Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

A viagem maravilhosa, de Graça Aranha


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII

XIV

XV

XVI

XVII

I

A luz secava o espaço, exaltado de calor sem a clemência da humidade. O menor ruído estalava no silêncio complexo. No jardim da sua casa, no morro da Glória, Thereza agitava-se a cada vibração sonora. Os aromas em liberdade a invadiam e a faziam estremecer. Deu uma risada, que sacudiu o ar e a espantou, quando sentiu uma onda mais forte de cheiro de jasmim, que lhe tivesse vindo no próprio som. Oh! Seu jasmim romântico, meu velho jasmim lá das Laranjeiras! Oh! Saudade! As minhas gavetas cheias de jasmim. Que sol danado! Aqui na sombra uma delícia, a pasmaceira cotidiana. Esta é a minha baía de cada dia... O pão nosso de Thereza. Nas Laranjeiras era o Corcovado nas minhas costas. Aqui a água me barrando os olhos. Prisioneira eterna. Esmagamento infinito. Mas eu fui livre, quando pequenina, na grande chácara, no meio dos bichos, que eram os companheiros, cada qual mais idiota. Deixaram-me a impressão de estupidez permanente. Sempre fazendo a mesma coisa, como o meu marido. Lá vai um barco a vela, medroso como meu marido, e lá ao longe um vapor insolente, como alguém que ainda não encontrei. Para onde vão? Capaz de ir para bem perto, para Santos, mas eu desejaria que fossem para a Islândia. Muito longe, muito gelo, diferente de tudo isto. E eu não fui à Europa! Incrível! Toda a gente vai e volta e eu sempre pregada aqui. Quando eu era pequena, papai não podia deixar o Brasil. Tinha a casa de negócio, parecia-lhe que sem ele tudo quebrava. Trabalhador como ele. E não era português. Bem brasileiro, de velha família do Rio de Janeiro, filho de fazendeiro rico de Valença, café, casa de comissão, chácara, teatro lírico e lá ia mamãe sempre ao seu lado. Era bonita, muito suave, prosa que só ela, muito sensível para papai, que era seco. E generosa! Mas não foi à Europa. Eu preciso sair daqui, preciso respirar. O outro também é só banco. Acho tudo idiota. Que ordem vai por este jardim! Monotonia. Vou acabar com estes canteiros, fazer um jardim livre. Já é um martírio viver-se e ainda em cima prisioneiro em banquetas, canteiros e caramanchões. Nada. Vou transformar isto em coisa selvagem, que tudo volte ao primitivo, as rosas percam esse cheiro saboroso de perfumaria, e o jasmim cheire a mato. Ah! Vão ver de que sou capaz. O diabo é o barulho, que vai haver. Já estou tremendo. Tenho raiva de ser tão covarde! No tempo de papai e mamãe eu era mais decidida. O velho pouco aparecia e pouco se metia comigo. Mamãe mandava muito. Devo-lhe uma coisa, ter estudado com força. Meu Deus como eu me desforrava em ler! Também não tinha irmãos, poucos parentes meninos, mamãe não queria amigas, não andei em colégio, tudo em casa. A gente que vinha era mais velha, não era mal, eu aprendia com eles e adivinhava. Religião pouca, mamãe tinha horror a padre. Papai era maçom e lá ia às quartas feiras à festa do bode, como dizia titia, a carola, papai não se importava e ia saindo. Era irmã dele, viúva cacete e sem filhos. Morava na fazenda... Tudo morto. Como se morre nesta terra! Mais outro vapor e a tal barca a vela sempre parada. Tenho vontade de assobiar para lhe chamar vento. Dá uma aflição a imobilidade. Oh! Vento tu és tão forte que derrubas a parede? Oh! Parede tu és tão forte que tapas o sol? Oh! Sol tu és tão forte que derretes a cera, a cera que prende o meu pezinho? Mas não há vento e tudo está morto. Só aqueles que têm a força em si mesmo, é que se agitam e se vão. Tu, vapor poderoso, atrevido, vai, vai! Se voltares um dia, encontrarás neste mesmo lugar está pobre Thereza, que te perguntará que viste neste mundo largo, enquanto ela ficou presa aqui, firme diante da baía, com a barra nos olhos e o morro nas costas... Vai, vai e volta! Ah! Não pensa que eu choro! Coragem é aqui. Suportar tudo, calada, mansa por fora. Mamãe dizia: esta menina é sonsa, vontade é ali, mas não tem coragem. Mas mostrei que tive para me casar. Aí sim, fui decidida. Estupidez, eu sei, desgraça, eu sei, mas bati o pé e casei. Oh! Tempo quente lá em casa! O velho não queria, achava o tipo imbecil, mamãe implicava com os salamaleques do sujeito, sempre engasgado. O negócio foi arranjado pela irmã de papai, que conhecia a mãe do tipo, e este a bajulava. Papai era rico, eu filha única, desconhecida, retraída. A família do sujeito, gananciosa, alvoroçou-se e foi um cerco em cima de mim. Criançada. Nunca tinha visto o homem. Como eu era idiota! Trouxeram o tal noivo a casa para eu conhecê-lo. Papai esperançado com a minha má impressão. Mas não tive nenhuma, nem boa, nem má. O meu espírito estava longe das gentes, eu só queria a liberdade, a liberdade, poder sair, divertir-me, ser dona de mim. Eu me dizia, qual será a minha impressão? Se for má, não aceito. Não foi nenhuma, aceitei. Não recuei depois por capricho. Queria me casar. Quando eu soube que se chamava Radagasio (foi o único meio que o pai teve de distingui-lo entre os outros homens fiquei envergonhada. O nome da família era Vianna. Tinha pena de perder o meu nome de família. Eu era Thereza Moura. Como sou morena, olhos castanhos, bem rasgados e luminosos, cabelos escuros, compridos, pele trigueira, fina, viva, ardente, ia bem, seria sempre a moura. Romantismo! Radagasio me fez uma declaração de amor logo no dia do pedido. Estávamos à janela da chácara, quando dois pombos (naquele tempo eu dizia pombinhos) se beijavam, Radagasio me disse com a sua voz soturna: “Nós faremos como eles... não quer?” Oh! Dei uma gargalhada e fugi. Nem assim desmanchei o casamento. No dia seguinte ao do pedido eu berrava pela chácara: “Vou me casar, vou me casar”, para ser ouvida por um moço vizinho, que andou experimentando me namorar. Lili teria acordado? Não ouço barulho... Aqui é a casa da ordem. A ordem por base, repete Radagasio. Eu continuo a tolice: ordem e progresso. De costume é a negra, a peste negra, que traz a pequena ao terraço. Não perturbemos os costumes. A ordem por base. Sempre metódico Radagasio. Tudo marcado, tudo regularizado. Tudo. Oh! Também que sacrifício. Antes nunca. Tenho horror deste homem! E que nojo! Oh! Quando nos casamos não era como hoje. Era magro, bem vestido, e até dançava valsa, de repente começou a engordar, avolumou-se, tornou-se pesado e ficou mais escuro. Hoje é barrigudo, anda bamboleando, os olhos pequeninos, apertados, lacrimosos, o nariz espichado, sempre fungando, sempre a assoar-se, a pele preta, bigodinho de arame, meio chinês, cabeça de microcéfalo e bochechas caídas, eis o meu marido, Radagasio Vianna, secretário de banco, para onde entrou pela mão de papai, como empregado e foi fazendo aos empurrões a carreira. Mas que carreira vagarosa, carreira de lesma, quarenta anos, ainda secretário. É um molusco o meu marido, os olhinhos de caranguejo ou de sapo? Anda por esses pântanos. E estúpido até ali! Papai o empregou e sempre nos sustentou até a sua morte. Radagasio não tinha vintém e era incapaz de trabalhar e ganhar a vida. Mas queria fartar-se na vida. Exigente, mandão, desfrutador e tirano. E o que mais desespera é ser um homem problemático. Não sabe nunca o que quer e ninguém conta com ele. É demais. Reagi logo e me veio um ódio, um ódio e um nojo. Agora é a prisão. Morre papai, morre mamãe, veio a minha fortuna. Radagasio apossou-se de tudo. É a lei, mas não é a honestidade. Foi passando tudo para o seu nome, quando tudo antes da morte de papai e mamãe vinha do meu dote. Ladrão! Até que afinal caiu a viração. Boa tarde, ventinho bom. Tudo se agita, tudo se exalta no meio do sol. Lá vão as nuvens veleiras, dançam as palmeiras. Ó poeira exaltada que se levanta da cidade e sobe em trombas, vejo tudo mover-se, olha só o mar, que arrebentação na praia, agora sim, encheram-se as velas do navio e lá se vai... Adeus! Quando voltares aqui estarei prisioneira de Radagasio Viana, o imbecil, o ladrão, o miserável. E toda a gente diz: bela casa, não há vivenda igual. Mas a minha alma não se contenta neste jardim, neste parque, que desce morro abaixo, neste terraço sobre a cidade e sobre a baía, ouvindo o gemido cacete destas doze palmeiras, cercada destes morros, mirando aquela igrejinha pasmada e me afundando neste silêncio sacudido pelo barulho da cidade, do mar e do vento. Oh! A minha alma busca o infinito! Mas que é isto, o infinito? Não sei. Escapou. Quero outra coisa, que não é o que tenho. Quero liberdade. Para quê? Não sei. Afinal não quero nada. Não sei o que fazer de mim. Não tenho quase família. Se ao menos eu tivesse um irmão, um verdadeiro irmão a quem entregar esta minha alma! Nada. Marido, um ódio, um nojo. A menina, meu amor, tão pequenina, três anos, não me entende. Entregue à ama, a tal peste negra, que veio da fazenda, imposta pela velha tia, que nos casou, e Radagasio, seu irmão de leite, só nela confia. Pode ser que sejam irmãos de outra maneira, é o mesmo espírito, o mesmo método, a mesma sovinice, a mesma ganância. Sim, são irmãos de sangue. Sangue e leite, fraternidade completa dos líquidos. E se parecem, volumes iguais, expressões, olhos, apenas a negra tem boca escancarada de tubarão e Radagasio boca apertada de jaboti. Oh! Eu juro que esse demônio me espia. Ordem do meu marido, sempre suspeitoso. Idiota. Desconfiado de tudo, sem um amigo, desconfiado de mim, dos micróbios, ufa! Salutista. Medo de moléstia, medo dos bichos. Quando vai à caça na fazenda dos primos leva injeções contra cobras, remédios contra mosquitos, contra carrapatos, quinino, filtro d’água, mosquiteiro. Ridículo, ridículo. Um demônio destes assim custa a morrer. Malvado! Oh! A caçada! Lá vai ele, grosso, bambo, pelo campo aberto, dentro do automóvel, roupa de lã, chapéu e botas impermeáveis, sobretudo, guarda-pó, todos os agasalhos, todas as armas, todos os aparelhos, automóvel, cavalo, cachorro, camarada para carregar a espingarda, fazer pontaria, e o senhor Radagasio então atira. E que medo de vaca!... Ridículo, ridículo!... Oh! Não sei que fazer de mim, não gosto de festas, não vou a bailes, não janto fora. Para quê? Tenho vergonha de Radagasio. Humilhação. Todos o acham estúpido, fogem dele. É o cacete, o homem falador, a repetição. Repete tudo, miolo mole. Caem todos sobre mim, com ares de pena ou olhos de conquista. Ah! Não! Nem comiseração, nem pasto para os outros. Fico aqui, leio, olho, torno a ler, torno a olhar, brinco com Lili, passeio de automóvel, vou às vezes à igreja. Triste vida, eu bem sei. Mas o resto é também vazio. Tenho tédio de tudo. Ah! Desapareceu o navio... Fumaça forte atrás das últimas ilhas da barra. São vapores que chegam. Que vêm fazer? Porque se metem na prisão e deixam o mar livre? Mas voltarão, tomarão à liberdade... Tudo está alegre no ar, como cheira este jasmim! Vale a pena transformar isto? Para quê?...

E, transfigurada, bateu palmas à filha, que surgia à porta da casa.

— Oh! A Lili da sua mamãe! Cheirosa! Estava bom o banho?

O que Lili queria era correr, ansiosa de movimento. Desceu rápida a escada, que levava ao jardim. Thereza gritou que subisse e Lili voltou, esgueirando-se, para não ser apanhada pela mãe. Foi uma correria endiabrada das duas. Thereza, ágil, sôfrega por qualquer agitação, atirava com segurança as longas e finas pernas para adiante. Corria, corria, aspirava o ar, veloz, mas retinha-se para a filha ter a ilusão de correr melhor. Corriam por entre os canteiros, machucavam as pedras, que estalavam, gritavam e os bichos entravam na algazarra com o vento e o farfalhar das palmeiras. Do alto da entrada da casa a preta espiava abobalhada. Veio-lhe um surdo rancor e logo resmungou:

— Lili está que não pode mais de suada. Deixa ela quieta, Sinhá.

A menina acovardou-se e parou instantânea. Thereza irritou-se.

— Qual suada. Corre Lili. Mamãe vai te pegar...

Lili pregou uns olhos compridos na negra e não se moveu. Thereza segurou-a pela mãozinha e a levou, dominada, pelo terraço, seguindo por debaixo do caramanchão do lado esquerdo do pátio para o interior do terreiro. A negra veio atrás. Quando a pequena viu a passarada nos viveiros, à margem do caminho, soltou a mão de Thereza e atirou-se de boquinha aberta e mãos espalmadas sobre o arame da vasta gaiola para ver melhor e apanhar os pássaros. Dentro do viveiro as aves arremessavam-se ansiosas de um lado para outro, algumas pousavam instantâneas nos poleiros e logo se precipitavam sobre a grade oposta, fugindo às mãos gigantescas de Lili. Corpos azuis, corpos verdes, arrojando-se no espaço, asas inflamadas pelo sol, pios ardentes, gargalhadas de Lili e não muito longe a gritaria dos cães e os berros roufenhos dos perus. Thereza, exaltada, teve ímpetos de abrir o viveiro, soltar os pássaros. A negra resmungou:

— Passarinho de gaiola solto, não sabe o que fazer, morre logo...

Rouquejando, klaxonando, arfando, um automóvel, rompendo pela subida lisa, surgiu alarmante no pátio. Dentro da caixa fechada um homem escuro e pesado sacudia a cabeça como um pêndulo, batendo o ritmo descompassado dos movimentos bruscos da máquina, que travara e parara rude. Era o marido. Saltou do carro, espichou as pernas e arqueando-as bamboleou-se até Thereza. As bochechas lhe tremiam, e ele vinha mastigando palavras, que surdamente iam saindo:

— Canalhas, ah! Hão de me pagar, pensam que sou dois de paus, não me têm a menor consideração... Hão de ver um dia. Arrebento tudo e depois ninguém chore...

Thereza fitava-o com desdém, sem o menor interesse. Lili tinha as mãos geladas, os olhos arregalados, o nariz farejando o ar. A negra contemplava Radagasio com os olhos embasbacados, a boca arreganhada em viscosa admiração. Era para esta afinidade, que Radagasio prosseguia:

— Só exijo que não me desconsiderem. Não tenho sangue de barata para suportar afrontas. E de quem? De gentinha ordinária...

— Nhonhô deve logo meter o braço... resmungou a negra.

— Há de chegar a ocasião. Não brinquem comigo. Por ora não, quero ver se atendem à minha reclamação, e dou uma lição nos sem-vergonhas, que me tratam de resto, nem mesmo o café me servem, fazem que me esquecem. Há de acabar... Há de acabar!...

Thereza, enjoada com aquele esbravejar estúpido, cortou:

— Mas largue de uma vez esse banco... Todos os dias é um barulho, uma raiva que só arrebenta aqui.

— Deixar o banco? Era o que faltava! É só o que você diz sempre: deixar tudo, largar tudo. Mas lá é o meu lugar. Sou especialista em finanças e espero dar uma tacada boa. Deixar! Oh! Só mesmo de uma cabeça oca, este parecer. Vou jogar na baixa... Andam todos com cara de asno, contentes com a alta do câmbio. Subiu? Vou mostrar para que presto, jogo na baixa...

A máquina de repetição foi se movendo, gingando. Aperreado e pesadamente entrou em casa. A negra seguiu no seu rastro, carregando a menina. Thereza ficou só. Que alívio! Deixou rápida o lugar empesteado e, fugindo às palavras ruminadas “baixa, baixa”, veio para o caramanchão e abismou-se no mar. Banhou nas águas vivas o ser inteiro e ascendeu. Surgem as cores. Embaixo, na barra do horizonte, a linha dura das montanhas encosta-se ao céu. Tudo róseo-roxo. As sombras caminham, a baía empalidece. As ilhas apagam-se cinzentas. A luz desmaia, foge e um começo de lividez anuncia a morte universal. No alto, no ocidente, um fio de lua, como uma pausa musical, marca o silêncio.

Thereza está no salão à espera do jantar. As janelas estão fechadas por ordem de Radagasio, que teme o fresco da noite, mesmo quente como esta. Radagasio entra fungando. Vai examinando, fariscando tudo o que havia sobre as mesas. Abre os livros, pretenciosos de luxo, à procura de qualquer papel pertencente à Thereza, neles esquecido, descobre as tampas das caixas de porcelana, sacode as almofadas e, desassossegado, mesmo depois da inspeção feita, senta-se em face da mulher, na maior poltrona. O couro castanho curtido da cara túmida e das mãos grossas e largas não reage à fulguração dos móveis dourados, aos relâmpagos dos cristais. Os olhinhos piscam lacrimejantes à exaltação das luzes. Radagasio olha rancoroso Thereza. A sua voz soturna grunhe:

— Ora esta, deixar o banco, procurar outra carreira, andar atrás de coisa nova, nunca. O que você quer é dar-me trabalho de pensar. Nessa é que eu não caio...

— Teve visitas? começou o inquisidor, forçando Thereza a falar.

— Não.

— Saiu?

— Por quê?

— Podia levar a menina...

— Não quis.

— Está zangada?

— Não.

— Está doente?

— Não.

— Eu não ando bom. A maldita azia não me deixa. A cura das águas nada adiantou. Os médicos não dão volta. Vou experimentar a homeopatia. Um colega do banco me afirmou que homeopatia cura... Vou experimentar. Maldita azia. Tem bicarbonato em casa?

— Não sei.

— Ah! Eu tenho no meu quarto, maldita azia do inferno...

O criado anunciou o jantar. O cheiro da comida eliminou o rancor de Thereza e ela sorvia voluptuosamente o que havia de marítimo e de carnal nos pratos esquentados pelos ingredientes fabulosos. Os grandes olhos deleitavam-se, como as narinas, na alegria do instinto satisfeito. A cabeça alteava-se, os dentes ruidosos e valentes quebravam o pão torrado numa energia saudável. Radagasio bufava, mastigava longamente, enfarado, com um perpétuo resmungar contra o que temia.

— Camarões, ora camarões! E a minha azia? E a minha urticária? Carne? E a arteriosclerose? Danação. Parece de propósito, esta infame cozinheira quer me ver doente. Olhe, despache esse demônio.

Indiferente, Thereza sorria ao seu próprio apetite.

Radagasio reclamava:

— Afinal só como galinha... É verdade que comi os camarões e a carne, mas não havia de morrer de fome. Sorvete? Jamais! Manga? E no jantar! Que extravagância! Invejo o seu estômago... Traga a compota.

Thereza parara de comer e entristecera. Olhava o monstro Radagasio, espesso, tenebroso, sem um clarão nos olhos, a mastigar palavras e comidas. Mirava a sua prisão rica e miserável. O silêncio era mesquinho, feito de infâmias, sacrifícios, ódios. Ela aspirava à solidão com a liberdade. Exaltação. Veio a triste compota de Radagasio.

— Faça chá de camomila... Não. Anis estrelado. É melhor para os gazes.

O tédio excitava a irritação de Thereza. Os seus lábios gelados tremiam na xícara de café. Subitamente ela se espraiou num grande, bom, maternal sorriso, que beneficiava todo o corpo.

— Vem, meu bem, meu anjo.

Correndo para o seu lado um menino pálido, vibrante, lépido, atirava-se nos seus braços.

— Por que vieste tão tarde, Jujú?

O pequeno respondia apenas, mirando-a com uma satisfação ardente das suas entranhas infantis e eternas.

— Queres sorvete?

Jujú sorria. Thereza mandou servi-lo. Radagasio arrotava exasperado.

— Agora tem você esta mania. Esta criança de gente que não conhecemos, gentinha de cacaracá... E vizinhos, o que eu detesto.

— Jujú é meu amiguinho do coração. Nós nos entendemos. Não é, Jujú? Deixa falar. Teté te quer muito, muito.

Radagasio levantou-se. A cólera tornava-lhe amarelado o couro castanho da cara.

— Mau! exclamou sombrio Jujú ao homem, que desaparecera.

E, ávido, agarrou o pescoço de Thereza, beijando-a com frenesi, faminto.

— Não gosto destes modos, Jujú. Fica calmo, meu benzinho. Toma o teu sorvete e vamos para o jardim.

Uma grande paz arejou repentinamente a sala.

Quando, fora, a surpresa vasta e luminosa do noturno marítimo os tomou, Jujú subitamente febril conchegou-se à Thereza. O pavor extático era excessivo. Luzes que pairavam em cima, luzes que por terra se estendiam maliciosas, que subiam nas massas negras, que dançavam na água, corriam no espaço nu ou repleto da claridade, sons que trombeteavam, que murmuravam no escuro ou espumavam na baía. Delírio. E os perfumes que desabrochavam de todos os cantos do jardim. Intoxicação.

— Senta aqui, Jujú... Vou-te contar uma história bonita.

— Se é bonita, é triste...

E o menino esperou a narrativa. Thereza repetiu a infatigável história das fadas, das princesas amorosas, dos papões, dos encantamentos, das desditas e das esperanças.

— E o príncipe entrou, os olhos de ouro, o sorriso brilhante...

— Quem era o príncipe? Filipe?

— Que Filipe?

— Aquele moço que vai lá em casa... E gosta muito de mim. Não conhece Filipe? Que pena! Vamos lá em casa, Teté. Filipe está lá.

— Bobinho, que me importa o teu Filipe. Ouve a história... Então o príncipe entrou e viu a princesa adormecida...

