinho sincero do seu coração contra as ciladas dos que andavam a mirar a sua puberdade, vendo-a desenvolver-se em beleza e em graça? E que outro, senão ele, faria guarda à castidade de Luíza?

A terra era a sua esperança, a terra abençoada e fértil, sempre compensadora; essa mesma leira detestada e temida, que, em outros tempos, lhe arrancara lágrimas de cólera quando, ainda menino, o pai o chamava para ajudá-lo na horta.

Essa mesma terra, misteriosa na sua germinação, alagada em janeiro, florida em maio, seca e abrasada em dezembro, mas constantemente fecunda, constantemente em gestação, à luz do sol e do luar ou sob aguaceiros, produzindo se a semeavam, explodindo em fetos e espinhais se a deixavam em pousio.

Essa mesma terra, detestada outrora, acenava-lhe com os seus múltiplos ramos, como se todas as árvores, agitadas pelo vento morno, quisessem atraí-lo, em tentação sedutora, chamando-o para a iniciação nupcial de uma vida nova, de paz e de fertilidade perene.

Demais, que seria das pobres mulheres se a terra o não socorresse? E seus olhos comovidos alongaram-se pela várzea enamoradamente, significativamente, como se lhe quisesse dizer que a recebia para o noivado eterno.

Subitamente a visão desfez-se como névoa que o vento dilui, e o pensamento voltou-se-lhe para o pai.

Vieram-lhe à memória as cenas recentes da morte: o cadáver inteiriçado sobre o leito, mais tarde no caixão, mãos postas, pálpebras cerradas, frio e pálido, um lenço atado ao queixo, entre círios, coberto de flores. Depois o saimento, à hora do crepúsculo. Mas recuando para os dias remotos da infância, viu-o vivo e forte, com o seu formidável corpo de colosso, e como se, efetivamente, o ribatejano houvesse ressurgido e lhe falasse amigamente ali, em plena campina, entres coles de esmeralda, ouviu-lhe, clara e distintamente, a voz.

Estremeceu e voltou-se.

Silencioso e abafado, o campo estendia-se deserto; longe, em verde baixada, bois soltos pastavam. Um velho negro vinha pela estrada tocando um burrico moroso.

O sol ardia intenso e, dentre o espesso arvoredo subia lenta, fluindo em bruma no ar, uma fumarada azul.

Tadeu, exausto, estacou, recolhendo-se à sombra, à margem da estrada. O negro passou saudando-o. Correspondeu e, muito tempo, enquanto seus olhos alcançaram, seguiu-o pelo extenso campo calado e morno.

O calor subia.

O céu, muito azul, resplandecia e ofuscava e toda a vasta extensão das terras, adormecidas na quentura enervante do meio-dia luminoso, estava deserta e calada. As barrancas sanguíneas flamejavam e os milharais de ouro vívido, ao sol, tinham a aparência, fúlgida de chamas que alastrassem sem crepitação e sem fumo. Tadeu começava a sentir cansaço e sede. E a cidade ainda tão longe, além dos morros!

Mas a ânsia cobiçosa de começar a vida, de distribuir as terras, de prepará-las para a semente, arroteando-as: parte para horta, outra parte para os cereais, as barrancas virgens para o mandiocal, as colinas para o café; o corte dos aceiros, a construção do bicame para as regas, todo o trabalho que havia de ser a salvação da família e a sua glória de homem chamava-o para “Madruga” e, com tal insistência, que, desprezando a soalheira, sedento e suado, deixou a sombra fresca e lançou-se a caminho pela poeira fina da estrada adusta, a grandes passos, o chapéu tombado sobre os olhos, a cabeça baixa, olhando a sombra negra do seu corpo na claridade nítida da estrada.

Finalmente seus olhos descobriram, através da verdura, o muro branco de uma casa. Era a primeira, anunciando o povoado; dali para baixo começava a cidade.

Um cão saiu à porta ladrando e investindo e um pequeno em fraldas de camisa, pernas nuas, veio à cancela espiá-lo.

Abrasado de sede, com a garganta seca, a cabeça ardente, as têmporas latejantes, alagado em suor, esteve para pedir água à criança que o mirava curiosamente, mas, chegando à volta, em frente à casa, no alto, descobriu a cidade, no vale: as torres da Matriz, a Câmara e, lá para longe, em densa massa verde, os eucaliptos altíssimos.

De algumas casas partiam chispas, janelas flamejavam e uma claraboia incendiada refulgia com brilho solar, entre as telhas escuras.

Aspirou largamente o ar do monte e avançou pela descida cavada em brocas pelas enxurradas, entre barreiras abruptas, e só parou no largo, em frente do portão do cemitério, demorando-se saudoso a olhar, através das grades, os túmulos de mármore, claros, banhados de luz: alguns entre cercarias de ferro, outros nus, cobertos de mato, abandonados e esquecidos.

Ali, ao fundo, estava enterrado o pai, pensou; e os olhos foram-se-lhe umedecendo e, pelo rosto, molhado de suor, rolaram lágrimas repentinas.

O coveiro cantava no silêncio do campo santo. Tadeu quis chamá-lo para que lhe deixasse ir ver a sepultura, mas a sua voz perdeu-se sem resposta. O homem não podia ouvir, estava trabalhando em alguma cova para alguém que morrera nesse dia. Passou adiante, deu volta ao pequeno cemitério chamando, mas o coveiro continuava a cantar, tranquilo e surdo, entre as samambaias. Esteve algum tempo à espera. Por fim partiu através das ruas emudecidas.

Quando passou diante da ferraria Nazário, agarrado à pata de um cavalo, raspava-lhe o casco e o pequeno Damião, negro de tisne e avermelhado pelos reflexos da forja, insuflava o fole cantarolando, a olhar para a estrada. Vendo Tadeu deteve-se sorrindo e “mandou que entrasse”.

Nazário levantou a cabeça:

— Quê! És tu? Quando chegaste? Entra. E deixou a pata do animal, avançando de mangas arregaçadas, com o grande avental de couro até os ombros.

Tadeu estendeu-lhe a mão, contando que deixara a família, que viera só para dispor a vida, e, de improviso, encostando-se à bigorna, declarou que não voltava à venda.

— E então? Já tens outra coisa?

— Tenho essas terras que ele nos deixou; vou cultivá-las. Sempre hão de dar mais alguma coisa do que o balcão. Depois estou no que é meu.

— Mas tu podes lá com essa vida de enxada? Deixa-te disso, rapaz. Fica onde estás e deixa-te de maluquices.

E interrompeu-se para dizer “que mandara nesse dia rezar uma missa por alma do Manuel”.

Tadeu indagou se fora muita gente.

— Eu e mais umas cinco pessoas. Ah! Isso é assim mesmo. Não, que ele agora não pode empanturrar os buchos. E elas como ficaram?

Tadeu, em curtas palavras, expôs o sofrimento da mãe: “noites e noites em claro, sempre chorando, pedindo a morte. E magra de fazer pena. Luíza, enfim, sempre era mais corajosa:

— Sim, coitada... Ele era um homem como não há muitos. E contigo? Como vai ela?

Tadeu sorriu tristemente, encolhendo os ombros.

— Sempre impertinente, hein? Tem paciência, filho; vai aturando. Que há de fazer? Trata de ser homem e deixa-a andar. Já almoçaste? Ainda não, com certeza. Entra que ainda deve haver alguma coisa para enganar o estômago.

Tadeu, que dera alguns passos, voltou-se de golpe:

— Quem morreu hoje, Nazário?

— Hoje? Porque perguntas?

— O Julião estava a trabalhar quando passei pelo cemitério.

— Mas o Julião trabalha todos os dias, até já o encontrei uma noite ferrado à terra. É verdade que foi no tempo da epidemia. Não me consta nada. Só se foi a Leocádia, que tem passado mal da moléstia; só se foi ela. Mas não creio, porque o Pinto esteve aqui de manhã e não me disse nada. Aquela não vai tão cedo.

— É barriga d’agua...?

— Sei lá! É uma coisa. Já ouvi dizer que é coração. Sei lá que é! Quando os próprios médicos vivem a dar com a cabeça pelas paredes...  É qualquer coisa. Mas vamos almoçar. Anda que deves estar com o estômago a tinir.

Levou-o até o fundo e voltou tranquilo, vagaroso, para junto do cavalo que o esperava pacientemente, preso à argola, com os olhos vendados por um pedaço de cânhamo.

V

Só, através do campo sereno e úmido, meio velado ainda pelo crepúsculo, posto que o dia, no céu chamarreado de ouro e púrpura, fosse, aos poucos, desabrochando, Tadeu caminhava, de enxada ao ombro, em mangas de camisa, afundado na erva orvalhada e alta, que crescia viçosa pela vastidão das terras férteis, por onde jamais andara o ferro do arado, por onde jamais passara o gume das roçadoras.

O Massambará, alto e verde como os milhos, ondulava a perder de vista, dizendo a feracidade do solo. Nos cerros, velhos cafezais, abafados pelo sapê, ainda marcavam os renques paralelos e, à borda dos banhados frios, as largas folhas róridas dos inhames pareciam de bronze.

Tadeu lançava os olhos pelas terras, fazendo mentalmente a distribuição dos lotes, calculando as colheitas.

Parecia-lhe que todo aquele mato bravio e extenso, crescido ao acaso, aquecido pelas soalheiras do estio, alagado pelas chuvas do inverno, sempre estéril e nu, ia rebentar em flores e em frutos aos primeiros clarões do dia, e contemplava-o enternecido, levantando os olhos para o alto, acompanhando o voo rápido de um pássaro que abalara logo que pressentira o farfalho da erva que ele ia abrindo para atravessar.

A confiança crescia-lhe na alma. Aquela terra que ia ser lavrada pelo seu braço, havia de pagar-lhe o esforço e o sacrifício quando o outono chegasse. Se outras, sáfaras e maninhas, de pedregulho e calcário, rebentavam em floração mal recebiam a semente da mão do semeador, aquela, virgem, nova e rica de seiva, nunca explorada pelo braço do homem, intacta e abençoada, porque jamais lhe caíra em cima uma gota de sangue, por que não havia de produzir?

Nunca escravos haviam trilhado os seus carreiros nem as grotas ouviram gemer, salvo se alguém, de passagem, as tivesse procurado para descansar um pouco, confiando à sua discrição as agonias do cativeiro e os terríveis travores da saudade.

Essa bendita gleba seria fecunda e farta e, certamente, a família havia de viver à sombra doce dos ramos, colhendo as flores, colhendo os frutos, como em um paraíso.

Estranha alegria transparecia-lhe no rosto iluminado; os olhos fulgiam contemplando extasiadamente a terra e a curiosidade de tudo ver, de tudo examinar levou-o de ponto em ponto, das baixadas às alturas das colinas de onde alongou a vista numa visão vaidosa e ufana pela redondeza, alcançando, além dos capoeirões, em planície longínqua, as culturas de um sitio vizinho, onde não cessava o trabalho da turma negra que ele, donde estava, via ir lentamente subindo pela encosta do outeiro, dentro da luz triunfal da madrugada que tirava cintilações das enxadas e doirava os campos.

Sentou-se e pôs-se a arrancar raízes. Outros pensamentos rolaram-lhe no espírito. Como adquirir o gado de que carecia para o serviço? Os bois que restavam, estafados da canga, mal se podiam ter nas pernas.

Seria melhor vendê-los para o corte e aproveitar o dinheiro em compras úteis. Ao mesmo tempo, porém, sentia como um remorso à ideia de desfazer-se dos velhos animais, esgotados no serviço da casa, envelhecidos ali, pacíficos e meigos a tal ponto que ainda se lembrava do que fazia com eles quando criança: à tarde, mal o pai os soltava, ia-lhes em cima com o chuço, atropelava-os, feria-os, e eles, sempre mansos, voltavam os olhos doces, num olhar resignado, e partiam, sem revolta, escondendo-se nos matos.

Vendê-los parecia, ingratidão. Melhor seria deixá-los ficar: que morressem onde tinham nascido, os pobres bois e a Mulata, a vaca doméstica, roída pelos bernes, com as tetas murchas, passeando pela solidão o seu esqueleto pelancudo, tão velha na casa que ninguém poderia dizer ao certo quando entrara para o curral. Era a mãe do Batoque e do Crioulo, que andavam tristonhos, mugindo, como se sentissem a falta do homem que os levava, nas frescas manhãs, através dos pastos cheirosos, cantando, sem lhes tocar com a ponta da aguilhada.

Vendê-los parecia a Tadeu ingratidão cruel. Que vivessem; que acabassem ali mesmo, os pobres animais. E, como baixasse os olhos, descobriu por trás da casa, no terreno, os bois que haviam saído do curral, sempre aberto. A Mulata esfregava-se ao moirão e um dos bois, brasino e forte, de grandes armas curvas, levantou a cabeça e, como se saudasse o sol que subia, dominando o céu, esticou o pescoço para o alto e mugiu prolongadamente.

Mas para Tadeu, sensível e impressionável, esse fato naturalíssimo apareceu sob feição maravilhosa — os animais agradeciam-lhe a misericórdia pela boca do mais forte. E o olhar doce com que os contemplou foi um olhar de perdão.

Súbito, vendo a manhã em plena luz, ergueu-se. Já havia escolhido o sítio para começar — era a fralda da colina, terras de prodigiosa força, excelentes para o café. Tomou a enxada ao ombro e desceu para o local escolhido.

Um bando de rolas levantou voo, rufiando as asas. Tadeu estacou, seguiu-as e, por fim, arregaçando as mangas, tomando corajosamente a enxada, ergueu os olhos ao céu como se quisesse pedir a benção para que o seu trabalho frutificasse prosperamente.

Derreou-se, com a enxada erguida, e a terra sentiu-se aflorada pela primeira vez pelo gume do ferro que lhe abria o seio para receber o gérmen.

As horas sucediam-se intensamente abrasadas; o sol a pino luzia e Tadeu, em exaltação crescente, capinava, sem consciência do tempo, empenhado na luta suprema.

A camisa rota, esmolambada, deixava-lhe quase todo o busto nu: o peito magro, côncavo, ripado pelas costelas, os braços finos, flácidos, os ombros cavados, tudo a luzir, como envernizado a suor. O cabelo colava-se lhe empastadamente à fronte e às têmporas. Respirava aos haustos, com um papejar do ventre, de olhos baços, vítreos, como assonorentados de álcool. Mas a vontade impelia-o, dobrava-lhe as forças. A ideia de levar pela terra rasa, e por montes, a lavoura do sonho fortalecia-o energicamente. Que lhe importava a sede exsicando-lhe a boca, gretando-lhe os lábios? Que lhe importava a fome que o aturdia se, dentro em pouco, todo aquele baldio de sapezal e pedras seria um mar de verdura florida, promessa alegre de colheita farta? Morreria, se preciso fosse dando-se, em sacrifício, à terra, contanto que ela, fertilizada pela sua carne, pelo seu sangue toda vicejasse, sem nela ficar trato sem planta e planta sem flor e fruto.

A luta era terrível e maior lhe parecia sempre que alongava os olhos e descobria extensamente, ondulando ao vento, as capoeiras intonsas e comparava o trabalho feito com o que tinha ainda a fazer. Mas não descorçoava. Esperança serena enchia-o de coragem.

Curvava-se de novo e, cavando, a lentos, desfalecidos golpes, que mal raspavam a terra seca, levantando-a em poeira, que rebrilhava ao sol, sonhava o seu lindo sonho de prosperidade, já se sentindo na exuberância que havia de vir, rico, abrindo estradas largas para os carros, caminhos para as tropas, picadas para os colonos, construindo galpões para guardar as colheitas, instalando máquinas para beneficiar o café, moer a cana e o milho, esmagar a mandioca...

Quando o sino da Sé, em badalada grave, cheia, anunciou o meio dia, Tadeu levantou a cabeça surpreso, olhando o céu como se quisesse acompanhar o som que passava, rolando. Pareceu-lhe impossível que o dia tivesse caminhado tão rápido e, enquanto soaram as horas, com a enxada em pé sobre o solo, o chapéu na mão, manteve-se imóvel, em atitude humilde e contrita, ouvindo.

O sol caía-lhe de chapa sobre a cabeça nua e, quando os ecos extintos deixaram silencioso o espaço azul, cobriu-se recolhendo-se à frescura de uma grota, sentou-se, tomou a marmita da refeição e comeu, olhando distraidamente as saúvas que andavam carreando folhas, em grandes filas pelos carreirinhos. Sentia-se prostrado, mas satisfeito, prevendo os dias fartos que haviam de correr sobre o sítio, quando as sementes viessem em vige à flor da terra.

Comeu pouco, sem fome. A fadiga, vencia-o. Estirou-se na erva, à borda d’agua e, ouvindo o murmúrio sereno e perene do cristalino fio que trebelhava nas pedras e fugia sinuoso, por baixo das folhas dos inhames, adormeceu pesadamente, com o rosto voltado para o céu, os braços escancarados, a boca aberta, ressonando.

Caía, suave a tarde quando ele abriu os olhos. Sentou-se e, reconhecendo a hora, teve um gesto de contrariedade, calculando o tempo que perdera. Mas deixou-se estar sentado, as mãos espalmadas nas coxas, inerte e mole. Sentia-se extenuado — todo o corpo se lhe dobrava de fadiga.

O rumor das árvores crescia com os ventos vesperais e os flexuosos capins erguiam-se, baixavam, ondulando com suave marulho como o das ondas nas praias.

Lançando os olhos em frente, o desânimo passou-lhe pelo espírito. Como vencer aquela exuberância, ele só, contra a força viva e inconsciente da natureza? Como triunfar de toda a seiva misteriosa que circulava nas veias subterrâneas alimentando as raízes silvestres? E, vagamente, uma ideia se lhe foi gerando no espírito visionário — a princípio indecisa e dúbia, pouco a pouco, porém, acentuando-se, impetuosa, dominadora.

À lembrança das queimadas de agosto, que limpam os campos, mais rápidas do que as turmas dos negros capinadores, carbonizando as matas, reduzindo a cinzas, que os ventos levam, as capoeiras copadas das campinas, nasceu-lhe o pensamento estranho de deitar fogo às terras do sítio para que a chama despisse os cerros do mato híspido e os fertilizasse ao mesmo tempo.

O fogo seria o seu camarada de lavoura, o seu colono, e enlevado nessa ideia estremeceu, agitou-se, devassando toda a paisagem com olhar dominador e altivo, subindo com os olhos aos cimos, baixando-os como se quisesse marcar o roteiro flamíneo, vendo os trilhos por onde deviam alastrar as labaredas.

E ergueu-se na solidão, apoiado à enxada, olhando e, intimamente, a voz do sonho dizia-lhe baixinho:

“Amanhã, se Deus quiser, bem cedo, toco fogo nisto, deixo queimar até ficar tudo em cinza, sem um toco. Então é que hão de ver esta terra como é boa e, com uma chuvazinha, ficará macia, fofa, fácil de trabalhar de enxada. Então sim! ... Para derrubar, sim! Isto nem com dez homens... Fogo, não... pegando, vai tudo.”

E, elevando os olhos, em êxtase, fixou-os no ocidente inflamado onde o sol desaparecera deixando rastros de sangue e ouro, e pasmado, imóvel, embevecido na contemplação, ainda sob o domínio fantástico da sua ideia, vendo a luz rubra do ocaso, teve a impressão nítida de um incêndio que lavrasse além, muito alto, em grandes chamas que lambiam o céu e, como aparecessem estrelas, pareceram-lhe flores que desabotoavam no azul purificado e fertilizado pelo fogo, como haviam de desabotoar nas terras do sítio, quando o incêndio as lavrasse para a sementeira.

Tomou a enxada e, vagarosamente, veio descendo pelos estreitos caminhos que a brisa fresca da tarde bafejava.

Rolas gemiam tristemente no arvoredo denso e as derradeiras cigarras ciciavam. A cor do céu esmaecia. As tintas vivas do ocaso esbatiam-se palidamente, esvaindo-se na penumbra do crepúsculo. O azul tornava-se profundo. Pouco a pouco, porém, as cumeadas das serras foram branqueando, uma luz doce, nupcial, de lâmpada porfírica, clareou o céu, clareou os montes e desceu pelas ervas das campinas.

Muros distantes emergiram da sombra muito brancos. Árvores imensas ficaram galvanizadas de prata. Pelas barrancas, pelos ínvios trilhos dos campos, pelas abas íngremes dos montes estendeu-se o clarão da lua que surgira num halo de ouro, alva, nívea, como grande pérola suspensa.

Tadeu sentia-se invadido pela melancolia comunicativa das coisas e a Ave-maria, a hora cristã de Vésperas, o toque do supremo viático, achou-o parado em frente à tranqueira da casa, entre os bois mansos, que ruminavam caminhando para as ruínas do curral antigo.

Outra badalada rolou pelo espaço recolhido e Tadeu sentiu-se enlevado para o divino. Estranho misticismo subjugou-o. Encostou a enxada à cerca, pousou o chapéu e ajoelhou-se na terra, entre o gado tranquilo.

Quando procurou a casa era noite fechada. O luar imenso resplandecia. Sentou-se à soleira da porta fumando e, contemplava o infinito céu estrelado e sereno, quando pressentiu rumores por entre as folhas das taiobas. Alongou os olhos. Um grande cão corria pelas áleas do jardim, aparecendo e desaparecendo; por fim avançou em direção à casa e galgou, de salto, os três degraus da varanda, caindo de rojo a seus pés, esfregando-se lhe nas pernas, de rastro, humilde e meigo, a bater com a cauda, ganindo. Era o Turco.

A alegria do animal, reconhecendo o dono, tornou-se em desvairamento. Atirou-se-lhe ao peito, impondo-lhe aos ombros as grandes patas, lambeu-lhe o rosto, as mãos, mirou-o muito e, súbito, atirou-se abaixo da varanda, circulou o jardim em vertiginosa corrida e voltou a acariciá-lo, ora agachando-se, ora rebolando de costas, com as pernas para o ar, varrendo o chão com a cauda. Tadeu chamou-o e, passando-lhe a mão pelo corpo magro, sentiu imensa piedade pelo cão que andara errando pelos caminhos, farejando o rastro dos senhores na poeira das estradas.

Magro e fouveiro, o pelo híspido e cerdoso, os ossos em grandes arcos salientes, o Turco não tirava os olhos do seu rosto como se quisesse demonstrar a sua alegria por o haver achado, e contar, na linguagem meiga do seu olhar submisso, as suas longas saudades concentradas, o sofrimento da sua vida errante pelos campos, pelos montes, ao sol, à chuva, uivando nos vales fundos na ânsia da nostalgia e do abandono, como se procurasse perguntar aos céus, com os seus gemidos, pelos que haviam desaparecido, pelos que o haviam desprezado. E Tadeu, como se o compreendesse, afagou-o, repousando-lhe a enorme cabeça sobre a perna, falando-lhe baixinho, enternecidamente:

— Então, meu velho...? Coitado! Esqueceram-te? Coitado do Turco!

O cão correspondia com a sua carícia estouvada, atirando as patas, ganindo.

— Que tens feito, meu velho? Por onde tens andado? Pobre Turco.

O aparecimento do velho cão despertou-lhe antigas reminiscências — fatos quase de todo apagados na sua memória ressurgiram como se tivessem ocorrido na véspera, claros e precisos. Quedou-se em demorado silêncio abraçado ao Turco, passando-lhe a mão pelo dorso. O cão arquejava com a língua pendente, a cabeça descansada sobre o seu joelho e fora, na estrada, ao clarão da lua, gente cantava em tom gemente e languido de queixa.

Os olhos fitos, estáticos, foram-se lhe tornando opacos como se súbita cegueira os velasse. Pouco a pouco a visão se lhe foi tornando indecisa e obscura — as estrelas confundiam-se e desaparecia o céu, as árvores e os caminhos desapareciam e o olhar ficou-lhe em sombra. O cão, estafado, adormeceu e o silêncio caiu interrompido por um brado alegre de Nazário que apareceu à cancela:

— Ó de casa! O Turco ergueu-se de ímpeto, ladrando e Tadeu, arrancado ao entorpecimento, aprumou-se em sobressalto:

— Quem é?

— Sou eu, homem. Que diabo fazes metido em casa com uma noite desta? Vem daí. Deixa-te de moleza.

Tadeu, porém, contendo o cão, que rosnava, convidou-o a subir, queixando-se de canseira.

— Que diabo andaste a fazer?

— Estive roçando um bocado.

Nazário subiu à varanda e, vendo o cão que o festejava coleando, a andar de um para outro lado, com resmungos, acariciou-o:

— Ó mestre! Então como vai isso? Por onde tem vosmecê andado? E voltando-se para Tadeu: Sabes? Quase o matam! Aquela besta do Julião e um negro...

— Por que?

— Por que! Sei lá! O bicho, desde o enterro do Manuel, fazia todos os dias uma viagem ao cemitério, deixava-se estar algum tempo junto à cova e descia, sem fazer mal a ninguém, porque, coitado, já nem dentes tem para morder, o pobre. Pois o bêbedo do Julião, apanhando-o perto do túmulo do velho, atirou-lhe com a enxada à cabeça e vazou-lhe um olho ... e o negro, ainda por cima, saiu atrás dele com matacões de pedra.

— Como?!

— Pois não viste? Tratei-o como entendi, porque o coitado veio, a sangrar, refugiar-se junto de mim, gemendo. Olha cá.

Agacharam-se os dois. Tadeu tomou nos braços a cabeça do animal e Nazário, riscando um fósforo, mostrou o olho cavado, de pálpebras murchas, e uma profunda cicatriz na arcada orbitária.

— Vês?

— Canalha! Exclamou Tadeu fremente de ódio. E o cão, como se compreendesse que tratavam dele, levantou a cabeça e deixou fugir um uivo enternecido, baixinho, rebolindo-se, bambaleando-se.

VI

A terra vencera o homem. Lá fora na grande noite a chuva torrencial alagava os campos, rolava em enxurros pelos valados; os ventos vergavam os galhos, retorciam-nos estrondosamente. As árvores debatiam-se em convulsões frenéticas, agitando fantasticamente os ramos em movimentos de agonia e de desespero, sob a tormenta implacável. As vidraças afogueavam-se em clarões lívidos de relâmpagos. Às súbitas, como em derrocada, estrépitos de raios atroavam o espaço.

Tadeu, de olhos semicerrados, em sonolência de febre, as mãos cruzadas no peito, ouvia o reboar da trovoada e o tamborilar da chuva ora leve, ora violenta, às bátegas.

Adoecera no campo. Caíra sobre os montes de erva capinada, golfando sangue. Damião, que lhe fora levar a marmita, achou-o quase desfalecido, de bruços, o rosto mascarrado de coágulos, a boca purpúrea, ansiando e gemendo. Correu a chamar o pai, apesar das instâncias de Tadeu — “que aquilo não valia nada, não fosse incomodar o pobre homem.” Mas o pequeno, à vista do sangue que empastava o chão, partiu a correr em busca de Nazário, sem ouvir as súplicas de Tadeu que rolava aflito, comprimindo o peito, respirando com ânsia, falando ao Turco que velava, estirado sobre os capins:

— Ai! Turco! Eu morro! Eu morro, meu velho!

Mais do que o próprio sofrimento sentia a derrota da sua fraqueza, compreendendo que estava para todo o sempre perdido, que o seu trabalho fatigante e pertinaz de três longos meses ia desaparecer com os transbordamentos da terra fertilizada pelo estio que entrara. As raízes detoradas reviçariam ao sol, voltariam à vida os renovos possantes dos vassourais bravios e toda a vegetação agreste derrubada, dentro em pouco, com aqueles calores que faziam amadurecer rapidamente os frutos, repontaria mais vigorosa, inutilizando a labuta aturada do seu braço, abafando as suas esperanças.

Sentia em torno de si pulular e crescer a flora maninha. A seiva fluía secretamente revivescendo os caules, passava em eflúvio renovador pela terra e seus olhos amortecidos umedeciam-se diante da inclemência estival que fecundava obstinadamente a gleba.

E tudo, em torno, em alegria triunfal, parecia zombar da sua fraqueza e da sua impotência: aves gazilavam, vinham voar perto do seu corpo, pousavam ao alcance do seu braço catando palhas para novos ninhos: folhas secas caíam-lhe sobre a cabeça: as árvores queriam mostrar-lhe que renasciam. Corimbos balançavam-se com o vento desabotoando em flor e, não longe, o capoeirão cerrado alteava as grimpas verdes e florescentes crescendo, revigorando-se, sempre vivo e sempre forte, absorvendo a seiva das árvores tombadas, vivendo da morte dos troncos fraternais que adubavam a terra, como os cadáveres adubam os campos de batalha, mais ricos depois da sangueira, retribuindo com a vida o tributo da morte.

O sol, vívido e ríspido, mordia-lhe as carnes, picava-lhe o rosto; a terra adusta queimava-o como se uma conspiração tácita houvesse sido combinada entre a luz e a lande para abrasá-lo como ele quisera incendiar as matas.

Quando Nazário chegou esbaforido, encontrou-o sentado, a olhar airadamente.

— Ó rapaz! Então! Que foi isso?

Encolheu os ombros, resignado:

— Canseira  .

— Pois de certo; é natural. Um pobre corpo como o teu pode lá com esse trabalho brutal? Pensas que puxar enxada é para qualquer? Deixa-te disso. Vamos daí. Manda ao diabo a lavoura. Ganhas a vida de qualquer modo, a questão é querer trabalhar. Não viveste até hoje sem isso, então? Anda, vamos; levanta-te! Como Tadeu não se movesse, adiantou-se. Não podes? Ora vejam.... Aqui assim com um sol de matar passarinhos. Anda daí.

Tomou-o pelos braços, guindou-o e, amparando-o, veio com ele vagarosamente pelos caminhos, resmungando:

— Que loucura! Um homem doente a trabalhar como um negro. Isto é para quem tem saúde. Teu pai, que era um touro, esse sim, podia passar a vida toda no campo que até lucrava. O sol, que lhe conhecia a têmpera, podia vir abaixo com todo o seu fogo que ele não se dava por achado. Mas tu! És lá homem para isso?! E apalpando-lhe as costas: Olha como estás encharcado.... Esquece-te dessa coisa de terras. Deixa o mato... que cresça. Que o leve o diabo! Outros que o tomem à conta, tu não, que não podes.

Como passassem pela clareira recentemente capinada, Tadeu deteve-se contemplando:

— Quase pronta! Considerou com tristeza.

— Quase pronta o que, homem de Deus!

Quase pronta o que! Caminha, que este sol escacha. Deixa-te de coisas...

— Com mais um mês de trabalho tudo isto ficava em estado de ser semeado, entretanto...

Ansiou aflito e a tosse sobreveio.

Nazário tomou-lhe a fronte. Nova golfada de sangue jorrou.

— Olhem pra isto! Dizia o ferrador comovido. Olhem pra isto! Isto até é não ter juízo na cabeça. Diabos levem a terra...! Queres descansar um bocado? Também não vale a pena, estamos perto de casa.... É mais um passo. Ora que doidice! E não arredava os olhos do sangue que ia sumindo, chupado pela terra calcinada e ávida.

Os bois, que pastavam, levantaram os olhos para vê-los. Nazário tocou-os:

— Eh! Bichos! E passaram.

No terreiro, Tadeu voltou-se ainda uma vez para olhar a planície e, descobrindo as terras, limpas e nuas, capinadas de fresco, não conteve as lágrimas.

— Que tens, rapaz? Por que choras, homem? Ai! Mau!

E como lhe seguisse o olhar descobriu o motivo da tristeza, acudindo:

—É ainda pelo trabalho que choras? É pelo trabalho perdido? Descansa que nada se perde na terra — é o melhor banco. Não é para ti, será para os teus filhos. É assim mesmo. Olha, eu também tive essa mania de terras, felizmente recuei a tempo, compreendendo que não é tão fácil lidar-se com elas como parece. E sou forte, tenho saúde, graças a Deus! Terras, eu? deem-nas de graça que não as quero. Cá para mim bastam-me os sete palmos de amanhã.

VII

Quando chegou ao Pati a notícia da moléstia de Tadeu, as duas mulheres sobressaltaram-se. “Que seria? Que não seria?”

Maria Augusta, que já se queixava do aborrecimento da vida — “metida naquele desamparo”, aproveitou o motivo para fugir às instâncias de Manuel Gomes, que insistia em que ficassem mais uns tempos. Negou-se; e, nessa mesma tarde, tratou de arranjar a bagagem, pedindo o carro para a manhã seguinte.

— Não, que se lhe morresse o rapaz não sabia que havia de ser delas, sem ninguém no mundo. Luíza correu a entrouxar a roupa afirmando — “Que não podiam deixar o irmão sozinho, sem uma pessoa que lhe desse os remédios a tempo e a hora.” Tinha lágrimas e gestos aflitos, invocava os santos, mas intimamente sentia-se feliz: Ia rever Vassouras!

Manuel Gomes tentou dissuadi-las, prometendo ir em pessoa ao Madruga ver o rapaz; elas, porém, no propósito em que estavam, recusaram. Luíza opôs-se. — “Que até lhes ficava mal deixarem o irmão, o único parente que tinham na terra, abandonado no fundo de uma cama”.

A mãe concordou: “Ficava feio: haviam de falar e com razão”.

Manuel Gomes encheu o cachimbo e, estirando as pernas, deu de ombros:

— Pois sim. Aqui vocês têm tudo, não lhes falta nada. Querem ir? Pois vão, minhas filhas, mas certas de que o rapaz não tem nada de cuidado. Teve saudades e inventou essa história de doença.

Mas Maria Augusta interrompeu-o, defendendo o filho:

— Não era capaz de assustá-las desse modo. Ele que mandara dizer que estava doente, estava mesmo. Enfim, fosse como fosse — o dever delas era seguirem quanto antes; não queria remorsos.

Recolhendo-se ao quarto, sentadas na cama, mãe e filha desataram a falar do sítio, recapitulando a vida amargurada que levavam naquele zungu de negras e mulatas, com Maria Rita à frente, muito catinguenta, puxando a dança.

— Nunca vi! Exclamou Maria Augusta, benzendo-se com a mão espalmada. Contando ninguém acredita. Um homem como seu Manuel Gomes metido com uma imundice dessas, sempre fedendo a sarro de cachimbo e a cachaça e suja de fazer nojo.... Até parece feitiço...

E Luíza acrescentou:

— Ainda se fosse ela só... são todas. Todas essas mulatas que andam aí com luxos de donzelas, muito cheias de quindins, de me deixes, tudo isso reza pela mesma cartilha. Eu vi muita coisa! À noite seu Manuel Gomes não dá acordo de si: sai da mesa aos tombos, como mamãe vê, deita-se na muafa e a casa fica entregue a essa corja. Então é que é..... Na noite em que a senhora teve aquela dor eu fui à cozinha buscar um pouco de água quente. Ahn! Não lhe conto nada...! Estavam todas de pagode com homens, um tocando violão, e Maria Rita no meio da troça.

— Pois é. É para você ver. E quer “dona”, essa biraia! Também que é que se pode esperar de uma tipa que saiu do quadrado? Seu Manuel Gomes é que eu não sei... E sempre a falar nas despesas, no preço disto, daquilo. Pois se viemos para cá foi porque nos chamaram. Eu sei... pensavam que tínhamos ficado com mundos e fundos... súcia! Seu Manuel Gomes é que eu não sei. Um homem tão direito, tão sério, dar para uma coisa assim.

— Ora, mamãe, gente que bebe é isso. E a senhora sabe lá as porcarias que elas dão ao pobre?! Vamo-nos embora...

Luíza arrastou o baú para o meio do quarto, abriu-o e pôs-se a arranjá-lo. Maria Augusta ia-lhe passando as peças de roupa que ela alisava, dobrava e acamava, falando sempre:

— A senhora é porque não viu o barulho que fez aí o mascate por causa de um par de brincos. Foi uma vergonha! Elas chegaram até a querer bater no homem e os brincos estão nas orelhas de Florinda, a tal que diz que vai casar com seu Chiquinho e vive metida com um e com outro. E esses moleques!? O que eles fazem por aí! O tal Totonho então... comendo à mesa com a gente, sujo, com o nariz escorrendo ranho e aqueles olhos cheios de sapiranga. Deus me livre!

De repente estacou hesitante e, derreando o busto, para falar a Maria Augusta, perguntou:

— Quantas camisas a senhora trouxe?

— Faltam, não é!? Explodiu Maria Augusta. E, atirando os braços, frenética: Não sei, não contei, mas deve faltar.... Não vê que essas ladras deixavam de surripiar alguma coisa.... Pôs as mãos, de olhos em alvos: Camisas de bretanha, com rendas finas. Foram-se! Conta. Vê quantas tem. Vagabundas! Luíza contou oito.

— Oito!

— Ora se eu havia de trazer oito camisas! Quatro, pelo menos, ficam com elas. É essa Maria Rita. Um diabo que sempre vestiu estopa. Eu mesma não sei onde tinha a cabeça quando aceitei o convite desta gente para meter-me aqui. Enfim.... Bateram à porta. As duas entreolharam-se e Luíza foi abrir. Dando com Maria Rita abriu-se em exclamação afável:

— Ó D. Maria, entre. Estamos aqui nos arranjos...

Era uma cabrocha reforçada, de colo farto e quadris ancos. Vinha em mangas de camisa, com o peito, os ombros e os braços nus, os seios bambos, caídos em papo flácido. Estacou à porta langorosamente, abrindo os braços entre as ombreiras.

— Que pressa, gente. Nem que fossem tocadas...

Maria Augusta, agachada como estava, explicou:

— Que não. Até levavam saudades. Tinham sido tão bem tratadas..., mas que haviam de fazer? O rapaz sozinho, doente... não haviam de deixar que estranhos fossem cuidar dele quando elas estavam ali. Isso não.

Ana Rita concordou:

— Sim. Se é por moléstia...

— Pois é. Se não fosse a doença ficávamos! E, de repente, risonha: Por que a senhora não vem passar uns dias com a gente, em Vassouras? Que é que a prende aqui? O compadre...? ora!

Ana Rita desculpou-se:

— Qual! não podia deixar a casa, principalmente naquele momento. Sem ela ninguém se entendia ali.

— Uns dias...

Arrugou o carão em sorriso e, recuando, rematou:

— Bem, não quero estorvar mais. O café está na mesa.

Saiu e Maria Augusta, sentindo-a afastar-se, cuspilhou para um canto, dizendo, com asco:

— Diabo da burra! É até capaz de fazer alguma porcaria para se vingar da gente.

E fechou o baú com estrépito.

VIII

Com a volta da família renasceram, mais fortes, no espírito de Tadeu, as primitivas ideias de cultura. Ainda fraco, tornou ao campo recomeçando a carpa das terras de novo invadidas pelo matagal e, apesar da violência das soalheiras do estio, só recolhia à casa ao pôr do sol.

Nazário ia, muitas vezes, ter com ele, conversavam à sombra, estirados na relva, à borda da água.

Tadeu, sempre esperançoso, falava das colheitas futuras, calculando resultados. O ferrador, porém, em vez de encorajá-lo, aconselhava-o a deixar aquilo: que voltasse à vida dos primeiros tempos, que não era homem para aquele trabalho; aquilo pedia pulso, saúde...

Apareciam, entretanto, os primeiros botões precursores, os milhos espigavam, o feijão alastrava como se a terra, subjugada e vencida, tivesse cedido ao esforço perseverante, abrindo, enfim, o seu seio germinador à semente, para reproduzi-la em rama, em flor, em fruto.

À noite, deitado, com a janela aberta, escutava atentamente rumores misteriosos, ora surdos e cavos, ora agudos e lancinantes: sussurros longos como suspiros de agonias, estalos, uivos, e parecia-lhe que era a terra que gemia, na ânsia genésica, prestes a desabrochar. Era a agonia inicial das eclosões. A terra mãe, procriadora e santa, sua esposa, fecundada pelo seu braço, contorcia-se no grande parto outonal, à luz calma e fria das estrelas. Sorria feliz e adormecia com esse sonho, ouvindo sempre o sussurro das matas longínquas açoutadas pelas ventanias.

Maria Augusta, porém, em vez de animá-lo, dava mostras de aborrecimento, contrariando-o:

— Que se deixasse de semelhante ideia. Que havia de fazer um homem só com aquele mundo de terras? Ainda se ele tivesse alguém para ajudá-lo.... Não contasse com ela, com ela não, que nunca pegara em enxada.

E, por mais que ele insistisse, trazendo exemplos, citando fatos: outros que haviam enriquecido com um palmo de terra, Maria Augusta retorquia:

— Que sim. Não dizia o contrário, mas eram homens, não andavam a deitar os bofes pela boca, como ele.

Tadeu calava-se e recolhia-se, fugindo às recriminações da mãe que, constantemente, falava da miséria próxima, mostrando-lhe a despensa vazia e o caderno das compras.

— O dinheiro há de sair de alguma parte, dizia em tom de ameaça.

Os dias passavam monótonos e tristes. A vida, em casa, tornava-se impossível para Tadeu — eram doestos e diatribes, pragas, suspiros de desespero. Luíza pedia a morte, soluçando. Para evitar cenas tais saía cedo, ia refugiar-se entre as árvores, cavando e pensando.

À noite, passava pela ferraria para desabafar, contando a Nazário as rixas domésticas. “Tratavam-no como um cão. A mãe não lhe dirigia a palavra, Luíza evitava-o. O seu quarto, abandonado e esquecido, era ele quem o arranjava, à noite, quando voltava do serviço. Que havia de fazer? Tentara aquele recurso por lhe parecer de mais proveito para todos e, era assim que lhe pagavam a canseira e o esforço. Que havia de fazer?”

Nazário aconselhava, compadecido:

— Que tivesse paciência. A pobre mulher via- se só, já caminhando para a velhice, sem os cômodos a que estava habituada e então, coitada! Tinha rabugices. Tivesse paciência, aturasse-lhe os rompantes. Era filho, tinha obrigação.

— Mas Luíza! Que lhe fiz eu? Eu, que só vivo por ela? Que lhe fiz para que me trate assim? Até ameaça-me com homens: Que sai de casa, que não está para morrer à míngua, nem para ser minha escrava, dizia com a voz trêmula, quase chorando.

— Ora, Luíza... Luíza é uma cabeça de vento. Não te importes. Eu vou ter com elas. Isso passa, descansa. Mas se queres o meu conselho, deixa-te de terras. Em parte, tua mãe tem razão. Que diabo podes tu fazer sozinho? Nada. Volta ao teu emprego e deixa-te de castelos no ar. Não abandones o certo pelo duvidoso. E quanto ao mais, descansa. Eu vou ter com elas.

Uma manhã, porém, no momento em que Tadeu saía para o trabalho, Maria Augusta tomou-lhe a frente com arrogância:

— Não tinham mais nada em casa; estavam nuas. O pouco que restava ele havia devorado. Que resolvesse: ou mudava de vida ou procurava outro rumo, porque aquilo não podia continuar assim. Elas sabiam viver, não lhes haviam de faltar recursos. Ele era um preguiçoso, um vadio, só queria comer e dormir. Arranjara aquela história de lavoura para passar os dias refestelado, de barriga para o ar, como um fidalgo. Que se arranjasse! Era homem, não se perdia. Deixasse-as.

Tadeu tartamudeou algum tempo sem achar resposta e, humilde diante da mãe, antevendo, como numa visão, todas as misérias que ela anunciava, falou sem revolta, submisso:

— Mas, mamãe, por que não vem ver o que tenho feito? Quem lhe disse que passo os dias deitado? Quem foi?

— Quem viu! Luíza, aí tens! Tua irmã, que não tem necessidade de mentir.

Os olhos de Tadeu rolaram alucinadamente, a cor subia-lhe ao rosto e, trêmulo, dominando-se, exclamou baixinho, comovido:

— Luíza, mamãe! Ela disse que me viu dormindo? Luíza!!

— Sim, Luíza. Queres negar?! Pois sim. Só tu falas verdade, só tu trabalhas... O caso é que não temos nada para pôr no fogo e estamos com os braços à mostra, porque o pouco que nos ficou lá se foi.

E assomada:

— Pois, meu amigo, é cada um cuidar de si. Tu, que és homem, não te importas; pois olha, meu filho, à fome é que não hei de morrer, isso garanto. No dia em que me faltarem recursos, ora...! Assim como assim, antes isso...

Tadeu, levantou, de golpe, a cabeça, exclamando com indignação:

— Mamãe!

— É como te digo.

E, tranquilamente, voltando-lhe as costas, soltou uma gargalhada irônica. Tadeu baixou a cabeça e grossas lágrimas rolaram-lhe dos olhos.

A ferraria silenciosa, quase toda em sombra, com um muro apenas alumiado por uma candeia de azeite, parecia deserta àquela hora da noite. Na forja vasquejava um resto de brasido. Vagalumes erravam pelo interior sombrio, piscando cintilantemente com fogos fátuos. Fora, alvejava o luar.

Quando Tadeu entrou na oficina, tímido, como criminoso, relanceando olhares investigadores, um vulto ergueu-se de repente como se houvesse surgido da terra.

— Quem é?

— Sou eu, Damião. Que é do homem?

— Deve estar no Leonel; foi para lá, mais o Augusto. Se você quer vou chamá-lo. Espera aí.

Saiu a correr para a estrada.

Tadeu encostou-se à bigorna tristonho, acabrunhado com a lembrança dos fatos desse dia. As palavras cruéis de Maria Augusta pareciam ressoar-lhe ainda aos ouvidos; a calúnia de Luíza atormentava-o, e mais do que tudo, a ameaça desonesta: o lar poluído pela mancebia, o nome imaculado da família, única herança que lhe restava intacta e pura, aviltado no concubinato. A mãe mercadejando com a viuvez; a irmã, desprotegida, desamparada, testemunha paciente desse crime, com a pureza do seu corpo e da sua alma sitiada pela cobiça lúbrica, deixando-se seduzir e vencer por promessas, entregando-se ao primeiro que lhe acenasse com o engodo mentiroso de prosperidade efêmera, de tranquilidade e fausto transitórios.

Conhecia bem o temperamento ambicioso de Luíza: cederia à tentação sem escrúpulo, desde que pressentisse a possibilidade de satisfazer o mais insignificante capricho.

A miséria, ameaçadora e terrível, punha em desbarato os sentimentos castos da família, escancarava as portas à infâmia, abria a alcova sagrada, franqueava o leito cândido da virgem ao primeiro que aparecesse, fosse quem fosse, contanto que tivesse dinheiro. Repugnavam-lhe tais pensamentos, repelia-os; eles, porém, tornavam em tumulto, enchendo-lhe a alma de presságios lúgubres.

Quando Nazário apareceu à porta, seguido de Damião, Tadeu saudou-o do escuro onde estava:

— Boa noite!

— Ó rapaz! Exclamou o ferrador. Por que não foste até lá? Estávamos jogando o solo. Anda cá para fora, que isso aí está negro como um prego. Que há de novo?

Tadeu desceu lentamente e encaminharam-se ambos para a porta. Sentaram-se na pedra negra da soleira.

— Tu por aqui a esta hora... isto é coisa. Então, que é?

— Vou-me embora, disse Tadeu tristemente.

— Vais-te embora? Para onde?

— Para o Rio ou para outro lugar qualquer. Não posso mais. Mamãe começa a expulsar-me. Luíza disse-lhe que não faço outra coisa senão dormir, que vou para a roça deitar-me. Hoje, pela manhã, disseram-me que sou eu a ruína da casa, que sou a causa da miséria que nos ameaça, porque não trabalho, porque devoro tudo quanto nos ficou de papai. Horrores. Mamãe chegou a dizer-me que saberá fazer pela vida para não morrer à míngua, dando-me a entender que procurará alguém...

Não concluiu. Violentos soluços sacudiram-no.

Nazário derreou-se a rir, com as mãos enlaçadas nos joelhos:

— Então que é isso, rapaz! Estás louco?! Ora essa... ora essa! Tua mãe ia lá dizer isso, homem?! Tu é que andas a sonhar. És doido! É sério: Então julgas que ela é capaz de manchar o nome de teu pai? Estás doido! Tua irmã, é casá-la, isto é que é. Está mulher feita, já é tempo de vocês cuidarem disso. Ora essa... Estás doido, decididamente.

— Pois sim, soluçou Tadeu. Se fosse de hoje... mas eu sei que elas me detestam.

— Detestam o que. pateta! Não digas asneiras. Detestam...

—Já no tempo de meu pai, por qualquer coisa atiravam-me em rosto — que eu dava cabo de tudo quanto ele ganhava com as minhas moléstias, que eram um nunca acabar. Desejavam a minha morte, pediam-na. Não é de hoje. O melhor mesmo é eu ir-me embora. Longe, ao menos, trabalharei por elas sem sofrer injúrias. De que me serve estar aqui se não tenho descanso? Vou-me embora, deixo-as em paz. É melhor.

— Mas que vais fazer no Rio? Pensas que o dinheiro anda ali aos pontapés? Enganas-te, rapaz. Se fosses mais novo podias arranjar alguma coisa no comércio, mas com a tua idade... Que diabo vais tu buscar ao Rio? Calma! Calma!

Mas Tadeu insistia:

— Não é possível viver assim. Hei de achar alguma coisa, seja o que for.

Calaram-se. Houve um longo silêncio. Damião, estirado na esteira, junto à bigorna, assobiava baixinho.

— Olha, queres saber uma coisa? Vem daí comigo. Vem espairecer um pouco. Deixa-te de histórias. Não me disseste que um sujeito de Ferreiros andava de namoro com tua irmã? Pois casa-a, homem. Casa-a de uma vez, acaba com isso. Deixa-a ir. É por seu gosto, que se arranje. O que a pequena quer é isso mesmo. Que se case. Sua alma, sua palma. Isso de mulheres, em chegando a certa idade, é assim. Deixa-a ir e cuida da velha. Ela sim, precisa de ti. Vamos!

Levantaram-se. Uma nuvem negra encobria a lua e os dois partiram pela estrada escura, conversando. Súbito a claridade reapareceu suavemente. As casas branquearam e os dois homens, extasiados, pararam em meio do caminho, contemplando o céu resplandecente.

— Linda noite!

Sob o alpendre de uma venda um rancho de tropeiros cantava, ao som de violas. Estalavam palmas, e um vulto, de vez em vez, saía aos saracoteios, sapateando ao luar.

IX

Dezembro, mês das águas, esplêndido nos primeiros dias tórridos, subitamente enfarruscou-se toldado de grossas nuvens que rolavam pesadas e vagarosas acumulando-se nas barras do céu. Ao cair da tarde, com a chiadeira das cigarras, rumorejavam surdos trovões e o escuro arrepiava-se em relâmpagos, zebrava-se de coriscos. Ventos espalhavam as folhas secas, levantavam remoinhos de pó.

Uma noite, súbito, fragorosamente, um raio estrepitou e, como trazido no vendaval azoado, o aguaceiro abateu violento, estrondoso, às bátegas, arremessando-se aos gorgolões das gárgulas, transbordando das calhas, crescendo na estrada em rio barrento, que invadia os terrenos, em ameaça de inundação.

De manhã, com o abrandar da chuva, escoando-se as águas, a estrada apareceu em lodaçal vincado a carris profundos, cavado em patejos de gado.

Aqui, ali nas depressões do terreno, rebalsavam-se poças alagadas, onde os carros entravam de corrida, aos trancos, atolando-as rodas até os eixos, com os bois arrancando, como espavoridos, ao falario excitante dos carreiros que os aguilhoavam desesperadamente. Ou era um tropeiro que praguejava atropelando a récua para contê-la, procurando arrincoá-la numa rampa enquanto acudisse a um macho cuja cangalha tombara e, espantado, às upas, chapinhando no lodo, ameaçava debandar em rumo ao mato. Raros transeuntes corriam encolhidos, com panos pela cabeça, chapinhando no lameiro.

Às vezes, em estiada, descia ao charqueirão um pálido raio de sol, logo, porém, recomeçava o borrasseiro, engrossava e, de novo, a chuva batia pesada, em carga, inchando córregos que transbordavam das valas, coalhados de ervas e de imundices.

Chovia torrencialmente quando Maria Augusta apareceu na ferraria, esbaforida, procurando Nazário.

O ferrador, que trabalhava à forja, ouvindo o seu nome, voltou-se rápido.

A viúva precipitou-se com uma carta na mão. Soluçando, aflita, sem poder falar.

— Que é? Que tem? Indagava Nazário comovido e tonto, amparando-a com o braço, desviando as mãos negras de ferrugem. Então que é?

— Tadeu! Soluçou Maria Augusta.

— Doente?

— Não! Deixou-me. Saiu de casa, foi-se embora...

— Foi-se embora!? Como? Parecia-lhe impossível que o rapaz tivesse saído da cidade sem, ao menos, lhe haver dito adeus. Não compreendia. Foi-se embora... quando?

— Hoje. Deixou-me esta carta debaixo da porta do quarto. Foi Luíza que achou. Ah! Seu Nazário, meu filho! Que ingrato!

Deixou-se cair sobre o banco e Nazário, tomando-lhe a carta, bradou pelo filho:

— Ó pequeno, anda cá!

O rapazola surgiu de trás da forja atônito, tisnado e estacou diante do pai limpando as mãos ao avental de cânhamo.

— Lê isto! Lê, anda! E entregou-lhe a carta.

O pequeno desdobrou lentamente o papel e, com grandes pausas, ferindo forte as palavras, foi lendo sem levantar os olhos, embatucando, às vezes, para soletrar:

“Minha mãe. A vida assim como vai é um sacrifício para todos nós. Depois da morte de papai pensei em ficar aqui acompanhando a senhora e Luíza, mas o meu trabalho não aparece e a miséria ameaça-nos. Sei que para nada sirvo, doente como sou. Deus me proteja e a sua benção me guie. Vou tentar a vida em outra parte, talvez seja mais feliz e hei de ser, porque as minhas tenções são puras. Tudo quanto eu fizer será para a senhora e Luíza. Peço perdão do passo que vou dar. Saudades a Nazário e a Luíza. Abençoe-me. Tadeu.”

Nazário não disse palavra. Maria Augusta chorava nervosamente:

— Partiu... E nem disse para onde... Um rapaz doente... Que há de ser dele, Meu Deus! Que há de ser dele!?

— Que há de ser! Que há de ser! irrompeu o ferrador assomado. Vocês são as culpadas, sim! São vocês as culpadas. Traziam o pobre rapaz num cortado. Era, volta e meia, um dito, eram pragas, maus modos, até lhe deixavam o quarto por fazer. A culpa é de vocês, unicamente de vocês, tenham santa paciência. Querias, talvez, que ele cavasse dinheiro? Até a senhora Luíza... Que diabo! Ele ainda foi muito bom, aturou de mais. Queres que te diga? Isso não foi coisa de momento, ele já andava com essa ideia e, se não a pôs em prática há mais tempo, foi por minha causa. Não tenho pena de vocês, tenham paciência. O mal está feito; agora, minhas amigas, tratem de remediá-lo, E murmurando: Um pobre homem que não pensava em outra coisa senão em fazer a felicidade delas, tratado como um cão!

Pôs-se a passear ao longo da oficina. Por fim estacou junto à bigorna;

— E agora?

A viúva levantou os olhos úmidos e súplices.

— Sim... E agora? Que diabo vão vocês fazer? Ele está no Rio, sei eu! Na Corte é que ele está, mas vão lá procurá-lo.

Cruzou os braços e levantou os olhos para o teto. Bambaleando a perna, a balbuciar baixinho. Súbito indagou:

— Vocês não têm lá parentes? E nervoso, agitando-se: Nem que tivessem, era o mesmo... Conheço Tadeu: é capaz de morrer à fome, mas pedir, não pede...

Maria Augusta ouvia calada. Damião voltara para junto da forja e espiava curioso.

— Mas que hei de fazer? Implorava Maria Augusta.

— Que há de fazer? Sei lá! Agora é que você se aflige — antes eram desaforos e brutalidades de toda a espécie. Ah! Então sempre o tísico servia para alguma coisa?! Que há de fazer, sei lá! E mais calmo: Ele há de escrever-me, mas se eu lhe responder podem estar certas de que não o chamo para Vassouras, ele que se vá deixando estar por lá. Voltar para a mesma vida atribulada, amofinado constantemente pela família, isso não. Eu é que o não chamo mesmo.

— Mas que lhe fizemos nós?

— Ah! Que lhe fizeram? Nada... não lhe fizeram nada. A mim é que vocês não faziam a terça parte, garanto. Não lhe fizeram nada... E indignado: Se até a outra entendia que havia de governá-lo!

— Quem? Luíza?

— Não, eu!

Afastou-se e desapareceu murmurando.

Maria Augusta, cabisbaixa, chorava. Damião, que se aproximara, parou diante dela condoído e olharam-se:

— Damião, tu deves saber...

— Não! Fez ingenuamente o pequeno, se eu soubesse... E curioso: Foi para o Rio, não é?

— Não sei! Suspirou ela.

— E agora?

Contemplaram-se calados e nos olhos do rapaz foram-se formando lágrimas. Enxugou-as rapidamente com a manga da camisa e correu a refugiar-se atrás da forja, onde o fogo morria.

Nazário, ao cabo de alguns minutos, reapareceu puxando uma besta pela arreata. Vinha agasalhado em amplo capote de baeta escura, grandes botas nos pés, à cabeça enorme chapéu de palha acabanado.

— Ora vamos lá ver isso! Disse.

— Onde vai? Indagou Maria Augusta enxugando os olhos pisados.

— Vou até a estação. Quero tirar a limpo essa história. Lá devem saber se ele embarcou.

Silenciaram. Por fim o ferrador, meneando com a cabeça, declarou que lhe parecia impossível que o rapaz tivesse partido assim à francesa, sem ao menos deixar-lhe duas linhas.

— E vai com esta chuva?

— Chuva não quebra osso. E raspando o animal, insistiu: Notando-se: não o acuso. Acho que fez muito bem, repito; fez muito bem. De certo, que a vida que ele aqui levava era um horror.

E voltando-se inopinadamente para Maria Augusta:

— Não penses que reprovo o seu procedimento, não, senhora; fez o que outro qualquer, no seu lugar, faria. Vou porque, enfim, interesso-me por ele, estimo-o. Era preciso que eu não tivesse coração. Cresceu-me nos braços, posso assim dizer. Que diabo! Também a gente não é feita de pedra.

Calou-se estendendo a manta sobre o dorso da besta. E como falando consigo, continuou:

— Cresceu aqui junto de mim, tenho-lhe amizade. Vou por isso. Não posso, sou um não sei quê, disse comovido, é por isso que não gosto de me ligar a outros, sou mole, sou... Sei lá! E, abrindo os braços em largo e rápido movimento, os olhos marejados de água, a voz trêmula, fugindo-lhe dos lábios trêmulos, exclamou, mostrando as lágrimas: É isto! Que hei de fazer? É isto! Também, que diabo! A gente habitua-se.

Deixou cair a cilha sobre os ilhaes do animal e chamou pelo filho:

— Põe os arreios.

Maria Augusta, vendo Nazário sentar-se, com o rosto banhado em lágrimas, fitou-o.

— Agora lançam toda a culpa para cima de mim, balbuciou.

— Mas de certo. Onde se viu tratar um filho como tu tratavas? Nem que ele fosse escravo. Tem paciência: a culpa é tua, isso é... A culpa é tua e da tal menina, já com fidúcias de não sei que. Fosse minha filha que havia de ver.

— Ora qual! Disse Maria Augusta amuada, que culpa tem ela? Eu nunca ouvi nada que pudesse melindrar Tadeu. Ele sim, andava sempre com impertinências, inventando namoros: Que rondavam a casa, que ela escrevia bilhetes a beltrano e a sicrano, que fazia, que acontecia. Nunca ouvi uma palavra de Luíza que o pudesse magoar, por mais leve que fosse. O que ele quis sei eu. E tristemente: Não é fácil sustentar uma família. Um homem só arranja-se bem em qualquer parte. Deus o ajude. Todo o mal que lhe desejo recaia sobre mim.

— Aí vens com histórias...

— Ah! Também não posso falar, seu Nazário!?

— Fala, fala quanto quiseres, não te estou tapando a boca; fala quanto quiseres, porque a verdade, minha amiga, essa conheço-a eu. Nunca andei cheirando a tua casa para saber o que lá se passava, mas não vivo no mundo por ver os outros viverem. O que ele sofria sei eu. Tadeu não deixava a casa se não tivesse motivos para o fazer. Quando para cá voltou depois da morte do pai (vocês estavam no Pati), aqui, neste mesmo banco em que estamos, disse-me ele as suas ideias. Queria cultivar o terreno, porque o emprego que tinha pouco lhe rendia, julgava que com o seu esforço viria a alcançar colheitas abundantes que lhe dessem para viver em paz e à farta. E queres que te diga? Só falava em ti — “por que minha mãe está velha, precisa de descanso. Preciso cuidar do futuro de minha irmã...” pouco se preocupava com a sua pessoa e quando eu lhe disse que ele não resistiria ao trabalho da lavoura sorriu e, no dia seguinte, queres saber? Lá o encontrei no campo às voltas com a terra, capinando como um negro, debaixo de uma soalheira de meter medo. E enquanto lhe sobraram forças ali esteve até que a moléstia o derrubou. E esse homem o pagamento que teve foram os maus tratos, as más palavras, as caras amarradas, tudo que vocês imaginaram para amofiná-lo. Tenham paciência, a verdade é esta. Se ele tomou essa resolução, Maria, queixem-se vocês de si.

Damião, que acabava de arrear a besta, adiantou-se.

— Está pronta, papai.

— Deixa-a aí, prende-a. E, continuando em tom íntimo e brando: Teu filho adora-te, apesar de tudo: não era capaz de deixar-te por simples capricho. Queixas de ti, só as fazia a mim, a mais ninguém. É assim mesmo. Não lhe podes querer mal. Olha, eu já não espero a mesma coisa, o mundo é isso, infelizmente: quem mais faz menos merece. Hás de ver que esse pirralho, que eu tomei da mãe, aquela vagabunda, que nem para lhe dar de mamar servia, desde que se apanhe homem feito, adeus velho...! Pensas que espero alguma coisa dele? Espero tanto como do Papa... É meu filho, hei de reconhecê-lo, mas não penses que conto com a sua proteção para a velhice dos meus dias. Faço por fazer... O mundo é assim mesmo. Mas teu filho?! Tem paciência... Ele via Deus no céu e vocês na terra. Esta é a verdade.

E encaminhou-se para o animal, repetindo convencidamente:

— Esta é a verdade.

Maria Augusta, quando o viu montado, levantou-se:

— Então até à tarde.

— Até à tarde.

— E indague bem, implorou lacrimosa.

— Hei de fazer o que puder. Até logo!

Cravou às esporas no animal e partiu. Chovia forte.

Escurecia como se anoitecesse e Nazário, deixando as rédeas sobre o pescoço do animal, pensava sinceramente indignado:

— Que aquilo não se fazia. Deixar duas mulheres desamparadas, abandonar a mãe e a irmã e nem uma palavra de adeus para ele, era ingratidão, não se fazia. Pobres coitadas! Que havia de ser delas?! Não. Isso não! Tivesse paciência. Isso, não!

E o animal, entregue a si mesmo, ia a passo pelo lameiral balofo, enterrando as patas, de orelhas bambas, à chuva torrencial e grossa que caía, tocada pelo vento ríspido.

X

Correram dois longos meses sobre esse dia de lástima e de arrependimento sem notícia alguma de Tadeu. A casa conservava-se fechada como em luto e Luíza, quando vinha à janela, tímida, vexada, espiando por entre as frestas, escondia-se, mal avistava algum rosto conhecido, para fugir às perguntas sobre o irmão. Nazário visitava-as de quando em quando. À noite, mal deixava o serviço, ia até lá para saber se havia alguma novidade. Maria Augusta recebia-o desolada; chorava contando que tivera maus sonhos.

— Quem sabe se não se matou! Soluçava.

Nazário revoltava-se:

— Que se deixasse de asneiras. Era lá coisa que se pensasse?! Matar-se, porque? Estava cuidando da vida. Mais dia, menos dia, teriam cartas.

E desenvolvia todo um romance de conjecturas, mostrando Tadeu em azáfama pelas ruas do Rio, atrás da fortuna, perseguindo-a ambiciosamente com a mesma teimosia com que se lançara à terra ingrata que tão mal lhe pagará o esforço. E, para consolo, concluía—que dentro em poucos anos haviam de vê-lo aparecer carregado de ouro. Os homens faziam-se assim. E exclamava:

— E esses pirralhos que andam por aí mourejando dia e noite? Esses pobrezinhos sem mãe, que deixam a pátria quando começam a viver, não se fazem homens, não enriquecem? Olha, eu, aos sete anos, já andava pelos montes pastoreando. Não houve brinquedos para mim, não! Que isso por lá é só para os morgados, para correr tive os pinheirais e as encostas de urzes e como amigos os carneiros e as ovelhas. Aos doze anos vim por esses mares sozinho, com Deus, que nunca me desampara e aqui cheguei, aqui tenho vivido até hoje sem nunca mais ter visto os campos da minha infância, sem saber se os meus são vivos ou mortos, coitados! É como te digo. E era uma criaturinha que nem ler sabia. Arranjei-me ainda assim e aqui estou, quanto mais ele que é homem feito. Há de ir para diante; deixa-te de agouros. Não escreve, faz mal, isso faz; mas quem sabe lá os afazeres que tem? Olha, fica certa de que se tivesse morrido já teríamos sabido. As más notícias têm sempre portador. Descansa.

Uma manhã, porém, justamente na ocasião em que Maria Augusta entreabria a janela que deitava para a varanda, Nazário assomou à porta, agitado. Entrou no jardim a grandes passos, sacudindo os braços, frenético, a cabeça baixa, resmungando.

— Que é isto! A estas horas por aqui!? Exclamou Maria Augusta.

— Estavas aí? ... E ainda de longe, mostrando-lhe uma carta, disse: Escreveu-me!

— Escreveu!? Ora, graças a Deus!

E escancarou a porta, aparecendo no limiar ansiosa, insofrida.

— Onde está ele? Onde?

— Onde há de estar... No Rio.

Pela expressão do rosto de Nazário, Maria Augusta adivinhou o desespero que lhe ia na alma, e exclamou avançando:

— Está doente, aposto!

— Qual doente! É um doido.

E, subindo os três degraus da varanda, de pé, diante de Maria Augusta que o encarava, disse, quase sem ânimo:

— Assentou praça.

— Como?

— Está na tropa.

— Tadeu?!

— É o que está aqui.

Calaram-se, sucumbidos. Maria Augusta cruzara as mãos e, imóvel, extática, fitava o rosto de Nazário demudado e triste.

Mas... assim doente! Que vai ele fazer?

O ferrador encolheu os ombros. Luíza, que aparecera à porta, vendo a atitude de ambos, indagou pressurosa:

— Que é, mamãe? Que é?

— Tadeu...

— Que tem?

— Assentou praça. Logo, porém, voltando-se para Nazário, interrogou: Mas por quê? Não disse?

— Miséria.... É o que ele diz. Fome.

— Fome...?

— É o que está aqui. E passou a carta a Luíza.

Maria Augusta, em verdadeira agonia, sufocando lágrimas, apertava a cabeça nas mãos:

— Mas, meu Deus! Que há de ser dele?!

Nazário, calado, não levantava os olhos do chão.

— Que se há de fazer, meu Deus! Ah! Seu Nazário... Que sé há de fazer?

— Que se há de fazer? Sei lá! Mas queres ou não que tua filha leia?

— Sim.

— Pois então ouve.

E Luíza, desdobrando a carta, olhava ora um, ora outro, como se duvidasse do que diziam. Por fim, começou vagarosamente a leitura:

“Nazário

Quando saí daí, de noite, tive vontade de bater na tua porta para te dizer adeus, mas tive medo de fraquear e não queria mais voltar para casa para que mamãe não tivesse mais amofinações comigo. Passei sem parar e sabe Deus como! De longe, voltei a cabeça muitas vezes para olhar...

Sentia um aperto no coração como se fosse morrer. Ninguém me viu, porque ainda estava escuro. Fiz a pé todo o caminho até a estação, sem encontrar viva alma. Tenho muitas saudades de todos e de tudo e peço que tomes conta do Turco, coitado! Porque Luíza, com medo que ele danasse, nem ao menos deixava o pobrezinho dormir no jardim; quando eu estava aí, quanto mais agora!

No Rio tenho sofrido muito, até fome; meu velho, porque aqui não é como na roça. Procurei trabalho, fiz tudo para me arranjar, mas só achei lugar num jornal, como vendedor. Desde a tarde até às duas da manhã ficava, mais um italiano velho, vendendo as folhas no ponto dos bondes, mas uma noite, com uma carga de água, apanhei tão forte resfriado que caí com febre, muito mal. Um moço do jornal, chamado Azarias, arranjou para eu entrar na Misericórdia. Foi a minha salvação. Quase morri com a tosse e a dor no peito. Escarrei sangue e duas noites não soube que foi pregar olho com ânsias. Tenho sonhado muito com vocês e com o sítio. Com certeza é só mato.

Quando fiquei bom estive quase a voltar para Vassouras. Mas não tinha cara de aparecer aí. Mamãe podia-me dizer qualquer coisa. Assentei praça. Tenho casa e comida. Não sou o primeiro, há muitos outros que vivem como soldados e são homens como eu. Hei de viver também. Estou no 7. ° de infantaria e por ora não tenho que dizer. É uma carreira e o que tem de ser tem muita força. Não te esqueças do Turco, coitado!

Quando estiveres com mamãe conta o que fiz e pede que me abençoe. Hei de escrever a ela quando puder mandar alguma coisa.

Escreve para o quartel do 7º.0 4.ª companhia.

Dá lembranças ao Damião e abraça Luíza.

Teu amigo do coração

Tadeu.”

Toda carta reçumava nostálgica tristeza: A partida, à hora escura da manhã nascente, tímida, medrosa, evitando cautelosamente os corações com receio de ser por eles vencido; as queixas brandas de misérias. Toda essa agonia na casa de caridade, entre desconhecidos, tão rapidamente narrada, deixava pressentir a angústia no leito dos pobres, vendo a morte, ouvindo gemer o padecimento dos sem mãe, dos sem lar na sala taciturna e triste por onde deslizam as irmãs vigilantes, com o crucifixo para acudir aos moribundos, sem falar, sem outro rumor senão o do bater das contas do rosário que trazem à cinta. A preocupação sentimental com o velho cão e a saudade sincera e meiga dos que haviam ficado na terra natal, tão apaixonadamente amada. Tudo quanto a sua rústica expressão dizia infundia-se nas almas dos ouvintes, como dolorida queixa vinda de muito longe. Nazário trincava os lábios. Maria Augusta, de olhos baixos, chorava.

Quando Luíza terminou a leitura, procurou o rosto de ambos e viu-os imóveis, como duas estátuas que violenta rajada de desgraça fizesse, de quando em quando, estremecer: soluçavam. Calou-se, dobrou a carta e entregou-a a Nazário. Nos seus olhos, negros e luminosos, não havia marejamentos de água, a sua fisionomia não acusava emoção alguma. Estava impassível.

Por fim Nazário, limpando os olhos, disse com voz cheia onde ainda se podia sentir a vibração dos soluços:

— É um maluco! e encostou-se à balaustrada olhando para o longínquo.

— Agora não se pode fazer nada! Suspirou Maria Augusta.

— Que se há de fazer?

Calaram-se. Na estrada uma tropa desfilava e a cantilena sentida dos tropeiros, desferida em languida toada, ficava longo tempo no ar, plangente. Passavam ligeiros e as alimárias, trotando, sacolejavam os surrões cobertos de palha, levantando nuvens de poeira. Os sinos, ao longe, dobravam à missa.

Nazário voltou-se sentido para Luíza:

— Olha, minha filha, tu não tens coração, deixa que eu te diga. Não penses que te quero mal. Deus te dê muito boa sorte..., mas não tens coração. És de pedra...

— Por quê? Por que não choro? Pois os outros fazem lá as suas maluquices e eu é que hei de pagar? Não faltava mais nada! Que culpa tenho eu?

— Tens culpa, tens. Teu irmão não daria semelhante passo se não estivesses constantemente a amofiná-lo. Que tinhas tu com ele? Tua mãe, enfim, tinha direito de dizer o que lhe parecesse, mas tu! Tem paciência. E ainda agora nem parece que recebeste uma notícia assim. Olha, ele não é meu filho, mas eu chorei e sou um velho, não tenho vergonha de dizer. Chorei, chorei porque tenho coração e tu... Até parece que ficaste satisfeita com isso. Não é assim, minha filha; não é assim, tem paciência.

Luíza voltou-lhe as costas, com arrebatamento. Maria Augusta, sucumbida, tinha a cabeça baixa, as lágrimas rolavam-lhe dos olhos e, de vez em quando, em acessos, sobrevinham soluços que a agitavam nervosamente.

— Está bem, está bem, nada de desesperos. Vamos ver o que se pode fazer. Ele é doente, mais dia, menos dia aparece-lhe a moléstia e dão-lhe baixa com certeza. Não desesperemos. Tu o que deves fazer é ir falar ao barão. Ele é quem pode arranjar isso. Conta-lhe tudo e agarra-te com a mulher. Eu vou ter com o Ferraz.

— E se vem uma guerra?

— Qual guerra! Aí vens tu... Guerra com quem? Então pensas que não há outra coisa em que cuidar senão em guerras?! Vamos tratar de arranjar as coisas do melhor modo possível.

E acotovelou-se à balaustrada pensativo. Luíza deixou-os e Maria Augusta, adiantando-se para Nazário, disse-lhe comovida:

— E se eu lhe escrevesse?

— Deves; deves escrever-lhe para consolá-lo; é tua obrigação. Sabes lá o que é um homem achar-se só no mundo? Deves escrever-lhe, pois não..., mas nada de aconselhar doidices. Ele que espere. Se se puder arranjar alguma coisa, muito bem; senão... que tenha paciência.

E suspirou meneando com a cabeça:

— Que doido! Enfim! Há de ser o que Deus quiser!

E, já no patamar da escada, recomendou:

— Olha, se o cão aparecer por aqui prende-o até que eu o venha buscar. Enfim, coitado! Não custa fazer-lhe a vontade.

E em baixo, insistindo:

— E é isto: Vais ao barão e eu cá por mim hei de fazer o que puder. E até logo!

E saiu cabisbaixo, resmoneando por entre os canteiros em mato.

SEGUNDA PARTE

I

Já havia soado o toque de silêncio.

Por entre as barras, ao longo da companhia conservada em penumbra dormente, o plantão, perpassava moroso. Poucos soldados dormiam: Um, caboclo, sentado, com as pernas encolhidas, presas entre as mãos enclavinhadas, olhava a fito o céu por um dos respiradouros, como enamorado da lua.

Outro, ressupino, com os braços por baixo da cabeça, olhos parados, cantarolava baixinho, enlevado.

Súbito, um dos que dormiam, sentou-se mastigando, pôs-se a coçar o peito cabeludo, torceu os braços e abateu de novo, pesadamente, aos resmungos. Um, de nome Fabrício, encostado na parede, de cabeça baixa, imóvel, parecia rezar. E, certamente, rezava a oração herdada, a prece familiar, amuleto místico da sua gente religiosa e simples, reza que ele dizia ter sido achada em sítio de mistério, em manhã de graça, por um menino, filho de certa mulher tida por santa no seu sertão maranhense.

Rezava-a ali assim, porque, para a sua alma fervorosa de crente não bastava a oração do regimento; para descanso e paz do seu espírito eram necessárias aquelas palavras misericordiosas, preservativas da peste, das traições e da morte no escuro, sem Deus.

Trazia-as veneradamente escritas e encerradas em um bentinho de pano ao pescoço, e guardadas na memória para evocá-las de pronto quando sofresse, ou nos dias cruéis de combate, nos campos da guerra que ele constantemente via, através do pavor, em vago e indistinto horizonte de fogo e sangue, por onde fugiam, a galope, com as bandeiras rotas voando ao vento, os esquadrões desmantelados.

Ao fundo, na parte mais escura, sussurravam conversas. Cabeças moviam-se, bustos avultavam mergulhando rapidamente quando o plantão, chegando ao extremo da sala, retrocedia lento, com o seu passo regular e surdo de vigília.

Correra, durante o dia, com visos de verdade, que o governo decidira mobilizar para a fronteira do sul uma brigada das três armas para repelir certo caudilho oriental que, à frente de guerrilheiros, percorria a fronteira do Rio Grande saqueando estâncias, reduzindo a cinzas as propriedades por onde passava como uma praga. Outras versões apareceram.

Um cadete, adido ao batalhão, afirmara, em palestra no corpo da guarda, que ouvira na secretaria a dois oficiais de estado-maior, que essa medida imprevista não passava de expediente do governo imperial para sustar a marcha progressiva da ideia republicana, que a palavra atrevida de Senna Madureira e os conceitos democráticos de Benjamin Constant iam propagando, não só entre os oficiais, a fração inteligente do exército, como nas fileiras que se deixavam atrair pelo apelo patriótico e ousado dos seus chefes, manifestando-se tacitamente pela represália. A verdade, porém, era desconhecida ainda e de uma a outra barra segredavam-se timidamente, em conciliábulo, constas e boatos.

Um mulato gaguejava confidências, sacudindo o braço nu em gestos indignados. Ouviam-no e, nas barras mais distantes, soldados levantavam a cabeça escutando curiosamente:

— Isso é mesmo com os gringos, cochichava o mulato convencido. Essa coisa havia de ter o seu dia e Deus queira...

Outras vozes afirmavam surdamente, cheias de ódio, prenunciando vitórias. Mas um veterano erguendo meio corpo, disse com calma, em quanto rebuscava alguma coisa debaixo do travesseiro:

— Olhem, vocês estão aí a dizer coisas à toa. Meus amigos, se nós, agora, tivermos guerra com os argentinos, nas primeiras batalhas... olhem... é cada um tratar de ganhar o mundo. Isto tão certo como eu estar aqui procurando o meu cachimbo.

— Nas primeiras...! bradou o mulato, muito gago. Nas primeiras! mas depois...!

Um rapazola louro, franzino, investiu esmurrando a coxa:

— Nem nas primeiras...!

— Nem nas primeiras! afirmaram outros.

— Pois sim. Havemos de ver, tornou, em tom de pachorra, o veterano e, caindo de costas, cruzando as pernas, repetiu: Havemos de ver.

— Pois que venha, ora essa...!

Mas o plantão avizinhava-se, vagaroso e severo.

Voltou o silêncio. Chegando ao fim da sala, junto da última barra, o plantão estacou e, aproximando-se, abaixou-se tocando de leve no ombro de um soldado que ali estava de bruços, com o rosto enterrado no travesseiro:

— Que é isto, 31?

O soldado estremeceu voltando-se de golpe.

— Que é que você tem?

— Eu? nada; e sorria para o plantão que o fitava. Não tenho nada.

— Pensei que estavas chorando.

O mulato, que percebera o diálogo, interveio:

— É toda a noite assim, esse homem. Chora que nem criança.

— Choro... E eu estou chorando? Mas o plantão impôs silêncio e, cruzando os braços, desceu em passo surdo e grave por entre as barras. Súbito um brado atroou fora, claramente.

— Onze horas! Disse soturnamente o veterano através de largo bocejo cavo. Boa noite, gente. E puxou o lençol para a cabeça. Guaiaram tristemente: “Ai! Ai! Meu Deus!” O mulato, sentando-se, de ímpeto, na barra, rouquejou:

— Cala a boca, chorão! Cala essa boca mole, porcaria! Ocê já qué pegá co’as manhã, seu langanho!?

Explodiram risinhos e cachinadas, ditos zombeteiros: “Sê qué maminha?” “Êta! Bicho mofino! Esse mêmo, quá... Até faz vergonha a gente...” “Pra quê ocê não vai sê irmã de caridade, rapaz? “Oia que home banana assim é demais...!”

E, como Tadeu resmungasse, aborrecido com os dichotes com que o asseteavam de todos os lados, o mulato fitou-o de má cara e, com o dedo nos beiços, ameaçou-o:

— Cala a boca já, sua lesma! Diabo do mingau! Qu’é qu’ocê veio fazê aqui no meio de homes? Geme mais aí qu’eu te mostro!

Tadeu baixou a cabeça covardemente e deitou-se encolhido. No extremo oposto do salão alguém se pôs a grunhir aflito, como estrangulado. Foi uma explosão de gargalhadas em toda a companhia, e o plantão, a rir, correu a despertar o homem do pesadelo.

— É o Borges, disse o mulato mal-humorado. O diabo come que nem gibóia e, de noite, é esse berreiro assustando a gente. E, dirigindo-se, de novo, a Tadeu, intimou-o: — E ocê vê lá, seu punga. É dormir quieto, senão... E, estendendo-se voluptuosamente, desapareceu, de mergulho, debaixo do lençol.

No silêncio da companhia adormecida alguém velava insone, com o terror de um vago pressentimento: a guerra. Era Tadeu.

Ouvira calado toda a conversa dos camaradas, não perdendo palavra.do que diziam com referência aos boatos espalhados durante o dia e, apesar da jornada trabalhosa, desde a faxina até os exercícios da tarde, não conseguia adormecer, pensando no futuro de sangue que se anunciava, alvoroçando os quartéis.

Essa ideia perseguia-o desde que vestira a farda. Quando as cornetas tocavam a alvorada no campo, estremecia como se lhe passasse por diante dos olhos, em relâmpago vermelho, a imagem da guerra sanguinolenta.

Seguindo para as formaturas, entrando no alinhamento enquanto os oficiais passavam a galope ao longo das fileiras armadas, esperava que um deles, estacando o ginete, anunciasse às tropas o dia da partida para estranhas paragens de lutas, que a sua imaginação medrosa criava, encharcadas de sangue, apinhadas de cadáveres, lavrando em incêndios. E admirava-se de ver o batalhão debandar tranquilamente sem que a nova fatal fosse anunciada.

Nas saídas, através das ruas, apertado nos pelotões, marchando ao ritmo guerreiro dos dobrados, distraía-se muitas vezes em tais sonhos. Imaginava-se caminhando para o terrível desconhecido e logo a visão fantástica substituía a realidade: As casas apareciam-lhe como enormes penedos, as ruas eram desfiladeiros e, muitas vezes, camaradas puxavam-no para a forma, vendo-o adiantar-se, de olhos baixos, saindo do alinhamento. Nos exercícios de fogo tremia com as descargas de pelotões e, quando, por sua vez, tinha de puxar o gatilho, fechava insensivelmente os olhos. Os companheiros riam-se dele e o mulato Azambuja, que constantemente o ameaçava e o perseguia, não lhe perdoava a timidez: na forma insultava-o com grosserias, atirando-lhe cotoveladas brutais quando manobravam.

Nessa noite, porém, como se efetivamente houvesse circulado, fundada em verdade, a notícia da guerra, Tadeu não pôde conciliar o sono. Vinham-lhe visões trágicas mal abaixava as pálpebras — o assombro das batalhas, o horror das jornadas em desertos sem sombra, a fome, a inclemência dos climas frios, tudo, enfim, que ouvira nas palestras com outros soldados que já haviam entrado em fogo. E, de tal maneira concentrava-se nessa alucinação do medo, que o seu coração sofria com a saudade pungente dos que haviam ficado longe, sem notícia, julgando-o morto, enquanto ele caminhava para defender a pátria e, talvez, essa mesma casa paterna, onde o seu espírito vivia.

Quando o plantão aparecia silencioso, sentia desejo violento de interrogá-lo, mas o vigilante retrocedia antes da sua barra e só ouvindo o ressonar dos soldados vizinhos, ficava a olhar vagamente, apavorando-se com as fantasias da sua imaginação enferma. E as horas passavam.

Fora, de longos em longos intervalos, bradavam, às armas. O frêmito de terror percorria-lhe o corpo como se tivesse, de repente, ouvido alaridos de alerta no acampamento imaginário. E arrependia-se de ter deixado a tranquilidade das suas terras, o seu aconchego pacífico entre as árvores contemporâneas da sua infância. Arrependia-se de ter buscado abrigo na caserna para fugir à fome e ao frio, quando lá fora havia milhares de homens trabalhando, felizes, amparados e independentes, sem a tortura das armas, sem o suplício da labuta militar, sem essa promiscuidade de vida — os dias em longas e extensas formas, ao sol; as noites, nas companhias, como rebanho que, depois de andar em magote pelos prados, recolhesse ao aprisco, onde o plantão, como pastor, velava.

Trocavam-se os plantões de ronda; ia outra vinha, estremunhado e mole. Ele só atravessava a noite, de olhos abertos, rolando aflitamente na barra que rangia.

Uma nota abemolada soou docemente como se viesse de muito longe... e, mais alto, subindo pouco a pouco, tornou-se forte, vibrante e uma banda de cometas, em uníssono, encheu o silêncio ainda em penumbra com o toque da alvorada. Soldados sentaram-se nas barras, outros, bocejando, retorcendo os braços, espichavam-se. Alguns, de pé, apanhavam roupas e o caboclo Fabrício, nu da cinta para cima, espiava debaixo da barra cantarolando a meia voz uma cantiga do Norte.

— Eh! Eh! Bradou o mulato sacudindo Tadeu. Acorda, homem!

A companhia rumorejava. Homens cruzavam-se chalrando, outros dobravam lençóis refazendo as barras.

Tadeu abriu os olhos. A luz da manhã entrava pelos respiradouros e morriam no ar as derradeiras notas da alvorada.

II

— Há muito tempo que não vês tua terra?

— Há sete para oito meses.

— E não tens saudade?

— Se tenho! E você?

— Ah!

— Há muito tempo?

— Há dois anos.

— E é longe daqui?

— Muito longe! Doze dias por mar.

— Você tem mãe?

— Mãe e pai, graças a Deus. E você?

— Só mãe. Meu pai morreu.

Emborcaram os copos e, pousando-os vagarosamente, olharam-se.

— Ah! Quem me dera a minha terra!

— E a minha!

Era ao fundo de uma venda, entre pipas, em volta de velha mesa de ferro. Tadeu e Fabrício bebiam.

O maranhense, nostálgico, encontrara uma alma gêmea da sua para ouvir as confidências de saudade, as longas histórias do sertão nortista, sem os sorrisos de incredulidade, sem os comentários com que os outros sublinhavam os mais ligeiros episódios das suas narrativas. Tadeu acreditava em todas as suas palavras, não distraía a atenção, interessado e comovido.

Vaqueiro desde os quatorze anos, habituara-se às vicissitudes da vida errante, noite e dia a caminhar, ora nos campos, ora nas matas, ou pelos montes onde as onças bramiam. Arredado subitamente desse viver aventuroso e contemplativo, sentia-se deslocado na multidão tumultuosa da cidade. Parecia-lhe um mundo impróprio para a sua alma afeita à soledade. Lá para as suas bandas, quase desconhecidas, o sol era mais dourado, o luar mais claro, a gente boa, hospitaleira e afável.

A água branca das fontes, mais límpida e mais fresca do que as que derivavam na terra do exílio, tinha o patronato misterioso das iaras que, à noitinha, vinham à beira úmida pentear os cabelos verdes como o limo das pedras, e nuas, cantando maviosas trovas que iam pela noite e pelo bosque fora embalando e seduzindo os que, sem perceberem a insídia, eram por elas atraídos e desapareciam.

As brenhas tinham o caapora perseguidor que surgia em noites negras, saltando num pé só, aos silvos.

Os lares eram mais alegres... E que de amores pela farinhada ou quando, para um roçado ou colheita, se ajuntavam os vizinhos em mutirões e, depois de um dia de enxada, ao sol, e à tardinha, na eira, com o bom cheiro dos matos floridos, a fartura de carnes, a abundância de doces, o gole e, ao alvescer da lua, com os bacuraus andando no meio da gente, as danças requebradas e batidas ao som do “rasgado” nas violas.

E os desafios dos cantadores famanazes! E a vaquejada terrível quando os marruás desciam das malhadas para a ferra!

Fabrício ia de canto em canto, de lenda em lenda, relatando, por miúdo, todos os episódios e misturando cenas da pastoral indígena com o tabulário maravilhoso e ingênuo.

— Por que assentaste praça, Fabrício?

— Huê! Recrutaram-me. E você?

— Foi por gosto.

— Por gosto...?!

Tadeu encolheu os ombros e bateu com a mão espalmada na mesa para pedir novas doses. Maluquice. Sei lá!

— Isto não é vida! A gente nem tem tempo para se coçar.

— É pior do que ser escravo.

— Muito pior.

— E a guerra? Se vier urna guerra então... Como há de ser?

— Antes isso.

— Deus nos livre...!

— Ora...! Assim como assim... A gente tem de morrer mesmo! Disse estoicamente Fabrício: tanto faz hoje como amanhã. E fala-se nisso...

— É, fala-se. Com os argentinos.

— Outros dizem que não: que a gente vai para o Norte.

— Fazer o que?

— Sei lá! A gente nunca sabe. Mas Deus permita!

— Deus permita, sim!

— Você quer?

— Então! Antes o Norte do que a guerra.

— Medroso!

— Não é medo..., mas eu não quero morrer já, sou muito moço; e depois...

— Que é? Namorada? Você tem, Tadeu?

— Não tenho, mas tenho mãe.

Calaram-se algum tempo. Fabrício suspirou:

— Coitadas! São elas que sofrem mais! A minha nem sabe por onde eu ando.