— Teté, as estrelas só dormem de dia?

O pequeno assustou-se ouvindo a voz de Radagasio para Thereza:

— Você fica como sempre, pois eu vou andar a pé para queimar o ácido úrico.

O corpo pesado desceu aos trancos as escadas de pedra, e o ar deslocado agitou o rasteiro e miúdo pavimento verde do jardim alarmado. Thereza agasalhou o menino, que emigrou para o alto reluzente. Adormecia e sonhava. As estrelas são princesas. Os olhos brilham e espiam aqui embaixo... Eu espio para cima. Elias estão vendo os meus olhos, como os do gato, ali na escuridão, que são vaga-lumes e vêm pousar nos cabelos de Thereza e que se enrolam nas árvores e me amarram no alto da palmeira, onde o vento dança e me faz dançar e me sacode no mar e eu nado, nado, e Thereza me tira da água e me aquece tão gostoso e me beija melhor que mamãe, que está lá em casa ouvindo Filipe, e todos calados, quando passa o anjo e me leva para o céu para brincar com as estrelas... Princesas que só dormem de dia... E o príncipe entrou... Conta Teté... Filipe entrou...

Thereza exaltava-se com essas emanações do pensamento rudimentar, que se dilatava em imagens. Librava-se também no sonho. Noturno transcendente. Não havia nem o real nem o irreal. O universo desmaterializa-se, escapa-se em fugas espirituais, torna a condensar-se e fragmenta-se nas aparições sensíveis. Todos os objetos vivem a sua incomensurável vida molecular. As pedras, as árvores, o mar, as estrelas, os corpos humanos, os grandes e imperceptíveis fragmentos da matéria, todos infatigavelmente se consomem e se transformam na eternidade da duração, independentes do espírito que deles se apossa e os transfigura. A mesma força dinâmica move os seres, em que se decompõe o Todo. Thereza era arrastada inconsciente no movimento misterioso e irreprimível. O menino adormecia nas fronteiras do irreal. Thereza absorveu, no colo, o corpo da criança, como uma concha agasalha maternalmente um molusco.

II

Da sua triste, ampla e reluzente cama, Thereza via pela janela aberta a neblina abafando a manhã. Uma espessa camada de nuvens encobria totalmente o horizonte. Tudo desaparecera, montanhas, praias, ilhas e água. Apenas um foco de luz bronzeia indicava o sol nascente, que vinha de longe, atravessando a cerração e marcava um disco de fogo. Na indecisa projeção da luz surge um vapor. A fumaça mancha a neblina. Os mastros vão passando, o casco submerge na névoa. Thereza entorpecida, os olhos extáticos e todo o longo e estreito corpo amortalhado nos lençóis bordados.

Vestido de pijama de vicunha, cor de macaco, Radagasio entrou. Um movimento de asco arrancou Thereza da névoa agasalhadora. Rapidamente cobriu-se com um grande chalé. O marido sentou-se numa poltrona. A mulher viu-o ainda inchado de sono, a cara verde-fosco, os batráquios e miudinhos olhos remexendo sobre as bochechas caídas e o inquieto nariz fungando sobre o bigodinho agressivo. A voz sumida parecia sair da barriga estufada e ventríloqua. Todas as manhãs repetia-se este ritual do marido, que vinha ajustar contas com a mulher. Thereza esperava a cena miserável e a raiva transformou-lhe a lassidão em rigidez muscular, pronta para a defesa. Os olhos parados e frios, porcelanos, a boca cerrada.

— Você tem gasto muito dinheiro este mês. Em quê?

Thereza não respondeu.

— Ah! Não quer falar? É um bom sistema, gastar, gastar e não dar contas. Mas comigo fia fino. Quero explicações, tudo detalhado, vintém por vintém.

— Isso nunca, replicou vivamente a mulher.

— Nunca? Por quê? Não sou eu o dono da casa, o marido? Quem manda aqui sou eu, ouviu?

— Miserável!

— Não seja atrevida, que eu lhe bato.

— Oh! indigno, infame. Bata, se é capaz.

E arremessou o chalé, os lençóis e, em pé, de camisola afrontava Radagasio.

— Seu canalha! Se gasto é o meu dinheiro, o dinheiro do meu dote e da minha herança. O que você ganha é uma miséria. O dinheiro é meu. E gasto em quê? Em fazer prazer aos outros, em dar aos que não têm. Não é em luxo, nem comigo...

Radagasio, sôfrego por falar, preferiu discutir a avançar para a mulher, cujo rosto estava túmido, os dentes brilhantes, os olhos largos, a cabeleira segura, mas fofa, desordenada, as mãos fechadas.

Radagasio resmungava:

— É gastar para diante. Presentes a toda a gente, criados, família de criados, parentes, meninos da vizinhança. Agora é esse canalhinha, que lhe come todo o dinheiro. Você consome toda a fortuna. Verdadeiro Moloch.

— Que tem você com isto, miserável, avarento? O dinheiro é meu...

A voz de Thereza retenia metálica. Radagasio encolhia a sua expansão verbal.

— Mas não grite, mulher louca. O dinheiro é nosso. Se você o trouxe, eu sou o marido, o principal dono. Quem administra o casal sou eu. É a lei. Por isso cale-se.

Enojada, abatida, Thereza calou-se e maquinalmente vestiu o roupão e foi até a janela. O sol irrompera francamente em Niterói e varria, com o jato de luz, névoas, nuvens, segredos, mistérios e restituía às coisas a sua nitidez fatigante. Quando Thereza deixou a janela, Radagasio se tinha sumido, a criada preparava o banho e Thereza fitando a banheira cheia, achava que não havia água bastante no mundo para lavar-lhe a alma de tanta obrigação, que o servilismo tradicional impunha como um dever.

A vida conjugal ia assim, aos trancos. Thereza, humilhada e excitada, tinha pejo dessas reações violentas, que interrompiam a sua conformação com o isolamento. A existência se lhe confinava naquele exaltado retiro de vastos horizontes. A baía farta e o oceano, que se alongava, exprimiam, como todas as grandezas, a melancolia do infinito. A descomunal massa dos morros a soterrava. Lutava por fugir à tristeza e ao aniquilamento e nesta luta se esterilizava a inconsciente atividade espiritual. Tudo em vão e a sua própria feminilidade, cujo mecanismo, rico de formas e movimentos, podia ter ímpetos perigosos, se reduzira placidamente ao retraimento quase infantil. Entorpecera o corpo, como a inteligência, na submissão. A casa, o jardim, o morro e tudo o que era visão, paisagem incorporada aos sentidos, eram a posse de Thereza. A cidade embaixo, aos seus pés. Thereza raramente descia da sua solidão. Subir sim. Para onde? Se vinha à cidade, logo voltava ao seu morro. Jujú a esperava na ruazinha sossegada. Thereza saltava do automóvel e vinha docemente a pé com o menino. Cheio de presentes, agarrado violentamente à mão de Thereza, sorvendo-lhe o perfume, os olhos e a voz, o pequeno transfigurava-se na volúpia bem-aventurada. Ao passar pela sua porta queria levar Thereza para dentro da casa e eles se debatiam e ela se libertava e o arrastava consigo. Uma tarde, a família estava à janela, quando o pequeno, alvissareiro e resoluto, repetiu mais vivo o ataque. Thereza, diante dos estranhos olhos espantados para ela, fraqueou na repulsa. Eles disseram:

— Entre um pouco, sem cerimônia, para fazer prazer ao menino.

Thereza entrou. Jujú batia palmas, ria, pulava. Rataplan! Rataplan! Plan! Plan!

A família desceu os quatro degraus da escada e arrebatou Thereza para a sala.

— Oh! Que milagre a senhora nesta casa, casa de pobres, mas honrados, dizia a mãe de Jujú num grande alvoroço hospitaleiro. Este menino é louco pela senhora, temos medo que ele lhe aborreça muito. É teimoso e fujão. Sempre desaparece e corre para a sua casa.

Jujú triunfava e, todo misterioso, entendia-se com Thereza. Esta afirmou o seu encanto com a criança e as doces conversas, que tanto a divertiam. Os que lhe falavam eram três. Pouco a pouco eles se foram descobrindo. Eram a mãe, o pai e um irmão de Jujú. Moravam no morro há um ano e achavam “muito agradável por causa do sossego e da vista”. A casa rasteira à rua interior do morro, provinciana e ausente, descia a pique na frente do outeiro. Levaram Thereza para a sala de jantar, aberta sobre a baía. Thereza debruçou-se à janela e sorriu à “vista” que era a sua cotidiana e inseparável companheira. Todo o morro ali era revestido de casas, que subiam e desciam em planos variados de formas exóticas, ingenuamente pretenciosas nos seus arremedos mouriscos, feudais, coloniais, rubros, brancos, verdes, que por entre as vegetações ousadas, refulgiam ao sol, como exageradas e ardentes araras. Ao lado, o cubo do Glória incitava, possante e ameaçador, a transformação daquilo tudo. Não eram só os olhos, que gozavam a multiplicidade espetacular. Os ouvidos enchiam-se da alegria de todos os timbres exaltados, confusos, dissonantes. A sala era simples e a luz plena separava rudemente os objetos e alargava o espaço.

— Não repare, é tudo muito modesto... A senhora vive no luxo, há de estranhar.

Thereza não gostou daquela insistência medíocre da mãe de Jujú. O homem notou e logo remediou:

— Não tem importância, Calú, está se vendo que D. Thereza compreende tudo. Nós somos uma família de empregado público. Eu sou escriturário do Tesouro, este é meu filho mais velho Manuel, estudante de direito, que se forma este ano. O outro que vai chegar é o Pedro, estudante de engenharia. Conhece a menina, a moça da casa?... Ainda não? Pois ela vive nos bailes, nos futebóis, só pensa em se divertir. Está na rua com amigos.

— Como se chama?

— Araci. Foi uma história de minha mulher. Como Araci é nome índio, aceitei, porque eu penso que devemos conservar os nomes nacionais. Os meus filhos são Manuel, Pedro e José, este Jujú, o caçula, que nos veio com uma diferença de dez anos da irmã.

— Uma bela surpresa, cumprimentou faceira Thereza. Eu que o diga, não é meu Jujú?...

O menino deu-lhe um beijo veemente e quis meter-se-lhe no colo.

— Deixa a moça, Jujú, imperou a mãe. Senta sossegado.

E o puxou com força. Batido, encolhido, Jujú afastou-se, humilhado diante de Thereza.

— Todos nomes nacionais. É verdade que me puseram um nome, que não é da tradição portuguesa, nem indígena, mas é clássico, Aristides. O de família é bem nosso, Vieira.

— Meu marido chama-se Radagasio...

Uma gargalhada festejou a vingança de Thereza, cujos úmidos olhos sorriam mais que a boca luminosa.

— Então é um bárbaro? arriscou Manuel e logo recolheu a observação.

Thereza olhou com simpatia o estudante e reparou-lhe os olhos escuros pensativos, a cabeça muito cabeluda, o rosto triangular, pálido, tropical e triste.

— No Maranhão a mania é dos nomes clássicos, influência da cultura antiga, observou Vieira. Nós somos do Maranhão, eu e minha mulher, os filhos são cariocas.

— Ah! Maranhão! Que saudade, gemeu D. Calú, erguendo a grande cabeça, que saía do pescoço volumoso. Terra boa como aquela, D. Thereza, não há. O Rio pode ser grandioso, mas falta a intimidade, a simplicidade. E as comidas, então!

— Ora deixemos de bairrismos, interrompeu Vieira, levantando-se para melhor discorrer. O Brasil é um só, um todo e assim é que devemos amá-lo. A força da nossa terra está na sua unidade. Pode ser grande, imenso, variado, mas é um só. O povo do Rio Grande do Sul está unido ao do Amazonas. Todos irmãos, uma só língua, uma só religião. Nada de separatismo. Frente unida diante do estrangeiro, o inimigo, que vem nos sugar o sangue e está alerta nas fronteiras. Já somos muito infelizes e se fossemos nos retaliar, adeus pátria.

— Eu sei, Aristides, replicou pachorrentamente a mulher, suspirando. Mas isto não impede a saudade da terra da gente. Olhe, minha senhora, estou aqui há vinte e cinco anos e não me posso acostumar de vez. O meu coração está no Maranhão, luar como o de lá ainda não vi e os rios tão doces e as frutas tão gostosas e as comidas... Nesta casa se come à maranhense. Se eu ousasse, eu convidava a senhora para um dia provar os nossos pratos. Vou lhe mandar uns doces do Maranhão. Jujú é que lhe levará.

O menino alvoroçou-se. O seu olhar em êxtase perdeu-se em Thereza. Vieira impaciente não admitia aquela nostalgia incorrigível da mulher.

— Deixe-se de saudades à toa. Olhemos a vida cotidiana, reparemos na desgraça do país.

— Pobre Brasil, disse a voz grave de Manuel.

E Thereza:

— Oh! Assim desesperançado, um moço!

— Não é desesperança, é desespero! A nação está espoliada, sufocada, sem liberdade e martirizada.

— A senhora não sabe o sofrimento do povo. Não há dinheiro que chegue para os que são pobres, murmurou a mãe.

E Vieira vociferava:

— Os ladrões governam. Eu sei no Tesouro o que são as contas do governo, os escândalos horríveis e os desfalques vergonhosos. Não se pode dizer nada. Estamos em permanente estado de sítio.

— Três anos malditos... acentuou rancoroso Manuel.

— É verdade, disse tristemente Thereza. Há tanto tempo esta opressão. Que tirania!

— Mas há de acabar, minha senhora.

E Manuel levantou-se.

— Revolucionário? indagou Thereza.

— Sim. Aqui somos todos. Cada um a seu modo, até Araci, afirmou a mãe. Eu não posso pegar em armas, mas sou pela gente que padece dos déspotas. E abençoo estes meninos de coragem, que se bateram em Copacabana, que estão no sul e no norte salvando a vergonha nacional.

A evocação da mocidade heroica emudeceu a todos. Thereza recebeu o ímpeto da revolta contra o despotismo, a rapina e a desumanidade dos flageladores do país e o seu coração bateu o ritmo da libertação. Ela queria saber mais e mais da agonia do povo e das esperanças de salvação. Manuel respondia-lhe, radiante de se expandir sobre o que era a sua vida:

— Um ano de revolução e o governo, com todo o seu poder, o seu dinheiro, a sua corrupção, não venceu.

— E não vencerá, já concluía Thereza, espantando-se ela própria da sua fé repentina.

O sentimento agira bruscamente sobre a inteligência e criara a convicção precipitada.

— Não vencerá, repetiu entusiasmado Manuel. Pode haver minutos de parada, mas o espírito revolucionário não se detém e não há força que o abafe. O impulso vem do fundo da alma nacional e procura reagir contra esta onda de lama, esta infâmia das gentes, que se apossaram do governo para depredar o país, porque neste despotismo a finalidade é locupletarem-se os governantes e toda a recua que os serve. A revolução vem de longe e é sobretudo uma revolução da mocidade.

— É a sua força e a sua beleza, exclamou Vieira, arrebatado pelas palavras resolutas de Manuel, que prosseguia:

— A mocidade esteve no Brasil longo tempo servil, dando tristes sinais de decrepitude. Ela estava na indolência e formava na clientela dos políticos. Não era mais a mocidade desinteressada, que fez a abolição e a república, era uma massa indigente, miserável, viciada pela volúpia e procurando o dinheiro no jogo, nos empregos públicos, nos negócios equívocos. Uma materialidade absoluta unia solidariamente velhos e moços.

— E como a mocidade se transformou nesta legião de loucos, de revolucionários?... Diga, insistia inquieta Thereza.

— A explicação é difícil. O fato é que ela se transformou e o ideal a move e a faz heroica. Talvez a guerra europeia despertasse o idealismo universal. Talvez o individualismo desse uma nova afirmação ao homem, que se separou do rebanho, viu por si mesmo e teve horror. No Brasil a mocidade é a revolução contra tudo e contra todos. Já homens moços têm vergonha de servir ao governo. Este sentimento de pejo é o mais vivificador sopro da vida nova do país.

— A revolução está em tudo e em toda a parte, afirmou Vieira.

— Em tudo, continuou Manuel. É todo o pensamento brasileiro, que se renova e isto fecunda ainda mais a revolução. Filipe Miranda proclamou a necessidade da revolução para desenvolver o dinamismo espiritual, moral e físico do Brasil.

Thereza prestou profunda atenção à fórmula renovadora. Filipe Miranda? Filipe? Era esse o Filipe de Jujú? Como será ele? A ardente exigência de concretizar excitava o senso real da mulher.

Manuel prosseguia:

— A revolução, se não se apossar do governo nestes dias, mais tarde ou mais cedo vencerá. Olhe a Rússia, a luta foi de anos e anos até que a revolução se espraiou vitoriosa e pela forma mais imprevista. Assim será no Brasil. A fórmula ainda é uma incógnita. Quem pode com o espírito novo? Miséria esse despotismo execrando. A mocidade bateu-se gloriosamente em Copacabana, em São Paulo, no Paraná, no Rio Grande, no Piauí, em todo o Nordeste, na Bahia. Os velhos magníficos, que a presidem, são conduzidos por ela, pelo surto sublime do seu entusiasmo. A grandeza desses velhos está em compreender o espírito novo e ser por ele inspirados. Que maravilhoso gênio militar o destes chefes de vinte a trinta anos! Prestes, o capitão-general, realizou o maior prodígio militar do Brasil, nesta marcha incomparável do Rio Grande ao Piauí, passando pelas linhas governistas, batalhando, vencendo e passando sempre. A marcha de Prestes uniu o Brasil sertanejo e essa união, tomando-se consciente, completará um grande destino patriótico, universal.

— Como? perguntou sôfrega Thereza.

— Muito simples. Os sertanejos permaneciam isolados uns dos outros e as suas preocupações políticas exclusivamente regionais. Um gaúcho só se interessava pela dominação do seu Rio Grande, um homem do Contestado não via outra coisa senão a independência da sua região, um jagunço da Bahia limitava-se a rivalidades baianas, como os cangaceiros do nordeste brigavam unicamente pela política e pela rapina do seu sertão. Ora os revolucionários levando a gauchada para o Norte, incorporando às suas legiões homens do Contestado, jagunços, cangaceiros, propagando a revolução política, geral, despertaram a consciência do sertão.

— Como os bandeirantes outrora...

— Um pouco. Mas os bandeirantes e os vaqueiros percorreram o Brasil, entrelaçaram as gentes as mais diversas movidos por interesses econômicos, a escravidão dos índios, o ouro, as pedras preciosas, o gado. Os revolucionários fazem a unidade em torno de um pensamento, de um ideal político. Esta admirável ação fecundará os espíritos limitados ao regionalismo, rudimentares no fetichismo político e religioso. As populações sertanejas, unidas pela mesma consciência nacional, são chamadas a uma considerável missão na evolução brasileira.

— Mais um benefício da revolução, exclamou Thereza, adivinhando.

— Aqui também no Rio não há um moço digno, que não seja revolucionário, disse D. Calú. Se a senhora soubesse o que foi a noite da revolução do Protogenes...

— A mais bela noite da minha vida! exclamou Manuel.

— A maior decepção... comentou soturno o pai.

— Decepção? Sim, foi enorme. Mas eu falo do entusiasmo, que sentimos todos, da esperança que nos exaltou. Foi o minuto mais intenso, mais agudo, mais universal, que jamais vivi, aquele em que a revolução ia arrebentar. Foi a ascensão gloriosa do meu ser para a libertação.

— D. Thereza talvez não saiba tudo, cortou D. Calú.

— Ouvi contar tanta coisa. Mas ninguém sabe a verdade verdadeira.

— Nós sabemos e não se pode esquecer. Às vezes temos tanto consolo em lembrar... Era a voz nostálgica de D. Calú, que modulava a evocação.

— Nós estávamos preparados para a primeira ocasião. O comandante Protogenes era o chefe de mais prestígio entre os oficiais da marinha e na marinhagem. Devia ser o chefe do movimento aqui. Até então a revolução estava mais ou menos solidificada no exército. Na marinha o sentimento revolucionário era vasto e ardente, mas amorfo, sem a menor coesão de um pequeno grupo, que fosse. A intervenção do comandante Protogenes corporificou o espírito de revolução entre os navais. E subitamente se teve a revelação de que quase toda a marinha era revolucionária. O governo sentiu-se perdido e ficou perplexo. Uma vez decidida a revolução da marinha, o entusiasmo alastrou-se na mocidade civil, sobretudo das escolas.

— Um governo que tem contra si a mocidade é um governo condenado para sempre, interrompeu Vieira.

— O comandante Protogenes soube preparar tudo. O plano a executar era ousado e de ação rápida, violenta. O comandante se apoderaria de um encouraçado e deste ordenaria o ataque. Forças da marinha desembarcariam e protegidas pelos destroieres seguiriam do cais pelo longo da Avenida Beira-Mar até o Catete. Os corpos do exército e da polícia que, dominados pelos jovens oficiais, entrassem no movimento marchariam para o mesmo alvo. Nós, os moços civis, estaríamos armados nos vários pontos e também no cais para ajudar a ofensiva dos navais. O Catete seria tomado de assalto, o presidente prisioneiro...

— Se ele não fugisse! rangeu D. Calú.

— Não tem importância. A revolução estaria vencedora. Na tarde de vinte de outubro, continuou Manuel, foi dada a ordem para o movimento naquela noite. A uma hora da madrugada um tiro do “Minas” anunciaria a revolução. Nós fremíamos. Jamais maior sopro de entusiasmo passou nesta cidade, entusiasmo profundo vindo da ânsia de liberdade, do pudor coletivo, da vontade da desforra contra os bandidos, que nos venceram e mancharam o país. Todos os camaradas reuniram-se em grupos e foi uma sublime vigília para a libertação. O Brasil ia renascer. Ressurreição!

— Vai fazer um ano, em outubro, minha senhora, disse a nostálgica D. Calú. Desta casa saíram oito moços, armados, corajosos, para morrer ou viver. Ficamos eu, o meu velho e a menina... Eu abençoei a todos... E chorei, chorei de fé e esperança... Pobre da nossa terra!

— Desde a meia noite, lembrava Vieira, estávamos de relógio à vista esperando o sinal... Quando chegou uma hora, nos levantamos. E o tiro? Nada. Estaria certo o relógio? Ou seria um atraso e tudo aconteceria, como fora marcado? Os minutos correm, nada de tiro. Angústia. Esta mulher teimava que era engano e o tiro seria às duas horas. Esperamos. Duas horas, nada. Cansados, inquietos, presumindo coisas horríveis, que não nos dizíamos, nos recolhemos, mudos, cada um para o seu lado, sem coragem de nos olharmos... Às três horas ouço entrar os rapazes. Corri inquieto. Eles estavam aniquilados. Não compreendiam o alucinante silêncio. Viram a baía, as praias, as proximidades dos quartéis. Um sossego vergonhoso e infinito. Encontraram companheiros com a mesma angústia, caminharam, indagaram e sempre o infame sossego e a imensa mudez. Cada qual foi deixando as ruas melancólicas. Eles ali estavam em casa moídos, mortos. Pela manhã saíram e souberam a horrível coisa, a antecipada prisão do comandante, que menoscabou da polícia e não previu o golpe da delação. Um ingênuo? Pobre Brasil!

— É a delação que ajuda o governo, lepra moral deste país de escravizados. O governo os compra, o pavor e a infame cobiça os vendem, disse Manuel. Não importa. A revolução não para mais no Brasil. É a única, solução para acabar com esta corja de políticos, que se apossam cinicamente de tudo, oprimem, assassinam, furtam, enriquecem.

— O perigo é o caos, observou Vieira, coçando a barbicha.

— Ora papai, você sempre medroso.

— Empregado público, gritou malcriada a mulher.

— Qual empregado público, deixe de desaforo. O que eu digo é que a revolução é muito justa, mas depois? É um salto nas trevas.

— Então não se deve fazer nada com susto deste famoso salto. É deixar tudo correr como está, os ladrões, os déspotas se aproveitando, o povo bestificado, todos resignados como escravos. Ah! Não! A revolução é a revolta da honra, da dignidade, é a vida, o movimento que reage contra a apatia covarde. Só por isto, por ser a ação, ela é bela e indispensável. Perturbação? Mas é sinal de vida. O movimento é a lei do Universo. Deixe de medo, papai. Para adiante. Varramos esta canalha.

E o seu gesto exprimia a violência de limpar, de clarear, de elevar o que era maculado, turvo, baixo e era o Brasil. Thereza entrava numa atmosfera estranha, de ódios generosos, de desafrontas desinteressadas, de exaltação transcendente. Uma deliciosa combustão a abrasava e a excitava para a revolta. O que ela aspirava a libertar não era uma idealidade, uma ficção, não era um país, uma nação política, era o seu próprio eu. Da força ideal e complexa dos revolucionários, Thereza apropriava-se para resolver vitoriosamente a sua existência. No meio da conversa, que prosseguia, ficou absorta, abismando-se na ilusão. E mal reparou na entrada do outro filho da casa, Pedro, que vinho alvissareiro e estacou quando viu a vizinha. Logo o puseram em equilíbrio.

— Boas notícias? perguntou o pai...

Os olhos do rapaz faiscavam, eram gázeos, miúdos e móveis. A boca rasgada, as maçãs do rosto pontudas, moreno carregado de tez, nariz esparramado, todo ele felino, flexível, ágil. Não respondeu à pergunta do pai. O irmão o entendeu e os dois afastaram-se. Pedro vibrava e sussurrava revelações, que Manuel recebia ainda mais pensativo e mais rancoroso.

— Boas notícias? insistiu o pai. Desembucha rapaz. Aqui a senhora é de confiança. Não trairá ninguém...

— Neste caso eu vou-me embora, cortou Thereza, pronta para partir. Pedro, atrapalhado, interrompeu-a:

— Não faça isto que me ofende. Posso falar diante da senhora. Olhe, disse sôfrego, prepara-se novo movimento para estes dias.

— Quem te disse? Viste o capitão?

— Vi. Ele está muito animado. O plano é tremendo. Desta vez o Presidente não escapa. É a ação direta que vai começar. Sabe, a senhora vai ver coisas extraordinárias. Não se espante.

— Sou corajosa. Pensa que tenho medo?

E Thereza sorria de valente.

— Haverá atentados, não a pessoas...

— Ah! Sempre a generosidade brasileira, esta fraqueza que mais é covardia. Medo, medo, ora, resmungava raivosa D. Calú.

— Mamãe é sanguinária... Havemos de chegar lá. Por enquanto não há necessidade e não devemos chamar a odiosidade à revolução.

— Eu sou pela ação direta, violenta. Morre alguém? Não tem importância. O principal é vencer, liquidar de uma vez isto, objetava D. Calú.

— Os chefes decidiram o emprego das bombas, informou Pedro.

— Bravo! Agora ao menos é o terror e eles ficarão apavorados, aplaudiu Manuel.

Vieira coçava a cabeça, mudo e pesando o imponderável.

Thereza viu-se comprometida numa tenebrosa conspiração. Mas bravamente aceitou a cumplicidade. Não fez um gesto para reter a fatalidade revolucionária.

— E o governo? perguntou Vieira, que, de decepção em decepção, tinha um respeito secreto à força, que demonstrava o presidente.

— Continua na defensiva. Porque somos nós que o atacamos. Ele finge-se indiferente e, para mostrar que não teme a revolução e faz o que lhe parece, promove a reforma da Constituição, explicou Pedro.

— Oh! Miserável! Será possível que passe afinal? indagou violentamente Manuel.

— Sim. Foi Filipe que me disse.

— Filipe? Tu o viste? Porque não o trouxeste?

— Estive longamente com ele. Viemos a pé da cidade. Não pôde vir, até aqui, porque está trabalhando, reservou a noite para escrever e lá se foi solitário...

— Que diz ele? Repete.

— A reforma da Constituição é um ato de sadismo político do presidente. Este homem sombrio, cruel, vinga-se. A nação o detesta, ele a faz sofrer e prepara-lhe o martírio escravizando-a, amordaçando-a, infligindo-lhe o castigo, que perdurará. Sabe que o seu governo é estéril, que não criará coisa alguma, vinga-se esmagando as forças vivas da nação para que esta se torne infecunda. Tortura-lhe as vísceras e o seu regozijo secreto é assombroso. A mocidade o odeia, ele persegue-a e dá-lhe um verdugo. Martirizou o exército e a marinha e goza o estranho gozo de ver aos seus pés, generais e almirantes. Intriga uns com os outros, chefe de polícia, chefe da casa militar, ministro da guerra, ministro da marinha, e, nesta atmosfera de baixezas, de ódios, de disputas das suas preferências, o homem cruel deleita-se e vinga-se. Que maior delícia do que rebaixar tudo, senado, câmara, supremo tribunal, políticos, juízes, jornalistas, todos miudinhos, curvados, anulados e sem pejo. Renunciaram à vergonha para ficar nas posições. O presidente atira uns contra os outros, promete, ilude-os e os mantém prisioneiros da esperança do ganho. A cidade o vaiou, celebrou o seu ridículo num carnaval. Para castigá-la deu-lhe uma polícia infame, que a assassina, a rouba, a abafa. É uma volúpia alucinante ver que ela não se entrega pela violência e ele a martiriza mais na ânsia de possui-la. Agora é preciso fazer sofrer a nação inteira, não só hoje como no futuro, porque ele será execrado nesse futuro. A vingança está preparada e o martírio do país perdurará. A república era idealista, protegia o indivíduo, desafiava e continha o governo. Acabe-se com a liberdade. Institua-se o despotismo legal. Não será o presidente sádico o presidente da ditadura constitucional, mas vinga-se e rejubila-se, porque entrega aos verdugos vindouros o corpo da nação para ser flagelado e o espírito para ser abafado. Delícia.

E Filipe disse mais:

— Este sadismo combina-se estranhamente com a volúpia de sofrer, que se apodera do povo brasileiro. O gozo está no sofrimento, na dor que nos humilha, nos rebaixa e nos dá a satisfação ardente de proclamar a nossa infelicidade, a nossa miséria diante dos outros povos. É preciso nos aviltarmos para sermos felizes. Vamos nos anulando, amortecendo, entrando mansamente na podridão. Ser o povo mais desgraçado, mais batido, mais pobre, mais miserável, entregar-se à violência dos nossos flageladores, é o requinte do prazer. Refinamos a espiritualidade, e, enquanto o corpo geme, a alma delicia-se. Um gemido imenso, soturno, apavora o espaço. Ele vem das camadas inconscientes e dilata-se no alto. É a nação bárbara, decadente, alucinada, que geme nos candomblés, nas pajelanças, nas torturas espíritas, nas igrejas. Quem geme não se revolta, alivia-se, alegra-se na dor, obedece, curva-se e espera jubiloso mais sofrimento. Desta fonte sombria gera-se o espantoso pessimismo, que entorpece a vida e é o supremo gozo do aniquilamento. Os que escapam a esta volúpia miseranda e se revoltam, atingem ao paroxismo do desespero. Ódio contra os verdugos e os escravos. Surge o misticismo da liberdade contra o misticismo da escravidão e da tirania. Eis o Brasil, uma luta entre as terríveis subconscientes correntes místicas, que o agitam e o alucinam...

A noite apoderou-se do mundo. Thereza ergueu-se rápida, despediu-se. Levando o menino, como um arrimo, atravessou a rua. Thereza sentira ter tocado no real profundo e inexorável de todo um povo. Havia um sofrimento, que dilacerava e supliciava a nação. O seu sofrimento íntimo, a sua angústia, dilatavam-se na dor mais vasta. Corria veloz pela ruazinha provinciana banhada na mansa luz do gás, medrosa de encontrar o marido. Parecia-lhe ter cometido uma infidelidade, penetrando naquele mundo estranho e novo, ao qual ainda há pouco ousara dar-se toda, ávida de partilhar o sofrimento coletivo e agir loucamente na revolta redentora. Agarrou-se ao menino, protegeu-se com ele e subiu as surdas escadas do jardim. Radagasio a esperava no alto da esplanada, batendo as bochechas de cólera. Thereza recalcou o pavor. Diante do espantalho ridículo reagiu altiva, não murmurou a explicação, que vinha formulando. Aquele homem odioso, aquela grosseira massa humana era movida pelo mesmo espírito diabólico, covarde, vingativo, que movia os flageladores do Brasil.

III

No pavilhão do jardim, mirante da vastidão, Thereza abismava-se nas ansiadas e resfolegantes águas da baía. Para além da barra alongava-se, lívido e glauco, o oceano. A luz limitava as formas sem cor das coisas. Os corpos postavam-se extáticos, isolados e brutais, na eternidade incandescente.

Na refulgência solar, os cabelos escuros de Thereza irradiavam eflúvios de ouro. Nos olhos castanhos chispavam pontas de sol. Nas ondas em elevação espumavam miríades de sóis. As pesadas manchas da terra, as sombras das montanhas avolumadas, cortavam em fachas densas a unidade fosforescente. A boca de Thereza cintilava na pulverização da luz e equilibrava a fulguração universal. A palidez do rosto esbatia-se na atmosfera vibrante. Do esguio corpo, contornado pelas fugitivas cores zodiacais e, das brancas vestes, emergiam vagas mãos esmorecidas. Ávidas línguas de sol desciam sobre as chamejantes pedras dos anéis e as unhas rubras.

O cheiro das árvores e das flores exaltava a solidão. O murmúrio abafado das vagas e o arrepio do vento escasso ressoavam lugubremente no cálido torpor. O espírito de Thereza mortificava-se no excessivo arrebatamento do mundo tropical. Era a implacável luz perpétua, era a fixidez das massas aterradoras e sempre a imobilidade eterna. A alma móvel aspirava a libertar-se da natureza hostil. A adversária, pronta a desencadear a catástrofe, está em secreta e infatigável destruição e no tumultuário aspecto sente-se o frêmito da revolução íntima, que um dia nos avassalará. A magia do terror gera-se na ideia da ameaça permanente e, nessa misteriosa angústia, Thereza sorvia o supremo encanto e a entranhada fascinação da natureza brasileira.

Fatigada de esperar o que jamais acontecia, Thereza deixou o pavilhão do jardim, entrou em casa e recolheu-se à penumbra do salão. Para mover-se no escuro fechou os olhos, tontos de luz, e atirou-se mansinha a um sofá, que lhe agasalhou docemente o flexível corpo abrasado. Foram-se-lhe abrindo os olhos noturnos por entre a pompa triunfal das cores ali abrigadas, fugindo à impiedosa luz devoradora. Das sedas e dos brocados, do ouro e do cristal, do bronze e do marfim, das madeiras e das pratas, das rosas, das folhagens, das orquídeas, volatizavam-se as cores. Em uma só tonalidade aérea uniam-se às sonoras vibrações do Universo, ao infinito e nostálgico mugido das águas, ao ardente e intérmino canto das árvores, dos pássaros, dos insetos, das plantas e dos humanos, ao indefinível gemido do que não tem nome, é imponderável e abstrato. E em tudo fundiam-se os cheiros onipotentes e sutis, as emanações ininterruptas da perene combustão do que vive e se transfigura eternamente. Sobre o âmbar da palidez do rosto de Thereza, o reflexo azul dos olhos sombrios. A tépida respiração sussurrava longínqua e vaga e ela cheirava, como uma planta aromática. Cumpria-se com as outras coisas a unidade inquebrantável.

Absorta numa irreprimível cisma, Thereza não perturbava com os seus gestos aquela vida dos objetos e tudo se consumia em arrastar no labor imaginário o mundo das sombras. No compacto jorro de luz, que pela porta do terraço invadia o salão, entravam besouros reluzente e zombeteiros, trombeteando no espaço colorido, enquanto insetos impalpáveis se fixavam fascinados no clarão e vibravam, como moléculas luminosas. Entravam borboletas, álacres, loucas, farejando as plantas, entrou um beija-flor célere, inatingível, bailando sobre as rosas e na vertigem alucinante, agitando sutilmente a suavidade sepulcral, parecia na sua pequenina e imperiosa violência arrebatar tudo na dança fantástica da luz, das cores e dos perfumes. Thereza adormeceu e os prodígios da vida universal continuavam incessantes e maravilhosos na quietação sem fim.

Quando ela acordou, pareceu-lhe que tudo parara. A monótona agitação dos insetos perpetuava o infatigável ritmo da ardente calmaria. Thereza veio ao terraço e mirou a água, cuja pele era lisa, tranquila e juvenil. O ar extinguira-se. No amplo silêncio da luz, o espírito de Thereza pairava sobre a imobilidade universal. Nenhuma aspiração, nenhum desejo a agitava. Abismava-se no sossego solar, em que tudo entorpecera. Confundia-se com a melancólica tristeza do céu, do mar e de toda a imensidade. E nessa quietude instantânea cessava a singular tortura, que busca e ignora. Tudo se acalmara na resignação inconsciente, em que se apaga a suprema angústia humana. As fronteiras do universo estavam ali, na luz, na água, nas montanhas, nas árvores. O espírito em êxtase ficava prisioneiro do maravilhoso das coisas efêmeras. Na exaltação aniquilava-se para sempre. Era a indiferença integral a toda a relatividade da vida, era a passividade do ser que, no vazio da existência, se deixa esmagar pelas forças desconhecidas e insuperáveis de um destino particular, imaginado como a emanação da inacessível e inexorável fatalidade primordial. A ascensão fez-se lentamente. No começo era a inconsciência moça, o ardor físico de viver, a combustão do sofrimento moral, que transforma rapidamente tudo em alegria. Mais tarde, Thereza se sentiu só. Foram-se os fugazes divertimentos da mocidade e a grande separação entre ela e o mundo formulou-se alucinante. Era a incomensurável tristeza do vácuo. Nenhum refúgio deu-lhe a vida. Nenhum apoio socorreu-lhe o pensamento. Nenhuma magia veio-lhe do coração. O mundo rolava indiferente e o espírito desvairava, ora na revolta, ora na melancolia. A ânsia da libertação da sua própria existência e de toda aquela agressiva e trágica natureza, que era o quadro permanente do seu espírito, terminava inócua e desfalecida. Não havia finalidade para a sua revolta. Aonde ir? Que alívio à sua indefinível dor? A solidão a perseguiria eternamente, a separação das outras coisas universais jamais se extinguiria. E ficava prisioneira da terra maravilhosa, impregnando com a sua tristeza todo aquele fulgor revoltante, afundando-se na amargura desesperada da sua vida. Quando lhe vinha o doce e sutil tédio de tudo, Thereza inebriava-se na volúpia desse gozo sem gozo e deixava-se triturar pela fatalidade até sentir-se dissolvida no eterno aniquilamento universal.

A veemência do calor não cessava. O céu dilatava-se e mais pálido subia transfigurado, fugindo ao estupor da terra. O mar calara-se abafado de sol. As palmeiras inteiriçaram-se. Só o que era humano interrompia estupidamente a concentração do mundo. Thereza, espectro de luz, etérea, plácida, sentia a delícia de ser absorvida pela beleza do Universo. Ela era magnífico holocausto do espírito humano ao Todo inconsciente.

Súbito, vibráteis mãozinhas lhe agarraram o vestido. Um riso infantil desarticulava o triste sossego. Thereza voltou-se inteiramente despertada do seu recolhimento e segurando rápida a criança, como para libertá-la de todo o sofrimento, exclamou:

— Sai deste sol horrível, filhinha.

E arrebatou-a para o salão. Lili ria-se na excitação deste jogo. As perninhas e os bracinhos espadanavam. Thereza atirou-a no sofá e numa ânsia de acariciar, de se dar, beijava fremente a filha, que se debatia vivaz.

— Mamãe, mamãe, basta, não me mata...

Thereza beijava-a ainda mais e mais. Agarrava-a ao seu colo, estreitava-a com força, absorvente, como se naquele corpinho humano estivesse todo o refúgio da suprema angústia. Os cabelos cacheados da criança ameigavam o rosto da mãe, os olhos castanhos semicerrados exprimiam, risonhos, o gozo do vibrante conchego. Na penumbra, aquela pequena alegria tinha a força de transformar o império do inconsciente absoluto em frágil realidade humana.

Thereza não percebeu mais a tortura do seu espírito, que se amorteceu no suave esquecimento. Retrocedera instantaneamente ao círculo infantil e harmonizara-se integralmente com a filha. A imperiosa animalidade maternal excitava-lhe o prazer da brincadeira. Corriam as duas pelo salão, riam, gritavam, atiravam-se ao chão sobre os tapetes surdos, jogavam para o ar as almofadas e abraçavam-se por entre beijos estridentes.

Na grande solidão do morro aquele ruído violento sacudia a morna atmosfera. Os pássaros misturavam-se à alegria humana, os cães latiam, farejando vadiação, corriam pelo terraço, pelo jardim e invadiam a casa. Os gritos dos galos, opulentos e faiscantes, fulminavam o ar. Os perus excitados, rubros os papos, enrouqueciam aos berros. Na sala, a mãe e a filha confundidas na mesma alacridade rolavam pelo chão. Na penumbra, atravessando a facha de luz mansa, surgiu a negra volumosa, cinzenta, olhos brancos e vasta boca viscosa a vociferar:

— Isso são modos, Sinhá? Larga Lili, que são horas dela dormir... São duas horas passadas.

Tudo paralisara. Thereza sentou-se no tapete, sorriu desconsolada. Lili procurou o seu colo para esconder-se. A negra segurou-a com decisão e, afagando-a, carregou-a.

Thereza ficou só. Tornava à consciência do seu isolamento e da sua separação das outras coisas. A alegria fugaz, passando instantânea, tinha-lhe dado o esquecimento. Agora estava só e o pérfido pavor da solidão a inquietava. Era mais um dia inútil na série melancólica do tempo, que apertava inexorável o limitado espaço, em que ela se movia. O seu apego à realidade cingia-se ao pequeno ser, que a todo o instante lhe arrancavam dos braços. A vibração maternal cedia à tirania da criação da filha. A preta absorvia a existência da menina e a mãe, por inércia, por inexperiência, deixava-se ficar timidamente inativa. A solidão, sem um pensamento para enchê-la ou um sentimento para santificá-la, era vazia e esmagadora. Ao espírito jovem de Thereza trazia o supremo tédio da vida. Nenhuma finalidade em seus atos. Ela buscava a força, que a transformaria em um ser ideal, que era a sua ânsia secreta e inconsciente. O tédio a confinava em si mesma e ela achava a sua própria companhia um deserto infinito, em que toda a alegria fora crestada pela reverberação da inexplicável tristeza.

Os dias enfadonhos da casa de Thereza cruzavam-se com os dias de entusiasmo da casa dos vizinhos. Thereza aí vinha buscar a esperança e fugir ao tédio. Muitas vezes subia a ladeira a pé, na volta da tarde, querendo que a chamassem, e se entrava, havia-lhe no sangue um rebate de liberdade. Todos ali eram ardentes e viviam no excesso da vida ordinária. E aquela que não tinha a combustão imaginativa, Araci, entregava-se aos divertimentos, aos jogos, às danças, aos banhos, aos passeios, no feliz transbordamento muscular e sensual, da animalidade em flor. Era alegre e descuidada. Que lhe importava a sorte do país? Que lhe interessava a república com os seus aborrecimentos? Ela tinha a liberdade bastante para a sua vadiação, e que bela vadiagem a do Rio de Janeiro! Os elementos do prazer oferecem-se graciosos. É o mar com as suas oceânicas praias exaltadas, a enfunada baía corcovando os skiffs e os yoles, os campos, onde a bola rola, as montanhas, que criam fantasias para a vista, a cidade trepadeira, as avenidas familiares, o sol senhoril, a viração vagabunda, árvores companheiras e cinemas, confeitarias, almofadinhas e melindrosas. Araci deslizava sobre o dorso das coisas. Multiplicava-se para tudo gozar e no ritmo simultâneo das diversões o seu corpo grácil prosseguia dançarino. Thereza não se comunicava com esse alvoroço, mas o via expandir-se com simpatia, pois era uma expressão da fugitiva liberdade. Os seus encontros eram raros, a melindrosa vivaz escapava-se do morro provinciano às tardes, à hora de Thereza. E, se vinha a casa, logo vozes juvenis a reclamavam à porta da rua. Eram outros vizinhos, moço e moça, camaradas de farra. E Araci abalava ardente. Dava uma risada, pulava, beijava Thereza, a mãe, beliscava Jujú, que embezerrava furioso, punha o chapéu sobre os cabelos ruivos, os olhos azuis iluminados, a pele branca e sobre ela ligeiras vestes fulgurantes.