— É velha já...?

— Velhinha, mas dura que nem pau de arco! Exclamou com orgulho sorrindo.

— Que idade tem?

— Deve andar pelos sessenta, mas ainda atravessa a pé todo aquele sertão bravo.

Tadeu, que ouvira no quartel repetidas alusões à fuga do maranhense, interpelou-o de improviso:

— Você já uma vez fugiu do batalhão, não foi?

Fabrício encarou-o e acenou de cabeça afirmativamente.

— Por quê?

O outro encolheu os ombros como se lhe aborrecesse aquela recordação e pôs-se a riscar a mesa com o grosso indicador, fazendo escorrer em fio a cerveja que transbordara.

— E depois, Fabrício...? Eles te agarraram?

— Agarraram, sim. Agarraram porque eu ainda não conhecia esta terra. Fosse hoje!

— Mas por que foi que fugiste?

— Ora! Saudade. Não foi por causa do serviço, não. Eu queria voltar para a minha terra.

— E onde estiveste?

— Aí por esses matos. Mas... depois! Ah! Foi uma desgraça na fortaleza. Saí de lá quase morto.

— E hoje?

Hoje?! Encolheu os ombros: Fugir para quê? A gente volta mesmo e ainda por cima sofre e fica com o nome de desertor. Não vale a pena.

Fabrício acompanhava, entretido, o fio de cerveja que escorria lento, pingando sobre o soalho negro. De repente, erguendo a cabeça, disse:

— São horas, vamos indo?

— Vamos.

Tinham chegado ao campo da Aclamação.

Resolveram atravessar o jardim deserto, escassamente alumiado pelos combustores que, à distância, pareciam cercados de uma aureola tênue. Entraram. Raros vultos passavam pelas alamedas sombrias, apressados como se fugissem à tristeza do sítio. Da folhagem compacta dos bosques exuberantes saíam, a espaços, sussurros trêmulos. Caminhavam com os olhos nos lagos lampejantes onde as estrelas palpitavam e o reflexo da luz dos lampiões fulgia trêmulo. De longe, em perene murmúrio, vinha docemente o choro da cascata.

— Você não imagina como eu gosto disto aqui. Quando estou de folga é onde venho passar as tardes. Fico num banco horas esquecidas olhando essas árvores. Parece que estou no Norte.

— Mas é muito triste.

— Qual triste! Quem sabe se você queria que o mato cantasse? Disse a rir. É assim mesmo. Olha! E tornou-o por um braço: Escuta...

E parados, muito unidos, prestaram atenção ao rumor longínquo:

— Não parece mesmo barulho de cachoeira? Então...? Não acho triste. É bem alegre até.

Iam atravessando uma ponte quando Tadeu propôs descansarem um instante. Debruçaram-se olhando as próprias sombras que tremiam na água.

— Eu só queria que você visse um rio da minha terra. Aquilo sim!

—Uma coisa, Fabrício, interrompeu Tadeu, que parecia preocupado: se houver guerra não se poderá arranjar uma licença de uns dias?''

— Não sei, só perguntando.

— Nem para a gente despedir-se dos seus?

— Não sei.

— Com quem se pode saber?

— Com o comandante. Por quê?

— Não sei, concluiu Tadeu com triste pressentimento. É o coração que me diz, desde que assentei praça: Se for para a guerra, não torno a ver minha mãe.

Fez-se novo silêncio. Errava no ar um frêmito suave como se tenuíssimos élitros palpitassem, grilos trilavam na erva rasa dos tabuleiros e, de vez em vez, nas ilhotas dos lagos, os gansos grasnavam.

Os dois soldados, invadidos pela melancolia do sítio, comunicativa e dominadora, influenciados pela mesma impressão, reservaram-se, calados. Desviaram-se em pensamentos que, partindo da mesma origem, a saudade, dirigiam-se a pontos opostos e longínquos.

Fabrício, ouvindo monótono farfalhar das árvores, revia às planícies e os montes do seu sertão. Àquela hora o gado, recolhido nos cercados dos cerros, à luz das estrelas, ruminava pacífico e tranquilo. Nos ranchos, em torno de fogueiras, campeiros tangiam machetes e violas e o rasgado e a tirana revezavam-se enquanto os bacuraus, saltando na claridade da lua, pareciam bailar. Ao longe, nos ingazeiros da beira do rio, o acauan agourento gemia tristonho e sabiás, nos limoeiros com flor, iludidos pela luz da noite, solfejavam gorjeios. E vinham as cantigas serranas, as lendas do Boi Espacio e do Rabicho da Geralda e as trovas magoadas da Tapera que um cantor tirava docemente, descrevendo as ruínas de um coração, mais tristes do que a tapera do monte, até o momento em que o coro lento, soturno, grave e gemedor soluçava, em tom de reza, pelo coração da amorosa. E Fabrício, embevecido, repetiu baixinho no silêncio:

O coração da cafuza

Mais triste do que a tapera...

Tadeu voltou-se de arranque — o sertanejo, debruçado sobre a cerca da ponte, olhava extasiado o céu cheio de estrelas.

— É você que está cantando?

— Então...? Modinhas da minha terra; e repetiu, sapateando de leve:

O coração da cafuza...

Súbito caíram no silêncio do parque repetidas badaladas. Os gansos chalraram com estridor nos lagos, e, logo em seguida, ao longe, soaram cornetas.

— Vão fechar. Vamo-nos embora.

Acenderam cigarros e partiram em passo acelerado.

III

Tadeu, que passara o dia distraído, procurando o tumulto das palestras para desviar o espírito das apreensões que o invadiam, recolhendo à companhia, sentiu-se tomado de tristeza — misto de saudade e de medo, saudade dos seus que além ficavam, medo desse desconhecido país que outros diziam ser imenso e tristonho, cortado de grandes rios ainda sulcados por montarias selvagens, enormes ubás cavadas em tronco nas quais navegavam famílias de índios; rios que as onças atravessavam bramindo e em cujas margens abarrancadas jacarés arrastavam-se procurando os raios do sol quente; campos extensos, sáfaros, de áreas adustas, sem árvore de sombra, sem fonte ou córrego, tristes; ou selvas virgens, de árvores gigantes, onde ainda retroava o tembé do tapuio. Outros haviam falado, com pavor, nos pântanos pestilentos que a vegetação esconde e nos terríveis flagelos dos moscardos, nos grandes répteis escamosos que, pela noite calada, vêm resvalando lentos e penetram nas casas abafando a vida dos que dormem nos terríveis anéis do seu corpo formidável e, sobretudo, o abrasamento do sol no céu, sempre azul, raro em raro lavado pelos aguaceiros das tempestades. E as febres e todos os males desenvolvidos e germinados nas águas podres dos alagadiços.

Outros, que haviam trilhado esses caminhos, por conhecerem os amargores da viagem, lastimavam-se e Tadeu, como se quisesse preparar-se para o sofrimento, educando-se em terrores para a aventurosa travessia, ouvia-os avidamente, incitando-os a contarem, sem omissão de pormenores, todas as peripécias das longas marchas, todos os episódios assistidos, todas as agonias suportadas.

Sentia-se desanimado, posto que Fabrício, sempre calmo, encarando tudo com a tranquilidade que lhe dava o fatalismo de sertanejo, procurasse encorajá-lo dizendo-lhe, com a resignação mansa dos convictos:

— Descansa, homem, o que tem de ser Deus é quem sabe. Febre, tanto se apanha aqui como no inferno e isso de bichos é história. Lá não pode haver mais bichos do que no meu sertão e eu, graças a Deus, ainda estou aqui, vivo. Qual o que! Deixa falar quem fala. Essa gente mente que nem o diabo!

Mas Tadeu suspirava. A morte aparecia-lhe ameaçadora e inevitável, sob diversas formas. Morreria — era a sua convicção — varado por bala, ou afogado num rio, colhido pelas garras de uma fera, ou em delírio, sobre a maca do hospital-barraca, vitimado pela epidemia das lagoas. Todos os gêneros de morte se lhe apresentavam ao espírito apavorado. Hesitava, mas tinha certeza de que um deles havia, fatalmente, de o arrebatar, além, no campo desconhecido e vasto dessa terra maninha para onde ia partir no meio dos pelotões indiferentes, não tendo, em toda aquela turba, um verdadeiro amigo a quem pudesse confiar os seus sofrimentos íntimos, as suas angústias, os seus cuidados, saudades e recordações, sonhos e até amores, porque, nessa vida de isolamento, haviam visitado o seu coração deserto lembranças de antigos casos passionais que, pouco a pouco, pela insistência, se foram tornando preocupações e amor por fim, amor vago, flor de saudade.

O que dantes sentira, vendo e ouvindo essa que seus olhos reviam em uma espécie de bruma suave, não fora senão uma amizade meiga de criança, nada mais. Entretanto, pensando nessa partida inopinada, apontavam sentimentos no seu coração como vêm à tona de um rio de águas tranquilas e mansas, quando as revolvem os ventos, algas perdidas, folhas que repousavam no aro.

“Morre-se em toda a parte”, dissera Fabrício. Mas que tristeza morrer longe do afeto e ficar, para o sempre, no exílio de terra estranha, sob outro sol, sem uma cruz que lembre o fim da vida e a paz eterna do corpo!

Parece que há uma consolação em saber a gente que na morte farão sombra sobre o túmulo os galhos da árvore que se conheceu em vida e cantarão nos braços do cruzeiro tosco os pássaros familiares, quase irmãos, nascidos na mesma terra, afagados e aquecidos pelo mesmo sol.

Saber a gente que, de longe em longe, lágrimas virão regar a terra fúnebre e flores exalarão perfumes sobre a lápide tristonha, consola, é como um outro viático para a alma.

Com a chegada de novos contingentes o quartel regurgitava. As companhias cheias, atulhadas de equipagens, mal comportavam os homens. O número de barras fora aumentado de sorte que as passagens tornavam-se de tal modo estreitas que, para caminharem, os soldados tinham de ir de esguelha, esgalgando-se, saltando por cima de trouxas espalhadas pelo chão. Violas gemiam, cantilenas soavam e, ao fundo, na sala da música, estrugiam dobrados e marchas.

À luz das lanternas dos corredores soldados bruniam os amarelos das fardas, escovavam o correame, pespontavam blusas; outros, em mangas de camisa, os pés em tamancos, fumavam tranquilamente sentados sobre canastras. No pátio sombrios grupos cruzavam-se.

Tadeu e Fabrício, sentados sobre cunhetes, comentavam a ordem imprevista do ministério da guerra. O maranhense parecia satisfeito, porque ouvira a um tambor que a expedição tocaria, de passagem, nos portos do Norte e essa ideia de rever a terra natal, de ouvir, ainda uma vez, o marulho do mar patrício, bastara para consolar o seu espírito nostálgico.

— É, então, depois de amanhã? Indagou Tadeu.

— Parece.

— Mal dia!

— Por quê?

— Sexta-feira.

— Ora! Tanto faz um dia como outro.

— E que história é essa com os paraguaios...?

— Sei lá.

— Dizem que eles andam por lá fazendo tropelias.

Mas o cadete Fernandes, que ouvira, encostado a um varão, interveio indignado:

— O que, homens! Pois vocês acreditam nessas cantigas?

— É o que dizem os jornais.

Que nada! Que é que dizem os jornais?

— Que há uma questão entre bolivianos e paraguaios.

— História! Bradou o cadete. Não há nada! Posso garantir a vocês. Eu conheço o Paraguai, estive lá há pouco tempo. O Paraguai não tem homens, a guerra devastou aquilo tudo. E a Bolívia... Coitada da Bolívia! Isto é história...! O que é sei eu!

— Que é? Indagou Tadeu curioso.

— Que é? É medo. Medo que o governo tem do exército.

Os dois soldados arregalaram os olhos. Causara-lhes estranheza aquela declaração do cadete. Não podiam compreender que o governo, senhor absoluto das tropas, que podia, de uma hora para outra, mandar encerrar todos os batalhões em um forte, tivesse medo dessa mesma hoste pacífica, que se curvava à sua ordem, sem protesto.

— Medo de quê, seu cadete? Indagou Fabrício com sorriso de pouco caso.

— Medo de quê?! De mim, de ti, de todos nós.

— Quem? O governo?!

— O governo, sim. E que pensa você?

— Penso que nós depois de amanhã estamos marchando pra bordo, disse e rompeu a rir.

— Sim, estamos marchando, porque, infelizmente, não temos entre nós um homem de coragem. Infelizmente a verdade é esta — nós não passamos de um bando de escravos.

— Escravos não, repeliu Fabrício.

— Escravos, sim! Escravos! Então isto é ordem que se dê? Nós não temos família? Não temos mãe, como eles? Se houvesse alguma afronta a repelir, muito bem, era nosso dever partir. Mas simplesmente para deixar livre o campo à tirania?!... Onde está o patriotismo desse governo que manda para o degredo mais de cinco mil homens, simplesmente porque receia que a opressão lhes estimule a coragem? Onde é que está o patriotismo, digam?

Os soldados não responderam e o cadete prosseguiu inflamado:

— Que é o exército? É a força da nação, essa força, entretanto, vive sob o jugo de um ministro da cora que faz dela o boi do carro do Estado, pondo-lhe na cerviz, à laia de enfeite, a bandeira nacional. É isto ou não?

Fabrício riu achando graça à comparação e o cadete continuou:

— Eu vesti a farda com entusiasmo, mas confesso que hoje...  Deu meia volta torcendo as mãos, nervoso e, súbito, encarado em Tadeu, declarou batendo no punho: — Se eu tivesse aqui uns galões... qual! Esse governo havia de ver.

— Mas, seu cadete, o governo não tem razão para não gostar do soldado.

— Ah! Não tem razão! Exclamou o cadete acocorando-se, não tem razão?

— De certo.

— Meu caro, você, infelizmente, está muito longe de conhecer a verdade. Vocês não podem compreender o motivo desta mobilização.

— Nós que vamos é porque há alguma coisa...

— Alguma coisa. Alguma coisa o quê, homem?

— Não sei. Mas os jornais não precisam mentir.

— Ah! Sim os jornais não precisam mentir; e não têm mentido.

— Pois é. E eles trazem as notícias da guerra entre os paraguaios e os bolivianos.

— Que guerra, homem!? Que guerra!

— Em Mato Grosso.

— Ah! Em Mato Grosso!

Calou-se algum tempo, mas, de repente, avançando para os dois soldados, afirmou em tom peremptório:

— Olhem, querem saber porque é que vamos para Mato Grosso? Fez uma pausa encarado nos homens que não lhe tiravam os olhos do rosto contraído: Querem saber? É por causa da República. Hoje todo o exército é republicano e o governo receia a revolta das armas.

Já outras praças haviam formado círculo em volta do cadete e ouviam-no atenciosamente.

— Que diabo! A obediência em excesso chama-se servilismo. Então só temos valor, só merecemos alguma coisa quando precisam do nosso sangue nos campos de batalha? Os canhões ribombam na fronteira, carne para saciar a fome das feras, carne para fazer calar os brutos de aço. E aí vamos nós, pacientes e resignados, por amor da pátria, servir de pasto à artilharia, que reclama do nosso patriotismo essa obrigação evangélica. E, na hora em que protestamos, em nome dos nossos direitos de homens, como nos respondem? Com a solitária nos presídios ou com o degredo. É iníquo. Olhem, eu estou com minha mãe de cama, à morte, pois não consentiram que eu fosse à casa beijar-lhe a mão. O governo expediu ordens terminantes. A disciplina militar é severa: é a pátria que impõe. Oh! é bem terrível e cruel a pátria que rouba às mães os filhos, que escraviza os homens que são o seu orgulho, a sua honra, o sustentáculo da sua integridade, levitas do seu símbolo. Bolas!

Os soldados ouviam-no em silêncio; alguns, de vez em vez, acenavam em sinal de aprovação, resmungando frases.

O cadete passeava de um para outro lado. Repentinamente voltou-se:

— Dizem que vamos partir para impedir a invasão da fronteira. Mas consta alguma coisa? Que é que consta? Digam!

E impetuoso, enumerando pelos dedos:

— Consta que o exército murmura; consta que a tropa, por demais sentida, e com razão, espera o momento da represália; consta que os generais desgostosos concertam planos de revoltas; consta que se conspira, isso sim! Exclamou num silvo. E como o governo, com os seus atos consecutivos de tirania e de perseguições, alienou de si todas as simpatias da classe militar, resolveu lançar mão desse meio supremo para inutilizar a força, em cujo seio germina a grande ideia libertadora. Ah! Mas a hora há de soar...! Os escravos tiveram o seu dia, o nosso sol há de raiar e essa manhã será alumiada pelo clarão rubro dos canhões. Nem todos ficarão nos banhados de Mato Grosso, tenho certeza e, os que de lá voltarem, endurecidos na provação do exílio, saberão tomar as devidas contas aos carrascos. Pátria! Pátria! É com o que lhes dão.

E, voltando-se para Fabrício:

— Você mesmo que riu... você não tem mãe?

— Como mãe?!

— Mãe, homem. Você não tem mãe?

— Como não?!.

— E não sente deixá-la!

— Sinto, de certo. Pois então não hei de sentir?

E outros concordaram baixinho:

— De certo ...

— De certo! Corroborou Fabrício; mas desde que sou soldado... os outros não vão? Os outros também não têm mãe?

— Sim, os outros vão, avançou o cadete estendendo o braço para o longínquo, vão porque não sabem que são enxotados. No dia em que o soldado tiver consciência da sua missão e vir que não tem servido senão para instrumento de vindictas tentadas contra generais, saberá reagir. Eles receiam a propaganda, tremem diante de Madureira que fala ao soldado como amigo e como patriota..., mas pensam, talvez que, pelo fato de mandarem para longe as tropas, apagam os sentimentos que nelas vão crescendo dia a dia? Enganam-se. Lá fora não será a propaganda feita pela palavra, será a propaganda latente da saudade, da fome, da agonia. Sim, quando vocês pensarem nos seus hão de indagar intimamente a razão desse apartamento e então... hão de ver que ela existe apenas no rancor dos ministros e na fraqueza de um velho que se deixa embair pelas palavras de um rol de falsos conselheiros e, cada um de vocês se transformará em um inimigo terrível, em um republicano ardente. A ideia de liberdade alastrará então pelas almas. A mim quem converteu foi o sofrimento.

Um rapazola que passava estacou:

— Estás indignado, Fernandes?

— Pudera...

— Mato Grosso é uma pândega.

— Pois sim...!

Como o outro seguisse cantarolando, o cadete continuou:

Servimos para tudo, até para capitães de mato,

— Onde, seu cadete? Indagou Fabrício.

— Onde? Em Santos.

— Ora, mas não se pegou ninguém.

— Sim, porque os soldados recusaram-se, mas que mandaram, mandaram...

— Olhe, eu cá por mim agora tanto me faz aqui como ali; isto há de acabar.

— Ah! Sim, há de acabar. E em brado: Há de acabar mesmo, com a República...

— O que, seu cadete! Exclamou Fabrício.

— É! Estás espantado? A República, e então...?!

— República!

A cara de assombro que fez o maranhense provocou uma explosão de gargalhadas. Tadeu, derreado, ria a bandeiras despregadas.

— Vocês estão rindo? De que? Indagou o cadete enfurecido.

— Não é do senhor, seu cadete; disseram.

— É de mim? Indagou Fabrício mirando-se: Mas de que, gente?

Redobraram as gargalhadas. O corredor enchia-se de soldados que surgiam de todas as partes. Ergueram-se os dois. Tadeu redobrou a gargalhada, mas o maranhense, exclamou revoltado:

— Homem, acaba com isto. De que é que você está rindo?

— Da tua cara.

— Da minha cara? Da minha cara? Que é que tem a minha cara?

E o cadete pondo-se lhe à frente:

— Aposto que não sabes o que é República?

— Eu?

— Sim, você mesmo. Que é?

Fabrício olhou em volta e, fitando o cadete, balbuciou tímido.

— Mas, seu cadete...

— Não sabes; é por isso que ris, concluiu, voltando-lhe as costas; e de longe: E como tu, são quase todos — e abrangeu, em gesto largo, o vasto pátio sombrio do quartel.

— Não pensa, homem! Disse Fabrício de improviso. Está você aí banzando à toa. Isto é pior. Deixa o mundo girar. Que é que se ganha com tristezas? Soldado não tem querer. Olha, às vezes, quando você me encontra jururu, metido por aí, estou pensando na minha gente. Minha mãe é que me mata, coitada! Suspirou. Está velhinha e não tem mais ninguém no mundo senão eu. Meu pai vive atirado no fundo de uma cama desde que ficou entrevado. Eu, que era o tombo da casa, ando por aqui sem saber deles. Deus sabe a miséria que os pobres estarão sofrendo; entretanto não vivo chorando. Se as minhas lágrimas servissem para alguma coisa, mas chorar pra quê? Não pensa, deixa andar a coisa. Dizem que a gente vai por castigo. Castigo por quê? Que foi que fizemos?

Tadeu encolheu os ombros com indiferença.

Em torno discutia-se. O plantão, condescendente e amigo, permitirá a conversa em voz baixa. Ele próprio demorava-se, de longe em longe, junto às barras, emitindo opiniões, recordando episódios do tempo em que andara por esses campos malignos, quase desertos, apenas atravessados pelas boiadas sertanejas.

— O que nos vale é que é Deodoro que vai com a gente.

— Caboclo direito! Afirmou com entusiasmo o veterano.

— Amigo do soldado até ali! Adiantou o cadete.

— Camarada, camarada como qualquer de nós. Não é de coisas. E valente como um tigre! No Paraguai, quando ele aparecia, era obra! Só se via guarani correndo. De uma feita...

E, atirando gestos estabanados, o veterano pôs-se a contar um episódio da campanha — o entrincheiramento paraguaio junto da encosta de um cerro, o fogo vivo da artilharia mascarada, as sucessivas cargas de cavalaria e, de repente, entrando a marche-marche, o batalhão comandado pelo caboclo terrível, que vinha à frente num cavalo libuno, com a sua bela figura marcial, o seu perfil de águia dominadora, brandindo a espada terrível, rompendo através da fumaça que encobria o inimigo, emboscado atrás das sebes e dos gabiões.

Ouviam-no todos atenciosos, interessados, e o velho soldado, recapitulando episódios da sua vida guerreira, sentia-se exaltado pelo entusiasmo. Foi necessário que o plantão lhe recomendasse “falar baixo”, para que ele abrandasse a voz atroadora que despertava a atenção de toda a companhia.

— Ah! Meus amigos, e ainda falam! Eu só queria ver vocês lá nesses campos, no meio daquela indiada que voava nos cavalos como fantasmas, soltando gritos que doíam nos ouvidos, com uns facões que nenhum de vocês seria capaz de levantar do chão quanto mais de manejar. Lá é que eu queria ver vocês, seus prosas.

E, embrulhando-se nos lençóis, estirou-se na barra resmungando:

— Mato Grosso... Mato Grosso... Isso é até um passeio.

— E dizem que é justamente por causa do Deodoro que nós vamos, adiantou o mulato.

— Por causa do Deodoro, por quê?

— Porque anda metido com os republicanos.

— Que republicanos, homem! Onde é que há republicanos...? Isso é história. Eles gritam, mas não fazem nada. Quem é que quer saber de República nesta terra?

— Mas é a verdade! Afirmou o cadete com energia. É a verdade! O que eles querem é ver-se livres do Deodoro que é, incontestavelmente, o maior prestígio do exército e que, no dia em que quiser fazer voar toda essa bobagem de tronos, faz mesmo. É por causa dele que vamos, fiquem vocês sabendo.

— Mas, seu cadete, que é que vem fazer a República? Faça o favor de dizer, inquiriu o veterano, calma e tranquilamente, sem levantar a cabeça do travesseiro.

— Que vem fazer? Vem acabar com a escravidão do povo, como a lei de 13 de maio acabou com a escravidão do negro. Vem trazer-nos a paz, a liberdade, a autonomia que não temos. Somos, por acaso, um povo? Diga. Somos um conjunto de títeres, sem vida própria, sem independência. Temos, como fatores constitutivos da nossa vida política, os conselheiros e os padres. Vivemos entre duas hipocrisias: o aulicismo e o beatério. O velho vive de zumbaias, ouvindo os eruditos murmúrios dos sábios e aprendendo, com uns jarretas, idiomas clássicos. A filha vive de genuflexões e de rezas. O povo tem fome, a miséria alastra. Que importa se há um astro novo no céu? Que importa se há inda uma conta no rosário bento? A República vem libertar-nos da bajulação e do fanatismo. Precisamos confraternizar com as nossas irmãs. É uma anomalia cômica este império isolado entre Repúblicas. A coroa de Colombo tem uma pedra falsa. É tempo de cuidarmos de nós. É tempo de constituirmos a Pátria. E é com receio de que isso se realize que o governo manda para os pantanais o exército.

E impetuoso, esmurrando o travesseiro:

— Mas é debalde! A República é fatal! Há de vir como depois da noite vem a madrugada.

— Pois sim, disse ironicamente O veterano cobrindo a cabeça e, debaixo da colcha, ainda repetiu em tom de troça:

— Pois sim, seu cadete... E quando ela vier mande entrar.

IV

Lá iam!

Monotonamente, ao latejo da máquina, pulsando em ritmo, o navio singrava, rumo ao Sul. Dias e noites no merencório infinito de águas, sob o céu, ora de azul metálico, ora negro, crivado de estrelas como um pano de esquife salpicado de cera.

Os dias pareciam infindáveis. De quando em quando uma vela branqueava como crista de espuma ou rolos de fumo toldando o horizonte e era a bordo um alvoroço alegre, todos correndo a ver o barco distante, numa atração de almas, necessidade de comunicar com o semelhante, de sentir, no deserto, a aproximação de outra caravana em marcha. E ficavam-se, à amurada, a olhar com simpatia, a conjecturar.

Umas vezes, cruzavam com o veleiro ou paquete, saudavam-no com alarido, acenando adeuses, procuravam ler o nome do barco, à proa e, à medida que se distanciavam, cada qual na sua derrota, como que no coração dos homens crescia uma saudade daqueles desconhecidos mal avistados em vultos indistintos.

Outras vezes era um brado no silêncio das horas aborridas — alguém que anunciava novidade: um boto a rebolcar-se de roldão nas águas, um peixe que se levantara da onda em voo de frecha, rebrilhando, e logo, em pós ele, outros em cardume lampejante; às vezes era o mar fervilhando ou uma gaivota que aparecia batendo lentas asas largas. Alegria grande era quando avistavam terra ao longe, serranias altas, de tênue, enevoado azul que as confundia com o céu e em baixo, como espumarada morta, a praia extensa e erma, branca nas suas areias, às vezes com coqueirais em touças. E os olhos alongavam-se perdidamente, saudosos.

Alguns contemplavam o céu descobrindo figuras fantásticas nas nuvens.

A proa, muito juntas, sobrepostas, atravessadas umas sobre outras, oscilavam redes.

Para passarem o tempo moroso e enfadonho os homens inventavam distrações. Uns, ressupinos, com os braços por baixo da cabeça, cantarolavam modinhas, contavam anedotas picarescas ou feitos de malandragem. Ouviam-se sons tristonhos de violão, trilos de machetes. Trocavam-se frases de tavolagem, expressões de garito e, de quando em quando, em contraste, soavam exclamações sertanejas: “Iche! Vôte! Virge!” ou eram termos bordalengos que indignavam as mulheres: “Genti i sês dêxa di nomi feio. Sês não respeita us mais veio nem as criança... Limpa essas boca. Cruz!”

Havia-os deitados no chão, sobre capotes de baeta, suando lustrosamente com o sol que lhes dava de chapa em rosto.

Sob a coberta da proa, na penumbra, era contínuo o bezoo de conversas, o murmurejo de conciliábulo cortado, às súbitas, de cascalhadas estridentes.

No atabalhoo da bagagem pobre: baús de couro, canastras, latas amolgadas, trouxas, caixotes, cacaréus diversos empilhados andavam mulheres muito relaxadas com as camisas escorrendo-lhes pelos peitos muxibentos, cachimbo ou cigarro nos beiços, à chalaça umas com outras ou trombudas, rezingando com os curumins que rebolavam, a modo de cochinos, na salmoura lodosa que empapava o convés.

A espaços, triste, a sineta ressoava. De quando em quando, rolavam soturnamente mugidos ou cocoricós de galos retiniam alegres, como vozes da terra. E a gente de bordo, em faina, troçava com as reiúnas esbagaçadas que pitavam de cócoras, banzando ou fuxicavam molambos.

Uma cafuza perguntou molemente:

— Ah pois, a gente a quando é qui chega?

— Quando?! Tem água ainda que Deus manda. Mato Grosso não é graça, responderam-lhe.

— Cruz! Oia qu’isso di navio infára di fázê nojo. Deus mi livre! Eu, fóra di terra, não sou genti. E estalava muchochos. E essa fedentina?! Cumu é qui s’aguenta isso, mi diga! Ondi si viu botá gente assim nu meio dus bicho? Antonce isso tem geito?! Só castigo. Quantus dias inda farta?

— Uns dez.

— Dez! Pois sim... Si não vinhé pur aí uma peste in riba da genti... Só mémo p’r’u milagre di Nossinhô. Nem gado quandu vai p’r’u matadouro. Imundice ansim... E isso é du governo. Cambada! Nem qu’a gente fosse cachorro. Deus mi livre...! Óie, eu por mim, cumida mémo dessa qui anda nessas gamela, não entra na minha boca. E cuspilhava de nojo. Us oficiá tão lá no seu bem bom, cumendo du bom e du mió, e us pobre di nós é ansim, nesta porquêra. Mas na hora di morrê bamo vê. Isso é qui é...

Tadeu arrincoado a um canto, entre pilhas de canastras, latas e trouxas, como em um nicho, passava os dias em inércia morrinhenta, fumando cigarros sobre cigarros. Os camaradas, vendo-o ali encorujado no escuro, com as pernas juntas, abarcadas nas mãos, o queixo fincado entre os joelhos, troçavam-no:

— Êh! ocê caiu mêmo, hein? Enjoo? Isso é o diabo! Despeja, qu’ocê miora. Fazê di valente é pió. Gumita... Gumita qui passa. Oia, meti n dêdo na guela. Mas Tadeu contestava:

— Que não, não estava enjoado. Um pouco tonto da cabeça, só. E lá ficava.

Quando sentia alguém irritava-se. Queria estar isolado, na quiete, para recordar saudades. Mal respondia aos que o interrogavam, sempre casmurro, de poucas palavras.

Às vezes, percebendo passos, fechava os olhos fingindo dormir. Saia apenas para comer ou caminhar um pouco, desentorpecendo as pernas, a ver o serviço da gente de bordo ou, encostando-se tristemente à amurada, ficava olhando o mar enfarinhado de espumas, correndo a par do navio, como se fosse ele que andasse.

Ao cair da tarde iam-se-lhe os olhos para o céu em chamas, com o sol enorme, a arder esbraseado, afogueando rutilantemente o oceano. Via-o imenso, redondo, como ofuscante pupila felina, fremindo em fogo, vibrando cintilações que palhetavam as ondas de brasidos, e descer, mergulhar, sumir-se de todo, ficando o céu pálido, como exangue, o mar lúrido, liso, mercuriado, escurecendo, enegrecendo merencoreamente, aqui, ali, enflocado de espuma.

Por fim à noite lúgubre e, lá em cima, as estrelas tristes. E começava, maguadamente, a cantilena a bordo.

Tadeu olhava como se quisesse devassar o além, mas a noite escurecia profunda. O vento refrescava silvando no aparelho e a arfagem tornava-se mais forte fazendo ranger a mastreação. As gáveas enfunadas tufavam-se tatalando. De vez em vez, em súbito cambar do vento, violentos mergulhos da proa faziam saltar a espuma à altura do gurupés com balofo rumor de águas cavadas.

Silvos cortavam o silêncio de quando em quando e o canto da soldadesca, vencendo o estuar oceânico e a trepidação da máquina, ficava gemendo no ar doce, sereno e frio da noite como um adeus às praias já distantes, onde haviam ficado desesperados corações e almas sem esperança.

Tadeu olhava o céu estrelado, o mar fosforejante de ardentias, mas a visão era, de súbito, obnubilada pela saudade e surgiam-lhe ante os olhos, como se emergissem de ruínas, as recordações em bando, que só esperavam, como as aves agoureiras que amedrontam a noite, a sombra e o silêncio.

E ele via, como em diorama, a sua cidade, os amigos, tudo que lhe ficara naquele cantinho querido, tão longe! Aonde, segundo lhe dizia o coração, nunca mais, nunca mais tornaria! E de espaço a espaço, esvaindo-se-lhe um aspecto, como se dissolve a projeção na tela, outro lhe sucedia: agora a sua casa, depois uma estrada roceira, com milharais além das cercas de espinheiros floridos, o rancho de sapê empenachado de fumo, gente a trabalhar, alegre; depois a igreja na praça, a forja, a botica, a estação. De repente, com a ideia do exílio, alumiada pelas descrições do veterano: extensos lençóis de areia amarelenta, sem vestígio de erva, pântanos, pedregais, rampas cor de sangue e, longe, em polvadeira de alvoroto, tribos de índios amotinados em correrias sanguinárias. E a dois passos do melancólico visionário os mais soldados folgavam e divertiam-se.

O mulato, com o cachimbo nos beiços, os pés nus, estirado nas taboas sórdidas, resmungava ouvindo o veterano, sempre gárrulo, que, chafurdando as mãos na marmita de comida, contava episódios cômicos de uma borrasca em mares da Bahia, quando chegara com o seu batalhão para a guerra do sul. O Fabrício, nostálgico, sempre calado, chalrava a propósito do gado que ia a bordo, relatando as arriscadas corridas dos vaqueiros nos campos no Norte, no tempo das vaquejadas.

Ele, sozinho, arredado, meditava diante do mar sereno que vinha babar a amurada, e pelo qual o luar nascente estendia o seu clarão triste que alastrava as águas aberto em leque, como um istmo de madrepérola trêmula.

O navio vogava serenamente. Quase todos dormiam. De pé à proa, apreensivo e medroso, apenas havia o negro Samuel, tambor, sempre macambúzio e preocupado com os naufrágios, quando um mugido quebrou o silêncio abafado.

Tadeu, que modorrava encolhido, agitou-se em sobressalto; soergueu-se sobre o cotovelo, relanceando olhares que mal podiam ver na sombra. Outro mugido mais longo reboou tristemente. Pôs-se de pé e adiantou-se para a amurada, lançando os olhos à noite como se quisesse descobrir, através da escuridão, a terra onde o gado errante chorava. Deviam ser campos, várzeas verdes e extensas colmadas de rebanhos. Mas a treva densa era impenetrável à vista e além, no horizonte, brilhava o céu estrelado. Estrelas...? Não seriam fogos de vigília, dessas fogueiras que os pastores acendem quando pernoitam nos descampados? Não, eram mesmo estrelas, não havia o menor vestígio de terras: águas e astros somente. Donde viria, pois, esse mugido? Pensava, quando ouviu, de novo, mugir bem perto. Só então lembrou-se do gado que ia a bordo, em jaulas. Era ele que gemia, saudoso das terras que deixara, da campina viçosa onde as manadas corriam fustigadas pelo sol, ou das planícies rasas, dos íngremes outeiros, das margens dos rios frescas e sussurrantes.

Acendeu-se lhe na alma o desejo bizarro de comunicar com os animais tristonhos, de levar-lhes consolo às prisões em que jaziam, olhando através das grades a negrura da proa, tão diferente da vastidão em que haviam nascido, aspirando a brisa marinha, salitrada e áspera, sem o aroma que as silvas e as açucenas emprestam à viração das veigas.

Tentou alguns passos, mas havia tanta gente estirada pelo convés que, receando pisar alguém, deixou-se estar onde estava.

Por fim, cansado e influenciado, talvez, pelo contágio do sono de toda aquela multidão que dormia em pilhas, ali perto, uns com a cabeça sobre o peito de outros, caídos desordenadamente como mortos, encaminhou-se para a sua rede e deitou-se. Ao mais leve rumor abria os olhos e ficava a ouvir o bufido dos bois insones que estendiam os focinhos, roçando as grades, farejando sôfregos o ar fresco da noite.

Quando surgiam em algum porto apinhavam-se todos nas amuradas, olhando curiosos para a cidade longínqua, para as pequenas embarcações que deslizavam em torno do paquete, tripuladas por homens que falavam linguagem estranha, acenando, oferecendo frutos. E além a alvura do casario em anfiteatro ou em panorama raso, a perder de vista. E paquetes saindo, outros entrando lentos, negros, cheios de gente, arquejando como se viessem cansados de longas travessias.

Mas quando começaram a subir as águas do Paraná, por entre barrancas eriçadas de erva, de onde saltavam, aos galões, maracajás que se arrojavam ao rio atravessando-o sob saraivadas de balas, e jacarés pasmados, sesteando ao sol, olhavam meneando as caudas, fugindo logo que percebiam movimento a bordo, a tristeza foi desaparecendo vencida pelas surpresas e pelas narrativas do veterano, em torno do qual a soldadesca formigava, ouvindo-o falar da campanha.

Ele conhecia todos os sítios, e em cada um punha um episódio mais ou menos colorido pela sua imaginação de meridional. O forte Coimbra, Corrientes...

As barrancas vermelhas, que iam vendo, pareciam ainda ensopadas de sangue; a vegetação rara, tosquiada pela metralha esterilizadora, mirrada e triste, levantava os galhos nus para o céu fulvo. Duas mulheres, de branco, com as cabeças cobertas, de pé na barranca, olhavam e gesticulavam. Tudo era triste e calado, apenas o chofrar das rodas do vapor, na água adormecida do grande rio, quebrava a calma melancólica dessa quietude de eremitério. O veterano explicava.

Tadeu, posto que afastado, ouvia-lhe as palavras e, sem desviar os olhos da paisagem, viu imaginariamente todo o espetáculo da guerra:

Regimentos velozes precipitavam-se aereamente, corriam entreverados e, súbito, diluíam-se como se se desfizessem no ar; outros vinham, bandeiras ao vento, em colunas cerradas e sumiam-se. O céu ensanguentava-se, a terra jorrava sangue.

Soaram cornetas. Tadeu voltou-se de repente. Os soldados aglomeravam-se, olhando ao longe, apontando. Casas de palha apareciam por entre a vegetação tolhiça das barrancas.

A tarde morria em crepúsculo de ouro. O ocidente, purpurino e rútilo, era como imenso pano de xairel destacando-se vivamente do esmaecido azul já tacheado de estrelas, quando surgiu ao longe, no alto de um cerro, a torre esboroada de velha igreja e mais em baixo, na rampa, entre capoeirões de mato híspido, apareceram lascas de muralhas, blocos enormes de granito rolados e cheios de limo e de ervas. O veterano acenou aflito e uma onda de homens afluiu precipitadamente à proa:

— Olhem...! Estão vendo lá em cima aquela torre velha? É Humaitá.

— Humaitá! Sussurraram vozes e pairou silencioso pasmo. Persistia apenas o ruído das rodas do vapor que subia as águas tranquilas entre margens selváticas, passando, às vezes, junto de ilhas flutuantes que desciam lentas, rolando, desagregadas da terra como se aquelas zonas, desfeitas e mutiladas pela guerra, fossem, pouco a pouco, apodrecendo e caindo, até que, de todo, desaparecesse a pátria bárbara e vencida.

Havia na serenidade da paisagem inexprimível melancolia. Alto, no céu, lentos corvos circulavam; nas margens piavam pássaros e ouvia-se uma voz longínqua que, de espaço a espaço, bradava na soledade. Uma cabana baixa, rente da água e diante dela esguia piroga repousava estirada na área.

Duas mulheres acocoradas, escondidas em chalés brancos, como duas garças tristes, friorentas, olhavam o fluir constante da corrente. Um pequenote nu brandia uma vara e gritava.

Paraguaios... disse alguém.

As mulheres levantaram as cabeças embiocadas. Subitamente puseram-se de pé e, descobrindo-se, sacudiram os chalés como grandes azas, acenando. De bordo corresponderam festivamente e gritos troaram das amuradas para a terra triste.

O rio torcia-se em curva. Viam-se distintamente as margens desoladas, a costa do albardão de andai vestida de mato e, em frente, a ruína da terrível trincheira de Humaitá, outrora defendida por mais de duzentos canhões, além das inacessíveis linhas de abatises e de bocas de lobo.

Dormiam em silêncio à borda da água os escombros colossais. A terra aluída, vincada, como se mostrasse as suas feridas, estendia-se muda e em sombras. Brocas enormes, como grandes cicatrizes no solo, afundavam-se muito negras. A vegetação rasa parecia polvilhada de cinza.

Ali fizera a sua concentração a flor do exército de Lopes, no intuito de fechar a passagem às forças brasileiras; dali, daquelas barrancas, a artilharia despejara sobre os navios que subiam as águas a sua surriada contínua. Aquelas voltas fluviais, tão serenas então, haviam guardado insídias de torpedos; e correntes estendidas de margem a margem haviam tentado em vão sustar a marcha triunfal da esquadra; a vitória levara-a águas acima, apesar do ladrido reboante da matilha de bronze do ditador terrível. E a essa hora nem viva alma. A velha igreja desmantelada era o único indicio de vida, espécie de marco religioso deixado na melancolia e no ermo, para atestar uma passagem de uma era de civilização e de fanatismo, por esses lugares tomados pelas parietárias e pelas intrincadas moutas que avassalavam tudo, fechando as bocas das baterias, sepultando todo o heroísmo extinto sob as folhas que os ventos espalhavam.

A noite caía e o luar alumiou a solidão estendendo-se por ela como uma infinita mortalha. A bordo, as cornetas soaram a Trindades. Os ecos foram repetindo pela solidão as notas melancólicas. Alguns soldados olharam instintivamente para a velha igreja. Ela lá estava, muda e morta, em ossada branca, ao luar.

Desde quando emudecera no campanário enegrecido o sino que chamava à prece as povoações de redor? Desde quando?! Calara-se no dia em que, junto dos seus muros, acamparam os soldados ferozes. A campana mística voara em pedaços, soando no ar, como se gemesse, alcançada pela primeira bala.

E nunca mais se ouviu a voz santa da igreja, ali assim esquecida, de pé entre ruínas, morta com a serenidade extática de mártir.

Uma luzinha oscilou além e logo os soldados supersticiosos viram, naquela chama peregrina, a alma errante de algum guerreiro antigo que procurava o eremitério do templo e mostravam-na. Braços estendiam-se em direção ao lume.

Passavam em frente à trincheira e, como se se tivesse comunicado a todos a pesada tristeza do sítio, calaram-se e só ficou o barulho do vapor que subia cortando as águas do rio chamalotado de luz.

E vieram as longas margens negras, abstrusas, cerradas. De vez em vez, verde e florido camalote passava ao sabor da corrente e mais nada, a não ser o eterno choro da água roçando pelas raízes das árvores ribeirinhas.

A soldadesca, sem mais curiosidade, logo que se perdeu na curva do rio a barranca de Humaitá, deixou as amuradas desertas. Ficaram Tadeu e Fabrício olhando entretidamente.

— Não há gente nesta terra... parece que a guerra comeu tudo, observou Fabrício. Uma cabana aqui, outra além e mato. Mato que Deus manda!

— É triste!

— E o lugar onde morreu o Lopes? Onde é?

— Não sei; por aí! E Tadeu mostrou a vastidão profunda das terras além, brancas de névoa, ao luar.

— Iche! Que tapera! Exclamou Fabrício retirando-se e, em assomo de patriotismo, sacudindo a cabeça, ajuntou com ironia: Ahn! Quem mandou? Quem não pode com tempo não inventa moda... buliram... Tá ai.

Mas Tadeu, como se resumisse na alma toda a piedade e toda a misericórdia pelos vencidos, exprobrou o camarada:

— Ah! Fabrício, não fales assim. Coitados! Deixa lá! ...

V

Verde e ouro. Os montes, de sadio frescor, respirando névoas por entre o arvoredo azulado e sol em tudo. Várzeas extensas de milharais apendoados; cafezais a eito vergando à carga, laranjeiras floridas. Brilho de águas regadias serpeando fugitivamente pelos matos e voando, revoando pássaros e abelhas.

É Deus que lhe recompensa o esforço dando-lhe rega de chuvas, rociadas benéficas e sol, e fazendo com que a terra, em todos os seus tratos: campos, almargens, grotas e colinas, devolva as sementeiras centenas de vezes multiplicadas.

Lá vai ele em mangas de camisa, chapéu de palha acabanado, enxada ao ombro pela trilha do pomar e sente o bom cheiro da terra que acorda e exala o seu hálito puro, que é o aroma das ervas novas e das flores: Lá vai!