— Porque tão ruiva, tão diferente de todos? indagava Thereza.

— Restos de holandês do Maranhão, respondia D. Calú.

A companheira de Araci, que a esperava fora, anunciava nos gázeos olhos ciganos, na tez amarela, nos cabelos crespos, a mestiçagem, que a sinuosidade do corpo ondeante acentuava.

— Pronta, Zilda! disse Araci para a amiga.

Figuraram beijos, receosas de se marcarem as faces do vermelho dos beiços. O rapaz, irmão de Zilda, o Léo, baixote, truncado, nadador, remador, dançador, namorado de Araci, segurou-a logo com a mão calejada, apertando-lhe o braço, invasor, familiar.

— Ai! gritou Araci, gostosa da brutalidade.

— Comigo não é canja, replicou o rapaz esganiçando a voz, que lhe saía de uma boca alvar, enquanto os olhos miúdos e escuros faiscavam sob uma testa curta e bronzeada, coberta de um cabelo duro, preto, rente à escovinha.

— E D. Genoca não vem? perguntou Araci.

— Mamãe? riu-se Zilda. Ora se vem! Já se viu mulher mais assanhada para pagode? Lá vem ela...

Aparece na rua, espocadas as carnes, um monstro pintado, de pés pesados, andando trôpega, de nádegas caídas, pernas inchadas, amplos peitos, cintura e ventre ligados, braços volumosos e curtos, de onde pendiam mãos enormes, pescoço opulento, tireóideo, a boca melosa e escancarada, o nariz latejante, túmida a cara, os olhos esbugalhados, saltados, de caranguejo míope. E gemia:

— Meninas, eu mal posso andar, tenho os joelhos presos, a cabeça me estala. E vocês me forçam a sair!...

— Deixe de fita, mamãe. Se está doente, fique em casa. Bicho não nos come, e o Léo vai conosco...

— Não. Já agora também vou... Sempre me distraio um pouco...

E como visse à janela Thereza e D. Calú, veio logo a elas.

— A senhora está vendo, D. Calú. Estas meninas judiam comigo e eu estou tão doente... Ninguém faz caso, mas um dia elas verão.

— Não, D. Genoca, a senhora está moça, forte, deixe de manha, isto é nervoso...

— Nervoso! É só o que me dizem. Reumatismo é nervoso... Olhe as minhas mãos...

— Vamos, mamãe, deixe de lamúrias... berrou o Léo.

— A senhora está vendo, D. Calú, como me arrastam... Esta senhora é que mora aqui defronte?... A senhora vive num paraíso! Olhe, um dia vou lá fazer-lhe uma visitinha...

As moças a agarraram e a içaram para dentro do automóvel. D. Genoca protestava:

— Não empurrem. Que brutas!

O automóvel foi descendo devagar. E tudo caiu em sossego.

— Esta gente, explicou D. Calú a Thereza, é esquisita.

É a família de um tal Adalberto Costa, corretor, que esteve metido na falência de um banco e saiu rico. Comprou esta casa muito boa, que dizem de estilo mourisco. Já foram à Europa, a família meteu-se, na sociedade. Deixo Araci andar com eles, porque eu não a posso acompanhar... Não gosto. E assim a pequena se diverte. Eles a chamam sempre... Mas aquela mulher é uma linguaruda danada, intrigante, e prega cada mentira! Ela já quer se meter em sua casa. Já veio logo com elogios... Se fosse moça seria uma melindrosa, mas destas bem afetadas, como é velha e anda nas rodas estrangeiras, é conhecida pela dengosa internacional...

Thereza sorriu desdenhosa. Na sua intimidade ninguém penetrava. Tinha segurança em si e a visão instintiva lhe traçava, largo e profundo, o círculo da sua defesa pessoal.

— Onde anda Jujú, que desapareceu? perguntou inquieta. E D. Calú disse que talvez, zangado com o beliscão de Araci, se sentisse humilhado e se escondesse.

— Quem sabe se não estará em sua casa?

— Ah! Sim, com certeza.

E logo interessada pelo seu maravilhoso amiguinho, Thereza partiu.

A rua estava parada. Thereza sentiu uma instantânea volúpia ao entrar na solidão. O contato com aquele alvoroço vulgar a tinha entristecido. Aspirava a voltar ao seu isolamento, em que o sonho era infinito, o desespero independente, seu, do seu íntimo e inquieto espírito. O que ela procurava na casa dos vizinhos não era a ociosidade, a vadiagem, era o entusiasmo da libertação. Na rua solitária retomou-se a si mesma e ligeira chegou ao portão da sua casa. Na curva da rua vem despontando Jujú e com ele um rapaz. O menino corre, a sua voz vibra:

— Thereza! Filipe!

Ela parou. Filipe apertou-lhe a mão, que já se estendera resoluta. Não falaram. A mulher festejou a criança. Jujú ria vitorioso.

— Ah! Eu estava lá em cima te esperando, Teté, quando vi Filipe subindo a ladeira da igreja. Corri para ele e ficamos vendo a festa no mar...

— Que festa?

— A esquadra vai partir para exercícios, explicou Filipe. Estávamos olhando os primeiros movimentos, mas Jujú ficou desesperado pela senhora e não quis ficar.

— Vamos ver agora, Teté? insistiu o pequeno.

Thereza enfeitiçou-se com aquela ansiedade amorosa do seu menino. Por um momento pensou em subir com eles à sua casa e do mirante seria a doce infiltração do êxtase, do movimento das coisas e agora da simpatia humana. A sua casa? Hesitou e condescendeu em acompanhá-los ao largo da igreja. Caminharam os três, subindo acelerados para chegar a tempo do espetáculo. Foram batendo os passos na estreita calçada, rentes ao muro, de onde espiavam enfileiradas folhas de bananeiras, velas verdes dos quintais, que o vento esfarrapa. O largo da igreja, pequeno e seco, apenso ao baluarte, em que repousa a igreja, liga duas ladeiras. É logo circunscrito por uma velha casa pesada, acachapada, triste, que desce morro abaixo. Havia apenas uma nesga de vista para a baía. Thereza, habituada a vasto descortino, zombou:

— Daqui é impossível... Ora, Jujú, que ideia!

O menino alvissareiro, imperioso:

— Vamos lá em cima, lá na igreja...

Pela escadaria de pedra galearam até o pátio. Sobre a grande base de cantaria e lajedos de granito, tão gasto e esburacado, pousa a igrejinha do outeiro da Glória. Está solta ao ar livre, face à barra, dando as costas ao morro. Empoleirado na torre, um galo de ferro brinca com o vento e carrega uma cruz. A torre quadrilátera, nua. A massa corpórea da igreja aperta-se numa cinta, alarga-se para traz, abrindo-se de cada lado em janelas, óculos, balcões, sôfregos da viração e da vista marítima. A fachada de luzentes escamas de fingidos azulejos cobre um pequeno pórtico singelo, que protege a porta e o fresco recolhimento interior. Os três invasores da solidão, arrebatados pela perspectiva ampla, infinita, e pelo silêncio das pedras, que eram arquitetura, olharam-se alegres. Thereza e Filipe entendiam-se secretamente na afinidade estética inconsciente, que produz uma zona benéfica, inefável de simpatia, a zona da beleza; A admiração física, que sentiam um pelo outro, nascida do sentimento oculto da seleção, dava-lhes alegria e entusiasmo. Por alguns instantes Filipe calara-se. O mistério da beleza está no silêncio, que ela faz em nós. Thereza recebia a luminosidade dos olhos solares de Filipe e sorria-lhe. E os olhos cresciam em êxtase pela beleza contemplada. Veio depois o fulgor da voz envolvente, e luz e som transfiguravam a poderosa cabeça, os finos cabelos despenteados ao vento, o rosto claro e cheio, o grande nariz pensativo, a boca suave, ligeiramente velada pelo leve bigode. As mãos pequenas cortavam o espaço. Filipe mostrava a esquadra, que se movia. Pouco a pouco se foram enfileirando destroieres, cruzadores, destroieres, torpedeiras. Passavam lentamente, abandonando as lanchas e rebocadores, que, intrujões, os acompanhavam na baía, farta de água e viração. O encouraçado chefe marchava numa imponência voluntariosa, atrevida, libertando-se da barra. Fumos insolentes. Fumaça negra, volumosa, pastosa. Grossas massas espessas suspendem-se, dançam pesadamente na risca túmida e sanguínea do horizonte. O dreadnought caminha impávido e fumarento, envolve-se na fumaça e perde-se no oceano. Dentro da baía, a água azul afoga-se no esplendor rubro da dissolução solar. Jujú, calado, absorto no que via, deliciava-se no jogo alegre das gaivotas pairando, voando sobre as vagas, trepando nas ondas, gritando entusiastas, grasnando, mergulhando para apanhar os peixes disputados por dezenas delas num rolo de asas, bicos e patas. No alto, um solitário carapiá talhado em ângulos agudos, finas asas negras esticadas, vogava o seu mecanismo sintético e esquemático. Passavam aos pares tristes joãos-grandes e tesouras, ávidos imbuias. Das ilhas do fundo vinham, tocados a recolher, bandos apressados de maçaricos, trinta-réis e de garças, indiferentes à pescaria. A passagem das aves traçava uma curva, que envolvia o espaço, prolongava-se espiritualmente e sugeria a curvatura universal.

Para Thereza tudo era excessivo. Dentro das tumultuosas massas de pedra, cavadas nas raízes pelas águas vorazes, apoderada pela energia vegetal, que avançava tentacular para a sufocação da terra e dos seres numa dominação verde, úmida, sombria, acariciadora, Thereza retrocedia ao estado cósmico inicial e absorvia-se no vago das formas, das cores, da luz e das forças, sentia a irrealidade transcendente, repelia de si mesma a consciência da vida, funesta e intolerável interrupção da deliciosa desordem dos elementos alucinantes. Fitava o mar. A baía assanhada, com as ilhas, que surgiam fúnebres da água, pedregosos cabeços sombrios de penhascos submarinos, e outras reluzentes, como gigantescos besouros, vogava na luz total. O ruído ardente da cidade subia numa densa rede de sons suspensos em torno da colina, buzinas de automóveis, guinchos de bondes, repiques caipiras de sinos, berreiros humanos e o indefinido rumor anônimo, palpitante, que apavora como o resfolegar das forças misteriosas e avassaladoras. Tudo subia e sufocava. Opressa, ofegante, Thereza debatia-se na angústia da desordem. Refugiou-se em Filipe.

— Ali é a minha casa, disse ela pensativa. Triste casa... Quando eu olho este mar livre, estes vapores que partem, tenho uma dor...

— Por que este desespero?

— Não sei. Quisera viajar, sair desta prisão. Que me importa a beleza que me cerca, beleza que é estranha a mim, morta, morta... Palmeiras, baía, ilhas, sol, floresta, morros, pedras, não me entendem. Quero o que é humano, próximo do meu ser, do meu coração. Aqui tudo me acabrunha e me persegue...

— Não se deixe dominar pela ansiedade vã da desordem. Viajar não significa libertar-se. Esta libertação, ambicionada com tanto desespero, deve ser conquistada aqui mesmo na prisão. A viagem não é esta deslocação material da pessoa através dos espaços. É a transposição espiritual a todas as formas, a todos os seres, a todos os pensamentos. É o conhecimento do universo, é a incorporação, é a fusão no Todo infinito, que realiza a unidade.

Thereza entenderia? Uma infiltração musical arrebatou-a. Filipe continuou a arrancá-la do caos. Filipe punha ordem em tudo, equilibrava o mundo, fixava os planos exteriores e determinava a vertical interior da esfera ideal, apoiada solidamente na horizontal do seu espírito. Tudo se compreende no número, no movimento, no espaço. Filipe construíra o universo. A construção é no espaço, numeroso e móvel. Sem o espírito nada existe. A existência criada pelo espírito objetiva-se fatalmente. O espírito coordena todas as coisas por um sistema rígido de linhas e volumes. É a organização da eternidade.

O sol abandonou a terra, que se tornou descarnada e lívida, esperando a fantasmagoria da noite. A baía, esmorecida, enfastiava-se da água cinzenta, que a esfriava. Os morros tinham perdido a sombra, todos desertavam da cena sem a magia da luz. Os horizontes pontudos enfiavam-se nas bojudas nuvens. Os rumores humanos, os ecos em liberdade cresciam, apavoravam na quietação concentrada. Thereza apoiou-se em Filipe para descer vagarosamente do pátio da igreja. Na viela soturna os três moveram-se silenciosos até o portão da casa de Thereza. Filipe e Jujú foram-se. Thereza subiu os degraus, que levavam ao alto. Quando chegou em cima, olhou o mundo. Uma grande audácia a inspirava. Sentia-se capaz de subjugar o universo. Filipe era o ordenador, o arquiteto do seu ser.

IV

O sortilégio sexual exercia o seu encanto em Filipe. A primeira impressão, que recebeu de Thereza, foi a da magia física. Esta o incorporara ao ser feminino, que nas formas ardentes, móveis, no magnetismo do sangue, da luz e da cor, na emanação dos odores, lhe completariam, na profunda naturalidade, as ânsias do instinto. As palavras vibrantes da mulher, arremessadas intempestivas no primeiro encontro, agitavam-lhe o pensamento. Thereza o comovera pela sua ansiedade de libertação e sua sede de infinito.

Este violento transporte do desejo, da volúpia e da angústia moral despertou em Filipe a visão retrospectiva da sua vida, manancial de forças íntimas, que se acumularam para uma finalidade ainda imprecisa. O meio familiar era numa pequena casa das Águas-Férreas, no arredio largo do Boticário, puro e delicioso artifício antigo, inverossímil com os sobradinhos ornados de azulejos coloniais, uma quinta de cada lado, a amendoeira e a mangueira ao centro. Quando Filipe aí penetrava, tudo o que era prazer exterior se transmudava em alegria espiritual. A sua mãe e a sua irmã viviam religiosamente. A casa era um santuário. O coração dos corações espraiava a luz sanguínea da fé e da esperança. A lâmpada ardente fazia refulgir no oratório os resplendores, os azuis, os vermelhos, os brancos, as pratas e os ouros dos santos. As mulheres moviam-se mansamente por entre velhos móveis, desertavam durante o dia da casa, e à noite contavam uma a outra a atividade espiritual e caritativa, em que se empregavam. Filipe as entendia como anjos envelhecidos, mas sempre sustentados e movidos por cordões divinos e alegrava-se com a solidez desta ligadura mística.

Copacabana defendia-se asperamente e por si mesma, sem auxílio humano, sem cais, sem avenidas, de um mar bravio, fogoso, que a queria avassalar, quando Filipe na infância teve a revelação consciente do mundo exterior. A moradia era na única rua longa e deserta, respeitosamente distante das vagas. Filipe e a irmãzinha fugiam de casa e percorriam vagabundos a praia selvagem. À tarde eram encontrados pelos cães e pelos criados dormindo debaixo das rasteiras pitangueiras, cosidos pelo sol. Filipe crescia na solidão e na liberdade. Quando pela primeira vez o trouxeram à cidade em um bonde puxado a burro, o menino enfureceu-se, viajou de olhos fechados, rancoroso. À noite voltou febril, misteriosamente doente desta privação dos vastos e livres horizontes do seu mar quotidiano e das luminosas areias farfalhantes, onde se enterrava, como um tatuí, por entre as salgadas espumas chiadeiras.

O pai de Filipe era outra fonte de libertação. A sua mocidade temperou-se nas ondas espirituais e sentimentais, que revolviam o Brasil e o renovavam. O jovem Miranda, ao sair da puberdade, foi envolvido na agitação intelectual transformadora da cultura e nos movimentos da abolição e da república. A família, embora residente no Rio há longos anos (pois o avô de Miranda Viera do Norte para o Supremo Tribunal de Justiça) mandou o estudante fazer o seu curso jurídico no Recife. Arrebatado bruscamente para a vida acadêmica, desconfortada, boêmia, que lhe era tão estranha, Miranda reagiu contra a melancolia pela imaginação da inteligência e pela força da simpatia humana.

Por aqueles tempos três movimentos libertários coincidiram no Recife. Nenhuma cidade brasileira teve tal privilégio. O país inteiro estava agitado pela abolição e pela aspiração republicana. A estas duas correntes políticas e sentimentais veio juntar-se no Recife a emancipação espiritual. Miranda adolescente foi abolicionista, republicano e monista. Era a libertação integral. As ideias tornaram-se sentimentos e o estudante atingiu ao absoluto da paixão moral. Libertou escravos, acoutou em sua pobre “república” negros fugidos e os fez partir nas barcaças libertadoras. Conspirou contra a monarquia, escreveu pela república. Venceu o terror religioso, negou o direito natural, compreendeu a relatividade, que determina a evolução jurídica. Repetiu a tese famosa de que só o monismo dá o verdadeiro conceito do direito. Recife chato, longo, com o pitoresco de rios e pontes, Recife de mar quebrado, de luar espectral, exalava esses fogos fátuos da inteligência, que percorriam o país e levavam aos recônditos obscuros fosforescências sublimes.

Miranda veio, assim iluminado, para um lugarejo da província do Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar como advogado e onde pregava as ideias da escola. Não tardou a derrocada da escravidão. O país queimava-se, purificava-se nessa voragem, que consumia a fortuna da velha sociedade, fundada sobre o escravo. Realizava-se a grande revolução, que por longos anos seria o caos, em que elementos desencadeados dominariam diabolicamente pela força sobre a pobreza geral, criariam a submissão, a escravidão de todos. Miranda alegrou-se com a vitória do sentimento, que por cima de destroços assentava a liberdade sempre longínqua. Era o sacrifício fatal e necessário. O Império enlouquecera na decrepitude do imperante e no despotismo megalomaníaco do seu governo e facilitara a república. Uma classe subsistia orgânica, viva, armada. Eliminou as outras, combalidas ou inorgânicas, e apossou-se do país. A aurora da república foi a magia da mocidade de Miranda. Noivado. Miranda substituiu a gravata vermelha de propagandista pela gravata branca. No Rio era uma preamar de mocidade, que invadia tudo. Miranda foi dos ardentes. O seu entusiasmo propagava a sua juventude chamejante por entre os velhos republicanos, histéricos ou finórios, idealistas e odientos. Viveu na intimidade da ditadura, açulou-a, purificou-a. Mais tarde foi o seu primeiro adversário e o seu primeiro preso. Miranda refugiou-se altivamente nos estudos, enquanto o país se afundava na servidão, flagelado indefinidamente por grupos militares e civis. Por entre esta desordem e apenas percebido pela mulher, ignorado dos filhos, Miranda morreu. Filipe cresceu reconstituindo aos poucos este pai seu desconhecido, que se lhe tornou uma divindade misteriosa, a encarnação da liberdade, do entusiasmo e do excesso da vida.

Areias soltas, vibrantes, dardejantes, areias compactas, úmidas, salgadas, ventos assanhados, águas barulhentas, jatos espumantes, eram os estranhos companheiros dos jogos infantis de Filipe, de sua irmã e dos cachorros. Juntavam-se outros meninos da vizinhança esparsa na praia, apenas revelada. Os pequeninos corpos nus pesavam na atmosfera incandescida. Uma menina trigueira, que refulgia ao sol, viva cabecinha de andorinha, corpo ouro e verde, alvoroçava as longínquas entranhas de Filipe. O banho pueril era nas bordas da praia, aonde a água cobiçosa e vadia vinha inundá-los. Os corpos, submersos nas espumas, logo surgiam gotejantes na alegria dos risos, dos ventos, das ondas. Crescia o calor e a criançada recolhia, tangida pelas criadas. Filipe e a irmã, arrastando-se vagarosos, deixavam a praia miraculosa. A menina trigueira desaparecera. Filipe sentia-se abandonado. Fora a sua primeira atração sexual consciente. Este amor infantil comovia a mãe de Filipe.

Isabel Corrêa de Sá e Miranda definhava na insondável melancolia da viuvez. Casara-se impelida por um movimento de paixão e no casamento o seu temperamento amoroso expandiu-se violento, ébrio de ciúme, exclusivo e absoluto. Para o resto da vida a placidez e a indiferença. A velha raça mantinha fixa a estrutura do organismo seco e sólido. A fisionomia adelgaçava-se na boca e no nariz. O pescoço fino sustentava uma cabeça aérea, de onde desciam longos cabelos castanhos negros e de onde relampejavam noturnos, doces, vivos olhos brasileiros.

Morto Miranda, não sabia Isabel como viver. A sua dor a isolara. A saudade sexual consumia a sua mocidade. O amor, a virtude, o pudor a confinavam na tristeza. A imagem do marido não se desprendia do seu pensamento e exaltava-lhe a angústia. Tomaram-se inseparáveis nessa vida irreal, subconsciente, que pouco a pouco se foi substituindo a relatividade enganadora e se transmudara em realidade transcendente. Miranda exercia a presença real no inteiro ser de Isabel. Eles se entretinham misteriosamente, ela agia sob a direção dele, a alma banhava-se nessa onda mística da união infinita do homem e da mulher e o corpo em êxtase vibrava nos inefáveis e imaginários espasmos da volúpia. E devagar, devagar, para melhor se entender com o amado, Isabel se foi servindo da doce cumplicidade da religião. Todo o ambiente doméstico se fez devoto. As crianças eram os anjos, que intercediam pelo pai e levavam ao paraíso as saudades da viúva. Ao anoitecer Isabel os fazia ajoelhar aos seus pés e eles repetiam os padre-nossos e as ave-marias e confundiam o pai com Deus e a mãe com a Virgem Santíssima. E depois, ambos ao colo, Isabel lhes falava do pai sempre vivo e no desabafo amoroso interrogava curiosa Filipe sobre os seus amores com a menina trigueira, querendo que a chama da paixão, que a inflamava, se fosse propagando nos filhos, pela eternidade. E Isabel aconchegava o menino, que ruminava os primeiros frutos da volúpia, como um maridinho, essência do outro, enquanto a menina Leonor mais criança, jazia nos círculos mal atingidos pelos desejos sexuais.