Longe, por entre ramos, muito branca, asseada, com as gaiolas à varanda e as abelhas em volta do telhado, a casa da família, a sua casa, cingida pelo jardim todo aberto em rosas.

Lá está o velho curral de taboas, onde a vaca relambe o novilho; no pasto os dois bois, muito juntos, com erva até as ancas roliças ruminam vagarosamente, de olhos fechados; os anuns põem-lhes cerco, posam-lhes no lombo catando-lhes os carrapatos ou equilibram-se em ramos finos que os balançam de leve.

Senta-se. Que doce sombra! Formigas cruzam-se encarreiradas, insetos luzem em revoejo e, de instante a instante, um ruído balofo chama-lhe a atenção: são frutos que caem esborrachando-se de maduros.

É a fortuna que chega. Até que enfim! Na varanda, com o balainho ao colo, a mãe distrai-se cerzindo roupa. O gato ronda-a resbunando, corcoveado e um ramo de jasmineiro em flor brinca-lhe com os cabelos brancos.

E Luíza? É ela, sim, sempre trefega, que lá anda por baixo das laranjeiras úmidas, recolhendo lençóis de flores caídas durante a noite. É ela! E como está contente! Como ri... com quem brinca? Um cão investe, recua, aos pulos, agacha-se sobre as patas dianteiras sacudindo a cauda, late. Súbito, dá volta; arremete ao mato, desaparece; torna de arrancada a ladrar para rojar-se de lombo ao chão, rebolcando-se, a rosnar festivamente à dona.

E lá em baixo, à beira do córrego, num cimo todo coberto de erva de S. Caetano, um homem alto, possante, em mangas de camisa, com a mão em pala aos olhos, contra o sol, alonga a vista pela estrada. É Nazário, o ferreiro, que procura alguém, talvez o filho...

Colheita. Todos os frutos amadurecem. Bendito sol! E colhem. Que alegria! Camaradas, gente de casa e de fora, um mundo! Todos cercam as árvores, enchem cestos e os carros acogulam-se.

Cruzam-se bandos de jornaleiros. Estalam as espigas quebradas, empilham-se as canas, peneiras e peneiras de café despejam-se em cofos. E o que ali vai de laranjas e de tangerinas, de cachos de bananas, de abacaxis, de figos e de pêssegos...! E a horta!?

E já a moenda range, crepita o moinho esfarinhando o fubá, o monjolo bate no campo. Está ganha a campanha! Nem mais um espinheiro: tudo é lavoura rica. E esse que vem vindo devagar por entre os laranjais, tão parecido com o morto? A mesma estatura, a mesma robustez, o mesmo rosto corado e aberto, o mesmo sorriso bom, o mesmo olhar sereno.

É ele mesmo, o pai. É ele que vem visitar a terra, a casa, a sua gente. E a morte? E o túmulo? Não! Não morreu, porque os mortos não tornam. Abre-lhe os braços, apertam-se peito a peito, falam-se.

E no largo, em festa, diante da igreja; essa multidão acompanhando uma virgem, linda como N. Senhora? É Luíza que vai vestida de noiva, sorrindo. E o noivo...?

Cantam. Há um constante sussurro como do vento nas folhas. Mas para onde vai todo esse povaréu que aparece e desaparece? E o cemitério... por quê?

Onde os campos? Onde os montes? Agora é uma tenda escura com a forja lampejando ao fundo. E continuam a cantar, e continua o sussurro.

De repente, uma voz conhecida exclama: “Ai! Meu Deus!” Cantam ainda. Um choque. Vê-se num carro de bois, agarrado aos fueiros, equilibrando-se com os solavancos pelos caldeirões da estrada recomida das chuvas. Um boléu mais forte quase o derruba; agarra-se. Os bois precipitam-se desapoderadamente, ladeira abaixo. Tenta o carreiro detê-los. Debalde afala, ameaça, pica-os de frente com o ferrão. É o desastre. Que horror!

— Que é isso, rapaz! Você está doido? Acorda.

— Hein?! Tadeu sentou-se na rede sarapantado, olhando em volta, airadamente. É você, Fabrício?

— Eu, sim. Olha que você pra sonhar... que berreiro...! Nossa Senhora!...

— É... Passou a mão pelos olhos. Você estava aí?

— Pois então? Lá fora cai água que é um Deus nos acuda!

— Está chovendo?

— Que Deus manda!

— Era você que estava cantando, Fabrício?

— Era. Por quê?

— Nada. Eu estava ouvindo em sonho.

— Ferrado como você estava? Duvido.

— Palavra! Um sonho esquisito... No fim, se você não me acordasse... Nem sei! Crispação de relume e logo tronou o estrépito de um raio. Que é isso? Perguntou Tadeu assustado. Temporal?

— E feio! E olha só como joga esta caçamba...

— Pois eu estava sonhando. Dá cá um fósforo. Acendeu o cigarro. O céu negro inflamava-se com os sucessivos relâmpagos e viam-se-lhe as empolas das nuvens e, de espaço a espaço, como em desmoronamento, ribombavam trovões profundos e prolongados.

Vinha do escuro um cicio de reza. Crianças choravam. E o navio rangia, estalava, subindo, descendo nas vagas como se fosse soçobrar. Cruzavam-se exclamações de horror: “Nossa Senhora! Misericórdia! Valei-nos, Santa Mãe!” E golfões de água acachoeiravam-se estrondosamente pelo convés.

Correram insípidos sete longos dias de viagem, rio acima, ao longo da costa devastada e sáfara, desde Humaitá, passando por Assunção, até essa triste e inóspita Corumbá, vigiada pelo forte Coimbra, onde havia um destacamento.

O desembarque efetuou-se tristemente, em silêncio Oficiais e soldados, olhando essa terra selvagem e estéril, rasa, coberta de cabanas como uma arenga, sentiam a alma confrangida como se para ali fossem degradados.

Em terra, bandos de mulheres, araviando em guarani, embrulhadas em grandes chalés brancos, espiavam a passagem da tropa, contendo, a custo, crianças que choravam esperneando. Cabras espavoridas deitavam a correr, berrando.

Raro em raro uma casa coberta de telha. Eram renques de choças, à porta das quais paraguaias ateavam fogo ou, sentadas no chão, com grandes almofadas ao colo, jogavam bilros fazendo crivo; outras, novas, púberes, os cabelos soltos, descalças, balançavam redes onde dormiam crianças. Pairava um silêncio tórrido de sesta.

As tropas atravessavam as ruas caladas, por entre mulheres, que eram raros os homens que apareciam, e assim seguiram sempre até o quartel onde deviam repousar, à espera desse imaginário inimigo que ameaçava a fronteira.

O ódio, que animava os soldados contra o governo desde o dia atabalhoado da partida do Rio, agravando-se com as torturas da travessia, explodiu em franca hostilidade logo à chegada a Corumbá.

O atraso da cidade, em grande parte palhiça, o calor asfixiante, o desconforto dos alojamentos no quartel em ruínas, o rancho aguado, os mosquitos que os não deixavam dormir, tudo concorria para acirrar os homens, que rosnavam ameaças, protestando, às escancaras, contra as vexações de que eram vítimas.

O cadete Fernandes, sempre irritado, dizia nos grupos:

— Isto é a nossa Sibéria, meus amigos, e pior do que a outra, porque é de fogo.

A disciplina era relaxada e os próprios oficiais davam o exemplo da insubordinação atacando o governo e os homens mais eminentes:

— Tantas eles hão de fazer que, um dia, a bomba estoura. E não falta muito.

Os dias sucediam-se monótonos, em lazeira. Os soldados, seminus, estendidos nas barras, dormitavam ou, espalhando-se pelos rincões escusos da cidade, em convívio com o mulherio reles, embriagavam-se provocando rixas nos garitos onde se juntavam michelas e calaceiros de má fama.

O mulato, azevieiro cínico e dado à pinga, conhecia todas as bibocas de jogo, todas as palhoças devassas e, uma noite, metendo-se com certo valentão do Ladario, caiu cosido a facadas.

Eram tão frequentes os conflitos que o comando superior resolveu espalhar patrulhas noturnas para o policiamento das vielas mal frequentadas. E a cidade tornou-se como presa de conquistadores que se aboletavam onde lhes parecia pilhando e afrontando os habitantes à mão armada.

Tadeu amasiara-se com uma chinoca, rapariga séria que vivia, muito retraída, num ranchincho de sapê, num alto, a cavaleiro do rio, em companhia da mãe, velha índia, lavadeira e curandeira de fama. Quando não estava nas alpondras batendo roupa, com o pito nos beiços, andava pelos matos catando ervas e raízes para mesinhas ou por aqueles recantos de pobreza benzendo crianças quebrantadas, bicheira de gado, “maldita” ou estupor, curando mordedura de cobras ou fazendo partos. Não faltava a velório e para tirar reza não havia outra.

Nhá Chica era tudo, assim nos palhais como nas casas ricas, sempre com o seu rosário, mais virtuoso em curas do que todos os remédios de botica.

A filha, Maria Bárbara, era rendeira, o seu nhanduti valia ouro e antes que lhe saísse das mãos já estava vendido.

Viu-a Tadeu na igreja. Olharam-se durante todo o sermão e à porta, no momento da saída, sorriram-se. Uma tarde encontraram-se e, como o soldado lhe estendesse a mão, ela parou, como magnetizada, olhando-o a fito, séria, a princípio, depois risonha e, correspondendo ao gesto que lhe ele fazia, caminharam a par, vagarosamente, detendo-se diante das lojas e, quando deram por si era quase noite. Ele, então, ofereceu-se para acompanhá-la à casa. Foram.

A velha andava em peregrinação de cura e os dois ficaram no terreiro onde os encontrou a lua e ali estiveram até tarde, ouvindo os ruídos mansos da noite e falando baixinho, de mãos dadas.

Sabendo do que acontecera à filha a índia esbravejou, furiosa e, traçando o chalé, dispunha-se a ir ao quartel dar queixa ao comandante quando Maria Bárbara se lhe atirou nos braços soluçando, pedindo-lhe que não fizesse mal ao coitado, porque naquilo tanta culpa tinha um como outro. Ele não a forçara, isso não...

    A índia cedeu, ainda que augurando mau fim, o fim de todas; e citou nomes, recordou casos, lembrou desgraças e vergonhas: tanta moça perdida! Tantos pobrezinhos sem pai! Enfim... sua alma, sua palma.

Um dia Tadeu foi jantar no rancho, a convite de Maria Bárbara, e, tanto fez que, depois do café, no terreiro, como a noite esfriasse, a velha convidou-o a entrar. E foi ela que acendeu o lampião de querosene para a “bisca”. Jogaram até tarde e quando o soldado levantou-se procurando o quepe a índia encarou-o:

— Ond’é qu’ocê qué i co’essa noite? Tá chovendo... Tadeu garabulhou razões, mas a velha decidiu: — Ah! dêxa di luxo... E riram. E foi assim que ele se tornou o homem da casa.

Quando saía do quartel, comprando sempre alguma coisa em caminho, era logo para o rancho, levando, às vezes, Fabrício e lá ficavam horas e horas, de prosa com as mulheres.

O maranhense, esperto na viola, tangia toadas languidas e a chinoca ficava a ouvi-lo encantada com as modinhas sertanejas, cantigas de amor ou bravatas campesinas nas quais ferravam em luta vaqueiros e barbatões.

A índia acompanhava o divertimento cachimbando quietamente a um canto.

Tadeu pusera ordem e asseio na cabana rebocando-lhe os muros, caleando-lhe a sala, sacudindo todo o picumã que lhe denegria os caibros, colgando-os de sanefas, barreando-lhe o forno, entaipando o chiqueiro. Comprara, em segunda mão, uma “marquesa” de vinhático, três cadeiras e uma cômoda; atamancara, ele próprio, um banco e um oratório para o Santo Antônio de gesso e, aproveitando as folgas, corrigira o terreiro plantando-lhe flores em volta.

Com caixas de sabão fizera um pombal e um cortiço e era ameno ficar, à tarde, ali fora, vendo chegar o enxame e os pombos, ouvindo-lhes o zumbido e o arrulho que se misturavam com o estrilo dos grilos e o cicio constante e apelativo das cigarras.

A vida corria feliz, com a casa sempre alegre e farta, porque as duas mulheres trabalhavam valentemente e Tadeu sempre concorria com alguma coisa, quando, uma tarde, a índia anunciou-lhe misteriosamente a gravidez de Maria Bárbara.

O soldado empalideceu, estarrecido e, mudo, encarado na velha, mordicando os lábios, sentia que os olhos se lhe aguavam. E, através das lágrimas, viu o quadro triste que se lhe projetou instantaneamente da imaginação: Maria Bárbara chorando, com uma criança muito entanguida ao colo, envolta em molambos, sugando-lhe, com avidez, o peito murcho.

— Isso divia acuntecê, disse a índia chamando-o à realidade, divia acuntecê mais hoje, mais amenhan. Sês não têm juízo... Ele pôs-se a caminhar pelo terreiro, de cabeça baixa, roendo nervosamente as unhas. De repente, voltando-se e cruzando os braços, cabeça a prumo, perguntou, em voz estrangulada:

— E agora?!

— Uai! Agora... agora é ansim mêmo. Qu’é qu’ocê qué...

— Mas é que nós vamos embora. Já veio ordem. Estamo-nos preparando para seguir.

— Sês!? Exclamou a velha corcoveando-se com as mãos nos joelhos, os olhos duramente fitos no soldado. Sês vai-s’imbora?! Modi quê?

— É ordem.

— Orde?! Orde di quem? Desse qui tá hi? Deodoro?

— Não. É ordem do imperador, do governo.

— D’imperadô! Di guverno...! Ficou-se a olhar perdidamente, airada, repetindo baixinho, como para penetrar-lhe o sentido: D’imperadô!? di guverno!? Súbito irrompeu: — Antonce imperadô... Quá! E riu, riso de ameaça, sinistro como o brilho d’uma navalha. — Antonce imperadô manda ocês só modi fazê má às pobres, num é? i quandu má tá feito, vórta! vórta tudo. É ansim? Muito bom! I ocê vai? Tadeu encarou-a em silêncio. Tá bom... Deus Nossinhô cumpanh’ocê.

Foi até a porta apoiando-se a um dos alisares, sem ânimo de entrar. Esteve pensando, a menear com a cabeça, aos resmungos e risinhos. Levantou os olhos e, de mãos postas, lançou uma exclamação aos céus. Voltou-se de golpe: — Óia, rapaz, pódi sê; mas... deu d’ombros balançando com a cabeça desanimadamente, murmurando corno ao próprio coração:

“Não dura, não. Ansim cum’ansim, terra tá hi. Sês passa, faz u qui bem qué i vai-s’imbora. É cumu a esses qui atira ponta di cigarro acesa nu mato. Fogo péga, lastra, leva tudo e eles vão longe, cantando, sem oiá p’ra traz. Num fá má não, meu fio. Mundu é ansim mêmo. Deus te abençoe.

— Mas que culpa tenho eu?

— Ocê? Ocê num tem curpa, não. Curpa é da sorte di cada um. Imperadô manda? Antonce? Oui mais?!... Quem fica qui s’arranje. É ansim mêmo. Sê pensa qu’eu não contava co’isso? Ora!... A desgraça dos outro é como a sombra de nós, mas quem é que, no sol, óia a sombra? Quem? É ansim mêmo. Não tá hi tanta moça perdida? Pru quê? Agora mêmo, sê pensa? Não é ela só, quantas!...

Sentou-se na soleira da porta alisando os braços magros, tisnados e vermiculados das soalheiras no rio.

Tadeu sentia a garganta presa, o coração crescido, túmido, como prestes a rebentar. Adiantou-se e, prostrando-se diante da índia, a retorcer as mãos, disse comovido:

— Ninguém esperava, velha. Essa gente resolve tudo assim duma hora para outra. Foi de repente. Eu, se pudesse, ficava... A velha firmou-se olhando-o direita:

— Sê? Sê ficava?...

— Ficava.

— I cumu num fica?

— Aqui? Só se eu desertasse, mas isso...

— Isso, que? Mundu é grande... viver, a gente vive em toda a parte. Quem barreou um rancho, barrêa outro. Caco, molambo... isso não vale nada. Sê qué ficá, fica i eu juro qui ninguém bota mão n’ocê. Eu não sou d’aqui, sou di longi, cunheço esses mato qui nem onça i, ganhando caminho, p’ra dá cumigo só Nossinhô. Sê querendo... É só querê...

Ele deu volta, arrependido do que dissera e pôs-se a pensar na vida errante que lhe propunha a índia—a fuga através de florestas cerradas, arriscando-se a encontrar índios, a ser assaltado por feras, a perecer de febre ou à mingua e ainda a possibilidade de ser preso como desertor, posto a ferros numa fortaleza.

A índia seguia-o com o olhar e quando o viu acenar de cabeça negativamente, em resposta ao próprio coração, não se perturbou como se contasse com aquilo, riu apenas, um risinho seco, ácido e, firmando as mãos nos joelhos, pôs-se de pé:

— É mêmo. P’ra que a desgraça di dois? Vai, meu fio. Disse e entrou.

Só, no terreiro, olhando o céu, que entristecia, o soldado sentiu como uma onda de saudade bater-lhe no coração. Sentou-se num toco de pau olhando tudo em volta, lentamente, como para gravar na memória aquele cantinho amorável com as árvores, as flores e o rancho alegre onde gozara dias venturosos.

O pombal turturinava e um pombo andava em cima tufado, saracoteando com arrulho orgulhoso. O cortiço refervia e ainda chegavam abelhas apinhando-se nos aivados, em cachos.

Pelos matos, que recendiam a calidez do sol, iam surdindo finas vozes de insetos em ziziamentos, cicios e guizalhadas e, de espaço a espaço, lúgubre uma rola gemia.

Em baixo, nos aguaçais cobertos de açucenas, os sapos começavam o coaxo monótono. Cigarras chiavam longe. Escurecia.

Que fazer? Entrar? Falar a Maria Bárbara? Não tinha coragem. Tão boa, coitada! E tanto que lhe queria... E na tristeza daqueles pensamentos passavam, como coriscos em papel queimado, lembranças de amor — era o corpo roliço e cheiroso da chinoca, era a pressão dos seus braços nus, era o fervor dos seus beijos longos, era a ternura dos seus tartareios voluptuosos, toda ela, toda! Com os cabelos, como ele os queria ver sempre: soltos, espalhados desordenadamente pelo travesseiro. Pobre Maria Bárbara!

Acendeu um cigarro. O rancho iluminou-se. Esteve a olhar a luz tão íntima, tão hospitaleira, no fundo da salinha branca que ele tanto conhecia, palmo a palmo. Uma sombra desenhou-se na parede, um vulto assomou à janela, inclinou-se a um e outro lado, como à espreita e ele reconheceu a chinoca.

Era ela que o procurava aflitamente na sombra do terreiro e chamou-o: — Tadeu! E a voz tremia-lhe muito meiga, repassada em lágrimas. Era bem o canto da sereia que o atraía... E ele foi indo, passo a passo e, quando a chinoca o descobriu mais se lhe enterneceu o encanto: — Huê! Você aí fora? Porque não entra? Pensa que estou zangada? Deixa disso. Vem!

Foi. E, quando se acharam frente a frente, olharam-se mudos, trêmulos e foi ela que se lhe atirou nos braços soluçando e apertaram-se, muito infelizes, beijando-se, dizendo-se blandícias em voz sumida para que os não ouvisse a velha que servia a mesa.

O assunto da conversa ao jantar foi a “maldade” do governo, e Nhá Chica insistiu com Tadeu para que abandonasse a farda, seguindo com elas para o interior... “Quantos conhecia ela que haviam desertado e andavam ali muito à vontade — e citou o Raimundo, que fugira no tempo da guerra e que se arranjara, ninguém sabia como (diziam alguns que com moeda falsa) e estava podre de rico, com os filhos todos arranjados e mandando na política. ” Mas Maria Bárbara contrariou a velha:

— Não, mamãe; deixe ele ir. Não quero que sofra por minha causa. Soldado é soldado. Se ele lembrar-se de mim e quiser voltar, muito bem, senão... Outra que o estime tanto como eu ele poderá encontrar, que lhe queira mais, duvido. Quanto ao mais Deus há de me dar forças para criá-lo. O pouco que eu tiver há de chegar para ele. Conceição não está aí tão feliz com a filha? E eu? Conheci pai? E não estou aqui? Deus é grande! Fui feliz, não me posso queixar da sorte: tive os meus dias alegres... agora... Paciência!

A velha resmungava. A resignação da filha irritava-a. Amassando vagarosamente o pirão, apolegava-o e repelia-o para responder amuada.

— Sê é ansim, é essa moliesa di sempre... di- pois chóra. Vórta... vai isperando. Não vê mêmo qu’ele, s’apanhando lá, vai pensá n’ocê. Pois sim! Exclamou espichando os beiços, desdenhosa. Vai te fiando!

— Paciência, minha mãe.

Tadeu não dizia palavra, olhando ora uma, ora outra. A velha deixou-os alegando fadiga...

Sós, deram-se as mãos meigamente e, apesar da escuridão da noite, picada apenas de vagalumes, saíram para o terreiro sentando-se no banco, muito juntos, aconchegados, como transidos de frio.

As harmonias do silêncio, esses soídos do quirirí, que passam como espectros dos calados rumores do dia na mais recolhida quietação noturna, acompanharam o idílio triste dos amantes.

— Então é assim, não é? Se eu adivinhasse...! Não é pelo que houve entre nós, isso não me importa, é pelo que fica no meu coração. A gente começa à toa, vai indo, vai-se prendendo, querendo bem, e um dia, sem saber como, parece que vive mais de outro do que de si mesmo. Eu estou assim. Quando você está perto de mim, como agora, tudo me agrada; quando você está longe... nem sei. Isto sim, isto é que vai me custar...

Tadeu tomou-lhe a cabeça, inclinou-a ao peito e, curvando-se sobre ela, pôs-se a beijá-la devagarinho nos cabelos, na fronte, nos olhos, na boca e Maria Bárbara, assim acariciada, ia falando docemente, como em sonho, parando, de vez em vez, para cerrar os lábios afim de que um beijo neles penetrasse como abelha em botão de rosa.

— E ele, chinoca? Você não imagina a pena que eu tenho de não estar aqui para ver ele nascer. Se for menino...

— Tadeu, disse ela languidamente. Ele opôs-se:

— Não, não quero. É um nome muito infeliz. Vamos escolher outro, mais bonito.

— Carlos, disse ela. E ele:

— Roberto.

— Você gosta? E se for menina?

— Maria, nome de Nossa Senhora, teu e de minha mãe. Se eu puder vir, como espero, muito bem; senão você me mandará o retrato logo depois dele nascido, sim? E o teu também: quero os dois: o da minha chinoca e o de meu filho. A pobre não respondeu: chorava.

Tadeu fê-la levantar-se e, para distraí-la, passou-lhe o braço pela cinta, levando-a vagarosamente por entre as árvores, rumo barranca, onde costumavam ficar à tarde, entre as bananeiras, olhando o rio.

Calados, seguiam devagarinho, passo a passo. Rumores de azas frulhavam nos matos, eram bacuraus em voo baixo e curto, pousando e abalando mal os sentiam perto.

De repente, saindo no limpo, o soldado estacou surpreso e a chinoca, contida por ele, levantou a cabeça assustada.

— Que é aquilo?

— O quê?

— Olha lá... Ê um incêndio!

— É. É fogo na mata. É do sol. O dia foi muito quente e há mais de mês que não chove. Está tudo seco. Às vezes é assim. O capim arde, o fogo rebenta, lavra num instante e leva dias e dias queimando.

O céu estava de cor brônzea, laivado a rubro.

Densa nuvem de fumo rolava na altura com fulgurações instantâneas, como de relâmpagos. Os dois quedaram contemplativos.

— Faz pena! Exclamou o soldado.

— Isto aqui é sempre assim no calor.

Crepitações longínquas anunciavam a devastação das fortes árvores, a queima de velhos troncos. O vento trazia um cheiro morno de seiva e, longe em longe, estrépitos mais ríspidos atroavam, a claridade acendia-se mais intensa, em lumaréu radioso. E o céu, abrumado, carminava-se em arremedo trágico de aurora.

O rio, em baixo, rolava sonolento, com brilho escuro, de aço. Ruídos chofravam como de mergulho. Além, na margem oposta, onde faiscava uma luzinha trêmula, cantavam em festa, um sino soou, grave e, logo em seguida, triste, respondeu um toque de corneta. Maria Bárbara vibrou em estremecimento, apoiando-se, com mais força, ao braço de Tadeu.

— Que é?

— Nada. É tarde. A porta ficou aberta. Vamos.     

— Vamos. Regressaram em silêncio. Tadeu ainda se voltou para o céu fulvo. O vento sacudia os ramos e fazia girar no terreiro as folhas secas.

— Vai chover, disse Maria Bárbara. E entraram.

A cidade alvoroçou-se com a notícia improvisa da retirada das forças. Foi geral o clamor: o comércio, alegando prejuízos consideráveis, porque fizera grandes encomendas que iam apodrecer nos depósitos; as famílias, porque fundavam esperanças nos oficias, que as haviam frequentado com assiduidade, muito solícitos com as meninas. A gandaia, essa sentia e protestava pela soldadesca que toda vivia amancebada, mantendo o contubérnio, sempre disposta à pagodeira em serenatas, bródios, cururus e jogatina.

O mercado esfervilhava agitado, bezoante de comentários irritados e lástimas chorosas. Nos alpendres dos negócios, nos ranchos e até nas igrejas outro não era o assunto das conversas e recriminações dos homens, queixas das mães de famílias, suspiros de meninas, vozerio das reiunas e arruadeiras que não continham a língua, desandando-a em palavrões e cuspilhando de esguelha, por entre dentes, com petulância afrontosa, desnalgando-se às rabanadas e reboleios canalhas, com ar de desafio, quando descobriam algum oficial.

Certa mulheraça pimpona, muito bêbeda e desordeira, impando a gravidez, batia no ventre, dizendo, em tom de ameaça: “Pensa que vou criá isto? P’ra cá, mais p’ra cá! e cruzava o busto com a mão aberta, de ombro a ombro. Não fartava mais nada! A gente não é róça p’ra gafanhoto cahi in cima, istragá tudo i voá. Não vê!”.

Tropeiros, no meio das récuas; carreiros, encostados aos carros, provocavam as zabaneiras, rindo, às cachinadas, dos seus ditérios torpes.

De janela a janela eram diálogos entre matronas despeitadas e os transeuntes detinham-se nas ruas comentando o procedimento do governo.

A cidade sentia-se como se a houvessem saqueado levando-lhe o melhor das riquezas. E, como se um luto a envolvesse, cessaram as festas, desfizeram-se “partidas” e, no jardim, à tarde, eram raras as moças, essas mesmas tristes, em grupos fúnebres, conversando baixinho sobre o sonho que se lhes desfazia.

No quartel era um atabalhoado aforçuramento. Martelava-se, serrava-se, acepilhava-se. Arrastavam-se caixas. Medas de palha davam ao pátio o aspecto de eira vasta em tempo de ceifa. Enfardelavam-se arreios e armas, empilhavam-se cunhetes e era constante o cruzar de homens em mangas de camisa, suando, em barafunda atropelada de carretos.

E quando a música ensaiava no grande salão de telha-vã, em cujas vigas oscilavam morcegos, pendurados pelas asas, como peças de fumeiro, no pátio, entre cavalos à soga, montes de palha, taboas e sarrafos, os soldados dançavam, corriam brincalhões, cantavam, assobiavam acompanhando os dobrados e chulas que atroavam.

 “A gente já tava ficando chucro!” E o veterano, abrindo a camisa, mostrava o peito, dizendo:

 “Oia aqui. Nem nu Paraguai, onde fui firido três vez, deixei tanto sangue cumu dêxo aqui co’esses danados di musquitos. Isto é terra!? Vôte! É terra p’ra castigo...! Tomára já m’apanhá na Côrte. S’isso durasse mais um mês... nem sei! Acho qui ganhava u mundo. ”

Tadeu limpava o seu correame, a um canto, quando Fabrício, que saíra da Arrecadação com um fardo às costas, deu por ele e parou.

— Êh! Pai... Então, hein? Sempre chegou o dia... O outro deu d’ombros, indiferente. Você está triste? Mod’ela? É? Leva, homem!

— Eu?

— Então? O tenente Aristides não vai levar a roxinha dele? Tadeu sorriu tristemente e, encarando o camarada:

— E é só levar? Levar com que? p’ra que? Não! Ela aqui está na sua terra, tem mãe... E lá? Se eu tivesse posses, muito bem, mas com o que ganho! Não...

— Boa rapariga! Comentou o maranhense... E gosta de você mesmo, isso gosta. Fosse outra... nem você sabe. O capitão Nogueira bem que andou rondando, mas não arranjou nada. Há muita por aí de aliança no dedo que não vale ela.

Tadeu levantou-se, resfolegou largo, acendeu um cigarro e encostou-se à parede fumando pensativamente.

— Bom. Até logo. Você vai logo lá?

— Talvez.

— Então me avisa qu’eu quero me despedir delas.

A cidade amanheceu agitada, em rumoroso alvoroço como nos dias grandes de festa. Madrugada escura, ainda com os lampiões acesos, abrumados de garoa, já as ruas atroavam desusadamente com agudo rinchar de carros de bois, estropeada de cavaleiros, bulício gárrulo de gente a pé, moradores das redondezas, que acudiam, uns por mera curiosidade, só para verem a formatura das tropas, outros a negócio, trazendo mercas: frutas, doces, aves, animais domesticados, rendas, objetos vários da indústria sertaneja, desde os mais delicados nhanditus, até correames de selaria, artefatos de chifre e de couro, chapéus de palha grossa, redes e maqueiras.

Em volta dos pousos, nos caminhos, pastavam animais de tropas e grandes bois de canga, com argolões nas aspas muito abertas.

No interior afumado, onde vermelhejavam brasidos, empilhavam-se cargueiros: ceirões e cofos, bruacas, fardos forrados de esteiras, feixes de varas e paus roliços, jacás e capoeiras de aves que grazinavam inquietas.

Tropeiros jaziam lerdos, uns de cócaras à beira do fogo, outros deitados nos encoscorados ligás, cavaqueando amodorradamente.

Improvisavam-se feiras a cada canto em atravancada barafunda de tabuleiros, caixas, covos e gaiolas. E eram pencas de bananas, cachos de coco, cestos de laranjas, numa imundice de cascas e de bagaços de frutas em estrumeira estivada de palhas de milho e folhas secas. E sempre a chegar gente, como em romaria. Na indiferença do tumulto mendigos pedinchavam em voz dolente ou cantando.

Desde que se abriu o sol as lojas encheram-se de soldados e de reiunas em azáfama de compras.

Discutia-se em vozeirada, regateava-se com furor, aos protestos desabridos contra os preços aladroados. Entravam e saíam magotes aos empurrões, e, como eram todos conhecidos de badernas, chamavam-se pelos nomes, pelas alcunhas, juntavam-se em grupos palestrando.

Espocavam garrafas, volta e meia era um que vinha à porta soprar a espuma do copo de cerveja ou cuspinhar o ressaibo do codório.

O fumo toldava o ambiente que tresandava a sarro e a álcool e era incessante o bezoo de vozes, cortado de cascalhadas estridentes, às vezes palavrões em replica atrevida. Mulheres avinhadas apinhavam-se aos balcões, muito relambórias, algumas com riso ébrio, olhos languidos, cuspilhando de esguicho e, revolvendo amostras, escolhiam quinquilharias vistosas, abrochavam pulseiras, sopesavam colares de grossas contas, adereçavam-se de pechisbeques, mirando-se garridamente ao espelho aos requebros dengosos. Outras examinavam fazendas, comparavam padrões de chalés ou experimentavam chinelas.

Pequenotes enfermiços, cor de barro, de olhos assonorentados, comidos de sapiranga, choramigavam manhosos pedindo brinquedos caros.

Os caixeiros, muito apressados, subindo e descendo escadas, desenrolavam peças de chitas e de madapolão, abriam caixas de sabonetes, mostravam vidros de essências, potes de pomadas ou bugigangas de plaqué e de celuloide com louvores de encarecimento.

E os balcões desapareciam sob pilhas de amostras: fazendas amarfanhadas, caixas abertas, roupas feitas, muito encardidas, chapéus, todo um mistifório de bazar em que faiscavam brilhos de missangas.

O dinheiro corria fácil por entre gargalhadas e muxoxos e os negociantes não se fatigavam, aproveitando a balbúrdia para desentupir armários e prateleiras do rebotalho que os entulhava. Pelas ruas, enlameadas da chuva da véspera, por entre montes de lixo, chapinhava a turba chalrando alaridamente como em disputa.

Às vezes eram matulas: mulheres descalças, desalinhadas, com o casaco aberto deixando ver o peito magro, em aduelas, tisnado de manchas suspeitas e com cicatrizes. Algumas tinham tatuagens extravagantes e exibiam-nas orgulhosas. Outras, com crianças taludas escarranchadas à cinta, trouxa à cabeça, rebolindo as ancas, araviavam em guarani. Rapazolas esfarrapados, corriam, pinoteavam, a rir, empurrando-se uns aos outros sobre as poças de lama ou nas esparrimas de estravo.

Velhas esqueléticas, de gambitos secos e luzidios, mal cobertas de farrapagem sórdida, olhinhos sumidos em talho fino, como bagas em favas secas, grunhiam enfezadas, com a baba a escorrer aos cantos da boca engelhada e como, entre o bando, iam soldados, tinha-se a impressão do desfilar de uma chusma de galés.

Tadeu andara toda a manhã pelos negócios parando diante das vitrinas, às portas, ajustando joias, sempre caras, perguntando o nome de certas fazendas que achava bonitas. Por fim, depois de muito pensar e escolher aqui, ali comprou para Maria Bárbara um corte de vestido de cassa e um coraçãozinho de ouro, um chalé para Nhá Chica e uma peça de morim para o enxovalzinho do “pequeno”.

Aquele filho não lhe saía do pensamento. Já o tinha como nascido, via-o, ouvia-lhe a vozinha débil, seguia-o nas travessuras, lindo e rechonchudo como um Menino Jesus.

E tinha pena de Maria Bárbara, coitada! Tão só no sofrimento de amor, sem ele para animá-la. Ao menos quando vestisse o “pequeno” com as camisinhas daquele morim, quando o chegasse ao peito, quando o ninasse nos braços havia de pensar nele.

Doía-lhe no fundo da alma a saudade da terra e, mais que tudo, a daquele amor mimoso. Lembravam-lhe episódios de ternura: a troca de olhares no primeiro encontro, as primeiras palavras que se disseram, certa noite nos “cavalinhos” e àquela hora inesquecível, tão serena a princípio, cheia de timidez, e, de repente... Àquela hora delirante de lágrimas e beijos, hora que vivia no seio da chinoca e que, em breve, soaria em riso e seria o filho, ela e ele na mesma carne, os seus corações, como os seus beijos, fundidos num só ser: hora eterna, sofrida e gozada na sombra verde, ao som dos murmúrios da tarde enquanto a velha, a poucos passos, cantava à beira da água, batendo roupa nas pedras.

Súbito um pensamento relampejou-lhe no coração em ciúme. Outro, outro que o substituiria, assenhoreando-se da casa e possuindo-a, a ela, Maria Bárbara, vendo-lhe o corpo na intimidade do leito, apertando-a nos braços, sorvendo-lhe beijos na boca, ouvindo-lhe as mesmas palavras trêmulas que ela gemia chamando-o todo a si.

Quem seria ele? Pensou em tantos...! Alguns daqueles que por ali andavam, talvez o próprio caixeiro que lhe cortara a fazenda ou certo homem que, uma vez, encontrara parado diante da casa, com a espingarda debaixo do braço e um cão.

Remordeu-se de raiva. Mas que fazer? A pobrezinha não podia viver desamparada, nutrindo-se de saudade e bebendo lágrimas. Deu de ombros, resignado.

Como marcara encontro com Fabrício em um armazém, onde costumavam beberricar jogando a bisca, lá foi ter.

O maranhense esperava-o impaciente, indo e vindo, aborrecido, entre pipas acanteiradas. Ao vê-lo entrar explodiu:

— Homem... Olha que você é mole duma vez! estou aqui a mais duma hora, neste fedor de vinho azedo... Já bebi não sei quantas doses. Chamou o caixeiro, pagou a despesa e, recebendo um embrulho, disse de mau humor:

— Vamos.

— Que é que você leva aí? perguntou Tadeu.

— Vinho e uma garrafa de cana. E você?

— Umas lembranças.

— Pois é. Hoje é despedida. Voltou-se e, encarado no companheiro, exclamou: — E você quer saber? Não é que eu estou triste, com saudade disto!?... Assim como assim, a gente acaba acostumando-se.

— É...

— Você então...! Eu não quis saber de emperramento. Nada! Levei sempre a coisa de pagode, com uma, com outra. Rabicho é o diabo! A gente pega de galho e pra se arrancar é um custo. Eu estou vendo os outros. Um até já desertou, o Camilo. Dizem que azulou para a Bolívia com a pequena. Homem... É verdade que a “bichinha” está...?

— Está.

— Que maçada! É o que a gente arranja. Eu, por mim, vou com o coração escoteiro.

Saíram.

Maria Bárbara recebeu-os alegre, com o sorriso de sempre. Estava linda! De branco, chinelinhas novas, uma flor no cabelo. A casa, muito asseada, cheirava a defumação.

O maranhense entrou ruidosamente, abraçando as mulheres, e, pondo-se em mangas de camisa, foi logo pedindo a rede, armou-a entre duas árvores, no pomar, e deitou-se com a viola, balouçando-se de leve, a cantarolar modinhas, até que, abochornado, espichou-se, cobrindo-se com as varandas para dormir uma soneca livre dos mosquitos. Nhá Chica foi para a cozinha e Maria Bárbara, a pretexto de mostrar o enxovalzinho em que andava trabalhando, encerrou-se no quarto com o amante. A casa ficou em silêncio.

Ao cair da tarde, com a fresca, Tadeu e a chinoca saíram para o terreiro. Onde se teria metido Fabrício? No banho, com certeza.

Desceram vagarosamente em direção ao rio pelas trilhas sombrias, cheias de recordações. Foram indo, mui de passo, abraçados e mudos. Às vezes, parando, esqueciam-se em beijo longo, depois, alisando-lhe carinhosamente os cabelos negros, ele fitava-lhe os olhos tristes.

O sol inclinava-se incendido, dourando as folhas, que tremiam como asas. As galinhas rondavam as árvores, empoleiravam-se-lhes nos galhos; nos matos começava o guizalhar dos grilos e os sapos romperam na melopeia melancólica. O céu, queimado por um dia tórrido, parecia peneirar cinza fina que abrumava as distâncias. De quando em quando um gemido de rola.

Uma voz ecoou. Era Fabrício que os chamava para o jantar. Mas Maria Bárbara insistiu em descer até a beira do rio e, diante do remanso, que era o lavadouro de nhá Chica, àquela hora liso, espelhado, enclavinhou as mãos, levantou os olhos, e, encarada no amante, murmurou tristemente:

— E agora, Tadeu? Como há de ser quando eu vier aqui, de tardinha? Você está vendo? E mostrou na água as imagens de ambos: Se a água guardasse o retrato da gente..., mas a água é como o coração dos homens, que só se lembra das pessoas quando estão perto dele.

— Quem sabe se não é melhor assim? Ponderou Tadeu. Ver sem sentir, sem poder pegar. Mexe na água, experimenta... nós estamos lá dentro abraçadinhos, não é? Mexe só...

— Pra quê?

— Mexendo, a água acorda, estremece, e tudo se some. Isso é como o sonho. O melhor é a gente olhar de longe, sem tocar, ficar olhando assim, quietinhos... como estamos, sempre de longe.

— Ah! Agora é que você diz isto... se a gente tivesse feito assim... Ele pegou-lhe no queixo, soergueu-lhe o rosto e, fitando-a nos olhos, perguntou meigamente:

— Você está arrependida, não está? Fala verdade. Ela deu de ombros:

— Arrependida? E sorriu triste, com um momo... E de que servia agora o arrependimento? O que está feito, está feito. Há de ser o que Deus quiser.

— Mas ficas com raiva de mim, não ficas? Ela respondeu em tom repreensivo:

— Raiva?! Raiva, por quê? Fico com saudade, isso sim! Eu vivia sossegada no meu canto, metida comigo, você apareceu... pra quê? Se eu adivinhasse que isto havia de acabar assim... Se a gente tem pena de arrancar da terra uma plantinha à toa, quanto mais do coração! Iam-se lhe os olhos marejando de água. Repuxou um ramo e pôs-se a esmigalhar uma folha entre os dedos, e as lágrimas pingavam-lhe pelos cantos da boca em duas goteiras. Tadeu achou-a linda no sofrimento. Correu-lhe um arrepio pelas carnes, o sangue ferveu-lhe em éstos e desejou-a com frenesi.

— Olha para mim...! Ela obedeceu humilde. De ímpeto ele agarrou-lhe os pulsos, atraiu-a a si, brutalmente e, em voz surda, falando por entre os dentes cerrados, como se trincasse as palavras, disse-lhe em rosto, como a injuriá-la, retorcendo-lhe devagarinho os pulsos:

— Eu sei. Pensas que não sei? Você está bem contente até. Ela encarou-o surpresa. Ele insistiu, contraindo o rosto em ódio: — Está, sim! Porque já tem outro.

A chinoca sofreu o insulto sem protesto, de cabeça baixa, tremendo. De repente desatou em soluços, com um brando esforço para livrar-se do amante, que a torturava, cada vez mais acirrado, afrontando-a com o ciúme lúbrico:

— Pensas que não sei? Eu não sou tolo! Doida por isto estava você, seu diabo! Mas deixa-te estar...

— Porque é que você fala assim, Tadeu?

— Falo porque sei...

— Que é que você sabe, criatura, diz! Que é? Ele encarou-a, mudo. Súbito, arrependido, abraçou-a e, beijando-a, pôs-se a pedir-lhe perdão:

— Perdoa, meu bem, eu não te quero ofender. Isto tudo é ciúme. Eu penso em tanta tolice... se eu não te quisesse bem...

— Querer bem assim para dizer desaforo... outro! Tomara eu poder comigo! Outro está aqui. E baixou o olhar ao ventre. Esse sim...

— Está bom... não chores mais. Vem cá! Sentou-se em uma pedra, puxou-a para o colo e, apertando-a nos braços esmagadoramente, beijando-a nos olhos, na boca, sentia-lhe o aroma agreste do corpo, que o excitava como um amavio.

— Se você soubesse, Babinha. Eu só penso nisso...

— Nisso, quê?

— No outro. Deus me livre! Exclamou desafogando-se e, como em ameaça sanguinária, afirmou: Eu nunca fiz mal a ninguém, mas juro que se apanhasse um homem aqui com você, fosse quem fosse... Nem sei! Passou a mão pela fronte como para afastar uma ideia sinistra. Ela sorriu, resignada.

Escurecia. As cigarras chiavam, sapos tiniam nos alagados. Ouvia-se o murmúrio dormente das águas.

Um dobre de sino caiu na serenidade. Maria Bárbara persignou-se. Outro dobre soou mais claro, como se viesse de mais perto.

— Amanhã por esta hora... disse Tadeu com o olhar ao longe. E ela, levantando a cabeça cujos cabelos desmanchados emaranhavam-se-lhe pelo rosto, encarou-o comovida. Olharam-se, a princípio graves, depois sorrindo, aconchegando-se.

De repente, em arremesso lúbrico, atirando os braços em volta do pescoço de Tadeu, a chinoca entregou-lhe a boca aberta, em ânsia sôfrega de beijos, desvairada, e rugia de amor, por entre soluços, a debater-se como fera em luta com a presa.

— Maria Bárbara! Bradou a velha, ao longe.

A noite descia rápida e, no escuro das árvores, soava devagarinho a harmonia do silêncio feita com os mil pequeninos ruídos da terra sonolenta.

VI

Chegaram à Corte em setembro, alojando-se no quartel do morro de Santo Antônio.

Tadeu, que se resfriara na viagem, queixava-se de dores no peito. Não podia dormir com a tosse angustiosa, passando as noites em claro, apiançado, a rolar na barra, pensando em Maria Bárbara, com saudades de tudo que deixara, não só da chinoca, como da cidade, certos cantinhos, o rio, à beira do qual as mulheres se juntavam batendo roupa, casas conhecidas, o armazém onde passava horas jogando a bisca.

A capital atordoava-o.

Quando saía, em vez de acompanhar os camaradas nas troças noturnas, em ruas devassas de meretrício e tavolagem, tomava um bonde de arrabalde ou ia para os jardins, numa necessidade de isolamento e silêncio. Sentando-se nos bancos mais escondidos deixava-se ficar fumando, a recordar os dias felizes, ora em Vassouras, ora em Corumbá, no convívio da família ou no aconchego amoroso daquela casa onde outro, de certo, o substituíra.

Pensava em escrever chamando Maria Bárbara. Viveriam juntos, trabalhando, com o filho crescendo entre eles. Logo, porém, medindo os seus recursos, a miséria que tinha como soldado, reconhecia a impossibilidade de realizar aquele sonho.

Pobrezinha! Para quê? Pensava, para sofrer, como tantas outras que acabavam na rotula, passando de mão em mão, até rolarem na cadeia ou na Misericórdia, quando não picadas a faca, como uma cearense que conhecera. Não!

Lá, ao menos, a coitada tinha a sua casa; fazia para viver e vivia tranquila com a sua velha mãe.

Comprava bilhetes de loteria fazendo planos arrojados com a sorte grande. Mandaria, então, buscá-la, com a índia, e iriam para Vassouras, lá para os lados da Lagoa, numa rocinha e, se a mãe não se opusesse, casaria com a chinoca e, juntando-se à família, faria ressurgir o lar antigo, com mais encanto, faltando apenas, para completa ventura, a presença do velho.

Ele, sim! Ele é que havia de querer bem ao pequeno, seu primeiro neto! E sorria no sonho. Mas tudo era sonho... uma tarde, subindo a rua 7 de setembro, ouviu toques de clarim e logo avistou os batedores do imperador, que rompiam do Largo do Rócio, a galope, com estridente clangor.

A berlinda aproximava-se, passou pesada, rangendo, com os moços de taboa muito firmes e ele viu, de relance, o velho monarca dormitando inclinado sobre as barbas brancas. Lembrou-se, então, das conversas que ouvira em Corumbá, das ameaças e dos juramentos dos oficiais e teve pena do ancião.

Parecia tão bom, coitado! Qual! Não acreditava que alguém ousasse atentar contra ele. O exército saía em massa a defendê-lo, a marinha, o povo... E, voltando-se e vendo os transeuntes descobrirem-se respeitosamente, sentiu-se aliviado. “Não vê! Não vê que o povo deixa... um homem tão bom...”.

À noite, encontrando-se com Fabrício no Passeio Público, depois de tomarem cerveja, ouvindo a banda dos alemães, foram para o terraço, debruçaram-se à balaustrada, olhando o mar, cujas ondas chofravam em baixo, esfrolando-se nas pedras.

Referindo-se à impressão que tivera vendo o imperador, perguntou ao maranhense:

— Você que diz?

— Eu? Isso é prosa só, você não vê logo? Não vê que há aí quem se atreva a tocar no imperador? Isso virava tudo duma vez. Então é que se fechava o tempo mesmo. Prosa! Olha, eu não tenho partido, nunca tive, nem quero, mas se me mandassem contra ele, não ia, isso não ia mesmo, juro por Deus! Era mais fácil morrer.

O maranhense falava do monarca com respeito supersticioso, como se se referisse a um ente sobrenatural.

— A primeira vez que eu vi ele, logo que cheguei do Norte, fiquei que você não imagina. Um medo que não te digo nada. Olhei bem, bem, e aquele velho alto — que ele é alto que é danado, você já reparou? — Com aquelas barbas de santo, caminhando em passo de procissão... não sei. Prosa! Você que pensa? Manda o cadete chegar perto dele que você há de ver. Valentia de boca não custa, é espuma só. A gente sopra, cai tudo.

Andaram à gandaia e Fabrício, que conhecia umas raparigas na rua do Regente, arrastou Tadeu ao alcouce, apresentando-o a uma pernambucana, mulheraça desenvolta, que o recebeu de cigarro à boca, mirando-o de alto. Mandaram vir cerveja da venda.

A casa tresandava aborrecidamente à erva, e, volta e meia, rinchavelhavam cachinadas nos fundos e vozes alegres galravam em calaçaria. A pernambucana chamou esganiçadamente: “Ignez” e, instantes depois, apareceu na sala, em mangas de camisa e saia branca, arrastando chinelas, uma cabrocha escanifrada, meio ébria, falando salivosamente, com uma ponta de cigarro nos beiços moles. Fabrício atirou-lhe uma palmada à ilharga, ela desnalgou-se em meneios de capoeira e, apontando-lhe a mão ao rosto, atirou-lhe, em negaça, um golpe ao ventre, que o maranhense rebateu, saltando. Riram.

Tadeu sentia-se mal, vexado e, apanhando o boné, despediu-se. A pernambucana olhou-o com descaso, e, dizendo uma obscenidade, escancelou- se em gargalhada cínica. Ele saiu, apesar da insinuação de Fabrício: “Que aquilo era fazer feio. ”

Toda a rua era um alcouce. Mulheres, debruçadas às rotulas, conversavam com a malandragem frascaria; outras corriam pela calçada, com risos estridentes estralando chinelas. Via-se o interior das casas alumiadas a querosene, onde as marafonas, muito descompostas, cantavam derreadas nos sofás panejados de crochê ou embalavam-se molemente, em cadeiras de balanço, mostrando as pernas. Um violão soava melancólico

Tadeu atravessou a rua, sem voltar-se ao chamado das mulheres que estendiam a mão para agarrá-lo, e foi-se para o quartel, enojado do que vira e saudoso da que deixara lá longe, tão linda! Tão meiga! Tão diferente daquelas biraias.

Havia alguma coisa no ar. Fervilhavam boatos os mais absurdos, corriam as mais extravagantes atoardas. Dizia-se, à boca pequena, que no Arsenal de Guerra, acumulavam-se munições, que toda a esquadra, de fogos abafados, estava apercebida para operar à primeira ordem.

Volta e meia surgia um consta, a princípio cochichado a medo, logo depois comentado às escancaras, com afirmações seguras — movimentos de insubordinação nas províncias: revolta de batalhões que, depois de haverem incendiado os quartéis, assassinado os oficiais, saíam amotinadamente para as ruas atirando a esmo; prisões de generais e de políticos suspeitos à coroa; varejamento de casas...

Os sargentos confabulavam pelos cantos, liam jornais sediciosos.

De repente rompeu no quartel a notícia de que o batalhão ia embarcar para o Norte. Foi um alvoroço indignado. Os mais exaltados protestaram contra a “torpe vingança”. Covardia! Bradavam. Governo de covardes! Os tímidos, encostados às paredes, aos dois e aos três, suspiravam resignados. “Que haviam de fazer?!” À tarde já se afirmava que o governo mandara aprestar um paquete para transportar as tropas.

O sargento Saboia, sempre informado e palreiro, atribuía a infâmia à denúncia mandada ao Ministro da Guerra por certo negociante de Corumbá:

— Quando eu dizia que tivessem cuidado com aquele canalha... aquilo é boi sonso. A mim ele nunca enganou. Mas essa gente, não! Dizia tudo diante dele. Tudo! Está aí. É bem feito! Agora é que vocês vão ver o bonito. Amazonas não é Mato Grosso. Ali é no duro! Eu dizia... E recordava fatos: Vocês não se lembram quando o Tanajura pegou o boliviano? Quem denunciou? O “boi sonso”. Pois foi ele mesmo que escreveu ao Ministro da Guerra contando as conversas desses bobos. Um a um iam todos fugindo à responsabilidade da indiscrição.

— Olhe, da minha boca ele nunca ouviu palavra.

— Nem de mim.

— De mim é que ele não tem que dizer, porque nunca pus pé naquela quitanda. Embirrava até com o diabo, mal-encarado, cheio de empáfia...

À noite, no alojamento, a discussão acalorava-se, era necessário que o “plantão” interviesse para impor silêncio.

Uma tarde Fabrício chamou Tadeu misteriosamente pedindo que lhe dissesse “que havia de verdade naquilo tudo”.

— Sei lá!

— Não, rapaz. Aí anda coisa... e coisa séria...!

— Por quê?

— Já me falaram. Eu estava, outro dia, ali fora, matutando na minha vida, quando o cadete Fernandes, com aqueles modos estabanados que ele tem, que até parece maluco, me perguntou “se eu sabia da coisa?” “Que coisa, seu cadete?” “Essa história que anda por aí...” Eu disse que não. Ele me olhou duro, roendo as unhas e, numa fúria de fazer medo, contou tudo. Olha, Tadeu, parece que eles querem mesmo dar cabo do imperador. Tem gente grande metida no negócio. Não é coisa de piagagem, não; não pense você. O caso é sério! Eu não sei... estou assim... Se a gente diz que sim e a coisa dá em droga, fica um homem nas embiras para o resto da vida. Se diz que não, é o diabo! Você que acha, hein?

— Sei lá! Pensou um momento e disse, por fim, com segurança: Eu, contra o imperador não atiro, isso nem que me matem.

— Nem. Eu! Concordou o maranhense. Deus me livre!

— Pois então?! Fabrício ficou enleado, rascando nervosamente a nuca, a unhadas, repuxando o beiço, pensativo. De repente em rompante, encarando o amigo, declarou:

— Olha, você quer saber uma coisa? Eu, se vir essa história mal parada, ganho o mundo, aconteça o que acontecer. Besta é quem se mete em embrulhos desses. Puseram-se a andar pelo morro. À tarde enlanguescia. A cidade, em baixo, com o casario apinhado, coruscava em cintilações diamantinas ao radiar do sol nas vidraças e claraboias.

Pelas ruas estreitas deslizavam surdamente miniaturas de veículos e vultos tacanhos, morosos como pequeninos autómatos. Nos quintais murados peças de roupa panejavam em cordas ou forravam o chão em manchas, como de luar. Aqui, ali tufavam verduras densas e altas por entre as quais, sinuosamente, reticulavam trilhos.

Torres hirtas espetavam o céu e, ao longe, largo e liso, o mar, ainda incendido, era uma lâmina espelhante.

Ladeira acima, lentamente, eretas como figuras bíblicas, caminhavam mulheres maltrapilhas, com latas de querosene à cabeça das quais, às vezes, golfavam esparrimo de água que elas sacudiam das mãos.

Uma crioula tronchuda, toda em refegos de banha flácida, espapava-se à porta de um casebre de taboas, coberto de zinco, descascando amendoim numa peneira que tinha ao colo. Perto uma cabra, com uma forquilha ao pescoço, arrancava aos berros, tentando escapar à corda que a prendia.

Os rumores contínuos da cidade, coados pela distância, chegavam à altura em marulho cavo como a ressonância soturna de enorme concha.

Fabrício parou à beira da barranca, acendeu um cigarro e, falando intercadentemente, a puxar fumaças, disse ao companheiro: Lá na minha terra, rapaz, no meu Norte, não há caboclo que não queira bem ao imperador. A primeira vez que eu vi o retrato dele foi no sítio de um tio meu e sabe onde? No meio dos santos. Todo o mundo fala bem dele. E aqui é assim... Eu até tenho medo de pensar, palavra!... Se, por minha desgraça, eu fosse obrigado a fazer alguma coisa a esse homem... icha!

— E você acredita que haja alguém capaz de atirar no imperador?

— Homem, eu sei!? Política é o diabo! Mas olha aqui uma coisa, Tadeu. Ele devia ser mais duro, você não acha? É perrengue demais. Dizem que não faz nada, que vive lendo. Quem faz tudo é a princesa. Será mesmo? Se não é, parece. E, revoltado, vibrante: Pois então ele não tem força para dizer “não!” A essa cambada? Não é ele que manda? Se os tais fazem essas coisas é porque ele deixa. Pois se é assim, meu amigo, que aguente. Também não é só atirar um infeliz, como eu e você, por esse mundo de Deus, aos trambolhões, hoje aqui, amanhã ali. Não é direito, não, isso não! Tenha santa paciência...

— Está velho, coitado! Lamentou Tadeu compassivamente.

— Qual velho, qual nada! Pois se está velho vá-se embora e chame outro para governar. Tadeu encarou o maranhense e disse sorrindo:

— Homem, você é um vira-folha. Fabrício, ora diz uma coisa, ora outra...

— Vira-folha, não. Digo o que é. Fazer mal a ele, isso não faço, mas agora acompanhar o Terço desses que andam por aí enchendo a boca com baboseiras: “Que não há outro como ele, que é o primeiro imperador do mundo, pai da pobreza” e não sei que mais, isso não! Mato Grosso ainda está aqui, sabe? Não passa assim: está aqui! E esmurraçou o peito.

Um dobre languido ondulou morosamente no ar, outro respondeu mais perto, sonoro e grave. Eram os sinos das torres, vigílias da cidade, que mandavam, em vozes religiosas, o adeus saudoso ao dia. Soaram cornetas, rufaram tambores. A luz tornava-se branda, diluída como olhar velado de sono. Pombos atravessavam os ares enevoados.

De repente todo o céu empalideceu; nuvens estriadas de ouro, que ainda rutilavam, foram desmaiando. Descia a noite calada. Aqui. Ali, na confusão da cidade escurecida, explodiam bolhas de luz.

VII

O quartel agitava-se em fervedouro de colmeia em cresta. Sentia-se como um presságio sinistro, a ameaça de perigo misterioso, alguma coisa que vinha sorrateiramente, insinuando-se, que talvez já ali estivesse, invisível, traindo. Que seria? Nova mobilização, sem dúvida. Os sargentos, interrogados, encolhiam os ombros, o próprio cadete Fernandes, sempre informado, dentro de todos os segredos do Estado Maior, respondia com evasivas. Os soldados que chegavam da cidade eram logo assediados de perguntas: “Que havia? Se se dizia alguma coisa?” “Nada. As balelas de sempre. Histórias...”.

Citavam-se nomes de generais, referiam-se cenas de rebeldia no Club Militar, garantia-se que havia ordem de prisão contra Benjamin Constant, Deodoro e outros. Mas os incrédulos sorriam ironicamente.

Uma noite, porém, circulou rápido o boato de prontidão, logo confirmado em ordem transmitida pelos sargentos e todo o quartel alvoroçou-se em urgência de aprestos, como se o misterioso inimigo que o rondava se houvesse, enfim, decidido a iniciar o ataque.

Que seria? Era um corre-corre aforçurado, gente a entrar, a sair da Arrecadação arrastando cunhetes, carregando armas. Sussurrava-se à cautela, como no receio de que uma palavra pudesse comprometer a segurança da praça. Os oficiais armados confabulavam no comando, entravam, saíam preocupados. Que seria?

Tadeu encontrou Fabrício e o maranhense foi-lhe logo dizendo, sarapantado:

— Então? Eu não dizia? Está aí...!

— Mas que é?

— Ora que é... É o estouro!

— Você está sonhando. Isto é mas é embarque.

— Embarque? Não está mal o embarque com armas embaladas e cartuchame pesando na patrona. Pode ser embarque, pode ser, mas de outros; nosso é que não é. Mas um negro chamou-o e o maranhense alcançou-o e foram-se os dois conversando.

Foi o Saboia que descobriu o segredo. Era a coisa! E, com muito entono, arrotando importância, pôs-se a pontificar sobre a República, governo do povo pelo povo, regime da Liberdade, como na França.

Os soldados ouviam-no calados, sem interesse. Tinham-no por um “contador de rodelas” e entreolhavam-se sorrindo ou rompiam à galhofa pedindo-lhe promoções quando ele fosse o Presidente da República.

Adiante um mulato paraibano, com fama de cangaceiro, encostado derreadamente à parede, de perna traçada, picava fumo, falando em voz descansada, num grupo:

— Eu não gosto di mi metê in rascada. Não gosto, não: e coleava franzindo o carão tanado. Não sou home d’intrá nessas côsa modi fazê figuração. Ou é sério ou não é. S’é sério, muito bem, a genti briga di verdade, sinão, não! Brinquedo não é cumigo. Brinquedo di home chêra a difunto. Cumigu é ansim, e sorriu cruelmente descobrindo a serrilha dos dentes brancos e agudos como de peixe. Sês sabi, eu fujo de brigá, não tenho sangui bom. Eu mi cunheçu. Candu a cabeça mi ferve vejo tudo vermeio i antonce não respondo por mim. P’ra quê? Bolelhou o fumo na palma da mão e enrolou o cigarro.

Era madrugada escura quando a corneta alarmou o silêncio.

Foi uma balbúrdia nas companhias — vozes, correrias, estridor de armas. Na meia luz dos corredores era um atropelo de estremunhados, uns resmungando aborrecidos, outros rindo e eram trancos, abalroadas; uns vestindo, às pressas, a farda, cingindo o cinturão, outros lerdos, espreguiçando-se em vagar amolecido e indiferente. Mas em breve estava todo o batalhão em forma. De repente um tiro atroou.

Houve agitação de pânico nas fileiras, logo, porém, serenada com o que correu de homem a homem: — “É o tiro das quatro”.

Mas a atitude reservada dos oficiais, o ar carrancudo do comandante davam que pensar e cochichava-se na forma: “Que iam aquartelar no Arsenal de Marinha. Outros, porém, afirmavam que tinham ordem de seguir para o Realengo.

Na escuridão do pátio ondulava, com surdo vozeio e trepidações metálicas, a longa fila de homens. O aço das armas piscava pontilhando a treva; por vezes uma voz mais alta vibrava.

Era novembro, clareava cedo e já se quebravam as primeiras barras quando os oficiais tomaram posição. A corneta de comando deu o sinal de “Sentido! ”.

A música destacou-se formando à frente e o batalhão, escalado em pelotões, estava atento ao comandante, muito firme na sela.

A cainçada do quartel, a princípio escabreada, mantendo-se pelos cantos como em expectativa, rompeu, de repente, em embolada correria, ladrando como em luta, rebolando nas atropeladas voltas em que se ensarilhava. Mas a corneta soou, e o batalhão pôs-se em marcha, às surdas, desfilando na sombra como uma chusma de galés. Lentamente, coleando nas voltas da ladeira, chegou à Guarda Velha recompondo-se em formatura.

A cidade dormia tranquila. Aqui, ali uma luz vasquejava sonolenta. Carroças rodavam com estrondo, passavam quitandeiros com cestos acogulados de legumes; vacas de leite tilintavam chocalhos; bondes, ainda acesos, desciam com operários e o ar fresco tresandava a azedume.

O céu branqueava listando-se de galões dourados. E o batalhão seguia em silêncio: subiu a rua da Carioca, atravessou o Rócio, entrou na rua Visconde do Rio Branco até o Campo.

O parque, com as árvores lustrosas, enfeitava-se de sol, uma luz de festa, leve, de brilho novo. Os operários passavam indiferentes, sem dar atenção àquela força que seguia para destino ignorado. Os soldados interrogavam-se na fila, alguns, vendo populares às esquinas, acenavam-lhes de cabeça como a pedir explicação daquilo.

De repente tronou uma pancada de bombo, e a música estrugiu cheia e alegre como em um hino à alvorada radiante. O céu abria-se todo em azul e as montanhas pareciam pulverizadas de ouro, em apoteose. Silvo de locomotiva cortou o ar — era o expresso que partia.

Mas um som estrídulo de clarim vibrou percuciente. Seria o 2° de artilharia?! Era, então, verdade... E Fabrício, que tiritava encolhido, aprumou vivamente a cabeça, exultante, exclamando para Tadeu:

— Eh, rapaz... é a coisa! Vê você, hein... Isso de medo é história... Eu, antes de sair do quartel, no meio daquela barafunda, estava que você não imagina: o coração dava cada esbarro que parecia querer-me arrombar o peito, e eu bambeava frouxo das pernas e com um frio de bater os dentes. Pois agora, palavra! Estou pedindo que isso pegue mesmo direito. Medo é história! A gente tem medo antes da coisa começar, mas na hora da fubéca não há nada. Na guerra ainda deve ser melhor, com as bandeiras voando, os tiros, a música... A música, então! Eu, ouvindo música, é um horror! E você, Tadeu?

— Eu sei lá!

— Que diabo, rapaz... você parece que não tem sangue, sempre jururu. Assim também não. Diabo de homem casmurro!

Em verdade, desde a formatura no pátio do quartel Tadeu mantinha embezerrado silêncio, como de zanga, alheio a tudo, executando as manobras automaticamente. É que se recordava da partida de Corumbá, rememorando episódios da vida que levara, de tanta meiguice, no rancho de beira rio, cheio da sua saudade.

Em marcha, através da cidade ainda em sono, parecia-lhe estar caminhando em outra terra, longe, e, por vezes, nas mulheres que via, descobria traços de Maria Bárbara, ouvia-lhe a voz dolente chamando-o de dentro da alma e, súbito, como se abrisse no espaço larga janela de aparição, viu-a a ela própria, viva e linda, no desalinho do sair da cama, com os cabelos desmanchados, esvoaçando-lhe na fronte, o corpinho aberto sobre o colo moreno e cheio. E estava nesse enlevo quando dele o tirou o maranhense com a sua garrulice. Refugou enfezado:

— Ah! Você fala tanto, Fabrício. Nem na forma... que coisa!

— E você? Você nem parece gente... isso o que é medo...

— Medo! Medo de quê? Eu faço tudo calado.

— É, como carneiro... eu sei...

Quando defrontaram o Quartel General o comandante, lançando o cavalo a galope, passou à frente seguido do Estado Maior. Cornetas soaram e, diante da guarda formada, o batalhão penetrou na praça, fechando-se sobre ele o pesado portão.

Outros corpos formavam no pátio destacando-se, pelo brilho dos capacetes e pela alvura do uniforme de linho, os destemidos bombeiros, em cujas cintas largas cintilavam ferros.

Oficiais montados passavam, repassavam à frente das fileiras firmes, outros continham a custo o ardor dos ginetes que, cabeando, às upas e arrifadas, investiam, de instante a instante, em sôfregos arranques. Aqui, ali soava uma voz de comando e as filas ondulavam com brilho de armas.

Toques vibravam fora e os soldados, reconhecendo-os, anunciavam, por eles, os regimentos. Havia, entanto, desconfiança. Aquelas forças encerradas no quartel em expectativa fria encaravam-se como inimigas. As atitudes não se definiam, a reserva de umas, a arrogância de outras deixavam dúvidas alarmantes.

E se algum dos corpos se recusasse a aderir, tomando o partido do imperador? Que haveria ali dentro? E aqueles toques lá fora, o borborinho crescente e aquilo de fecharem o portão, tudo fazia pensar em cilada. Um soldado estranhou:

— Homem, parece que eles nos prenderam aqui dentro. Há de ser engraçado.

— Prender por quê?

— Sei lá! Pois você não está vendo o portão fechado e esse furundum lá fora? Isso é coisa! Às janelas do enorme edifício apareciam oficiais e paisanos, conversando agitadamente. Piquetes cruzavam-se na varanda, instalando sentinelas em vários pontos. Súbito, em atroar tonitruoso, grande clamor abalou o silêncio apreensivo. As forças como que estremeceram em arrepio, brilhos faiscaram em eletrizado movimento de armas. Clangoraram cornetas e clarins e novos brados retumbaram. Quando serenou o estridor ovante ficou pairando em sons claros na alegria da luz, o querido dobrado “Mato Grosso”, hino de saudade a lembrar o exílio, as amarguras nostálgicas, excitando os ânimos à represália.

Nesse instante abriram-se, de par em par, os portões do Quartel. Seria a rendição? Os soldados agitavam-se na forma com ansiosa curiosidade, esperando uma ordem, que não vinha, da serenidade do comandante, imóvel, impassível, estatelado na sela.

De repente, com estropeada sonora, um bando de cavaleiros entrou de roldão no Quartel. As cornetas soaram em continência, rompendo, em todos os corpos, a marcha batida.

Surgindo em plena luz a airosa cavalgada logo correu, em frêmito de entusiasmo, o nome de Deodoro. Um cafuzo exclamou trêfego:

— Uai! É ele mesmo... pois não diziam que ele estava tão doente, de cama!? Caboclo duro! Olha só como vem bonito! Isso é que é um cabra! Com ele é que eu quero ver.

Era o velho general, o companheiro de exílio. Era ele que assomava altivo, garboso entre os oficiais do seu Estado Maior, montando o ginete negro e luzidio, que todo se enfeitava como orgulhoso do cavaleiro que trazia.

Vendo-o, os soldados sentiram-se como que eletrizados e sorriam-lhe, balbuciavam-lhe o nome veneradamente; alguns descobriram-se, adiantaram-se da fileira como se quisessem ir ao encontro do camarada heroico, que se arrancava do leito, dominando o sofrimento, para colocar-se ao lado dos seus irmãos de armas, correr com eles o perigo da grande hora, cair ou com eles triunfar na campanha em que se empenhara pela Pátria ...

Todos os olhos estavam fitos no perfil aquilino do soldado enérgico. No rosto magro e pálido, emaranhado em barba híspida, selvagem, os olhos flamejavam. Sentia-se lhe o arfar cansado do peito. Por vezes esponjava a fronte com o lenço, impunha a mão à ilharga, premindo-a. Aproximava-se.

Súbito deteve-se, refreando o cavalo que pinoteava ardego, batendo as narinas sôfregas. Os oficiais cercaram-no. Coruscaram límpidas espadas e o ginete negro pôs-se, de arremesso, a pino, sem que o cavaleiro, ao menos, oscilasse e lançou-se a galope ao meio do pátio, seguido do grupo irradiante dos oficiais que, com as espadas nuas, como que formavam uma aureola ao chefe.

Estacando de esbarro Deodoro arrancou da espada, brandiu-a alto, como um raio e, firmando-se nos estribos, ergueu-se imponente, em atitude monumental.

As baionetas lampejaram em prancha nítida, longa e larga. Desfraldaram-se em cores álacres as bandeiras, levantando-se sobre as armas. Soou a corneta de comando, outras responderam em eco e todas as forças moveram-se formando por pelotões. Estrondaram músicas, os corpos dispuseram-se em ordem de marcha e rompeu em clangores o dobrado do exílio, enchendo o pátio, rolando, repercutindo no ar, em ecos, como se, no espaço, igualmente desfilassem forças invisíveis, aliadas às que na terra saíam pela Liberdade.

Atravessaram o pátio. Fora o espetáculo era impressionante. Toda a área fronteira ao Quartel estava ocupada militarmente: à frente, uma bateria de artilharia e, tomando os extremos, a cavalaria e a mocidade da Escola Militar, e o povo confraternizando com o exército libertador.

Mal o general apareceu toda a multidão agitou-se em frenesi de entusiasmo, afluindo, de avanço impetuoso, ao seu encontro, envolvendo-o, a acenar com os chapéus, bradando delirantemente, em exaltação de loucura. As forças que saíam detiveram-se contidas pelo tumulto e os cavalos dos oficiais empinavam-se abrindo passagem às investidas e aos recuanços.

Uma das bandas atacou o Hino Nacional. O vozeio cresceu tempestuoso e das janelas do Quartel, apinhadas de gente, romperam exclamações entusiásticas. Lenços palpitavam no ar.

Tadeu estava deslumbrado e comovido: sorria com os olhos boiando em lágrimas. Sem compreender a significação daquele espetáculo empolgante sentia, entretanto, que alguma coisa se desprendia da Pátria, desarreigava-se-lhe da terra, fugia-lhe do céu, levada naquele mesmo turbilhão que o arrastava, como as cheias dos rios esbarrondam barrancas, desenraízam e carream de bubuia troncos centenários.

Os lábios batiam-lhe em crispações nervosas, abriam-se-lhe muito os olhos, a pele coriscava-lhe em arrepios.

Fabrício, notando-lhe o desassossego, percebendo-lhe o entusiasmo, tomou-lhe a frente dizendo-lhe em rosto:

— Então, rapaz! Bonito, hein?! Isto é que é! Está tudo acabado! Agora sim. Vai-se embora o velho.

Para o maranhense tudo aquilo reduzia-se a uma vingança contra o imperador. Ele não via mais que o ancião como alvo de todas aquelas armas. Tadeu fez um gesto de resignação piedosa e lamentou: “Coitado! ” Mas o maranhense, febricitante, tirou o boné e, levantando a carabina, acompanhou o povo nas aclamações à República. Que lhe importava o mais? Ia no torvelinho, entrara no arrastão do caudal como folha em torrente, e bradava.

Artilheiros, trepados nas carretas, vozeiravam desvairadamente acenando com a barretina. E naquela variedade de uniformes, por entre bandeiras desfraldadas, baionetas rutilas, brilho de instrumentos, na poeirada fina que ondulava em bruma de ouro, ao sol, o povaréu premia-se, ondulava em alacridade airada de libertação. Os alunos da Escola Militar, em desalinho de jornada, com as blusas manchadas de suor, eram os mais ardorosos nas vozes revolucionárias. Cavaleiros corriam à rédea solta e as cornetas soavam. Populares rodeavam os canhões, afagavam-nos, falavam-lhes, como a animais amigos.

Bandos de garotos cabriolavam, às gingas, brincando de capoeiragem. De quando em quando, aqui, ali uma voz estrugia e logo retroava o alarido.

Paisanos, a cavalo, imiscuíam-se no Estado Maior de Deodoro. Uma fila de bondes estacionava diante do Quartel General, contida pela multidão. Passageiros, de pé, olhavam curiosos; alguns desciam, outros protestavam intimando os cocheiros a voltarem. Aumentava, a mais e mais, a turbamulta e o gradil do Parque estava emaranhado de curiosos que marinhavam por ele, equilibrando-se dificilmente. Havia gente nas árvores.

Súbito clarins retiniram em sons estrídulos. Os artilheiros correram às peças. Houve uma debandada espavorida. O povo refluiu esparrimando-se atropeladamente em todas as direções, aos gritos: “Vão atirar! Vão derrubar o Quartel!”. No terreno ficaram apenas as forças, os paisanos que acompanhavam Deodoro e um ou outro popular mais ousado.

Um tiro seco estalejou num capulho de fumo. Houve um alarido de pânico. Outro ribombo, outro. E os que se achavam às janelas do Quartel correspondiam com acenos de entusiasmo àquele bombardeio.

Eram salvas triunfais, vozes das armas saudando a vitória pacífica, a redenção da Pátria e vinte e um tiros reboaram gloriosamente na manhã radiosa.

— Mas afinal... por quê é isto? Perguntou Tadeu ao sargento Saboia, que não cessava de falar, ora a um, ora a outro, explicando o regímen republicano, o governo do povo pelo povo.

 — Por quê? Hom’essa! Então você acha pouco o que temos sofrido dessa canalha? E Mato Grosso? E Santa Cruz e Lage, por dá cá aquela palha? Acha pouco? E soldados morrendo por aí debaixo de vara, apodrecendo nas solitárias...? Pois agora, meu amigo, se Deodoro não tomava a coisa a peito, nós íamos, mas era para o Amazonas, para o inferno daqueles rios, morrer de febres. Agora vamos ver quem manda! Venham para cá com os palavreados.

 — E o imperador, sargento?

 — Que tem o imperador?

 — Matam-no, com certeza.

 — Que matar, que nada. Você parece besta. Matar, para quê? Ninguém aqui é Adriano do Vale. Manda-se o homem pra fora, pra Fernando, e está acabado. Napoleão — e era Napoleão! — Não foi para Santa Helena? Não diz que é sábio, que gosta de ler? Pois que se arranje com os livros. De poetas estamos fartos. Matar... Aqui não há assassinos. E sabe você, em França, quando derrubaram a Bastilha, não ficou nada: foi rei, foi rainha, foi tudo. E é como devia ser. Esse, enfim, não digo, nem Deodoro é homem para mandar matar, mas devia ser. Ou é república ou não é.

Um “Viva a República!” Rouquejou na fileira. Voltaram-se: era o cadete Fernandes, vermelho, suado, tarantulando como epilético.

— Olhe o cadete, disse o sargento. Tem chorado que parece doido. Esse sim! Se ele tivesse o poder na mão garanto a vocês que o velho estava na unha, o velho e todo o seu rancho de S. Cristovão. Isso é mau que é danado! Deodoro, não. Carranca fechada, mas lá por dentro é coração só.

Ainda se não havia dissipado de todo no ar o fumo dos canhões e já o povo, tranquilizado, regressava ao campo bradando mais fogosamente em ímpetos heroicos.

Vozes coléricas propunham represálias e depredações, exigiam mártires. Um negro, em mangas de camisa, berrou, com furor de energúmeno: “Abaixo o ministério! Morra a Princesa!” “Morra!” Responderam. Um rapazola pôs-se a arengar esmurrando o espaço e destacaram-se valentes concitando o povo: “Vamos à Câmara! À Câmara! ”.

Mas uma das bandas atacou triunfalmente o Hino Nacional e foi como a benção de Cristo sobre as águas tempestuosas. Houve um momento de êxtase religioso. Homens choravam, abraçavam-se. De repente uma espada fuzilou no ar e Deodoro lançou o ginete a galope seguido dos oficiais e um brado imenso atroou longamente a praça, rolando, desdobrado em ecos, pelo espaço azul até as montanhas e de lá partindo em anúncio de vitória para o país inteiro: “Viva o Brasil!” E, quando abonançou o tumulto, ainda pairavam os últimos sons do hino abafados pelo rufo dos tambores e pelo estridor dos clarins e cornetas dos regimentos e batalhões em marcha.

A desfilada foi uma apoteose. A cidade encheu-se como por encanto. Fabrício, vendo as ruas apinhadas, as janelas atupidas, observou ao companheiro:

— Olha, Tadeu. Não parece que essa gente sabia de tudo? Qual! Povo adivinha mesmo! Lembrando-se, então, do que ouvira no campo, exclamou:

— E o ministro, hein? Diz que brigou como homem. Gosto de um cabra assim...

Quando chegaram ao largo de S. Francisco era tal a multidão na rua do Ouvidor que as tropas fizeram alto e foi necessário que uma vanguarda de oficiais abrisse caminho para a entrada do general e do seu Estado Maior, ao qual se haviam incorporado os paisanos, com Quintino Bocaiuva à frente.

Bandeiras tremulavam às sacadas formando ondulante abobada de cores e quando Deodoro apareceu trovejaram palmas, gritos aclamaram-no e uma chuva de flores envolveu-o. E ele, firme na sela, sereno, acenava com a espada às senhoras, sofreando o ginete que ladeava, aos pulos, sacudindo a cabeça nervosa, como a querer escapar da multidão que o oprimia e abafava. O delírio crescia. Populares atiravam-se aos soldados numa fúria de saque arrancando-lhes botões da farda, divisas; outros pediam, imploravam flâmulas das lanças, e o alferes do 10° teve de defender a bandeira contra um grupo de patriotas que a queria retalhar para possuir relíquias do grande dia. As carretas passavam cheias de gente que vociferava. E a vozeria impunha-se ao clangor das bandas.

De repente correu pela tropa a notícia de que a Marinha, fiel ao trono, estava preparada para reagir. E os boatos terríficos que corriam no meio do povo, afirmavam que toda a esquadra, de fogos acesos, estava formada em linha de batalha e sustentada pelas fortalezas; que os navais estavam prontos. Que ia haver sangue.

O cadete Fernandes, encarquilhando o rosto arrugado em ritos, disse, por entre dentes, rilhando:

— Canalhas! Nem que seja eu só...

Mas o Saboia chirriou um risinho de mofa:

— Ora, seu cadete... vosmecê também acredita em tudo. O senhor não vê logo!? Pois então os marinheiros vão lá fazer fogo contra nós... O senhor não vê logo...

— E que façam! rugiu o cadete. Que façam! Eu morro, mas depois de ter comido uns tantos. Ah!  Cair só, não caio.

Um homem ruivo, cabeleira em crista, debruçou-se à sacada de um hotel batendo as palmas. Houve psios! Vozes intimaram: “Para! Para!”. Mas as músicas estrondavam, os clamores recrudesciam em fragor de tormenta. A multidão compacta rolava em bloco, era impossível sustá-la. E o homem lá ficou, esbofando-se esbaforidamente, em vão, a bracejar arremangado, com os cabelos louros esvoaçando, brilhando ao sol como línguas de fogo.

Na rua Direita, desafogando-se, a multidão espraiou-se afluindo à frente como para garantir Deodoro. Mas já começava a descer gente, bandos precipitados; e eram empurrões, arremessos, rusgas, palavrões de insulto. Senhoras cosiam-se com as paredes, refugiavam-se em corredores, pediam abrigo nas casas comerciais. Rapazolas passavam espalhando que os marinheiros estavam com a artilharia pronta. Afirmavam ter visto alguns armados de machadinhas. Fechavam-se portas, desciam, com estrondo, as cortinas de aço.

Muitos dos que se haviam precipitado para a frente iam-se deixando ficar e, à primeira aberta, investiam varando a turba aos encontrões, às cotoveladas, até ganharem um dos passeios. Era o terror que os ia debandando, era o medo manifestando-se em deserções sorrateiras. Alguns não disfarçavam a fuga: “Nada! Seguro morreu de velho! Assim como assim, que vou lá fazer? Se eu ainda estivesse armado...” e esgueiravam-se.

O negro que, no Campo, propusera deitarem abaixo o ministério e bradara “Morte à princesa!” girogirava como em remoinho, sempre furibundo, sanguinário, a escumar iras libertárias, mas foi-se escapando até achar passagem para uma das ruas. E a tropa, mais desafrontada, reorganizava-se em pelotões e soldados corriam com estralejar das patronas cheias.

Já as avançadas chegavam ao Arsenal de Marinha. Uma força de cavalaria avançou a galope pela ladeira de S. Bento, com as lanças altas ou com os clavinas a prumo, quando o portão da praça, até então ameaçadoramente fechado, abriu- se lento e saíram parlamentares. Era a adesão da Marinha.

“Viva a República!”. Bradou um almirante agitando o boné e então, em uníssono, povo e soldados, no mesmo assomo, fizeram coro com o oficial e um frêmito correu desde o Arsenal até as últimas filas de soldados, ainda retidos na rua do Ouvidor.

Soaram, a um tempo, toda as bandas no alvoroço frenético da multidão. Fabrício saltava descabelado, com a farda aberta; o sargento ia de um a outro, confirmando o que havia dito: “Então! Pois a Marinha havia de atirar contra nós... está aí... E vocês com histórias...” O cadete, afônico, esquelava-se em hiatos, atirando murros ao vácuo, aos pulos.

As fileiras desmantelavam-se. Oficiais e inferiores relaxavam o comando, uns por curiosidade de ver o que se passava no Arsenal entre as altas patentes do exército e da marinha, outros para refrescarem a goela ou comprarem frutas no cais. E as praças, em liberdade, debandavam, umas sentando-se nas portas das casas, outras, mais resolutas, abandonando a forma e seguindo vagarosamente, com a carabina baixa, à procura de botequim ou frege onde comessem alguma coisa.

Um molecote, doceiro, que fazia o seu comércio naquela barafunda, estacou de repente em compadecido espanto diante de Tadeu que arquejava, com a cabeça no braço apoiado à parede, firmando-se à carabina. De quando em quando, em frouxos arrevessos, saíam-lhe da boca golfadas de sangue.

O doceiro dirigiu-se a um soldado e disse-lhe aturdido:

— Olhe aquele ali. Está botando sangue pela boca...

O avisado lançou um olhar indiferente ao camarada e bradou ao outro:

— Fabrício! Olha o teu amigo, Tadeu. Parece que entornou demais. Isso em jejum... Olha lá...

Fabrício acudiu, mas verificando o que se passava, exclamou com pena:

— Que é isso, rapaz!? Pois você... uma pasta de sangue vermelhejava na calçada e o misero ansiava, tonto. À voz do amigo levantou a cabeça — estava lívido, com os cabelos colados em suor à testa, os olhos lacrimosos. O maranhense interrogou-o:

— Que foi? Ele fez um gesto vago. Limpou lentamente os lábios e disse em voz lenta e débil:

— Cansaço. Estou que não posso... é um fogo no peito que não sei. Acho que não resisto. E é melhor mesmo. Sentou-se encolhido, encostado à parede, com a carabina entre os joelhos.

— Descansa um bocado, disse-lhe Fabrício. Lembrou-lhe, porém, falar ao sargento e foi resolutamente. Achou-o perorando num grupo.

— Sargento, o 235 está pondo sangue pela boca. Não há ambulância, não há nada. Ele a pé não aguenta. Está ali que não pode. Se a gente arranjasse, ao menos, um lugar onde ele descansasse um pouco.

O sargento encarou de má sombra o maranhense e, depois de o mirar, com aborrecimento, disse, cruzando os braços:

— E agora!? Quem sabe se eu o hei de levar às costas?! Pois se não aguenta, melhor para ele. Fabrício conteve um ímpeto de revolta e, bambaleando o corpo, com um sorriso que refletia cólera e desprezo, respondeu:

— Não há dúvida. Eu levo ele. E foi-se para junto do companheiro, que se mantinha na mesma posição de angústia, tendo em volta, a contemplá-lo um círculo de curiosos.

Soaram cornetas. Acudiram soldados de vários pontos, reorganizando-se os pelotões. E o cadete Fernandes, com o boné amarfanhado quase a tapar-lhe os olhos, a farda desabotoada, entrou em forma dizendo em voz soturna:

— Muito bem. Vamos agora ver o resto.

No Arsenal estrugiam as vibrações do Hino e o povo, em delírio, aclamando a Marinha, arremessou-se em massa para o portão aberto.

VIII

Dois meses de hospital e com a sentença de morte a atroar-lhe os ouvidos, porque o médico que o examinou à entrada, um velho acaboclado, de óculos, depois de o interrogar, com aspereza, sobre os antecedentes: “Se já havia tido hemoptise? Se tinha tísicos na família?” auscultou-o vagamente, declarando a um moço que o acompanhava atento: “É um caso liquidado”. A um gesto do velho o outro adiantou-se e, depois de aplicar o ouvido ao peito e às costas de Tadeu, percutir-lhe os ombros, as costelas, concordou com o diagnóstico. E o velho concluiu encarado no enfermo:

— Podes dizer adeus à farda. Estás livre. Agora é cuidar disso, entendes? Por aí uns remeneios, porque essa coisa, lá por dentro, está a pedir reboco. De onde é você?

— De Vassouras.

— Boa terra, bom clima... pois é tornar para lá quanto antes e viver quieto. Boa carne, bom leite e nada de extravagâncias, se é que não te desagrada isto por cá, porque o que tens aí dentro não dá para muito. Isso, estou a ver, é Matogrossada; pagodeira velha. Mulher ali é mato, e mato venenoso. Pois é. Eu não iludo. Digo o que é. Vá, deite-se, agasalhe-se e fume pouco. O remédio virá ter aqui. Fez uma caramunha de desânimo, a que o outro correspondeu com um sorriso. E foram-se.

Dois meses de hospital! Vida triste, enfadonha, na vasta galeria de sofrimento.

Sempre aquele cheiro ácido, enjoativo, as mesmas conversas melancólicas, a mesma dieta dissaborida e o pouco caso dos enfermeiros. Às vezes era um que acabava, arfando devagarinho, a boca aberta, os olhos estagnados, vítreos. O vizinho de leito dava o alarma sinistro da morte. Acudiam enfermeiros, os doentes agitavam-se, uma lufada de terror sacudia-os e ficavam transidos como o gado quando fareja o sangue de um companheiro abatido.

Eram sussurros aqui, ali; perguntas tímidas. Alguns rezavam baixinho. E o morto ficava estendido, coberto até o queixo, como se dormisse, com as moscas voejando-lhe em volta.

Mas a vida retomava a sua marcha indiferente, passando através daquela imobilidade com leve frêmito de emoção, como um rio trambolha em rochedo espumejando férvido, para logo defluir serenamente, límpido.

Dois meses!

Durante o dia nada mais do que a visão fixa daquela sala melancólica com as idas e vindas dos enfermeiros, a visita displicente dos médicos, o vozeio surdo das conversas. De quando em quando um ai! Muito longo, arranque de tosse, ou o sobressalto de uma síncope.

À noite, no bruxuleio da luz escassa, sombras estranhas tisnavam as paredes, bracejando ou como que abrindo azas trágicas: Eram enfermos que se levantavam angustiados, recaíam arquejando ou bradavam assustadoramente, como a pedir socorro, no pungir de uma dor ou em delírio de febre.

E o enfermeiro surgia assonorentado, resmungando, intimava grosseiramente o enfermo a aquietar-se, deitava-o à força, ameaçando-o.

Refazia-se o silêncio lúgubre, cortado pelo ressonar de uns, pelo sarrido de outros, por um escarro, uma tosse, um lamento, um suspiro. Dois meses!

Quando lhe consentiram levantar-se, andou pela enfermaria em passos arrastados, muito fraco, sentindo as pernas frouxas, moles, como desossadas. Saiu ao jardim, caminhou um momento, bambo, trêmulo; sentou-se, por fim, à sombra de uma árvore, olhando o céu azul, gozando o suave calor do sol, acompanhando enternecidamente o voo dos passarinhos.