No grande deserto noturno a casa da viúva abria uma clareira de luzes diferentes, luzes amarelas do petróleo da grande lâmpada do terraço, luzes opalinas da sala de jantar, luzes do azeite das lamparinas do oratório, que todas se fundiam no espaço esclarecido pela refracção do mar e das areias. Cessava qualquer comunicação com a cidade. O último bonde de burros passara. As casas longínquas fechavam-se umas às outras. O movimento incessante do vento, das ondas, das enterradas pitangueiras, das escassas e ainda delgadas amendoeiras e malváceas dos quintais salteados, era o magnífico e salso silêncio sob o céu estrelado. Nas noites mornas o terral propagava o fartum da maresia. Os que velavam nas casas emudeciam nas suas cismas. A vida interior, de sonhos, de imaginações e anseios, expandia-se na negrura. Em Copacabana, como em todo o universo, nada dormia.

Ainda não era bem claro, já Filipe e Leonor, alvoroçados, com outras crianças, estavam no banho e correndo sobre a praia iam ao encontro das canoas de pescas, que se recolhiam com as redes, os puçás, arrebentando de peixes. Outras vezes a pescaria era na praia, a grande rede cercava o peixe, e o arrastão era puxado de cada ponta por filas de homens bronzeados, por entre o alarido da criançada. Ao chegar na areia os peixes debatiam-se, espadanando os corpos, que brilhavam como prata viva, antes de arquejarem morrentes. Esses divertimentos infantis, que a natureza e a vida primitiva davam a Filipe, cessaram um dia, quando a viúva, estimulada pelos médicos, transferiu a sua moradia da praia para a montanha.

A segunda infância de Filipe passou-se em Petrópolis. Para o filho de Miranda, para o menino da livre Copacabana, a cidade alemânica da serra era a limitação. As avenidas regulares, os canais, por onde escorrem as mofinas águas de um rio sedento, as pontes vermelhas, os chalés, as crianças louras faiscantes, davam o transporte deste mundo tropical para o mundo europeu. O que havia de brasileiro era o cheiro das magnólias ardentes, que arejavam livremente o espaço, e um céu alto, azul, longínquo, que no verão se peja de nuvens grossas e se desfaz em chuva violenta, invasora, alagando canais, chalés, destruindo pontes westephlicas, moselicas, rhenanicas, numa gostosa desforra brasileira. Dentro destas montanhas o espírito de Filipe aspirava à libertação. Sua mãe afundava-se na religiosidade. No sossego da pequena cidade, afastada dos divertimentos, que se esforçavam por interromper no verão a solidão montanhesa, D. Isabel praticava a vida devota. As ânsias da viúva transfiguravam-se em fervor místico. A sua existência exterior era marcada pelos deveres da fé e da caridade. A sua alma librava-se na força íntima e possante da outra virtude, da esperança de ganhar o céu, redimir o marido adorado para renovarem núpcias celestes. A educação dos filhos foi entregue aos colégios religiosos. Enquanto Leonor ia se divertindo nos fáceis estudos e na brincadeira de conquistar cruzes, medalhas e cordões, Filipe retraído, revoltado, cheio de pudor sexual, foi possuído da fúria intelectual. A angústia do conhecimento o perseguia. O que lhe ensinavam era restrito, deficiente. Filipe ignorava o que faltava, mas sentia que era preciso ir além, desvendar mais, enriquecer-se de noções exatas e infinitas. Os padres não percebiam a febre da inteligência infantil, que a torna subitamente adolescente, e continuavam na indistinção rotineira a tratar igualmente alunos desiguais. Filipe entristecia nas proximidades da puberdade, quando a única válvula da sua expansão era a aprendizagem abstrata, que a matemática inicial ou a geografia ou a história lhe forneciam. Se lhe vinham ideias sexuais, desejos impulsivos de amor, Filipe tudo afastava com horror, medroso do pecado, orgulhoso da sua pureza por entre os condiscípulos, viciados e bestificados na luxuria juvenil. A imaginação transbordava em sonhos e revoltas. Petrópolis convidava a um misticismo amável, que padres, frades e freiras entretinham docemente. Quando a gente da terra está só e os forasteiros se vão, redobra a devoção coletiva. A vida cotidiana é marcada pelo ritmo religioso. Missas matutinas na grande e álacre claridade, vésperas crepusculares, novenas noturnas, confissões, festas de igrejas, milagres de frades santos, enchiam e exaltavam a existência devota. Na semana santa, no grande silêncio místico, as acácias se fazem quaresmas, as estradas, as avenidas estão manchadas de doloridas flores roxas, e o luar da grande lua empalidece a terra na infinita vigília da paixão. As almas ficavam impregnadas de poesia religiosa. Filipe vogava nessa atmosfera mística e assim quando esperava a madrugada da ressurreição e uma claridade branda entrava pelo seu quarto, o menino despertou e nos seus olhos vagos a facha de luz diáfana, que vinha da janela, invadia o quarto, separava as trevas, era o anjo, que, depois de haver libertado o Senhor do sepulcro, lhe aparecia com o rosto e as formas de uma menina trigueira para anunciar sorrindo o milagre prometido. Pouco a pouco Filipe se libertava deste torpor imaginativo. Na rebusca do conhecimento irrompia-se a desforra da revolta contra toda a austeridade dos professores, que restringiam a curiosidade intelectual do discípulo. Foi por essa época de melancolia sexual e angústia de saber, que Filipe, como outros, fez uma grande descoberta. Descobriu a máquina.

O espanto, que gerou a revelação, veio dos primeiros automóveis, em que por acaso se fixou a atenção de Filipe. Não tinham eles ainda a forma sintética, peculiar ao seu tipo próprio, que hoje adquiriram. O automóvel era o carro sem cavalos e talvez por isso mesmo mais surpreendente a sua misteriosa máquina, que subitamente eliminara, escamoteara os animais. Filipe mecanizou tudo no seu espírito ardente. Intuitivamente procurou reduzir gentes e objetos a máquinas, exaltou-se da dinâmica dos movimentos e qualquer ponto de repouso de uma estática imaginaria era, para a sua ansiedade locomotora, um ponto de partida. Antes desta fase da mecânica generalizada, Filipe, quando iniciado no jogo do bilhar, esteve possuído do espírito geométrico. A sua imaginação armava com tudo o que via ou pensava, triângulos, círculos, figuras e desenhos no plano, em perpétuas carambolas, que eram singulares e descomunais ideogramas. Tal era o poder de abstração de Filipe. Na fase mecânica procurava a ligação interior da máquina, que punha em movimento cada objeto. Daí a intuição de que tudo se ligava no Universo por causas, que determinavam a existência e as funções dos seres. Os padres, seus professores, alarmavam-se com as suas indagações, que eram índices do espírito que nega.

Para Filipe o plano universal não podia ser a vontade de um ente estranho à matéria do Universo. A sua inteligência não se acalmava nesta quietude de uma longínqua criação, quando tudo lhe parecia em perpétuo e inextinguível transformação, e não compreendia que os seres terminassem em um criador consciente, quando este criador seria fatalmente a criatura de outros, que se sucediam ao infinito. Nenhuma luz lhe vinha do ensino dos padres para esse confuso e instintivo determinismo. Praticamente Filipe ia percebendo que a mecânica dominava a vida em torno dele e o seu pendor era para os estudos matemáticos, fonte e explicação do grande segredo da mecânica universal. Os padres não se descuidaram de assinalar à viúva o perigo, que corria a ortodoxia no espírito de Filipe. Nenhuma decepção foi mais cruel para a devota. O seu filho estaria condenado ao inferno, em cuja materialidade acreditava. Como já fosse o momento de dar uma direção à vida do filho, D. Isabel resolveu mudar-se de Petrópolis para a facilidade do curso acadêmico de Filipe no Rio. Instigada pelos padres e cumprindo o secreto desejo de dar ao filho a carreira do pai, D. Isabel induziu Filipe a estudar direito nessa faculdade, onde uma desforra espiritualista campeava depois da ofensiva de libertação, que os estudos jurídicos tiveram. Assim Filipe renunciou à preparação técnica, que a mecânica lhe revelou e seria a marca da época moderna. Foi esta base, que faltou sempre à sua cultura.

Na faculdade, o seu isolamento intelectual era grande. A maior parte dos condiscípulos seguia as ideias reacionárias dos professores. Voltava-se à suma tomazina, ao direito natural, às categorias morais, à ontologia, aspirava-se o odor teológico. Filipe apartava-se desta corrente e pela abstração compreendia a relatividade do direito, que seria a relação entre os indivíduos na sociedade, como o espaço é a relação entre os corpos. Do símile biológico deduzia Filipe a evolução do direito. Eram remodeladas pela cultura as ideias-forças, que foram o entusiasmo da mocidade de Miranda. Nesse momento, em que reapareciam, a tumultuosa massa dos jovens brasileiros não lhes prestava atenção, fascinada pela eclosão esportiva no país. Ninguém estudava, todos brincavam. Assim nos moços se transmudou em alegria a velha tristeza racial. A guerra europeia veio arrancar de sua perene vadiação de corpo e espírito, a mocidade brasileira. Indiferente à servidão interna, aos furores do caudilhismo, à depredação do país pelos dirigentes políticos, comoveu-se com a tragédia estrangeira. Foi então que no meio dos estudantes a ação de Filipe apareceu. A guerra não era para Filipe somente a luta dos imperialismos nacionais e capitalistas, era o conflito de duas estéticas, de duas filosofias, a competição de duas formas de cultura sempre opostas durante séculos. A filosofia e a ciência alemã, que vieram aos brasileiros na sedução das traduções francesas, haviam exercido grande atração nos espíritos ávidos de ideias raras e obscuras. A guerra veio esclarecer a inteligência e a sensibilidade brasileiras que se reintegraram na sua afinidade latina. O sentimento nacional revelou-se bruscamente em Filipe, que previa na vitória alemã a mutilação do Brasil, esboçada nos sonhos da conquista germânica, que se realizaria na absurda Alemanha Antártica. O estudante inspirado tornou-se agitador patriota e universal.

Enquanto agia a parte sentimental da população, aquela que a literatura, a ciência e o entusiasmo pela revolução francesa agitavam, os políticos brasileiros se retraíam em seu círculo medíocre e longínquo, ciosos por ignorância e covardia da neutralidade do país na grande guerra, em que se jogava entre outros destinos, o do Brasil. Um homem político saiu desta posição extravagante. Pelo seu inflamado verbo romântico, pela sua dialética de advogado liberal, tornou-se glorioso e resgatou a dignidade nacional. O resto da gente política continuava na servidão e no embrutecimento sob o mando de um caudilho astuto, medíocre e feroz. Havia assim uma grande disparidade de nível entre a inteligência, a estética, a sabedoria dos advogados, dos engenheiros, dos artistas e dos médicos, fora da política, e esta em que se ostentava um retrocesso à barbaria do despotismo com a dupla face, que a caracteriza, a violência e a depredação. O chefe desses violentos sucumbiu assassinado em um impulso de vingança facínora. Por esse mesmo tempo a Alemanha saía da sua cultura para assassinar e depredar.

Aquele caudilho morrera persuadido de que os seus assassinos foram os homens políticos, que o ampararam, quando caiu esfaqueado pelas costas. Tal era a desconfiança, em que perpetuamente vivia e se defendia. A noite velou-se o cadáver na casa afundada na verdura das árvores excessivas. Os vultos, que subiam e desciam a colina, desfilavam nas sombras, cheios do pavor da tragédia. Dentro da casa aglomeraram-se políticos, funcionários, capangas, capadócios, curiosos, mulheres, gentes de todas as classes e de todas as cores, espantados todos, desolados alguns e muitos aliviados do opressor. O cadáver, espichado no meio do salão, acentuava rigidamente os traços do cacique índio, que o sangue ibero não apagara e não fundira nunca. As caras, que o espiavam, vinham de todos os ângulos do país e em quase todas expandia-se a mestiçagem vitoriosa. A maioria daquela, gente provinha das matas, das senzalas, da vasa dos portos ou das carnificinas das coxilhas. Nordestinos triangulares, maranhenses lusos, baianos cafuzos, paulistas mamelucos, mineiros bisonhos, gaúchos castelhanos, todos brasileiros da plebe, que vem de escravidão em escravidão. Nas paredes, no chão, nos móveis, os troféus do caudilho. Cabeças de onça de rubras goelas escancaradas, cabeças estúpidas de veados chifrudos, cascos pitorescos de tatus, gaviões empalhados, araras carnavalescas, antas em pé, porcos espinhos, couros, penas, arcos, flechas, relhos, selas, arreios, rebenques, tacas, e suspensas, como imagens, as brancas caveiras de bois. Desses restos vinha um cheiro nauseabundo, o bodum dos negros e toda a catinga servil. Era o cheiro do cangaço, das degolas, das chacinas, de todas as cloacas da escravidão e da morte. Ele empesteava a mocidade de Filipe.

O sentimento de desprezo pela vida política excitou ainda mais em Filipe a atividade libertária. A guerra continuava angustiosa e o Brasil hesitante. A estupidez e a covardia dos políticos não atendiam à força sentimental e aos profundos interesses nacionais, que obrigavam o país a salvar-se com os aliados. Quando mais tarde o Brasil, impelido pela brutalidade do ataque da Alemanha, foi forçado a participar da guerra, revelou-se a insuficiência da organização brasileira, cuja diminuta contribuição se anulou em uma tragédia pestifera. Falhara mais uma vez o espírito nacional com desespero dos entusiastas, que criaram para o Brasil uma situação incomparável entre os povos da América do Sul. Filipe queria a contribuição do sangue. Era a finalidade da energia, que impelira o Brasil à guerra. Alistou-se para partir. Mas os sensíveis generais e os políticos não permitiram que as mães brasileiras chorassem os seus filhos. Ficou vitoriosa esta piedade, enquanto os sangues de outros homens, o sacrifício de outras mocidades, defendiam a integridade do Brasil da conquista alemã.

Com a vitória dos aliados o Brasil começou a participar do ambiente de nacionalismo, que inflamou o mundo inteiro. Uma soberba aspiração de criar e de expandir-se agitou a mocidade, que a vida esportiva tirava do marasmo. A consciência nacional, que procurava afirmar-se na libertação de um passado inútil e de uma atualidade mesquinha e mofina, não se podia desenvolver em toda a plenitude. Era entravada pela retrógada máquina política, explorada por homens incultos e infames. Era preciso destruir a máquina. Filipe tornou-se integralmente revolucionário.

O espírito revolucionário é o que não se conforma, não se adapta, está em permanente ânsia de renovação e de progresso. É dinâmico e fecundo. Agita e cria. O povo sem espírito revolucionário é um povo estratificado, morto. Toda a lei de progressão é uma atividade revolucionária contra uma ordem de coisas, que pretende se perpetuar e impedir o surto do espírito. Na ordem política brasileira a revolução, que traz em si aquela virtude do seu dinamismo espiritual, era indispensável e devia ser permanente, como reação contra o torpe marasmo da servidão, em que os homens caíram, flagelados por um poder, que os explora. Para Filipe nenhuma objeção a esta doutrina prevalecia. A da legitimidade do governo era fictícia. No Brasil não há governo legítimo. Todo o governo é uma usurpação. Para haver legitimidade do governo representativo seria preciso haver eleições legítimas. No Brasil o eleitorado é artificial e as eleições são simulacros. Só há governos de fato, que não se podem mascarar como governos de direito, legítimos, legais, representativos. O que há é um grupo de indivíduos, que se apoderou da administração pública e a explora para os seus interesses. Estes indivíduos podem ser expulsos do poder, sem que nenhuma legitimidade seja ofendida, porque são usurpadores, tolerados pela força armada. No Brasil só há o governo que o exército e a marinha permitem, porque estas são as únicas classes ativas e armadas, que podem modificar as instituições sem embaraço de outras classes, que não estão formadas, não existem como organismos conscientes, fortes, para manter a sociedade num equilíbrio de grupos de forças equiparadas. Por isso o principal objetivo dos governos é o apoio das classes armadas, ora estimulando-lhes a obediência, a passividade, ora amedrontando-as com a responsabilidade da anarquia revolucionária, ora beneficiando, com gratificações, promoções, comissões, os chefes militares e os oficiais. Criam-se os interesses, estabelece-se a solidariedade em nome da ordem, e os governos espojam-se folgadamente no despotismo. À objeção de que a ordem é a base social e que atentar contra ela é um crime, Filipe respondia que este misticismo da ordem era ideologia, como o misticismo da liberdade absoluta. A ordem é da essência da vida. Não há coexistência sem ordem. Se uma perturbação surge, é sempre passageira na infinidade do tempo. Tudo tende ao equilíbrio.

O que chamam desordem é uma abstração sem valor lógico. No sentido absoluto a ordem é o ritmo do Universo, a sua fatalidade. Contra a ordem do despotismo e da escravidão, a revolta permanente e criadora. À objeção de que a revolução prejudica o Brasil, Filipe respondia que seria a redenção da miséria moral, em que governos corruptos têm afundado a nação. A desgraça do Brasil estava na subserviência, na vassalagem, no despotismo, no roubo, na corrupção desenvolvida pelos governos e pela casta dos políticos, apoiada pelos militares. A revolução era necessária como disciplina moral, como surto da personalidade. Ou a revolução permanente, ou a estagnação na podridão.

Estas ideias políticas de Filipe impunham-lhe afastar-se de qualquer cooperação com a administração e combater o governo ativamente. Já era advogado, quando explodiu a revolução. Trabalhou por ela, sofreu por ela, preso como um dos propagandistas. Solto, continuou impávido a defender os revolucionários nos intrincados e inúteis processos, armados por uma ditadura hipócrita. O seu espírito profundo desdenhava toda a argumentação ociosa em torno do fato transcendente, que era a própria revolução. E se lhe perguntavam que ideal tinha a revolução, qual o seu programa, Filipe sorria desse espírito inferior, que necessita de explicações, que não percebe secretamente as coisas e as razões delas. Como se uma revolução precisasse de ser justificada, como se ela não estivesse justificada pelo facto mesmo de existir, de ser, como se houvesse causas, motivos, finalidades aparentes mais poderosas para determinar e justificar as revoluções, do que o próprio movimento, ato dinâmico de grupos nacionais em conflito, como se todo o sentimento, que move massas humanas não fosse a transformação de uma ideia, que se faz força. Filipe não pedia à revolução o seu programa, estudava, atento, apaixonado, as suas causas remotas e profundas, o ambiente em que estava agindo. Só assim a política poderia entender os problemas, que a revolução colocou e cuja resolução impôs violentamente.

O homem não é somente o animal político. É principalmente o animal metafísico. O espírito humano tem a necessidade imperiosa de ligar os efeitos às causas e dessa disciplina gera-se o sentimento transcendente da infinita unidade do Todo. Filipe procurava dar à sua vida este sentido universal com a percepção precisa de que a tragédia da existência está nas relações do espírito com o Universo. Que é o Universo? A ciência não o explica. Decompõe, fragmenta, analisa-o em suas partes, em seus fenômenos, mas não o conhece na sua unidade. A filosofia vem interpretar o mistério. Subjuga-o pela lógica, pelo raciocínio e imagina. Imaginar é a função essencial do espírito humano. Filipe buscou, ansioso, em todos os sistemas, em todas as religiões, a explicação desse Universo absorvente e intangível. Só encontrou imagens. Filipe repeliu este exclusivo conceito espetacular. O Universo não é um espetáculo. É uma integração. A suprema aspiração do espírito humano é a fusão no Todo, realizada pela mística da religião, que tudo une em Deus, pela filosofia, que compreende o Universo como uma inconsciente sucessão de formas, que se multiplicam, se dispersam e revivem, e pela magia da arte, que, nas sensações da forma, da cor, da luz e do som, dá o transporte da ilusão universal. Filipe ignorava o Amor.

V

O encontro de Filipe foi para Thereza maravilhoso enlevo. Do que diziam de Filipe ela esperava menos do que sentiu. Dessa impressão lhe veio um grande respeito, em que se exprimia, confusa, humilde, fervente, a admiração. A sua vida interior começou a gravitar para esse sentimento contemplativo. As palavras, os gestos, os pensamentos de Filipe ela tudo recordava, vivificava, absorvia. Nas suas novas e repetidas visitas aos vizinhos, recolhia deles os traços físicos e espirituais daquele, para quem ia se modelando pouco a pouco. Aspirava à dignidade excelsa de ser percebida por Filipe e que alegria, quando lhe disseram a sensação ardente que a sua beleza e a magia da mobilidade do seu rosto e do seu corpo causaram ao admirado, paralela à simpatia, que nele suscitara a sua infrutífera ânsia de liberdade.

Thereza exaltou-se. Bruscamente a alegria a invadira. Uma sanguínea atividade lhe transbordara. A sua existência monótona, chata, fora submergida por uma excitação de pensamentos de coisas infinitas e esperanças de felicidade. Buscava uma transcendência de sensações ainda imprecisas e que seriam a extinção de todo o sofrimento.

Sem definir o que era a sua ansiedade, Thereza expandia-se no cultivo da sua formosura. Refinava a sua elegância, estudava os seus traços de beleza e os apurava. Enfeitava-se e enfeitava o ambiente em que vivia. Floria o seu quarto, comprava móveis custosos e tapeçarias finas para o seu uso exclusivo, cercava-se de livros luxuosos. Era o prazer da beleza e da prodigalidade. E obscuramente imaginava que um dia Filipe viria tudo aquilo e a admiraria. A sede por essa admiração a inspirava. Era a sua razão de ser.