À medida que melhorava sentia que se ia tornando incomodo àquela gente do hospital, médicos e enfermeiros, que o olhavam de má cara, como se ele ali se mantivesse por abuso, usurpando o lugar a outro, comendo, bebendo e dormindo à tripa forra, como parasita. Desconfiava de todos, tomando a si quantas frases ouvia. Uma vez quase chorou de vergonha ao dar com um mulato enfermeiro, sujeito mal-encarado, muito de pirraças, sempre às turras com os doentes, que dizia a ura criado: “Que quer você? Isto é o paraíso dos malandros. Há aqui tipos de tanta ronha que chegam a enganar os médicos. Alguns até, nem sei como, fazem subir o termômetro. Dizem que é com o cigarro, que escondem debaixo do lençol. Não sei. A verdade é que, depois da visita, ficam aí lampeiros que nem parecem os mesmos. Você quer ver essa súcia é na hora da boia...”

O velho médico que, a princípio, tinha sempre um dito alegre para ele, passava quase indiferente, mirando-o de esguelha, com acenos de cabeça e resmungos.

Para evitar olhares, sorrisos maliciosos e o cochicho dos enfermeiros, sempre inticantes, saía cedo para o jardim, punha-se a passear ao sol, como lhe recomendara o médico, ou sentava-se à sombra de um tamarindeiro, onde ficava horas esquecidas, banzando.

Quando pensava na saída do hospital tornava-se apreensivo, sombrio. Para onde iria naquele estado de fraqueza que o abatia ao menor esforço, prostrando-o esfalfado, a suar e tonto como em vertigem?

Vendo mourejar o jardineiro, homenzarrão robusto e alegre, com a saúde a reçumar-lhe em cores do rosto lango e moreno, pensava em voltar à terra, mas dava de ombros, com um sorriso triste.

A terra...! Conhecia-a bem! Fora ela que o reduzira àquela miséria, que lhe arrancara o primeiro sangue, que o vencera formidavelmente quando ele tentara domá-la, tirando-lhe a braveza do maninho, limpando-a das ervas, destorroando-a, revolvendo-a. Sentia-se vencido, incapaz de qualquer esforço: mole de corpo, quebrado de ânimo.

Repeliam-no das armas, despiam-lhe a farda. Aquele sangue, arrevessado a golfadas na hora enérgica e grandiosa em que mais se pedia ao soldado força e garbo, condenara-o para o sempre. Se houvesse jorrado de ferida heroica aberta a ferro, na fúria do combate, o ponto do peito em que lhe houvesse ficado a cicatriz seria assinalado com uma medalha de honra, que o distinguiria entre os bravos; mas assim, sangue fraco, de enfermo, lançado em frouxo, como de náusea pela vida...

E ficava a pensar humilhado, com vergonha dos outros convalescentes que passeavam em grupos, conversando alegres. Aqueles regressariam às fileiras mais robustos, refeitos no descanso que haviam gozado. Ele...!

Levantava-se vagarosamente, ia ficar junto às grades para olhar a rua, vendo formigar a gente ativa: trabalhadores sadios, uns com ferros de lavoura, outros com instrumentos de ofício e altas, acoguladas carroças de frutos e legumes que desciam para o mercado deixando no ar um cheiro fresco e ácido de horta e pomar.

Tudo aquilo era a vida, era a terra fecunda, a riqueza. E ele!...

À hora das refeições sentia vexame em sentar-se à mesa, como se fosse ao pão de esmola. Baixava a cabeça, comendo em silêncio, timidamente e sempre desconfiado do olhar, do riso dos companheiros, do cochichar dos criados. À noite custava a conciliar o sono, a pensar no destino tenebroso. Ideias de morte sombreavam-lhe o espírito.

Seria melhor. Que faria ele no mundo, como um trapo atirado à praia, que as ondas rolam e estrafegam? Lembrava-se, porém, dos venturosos dias em Corumbá, de Maria Bárbara, da velha índia; revia o rancho à beira rio.

Ela já devia ter tido o filho. Menino ou menina?! E naquele sonho amoroso sorria desvanecido.

As recordações daquele tempo eram como oásis para a sua alma. Depois... tantos outros sofriam...! Se fosse ele o único, mas havia tanta gente desgraçada, tanta! O imperador, por exemplo.

Quem diria! Senhor de tudo, dono da terra e dos homens, não fora metido em um navio e tocado da pátria?! Pobre velho! Revia-o, recompondo a visão rápida da sua passagem na berlinda, com os clarins dos batedores soando e a cavalaria a acompanhá-lo de espadas desembainhadas, pronta para defendê-lo à primeira ameaça. E não fora lançado do trono, abandonado de todos, exilado?!

Ele, ao menos, ainda ali estava na pátria, a horas da sua terra, podendo vê-la, fixar-se de novo onde tinha a sua gente, na casa em que nascera e onde lhe havia morrido o pai.

Esperanças esvoaçavam-lhe em volta atraídas pela fantasia, como mariposas chegando-se enxameadamente à luz: “Se comprasse um bilhete! Se conseguisse um bom emprego...?”. A cidade era grande, a fortuna fácil. Bem poderia ele, ao sair dali, encontrar proteção, ter a sorte em um número, arranjar-se em alguma casa comercial ou, com o favor do deputado Gomide, obter emprego numa repartição pública.

Repentinamente todos os castelos ruíam e ele achava-se, de novo, na situação de abandono, sem casa, com uma ninharia no bolso e doente.

Não tinha amigos. Não conhecia ninguém na cidade. Fabrício lá estava no quartel. Aquele sim, caboclo duro, cheio de vida! Aquele sim, e os outros, tudo gente forte. Enfim...! Seria o que Deus quisesse.

Um dos copeiros, cabrocha magricela, com o rosto picado de bexigas, que fora taifeiro a bordo da Guanabara, lembrava-lhe a Polícia. “Que se engajasse. Uai! Por que não? Ele mesmo, mais dia, menos dia estaria lá nos Barbonos. Sempre era outra coisa. Estava farto daquela vida de hospital. Uma sujeira de fazer nojo e só vendo feridas, e um fedor de remédios que lhe embrulhava o estômago”.

Tadeu, porém, tinha medo. E logo imaginava-se às voltas com capoeiras de navalha em punho ou tocaiando ladrões, só, na escuridão da noite, em arrabaldes desertos, um prédio aqui, outro além. E via-se cercado por maltas sanguinárias ou encurralado por quadrilhas assassinas. Se ainda tivesse saúde, força...!

E poderia ele resistir às noites em claro, ao tempo frio e de chuva, encafuando-se encolhidamente em vãos de portas, molhado até os ossos? Aquele sangue...! E sentia a fraqueza do peito. Por vezes era um calor vivo como de chamas que, subitamente, se acendessem, queimando-o por dentro, ou então repuxamentos, arranques, dores finas como de agulhadas. Tossia rouco, gorgolejos engrolavam-se-lhe na garganta.

Estarrecido de medo pensava no sangue. Arrancava escarros grossos, parecendo-lhe sempre que se lhe despegavam os pulmões com o esforço e que era a própria vida que se lhe esvaia aos poucos. Examinava os gargalhos e ficava longo tempo arquejante, em languida canseira, a arfar.

Quando teve alta e, com a inspeção de saúde, foi excluído do exército por incapaz, sentiu todo o horror da sua sorte mesquinha. Nem se atreveu a despedir-se dos camaradas. Para quê? Rir-se-iam dele, troçando-o. Estava magro, amarelento, encanzinado, de olhos fundos. Saiu à aventura. Entrou, ao acaso, num botequim e, sentando-se à mesa, diante de uma xícara de café, ficou distraído, o olhar vago. Que via? Um mundo, mas todo ele inóspito, indiferente. Vasta, acumulada cidade e ele sem um canto para dormir; uma multidão movimentando-se nas ruas sem que nelas lhe aparecesse um rosto conhecido, a mão de um amigo que se lhe estendesse; tanto rumor de palavras e, nem uma só vez o seu nome. Sentia-se só, de todo só. Pôs- se a andar à toa, sem rumo, fatigando-se.

Na rua do Ouvidor distraiu-se olhando as vitrinas ricas, parando de uma em uma, diante das lojas, voltando-se atento a todos os pregões de quinquilheiros. E caminhava. Quando deu por si estava na rua Direita.

Olhou para um e para outro lado, como a orientar-se e seguiu para a Praia do Peixe, sem destino, questão de encher tempo.

O grande mercado estava quase deserto, com a sua abundância encerrada nos armazéns que tresandavam a azedume. Uma água, lúrida como azougue, coalhava-se nas sarjetas. Havia pilhas de frutos podres, cascaria, hortaliças velhas à espera da carroçagem. Na rampa uma fila de canoas. Algumas de borco, ressecavam ao sol. Homens desciam, subiam pela humidade resvalante, e aqui, ali um caixeiro varria a dianteira da casa ou arrumava mercadorias!

Lembrou-se de ir aos bichos, ver os macacos, os cães, e a passarada chalra. Mas passando por uma casa de frutas apeteceu-lhe chupar laranjas. Entrou, sentou-se em um tamborete e pôs-se a chuchurrear a fruta, às talhadas, lembrando-se da roça, do tempo de menino, quando, no pomar, fazia mamuchas, chuchando-as e jogando petecas com o bagaço engelhado.

Então descobriu um jornal do dia. Palpitou-lhe ler os anúncios. Correu-os todos e achou um que lhe convinha. Dizia: “Precisa-se de um moço para caixeiro de botequim na rua de Santa Luzia. Quer-se que durma no emprego. ”

O coração bateu-lhe de ímpeto. Levantou-se, pagou e foi-se. Era perto. Casa e comida, que melhor? O botequim — duas portas — era uma espelunca, escura e sórdida, com o soalho lustroso de lodo, quatro mesas de ferro, o balcão escalavrado e, num armário, ao fundo, a garrafeira. Grilhões de papel cruzavam-se no teto sarapintado e fumarento.

O dono recebeu-o em mangas de camisa, cigarro à boca, mirando-o de alto. Era um tipo gordo, ventrudo, de olhos avermelhados, com o queixo em papeira aos refegos e belfas bambas.

Falando-lhe Tadeu no anúncio, o homem franziu o sobrolho, cuspilhou o cigarro e, atafulhando as mãos nos bolsos das calças, pandeou o ventre com arrogância, perguntando: “Se tinha prática. Se entendia daquele negócio? ”

Tadeu confessou, acanhado, que, em botequim, a dizer verdade, nunca servira, mas estivera em uma venda, entendia de bebidas é com uma explicação daria contas de si. O homem pôs-se a andar pela sala, cabisbaixo, a remoer, e disse, por fim:

“Isto não tem que saber. Tudo tem seu preço. E lá o café, tem até a máquina. É só deitar-lhe o pó, a água quente por cima e a chorumela vai por si mesma. A freguesia é conhecida: rapaziada boa, quase tudo gente do mar — remadores, pescadores. De manhã, à hora do banho, costumam aparecer figurões, pessoal do comércio; até senhoras já aqui têm entrado, e da nata. Mas o geral é o povo do remo e da vela... lá, às vezes, coisa de mais gole, menos gole, estoura aqui uma esbodegação. Mas é fogo de palha... A casa abre-se às quatro da manhã e fecha-se à meia noite. Dou quarenta mil réis, casa e comida. Temos lá ao fundo um quarto e come-se da casa de pasto, aqui ao lado. Se convém, o melhor é entrar hoje mesmo, porque estou só. O outro, um maganão, foi-se com uma boa taréa e lá está a gornir o xadrez. Era malandro para roubar-me a alma, se eu a não tivesse sempre comigo.

Acordaram no ajuste e, nessa mesma tarde, a canastra do ex-soldado ocupou um vão do quarto, um cacifro, onde mal cabiam a cama e um lavatório de ferro. A parede estava forrada de velhas ilustrações de jornais, e num dos lados, de tabique, havia uma porta na qual estava pregado um cabide de dois ganchos. Uma janelinha abria sobre o mar, cuja voz preguiçosa soava, ressoava constantemente em ritmo de respiração arfante.

O serviço era de estafa, sem tréguas, com poucas horas de sono. Cedo, ainda escuro, o homem, que dormia no quarto contíguo, roncando estrondosamente, batia no tabique atroando o silêncio com o vozeirão acatarroado: “São horas! ”

Tadeu punha-se logo de pé, às vezes tão amolengado que mal podia levantar o ferrolho da janelinha, recebendo em cheio, no peito, a lufada salitrosa. Borrifava o rosto e saía a acender a máquina do café, abrir a porta para receber o leite e o pão.

Os fregueses não se faziam esperar: homens rijos, ainda sonolentos, bocejando alto, pigarreando. Sentavam-se de pernas estiradas e comiam com apetite de saúde. Alguns, em trajo de banho, exalando salsugem, pernas nuas, descalços, entravam à pressa, encharcados, tomavam um café, um gole de parati e saíam correndo.

Às vezes eram grupos estroinas, bravateando feitos: um que fora a Villegaignon a braçadas largas, sem pausa; outro que varara em mergulho desde a falúa até a boia. E histórias de rolos com policiais, desbarato de maltas a cacete, murros achaparrantes. Tadeu foi, aos poucos, relacionando-se com aquela gente heroica e, como houvesse contado a alguns a sua vida de soldado, nela enxertando bravuras imaginárias, muitos dos rapazes, quando entravam, perfilavam-se em continência cômica de mão à fronte e declaravam o que queriam, como se bradassem às armas: “Um parati!”. “Uma média e pão quente!”. “Café! ”

Ele servia amorrinhado. E enquanto a freguesia, em alegre algazarra, sorvia a goles cheios, as palanganas de café com leite ou virava cálices de cana, ele admirava, com inveja, aqueles corpos de atletas, peitos anchos, convexos como escudos, bíceps em ampolas túmidas, pescoços cordoveiados. Gostava de ouvi-los, excitava-os a experimentarem forças na quebra de braço, de cotovelos fincados na mesa, mãos enclavinhadas, lutando em torsões de punho. E os músculos resaltavam-lhes túrgidos, rígidos, inchavam-se-lhes as veias.

As cadeiras ringiam, estalejavam, a mesa oscilava até que o mais forte, co ntraindo o rosto, de maxilas em trismo, retesando a musculatura férrea, ia dobrando o braço do companheiro como se vergasse uma barra e, de repente, em arranque supremo, abatia-lhe a mão na mesa, subjugando-a. Atroavam clamores e palmas.

Tadeu acompanhava o formidável duelo, esforçando-se como se nele fosse parte e, quando se decidia a vitória, resfolegava cansado, exausto da contensão em que se mantivera durante a prova dos pugilistas. Admirava a força e o seu prazer era achar-se entre aqueles rapazes cheios de vida, aqueles marujos tanados, cujos braços venciam as vagas, cujos peitos pareciam cheios daquele ar de saúde que, lá longe, enfunava bojadamente as velas e, mais alto, levava de roldão as nuvens.

No correr do dia eram raros os fregueses. Apareciam alguns lerdos, muito parranas, sentavam-se preguicentos, coçando a grenha riçada, tomavam café, cerveja ou cana, deixando-se estar em moleza, assonorentados.

Às vezes formavam-se bancas de bisca, valendo rodadas de cerveja, num araviar de tavolagem, sob o voejo importuno das moscas. E fora, ensurdecedoramente, era contínuo o rilhar zininte de serras nas serrarias próximas e um cheiro seco de madeira espalhava-se no ar levemente abrumado de uma poeira de ouro.

À noite era maior a frequência, gente sorumbática, sorrateira, frascários da zona, alguns rebocando zabaneiras esbodegadas e ébrias. Por vezes rusgavam. Palavrões estouravam e era logo o desaguisado, a barafunda. Um que saltava às gingas e às rabanadas, desafiando; outro, logo investindo com alvoroço, espalhando o grupo. Fechava-se o tempo, rolavam cadeiras no estrondo do turumbamba.

O dono da casa intervinha pacificador, apartando os desavindos. Aos fracos, ia levando aos trambolhões até a porta, esmurrava-os, sacudia-os longe, com ameaças; aos valentes, de fama, buscava apaziguar, falando-lhes como parceiro de pandilha:

“Que diabo! Também vocês queimam-se por dá cá aquela palhaçada. Deixem lá as mulheres. Não vale a pena brigar por porcarias. Isso anda aí à toa”. Continha-os jeitosamente para evitar prejuízos e trabalhos com a polícia, porque, no final das contas, era ele sempre quem pagava o pato.

Tadeu encantoava-se por trás do balcão, encorujado de medo, o olhar muito aberto, assombrado, na expectativa arrepiada de navalhadas, tiros, sangue, intestinos de fora, mortes. E, quando os brigões saíam tumultuosamente, desafogava-se e, ainda trêmulo, com o coração oprimido, arrumava as cadeiras que haviam rolado, varria os cacos de louça, refazia a bodega, enquanto o patrão, furioso, resmungava contra a corja:

“Que, um dia, tanto o haviam de esquentar, que perdia a cabeça e estendia um dos tais ali, nas pedras, com uma bala”.

Tadeu começava a ressentir-se daquela vida, dormindo três horas, se tanto, por noite naquela cama imunda, cheia de percevejos, sobre trapos: levantando-se de madrugada para lavar o botequim e atender aos fregueses. Sentia-se alquebrado, mole.

Quando se recolhia ao quarto, ouvindo o chiar dos ratos, o esfervilhar das baratas, sempre preocupado com as enormes centopeias que coleavam no soalho negro, dobrava-se, de mãos à ilharga, com a espinha dorida, as solas dos pés ardendo, como sinapizadas.

Custava a adormecer, sempre com pensamentos lúgubres ou revivendo saudades tristes.

Uma noite, ao deitar-se, depois de fumar um cigarro, sentiu angustiosa opressão como se lhe esmagassem o peito, ânsia de ar, ardor urente na garganta. Tossiu e, de ímpeto, aflito, engasgado, pôs-se de pé. A tosse agravou-se-lhe ríspida, rouca, despedaçando-lhe o peito. Veio-lhe uma golfada à boca, postejou-a no chão — era sangue. Sentia como recalques nos ombros, pontadas que o varavam. Abriu o postigo.

Uma lufada de ar frio bateu-lhe em cheio no rosto, dobrando a chama da vela, que ardia espetada no gargalo de uma garrafa.

O céu estava todo estrelado, luzes vermelhejavam na escuridão faiscante do mar. Tadeu aspirava sôfrego aquele ar benigno, que o reanimava.

De repente, porém, um prurido irritou-lhe a garganta e a tosse irrompeu de chofre áspera, em acessos seguidos, uns sobre outros, a mais e mais angustiados, como se o frio da noite lhe houvesse exacerbado a crise.

Encostou o postigo e, bambo, esfalfado, cambaleando como bêbedo, atirou-se na cama abandonadamente, escarvando o peito com as mãos grifanhas, como em ânsia de o abrir para enchê-lo de ar, daquele ar que circulava fresco, salino, sadio, dando vida a tudo, que até as roupas com ele agitavam-se no cabide, papéis arrastavam-se pelo chão, a chama da vela palpitava trêmula, só ele, com a impermeabilidade que o blindava, não lhe sentia, no íntimo, o frescor e o benefício. Outra golfada encheu-lhe a boca. Levantou-se rápido, medroso, sentando-se à beira da cama com os cotovelos nos joelhos, a cabeça entre as mãos; e quedou exausto, cuspilhando sangue.

Um suor de agonia envesgava-lhe a fronte, os olhos arrasavam-se-lhe de lágrimas. Pôs-se a ofegar, a gemer surdamente.

No quarto contíguo houve um estalejar e logo o pigarro do patrão e, em seguida, espalmadas pancadas no tabique.

Tadeu arquejava aos haustos, mole, languido, alquebrado. Repetiram-se as pancadas e, como ficassem sem resposta, o patrão vozeirou: — Eh! Tadeu... que é isso? És tu que estás gemendo? Ele quis responder, mas a tosse assaltou-o de novo, violenta.

A porta do cabide abriu-se e o patrão apareceu de camisa de meia e ceroulas, descalço.

Ao dar com o empregado naquela opressão, esbugalhou os olhos empapuçados:

— Que é isso? Que foi? Tadeu encolheu os ombros em gesto lerdo de abandono e desânimo. Por fim rouquejou rascante: “Sangue”. O patrão abaixou-se sobre o soalho e, impressionado com o que via, fez um esgar de aborrecimento, a pensar na maçada de ter de cuidar do enterro, trabalheira na polícia, amolações, todo o dia perdido e sempre alguma gorjeta a este, àquele.

E quem tomaria conta da casa? Pôs-se a coçar a cabeça enfezado, a alisar os grossos braços cabeludos. “Mas afinal... por que isso? Que acontecera?”.

Tadeu espalmou a mão no peito. Fechou-se o silêncio e foi o homem que o quebrou, dizendo amofinado:

— Olha lá, rapaz, isso de sangue é sério. Toma cuidado! E caminhava pelo quarto: Vai-se deixando, deixando e um dia...

— Eu vou-me embora. O patrão estacou, surpreso.:

— Hein?!

— Vou-me embora... Isto pode piorar... O homem ficou-se a olhar o sangue, em manchas no soalho e na cama. E Tadeu prosseguiu vagaroso, descansando nas palavras:

— Não poso mesmo. Tudo me cansa. E respirava arrancadamente. Vou-me embora. Lá tenho os meus, é a minha terra. Assim como assim...

Sobreveio-lhe a tosse e, já sem forças, de todo vencido, debruçou-se no respaldo da cama, comprimindo o peito. O homem contemplava-o com pena; ofereceu-lhe água, um pouco de vinho. Não obtendo resposta foi ao postigo, entreabriu-o e ficou olhando vagamente.

Clareava: uma luz baça, em neblina, através da qual apareciam serranias distantes e o mar liso esbranquiçado, luzindo a trechos. Lembrou-lhe, porém, que era tempo de abrir a casa, arranjá-la para os fregueses matinais. Voltou-se para olhar o empregado, com esperança de o ver de pé, pronto a descer, como de costume, para o serviço. Mas o coitado recostara-se ao travesseiro, exânime, e, de olhos abertos, parados, a boca contraída em ritos, respirava lentamente, a custo, como nas últimas. Foram-se-lhe cerrando as pálpebras e o homem disse-lhe, em voz como de acalento:

— Deixa-te estar. Vê se dormes um pouco. Se isso continuar daqui à Misericórdia é um passo e tens lá tudo — médicos, enfermeiros, remédios... E devagar, surdamente, saiu encostando, de leve, a porta.

Feitas as contas e resolvida a viagem para a madrugada seguinte, apesar do médico da Santa Casa haver aconselhado repouso, receitando-lhe para “o sangue”, Tadeu saiu a contratar um tilburi que o levasse à Central, para o expresso de Minas.

Dos ordenados que recebera durante seis meses de casa, com mais um pouco que sempre reservara para essa sonhada volta, restavam-lhe uns trezentos e tantos mil réis, fortuna bastante para quem regressava ao lar, sem outra ambição mais que a de rever a terra e abraçar os seus.

Apesar de fraco, combalido, com aquela canseira que o derreava, passou a tarde servindo no botequim para despedir-se de certos fregueses amigos. Uns aconselhavam-no a seguir:

“Que fosse. Não brincasse com aquilo. A roça era tudo para tais moléstias.” E citavam curas maravilhosas. Outros discordavam incrédulos:

— Histórias! O melhor era ele ficar onde estava. Aqui, deixem lá! Aqui sempre há outros recursos: médicos, remédios. Isso de ares de mato é bom para bichos. O que se quer é tratamento. E estranhavam que ele não se houvesse metido na água salgada. Pois você aqui, a dois passos do mar, não tentar os banhos... Só por muita preguiça. Aquilo sim! Com uns trinta banhos de mar ficava pronto, e sem drogas que arrasam o estômago.

Tadeu sorria, mas firme no seu propósito, lá arrumara baú, tinha tudo pronto e o tilburi encomendado. Ia mesmo. Se a terra o não curasse então... e deu de ombros.

Subiu cedo para o quarto, deitou-se vestido, mas evitou dormir com medo de perder o trem. Corria diante das horas, viajando em espírito, revendo a cidade: ruas, caminhos, casas, a igreja, estradas entre matos, fazendas. Fumava cigarros sobre cigarros. Estendeu-se a fio comprido na cama, mas logo o sono pesou-lhe nas pálpebras, chumbando-as. Reagiu com medo e pôs-se a andar no quarto, para distrair-se. Bebeu um gole da água, banhou o rosto. Por fim abriu o postigo e cravou os olhos no céu que começava a tinir-se em cores dalva.

O horizonte zebrava-se de estrias rubras que, pouco a pouco, acendiam-se como barras que encandecessem em forja. O mar relumava quieto e liso, espelhante, em vários pontos imbricado de piscas como o dorso de um monstro de escamas de ouro adormecido à tona. Vultos enormes de couraçados tisnavam as águas lúcidas e no fundo, além, o perfil da serra, de um roxo enevoado, confundia-se com o céu como aplicação macia de veludo em seda. Aves voavam alto, em círculo; outras, mais baixo, lentas, infletiam em rumo ao largo, abrindo e fechando a cauda bífida como se cortassem o ar com uma tesoura.

Clareava, Villegaignon, com os flexíveis coqueiros meneando languidos, parecia surgir da espuma que a cercava, airosa. Uma falúa de lenha singrava em manso vagar, pano aberto, em bojo. Na praia, em frente, quase por baixo do postigo, andavam homens em mangas de camisa, com palamentas de barcos. Um galgava a rampa, cantando, com um leme ao ombro; outros estendiam redes, tarrafas ou batiam cestos.

Banhistas desciam correndo em direitura ao mar, que esfrolava nas pedras, insinuando-se, fervidamente, em espumarada pelos vãos da costa. Nadadores afastavam-se a braçadas, perdiam-se na distância e, à beira da praia, na água faiscante, apareciam, boiando, cabecinhas inquietas; e eram risos, gritos de susto; um ali rebolcando, outro a debater-se chapejando a onda esbaforidamente, aos bufidos, borrifando bochechos de água.

O céu inflamava-se. A serrania longínqua, com os ridentes acesos, como se ardessem, ia-se toda dourando. O mar rebrilhava em lampejos metálicos. Um viso, além, fulgurou, acendeu-se vulcânico todo em ouro vivo e enorme, rutilo, o sol surgiu vibrante, difundindo a luz áurea por céus, terras e mares. Pairou uma religiosa serenidade. Um silvo cortou o silêncio, outro. Tiniu um sino, soaram cornetas ao longe. Tadeu ficou em êxtase, enlevado na magnificência esplêndida. Mas a voz do patrão bradou por ele alarmada. Estremeceu e, lesto, puxando o bauzinho pela argola, foi levando-o de rasto, quase a correr.

— Está aí o tilburi, homem. Avia-te, que não há tempo a perder. Estás quase na hora. Despediram-se às pressas, num aperto de mão. Vai, vai! E trata-te, vê lá isso. E se voltares... cá estamos.

Dois alentados rapagões, em trajo de banho, entraram ruidosamente, rindo às gargalhadas. Um deles, alto, moreno, de músculos atléticos, plantou-se diante de Tadeu, exclamando:

— Bravo! Que luxo, linguiça. Onde vais nesse trinque? Ah! É a viagem.

Tadeu sorriu, acenando de cabeça: “Que sim...” E abalou pressuroso.

Na rua foi um trabalho para suspender o baú, cujo peso o fazia arquejar dobrado em esforço.

O moreno bradou: — Ó punga!

Dum salto, pôs-se lhe ao lado, afastando-o com um tranco, a troçar-lhe a tibieza e, ágil, levantando o bauzinho a pulso, encafuou-o, fê-lo correr, como uma gaveta, sobre o pelego surrado do tilburi e, atirando rija palmada às costas de Tadeu, quase o fez trambolhar em cima do cocheiro.

— Boa viagem, hein! Pasta e volta! E o tilburi partiu.

TERCEIRA PARTE

I

Vassouras! Anunciou o chefe de trem, mal o comboio moveu-se, deixando a estação da Barra. Tadeu debruçou-se à janela, com ânsia de rever os campos tantas vezes percorridos, os montes e o majestoso Paraíba, de águas barrentas, todo semeado de ilhas e de rochas, orlado pela vegetação exuberante, onde as capivaras, ao nascer da lua, grunhem.

Conhecia aquilo tudo a palmo. O rio, quantas e quantas vezes o atravessara a nado ou em ligeiras pirogas de pescadores. Ali, a casa de uma fazenda; mais em baixo, uma palhoça. De vez em quando; baixando a cabeça, de olhos fechados, concentrava-se evocando senas de outrora, sítios familiares, ranchinhos, trilhas que percorrera, arroios em que se banhara.

Faltava alguma coisa naqueles campos... abria os olhos, punha-os a fito na paisagem, via-a fugir, perder-se. E o comboio avançava coleante.

Terreiro murado de fazenda, a casa ao fundo; a capela. Adiante o pasto coalhado de bois e, pequenino, devastado, em mato, o cemitério com um mausoléu de mármore denegrido.

Quando a locomotiva apitava o coração batia-lhe precipite e uma ânsia oprimia-o como se se lhe sustasse o fôlego.

À beira da estrada uma casinha de turma. Ipiranga!

Não tardava Vassouras, era a primeira estação. E o comboio diminuía a marcha. Boi na linha, de certo. Inclinava-se para olhar, mas a poeira era muita.

Numa volta viu a locomotiva — ia rápida, com o puxavante aos impulsos céleres. Passageiros levantavam-se reunindo a bagagem de mão, sacudindo a roupa. Por vezes, à margem da linha, atroava alegre vozerio. Tadeu olhava e via ainda mulheres e crianças que acenavam adeuses, logo desaparecendo na volta do caminho.

Outro cemitério, em minas como o primeiro. Esse, entretanto, quando ele partira, era florido e lindo, ajardinado. Os túmulos, quase todos de escravos, eram como canteiros. Outro silvo. Seria Vassouras? Ainda não. E espantava-se das mudanças que ia encontrando: aqui, ruínas; além construções, lavouras novas.

Grande telheiro quase à margem da estrada: ao fundo, a casa; gente a acenar. As Cruzes, fazenda antiga e riquíssima. Estava perto... dali à estação era meia hora a cavalo, em caminhos revessos. Pela estrada era um instante. Pomar. A casa entre os laranjais; no monte, além, os cafezais a eito. Novo silvo. Agora sim: era Vassouras.

E o comboio foi diminuindo a marcha. Gente saía para a plataforma dos carros, mulheres garrulas despediam-se, homens arrastavam latas, apressando-se, sacudindo-se. Finalmente a estação. Tadeu tinha os olhos úmidos e o coração ia-se-lhe apertando, confrangido e medroso, como se pressagiasse mágoas. E o comboio ralentava.

Crianças corriam para os vagões oferecendo frutas, pedindo as malas; estendiam os braços, seguiam a marcha lenta dos carros agarradas às janelas. Uma mulata velha, sentada no banco da estação ao lado de uma bandeja de café, olhava os passageiros com descorçoada tristeza. Tadeu, reconhecendo-a, pôs-se a chamá-la:

— Sá Emerenciana! ... Sá Emerenciana!

A mulata mirou-o muito e voltou o rosto. Ele, porém, logo que desceu à plataforma, como o comboio começasse a caminhar, dirigiu-se à velha tomando uma das xícaras na bandeja:

— Então, já não me conhece?

— Quem é o senhor? Indagou a mulata mirando-o muito.

— Ah! Não me conhece mais! ... Tadeu, filho de Manuel Fogaça, do Madruga.

— Seu Manuul!? Ah! Exclamou a velha de repente, pousando a bandeja no banco. Seu Manuel. É verdade! O que morreu debaixo do carro? Mas o senhor... é você mesmo...? Como é? Como é seu nome...?

— Tadeu.

— Isso mesmo! Exclamou espalmando as mãos nos quadris. Mas como você mudou, homem de Deus! E, sem transição: Você não era soldado?

— Era.

E de repente: Como vai mamãe?

— Sua mãe? Nhá Maria Augusta? Anda lá...

— E minha irmã...?

— Que é que tem?

— Onde está? Como vai?

— Está em Vassouras, mas fora da cidade.

— Não está com mamãe?

A velha mirou-o muito tempo e, ingênua, sem notar a angústia que se refletia nos olhos de Tadeu, sorriu:

— Então não sabe...?

— Não, não sei.

Encararam-se. Nesse instante, porém, a pequena locomotiva da Vassourense solavancou e Tadeu teve apenas tempo de precipitar-se no vagão, mas agarrado ao balaústre ainda inquiria, interrogava ansioso:

— Mas que é? Que é? Diga...

— Não, você vai para lá. Não sei, não... Adeus!

O trem seguia aos trancos, bufando. Tadeu, encolhido, nem sequer voltava os olhos para ver as casas conhecidas da estação. Ia preocupado com as palavras da velha: “Então não sabe...?” E o seu malicioso sorriso, e os escrúpulos em dizer a verdade. Luíza, longe da mãe... a expressão “anda lá!” Com que se referia à Maria Augusta... que teria acontecido?

Ao pagar a passagem olhou o condutor, a ver se era o antigo, o Gomes. Não, era um rapazola moreno, vesgo. Não conhecia um só dos passageiros, tudo gente estranha, como de outra terra. Concentrou-se indiferente à paisagem, com o pensamento num turbilhão em que se misturavam venturas e desgraças imaginárias.

Que teria acontecido? Como explicar o apartamento de Maria Augusta e Luíza? Por quê? Talvez a irmã se houvesse casado, tinha tantos pretendentes, tantos que a namoravam... e a mãe, com aquele gênio esquisito..., mas então por que não lhe dissera a velha, refolhando-se em tantas reservas?

Uma curva, o apito da locomotiva anunciando a chegada, muros de quintais, a torre da matriz, o casario.... Enfim...!

II

Ao descer na estação, onde amorrinhavam vadios em calaçaria perrengue, um menino abordou-o esbaforido indagando — se “queria hotel?” E inculcou-lhe um ali perto, apontando, a coisa de vinte passos, um maciço de verdura quase de todo encobrindo uma casa achaparrada no fundo de viçoso jardim, de onde subia um mastro com uma bandeirola que girava à laia de cata-vento.

Lesto, sem esperar resposta, o menino arrastou o baú, pedindo a Tadeu que o ajudasse a pô-lo à cabeça e partiu logo, meio curvado, a trote curto, arquejando ao peso.

O hotel, à sombra de espessa latada, era uma alegre locanda italiana, cheia de gaiolas chilreantes. Deram a Tadeu um quarto amplo com janela sobre o jardim. Ele pediu café, tomou-o às pressas e saiu.

A cidade pareceu-lhe mais branca, como renovada. Ao fundo, no alto da colina alcatifada de relva, solitário como um castelo antigo, impunha-se, soberbo, o palácio do barão do Amparo. As ruas estiravam-se muito limpas, em declive, quase ermas.

Um pequenote passou por ele assobiando, com uma samburá de legumes à cabeça. Parecia-se tanto com Damião... não! Não podia ser, o outro devia estar quase homem.

Andava com os olhos de um para outro lado, nas casas, nos raros transeuntes, detendo-os nos animais que passavam, como se os reconhecesse. Voltou-se ouvindo o cocoricó de um galo.

Sorvia a haustos o cheiro da terra. Tinha ímpetos de entrar nos negócios para rever conhecidos, camaradas do antigo tempo, mas a saudade da família recrudescia-lhe no coração como se agrava a sede na proximidade da água.

Não! Primeiro a mãe! Queria causar-lhe surpresa, surgir-lhe em casa, atirar-se-lhe aos braços, beijá-la, e se alguém o reconhecesse espalharia logo a notícia da sua chegada. Não! Primeiro ela e Luíza...

Mas caminhando não se continha que não parasse aqui, ali: diante de um cercado, em frente de uma casa, à esquina de uma rua, olhando enlevadamente, triste. Era por ali que costumava descer, morosamente, chiando, o carro do pai atochado de lenha. Além, a picada tantas vezes percorrida de manhã e à tarde, no tempo da meninice. Viviam ainda as boas árvores antigas e os espinheiros cobertos de flores nevadas orlavam a estrada seca e risonha. Cães passavam em corridas amotinadas, ladrando, rebolavam na erva, espojavam-se. Lembrou-se do Turco...

Que seria feito dele? Tropas desciam tilintando e a cantilena dos tropeiros despertava-lhe recordações. Noites ao luar nos terreiros das fazendas, ouvindo o burundum dos caxambus, o jongo monótono dos escravos, os descantes amorosos, ao som das violas, nos frios meses das festas, enquanto a garoa pulverizava as árvores, os caburés piavam agourentos nos topes dos velhos troncos e os sapos nos açudes tintangalhavam.

Iam, pouco a pouco, reaparecendo as cenas do passado.

Além era o caminho da Lagoa, onde vivera dias alegres, enquanto o pai, contratado, abatia as matas da vizinhança. Revia toda a fazenda com a sua entrada florida de alamandas — as senzalas em baixo; a casa num alto, ao fundo do jardim, sempre franca, e, na varanda, dois terríveis cães, Atrevido e Montezuma, guardando a entrada.

Revia maravilhosamente. Era a volta à mocidade, viagem rápida, fantástica, através do passado. E tão abstraído caminhava que foi preciso que um carreiro, que vinha trepado entre os fueros do carro, lhe bradasse de longe: — Eh! moço! Desviou-se, e os bois passaram a trote pesado e sacudido, arrastando o carro com a coberta de esteira, debaixo da qual viajava uma família negra.

Deteve-se devassando o interior do veículo onde aquela gente acomodava-se como em tenda. Uma das mulheres ia amamentando o filho; ao lado, encolhida, com a cabeça coberta por um lenço enrolado à maneira de turbante, uma negra, engelhada chupava o cachimbo de taquara.

A vida errante...

Saindo de um centro tumultuoso, sentia-se bem na tranquilidade da sua terra. Era a mesma, guardando os mesmos costumes, simples, patriarcal, modesta, bem com as suas árvores, enfeitando-se apenas com suas flores e satisfazendo-se com o lento rumor das águas e com o canto lírico dos pássaros. Reconhecia-a: não se havia modificado, recebia-o com a mesma feição imutável e serena. A gente apenas parecia outra.

Esses velhinhos que o saudavam seriam os homens do seu tempo ... ? Oh! como os anos lhes haviam pisado as faces...! E esses robustos moços alegres, ágeis, afanosos, seriam as crianças que ele havia deixado galgando montes, devastando ninhos? Nem uma só fisionomia das antigas. Ah! sim, aquele velho negro vagaroso, com uma bandeja pousada na palma da mão, o doceiro, esse vira-o pequeno. E não conteve um sorriso lembrando-se de certa partida que lhe pregara, furtando-lhe duas tigelinhas de geleia. E parecia estar a vê-lo, indignado, praguejando, a ameaçar a garotada com um bambu.

Uma badalada vibrou — o sino da terra. Era uma saudação, como se a igreja o tivesse reconhecido, apesar de mudado como estava, e o abençoasse do alto.

Parou comovido em meio da estrada, e, descobrindo-se, fez o sinal da cruz.

Andorinhas cruzavam-se no ar trissando e um balido de ovelha, gemente e saudoso, saía, de espaço a espaço, dentre as moitas, por trás de uma cerca de horta. O sol aquecia e o sino continuava a dobrar a espaços.

A casa de Nazário era ali perto. Parecia-lhe já distinguir, por entre as ramas, o telhado da ferraria, negro, como de ferrugem, sempre rumurosamente rodeado de pombos.

Àquela hora estava o velho, de certo, a malhar à bigorna e Damião ao fole da forja fazendo rugir assanhadamente a chama rubra. E sorria antegozando a estupefação dos dois quando o vissem.

Ocorreu-lhe, então, fazer como nas histórias que ouvira na infância: Entrar acabrunhado, dizendo-se peregrino, pedir água e comida, um canto para descansar a cabeça, até que um deles, reconhecendo-o, lhe caísse nos braços, com alvoroço comovido.

Passara a amendoeira; mais alguns passos e veria, com o mesmo olhar, a casa paterna e a tenda querida do ferrador amigo.

Encheu-se de ânimo, açodando os passos. Tanto, porém, que entrou na estrada larga estacou súbito, relanceando aturdidamente o olhar em volta, como duvidoso do que via. Estaria enganado? Não! Era aquela a estrada do Madruga... E a ferraria? Ali só havia ruínas, muros esburacados, pedras soltas, mato. Mas lá estava, sobre uma ferradura mal pintada, em letras quase extintas, o anúncio:

“Ferreiro e serralheiro. Ferram-se animais. ”

Esteve algum tempo olhando a velha casa, cuja porta, como se houvesse sido arrombada, metida dentro, tombara, mantida apenas por um dos gonzos, desconjuntado.

Despegado da parede um dos alisares pendia abrindo vão que as folhas daninhas atufavam. A soleira, coberta de beldroegas, com tortulhos nas fendas, esfarelava-se, podre. Telhas inclinavam-se sobre a calha desbeiçada e tudo, em volta, denunciava abandono.

E era aquilo a ferraria de outrora, o seu refúgio nas horas tristes, o lar de consolo e de amizade.

E Nazário? Que seria feito dele? Lembrou-lhe, então, que o ferrador, em horas de desânimo, queixando-se do pouco que ali fazia, mais de uma vez manifestara-lhe intenção de mudar-se para a Barra. Sempre era outra coisa — centro mais ativo, mais rico, cercado de fazendas. Talvez tivesse realizado o seu desejo.

Afastou-se com pena, ainda voltando-se, entristecidamente, para olhar as ruínas.

Ao chegar diante da casa paterna a sua surpresa subiu de ponto. Era outra, toda reformada, com a varanda mais larga, cheia de parasitas, o jardim saibrado, canteiros, alegretes, vasos de plantas e dois cães de porcelana de guarda à principal alameda.

Mas o que mais o deslumbrou foi um pombal, em forma de quiosque, junto à sebe de acálifas. Pombos arrulhavam no beiral, outros voavam em volta ou abalavam, com estalos de azas, desaparecendo no bambual.

Ia empurrar o portão de ferro, novo, mas deteve-se com receio de algum cão que por ali estivesse e investisse. Bateu e logo se lhe alvoroçou o coração, aguçaram-se-lhe mais os olhos fitos na varanda à espera de uma das criaturas que viviam, em imagem, na sua enorme saudade: Maria Augusta e Luíza.

Mas foi uma negrinha que apareceu à varanda, olhando-o de longe, buscando reconhecê-lo. Por fim desceu, atravessou lentamente o jardim, até o portão, encarando-o interrogativamente.

—D. Maria Augusta Fogaça...?

— Quem? Ele repetiu o nome. E a negrinha, acenando de cabeça, disse:

— Não é aqui, não.

— Como?! A dona da casa...?

A negrinha hesitou, mirando-o; por fim, resolutamente:

— Olhe, o senhor espere. Eu vou falar lá dentro. E foi-se a correr.

No breve tempo que ele ali esteve, ao sol, deu-se uma maravilhosa transfiguração sob o prestígio evocador da saudade — a casa volveu ao que era dantes; no jardim reviçaram as plantas do outro tempo, tornando tudo ao primitivo aspecto e figuras surgiram aqui, ali em atitudes que a memória fixara. E ele reconheceu-as comovido — tristes espectros! — O velho pai, em mangas de camisa e tamancos, detorando galhos secos com o podão, a mãe, lá ao fundo, perto do tamarindeiro, onde havia uma tina com bicame, com o avental côncavo de milho, entre as galinhas que a cercavam ávidas; Luíza debruçada à varanda; e, lá em baixo, perto das pitangueiras, o seu canto favorito, ele próprio, a brincar com o Turco que rebolava na erva. Dias felizes!

Mas a visão saudosa dissipou-se instantânea, a realidade retomou o seu domínio e ele viu à varanda uma senhora gorda, com uma criança que se lhe agarrava à saia.

— Entre! Disse em tom imperativo. Ele atravessou o jardim, direito à estada da varanda, de chapéu na mão. A senhora olhava-o com severidade.

— D. Maria Augusta Fogaça...?

— Quem?! Maria Fogaça...?

— Sim, senhora. A proprietária...

— A proprietária sou eu! Declarou a senhora com soberbo entono. Tadeu encarou-a espantado e, timidamente, perguntou:

— Mas esta casa não pertence a...?

— Esta casa é minha! Atalhou a senhora. O senhor procura, talvez, a mulher que a vendeu, a viúva...?

— Sim, senhora...

— Ah! Essa, segundo ouço dizer, vive lá para os lados do Fura-olho. E considerava-o altivamente, examinando-o dos pés à cabeça. Tadeu ainda hesitou. Por fim, tartamudeando desculpas, agradeceu e retirou-se.

Fora, não conteve as lágrimas. Seria possível que sua mãe tivesse tido coragem de desfazer-se daquela casa, cheia de tradições, testemunha das venturas e dos sofrimentos da família, único legado do morto?! Seria possível...? E pensava caminhando.