Thereza não dispersava a sua atividade na vida mundana. Continuava na sua permanente abstenção, retida pelo vexame da companhia de Radagasio e por amor próprio de não se misturar às gentes vulgares e inúteis. Os seus movimentos eram para esta finalidade de embelezar a sua pessoa e o quadro, que a emoldurava, no desejo oculto de agradar a Filipe. Os outros movimentos eram os seus passeios de automóvel, que ela mesmo guiava e nos quais o espírito solitário vivia a fantasia, que a imaginação excitada pela velocidade ia criando febril e amorosa. Jujú era o seu único companheiro, ao seu lado, na funda felicidade do contato e da abstração dos passeios. Uma tarde, como ele demorasse a aparecer para a correria diária, Thereza impaciente galgou de um pulo a máquina e desceu veloz para a rua e estacou à porta dos vizinhos, klaxonando violentamente. D. Calú veio à janela, sorridente e atrapalhada, para explicar que o menino estava envergonhado de sair com Thereza, porque se achava mal vestido. O luxo, a ambição de parecer bem, tinha contaminado o espírito da criança. Thereza sossegou-o, prometeu-lhe roupas novas. A mãe protestou, mas intimamente regozijou-se e achou que Thereza cumpria um dever. O automóvel partiu. Na avenida encontrou outros automóveis elegantes com os quais desceu vigorosamente para a cidade numa grande camaradagem de máquinas de luxo, que desdenhavam táxis, caminhões, ônibus ou miseráveis carros de mulas oficiais. Thereza guiava firme e despreocupada. Havia entre ela e a máquina uma identificação perfeita, formando a unidade de um organismo real e imaginário. Os seus pensamentos podiam vagar pelos espaços, os sentidos estavam atentos à direção e ao mundo exterior. Tinham o instinto do maquinismo. O carro tomou pela avenida, que margeia o cais cicloide. O mar de azul ferrete espumava branco e batia em ressaca. As aves marinhas alvoroçadas pescavam em ardentes mergulhos. À esquerda, o automóvel ia abandonando o panorama florestal de Santa Thereza, que se apresenta largo, completo com as suas vivendas dependuradas, o aqueduto, a igreja, o convento e os volumes montanhosos, espessos de mato e pedra. Se Thereza estivesse refletindo sobre o que olhava diria “como a cidade é feita dentro do granito! Suprimam-se as casas, tudo o que é humano, o resto é pedra e sobre esta, a vegetação. Bravo, valentes fundadores da cidade, que não se apavoraram de todo este anfiteatro de medonhas montanhas pedregosas, que tapam a barra e circundam as águas. Vencedores do terror, homenzinhos audazes, bravo!” O pensamento de Thereza explodiu de outra forma na direção de Jujú:

— E Filipe?

— Que Filipe?

Thereza, rápida, seca, o olhou estranhamente e murmurou raivosa:

— Idiota! Fii... lii... pee!

Jujú, espantado com aqueles modos, acordou de todo.

— Ah! Ele vai jantar lá em casa hoje. Mamãe vai fazer sorvete de bacuri.

— Bacuri? Que é isto?

O menino não respondeu.

— Alguma fruta de farmácia do Maranhão, zombou Thereza.

E logo ela pensou em oferecer a Filipe outras frutas, daqui, bem cariocas. Sorriu concentrada. O automóvel deixara os terrenos perpetuamente em preparação à beira-mar e enfrentou a cidade. As grandes sombras de junho, que caíam das árvores, enchiam o chão da avenida. A viração fresca soprava de mar a mar por este largo canudo. Tudo era desigual na feliz desarmonia das construções e das gentes. Os primeiros arranha-céus, tímidos, espiavam muito esganiçados as bojudas arquiteturas de óperas e bibliotecas. Algumas figuras de bronze divertiam-se em pleno ar, uma puxava raivosa uma espada, anjos trepavam em uma bandeira, que, desfraldada, desafiava o peso, duas bonecas dançando ofereciam coroas de imortalidade aos edis municipais. Negros, mulatos; estrangeiros ruivos ou bronzeados, brasileiros alvos e morenos, mexiam-se tumultuosos ou lânguidos. À margem dos arranha-céus os cinemas, os bares exaltavam-se alegres e coloridos pelas roupas vistosas das mulheres. Os cheiros eram saborosos. Os alto-falantes gritavam cantigas e notícias e misturavam-se a todos os barulhos. O alarido era universal, estridente, roufenho, espocante. Thereza continuava pela avenida vagarosamente. Os autos iam se arrastando e buzinando impacientes. A viração agitava as saias curtas das mulheres, que se defendiam sorrindo. Andavam em bandos, vadias e faceiras. Uma pinta de mestiçagem ressaltava o brilho da pele morena, luzia nos escuros olhos rasgados, nas largas bocas pintadas e nos cabelos crespos e densos. Pares de gentes louras, viajantes, mulheres desbotadas, de óculos, admiravam o esplendor feminil brasileiro. Thereza parou diante de uma casa de frutas. Jujú, desapontado, imaginara que iam primeiro comprar a sua roupa. Dentro, a maravilha dos objetos de cores vibrantes e profundas prometia delícias de gosto. Jujú estava eletrizado. Queria tocar em tudo, apossar-se de cada coisa colorida e gostosa. A timidez o retinha. Ficara em êxtase. Thereza escolheu pesadas laranjas seletas, tangerinas mexeriqueiras, abios torneados e cambucás veementes. Tudo em amarelo, do ardente e concentrado ao louro dourado. Tudo solar, tudo carioca. Quando lhe ofereceram negros sapotis, verdes pinhas, Thereza repeliu. “Nada de coisas do Norte.” Alegríssima com a desforra, que ia tirar levando aquelas frutas para o jantar de Filipe, Thereza partiu com ânsia de celeridade. Inútil. O automóvel foi mais devagar empurrando os outros. Jujú devorava uvas e tagarelava mostrando coisas da rua. As calçadas estavam atulhadas de grupos parados em conversa, políticos, jornalistas, mendigos, vendedores de jornais, de bilhetes de loterias. Havia uma profunda ociosidade, que dava simpático aspecto boêmio à multidão. Se passavam gentes apressadas era aos empurrões. Thereza atingiu a um grande armazém de roupas de criança. Jujú bateu palmas e pulou do carro. Os empregados não eram portugueses, como na casa de frutas. Eram nortistas, pequenos, de caras triangulares, ativos, rápidos, de voz cantante. Em um segundo Thereza escolheu uma linda roupa de veludo para o menino, que foi transformado em pajem gentil homem. Jujú, quando se viu no espelho, ficou de olhos redondos. Espanto feliz. Depois fechou os olhos e atirou-se comovido, envergonhado, nos braços de Thereza, que agasalhou aos beijos o “bobinho tão bonitinho”. Compraram ainda dois costumes, chapéus, sapatos, meias. Iam saindo, quando Thereza se lembrou de Lili. Imediatamente pediu brinquedos. Uma boneca gloriosa, um aparelho, uma mobília para a filhinha e para Jujú um fonógrafo infantil com discos alegres. Thereza imaginava que Filipe veria tudo isto. Estimaria a sua generosidade e o seu gosto. Thereza exagerava-se. Quanto mais descia a avenida, mais espaço ia encontrando o automóvel. Thereza, reconciliada com Jujú, quis agradá-lo.

— Vamos ver os macacos?

O menino pôs-se em pé, entusiasmado. O automóvel tomou pela rua Larga, que leva à Vila Isabel. De repente o carro se viu imprensado entre outros automóveis, carroças, bondes e ônibus e foi se arrastando na desordem, na barafunda, na gritaria, nas descomposturas. A rua era um bazar de lojas miúdas, sapatarias, roupas feitas, joalherias, todas sarapintadas, escancaradas, coloridas, reclamistas a se disputarem a freguesia de sírios, italianos, portugueses e mulatos, que desfilavam morosos, mirando as exposições extravagantes. Cinemas despejavam e engoliam as multidões variegadas. Alto-falantes divertiam-se em entoar maxixes e campainhas em chamar o povo. Por entre esta promiscuidade indolente e ávida da grande rua, onde se expandiam marafonas, rufiões, traficantes, transbordados de todas as terras, repousavam abstratos, os edifícios do colégio nacional e da política exterior. Logo que o automóvel passou esta velha casa triste, Jujú pediu para atravessarem pelo parque. Aí o automóvel foi devagar. A vastidão da praça oferecia um sossegado abrigo à imensa área verde. Dentro das grades havia uma transposição espiritual deliciosa. A imaginação alargava os gramados, engrandecia as cascatas, engrossava os fios de água e criava a natureza pródiga de campos, de florestas, de rios violentos. As cutias, as pacas, os veados, os grous, os mutuns soltos, indiferentes aos homens e à sua mecânica, fortaleciam a ilusão da mata tropical. Thereza divertia o menino, volteando pelas alamedas e parando diante das cutias agrupadas, entretidas em quebrar e chupar coquinhos, que caíam das palmeiras. De repente ela soltou o klaxon, assustou os bichinhos e deixou o parque. Naquela natureza sentira-se só. Que encanto se Filipe estivesse ao seu lado!

Outra rua larga abria-se ao automóvel. Outra população labutava. Eram judeus mercadores de móveis, libaneses tintureiros, minhotos nas vendas, napolitanos de carros de refrescos, italianas de vestidos campesinos, sírias enfeitadas de contas, ciganas, polacas, uma canalha infecta, piolhenta, a pulular da casaria miúda, cerrada, que corria de par em par pela rua até desembocar no Mangue. Grande tristeza davam as filas das maravilhosas palmeiras ao espaço do anfiteatro encostado nos morros cônicos ou poliédricos de casinhas de pau, vermelhas, verdes e cinzentas, e sobre os quais trepavam igrejinhas atarracadas. O chão era cortado pelas valas de cimento, por onde devia passar a água imaginária do canal. Secura tresandando a exalações pestiferas. Miséria integrada nas enegrecidas habitações torpes e esburacadas. No fundo, as soberbas montanhas de mataria verde. Thereza pôs o automóvel nessa direção. O sol estava esfriando, mas tudo reluzia, casas, asfalto, vegetação. Outros bairros alongavam-se burgueses e ricos. Palacetes pretenciosos substituíam as velhas chácaras. Uma extemporânea arrebentação de fingida arquitetura colonial simulava estranhamente o passado. Habitações familiares separadas por jardins microscópicos marcavam o espírito particularista brasileiro, enquanto as miseráveis massas estrangeiras se aglomeravam nos cortiços ainda remanescentes.

Em Vila Isabel a cidade estava longe. Podem os ônibus, os automóveis de todo o peso correrem, o ruído é no vazio. Thereza sentiu-se novamente muito só, perdida naquele silêncio. Quando ia voando pelo boulevard poeirento e melancólico, tomou subitamente para o lado oposto e disparou para a cidade. Jujú compreendeu que não iam mais aos bichos e segurou imperioso o braço de Thereza.

— Teté, e os macacos?

Ela o repeliu.

— Larga. Fica quieto. Hoje não tem macaco. É muito tarde. Filipe já deve estar lá!

Voltaram pelas mesmas ruas, pelo Mangue já todo sombrio e cinzento. Os morros destacavam-se crus e tristes, a pedreira estava mais pesada, depois que não faiscava ao sol. As multidões, sôfregas de recolherem-se, entulhavam as ruas.

Quando Thereza deixou o campo de Sant’Ana, a rua Larga acendia-se. A iluminação das lojas, dos cinemas, dos cafés, era pernóstica, petulante e ingênua. Vibrante, excessiva, dourava, incendiava a rua de ponta a ponta e ostentava os reclames, os manequins singulares e as mercadorias. As músicas, os jazs, as prostitutas, os exóticos, os negros, os capadócios, os marinheiros caboclos infantis, os soldados pardavascos, os operários multicores e maltrapilhos, compunham aquela feira carioca. Foi um alívio para Thereza alcançar a Avenida. Passara à outra civilização. Os grandes armazéns, as vastas vitrinas, as sedas, as joias, os carros suntuosos, as mulheres opulentas, os homens exaustos, tudo se enobrecia na claridade artificial. No fim da Avenida, a praça dos arranha-céus espiritualizava-se na luz elétrica. Os edifícios subiam leves. Um teto aéreo, luminoso, cobrindo a praça encobria o céu. Beira-Mar. Alegria da brisa, das vagas, das luzes. Volumes negros-verdes. Curvas e retas. “Carecas”, perfilados, espocando luz. O horizonte alarga-se para a boca da baía, porque dentro a iluminação é um limite visionário. Por entre as mil luzes dos mil carros passou a luz vermelha do automóvel de Thereza, que, ufano, galgou a ladeira do Russell. Dobrou a curva da ruazinha. A vizinhança estava à janela. Num arranco Thereza estacou o carro. Vieram à porta e cercaram a máquina. Pedro a examinou, acariciando. Thereza atrapalhou-se vendo Filipe e rápida deu as frutas a D. Calú.

— Mas que boa ideia! A senhora sempre tão generosa e adivinhou, porque hoje Filipe janta conosco e com estas frutas esplêndidas bancamos os ricos. Obrigadinho. E como Jujú está bonito! Ah! A senhora, a senhora...

Jujú triunfava e mostrava a Filipe o fonógrafo. Ali mesmo na porta os embrulhos foram desfeitos e as compras admiradas. No seu infinito enleio, Thereza buscava o olhar de Filipe, que lhe veio penetrante e entusiasta. Era a recompensa. O alarido, que faziam, alarmava o sossego da rua. Uma preta velha passava. Deteve-se curiosa. Parou diante da máquina.

— Minha Nossa Senhora parece gente! Até respira. Cruz! Credo!

Foi seguindo ladeira acima. Filipe interessou-se pelo automóvel e Thereza vivamente, vencendo a perturbação, explicava as maravilhas do seu carro sempre exagerando-se, como para escapar à realidade da sua emoção. Na velha rua colonial, que viu cadeirinhas, palanques, caleças, houve um silêncio de veneração pelo novo ídolo. Araci imaginou-se dentro e suplicou a Thereza:

— A senhora quer nos dar um passeio amanhã?

— Pois não. A que horas?

Araci, expressiva:

— Filipe vem conosco. Está feito. A que horas?

Combinaram para as três da tarde. Thereza, em um impulso alegre, saltou para o volante. Todos lhe vieram apertar a mão. Thereza partiu em uma velocidade inútil e entrou pelo portão escancarado, buzinando violentamente o klaxon. Música.

Alguns minutos depois ela invadia o quarto da filha. Uma luzinha azulada adormecia a menina e a negra. Thereza abriu as outras luzes e a criança despertou já com a boneca e outros brinquedos na sua caminha. A negra, num salto, quis expulsar Thereza. O quarto refulgia em vermelho, azul e outras cores. Fadas, anões, gigantes, deuses, animais, pássaros esculpidos nos móveis ou pintados nas cortinas, surgiam das sombras e faziam a corte de Lili. Eram infantis os móveis, com que a fantasia moderna de Thereza povoara nestes últimos tempos de entusiasmo o aposento da menina. A cama de laca azul alegrava a criança oferecendo-lhe imagens de flores, de aves e de outras crianças. Balançava como um berço, agasalhava como um seio. Thereza beijou a filha, arrancou-a da cama, suspendeu-a nos braços e Lili morria de prazer. A negra foi-se queixar a Radagasio da perturbação, que Thereza fazia aos costumes. Um criado apareceu reclamando-a para jantar. Thereza continuava a brincadeira com a filha. Mas a voz roufenha do marido trovejava grosso e a decidiu a deixar o quarto pueril. Radagasio estava jantando, negro de raiva. Resmungava:

— Você não tem mais ordem. Vive na rua, chega tardíssimo e ainda vai acordar a menina. Parece um furacão. Não pode continuar. Tudo tem de voltar aos seus eixos...

Thereza estava contente em infernizar Radagasio. Divertia-se com aquela raiva, que o tornava mais hediondo, como ela queria. O homem sufocava de ódio, sentindo o desprezo alegre da mulher. Não podia comer. Temendo a aerofagia, a boca de cagado, fechada, mastigava trinta e cinco vezes cada bocado e engolia mal. Thereza desforrava-se jantando fartamente. Como seria o seu passeio amanhã? Deviam ir bem longe, aproveitar o mais possível. Que Filipe lhe diria? O coração batia vivaz, o rosto ficava quente, os olhos fulguravam, a boca sorria para longe. Radagasio estava estupefato.

— Não me sinto bem. Esta maldita azia... A urticária começa...

Levantou-se sem terminar o jantar e foi para o jardim. Tudo lhe era obscuro. Fazia um esforço doloroso para compreender e não compreendia. Queria dominar e não dominava. Queria gozar e não gozava. A impotência de sentir, de entender, de agir e de se satisfazer o exasperava. Thereza era tudo aquilo, cuja plenitude ele não podia ter. Pensou em destruí-la. E quedou-se estupidamente, olhando a baía até que o espírito rudimentar se foi divertindo com os vapores, que se moviam, e outros incidentes do mar. O sereno o resfriou. Espirrando, recolheu-se rancoroso.

Na tarde seguinte, Filipe esperava Thereza à porta dos amigos. Os seus olhos estavam atentos ao portão, de onde surgiria o automóvel desejado. Nada o distraía, nem o alarido de Araci, toda festiva, de vestido vermelho, ousado, pueril, nem as tagarelices de D. Calú. Ele esperava e imaginava. Todos os seus sentidos queriam Thereza e o seu pensamento desenrolava, multiplicava as impressões sensoriais. O pequeno grupo aumentou com o aparecimento do Léo e da irmã Zilda, convidados de Araci. Não tardou que o portão fosse aberto e por ele atravessasse muito devagarinho o automóvel. Thereza vinha pálida e recolhida. A boca sorria, entreaberta, meiga. Os olhos infinitos! Negros, postos em Filipe, estavam úmidos de ternura. Thereza vinha entregar-se. Ao seu lado Jujú, que a fora buscar, sentava-se vaidoso da roupa nova, de flanela branca, colarinho aberto, de onde saía a esperta cabecinha. Logo o violentou Araci, obrigando-o a deixar o lugar para Filipe. Era estratagema de namorada, pois assim colocou o Léo atrás, entre ela e a irmã. Jujú, furioso, ficou abandonado no banquinho interior.

Thereza, despertada pelo instinto mecânico, pôs firme, resoluta, o automóvel em marcha. A máquina entrou potente na vastidão de ar, de luz, de sol, de cores, de água, de céu alto, de pedras e florestas, que se abria fulgurante à beira-mar. Rastejando silenciosa na promiscuidade de uma multidão de carros, prosseguiu para Botafogo. Sobre o cais, a ressaca atirava esguichos, que vibravam iluminados e caíam chiando e espalhando um cheiro primitivo e marinho. Thereza cheirava a âmbar. O aroma não lhe vinha do perfume artificial. Vinha-lhe da carne, do sangue, do íntimo, do mistério. O olfato de Filipe sorvia a encantação aromática, que tornava mais agudos os outros sentidos. Desse cheiro gerava-se um gosto ardente, que lhe inflamava o sangue e lhe dava uma sede febril. Os olhos maravilhavam-se nas linhas vivas e puras da forma feminina, imaginada ora nua em pleno ar, ora coberta de um tecido de seda da cor desse âmbar, fonte enigmática do perfume, sobre o qual brincavam os desenhos de fantasia geométrica. Na cabeça os volumosos cabelos estavam guardados no pequeno chapéu de seda colorida. Os braços meio nus estiravam-se longos e polpudos até as mãozinhas nervosas, de dedos finos e unhas curtas, dezenluvadas, tenazes no volante. Sobre esta nudez, os olhos de Filipe mordiam a maciez da carne e sentiam a quentura do sangue moreno. Eles aproximavam-se um do outro e as vozes entrelaçavam-se, fundiam-se no murmúrio, que se estendia tenuemente entre eles, sob os violentos barulhos do ambiente ultrassonoro. A voz de Thereza levava a Filipe a alma secreta e ainda não decifrada. Havia a modulação do desejo, o timbre da ansiedade, o entusiasmo do tom, o ritmo da esperança. Impregnava o homem, arrebatava-o dos seus sentidos e o transcendia à emoção intelectual. Aquela mulher não era unicamente uma impressão de cores, de volumes, de linhas, uma sensação de vida animal, atraente, imperiosa no seu esplendor. Era uma pessoa humana, um ser vivo, de imaginação e inteligência, um espírito, uma alma que desejava e sofria. Era Thereza.

Copacabana saía, imensa, marulhenta, escancarada e livre, do buraco do túnel. Jujú trepou no banco, agarrou Thereza pelo pescoço e ferrou-lhe um beijo. Araci e a amiga, aos gritos, esbordoavam alegremente o Léo, que berrava toadas esportivas. O automóvel, como uma caixa de brinquedos loucos, voou para a praia.

— Gozado! gritou Araci, e arrancou o chapéu.

— Gozado! Toda força! acrescentou o namorado.

Corriam, corriam. O vento entrava na vadiação e sacudia os cabelos e as roupas. As raparigas deitavam-se para trás para receber as carícias impudentes e fortes do vento.

— Gozado! gemia o Léo de boca cerrada, olhos vidrados, apertando o braço de Araci.

Filipe ia atento para proteger Thereza das impudicícias da corrida. Outros carros passavam no mesmo entusiasmo. A alegria transbordava do mar luminoso e do infinito dos horizontes.

No fim da praia, Thereza parou. Desceram do carro, ávidos de marchar. Thereza fechou o automóvel e todos se puseram a caminhar pela desenrolada calçada zebrina, que o mar arrebenta. Araci, atrapalhada com as violências misteriosas do Léo, refugiou-se um instante junto de Filipe. Na frente de todos, Thereza caminhava. A praia era larga e franca. As ondas longas, possantes, coloridas, erguiam-se, dobravam-se, mugiam e afogavam-se nas espumas. O volume da imensa massa oceânica vinha rolando sobre a terra, que ostentava as suas pesadas montanhas e o despraiado das areias. As casas numerosas enchiam de fantasia e abrigos o espaço glorioso. Thereza caminhava. A sua construção era de grande sobriedade de volumes, os indispensáveis para os movimentos simples. Havia nela uma síntese de elementos vivos para os múltiplos desenvolvimentos mecânicos. Nada lhe perturbava a função da atividade, do equilíbrio, da realização plena. Erguia-se do solo, ereta, de linhas finas, armadas. Os pequenos e os grandes volumes ligavam-se estreitamente entre si e o movimento do alto completava-se em toda a direção até em baixo. Todos os seus planos os mais sutis uniam-se, produzindo a superfície lisa e íntima, que revela a profundeza. Por toda a parte os movimentos executavam-se esquemáticos e determinados pela construção inexorável, patenteando a alegria de uma liberdade transcendente. Thereza era uma maravilhosa máquina de viver.

As companheiras apressavam-se para alcançá-la. Iam ardentes, ágeis, lançando vigorosamente as pernas retesas e esportivas, a cabeça levantada, o busto franco, o olhar vigoroso. Na atividade permanente o prazer da vida. Pareciam surgir do mar. Exalavam o cheiro marinho das cariocas. Thereza sentiu-se perseguida, retrocedeu rápida e deixou as raparigas passarem, já em corrida, atropeladas pelo Léo e por Jujú. Thereza juntou-se a Filipe. Ele falou-lhe de tudo o que viam. Louvaram o sol, inebriaram-se na luz, perderam-se no infinito. Tudo o que Thereza ouvia de Filipe transformava-se em música. O som infiltrava-se nos seus nervos, as palavras eram mais sentidas do que entendidas. Ela fitava a boca, que falava, e desejava essa boca, ela abismava-se nos olhos, que a penetravam, e rendia-se. Filipe recebia, como uma auréola, o reflexo deslumbrado de Thereza. Emudeceram na profunda harmonia do entusiasmo e do mistério.

— E a sua viagem? murmurou Filipe, emergindo do silêncio.

— Não penso mais. Como isto é belo, sublimei. Sinto que tudo é meu, meu... respondeu vibrante.

— Nosso, concluiu Filipe.

— Oh! Nosso... acentuou Thereza. Mas não nos deixará um dia? Não fará uma viagem?

— Não sei. A minha viagem será outra... Ela já começou... Eu viajo em sua alma...

Thereza fitou-o espantada, ofuscada, aterrada. Muito pálida desviou os olhos, que pôs longos no mar... E sem se mover para Filipe, deixou escapar o seu pensamento, que era um desejo:

— Pois sim...

Como fatigados de um imenso esforço, Thereza e Filipe ficaram mais unidos no grande silêncio das águas e do vento. Maquinalmente retomaram vagarosos pela calçada até o automóvel.

Araci disse baixo a Zilda:

— Thereza estava adivinhando passarinho verde e agora voltou jururu.

O automóvel prosseguiu para o Leblon. Thereza não percebia bem o que ouvira de Filipe e o que lhe dissera. Havia um súbito nevoeiro em sua lembrança e ela esforçava-se por fixar cada palavra proferida por Filipe e a emoção, em que dera a sua aquiescência. Viu-se comprometida em um destino, que não procurara e lhe parecia, fulminante e inesperado. Não ousava olhar Filipe que, sereno e resoluto, a contemplava. O automóvel ia frouxamente.

— Mais depressa! Toca! berravam os companheiros, sobre a praia descampada, onde os vagalhões mais violentos morriam à distância, espumando o seu desespero.

A friagem marinha ia envolvendo, na evaporação, o deserto de águas e areias. De repente, a garganta de pedra transpôs o automóvel para a orla de Niemeyer, beirando o oceano por cima de grotas, no meio de árvores, de palmeiras, de bananeiras, trepando pelos lajedos, encostando-se nas montanhas e defrontando os magnificentes e poderosos maciços da Gávea e dos morros inominados, em um resumo violento de floresta, montanha, água e pedra, que são os elementos essenciais da natureza do Rio de Janeiro. A praia da Gávea é a doçura nesta ênfase. Esconde-se do mar descompassado, abriga os pescadores e refresca uma criançada pobre e alegre, que vem dos casebres do pequeno arraial, onde uma arruinada igrejinha é o marco da antiguidade.

Daí Thereza tomou por uma velha estrada. A princípio margeava chácaras e roças para depois subir e embrenhar-se na mata. Tudo era abafado na penumbra. Uma perfídia verde e úmida entorpecia e transfigurava as coisas. Os semblantes humanos tornavam-se espectrais. Só a máquina zombava do velho silêncio, do respeito florestal, da densidade verde, dos séculos das árvores. Dominava, roncava, arfava e, célere, voraz, ia galgando a montanha pela estrada encaracolada. Em cima, abria-se uma clareira e o oceano, Copacabana e a Gávea formavam a paisagem inverossímil. Desceram pelo lado oposto e depararam, depois de súbitas voltas, com as chácaras antiquadas, coloniais, relicários da escravidão. Uma grande tristeza vegetal emanava do Jardim Botânico, mas, em face, a lagoa dragada, aterrada, trabalhada, cheia de maquinismos movendo-se, gritando, buzinando, transformava-se alegremente. Pela reta de uma rua estrepitosa chegaram à baía de Botafogo. Tudo se iluminara, a avenida, a praça, os morros, os fortes e, lá ao longe, faiscava Niterói. As águas estavam opulentas, fartas e já repousadas. Quando da curva do Morro da Viúva se apresentou o Flamengo, apareceram por entre as luzes os dois arranha-céus, que, à distância, pareciam postados um de cada lado do outeiro da Glória. Eram dois dinâmicas que impulsionavam a colina romântica. Lá estava a melancólica casa de Thereza.

Desde então Thereza se sentiu desintegrada. A sua pessoa tinha sido invadida, desmembrada pela vontade de outro ser. O seu atordoamento foi infinito, mas, ao mesmo tempo, a palavra de Filipe comunicou-lhe a graça do recolhimento, em que se abismou, exaltada, transfigurada pela aspiração de se elevar acima de si mesma, na ânsia de que a sua alma, “em que ele viajava” fosse sublime e o encantasse eternamente. Deste estado de beatitude e de inquietação a arrancaram as forças perpetuamente infantis da mulher. Thereza movia-se para Filipe, radiante da sua admiração e da sua preferência. Sentindo-se escolhida, alegrava-se em revelar-se. Não temia mais o olhar, que a penetrava. Buscava esta chama, que a inflamava e a iluminava. Dentro desta atmosfera vibrante, Thereza era impelida para a ascensão de deslumbramento, a necessidade estética da atração sexual. O seu encanto sobre Filipe desenvolveu-se prodigioso e infinito. Era pela voz meiga e ardente, era pelos olhos venturosos e insaciáveis, pela boca móvel, risonha, fresca e rósea, por todo o seu corpo fino, ágil, glorioso, pela magia das suas transformações, pela sua alegria, pelo seu entusiasmo.

Filipe recebia maravilhado a sedução, que criara e que vinha sobre ele, como uma dominação. O seu espírito absorveu-se no perpétuo desejo da presença real de Thereza. Buscava-a por toda a parte, na cidade apenas para vê-la passar, ou em casa dos amigos, onde se encontravam. Nada disto apaziguava a sua ansiedade. Tudo era impreciso e fugitivo. Nas conversas gerais, em presença de todos, apenas lograva sentir o encanto de Thereza e afinar as suas ideias com as dela. Este prestígio espiritual acentuava-se poderosamente. Thereza foi adoptando as ideias de Filipe e, inconscientemente, entrou a imitá-lo. Muitas vezes surpreendiam-se exprimindo os mesmos pensamentos pelas mesmas palavras e, pouco a pouco, o que era impulso inconsciente, se foi fazendo trabalho da vontade. Thereza aspirava a ser a imitação de Filipe.

A impaciência de o ver com mais franqueza mortificava-a. O segredo espiritual, que a unia a Filipe, exigia liberdade para a sua ascensão. O gênio infantil a serviu maravilhosamente. Thereza imaginou passeios, viagens no mar, nas montanhas, para onde arrebataria Filipe, longe dos ambientes domésticos. Por instinto ela sentiu que a natureza não era uma separação e se oferecia para a comunhão da alegria.

Uma tarde estavam no mar. Sobre a água paralisada, a doce e profunda luminosidade aproximava os horizontes e dava uma gravitação poderosa aos montes, às ilhas e a todos os objetos. A brisa vinha vivaz do oceano e invadia o ventre da baía, que se ostentava largo e vazio. Os encouraçados, os vapores, as ilhas, tudo era pouco para encher a vastidão interior, que ia terminar na terra, de onde se elevavam violentas montanhas de cabeça de negro e dedos proféticos. Esta retração da perspectiva surpreendeu Thereza, que imaginara uma baía sem fundo e sem fim, como às vezes se dilatava na miragem de outra luz.

— Só parece que estendendo a mão toco nestas ilhas e na outra margem e naqueles fortes, exclamou para Filipe. Eu quisera as fortalezas menos brancas, refulgentes como besouros. Dir-se-ia que continuamos a colônia, a possessão lusitana dos trópicos.

— Mas que importa a deformação humana, se a luz é a perpétua magia e nós estamos na morada da luz... murmurava Filipe, olhando Thereza, magnificamente postada na amurada da barca, em cima, na proa que avançava rangendo na água fulgurante.

E as coisas que pareciam próximas não chegavam, iam sempre se afastando. Das ilhas do trabalho vinham gritos de usinas, pancadas metálicas, que arrebentavam no ar. Forjavam-se vapores, enquanto os rebocadores iam arfando, arrastando uma ninhada de alvarengas de carvão e os lameiros labutavam para dentro e para fora da barra. Um encouraçado, como colossal brinquedo náutico, estava repleto de uma gente minúscula, que corria na tolda, subia aos mastros, enfileirava-se, simulando marinheiros e guerreiros. Outro dreadnougt estava suspenso na goela metálica do dique negro, que flutuava nas águas. Vapores bojudos e carrancudos postavam-se no centro da baía, com o ar de quem espera. Outros vaidosos e pomposos convidavam a viajar, a viajar... Todos carregados de desejos. Thereza escolheu o que devia levá-la para longe. Não seria aquele soberbo transatlântico a motor, palacial, teatral. Seria aquele outro, fino, elegante, vadio, pronto para tudo, e que seguramente não levaria destino infalível. E neste jogo com Filipe, indiferentes aos companheiros, comparsas da sua felicidade, chegaram a Niterói. Acomodaram-se todos em dois automóveis e Thereza ao lado de Filipe, dominadores e inteiramente estranhos aos outros.

A água, que separava Niterói do Rio de Janeiro, dava à cidade provinciana um recuo de larga antiguidade. Era um Brasil acanhado, pobre e monótono, que surgia repentinamente nas ruas domingueiras, sombrias e vazias. Mas esta melancolia não entrou em Thereza, embebida em Filipe. Os outros riam da timidez dos passantes e ostentavam o desdém de cariocas. Quando chegaram a Icaraí, uma grande unção, vinda do mar, do sol morrente, da vastidão do espaço, os fundiu com a natureza. Seguiram absortos à margem da praia. Thereza com os olhos pasmos suplicava a voz de Filipe. Ele falou-lhe das duas paisagens, que se opunham. Das montanhas de energia, onde se gerou o Rio de Janeiro, dos volumes grandiosos, extravagantes, tumultuosos, fatais e românticos, que se atropelavam do outro lado, enquanto ali naquelas praias sossegadas, naqueles sacos mansos, nas niteróis, nas águas escondidas, a paisagem era antiga e clássica e transporia o espírito para a Ática, se o sol não fosse brasileiro. Um bode persegue uma cabra, uma mulher espavorida seminua sai do mar e corre pela praia.

Os automóveis iam revelando as vivendas de europeus, casas e jardins, como embarcações, estaleiros de yoles e canoas para regatas, a civilização esportiva ao lado dos amplos, pesados e coloridos barcos de pescadores nativos, batizados de nomes santos. Ali no saco de São Francisco, o ambiente com aquelas linhas doces, morros brandos, a água sossegada, os barcos rudes, os cuters de velas brancas, os pescadores de pobreza franciscana, era muito evangélico. A imaginação poderia ver o santo taumaturgo pescar com os humildes devotos e saírem do mar todos os peixes ávidos da palavra divina, oferecendo-se ao holocausto da pesca. Seria mais um passe do inesgotável sortilégio franciscano.

Thereza absorvia todo o encantamento do jogo da luz e da água até que lá na Jurujuba tudo se tornou descorado e glacial. O sol fora-se bruscamente, apagando o ouro das montanhas e das praias. Sobre a água lívida pousavam as ilhas e as pedras concentradas. Thereza agasalhou-se, recolhida á sombra ardente de Filipe. No forte de São Luiz as montanhas abrem-se e mostram o rasgão do oceano e o Pão de Açúcar descobre-se nu e brutal. Na Jurujuba a praia é doce, um tamarineiro ancião adormece a passarada, os velhos barcos repousam, barcos de proa alta, do mar largo. As casas de sopapo e de adobe marcam a miséria cansada e preguiçosa. Os automóveis voltaram do fim da estrada fechada pela pedreira, coberta de gravatás e cardos.

Quando Filipe e Thereza atravessaram a baía, tudo estava cintilando sobre a água e sobre a terra. A lua ficara para trás. Na amurada da barca, Filipe, fremente de exaltação, mostrava a Thereza a suprema magia das vibrações luminosas da cidade sobre as grandes massas alucinantes, promissoras de vida e de mistérios. As luzes enfileiravam-se à margem da água em linha cerrada. Não se acabavam, continuavam indefinidamente. Caíam no mar depois de enlaçarem as montanhas, subiam por elas e perdiam-se na escuridão. Cantavam na água e na brisa. Delírio da luz humana, que espiritualizava o noturno maravilhoso.

VI

Por aqueles dias uma grande amargura torturava Manuel e Pedro. A revolução estacionara. Os libertadores estavam nos sertões e as capitais, abafadas pela compressão ditatorial, não se moviam. Não havia a ligação indispensável para a coordenação do movimento.

— Assim somos, sempre, comentava Filipe, quando caminhava com os amigos pela avenida Beira-Mar. Falta-nos o espírito de organização. É o mal nativo, que enfraquece e inutiliza os nossos esforços. Nada aqui é organizado, tudo é amorfo, inorgânico. Não existe aquele senso da associação, que está na raiz da vida coletiva. Não falta a coragem nem a decisão para vencer. Somos valentes, mas somos brasileiros.

— Anárquicos? perguntou Pedro.

— Desorganizados por falta de disciplina para corrigir a herança de vagabundagem e de imprevisão, que nos veio no sangue mestiço.  

Manuel sentiu o desalento e, impetuoso, tentou sacudir o desânimo, que os apavorava.

— Não, Filipe. Organização não falta. Prestes é um chefe...

— Uma exceção... corrigiu Filipe. E os outros? E porque estamos aqui desamparados e desligados do exército libertador?...

— É a nossa vergonha, exasperou-se Manuel. É a covardia geral, a passividade. Ninguém quer agir. Todos esperam tudo de Prestes e seus companheiros. Eles levam a revolução por toda parte e de nenhum lado lhes vem um apoio eficaz. O país assiste com entusiasmo o heroísmo desses guerreiros, orgulha-se do gênio militar, que demonstram, e vê o seu ideal nas qualidades que ostentam, bravura, tenacidade, tática. É um magnífico espetáculo consolador, mas só espetáculo para todos estes covardes, que não agem...

— Nós já tentamos agir, arriscou Pedro.

— Mas falhamos e não continuamos... cortou Manuel. E calou-se.

Manuel não ousava interrogar Filipe sobre as causas do desânimo, que lhe vinha notando. Seria desânimo ou desinteresse? Filipe não examinava a mutação, por que estava passando. Um impulso transcendente o arrebatava da realidade brasileira. Uma ansiedade de infinito o tomara e ele, transfigurado, aspirava à inefável inconsciência em um universo de imagens maravilhosas, de cores, de sons, de formas.

Os três amigos separaram-se, carregando os seus rancores e os seus sonhos. No alto, a casa de Thereza.

Na noite escura, no terraço do Hotel Glória, uma armação de luz elétrica e tiras de papel multicor, agitadas pelo vento simulava uma fogueira de São João. Era a transfiguração das grandes toras de jacarandá e sucupira, que ardiam diante dos olhos antigos e tornavam espectrais os índios pajés e as feiticeiras negras. Sobre a cidade passavam balões, que Niterói, pirotécnica, mandava como mensagens petulantes de desafio à cidade moderna, que respondia com o estouro de bombas. E Niterói, inexpugnável, divertia-se em foguetões fantásticos, espetaculosos, de lágrimas alegres, que coloriam o céu e o mar.

Os elevadores do hotel vomitavam no salão mulheres de carnes nuas e sedas moles e homens de preto e branco, que o cheiro feminino, já vinha transtornando. Entravam farejando e sem demora instalavam-se nas mesas por entre as luzes das lanternas japonesas. Vinham do mundo inteiro, americanos e argentinos, judeus internacionais, franceses e britânicos, alemães, italianos e os portugueses peludos. Os americanos embriagavam-se. Os argentinos berravam. Os cariocas namoravam, enquanto os outros bebiam, fumavam e debochavam-se na algazarra e nos maxixes.

Filipe perguntava a Manuel por Thereza.

— Não a vi. Mas o marido está...

— Onde? indagou rápido Filipe. Quero conhecê-lo...

Manuel esforçou-se por descobri-lo... Radagasio não lhes apareceu. Filipe ainda buscou Thereza pelos salões e pelo terraço, onde a fogueira artificial projetava para o espaço um clarão rubro. Thereza não estava e a sua ausência era inexplicável, porquanto animara Filipe a vir ao baile. Por entre as mesas dançava-se furiosamente. Gárgulas exóticas representavam-se no inglês vermelho, enorme, jovial moinho inglês a rodar com uma americana esguia, desbotada, de cabelos amarelos, na marquesa prostituta, no marquês de cabeça cubista, no negro, preguiça gaga, ruminante, no treme-treme bêbado, na máquina de falar, na escura hiena teuto-brasileira, no hipopótamo de boca estranha, em outras múltiplas aparições das deformações humanas. Outras figuras eram graciosas e magnificentes. Nestas a dança era a magia da forma e do movimento. Toda a essência da escultura concentrava-se para se desenvolver sucessivamente em imagens vivas, reais, sedutoras. Era a arte e o seu mistério no corpo humano, exaltado pela música. Era assim Laura Moraes, que dançava com Manuel. A cabeça alteava-se e, como um signo de fascinação, os olhos glaucos eram redondos, arcaicos. O nariz, levemente aquilino, dava-lhe a expressão soberana de domínio, enquanto a boca pequena e mansa enfeitiçava, no sorriso claro, o semblante predestinado. A cabeça movia-se suavemente, parava rápida, vibrante, e uma irradiação dos olhos majestáticos paralisava a admiração, que a seguia. O corpo leve, airoso, retomava a marcha graciosa e a cabeça erguia-se coroada pelos cabelos finos, claros, volumosos e ardentes.

Quando a música cessou, aproximaram-se de Filipe, parado à porta do terraço. E Laura Moraes o interpelou, resoluta:

— Que isto? sucumbido?

Filipe sorriu desdenhoso. Foi Manuel que respondeu.

— Nunca. Hoje é noite de espetáculo para Filipe... Não age, contempla. É o segredo da sua filosofia.

Manuel desabafava a sua angústia diante da abstração, em que se abismava Filipe ultimamente.

— Oh! Espetáculo. Sim. Tudo é espetáculo. Filipe tem razão e por isto, eu, como sua discípula... Está orgulhoso? Como sua discípula atirei-me à nova poesia. Estou inteiramente modernista... Neste momento preparo alguma coisa para você, Filipe.

— Que será? indagou Filipe.

— Você verá. Desejo criar como a natureza. Você não disse que a arte não deve ser a imitação da natureza? Pois, muito bem, eu sou criadora como a natureza e não a temo.

Laura sorria, sorria. Ela mistificava a sua adoração por Filipe nesta exibição artificiosa de um poder estético imaginário. O que ela queria era atrair, seduzir o homem, que a fascinara. Os seus olhos vibravam e toda ela exalava um aroma capitoso de perfumes e de calor feminino.

— Faça o seu próprio poema, murmurou Filipe, e será uma maravilha...

— Só você poderia fazê-lo. Você é poeta.

— O modelo escapa-me.

— Porque você quer, Filipe. É o artista que exaspera o modelo... Porque você não aparece mais? Prometeu voltar e não cumpriu a palavra...

Manuel veio ao socorro de Filipe.

— Neste momento a nossa atenção está absorvida na política...

— A política! Que bobagem! Deixem-se disto. Cuidem da beleza da vida, da arte, do prazer... Que lucram vocês com a política? É sempre a mesma coisa. E ainda se arriscam à prisão...

— Que nos importa a perseguido, Laura, declarou Filipe...

— Ah! Está assim resoluto?... Que pena! Tudo isto, que os preocupa, eu acho inferior. Deixem estas manias para os imbecis, para os mendigos ou para os ladrões. Vocês são inteligentes. Vivam da ciência e da arte... E por que não do amor?

— O amor! O amor não se procura... Ele nos vem como uma fatalidade, disse ardente Filipe.

— Oh! Como você está exaltado... acentuou Laura despeitada.

Filipe estremeceu, arrependido da vibração, que conteve. Por um momento Laura Moraes ficou silenciosa ao lado de Filipe, olhando, desatenta, a fogosa dança, que novamente se desenrolava. Manuel desaparecera para dançar. O baile excitava os sentidos. Os corpos transformavam-se em linhas voluptuosas e as mulheres ostentavam a carnação, que os olhos dos homens devoravam e as mãos tocavam lúbricas. As luzes realçavam as cores ousadas. Os sons da música, das vozes, dos passos, fundiam-se nas vagas de odores, que aboliam a consciência e sublimavam a sensualidade. As inteligências adormeciam. Talvez somente os espíritos de Laura e Filipe reagissem contra as sensações desencadeadas. Ela despeitada com o que surpreendia em Filipe. Este desesperado por se libertar dela e do resto.

— Você não dança, Filipe?... Era a indagação interesseira de Laura para arrancá-lo de qualquer coisa, que suspeitava e queria saber.

— Não, Laura. Não me interessa. Dançaria por comprazer, mas entre nós seria uma atitude constrangida e falsa.

— Não o estou convidando, replicou vivamente Laura. Que pretensão! Você está hoje insuportável. Maluco! Até logo.

Filipe deixou o salão e veio ao terraço. A brisa espalhava a fumaça dos charutos, que palpitavam fogo verdadeiro. A fogueira elétrica espadanava as labaredas do artifício e as toras de árvores de cimento continuavam inconsumíveis. Os foguetes não cansavam de deitar lágrimas sobre a baía, que se enfeitava absorvendo as cores flamejantes. O outeiro da Glória, quieto na sombra antiga, adormecia embalado pelas palmeiras do jardim de Thereza.