Restavam-lhe apenas as saudades — o ninho doméstico invadido por estranhos, a ferraria arruinada, nem um amigo; todo o passado extinto. E como achar os seus, se nem ao menos o endereço conhecia? Ele, com certeza, conservava-se no mesmo lugar em que o haviam deixado – o morto. Esse devia lá estar no cemitério, no seu túmulo, alimentando as rosas e os bogaris silvestres, esse não se arredara como os outros. Iria; vê-lo.

Em caminho, porém, atentou em certa velha que vinha, estrada fora, com uma trouxa à cabeça. Reconheceu-a prontamente: era a Eufrásia, que fora cozinheira em casa, no tempo do pai. Chamou-a. A velha negra voltou-se e, vendo-o parado, estacou hesitante.

— Então, Eufrásia? ...

A negra aproximou-se e, de repente, agachando-se, começou a balbuciar monossílabos, espantada, meio risonha, olhando-o:

— É vosmecê, nhô Tadeu?

— Eu mesmo, Eufrásia.

— Vosmecê! Pôs-se a rir alvarmente: Ah! nhô Tadeu. Vejam só...! De onde vosmecê vem?

— Do Rio, Eufrásia. E tu, como vais?

— Como velha, nhô. Vosmecê vem de vez?

— Pode ser. E de improviso:

— Onde está mamãe, Eufrásia?

— Ah! nhô. Sinhá anda aí... Tá morando no Fura-olho, mais Ludovina.

— Que Ludovina?

A negra fez um gesto rápido e sorriu maliciosamente:

Uma que veio do Desengano.

— E Luíza...?

— Essa anda lá para as bandas da Lagoa. E suspirou tristemente: Ah! nhô... mundo... mundo...!

III

Tadeu, que desconfiara das palavras da velha, vagas, misteriosas, como que dissimulando verdades tristes, quis logo verificá-las e, ainda que se sentisse fatigado, pôs-se a caminho, dirigindo-se pela indicação direito à rua Bonita, àquela hora deserta, ardendo ao sol. Ao alto rinchava morosamente um carro de bois empilhado de lenha e dois homens, conversando muito juntos, à sombra rala de uma árvore, davam vida àquele ermo de casas fechadas, que alvejavam ao soalheiro, quietas.

Uma voz apregoava ao longe em lamento e a espaços, como em ritmo, tiniam pancadas em ferro como gritos metálicos de araponga.

Passando diante da botica lançou para dentro o olhar curioso. Quantas vezes, no tempo do Serafim, entrara ali com receitas ou para comprar açúcar-cande!

Um velho escarrapachado, braços descaídos, a cabeça pendida sobre o peito, cochilava no banco, com um jornal sobre as coxas gordas, a ponta do cigarro pendurada dos beiços e, de costas à grade, voltada para a rua, uma mulher pálida, de grandes olhos tristes, com uma criança raquítica nos braços, esperava paciente.

Olhou-a bem e teve um sobressalto. O coração bateu-lhe forte, sôfrego. Passou. A alguns passos, porém, deteve-se em dúvida, pensando. Tirou um cigarro do bolso, acendeu-o, com o olhar no céu, que reverberava, cálido.

Teve um gesto vivo de resolução e voltou atrás parando diante do mostrador acumulado de frascos, caixas, bocais sortidos, aparelhos de higiene, rolos de tubos de borracha. Olhava sem ver, preocupado com a mulher. Adiantou-se até à porta.

Ela lá estava, imóvel, à espera.

De moreno pálido, magra, com os ossos estalando a pele, os olhos cavados, agasalhada num chalé de ramagens, que mais lhe definhava o teto, apesar da devastação precoce, conservava restos de beleza e viço de mocidade. E como lembrava Luíza! Olhava-a a fito, examinando-a.

A mulher atendia à criança que esperneava frenética agatanhando-lhe o colo. De repente, levantou a cabeça e deu com os olhos no homem que a contemplava. Franziu a fronte contrariada e, vivamente, em rabanada de amuo, deu-lhe as costas. Tadeu, para experimentar, disse-lhe baixinho o nome: “Luíza! ”

A mulher voltou-se de supetão, encarou-o a fito, e, caminhando até a porta, de olhos muito abertos, com o rosto em sorriso, exclamou expansiva:

— Gente! É você...! Ele sorriu, olhando-a em exame piedoso, desde a cabeça, mal penteada, até os pés calçados em botinas rotas, cambadas e cobertas de pó. Não ousou palavra. A criança choramingava agitada, debatendo-se.

— Quem podia imaginar! Você... E notava-lhe a magreza lívida, o acabrunhamento. Você tem estado doente? Ele afirmou de cabeça e, baixinho, para não vexá-la, exclamou:

— Mas que é isto, Luíza? Você assim ... Ela encolheu os ombros. O velho aprumou-se no banco, passou a mão pelos olhos, pigarreou atirando uma cusparada à rua e dirigiu-se a Luíza, perguntando: “Se já a haviam despachado? ”.

— Ainda não, seu Chico. Demora um bocado. O velho passou a grade e ficou ao balcão remexendo receitas, sempre a pigarrear, a tossir grosso.

— Vamos sair, segredou Luíza. E encaminharam-se para a travessa, quase em frente, por trás da Cadeia.

— Seguiam lado a lado quando Luíza perguntou de olhos no chão:

— Você ainda é soldado, Tadeu?

— Não. Dei baixa por doente. Tenho passado mal.

— Você esteve fora muito tempo...

— Estive... E você, Luíza? E mamãe? Baixando ainda mais a voz, apesar de não haver viva alma na rua, insistiu na pergunta: Mas como foi isso, Luíza?

— Ora!

— Você está casada? Ela não respondeu. Estás vivendo com mamãe? A irmã encarou-o, como se houvesse sido insultada:

— Com mamãe!? Eu! Deus me livre! Pararam. Mamãe...! Se eu cheguei ao que cheguei foi por causa dela. Deus não me castigue, mas mamãe...! Eu não quero falar. Você há de saber. Se me perdi, Tadeu, foi por não poder mais. Vivia num inferno. Comi brasas! Nem sei! Enfim... estou no meu canto. Se tenho, tenho, senão... Vivo perto da Lagoa, com um moço.

— Conhecido?

— Não, você não conhece. Não é do teu tempo. Veio do Pati.

— Quem é ele?

— Pintor, mas não trabalha mais porque as tintas estavam-lhe fazendo mal. É fraco, tem uma tosse de peito. Vivemos num ranchinho.

— E é bom?

— Coitado! Faz o que pode. Não tenho razão de queixa.

— E mamãe, Luíza?

— Não sei, nem quero saber. Atirou a cabeça em gesto de desprezo: Vive por aí, com um, com outro...

— Como! Exclamou o ex-soldado, de mãos postas. Mamãe!?

— Mamãe, sim! Que é que você pensa? Foi logo que você foi-se embora, uns dias depois. Uma vergonha! O primeiro foi seu Carrilho, depois...

— Seu Carrilho correeiro?

— Sim. E, naturalmente: Agora, com ele, ela já andava em vida de papai. Quanta vez...!

— Quê! Em vida de papai!?

— Sim, senhor. Eu sabia de muita coisa! Quantas vezes fui achar os dois conversando... quantas...! Papai é porque era bom demais. Tadeu baixou a cabeça, esteve um momento imóvel. Por fim perguntou num fio de voz:

— E Nazário?

— Anda por aí, coitado. E ajuntou friamente: Damião é que morreu!

— Damião!? De quê?

— Morreu em Mendes, questão de mulher. Mataram-no. Foi castigo... uma semana depois de ter fugido daqui levando quase tudo que o pai possuía. Teve uma rixa com um italiano que o coseu a facadas nas obras em que trabalhavam.

— E Nazário? Que faz?

— Anda por aí, trabalha nas fazendas, hoje numa, amanhã noutra. Não é o mesmo. Está bebendo que faz pena. Traçou o chalé que lhe escorria dos ombros magros: Você já viu mamãe?

— Ainda não. Vou vê-la agora. Está no Fura-olho, não é?

— É. Mas eu duvido que ela te receba. Você não imagina o que ela está! E acrescentou baixinho e rancorosamente: Volta e meia é presa. Bebe, e quando está assim é a boca mais suja deste mundo. Se eu te contasse tudo! Eu deixo, muita vez, de vir à cidade só para não me encontrar com ela. Tenho vergonha. Quando está tomada, ainda bem, passa, não me conhece, mas se está boa abre a cancela em cima de mim que é um horror!

— E você não tem pena, Luíza?

— Pena?! Pena de quê? Pena de quem tira dos cachorros para botar em cima de mim? Pena eu tenho de mim, que ando aqui sabe Deus como!

— Que tristeza, meu Deus! Exclamou Tadeu num suspiro. Quanta coisa! Papai... tão bom, coitado! Encostou-se à parede, inclinando a cabeça sobre o braço, a soluçar. A criança rezingava e Luíza, deitando-a no braço, desabotoou o corpinho fazendo saltar o peito branco, redondo, apojado.

Uma praça de polícia apareceu na travessa em intimidade com uma mulata. Luíza chamou o irmão:

—Tadeu! Ele limpou os olhos, às pressas, e virando as costas ao casal amoroso repetiu no tremor de um soluço:

— Tão bom! Luíza, para disfarçar, perguntou:

— Você chegou hoje?

—    Hoje.

— E vens de vez ou a passeio?

— Sei lá! Ficar aqui fazendo o quê? Nem casa, nem família... e toda essa gente que nos conheceu a rir de mim... sei lá! Deu dois passos na calçada e, de repente: A tua casa é antes ou depois da Jangada?

— Muito pra cá. É logo depois da Estiva, uma casinha amarela, com uma mangueira no terreiro em frente.

— E eu posso ir lá?

— Ora essa! Por que não? A casa é pequena, casa de pobre, mas... você pode ir.

— Ele não se aborrecerá?

— Aborrecer, por quê, gente? Você não é meu irmão? Só então ele atentou na criança que mamava a goles lentos, de olhos cerrados, quase a dormir.

— Menino ou menina?

— Menino. Anda doentinho, sempre com febre. Nasceu forte que fazia gosto. Creio que é dos dentes. Tossiu, uma tossezinha frusta, e disse, com sorriso pálido:

— Está vendo? Chegou a minha vez. À noite, tusso de rebentar. E já escarrei sangue, como você dantes. Encarou-o: E é verdade: Você ficou bom daquilo? Ele abotoou os beiços, em momo. E Luíza continuou: Trabalhos! Se eu não fizer pela vida não sei! Agora é que eu sinto a falta de papai! Aquele sim, coitado! Calados, com os olhos no céu, ficaram os dois no surto da mesma saudade, recordando o doce tempo em que viviam à sombra do homem forte e meigo que lhes achanava o caminho por onde seguiam brincando, sem tropeçar no mais pequeno seixo.

— Bem, declarou Luíza, em súbita resolução: vou ver o remédio e tocar por aí que são horas. Adeus. E estendeu a mão por baixo do chalé, com o braço encolhido para amparar o pequeno, que dormia.

Tadeu abraçou-a de leve.

— Então você já sabe. E olha, recomendou, se você estiver com mamãe não fale em meu nome. Não quero histórias comigo. Viva cada um para seu lado. Ela fala de mim: que sou isto e aquilo, que faço e aconteço. Melhor! E adeus! Encarou-o:

— E você já tem casa?

— Ainda não. Com certeza fico com mamãe.

— Com quem!? Exclamou Luíza, como escandalizada. Com mamãe!? Deu um muxoxo, estalando um risinho de escárnio. Pois sim! E bambaleou nos quadris: Você há de ver. E, já caminhando, em andar amolentado; Deus permita que eu me engane..., Mas qual! Enfim... Da esquina voltou-se risonha, acenando de leve ao irmão. E desapareceu.

Imóvel, de olhar fito, Tadeu pasmava da indiferença daquela criatura. Era a mesma. Nem o sofrimento conseguira dobrá-la: era o mesmo coração empedernido, a mesma alma insensível, mais amarga, talvez. Notara a reserva com que o acolhera, arisca, com medo, sem dúvida, de que ele se lhe fosse meter em casa, comer do seu pão, tomar um pouco do sol, pedir-lhe uma sede de água.

Arfou em hausto, como a encher-se de força para resistir, e caminhou vagaroso, de cabeça baixa, olhando a sua sombra alongada nas pedras que fulguravam.

Era um dia quente, cáustico, de sol duro. Passavam cães esfalfados, correndo rente aos muros e o silêncio, na claridade intensa e tórpida, impressionava como o das vigílias funéreas. Tadeu ardia em sede. Pensou em entrar em uma daquelas vendas, pedir água ou tomar um refresco, mas o receio de ser reconhecido pelos madraços, que passavam os dias na calaçaria de conversa e pinga, sentados nas sacas, escarranchados nos caixotes ou encostados ao balcão, comentando a vida da cidade, fê-lo desistir. Seguiu.

Os seus passos soavam na calçada como marteladas. Aqui, além-vulto ligeiro atravessava a rua; de longe em longe apareciam cabeças à janela, logo recolhendo-se afogueadas. A luz vivida ofuscava e acima dos telhados o ar vibrava em faiscações de pó de vidro.

À porta de um funileiro as amostras irradiavam fulgores e, lá dentro, de pernas abertas num tambor, um homem, em mangas de camisa, pintava a tampa de um baú de folha, a pinceladas moles que desabrochavam em rosas. Era o Justino, velho amigo do pai, parceiro de solo, cujas gargalhadas atroavam, aos domingos, a casa do Madruga. Depois o barbeiro, seu Prates. Lá estava ele, repoltreado na cadeira de rodízio, a ler o jornal, informando-se dos casos políticos para discuti-los com os fregueses. Logo adiante, a loja de Madama Tereza, com as novidades em exposição.

Na vitrina um manequim vestido de noiva espalhava a cauda sobre quinquilharias e caixas de essência, vidros de óleos e sabonetes. Brinquedos oscilavam em cordéis por cima do balcão acumulado de peças de chita, pilhas de chapéus, caixas e cartões com fazendas bordadas, enastradas de fitas.

Era ali que o pai costumava levá-lo a compras, escolhendo vestidos para a mãe e a irmã, enfeites; e, uma vez por outra, brinquedos para engambelá-lo. Madama Tereza, de touca e óculos, sempre com presentinhos de nada: cromos de caixas de camisa, papéis de histórias.

Pensou na Luciana, a filha da Madama, alta e fina, loura, de um louro fosco como palha seca, olhos muito grandes, muito azuis e sérios, por vezes tão tristes que faziam pena. Lembrou-se do dia em que a viu na igreja quando, com toda a família, acompanhou Luíza à primeira comunhão, com as alunas do colégio Patrocínio.

Tantas meninas, todas de branco, como um coro de anjos. Ela era a mais linda de todas e tão alva que o véu manchava-lhe o rosto, e tão meiga que, para ela somente Nossa Senhora sorria. E quando o vigário ofereceu-lhe a hóstia os cânticos vibraram mais alto, o som do órgão encheu de todo a igreja como em glorificação. Que bonito!

E ele viu-a surgir, pairar um instante e dissolver-se na luz... teria morrido?! Madama sim, lá estava, sempre irrequieta, com a sua touca de linho, a abrir peças de fazendas, a remexer na caixa de bordados, trêfega, borboleteando, rezingando com um moço de bigodes louros. E ela?

Parou à porta a pretexto de ver um chapéu de palha, mas os olhos andavam-lhe lá por dentro afuroantes, procurando a cabecinha dos lindos cabelos de ouro.

Madama falou ao moço que deu volta ao balcão e Tadeu, receoso de que ele o viesse interrogar, seguiu. Vozes grazinavam alegres. Era na escola pública. Que alarido! Ali andara ele. Conhecia toda a casa, toda! Revia os mapas, os quadros que ornavam as paredes, o armário dos livros, a talha no corredor. Bom tempo!

Saía de casa cedo, com a sacola dos livros e a merenda, ia encontrando colegas pelo caminho e brincavam. Quantas vezes, sacudido pelo Manduca, que morrera de febre, gazeara nos matos, com a funda e pedras, atirando aos ninhos ou galgando muros de chácaras no tempo das jabuticabas!

E as correrias assustadas quando boliam com um velho italiano, vendedor de vidros, que se arreliava com certa alcunha, injuriando-os ou arriando o tabuleiro em alguma porta para persegui-los a pedradas tendo, certa vez, deixado por morto a um deles atingido na fronte por um caco de telha... Bom tempo!

Uma badalada vibrou cheia e grave no silêncio. Meio dia!

Quantas recordações acordaram com aquele dobre! Toda a sua vida de outrora afluiu à tona da memória, flutuou um momento, remergulhando mais triste. Ficou, porém, como últimos destroços de naufrágio, a lembrança do dia do desastre, com o doloroso alvoroço em casa, a entrada do ferido, os cuidados, a morte, a vigília, o enterro... E o sino dobrava a espaços, lentamente.

Aquele, ao menos, estava em repouso, era o único que não sofria, adormecido, para o sempre, no seio da terra.

Ia passando pela venda onde servira como caixeiro. Lembrou-se do patrão, o velho Seixas, rabugento e avaro, sempre a arrumar as garrafas, a mudar as caixas, a experimentar os tornos das pipas acanteiradas.

Vivia com uma negra que lhe fazia a cozinha e lavava a roupa. Não dava esmolas e, lá pelas tantas da noite, com uma candeia e um pau, saía pé ante pé a correr a casa, a espionar os cantos do negócio, experimentando as gavetas, a ver se estavam bem fechadas, examinando os ferrolhos das portas, bradando, às vezes, a ilusões: “Quem está aí?”. Pobre velho! Morrera dias antes da sua partida. A venda passara a outro. Quem seria?

Viu um baixote, de bigodeira, pendurando à porta um penca de abanos. Seria aquele o novo dono? Não o conhecia.

Seguiu, mas a alguns passos deteve-se, como apresado, e ocorreram-lhe as palavras de Luíza sobre a mãe. Não! Não era possível! ... Tudo aquilo era mentira, vingança. Luíza era assim: quando tinha queixa de alguém, mentia, inventava, caluniava: Quanto sofrera ele...! Não era possível!

Chegara ao fim da rua Bonita. Tomou pela rua Formosa, a caminho do Fura-olho.

No largo, ao alto, ficava o cemitério com os seus grandes ciprestes e casuarinas. Voltou-se e esteve a contemplá-lo de longe, com melancolia. Mulheres subiam vagarosamente a rua íngreme com grandes trouxas de roupa à cabeça e um cavaleiro, desembocando do caminho do Morro da Vaca, atirava o animal a trote pelas pedras com garbo, teso e airoso na sela, o chapéu desabado sobre os olhos para protegê-los contra o sol. Tadeu pôs-se a descer cauteloso, picando os passos, na erva seca, sobre a qual os pés escorregavam como em estendal de limo e alcançou o caminho, estreito como picada em floresta, entre matos e barrocões, seguindo até chegar às primeiras casas: cinco ou seis casebres a eito, esboroados, entre moitas, num valo fundo.

Diante de um dos mocambos, deitado de bruços na relva, um mulato bexigoso fumava, de cotovelos no chão, o queixo nas mãos. Saudou-o indagando: “Se sabia onde morava uma senhora chamada Maria Augusta?”.

O mulato levantou a cabeça e, adernando de flanco, disse preguiçosamente:

— É ali. A segunda casinha contando de lá. A que está com a porta aberta. Ele agradeceu, encaminhando-se pela indicação.

Ia apreensivo, com o coração oprimido, respirando a custo, em canoeira, com as palavras de Luíza martelando-lhe os ouvidos. A porta estava efetivamente aberta e, lá dentro, uma cabrocha, em mangas de camisa, alta, escanifrada, girogirava cantando em dengoso falsete, a arranjar quinquilharias em uma mesa.

Era, de certo, a Ludovina, a tal do Desengano, companheira de sua mãe. Sentia-se-lhe nos modos livres, desmanchados, o traquejo dos contubérnios, o hábito inveterado de zangurriana e crápula. Tipo sórdido, repugnante de zabaneira surrada de vícios, pútrida, de olhos miúdos, muito requebrados, como dois bêbedos aos cambaleios. O peito brônzeo, ripado pelas costelas, à feição de persiana, tinha estigmas de sevícias e restos de escaras de úlceras. O carão escaveirado era largo, chato, com ressaltos de prognatismo. Fronte curta, vincada, boca rasgada, de lábios finos, secos, crestados, com um talho cicatrizado, cabelo refoufinhado, híspido como piaçava.

Tadeu parou à porta descobrindo-se cerimonioso. A cabrocha voltou-se com ar de enfado, medindo-o de alto, escarninha, e descaindo molemente de ancas, sacudiu a cabeça em aceno interrogativo, cuspilhando de esguelha:

— Que é?

— Dona Maria Augusta...? Não é aqui?

— É aqui, sim. Mas ela não está. O senhor quer alguma coisa?

— Desejava falar com ela.

— Ela saiu. Acho que foi na venda. Se o senhor quiser esperar, entre, não faça cerimônia. E, num lance de olhos, examinou-o da cabeça aos pés. Tem cadeira aí, sente-se, fique à vontade. Ela não pode demorar. Mas acrescentou: É verdade que, às vezes, quando acha prosa e gole pega de galho e fica o dia inteiro por aí. Enfim... Sorriu desdentada e babosa e, desnalgando-se em bambaleios de lesma, disse revirando os olhos: Com licença... E voltou aos arranjos.

Tadeu pôs-se a olhar o interior escuro do tugúrio que tresandava a arruda e mofo.

Sala estreita, chã, com a terra muito batida, reluzindo como encerada, aqui, ali recavada em côncavos. O teto, de telha van, com as vigas fuliginosas, como carbonizadas, estava colgado de flocos negros de picumã. As paredes esborcinadas, abertas em fisgas e luras, mostravam o barro seco e as ripas. Um feixe de ervas pendia de um prego ao lado de uma folhinha em cromo. A luz entrava por uma janela. Velha colcha de ramagens lufava encobrindo uma porta. Duas cadeiras de pau, caixotes e a mesa das bugigangas forrada por um pano de crochê encardido, com um despertador de níquel entre dois vasos de barro constituíam, por junto, toda a ornamentação. Um gato maltês, esgrouviado, foveiro ia e vinha, corcoveado miando, a esfregar-se pelos móveis voluptuosamente.

A cabrocha esgaravatou na parede tirando uma ponta de cigarro. Acendeu-a e, baforando, pôs-se a andar pela casa aos reboleios, cantarolando em resmungo. Debruçou-se à janela, a olhar, falou a alguém com muxoxos e risinhos e tornou, arrastando relaxadamente as chinelas. Por fim, lançando a um canto a ponta do cigarro, deu um sacalão à saia, repuxando-a à cinta, e disse a Tadeu:

— Ela não pode demorar. Eu vou. Fique à sua vontade. Com licença. E foi-se, direita à colcha que fazia de reposteiro à porta, levantando-a diante de si, e desapareceu, lançando uma exclamação:

— Gente! Que coisa! Você não tem vergonha, não, rapaz? Isto é hora de dormir?! Levanta da cama!

Uma voz estremunhada rouquejou, seguindo-se-lhe largo bocejo, longamente guaiado e estalejos de cama. Riso de troça casquinou, em guincho, cessando súbito e, depois de breve silêncio, a cabrocha cantou no falsete dengoso:

Quando eu morrer não chores minha morte...

E a voz roufenha grunhiu enfezada, respondendo-lhe a cabrocha com rinchavelhada cínica.

Tiniu louça e logo estrugiu o espoco de garrafa desarrolhada.

Tadeu levantou-se vagarosamente e foi ficar à porta, encostado ao umbral, assobiando baixinho um dobrado do batalhão. Sentia a sede mais árdega. Voltou-se para a porta do quarto com arrependimento de não haver pedido um copo de água. Relanceou os olhos pela sala. Riam alegremente fora: eram dois pequenos, em fraldas de camisa, brincando às corridinhas, galgando a barranca, descendo pelas rampas, rolando aos trambolhões na erva engalfinhados.

Mas um vulto apareceu na ladeira atraindo-lhe logo o olhar. Era uma mulher magra, maltrapilha, com falripas grisalhas esfiapando-se-lhe pela testa, esvoaçando ao vento. Trazia um embrulho muito agarrado ao peito. Vinha em andar incerto, às vezes lento, tateando o piso, ou lançando-se de arremesso como empurrada. Cambaleava, estendendo instintivamente o braço, embrulhando na barra da saia os pés calçados em sapatorras de homem e detinha-se arvoada, com risinho idiota, oscilando em equilíbrio para arremeter de novo.

Tadeu olhava a fito, atraído por aquela figura esmolambada, desgrenhada que caramunhava e dançarilhava ao sol.

Os pequenos fugiram para o alto da barranca e, lá de cima, como entrincheirados, riam-se daquela miséria repugnante. Por fim bradaram uma injúria e correram desaparecendo no vassoural.

A bêbeda estacou resmungando, às morraçadas ao ar; descaiu à frente, em desequilíbrio, e precipitou-se num declive indo de encontro a uma árvore. Pôs-se a mastigar, arrepanhando a saia rota e as pernas apareceram-lhe em gambitos amarelentos, como de marfim.

Tadeu espremia o olhar. Seria ela?! Arquejava sem ar, com o coração a martelar-lhe o peito. Quis sair-lhe ao encontro, examiná-la bem de perto, rosto a rosto. Não! Era mais baixa que sua mãe... E aqueles cabelos brancos...! Hesitava quando ouviu a cabrocha, que chegara à janela, dizer revoltada:

— Está aí ela. E comentou: Vejam só como aquilo vem... Diabo da gambá! Atirou uma cusparada à rua e, coleando com asco, reentrou no quarto.

IV

Era ela!

Ao defrontar com a casa tropeçou e teria caído se Tadeu não corresse pronto a ampará-la.

A mísera debateu-se-lhe nos braços, aos arrancos, regougando e, em repelão mais vivo, safou-se, caindo sentada na borda do caminho. Lentamente passou, repassou a mão esquelética pela boca limpando a baba e quedou cabisbaixa, a tossir, cuspinhando lerda. Pôs-se a coçar a cabeça às gadanhadas, com o rosto engelhado em ritos de enfezamento e, agarrando-se às ervas, levantou-se oscilante. Só então atinou com o homem que se conservava diante dela, de braços estendidos, acompanhando-lhe os movimentos.

E ele notava-lhe a devastação do rosto envelhecido, sulcado de rugas, mascarrado de manchas como equimoses. Os perigalhos do pescoço badalhocavam em badanas, as faces eram muxibas flácidas, a boca, em chanfra, esmoía visguenta, os olhos fechavam-se lhe entorpecidos. Tadeu falava-lhe baixinho, com piedosa meiguice, comiserado daquela decadência e penúria. Pobrezinha!

A desgraçada estropeava os passos, aos arrancos, descaindo-lhe pesadamente nos braços, sempre a resmungar frenética, bufando, por vezes, por entre as gengivas roxas, espetadas de arnelas negras, golfos de riso idiota. Chegando ao limiar da casa deixou-se tombar amolecida, com a cabeça enterrada no peito amarelo e ossudo, mal coberto de frangalhos, por entre os quais apareciam restos esfiapados do crivo da camisa. A cabeça ia e vinha, em ritmo de pêndulo e a baba, escorrendo-lhe dos cantos da boca, estirava-se-lhe em fio pendendo do queixo agudo. Tadeu contemplava-a comovido. Não se atrevia a dizer-lhe quem era, e para quê? Se a desgraçada mal abria os olhos.

Agachou-se e, tomando-lhe as mãos, pôs-se a chamá-la, e, para despertar-lhe o coração, murmurou, por fim: Mamãe!

Ela engrolou enjoadamente, cuspiu, alheiada a tudo, gesticulando a esmo.

— Então a senhora não me conhece, mamãe? Tadeu...

A velha repeliu-o amuada e, fincando os cotovelos nos joelhos, encravou o queixo nas mãos, parando o olhar em fixidez idiota. Mas um dos braços resvalou subitamente e, desequilibrada, a miséria pendeu sobre o filho, que a susteve:

— Espere, mamãe... ela encarou-o aboquilhando os beiços, mediu-o de alto, com desprezo e cuspiu, investindo com ele, desaforada:

— Mãe! Mãe de quem, seu diabo? Sai pra fora. Mãe... E arrepanhando os molambos para compor o colo: Eu não gosto de lambanças comigo, sabe? Você pensa que eu bebi, não é? Pensa? Mãe... vai perguntar à outra. Que é dela? Está lá no seu bem-bom, comendo, bebendo e botando barriga. Eu é que sei de mim! Não faltava mais nada... Mãe! Riu escarninho, cuspilhando. O outro foi-se embora. Quem sabe dele? Morreu... Mãe de quem? E em frenesi que a fez tremer, que a sacudiu em vibração de raiva: Mãe de quem?! Vocês todos são bons. Porcaria! Vá-se embora, homem; vá seu caminho. Não bula com quem está quieto. Ora... muito Boa...!

Tentou levantar-se e abateu de novo, sentada.

— Bebida... é só o que vocês dizem. E se eu bebesse, que é que você tem com isso? É com o seu dinheiro? Vá-se embora. Ele estendeu-lhe os braços.

— Sai daí, homem! Eu não gosto de histórias comigo, depois, depois... E monologando a acenar de cabeça: Mas já viram...! Um diabo que ninguém sabe quem é querendo tomar conta da gente. Ora não me faltava mais nada! Eu já fui bater na sua porta? Já lhe pedi alguma coisa? Que é que você tem comigo? Vá-se embora.

E arrastou-se de gatinhas, até a soleira da porta, sempre resmungando. Sentou-se desenrolando o pirotó para torcê-lo de novo... Mãe... E com ferocidade, encarando o filho, atirou-lhe, com afronta à sua própria maternidade, uma injúria vil.

Tadeu recuou diante da brutalidade como se um jorro de lama lhe houvesse golfado ao rosto, logo, porém, investindo, agarrou violentamente os pulsos de Maria Augusta sacudindo-a em assomo de indignação:

— Que é isto, mamãe! A senhora está doida?! Então isto se diz a mim, seu filho?! A senhora está doida!?

A bêbeda rebatia-se, coleava indo com a boca de uma a outra das mãos que a prendiam, tentando mordê-las. Ele deixou-a, com respeito religioso, arrependido da rebentina sacrílega.

Foi então uma surriada torpe de obscenidades, e cuspalhadas de afronta, e ameaças.

Ao palavrório desbragado com que Maria Augusta invectivava o filho, acudiu de dentro a cabrocha escandalizada e, aparecendo à porta, ameaçadora, berrou, de mãos nos quadris, pimpona:

— Que é isto! Que banzé é este aqui? Você não tem vergonha, seu diabo?! E, agarrando a bêbeda por um braço, com o que lhe esfrangalhou a manga do casaco, levou-a de rasto para dentro, como uma trouxa, tornando à porta, atrevida, para dizer a Tadeu, que ficara estatelado, em hebetismo:

— E o senhor? Que é que quer? Pois o senhor não está vendo o estado da mulher? Ora já se viu! Uma água suja assim na minha casa... eu não quero isto aqui, sabe? Se o senhor quer falar volte quando ela estiver boa. E, com visagem de nojo, dando de ancas, murmurou: Um homem moço, atrás de uma corumba dessas e, de mais a mais, fedendo a cachaça que não se pode...! E deu-lhe com a porta na cara.

Tadeu ainda ali esteve como arraigado ao solo, ouvindo as descomposturas da cabrocha, que ameaçava Maria Augusta de a pôr na rua. “Fosse coser a mona onde quisesse. Se tinha homem, que se arranjasse. Bêbeda não as queria ali!”

Tadeu atravessou lentamente o caminho, subiu à barranca. Lá de cima ainda voltou-se para olhar a casa; e seguiu. Ia indo, em atordoamento que lhe obscurecia a vista, quando ouviu falar: “Então? Não era lá?” E deu com o mulato que lhe indicara a casa, ainda refestelado na erva, fumando. Respondeu:

— Sim, senhor. Era lá mesmo. Obrigado.

Enveredou em trilha erma, cavada entre barrocães entulhados de lixo, com raízes enormes espigando da terra. Sentou-se num talude e, cabisbaixo, fumando, ficou a pensar.

A seus pés duas filas de formigas iam e vinham aforçuradas, carreando achegas; cigarras, nos ramos altos, chiavam em rangido perene como de serras finas. Um cão passou desconfiado, olhou-o e deteve-se adiante num monturo. De repente, levantando a cabeça, latiu e foi-se como espantado, desaparecendo, sempre a ladrar.

Ele sacudiu penosamente a cabeça e lágrimas rolaram-lhe dos olhos na terra seca e poenta onde brincavam sombras leves. Pôs-se a arrancar ervagens: tirava-as do chão duro, sacudia-lhes a terra das raízes e atirava-as longe. “Mamãe...! É verdade!” De repente, cruzando impetuosamente os braços, de cabeça a prumo, perguntou como se interpelasse as árvores: “Pois então mamãe...!?” Olhou em volta, no receio de que alguém o ouvisse, e continuou:

— Em três anos acontecer tudo isso! Antes eu não tivesse saído! Tão acabada! Deu de ombros. Não podia compreender tamanha catástrofe. Coitada! Suspirou levantando-se. E foi-se devagarinho.

Todos os aspectos, que a esperança fazia risonhos, modificaram-se aos olhos de Tadeu: — o céu, com o seu azul deslumbrante, tornou-se-lhe como de chumbo e severo; a terra, virente, pontilhada de boninas, fez-se, de improviso, lúgubre; as árvores, até então airosas, todas lhe pareceram languidas e definhadas, murchando como em morte lenta. A luz do sol era doentia, as sombras muito negras, como lutuosas. E o coração batia-lhe pressago, adivinhando maiores desgraças. Sentia medo, como se fosse em noite erma por sítio mal-assombrado.

Ao avistar vulto à janela, ainda que nem as feições lhe distinguisse, sentia-lhe o escárnio em disfarçado sorriso, o comentário irrisório da degradação da sua casa, da miséria em que descaíra a sua gente, dantes benquista na cidade, com relações até nas principais famílias, visitando-as, recebendo-as, indo-lhes às festas.

Quantas vezes acompanhara Luíza a bailes aqui, ali, até ao Colégio Alberto Brandão, e vira-a em grupos de moças, suas condiscípulas, do colégio Patrocínio, ou dançando com rapazes de nome, como o Alvarim Costa, filho do deputado. E agora?!

Homens que apareciam à porta de negócios se, por acaso, o olhavam indiferentes, logo lhe parecia que o estavam ridiculizando e disfarçava vexado, baixando a cabeça, puxando o chapéu à frente, atravessando a rua.

Às vezes só para evitar encontrar-se frente a frente com alguém, que vinha na sua direção, dobrava esquinas. E lá ia, torturado pela ignomínia.

Pairava silêncio cálido de sesta: uma ou outra voz no interior das casas, choro de crianças, sons amortecidos de piano ou, ao longe, dolente, algum pregão de negócio. De quando em quando estalos de azas, de pombos que infletiam em voo através da claridade ardente.

De súbito uma gargalhada estrondou como afrontando-o. Levantou de golpe a cabeça e viu à porta de uma loja amostras de selaria, pelegos, carneiras e meios de sola, maletas, bolsas e, expostos em envidraçados armários de mesa, jaezes que reluziam, chicotes de punho de prata, facas, carteiras, logo reconhecendo a casa onde fora tanta vez a mandados do pai. Era a do Carrilho, que Luíza denunciara como o causador de toda a sua desventura, o primeiro que, ainda em vida do pai, introduzira a infâmia no seu lar.

E lá estava ele, nada mudado, sempre de branco, com os grandes bigodes arrebitados, a rinchavelhar, saboreando anedotas picarescas ou a contar façanhas com arremessos dos gadanhos cabeludos, impando o ventre boleado.

Lá estava ele, num grupo de tipos aboleimados, dos tais que passam os dias em cavaqueiras salafrárias tisnando honras, cada qual mais viperino e torpe na difamação, apostados em gabolices, denegrindo, ultrajando caluniosamente por vaidade canalha.

E a gargalhada que o surpreendera, ainda que os homens, entretidos no fundo da loja, não o pudessem ter visto, logo lhe pareceu alusiva ao seu caso, à desonra dos que arrastavam na lama o nome do que lá estava debaixo da terra.

Tudo, instantaneamente, esqueceu com a lembrança enternecida do morto. Pobre dele! Posto que o não pudesse ver, sentia-o. Ainda era ele que o amparava, que o consolava. Toda a cidade estava cheia dele: as pedras guardavam-lhe os vestígios dos passos, havia ainda no ar o cheiro do seu suor, o rumor da sua voz, por vezes a sua sombra tingia nas pedras a claridade quente.

Voltou-se parecendo-lhe ouvir lento chiar de carro e estalejar moroso de patas de bois nas pedras.

Aquele sim! Era só para a casa, para a sua gente que vivia, mourejando desde o escuro da madrugada até à noite, ao sol e à chuva, sempre alegre, querido de todos por seu gênio franco e jovial; detendo-se à porta dos negócios, de prosa com um, com outro, beberricando aqui, contando um caso acolá, esmoler, paternal com todas as crianças, até piedoso com os animais. E todos o acolhiam com amizade.

Quanta vez vira o Dr. Lucindo estacar a bestinha para conversar com ele; o Dr. Zamith tratá-lo de igual para igual, estendendo-lhe a mão, batendo-lhe no ombro; o vigário chamá-lo, entrar com ele na sacristia...

E os que o procuravam em casa, muito íntimos, principalmente em vésperas de eleições, porque ele dispunha de grupo seu, fiel e decidido, gente que votaria à bala se preciso fosse. Nesse tempo a casa do Madruga era feliz, havia fartura e honra, alegria e virtude. E, à noite, principalmente no inverno, com todas as janelas fechadas, os leitos prontos, altos de cobertores, era agradável o serão na sala de jantar, antes do café com leite e biscoitos. Toda a família reunida em volta da mesa, à luz da lâmpada belga, o Turco estirado junto do sofá, com o focinho entre as patas, a conversa sussurrada, às vezes uma história de príncipes e fadas contada pela Andreza. E lá fora o vento a gemer nas árvores, a chuva a jorrar estrondosa ou cantos aviolados embalando docemente o silêncio em noites de luar. Esses episódios rastilhavam-lhe em relâmpagos na mente, logo, porém, a realidade reaparecia negra, acabrunhadora, trágica como a escuridão da tormenta depois do afuzilar efêmero.

Quando deu por si estava na estrada do Madruga, onde já estivera de manhã.

Como seguira até ali? Atração da querência: levara-o a saudade, instinto conservador, raiz da alma que, quanto mais o pensamento anseia pelo futuro mais se arreiga e aprofunda no passado.

Parou aturdido, ao sol; olhou em volta, orientando-se e reconheceu, à distância, a velha mangueira da sua casa, frondosa, dominando todas as outras árvores com a sua copa imensa, verde escura, quase negra. E ali, aquela ruína fuliginosa, como restos de um prédio incendiado? Era o que restava da ferraria de Nazário.

O mato crescera livremente em volta, com ímpeto de assalto, entaipando o pardieiro. Das paredes encarvoadas, fendidas de alto abaixo, abertas em frestas e buraqueiras, expluíam ervagens, pendiam nastros e filamentos. O telhado era matagal. Vendo uma vereda batida, entrou por ela indo ter ao fundo.

Tudo era ali maninho — o carrapateiro fechava em verde o terreno, a parietária cobria densamente os muros. Trechos de terra negra enodoavam o agreste. Farfalhando ríspidos nas folhas lagartos esgueiravam-se ou entaliscavam-se nas paredes e, triste, lúgubre, de espaço a espaço, uma rola gemia na espessura brava.

Tadeu decidiu-se a entrar.

O sol, descendo pelas abertas do telhado, palhetava de ouro o chão lobrego. Lá estava a forja esboroada; a bigorna no cepo parecia ensanguentada de ferrugem. Uma esteira enrolada e trapos; a um canto uma lata de manteiga com restos de comida, uma garrafa com um cotó de vela e velho paletó num prego, à parede, eram indícios de habitante. Esteve a olhar. De repente como que aquilo animou-se: o fogo brilhou, o malho tiniu, mas foi ilusão instantânea, ficando apenas no silêncio persistente zinir, como de inseto que se debatesse preso. Encostou-se ao cepo da bigorna e a zoeira insistia, cada vez mais ríspida, irritante. Olhava aquele chão de oficina, aquelas paredes enegrecidas de fumo, esfuracadas em gretas, abertas em rombo, com os tijolos deslocados, bambos, descobrindo o embrechado das ripas quando, súbito, se lhe afigurou introvertidamente a sena torpe do Fura-olho.

Sentiu o coração inchar-lhe no peito, faltou-lhe o ar, as artérias das têmporas latejavam-lhe entumecidas, e sempre o zinir enfezante dentro dos seus ouvidos como canto de grilo em lura.

Saiu para a estrada fugindo àquele silêncio de assombramento, pondo-se logo a caminho em passo de fuga. Passava indiferente a tudo, em automatismo airado, até que parou, olhando a fito, olhar vidrado, extático, de cego, estatelado à cancela da locanda em que se hospedara, quando lhe bradaram de dentro, sem dúvida por lhe haverem tomado a imobilidade atônita por hesitação de dúvida:

— É: aqui mesmo. Entre!

Estremeceu à voz que o chamava e entrou tímido e, vendo gente na sala, foi-se de cabeça baixa, direito ao quarto. Trancou-se por dentro e, ao ver uma moringa à mesa da cabeceira, a sede, que se lhe remitira, reacendeu-se mais viva, a estalar-lhe a garganta. Encheu o copo, bebeu-o de um trago, sôfrego; encheu outro, mas, ao levá-lo à boca, as lágrimas rebentaram-lhe dos olhos.

Sentindo-se como estrangulado, deixou apressadamente o copo, levando em ânsia a mão ao peito e, com os ouvidos zoando em estrídulo, atirou-se de bruços sobre os travesseiros.

Vencido pela fadiga assim mal descaiu na cama adormeceu pesadamente. Acordou tarde, já com o escuro e, logo que abriu os olhos, o zinido recomeçou a rumorejar-lhe aos ouvidos como se houvesse trazido das ruínas que visitara o ruído das vozes crebras dos insetos. Levantou-se guiando-se por uma claridade enevoada que entrava pela janela.

A noite era fria, límpida, estrelada. Uma voz cantava docemente na sombra do jardim balsâmico.

Naquele recolhimento beato da natureza a alma sentia-se mais livre, via mais claro que os nictalopes e, debruçado sobre o sossego, o espírito do mísero recapitulou todo o passado com a celeridade com que a luz percorre o espaço imenso.

Sentia a indiferença da vida, vendo-se ali sozinho, hóspede na terra em que nascera, respirando o mesmo ar que a sua gente respirava, sob as mesmas estrelas de outrora, tão impassíveis na desventura como o haviam sido na fortuna. Ouvia vozes estranhas, em língua que não era a sua e risos e tartareios infantis.

Estava ali, não em um lar, mas em um pouso onde nem sequer o conheciam. E Nazário? Ficou a olhar o céu enternecidamente. Por fim recolheu-se, acendeu a vela, lavou o rosto e, com um cigarro entre os dedos, encostou-se à cama, inerte. Mas bateram à porta, abriu-a timidamente e viu o menino que o trouxera da estação.

— O senhor não quer jantar? Sem responder acompanhou-o à sala, sentou-se à mesa. Como não havia outro hóspede atreveu-se a conversar com o menino, que o servia, informando-se das novidades da terra, de pessoas e o rapazelho respondia muito gárrulo, fanfarreando: “Conhecia tudo desde a Barra até o Pati. Batia aquilo a pé, de olhos fechados. ” Quando Tadeu lhe falou em Nazário o pequeno sorriu, exclamando:

— Ahn! O Peleguêto... quem não conhece! Mora no Madruga, na casa velha, com os bichos. O senhor passando por lá de noite dá com ele, às vezes caído na estrada. Já escapou de morrer debaixo de um carro de bois. Está gira, coitado! E, ainda por cima, bebe. É cada tiorga..., mas não faz mal a ninguém. É um pobre!

— Mas está lá todas as noites? Perguntou Tadeu mexendo lentamente o café.

— Pois então! Se é ali que ele mora. De vez em quando desaparece por aí, trabalhando, mas assim que arranja uns cobres é aquela certeza: volta a cair na cachaça. O senhor conhece ele?

— Conheci noutro tempo... O menino encostou-se à mesa e encarou-o perguntando, por fim admirado:

— Conhece mesmo?

Tadeu acenou de cabeça, acendeu o cigarro, tomou o chapéu e saiu.

V

Noite linda! O luar abria-se amplo e sereno caleando as casas, estendendo-se nevadamente pelas ruas, forrando as colinas como de gaze tênue. As folhas das árvores cintilavam, e, longe, tudo era alvor de mármore como se toda a cidade com o seu casario, os seus campos e outeirinhos fosse um só monumento.

Grupos gárrulos de moças passavam a caminho da Matriz, para o mês de Maria. As casas respiravam pelas janelas abertas ao encantamento da noite e sentia-se em tudo o prestígio suave daquele filtro celestial pulverizado em névoa luminosa.

Tadeu seguia vagaroso, cabisbaixo, olhando a própria sombra, muito negra na claridade nívea. Ao chegar à estrada do Madruga estremeceu em súbito arrepio. O peito ardia-lhe. Rápido levou a mão à garganta sentindo-a exsicada, áspera, pruente. Tossiu de leve e estacou de golpe, sustando a respiração ao pungir de instantânea agulhada varando-o do peito às costas. E logo receiou o sangue, atribuindo a crise que o ameaçava à imprudência que cometera deitando-se suado, de costas para a janela aberta.

A noite esfriava. Levantou a gola do casaco e foi indo, apreensivo.

A estrada do Madruga parecia lajeada. Os grilos faziam um concerto estrídulo, bacuraus voejavam mansos, em alores frouxos, piando. Uivos de cães entristeciam lamentosamente a noite alva.

Vozes grazinavam no silêncio. Surgiu um grupo na claridade — roceiros que vinham ao Mês de Maria. Tadeu cruzou com eles, houve um murmúrio de saudações e as vozes foram abrandando, perderam-se e o silêncio fechou-se de novo, com os pequeninos ruídos dos insetos e o palpitar suspiroso dos ramos meneando à aragem.

Tristonha saudade subiu-lhe do fundo da alma. Aquela noite lembrava-lhe outras de igual beleza e doçura, lá longe! No terreiro do rancho pequenino, quando Maria Bárbara, com a cabeça ao seu ombro, apertando-lhe, de leve, as mãos, que aconchegava ao colo, cantarolava baixinho, de olhos semicerrados. Em baixo o rio murmurava faiscando ao luar e os caburés nas árvores rolejavam agourentos. Que saudade!

Lentamente uma sombra atravessou a estrada desaparecendo nas ruínas da ferraria. Seria Nazário?! Apressou os passos, mas ao chegar ao pardieiro tudo era quietação deserta. Deteve-se à escuta, parecendo-lhe ouvir um canto triste, em regougo. Meteu-se pelo mato, através da folhagem fria. A voz continuava, lúgubre. Tantos, porém, eram ali os grilos em concerto que parecia que todas as folhas guizalhavam. Estacou procurando divisar no escuro.

Pigarrearam. Logo em seguida a voz roufenha perguntou:

— Quem está aí?

— Eu, Nazário.

— Eu, quem?

— Tadeu. Um vulto adiantou-se, destacando-se na claridade entre as folhas largas e prateadas dos carrapateiros. E insistiu:

— Quem é?

Os dois homens acharam-se frente a frente. O ferrador inclinou-se com a mão em pala diante dos olhos.

Estava em mangas de camisa, com um velho chapéu de palha enterrado na cabeça. A barba, crescida e intonsa, asselvajava-lhe o rosto. Descabia tremulamente sobre as pernas moles, curvado, olhando a finco.

— Sou eu, Nazário. Tadeu. O velho aprumou-se ágil, de arranque e, reconhecendo-o, abriu expansivamente os braços acolhendo-o ao peito, a apertá-lo, em comoção que o abalava:

— Ó rapaz! ... Podia lá imaginar!? Mas então... que foi isto? Quando chegaste? Afastou-o de si, pelos ombros, para examiná-lo à vontade. Estás magro, que diabo! E com esse cabelo assim rente..., mas então chegaste hoje...?

— Hoje. E vim logo aqui, e fiquei espantado...

— Ah! Sim. Isto está a cair, como o dono.

— Disseram-me no hotel que eu te encontraria à noite. Jantei e vim logo.

— É... E olhava-o anediando lentamente a barba longa. Apertou-o, de novo, nos braços silenciosamente. Depois, voltando-se a colear, de cabeça baixa, convidou-o a segui-lo.

— Entra. Há ainda aqui um canto agasalhado, onde durmo. É a minha sala de visitas: além do sol e da lua és tu o primeiro que lá entras. Não há luxo, comentou com risinho leve.

Agachou-se remexendo, raspando o chão, às apalpadelas. Riscou um fósforo, acendeu o côto de vela espetado na garrafa e, levantando a luz, contemplou o amigo.

Foi de espanto e piedade a impressão que reciprocamente tiveram os dois homens. Não disseram palavra e o ferrador, pousando a garrafa sobre um tijolo, sentou-se encolhido. A luz tremia fazendo bailar as sombras.

— Pois é verdade, rapaz, aqui estou eu. É o que vês... quantos anos, hein! Três, não? Três anos...! Tirou o chapéu e os cabelos brancos espalharam-se enfuriados, rolaram-lhe pela testa chegando-lhe quase aos olhos. Deixaste a farda ou vens licenciado?

— Não. Dei baixa por doente.

— Ah! Sempre me pareceu que não tinhas lombo pra farda. E vens para cá? Tadeu fez um gesto de indiferença e, inclinando-se para o ferrador, perguntou baixinho, comiserado:

— Mas como foi isso, Nazário? Mamãe... Luíza...? O velho deu de ombros, com abandono:

— Desgraças... que se há de fazer? Tua mãe, meses depois da tua partida, andou por aí a dar cabeçadas de todo o tamanho. O véu de viúva serviu-lhe de capa para muita pouca vergonha. Vendeu a casa a um tal Venâncio, um que foi barbeiro na Barra, meteu-se nos cobres e tocou-se para o Pati, mais a pequena, que nos saiu uma bisca de marca. Por lá andou a fazer o diabo. Voltou um ano depois magra como um carapau e rosnou-se por aqui que ela entregara a pequena a um fazendeiro. Histórias! Luíza deixou-a para meter-se com um tal Feliciano, sujeito de baralhos e jaburus, que até lhe batia. Hoje vive com um rapaz, boa coisa, mas doente. O pobre de Cristo anda por aí a deitar os pulmões pela boca. Não vai longe. Já as viste?

— Luíza, disse Tadeu.

— E a velha? Ele baixou a cabeça calando a verdade. E o ferrador aconselhou:

— Homem, é melhor mesmo que a não vejas. Deixa-a lá! Se ainda lhe pudesses dar remédio... Enfim... Eu, é o que vês. Espero que chegue a minha hora, que vem devagarinho e parando em todas as desgraças. Damião morreu...

— Luíza contou-me.

— Pois é assim. Voltas do mundo, meu rapaz. Que se lhe há de fazer? A gente vai nelas como as folhas nos remoinhos do vento.

— E que faz você agora?

— Eu? trabalho por aí, à enxada. A terra começa a comer-me em vida. E olha que é mais dura que o ferro, isso é, digo-o eu. Ando por essas fazendas capinando como um negro. Quando não posso mais, arrio. E isto vai indo assim até que, um dia, acabe. O que não quero é que me aconteça o que está acontecendo à casa; isso, não! Não imaginas como me dói vê-la desmanchar-se aos poucos: hoje um tijolo, amanhã uma viga... Riem-se de mim. Troçam-me porque bebo... Deu de ombros. Soubessem eles! O que eu quero é não pensar, sabes? não pensar. Enquanto trabalho, na canseira da enxada, vai tudo muito bem; mas quando me deito nestes trapos ou aí por fora... eu é que sei!

Calou-se alisando lentamente a barba.

— E tu? Que vens cá fazer? Isto está que é uma miséria. Fizeste mal em vir. Vai-te embora! Eu é porque já não posso comigo, senão... Estou aqui como num cárcere e as correntes que me prendem são mais fortes do que grilhões de ferro. Sei lá!

Tadeu ouvia-o calado, com pena e, como o velho inclinasse a cabeça, com os braços descaídos com desfalecimento, ele bateu-lhe no ombro carinhosamente:

— Pobre Nazário!

— É... Já agora tanto me faz isto como aquilo. Quando um homem está metido na água que lhe importa a chuva! A maior desgraça que me podia acontecer já aconteceu, o mais... não me faz mossa: são como calhaus atirados a uma pedreira. A vida é isto, rapaz: uns lá em cima, outros em baixo. Que hei de fazer? Enquanto tive forças nos braços e o filho vivo dei o que podia à forja, bem sabes. Muito ferro verguei com estas mãos, hoje...! É natural. Tu, não: deves voltar. Vai-te embora. Aposto que já te disseram por aí que ando sempre a cair...?

— Não...

— Ora, não! Aqui não se diz outra coisa; até os fedelhos fazem caçoada de mim. Já até me puseram um nome. Atirou a cabeça em gesto de abandono. É assim, meu rapaz. Ruínas são ruínas. Bebo. Mas olha que não é por vício, isso não é. Bebo, como se tomasse remédio para uma dor muito forte. Não faço mal a ninguém, vou indo cai aqui, cai ali com o juízo fora dos eixos... E é assim. Quando adoeço, sei o caminho da Misericórdia. Ponho-me para lá, chego à porta, bato, atiro-me numa cama e lá fico. Ali, sim! Ali é que é... ! Sozinho, dias e dias, a olhar o teto, não imaginas como tudo me sobe na saudade. É um desespero! Sofro mais com as lembranças do que com a doença. Lá a gente é boa, quer-me bem. Até já me quiseram tomar para jardineiro. Eu é que não quis. Preciso disto, desta tristeza. Estou aqui como a velar defunto.

— Pobre Nazário!

— Pois é assim ... A gente, perto, não dá pelas mudanças, precisa sair algum tempo para senti-las à volta. Eu fui descendo aos poucos; tu rolaste de alto. Deves estar com o coração doído. Imagino! Mas tem coragem, nada de desanimar. É preciso seguir para diante.

Levantou-se. Estava descalço.

— E onde comes, Nazário?

— Ah! Isso de comida há sempre. Nesta terra não se morre à fome. Como por aí. Todos me dão. E, vendo Tadeu relanceando o olhar pela ferraria, disse:

— Estás a ver a casa. Lembras-te? A forja ainda aí está. Olha a bigorna. Às vezes ponho-me aqui a malhar à toa só para ouvir o som do ferro. Mas logo o pequeno aparece-me, vejo-o, ouço-lhe a voz, sinto-o perto de mim. E suspirou caminhando airadamente, a sacudir os braços, como se repelisse visões. E disseram que eles não voltam... Só quem os não perde é que os não vê. Já me quiseram comprar este terreno. Não! Isto é sagrado. Ha neste chão muito suor e muitas lágrimas. Enquanto eu for vivo outro não chama seu a este buraco. Voltou-se de repente: Sabes quem está ali enterrado? O Turco, o teu cão. Morreu-me aqui em casa. Apareceu-me um dia cambaleando, babando como se estivesse danado. Estive vai, não vai, a atirar-lhe com o malho em cima, mas o coitado deitou-se, a olhar-me tão triste, sacudindo a cauda que eu... sei lá! Acabou aí. Foi o pequeno que o enterrou. Lá está. Ah! Meu rapaz, foi-se tudo... tudo! Só ás árvores melhoram com os dias, os seus cabelos brancos são folhas verdes. Quanto mais envelhecem mais lindas ficam e mais viçosas. Onde estás?

—Num hotel, perto da estação.

— Ah! Sei. É de um italiano, que foi colono do barão de Massambará. Chama-se Giordano. Vamos lá para fora. A noite está linda!

Apagou a vela e saíram. Caminhando juntos, numa só sombra, Nazário disse de repente:

— Olha lá a tua casa. Está que é um gosto. Dá tudo.

— Eu não te dizia! Exclamou Tadeu.

— Pois sim! Mas quantos homens imaginas que tem ali o barbeiro? Seis latagões. E querias, sozinho, dar conta de tudo. Estás enganado. A terra não é o que se pensa. Se há força para domá-la presta-se a tudo, senão...ai! De quem se mete com ela. Eu que o diga!

— Antes eu tivesse ficado! Suspirou o rapaz. Quem sabe se mamãe... O ferrador resmungou:

— Ora... E voltou a falar da terra: Está uma beleza! Hás de vê-la de dia ao sol. Eu, é porque já não tenho apego à vida, mas quando olho para isto e comparo comigo, com a minha miséria, tenho inveja.

Iam vagarosamente ao longo de uma sebe de espinheiros em flor. O luar abria-se mais alvo, tudo esplendia em clarão marmóreo e o silêncio crepitava em soídos misteriosos como se invisíveis seres andassem na própria luz, em pólen, cantando nupcialmente o epitalâmio da natureza.

Os dois homens manchavam a serenidade lúcida. Pararam e, como Nazário se achegasse da sebe atraído, talvez, pelo doce perfume, um cão investiu ladrando.

— Vamos, que os cães já nos estão enxotando. E prosseguiram devagar.

O ferrador continuou com expressão dolorosa:

— Quando me chegou a notícia da morte de Damião, não sei que se passou em mim. Fechei a porta da casa e saí. Andei lá pela Barra, vi o rapaz, levei-o a enterrar... calou-se um momento, continuando, em voz entrecortada e surda, como se lhe subisse muito do fundo do coração, aos pedaços:

— O cemitério, tudo aquilo... foi como se eu visse pela primeira vez a morte. Enfim... tomei para cá outro homem. Então pesaram-me os anos, embranqueci da noite para o dia, o sono fugiu-me dos olhos, os dias esvaziaram-se, como se tudo tivesse acabado para mim. Uma manhã, ao acordar, dei com o sol à minha cabeceira, parecia uma chapa em brasa das que eu retirava nas tenazes da forja que ele afoleava, o pobrezinho... sabes tu? Era a primeira telha partida. Nesse dia começou a ruína da casa. Tudo está na primeira brecha, no primeiro tijolo que cai, na primeira telha que se parte, se a gente não entra com o reparo a tempo, vai-se tudo. Tal qual como na vida de um homem: um erro, às vezes um descuido é quanto basta para desmantelar honra, fortuna... é assim. Aqui me tens como tronco seco...

— E eu, meu velho!

— Ah! Tu... Tu és moço, tens a esperança que é força. É como a mesada de Nosso Senhor que a gente, quando é rapaz, vai gastando à toa, mas quando chega a velhice e não se recebe mais esse socorro do céu, fica-se como me vês...

—Tu perdeste Damião, é verdade, mas eu...

— Tu... É... Mas por aí andam, já é alguma coisa vê-las. Doidas, coitadas! Tua mãe queixava-se de ti, que não lhe escrevias...

— Escrevia sempre! Afirmou Tadeu.

— Acredito.

— E a ti também. Tu é que nunca me respondeste, nem ela. Ninguém!

— Responder! Responder para quê? Para dar-te notícias tristes? Para mentir? Não! a gente deve poupar ao coração as dores, elas são tantas no ar, entrando-nos na alma com a respiração! Para que mais?! Esqueceram-te? Faze o mesmo.

E, súbito, estacando, tirou do seio uma lata como as que os negros usavam como estojo da carta de alforria, abriu-a, sacudiu-a na palma da mão e, entregando a Tadeu uma fotografia, disse:

— Vê se conheces. Riscou um fósforo protegendo-o com a mão em concha.

— É Damião. O ferrador sorriu tristemente:

— Ele mesmo, coitado. Vinte anos, hein?

Ainda os não tinha e por um diabo de mulher... é o que me resta. É tudo que tenho: o meu bem e o meu mal. Quando olho para isto, não sei — tudo me aparece o passado todo. É assim como uma lâmpada com que caminho no escuro. Sei lá... E atafulhou no peito o triste relicário. E ainda perguntam por que bebo. Bebo por isto... e só.

— Acreditas em Deus, Nazário?

— Eu?! Que pergunta! Caminharam alguns passos em silêncio. De repente, parando, o ferrador exclamou encarado em Tadeu: Mas por que me perguntas isto? Tadeu encolheu negligentemente os ombros:

— Não sei... tenho sofrido tanto! Que mal fiz eu? E tu, meu pobre Nazário? E há por aí tanta gente ruim que vive nadando em ventura.

— E sabes lá o que se passa na alma dessa gente? A felicidade não é o que se vê, rapaz, como o céu não é isso que aí está. Felicidade... olha esta noite: mais alva que a neve e toda manchada de negro. Quanto mais clara é a luz mais se carregam as sombras. Quem sabe o que se passa no coração desses tais...!? Se houvesse na vida felicidade perfeita, Deus seria injusto e os infelizes teriam razão de revoltar-se contra Ele. Nós sempre nos imaginamos os maiores desgraçados do mundo, do mundo! desse bocadinho de terra em que vivemos... O mundo é tão grande!

Os dias deviam passar de vez levando tudo, tudo! Mas não, deixam ficar bocadinhos e esses bocadinhos crescem, como sementes caídas das árvores, e dão flores tristes e venenosas, como a saudade. Que somos nós? Passado. Queres saber? Quanto mais peno mais creio; quanto mais sofro mais me achego à cruz.

Sabes qual é o teu mal? É isso de andares sempre imaginando. Põe-te num alto, bem alto, olha para baixo e tudo te parecerá sereno; desce, e verás as pedras que magoam, os espinhos que ferem, as ondas que afogam, as podridões que tresandam, as maldades da terra e do coração, a vida, enfim. Lá de longe, de onde estavas, vias tudo aqui cor de rosa. Chegaste, aí tens. É assim, meu rapaz. Um parente meu, que esteve em África, contou-me que naqueles sertões de areia anda-se, anda-se dias e dias a fio sem ver água nem sombra. De repente lá surge um bosque de palmeiras. Os que vão morrer de sede dão graças a Deus, aos brados, e galopam para a delícia. É correr, é correr que nem o vento os ganha... E o bosque a fugir diante deles e, quando os coitados chegam ao sítio da verdura, não acham mais que areia e ossadas de outros que morreram da mesma mentira. Isso tem um nome, que me não lembra. Eu chamo-lhe ilusão. Na vida é a mesma coisa: além, sempre o tal bosque, corre-se e que é que se encontra?... Tu ainda podes seguir, és moço... Eu... já não tenho olhos para ver ao longe, não me iludo mais: fico onde estou, no meu quiete, até quando Deus quiser. Aqui estás e é o que vês. Tua mãe... tua irmã... já agora, rapaz, não sei. Salvá-las...? Duvido muito! Vai-te embora. Calou-se, de olhos no céu, murmurando como se rezasse baixinho.

Um casal de negros passou por eles, perdeu- se na sombra dos matos, rindo. E Nazário continuou:

— Eu, no teu lugar, voltava, ia-me embora.

— E mamãe?

— Tua mãe... tua mãe anda por aí perdida. Nem eu sei! Meteu-se com uma tal Ludovina, que conheci escrava do major Moreira, e foi um descalabro. A princípio falou-se muito. Fecharam-se-lhe todas as portas e ela ficou por aí, escorraçada como animal leproso. Só aparecia à noite, mas depois, isto é assim mesmo, desandou de vez e era de dia e de noite por essas ruas, que fazia pena. Enfim... Deus sabe lá o que faz ...

Caminharam em silêncio. Por fim Tadeu perguntou timidamente:

— E a filha de Madama Tereza, Nazário?

— Que tem?

— Que fim levou?

— Está aí. Casou-se com um primo, que veio da Europa e está hoje na casa. Já tem dois filhos. Sempre bonita. Olha, se queres ver tua mãe podemos ir lá agora.

— Agora? Tão tarde...!

— Tarde! Qual tarde! Para uma mãe a hora em que lhe volta o filho é sempre de festa. Tadeu hesitava, de olhos no céu, recordando a sena na casa da Ludovina.

— Se deixássemos para amanhã?

— Qual amanhã! Vamos agora mesmo. Com uma noite destas até dá gosto andar. Vai-se por aí devagarinho..., mas olha lá: nada de molezas. Não penses que vais encontrar tua mãe como a deixaste. Se começas com os teus castelos, a imaginar isto e aquilo, estás arranjado. É vê-la, falar-lhe, mas sem choradeira... E nada de tocar no passado, entendes? Para mim — eles dizem que não, que é vício — para mim a coitada não está lá muito certa da bola. Não, que essas coisas... eu é que sei! Vamos! E puseram-se a caminho.

A noite maravilhosa sustinha a cidade em êxtase. Apesar da hora adiantada havia ainda casas abertas, gente às janelas, às portas, refestelada em cadeiras, palestrando; grupos de moças passeando nas calçadas. Sons de piano abemolavam o silêncio místico. E os dois seguiam calados e vagarosos. O luar operava o seu encantamento nostálgico na alma melancólica de Tadeu. A luz enchia-se de espectros, enxameava-se de visões, e ele caminhava absorto revendo o passado. E o ferrador, cabisbaixo, pensava, recordava. Juntos, ombro a ombro, apartados, cada qual na sua saudade, com os seus mortos, lá iam!

Uivos de cão agouravam o silêncio. Uma coruja passou nos ares chirriando.

Na rua Bonita cruzaram com uma serenata: violão, cavaquinho e flauta. A melodia languida ao luar era como o aroma dos incensórios: uma essência esparsa que subia, ondulava, espalhando-se, diluindo-se fina, docemente no espaço. Quantas lembranças naquelas notas languidas! E à medida que se distanciavam mais os sons comoviam, como endeixas magoadas.

— Bem, cá estamos, disse Nazário. Ficas aqui, eu vou até lá. Se ela ainda estiver acordada, chamo-te, entendes? É um instante. Até já. E foi-se ladeira abaixo.

Tadeu sentou-se na borda do terreno, fumando. Crianças cantarolavam:

Carneirinho, carneirão...

Olhai p’ro céu, olhai p’ro chão...

Aquelas vozes entravam-lhe pela alma, revolviam-lhe a memória exumando saudades, recordações dos dias menineiros, dos folguedos ingênuos do bom tempo — corridas, danças de roda, fogueiras de S. João, bailaricos no Natal. Que alegria em casa! Que lufa-lufa: mesa farta, o oratório aceso, danças e a criançada solta, a pular no jardim, empanzinando-se de doces.

Carneirinho, carneirão...

Nazário reapareceu mazorro. Parou diante dele coçando a cabeça e disse:

— Não está.

— E então?

— Então, quê? Não está. Vamo-nos embora. Sentindo, porém, que o rapaz hesitava, adiantou- se enfezado: Vamos, homem. Queres ficar aqui plantado? A noite está fria.

— Mamãe está lá, Nazário. Tu é que não me queres dizer. O ferrador voltou-se arrebatadamente:

— Não te quero dizer... encarou-o e, de improviso, resoluto, afirmou: Pois está! E então? Está mesmo. Está lá. Mas é melhor que a não vejas, entendes? Amanhã. E em resmungo: É uma desgraça. Que se lhe há de fazer? Demais a mais com aquela vagabunda da Ludovina... vamo-nos embora.

Desceram vagarosamente, sorumbáticos, até que o ferrador, para distraí-lo, interrogou-o sobre a vida militar: como se dera no quartel, se gostara daquilo? E ele pôs-se a recordar, por alto, o tempo de serviço e, quando se referiu a Mato Grosso, foi meigo descrevendo saudosamente os dias felizes que vivera no rancho de beira-rio, com Maria Bárbara.

— E é para onde volto, Nazário. Vou ver se arranjo algum dinheiro no Rio e toco-me para lá. Ali, sim: Só ali conheci a felicidade. O ferrador resmungou:

— É... Mas de repente, mirando-o sisudo: Queres o meu conselho? Não voltes. Deixa lá a rapariga. Para quê? Assim como assim o melhor é guardares a lembrança do tempo que lá viveste e o resto...

Isso de felicidade é como dinheiro de jogo. Vais aí a uma barraca, entras, jogas, levantas a parada. Se saís com o bolo, muito bem; mas se insistes, é prejuízo na certa. E vai-se tudo, não só o lucro como ainda o que tens no bolso e saís a tinir, como me tem acontecido muitas vezes. Foste feliz? Não voltes à banca. Olha para mim. Tenho o retrato do filho, ando com ele: é como uma ficha que conservo. Pensas que vou ao cemitério? Não! Para quê? Contento-me com o que me ficou. Isto, ao menos, é alguma coisa, é ele... E o que lá está...? É assim, rapaz. Deixa-te estar onde estás. A gente ouve o coração, que é mau guia, e o resultado é andar-se por aí aos trancos e barrancos. Deixa lá a rapariga. E aqui mesmo... não deves ficar. Vai-te embora. Queres viver como eu no meio de ruínas? Queres!? Não! Mesmo para tua mãe a tua ausência será uma obra de misericórdia. Não hás de querer envergonhá-la sempre. Faze por ela o que puderes, mas de longe, entendes? De longe! Calou-se, como arrependido, dizendo depois:— Se ainda pudesses salvá-la..., mas qual! É tarde! Já viste alguém conservar em casa o corpo do morto? Não! Faz-se-lhe quarto, diz-se-lhe adeus e, chegada a hora, não há remédio senão entregá-lo à terra. De que nos serviria guardar o cadáver em casa, vendo-o apodrecer, sentindo-lhe o fétido...? Se ainda tivéssemos poder para o ressuscitar, vá, mas que somos nós?! Vai-te embora! Esquecer é impossível, bem sei; essas coisas ficam-nos no coração como raízes, mas enfim... Olhos não vêm... já cumpriste o teu dever: visitaste o teu cemitério. Vai-te embora. Eu não vivo aqui? O filho não está lá? É assim ...

Haviam chegado às ruínas da ferraria.

— Está frio, hein? Disse o ferrador esfregando as mãos. Sentaram-se na apodrecida soleira.

Tadeu olhava a paisagem pálida, defumada de névoa e silente. Súbito estremeceu aprumando-se. Pôs-se de pé, com a mão ao peito.

— Que é? Estás sentindo alguma coisa? Acudiu o ferreiro solícito.

— É a pontada, de vez em quando.

— Está frio. Vê lá! Não vá a humidade fazer-te mal ... Se queres entrar...? Isto não é casa que se ofereça, mas enfim...

— Não. Sentou-se de novo, pigarreando uma tosse frouxa. E as terras, Nazário? Têm dado?

— As terras da tua casa? Ora! Até café! Lembras-te dos cafezais? Estavam em mato. Agora parecem novos. Ah! Meu amigo, sem trato não há lavoura. Hás de vê-los logo mais. Eu dou-me com o homem...

— Não! Não quero! Um acesso mais forte, arrancado, sacudiu-o violentamente, o peito ressoava-lhe rouco, aos retroos.

— Homem, vamos lá para dentro. Sempre é mais agasalhado. Ou se queres, eu acompanho-te ao hotel. Isto está frio. Eu mesmo estou sentindo.

— Não. Não vale a pena. Está amanhecendo.

— Amanhecendo?! Qual amanhecendo nada! Isto não passa de meia noite. Estás a ver tudo branco e pensas que é madrugada? Cerração é que é... Vamos entrar.

— Não, Nazário. Só se estás com sono.

— Sono! Eu?! Quem me dera! Pois é isto. Está tudo acabado. Eu, se fosse mais moço e tivesse saúde, atirava-me por esse mundo fora. A gente não se deve prender à terra, e muito menos aos homens, como não se prende aos dias. É andar, andar para não criar raízes, porque o arrancar-se a gente de onde se arreiga, isso é que dói. Estou velho, mal posso com as pernas e, já agora, onde quer que vá levarei comigo terra agarrada às raízes que aqui criei. Tadeu pôs-se a andar apertando o peito para conter os fluxos de tosse.

— Não! Vamos lá para dentro. Estás a resfriar-te aqui fora. E o ferrador, tomando-lhe o braço, levou-o pela vereda, entre os carrapateiros orvalhados.

O luar abrumava-se em espuma fluida, como de leite, subtilizada sobre os campos quietos. Surdos mugidos rolavam ao longe. Os galos amiudavam.

VI

A luz baça da manhã nevoenta desempastava a paisagem: as árvores apareciam acotonadas de névoa, surgiam muros brancos, telhados, cercas. Aves percorriam enviezadamente o espaço às tontas. A estrada acordava com a chiadeira lenta dos carros de bois.

Os dois homens, sentados frente a frente, à medida que clareava, viam-se melhor, analisando-se à socapa. Nazário, queimado das soalheiras, com a pele coriácea, crestada em estrias, os cabelos brancos sujos, a barba amarelenta como palha seca, tinha os olhos tórpidos, raiados de sangue como porcelana estalada, a boca, esmoendo sem descontinuar, fazia ondular a barba longa. Tadeu lívido, mirrado, com a cabeça enterrada nos ombros estreitos, o pescoço folheado a gelhas, respirava cansado, abrindo a boca em ânsia.

O cheiro fresco da terra impregnava docemente o ar úmido.

Olhando-se, os dois homens retraíam-se, disfarçando a impressão de tristeza que, reciprocamente, recebiam.

Tadeu acendeu um cigarro, tragou a fumaça, bufando-a logo em sufocação aflita, aos arquejos, engasgado, com a tosse a estrangulá-lo. Levantou-se presto, angustiado, com o peito em fogo, papejando, de olhos saltados, como em espanto. Engrolou e, súbito, a jorro, o sangue expluiu-lhe da boca, negro e grosso, como se lhe houvesse estourado uma artéria, extravasando a jatos.

O ferrador pôs-se de pé atarantado, agarrou-lhe a cabeça, atraiu-o a se encostando-o carinhosamente ao peito, a chamá-lo em tom meigo e compassivo:

— Ó filho... que é isto? Que é isto? Eu não te dizia? Teimaste... eu bem te dizia... ora aí tens. Valha-te Deus!

Quis sentá-lo. Tadeu opôs-se gemendo angustiado. E o ferrador sentia-o alquebrado, amolecido, dobrando-se nos joelhos, com a cabeça tombada ao peito, o sangue espichando-se lhe do canto da boca em fio glúteo. Cuspilhava passando o braço de raspão nos lábios, aos vágados, rolando languidamente os olhos sofredores.

— Que te dizia eu? Encosta-te a mim. E o velho mirava-o consternado, sentindo-o acabar e, vendo-o fechar os olhos em delíquio, chamou-o aflito, sacudindo-o aterrado:

— Ó...! Ó...! Eh! Rapaz...! Que é isso? Uma voz cantava alegremente na estrada. Quis bradar a socorro, mas Tadeu reanimou-se aspirando um hausto largo. Passou, anh?! Senta-te. O sol brando rebrilhava nas folhas dos carrapateiros, onde as gotas de orvalho cintilavam diamantinas. Era a luz, a força que renascia.

— Vais melhorar, animou-o o ferrador. Vais melhorar. Está aí o sol. Aquecendo, melhoras. Vá, deita-te um pouco; descansa. Eu disse-te... Tadeu recostou-se de recovo, com o busto quase a prumo, as pernas estendidas. Doe-te o peito? Ele fez um esgar respirando a curto fôlego. Descansa. Precisas ter cuidado contigo, rapaz. Abusas. De novo a tosse violentou-o; novo frouxo golfou em escoo. O ferrador inclinou-se, dizendo-lhe piedosamente, como em segredo:

— Olha, queres um conselho? Isto assim não está direito. Não há aqui nada, nem isto é lugar para doente. O melhor é irmos por aí devagarinho, até à Misericórdia. Isto, em havendo cuidado, não tem perigo, é como um resfriado à toa que se cura com sabugueiro e lã, mas, aqui assim, ao tempo, não! Ficas lá uns dias, curas-te e está acabado. O que não podes é continuar assim. Olha, eu, quando sinto a machina desarranjada, não estou com uma nem com duas: vou-me por aí acima, meto-me lá dentro uns dias e saio lampeiro que é um gosto. Vê lá se podes caminhar. Vamos devagarinho, pões o meu casacão para que se não veja o sangue que te caiu no peito e está pronto. Vou ao Dr. Lucindo, peço-lhe a ordem e está feito. Então?

Sem responder, Tadeu levantou-se, apoiando-se ao ferrador, aceitou-lhe o casacão e lá se foram os dois, lentamente, pela estrada cheia de sol.

O céu desvendava-se do nevoeiro aparecendo todo azul e lustroso.

— Hás de ir buscar o meu baú ao hotel, disse Tadeu a Nazário. Não sei quanto devo. Toma, tem paciência, e deu-lhe uma nota. O ferrador sentiu-se humilhado e, esmagando a cédula, com vexame, desculpou-se atarantado:

— Olha, filho, se eu estivesse ganhando... enfim. Vou, podes ficar tranquilo. Se te aceito o dinheiro é ... tu sabes... não tenho, ando assim, e, atafulhando as mãos nos bolsos, sacou-lhes os forros rotos, mostrando-os. Se eu tivesse...

— Ora, Nazário...!

— Pois é ... Descansa. O baú lá irá ter com o mais. O principal agora é a saúde.

Quando chegaram ao largo a locomotiva da Vassourense manobrava reboando soturna. O foguista, um crioulo, reconhecendo Nazário, agachou-se entre a lenha, no tender, bradando: “Peleguêto! ” O ferrador sorriu, dizendo a Tadeu:

— Estás ouvindo o moleque? É comigo. É como agora me chamam.

— Que quer dizer?

—Sei lá! Outros gritos partiram da estação: “Peleguêto! Pau da água!”

— É tudo, até as meninas, quando me veem. Eu acho-lhes graça, coitadinhas. Sabem lá o que dizem! Não é por mal. Gritam-me o tal nome e acabam oferecendo-me comida e roupa. Sabem lá o que dizem!

Mas uma pedra caiu entre os dois, levantando poeira e um pequenito, em fraldas de camisa, descalço, fugiu metendo-se no corredor de uma casa, a gritar: “Peleguê...!”.

— Olha o pirralho, nem falar sabe... Da porta de uma venda um tipo gordalhufo acenou de cabeça ao ferrador.

— Bom dia! respondeu Nazário e, baixinho, a Tadeu: Lembras-te? É o Máximo. Dizem que está rico. Como foi isso, não sei. Milagre...

Iam chegando à rua Bonita quando Tadeu estacou de repente levando a mão à boca sem, todavia, conter a tosse, que espocou violenta, rouca, engrolada. Nazário susteve-o, vendo-lhe, porém, os lábios ensanguentados, meneou com a cabeça desanimado, os olhos rasos de água, e, em voz trêmula, murmurou:

— Vamos. Falta pouco. Eu bem te disse... teimaste. Anda, encosta-te a mim. E foram ladeira acima.

Abriam as janelas da Câmara. No jardim fronteiro, chilreante de passarinhos, brincavam crianças. Por toda a parte estridulava a chiadeira das cigarras.

Um velho, em mangas de camisa, olhos empapuçados de sono, bocejava refestelado no banco, à entrada da Misericórdia. Nazário tirou-o da preguiça:

— Bom dia, senhor Silvestre. O Dr. Lucindo já está?

— O Dr. Lucindo a esta hora? Onde tens tu a cabeça? Já a deixaste por aí em alguma venda?

O ferrador sorriu, explicando:

— Não, senhor. E baixinho: É que este rapaz está a deitar sangue pela boca. Peço-lhe que o deixe ficar aqui um instante enquanto vou ao Dr. Lucindo buscar a ordem. Ele mal se aguenta em pé.

Silvestre lançou um olhar indiferente a Tadeu e, encolhendo os ombros:

— Pois que espere.

— Vou num pulo! Disse Nazário e partiu, a largas pernadas, ladeira abaixo.

— Sente-se, homem, tem aí banco, disse Silvestre a Tadeu. O rapaz sentou-se na soleira da porta, arquejando.

— Você não é daqui, hein? Tadeu acenou de cabeça afirmativamente.

— De onde?

Não respondeu. Descaindo sobre a ombreira quedou imóvel, de olhos no céu radioso. Nazário reapareceu pouco depois esbaforido, suado, com a ordem do médico, dando-a a Silvestre, que a examinou, perguntando:

— Como se chama?

— Tadeu Fogaça, respondeu Nazário. É filho do Manuel do Madruga. Lembra-se? Aquele que morreu do desastre.

Silvestre arregalou os olhos espantado:

— Mas não era soldado?!

— Deu baixa.

— Ah! Exclamou o velhote e, levantando-se, balordo, convidou:

— Vamos.

— O pai fez muito aqui pela casa, disse Nazário ajudando Tadeu a levantar-se; e animou-o: Agora estás bem. Isto é coisa para uns dias. E rindo, encarado em Silvestre: Eu cá, já se sabe: quando as coisas, cá por dentro, me saem dos eixos, meto-me aqui e engordo que é um gosto. Isto é, a minha ceva. Vai. Vou ver o baú. Vê lá se queres mais alguma coisa.

— Vem ver-me...

— Hei de vir, como não? Vai com Deus. E fuma pouco, han! O cigarro é que te provoca a tosse. E dirigindo-se ao velho, já impaciente: Passou toda a noite ao relento e resfriou-se. Resfriado é que ele está. Vai.

Tadeu abraçou-o, dizendo-lhe em segredo:

— Se vires mamãe dize-lhe que estou aqui.

— Queres?

— Sim, para que me abençoe, ao menos, antes de morrer.

— Morrer! Qual morrer! Deixa-te disso. Se fosse a primeira vez... foste sempre assim, desde pequeno. Isso em ti é como o reumatismo em mim...

— Bem, vamos! Disse Silvestre. Abraçaram-se. E Tadeu seguiu, ainda voltou-se da porta e desapareceu. Nazário ouviu-lhe a tosse cavernosa e murmurou com pena:

— Pobre rapaz! Qual...! E, enrolando um cigarro, saiu preocupado, desceu lentamente a ladeira, ao sol, gesticulando à toa.

“Peleguêto! ” Gritaram por trás da janela de um sobrado. E ele, sem levantar a cabeça, resmungou:

— Ah! Peleguêto...! Tivessem vocês o coração como eu tenho o meu e não estariam aí a gritar baboseiras. Peleguêto...

O largo da Matriz rumorejava, à laia de feira, com tabuleiros de doces iluminados a lanternas, cestos de frutas, bandejas de cálices de geleias, tigelinhas e pires de arroz doce e canjiquinha. Quitandeiras conhecidas não se fatigavam em apregoar aguardando a freguesia certa, sentadas em tamboretes, cavaqueando tranquilamente; outras, de quando em quando, lançavam guinchos de chamariz nomeando famílias célebres nisto ou naquilo: umas pelos bons bocados e queijadinhas, outras pelo manjar ou pelas balas de ovo. Negrinhas, de cabelos refoufinhos, bichosas no trajo, de avental e chinelas de bico, rondavam o adro com bandejas enfeitadas de rendas, mais preocupadas com a pacholice do que com a merca que levavam. E um negralhão, curvado sobre um tambor entalado entre as pernas, batucava-o d’espalmo, cantarolando em vozes bárbaras, a atrair gente para o seu tabuleiro.

Afluíam levas: famílias galeando à moda, faiscando em joias; grupos de roceiros às cascalhadas ou em falario alegre, muito noveleiros e indagadores da vida uns dos outros. Abraços aqui, apertos de mão acolá, chacotas, pimponices.

Homens, em mangas de camisa, paletó ao ombro, cajado em punho, velhas de bioco, pobres esmolando. Crianças corriam com alarido, às negaças no tempo será ou pasmando diante das guloseimas, de dedo na boca, em adoração basbaque.

O sino começou a dobrar festivo. A multidão correu tumultuosamente para a igreja quando apareceram, todas de branco, duas a duas, as meninas do Colégio Patrocínio, que cantavam no coro e, logo em seguida, os alunos do Colégio Alberto Brandão, marchando aos xaque-xaques, com os inspetores ao lado, rígidos.

O luar abria-se devagarinho prateando as figueiras que se estendiam em alameda até o cemitério. Docemente soaram os primeiros acordes do harmônio e vozes frescas timbraram o cântico hiperdúlico. Cessou instantaneamente o rumor no largo.

Ladeira acima, vagaroso, macambúzio, Nazário caminhava vergando-se sobre os joelhos, indiferente à molecada que o perseguia: “Peléguêto! Pau da água! ”. Ao defrontar a Matriz tirou o chapéu, detendo-se um instante, a olhar devotamente a portaria juncada de folhagem. Persignou-se dobrando-se em mesura e prosseguiu a passo lento.

À medida que se aproximava da Misericórdia o coração apertava-se-lhe, enchia-se-lhe de presságios. Em um dos bancos do vestíbulo, escassamente alumiado, dois convalescentes, de lenço à cabeça, conversavam baixinho. Nazário passou por eles como se os não visse, foi direito à porta e bateu.

Pigarrearam dentro e o velho Silvestre apareceu de gorro, abotoando a gola do casacão de saragoça, perguntando de mau humor:

— Quem é?

— Sou eu, senhor Silvestre. Nazário.

— Ahn! Que há?

— Vinha saber do rapaz...

— Ah! O rapaz... já o trouxeste morto e ainda perguntas...

— Como morto! Exclamou o ferrador aturdido.

— Como! Ora essa... aquilo estava que nem pipa sem torno, a vasar sangue que não havia ter-lhe mão. Veio uma golfada maior... nem teve tempo de esquentar a cama. Tisico. O Doutor, mal o viu, disse logo que ele não chegava à noite. A farda comeu-lhe os pulmões, a farda ou lá o que foi.

Nazário olhava emparvecido. De repente, lembrando-se:

— E o baú que eu cá trouxe, e o mais...?

— O baú?! O baú e um dinheiro...? Não os viu. Já tinha acabado quando cá chegaram. Está tudo aí...

— E ele não disse nada, senhor Silvestre?

— A mim? Não. E ele podia lá falar com aquela sangueira...! Nazário baixou a cabeça, ficou um momento calado, a anediar a barba; por fim disse em voz trêmula, baixinho:

— Se o senhor desse licença... Era um instantinho... só vê-lo, coitado!

— Agora? Agora não é possível. Amanhã. Vê-lo para quê? Nunca viste um defunto? Tudo é um... E, com olhar malicioso, em tom gaiato, comentou risonho: Uhm! Querem ver, maganão, que já andavas lá pela casa antes do Carrilho?! Que diabo de interesse tens tu por esse rapaz? Isso só de pai pra filho, só apego de carne e sangue...

— Não, senhor, contraveio gravemente o ferrador. Vi-o pequeno, criou-se com o meu. Eu era muito do pai. Éramos da mesma gândara, senhor Silvestre. Rapazitos, comemos juntos a brôa e o queijo, levávamos o gado ao mesmo monte, recolhíamo-lo à mesma curriça. Amigos, mas amigos! Senhor Silvestre... amigos como já os não há, entende o senhor? Como já os não há...

O velhote comoveu-se com as palavras simples do ferrador e, batendo-lhe no ombro, disse-lhe:

— Pois sim..., mas eu não posso ir contra as ordens. Tu conheces a casa. Amanhã.

— Sim, senhor. Cá estarei. E obrigado, senhor Silvestre. Deus lhe dê Boa noite.

Saiu acabrunhado. Pesavam-lhe os pés e todo o corpo como que se desfazia fundido em angústia. Por vezes, tremulamente, os joelhos se lhe vergavam, flácidos. Aprumou o busto, respirou largo, olhando o céu luminoso. Ao chegar diante da Matriz o cântico atraiu-o. As vozes pareciam vir brandamente do céu, como o luar: eram o som beato da luz, o hino da noite cândida consagrada a Maria Virgem.

Subiu tímido os degraus e penetrou na harmonia mística. Chegou-se à pia, molhou, de leve, os dedos negros, aspergiu-se, mas os joelhos dobraram-se lhe de repente e teve de amparar-se para não cair.

O cântico crescia em triunfo enchendo a igreja, rompendo gloriosamente para a noite clara. Os sinos repicaram.

Ele passou o paravento achando-se em plena nave, vendo o altar-mor ao fundo, florido e cravejado de luzes e todos os outros resplandecendo na exaltação da Virgem.

Vivo clarão de raio passou-lhe fulguro nos olhos; o coração cresceu-lhe enorme no peito, sentiu-o desraigar-se, subir-lhe à boca... Faltou-lhe de todo o ar. Caiu de joelhos, pasmado, de olhos muito abertos, fitos no altar que deslumbrava. Queria rezar e airava opresso, em angústia. Súbito abriu-se-lhe larga a respiração ansiosa e tudo, instantaneamente, lhe pareceu mais amplo e iluminado, refulgindo em esplendor alvo, como o luar e, dentro da luz, radiosamente, a imagem da Virgem sorria-lhe, viva, entre nuvens que lhe ondulavam aos pés, cercada de pequeninos anjos esvoaçantes. E eram eles que enchiam a igreja d’aquela música e d’aquele perfume celestial.

Olhava absorto e pareceu-lhe ver, pairando no ar, os dois mortos: Damião e Tadeu. Pôs-se a tremer, esgazeado, a balbuciar. De repente atirou-se de joelhos, mãos postas com fervor devoto, lágrimas rolando-lhe em fios pelo rosto.

Uma velha beata, ao vê-lo naquela atitude, a resmungar por entre soluços, revoltou-se contra a impiedade, afastando-se escrupulosamente, com asco, do imundo que profanava, com tamanha bebedeira a Casa do Senhor.