Em uma grande doçura úmida toda a vastidão noturna velava-se. A evaporação enchera o espaço, encobrira os morros, a própria água da baía. Um manto espesso de neblina era o céu, onde os balões rubros, incandescentes simulavam estrelas moventes e tornavam o universo artificial e humano. Dentro da sombra cheia de perfumes, no grande silêncio das plantas, Thereza desesperava-se de não estar ao lado de Filipe. Acovardara-se de aparecer em companhia do marido. Faltara a Filipe. As suas artérias batiam aceleradas. Os olhos cravavam-se na noite para descobrir Filipe. Vinha do baile a música nefasta. Era a dança. Homens e mulheres enlaçavam-se misturando cheiros e desejos. Filipe a arrebataria, ela se entregaria radiosa e o enfeitiçaria com todo o seu ser, capitoso e exasperado. Filipe. Filipe. A boca seca não articulava as palavras de ódio e anseios, que a sufocavam. Os olhos cavavam, cavavam as sombras. As árvores subiam. Cada folha era uma asa. As plantas moviam-se rastejantes para de repente saltarem no espaço. Arfavam frementes. O bafo, que exalavam, cheirava a jasmim, a canela, a laura-rosa, a baunilha, a magnólia. Elas sentiam o corpo de Thereza e o atraiam à total e imperiosa volúpia vegetal. O corpo entregava-se àquela vontade estranha e fundia-se no universal. Os olhos perdiam-se no céu e no mar. Tudo balançava. O outeiro, o jardim, a casa alteavam-se e afundavam-se na cadência dessas vagas abstratas da vertigem interior. Todas as coisas viviam a sua vida profunda, secreta e fatal. A vibração molecular ligava o universo. O fluido humano vinha da mesma longínqua e eterna crepitação, que transfigurava as pedras, as plantas e os animais. Thereza não tinha consciência, mas recolhia a magia desta interdependência da vida universal, que é a trama da unidade infinita.

Os sentidos humanos são insuficientes para perceber e dominar a totalidade do universo. Além do que apreendem essas antenas, prossegue a vida em suas infinitas expressões. A vida é a transfiguração perpétua. Nesta transformação, nesta fuga, a consciência abre-se como um relâmpago. O pensamento de Thereza concentrava-se em Filipe. Era o ponto real, em que fixava o seu ser, em que se baseava para ela toda a vida, todo o universo. Aspirava à unidade com Filipe, quisera estar ao seu lado, abismar-se na sua profunda e esquecedora doçura. O martírio da separação a torturou. Thereza, no silêncio imemorial das pedras e das plantas, chorou. O orvalho das lágrimas fundiu-se na humidade dos vegetais. A consciência da mulher desprendia-se da inconsciência total e buscava Filipe. Porque esta angústia? Esta ansiedade por outro ser humano? Thereza ignorava-se. Desejava e não compreendia o arrebatamento, que a possuía, a magia da infiltração, que se apoderava dela enchendo-a de volúpia, de exaltação, de abnegação, encantando-a, martirizando-a, transfigurando-a. O frio da noite impregnou-se no corpo de Thereza e a estremeceu, como o frio da morte universal. Pela morte ela se viu em Deus. Pavor de se sentir longe de Filipe. Pavor do desejo violento e obscuro, que a impelia para Filipe. Era um mal? Um pecado? Desobedecia aos preceitos, que a confinavam na família e na obediência? Cristo não desobedecera às leis humanas, à sua própria mãe, para obedecer à sua lei interior e cumprir o seu destino divino?

Filipe não encontrava recolhimento no terraço, em que meditava face a face ao jardim e à cisma perdida de Thereza. Aproximaram-se dele vários homens e logo começaram a perorar sobre as angustiosas preocupações que os apavoravam.   

Dizia um:

— As notícias da revolução são más para o governo. O Norte está nas mãos dos revolucionários, que vão instalar-se em Teresina e estabelecer um governo regular...

— Então será a beligerância, concluía outro. Constituído o governo com probabilidades de permanência, serão reconhecidos beligerantes pelas nações estrangeiras.

— Bravo! É o que merece este governo cana... acudiu um deles e logo engoliu o resto, porque os outros já o apontavam como sedicioso.

— Tudo isto é boato miserável. O governo está sólido e inabalável. Continuará a sua missão de regenerar o sangue brasileiro perdido pelo anarquismo, afirmou um homem escuro, de voz soturna, fungando e lacrimejando nos apertados olhos lacustres. Era Radagasio.

— Anarquismo? Mas isto é história antiga. Quer dizer comunismo, bolchevismo... interrompeu-o irônico Filipe, enjoado daquela estúpida discussão.

— É a mesma coisa, retrucou categórico Radagasio. E já encolerizado: O governo deve ser impiedoso com estes mashorqueiros, pau neles, cadeia, deportação, fuzilamento...

— Em nome de quê? perguntou vivamente Filipe.

— Em nome da ordem, respondeu Radagasio, triunfante.

— Ordem de quê? acentuou sarcástico Filipe. Ordem de despotismo, de tirania, ordem de selvagem, ordem para depredar, assassinar, locupletar-se com os bens públicos, atentar contra a personalidade humana? Esta é a ordem, que prega o governo. Esta ordem é uma infâmia, e ela é que provoca toda a desordem nacional. Contra ela se insurge a dignidade do brasileiro, revoltam-se os que amam esta pátria e a querem mais nobre, mais justa, mais humana.

Radagasio mastigou o que ia responder e afinal colérico quis provocar uma questão pessoal com Filipe, a quem não conhecia.

— Vejo que o senhor é revolucionário para exprimir-se assim contra o nosso governo. Eu não o denunciarei, mas o senhor se arrisca a falar deste modo.

— Nada temo, pode denunciar-me, como quiser. Será mais um espião, que se descobrirá. Vamos... Faça... explodiu resoluto Filipe.

Radagasio acovardou-se.

— Não se exalte. Eu estava falando por hipótese. Não sou capaz de denunciar ninguém. Sou amigo do governo, respeito as autoridades legítimas, detesto a revolução. Sou do partido da ordem. Assim é o sentimento geral do comércio e dos que têm o que perder...

— É negociante? indagou um sujeito, curioso de identificar o defensor da legalidade.

— Sou banqueiro, afirmou Radagasio, com empáfia.

Mas logo receando que o conhecessem, diminuiu-se:

— Isto é, pertenço a um banco.

Sorriram e desinteressaram-se de Radagasio. Continuaram os comentários sobre as coisas políticas. A rápida discussão tinha inflamado Filipe, que se pôs a examinar a situação do país. Todo ele era ação no pensamento vivo, agudo, que analisava e sintetizava fulminante a massa inorgânica, convulsa, em combustão, que é o Brasil. E Filipe apresentou o quadro das elites sociais, que dirigem o país. Eram formadas de políticos, advogados, médicos, engenheiros, professores, funcionários militares, homens de negócios, industriais, financeiros. Quais são as características destas elites? interrogou Filipe. E, respondendo à sua própria indagação ele concluía:

— O que nelas predomina é a ausência de responsabilidade. Ninguém se julga responsável diante de si mesmo ou de uma opinião pública. Daí uma absoluta ausência de escrúpulos na conquista do dinheiro, das posições, do gozo. Há uma falta de amor próprio. Não há orgulho pessoal. Há vaidade. Não há lógica nos atos. Não há coerência. Ninguém se preocupa de respeitar e se fazer respeitar. Obedece-se aos instintos do lucro e do prazer. São aduladores, são escravos, são cínicos. Tudo é aventura. A existência é um jogo e tudo se espera do acaso. Não há esforço, nem perseverança. Aproveitam-se as ocasiões. A falta de escrúpulos harmoniza-se com este espírito aleatório, aventureiro. Não se dá importância a coisa alguma. Não se liga a nada. Rir-se de tudo e não se sentir preso a qualquer sentimento. Ruptura de todos os laços para a livre expansão da luxúria, do dinheiro, da posição. Servis e ganhadores. Há uma perversão da sensualidade, na avidez de volúpia desbragada, na sodomia, na lascívia, na intoxicação. Uma forte ausência de idealismo determina uma indiferença total às ideias em qualquer manifestação transcendente do espírito. Horror à filosofia, à estética. Ausência de religião. Desdém pelas ideias políticas. A política é um negócio. E como consequência desta indiferença intelectual, a inércia sentimental. Estas elites embrutecem no sensualismo vulgar, no jogo...

— Cruel! Puxa! comentou Radagasio...

Um estrondo imenso de uma enorme bomba estremeceu o edifício e apavorou as gentes. Viva São João! gritavam na rua. O grito alegre tornou-se sinistro no recolhimento do terror. No terraço repleto, todos se empurravam sem recato para receber da rua a explicação daquele bum medonho. Os estrangeiros riam do espanto dos brasileiros e queriam mais bombas. Logo se espalhou que os revolucionários tinham arremessado uma bomba contra o palácio do presidente da república e que ela estourara nas grades do jardim. E o medo criou legendas. Eram mil bombas, que haviam estourado na cidade, eram autoridades mortas, eram casas derrocadas, a devastação e a dominação vingadora dos revolucionários. Na avenida Beira-Mar voavam automóveis e motocicletas policiais, galopavam cavalerianos desorientados. Tudo se esvaziava subitamente, covardemente. Só a polícia se agitava. No baile a música esforçava-se em despertar a dança. Ninguém dançava. Procuravam fugir dali, estupidamente temendo o perigo, que passara. Filipe e Manuel abandonaram o hotel e muito unidos, vibrando de uma alegria cheia de inquietação e esperança, procuravam saber da rara gente, estacionada nas calçadas, a verdade. Recolheram apenas conjecturas, filhas do pavor.

— Vamos até lá em casa, propôs Manuel. Talvez Pedro ainda esteja na cidade e quando se recolher nos dirá tudo direito.

Subiram a ladeira, mudos, de braços enlaçados, por onde comunicavam as ondas vibratórias do entusiasmo.

Um homem subia também a ladeira, apressado e ofegante. Passou por eles e, arfando, sem parar, ia exclamando com esforço:

— Boa noite. A coisa está cheirando a chamusco. Seguro morreu de velho. Vou para a cama, que é lugar quente. Não quero saber de histórias... Quem vê a barba do vizinho arder, põe a sua de molho. É verdade que não tenho barba, mas “Jam proximus ardet Ucalegon”... Boa noite...

E, cantarolando para se animar, subiu, foi-se.

— Quem é este cretino? perguntou Filipe reconhecendo o defensor da ordem.

— É o marido de Thereza, respondeu Manuel.

— Miséria!... murmurou Filipe.

E foi, esquecido da revolução, absorto em Thereza, que ele chegou à casa de Vieira. Desde que Manuel abriu a porta, a luz de dentro arremessou-se sobre a rua sombria. Logo a voz de Pedro ordenava do fundo do corredor:

— Fecha. Entrem.

Devagarinho Manuel cerrou a porta e conduziu Filipe à sala de jantar. Pedro estava em companhia de um homem pequeno, moreno, cujos olhos faiscavam sob uma ampla testa, enquanto a boca resumida se apertava sob um nariz curvo e sobre um queixo curto, sumido. Pedro disse a Filipe o nome do companheiro. Era um oficial foragido. O seu nome era glorioso na revolução. Dentro do recinto maldito, em que se defendia o governo, era ele o chefe da conspiração tenaz, implacável, que punha o presidente em cheque. O oficial sorriu e não falou. Pedro explicou que as bombas foram lançadas pelos revolucionários, por ordem desse capitão, contra edifícios, evitando-se intencionalmente o atentado pessoal. Era uma advertência. A revolução vivia, a revolução devia apavorar. Ficaram silenciosos. Uma profunda alegria os ligava na violência e na esperança. Na máscara senhoril do oficial espraiava-se a doçura inefável da libertação de um secreto tormento, da angustiada tortura da inação, de que enfim se evadira.

VII

O inverno tropical desanuviara o céu, mitigara o sol e a terra flutuava na atmosfera azul. Da igrejinha do outeiro da Glória vieram alegres os repiques do sino inocente e primitivo, anunciando meio-dia, como se fosse na natureza a hora da elevação. Thereza, na fresca solidão solar do terraço, acudiu ao apelo sonoro e pôs-se a rezar. Nestes derradeiros dias o ímpeto religioso surgira do mais profundo das suas entranhas, como uma fonte de salvação para o delírio do estranho movimento de Unidade, de fusão espiritual, que a impelia deliciosamente para Filipe. Aproximava-se do infinito pela religião. Uniu-se devotamente a Thereza de Jesus, sua padroeira, e exaltou-se na admiração pelo gênio e pela paixão, que moveram a santa transcendente. Sentia que as suas almas tinham a mesma temperatura mística. Thereza desejou também amar a Jesus. Amor feminino e sobrenatural. Este amor não lhe veio. Enquanto Thereza, torturada, rezava procurando a libertação, os seus olhos elevavam-se para o céu e lá em pleno dia, na luz translúcida, no fluido azul, por entre as vagas solares, brilhava uma estrela. Magia. Thereza, maravilhada, abismou-se extática no milagre tropical. Aquela estrela diurna era signo de Deus para guia da sua peregrinação na terra, até à sua volta aos céus? Thereza sentiu-se protegida, iluminada por Deus e remida de todo o pecado. Desde então as torturas se lhe transmudaram era esperança. Acreditou, misticamente, que uma extraordinária felicidade lhe viria do mistério da vida e nesta fé bem-aventurou-se. Aproximou-se ainda mais de Deus na ânsia de ver realizado o que lhe parecera uma promessa.

Na manhã seguinte Thereza decidiu-se ir à missa dominical no mosteiro de São Bento. Há alguns dias não vira Filipe. Não ousava buscá-lo. Impelida agora por uma repentina confiança, não refreou mais o desejo de o ver naquele recolhimento religioso, aonde habitualmente acompanhava a mãe e a irmã. No meio da nave da Abadia beneditina estava a sepultura de D. Victoria de Sá, doadora da ordem, falecida em 1667. D. Isabel Corrêa de Sá, sua descendente, por tradição de família, frequentava a igreja antiga e sumptuosa, que lisonjeava a sua aristocracia e embelezava a sua devoção.

Da reta larga, lisa, petulante e agitada da avenida, o automóvel de Thereza penetrou no portão agasalhador e subiu pela ladeira murada até o pátio do mosteiro. Rapidamente a máquina fizera esta transposição ao passado. O austero espaço monacal enchia-se de sol e de brisa marinha. A igreja beneditina não ostentava a característica face romana, apresentava-se sob a máscara jesuíta. As massas duras, retangulares do colégio, de um lado e do outro, as alvenarias tristes do convento empertigadas sobre o morro em cima das águas, repousavam melancolicamente na alegria tropical. Sob o peso deste desequilíbrio, Thereza atravessou pelo chão lajeado, parou um instante no pórtico antigo, fitou, através das rendilhadas grades de ferro, o mar rutilante, alvissareiro, e afundou-se na penumbra da Abadia. Antes de perceber com os olhos toda a profundeza sagrada do interior monástico, o cheiro do incenso e dos objetos, quilotados pelos fumos das ceras e dos turíbulos, envolveu-a. Ajoelhou-se mansamente, mas não rezava. Todo o seu instinto era procurar Filipe. Ainda não chegara. Viria? Ansiada, Thereza ia recebendo o que a igreja lhe mostrava, o ouro velho das profusas decorações de madeira, as tribunas resumidas, a nave bojuda, a capela-mor, refulgente à espanhola, carregada de alfaias, de castiçais, de santos, escurecida na base pelas poltronas do cabido, o delírio barroco do altar-mor, com a Virgem de Montserrat de resplendor, em apoteose de vidraça, luz e cores. Embaixo, em altares laterais, São Bento episcopal e Nossa Senhora opulenta, como uma imperatriz bizantina. À entrada da capela os arcanjos italianos, robustos, gladiadores, atletas, defensores do sacrário. Os colossais candelabros de prata suspendiam lâmpadas vermelhas, corações místicos em combustão. Pelo resto da igreja, por entre o pesado ouro das paredes duras, abriam-se nichos para velhos santos monacais, anônimos, modestos e longínquos. A igreja vai se enchendo da gente da vizinhança. Todos exprimem uma grande intimidade familiar com o culto. São marinheiros, são mulatas e negras, são colegiais e vagos alemães atraídos pelos beneditinos germânicos. Raras famílias do outro lado da cidade. Tudo se passava muito distante, no círculo reduzido do mosteiro. Os olhos de Thereza, aguçados na escuridão e na ansiedade, receberam extáticos, maravilhados, Filipe, que entrava, descuidado, acompanhando a mãe e a irmã. Passaram além de Thereza e as mulheres ajoelharam-se junto a uma sepultura. Filipe, de pé, mirava e imaginava. Thereza esperava. Sorria. Quando o olhar de Filipe caiu sobre ela, o seu rosto suavizou-se transcendente, uma inefável doçura a transfigurou e na infinita beatitude recebeu a chama que a possuía, a iluminava e a divinizava. O olhar de Filipe fundiu-se nos olhos de Thereza e o isolou de todas as coisas. A luz, que emanava daquelas pupilas negras, era a matéria sensível, carregada do magnetismo da vida. As lâmpadas, os dourados, as velas, desprendiam luzes indiferentes, mortas. Filipe, na sua absorção, não pesava a intensidade da sua surpresa neste encontro. O encantamento abolia a reflexão e impregnava de naturalidade o que parecia imprevisto. Thereza continuou beatificada e, quando o órgão encheu de sons a velha igreja, toda a sua alma foi música para exprimir o inexprimível do seu ser extático. As cerimônias começaram. Um frade e seminaristas de sobrepeliz, de cruz alçada, desceram da capela-mor, cantando pelo centro da igreja até a porta, onde receberam dom Abade. A procissão remontou pela nave da igreja, vibrando os cantos gregorianos, impelidos pela força do grande órgão. Vinham monges de sobrepelizes, velhos frades a que se seguiam noviços de preto, as raspadas cabeças teutônicas e vozes tenorinas. Sob o palio, o corpulento Abade, de mitra episcopal, foi conduzido até o trono. Lavaram-lhe as mãos, o vestiram e o defumaram. Das grandes aberturas do teto caiam jorros de luz solar, onde dançava a fumaça dos incensos.

Durante a missa, Thereza se esforçava por se concentrar nas orações. Os olhos de Filipe, postos nela, não lhe permitiam absorver-se. O pensamento fixava-se em Filipe e estendia-se a D. Isabel e Leonor. O seu primeiro interesse foi descobrir nelas Filipe e alegrou-se, quando verificou traços idênticos na mãe e no filho. De costas o corpo de D. Isabel era leve, pousando sobre o degrau das bancadas. A atenção era profunda e beata. Bem junto estava a sepultura da antepassada D. Victoria de Sá. Thereza tinha lido o nome da doadora morta, que Filipe lhe havia referido. A imaginação de Thereza vagabundeou pelo passado daquela Abadia. Fora ali um dos centros da espiritualidade colonial. Daquele mosteiro expandia-se pela cidade nascente a irradiação civilizadora, que vinha marchando do Oriente, como a desforra das cruzadas, mais venturosas entre os gentios americanos. O mosteiro doutrinava e industrializava os escravos negros e índios. Enriquecera com os donativos das grandes famílias portuguesas. Os doadores suntuosos mereciam a sepultura na nave da Abadia, ou nos terrenos do convento. D. Victoria de Sá procedia dos fundadores do Rio de Janeiro. Devia ser uma piedosa mulher, sustentáculo de São Bento, assídua ao seu culto, brilhando em suas festas, transportada pelos escravos em palanquem de seda e ouro, acompanhada de uma numerosa família e de uma clientela de escravos, negros, mamelucos, caboclos, benguelas, tapuios e de fâmulos minhotos e alentejanos. Devia ser seca, longa, severa como a sua descendente Isabel, sem a aparência de doçura desta e a suprema resignação de exilada naquele mosteiro. Thereza divagava pelo passado, que era o passado de Filipe. São Bento deixara de ser um resplendor-lusitano para ser anexado e ocupado surdamente, comercialmente pelos frades alemães. Tudo ali se transmudara. Onde as festas pomposas e D. Victoria na sua tribuna por entre púrpuras, damascos e ouro? Onde as comezainas folgazãs dos frades foliões, dos abades patriarcais, nos refeitórios repletos de seus filhos, seus afilhados e de uma récua de parasitas, que devoravam o melhor peixe, a melhor carne e se embebedavam com os melhores vinhos? Eis agora a austeridade teutônica, que administrava o patrimônio e arregimentava noviços para exploração da fortuna monacal. A missa terminou por entre aleluias do grande órgão e os cantos vibrantes dos monges. No peristilo Filipe esperava Thereza. Ela foi alegre, luminosa, risonha ao seu encontro. A mãe e a irmã de Filipe foram avassaladas pelo magnetismo da mulher formosa, que fulgurava na penumbra do pórtico e as iluminava com os seus olhos, sua boca, suas joias e suas roupas.

— Como a senhora se parece com o seu filho! foi o primeiro grito de Thereza.

D. Isabel exultou orgulhosa e beijou a moça lisonjeira.

Leonor imitou a mãe e disse a Thereza o entusiasmo de Filipe por ela.

— E Filipe é difícil e severo, ponderou a mãe.

Thereza cortou:

— O que eu quero é a nossa amizade.

D. Isabel disse gravemente:

— Ela nos foi inspirada por meu filho e começa nesta santa igreja. Louvado seja Deus.

Estas palavras devotas invadiram Thereza, que ficou subitamente séria e pôs os seus imensos olhos em Filipe, buscando o equilíbrio de uma revelação. O olhar de Filipe respondeu, afirmando uma afinidade vitoriosa.

No pátio do mosteiro, o céu ostentava-se lavado de sol depois das chuvas longas e nevoentas. As casas, a água, as árvores reluziam, como porcelanas. Os espaços nítidos, separadores, alargavam-se entre os objetos, que a luz tornava lisos e metálicos. Sobre o lajedo incandescente o automóvel de Thereza faiscava solitário. A gente pobre, depois da missa, ia descendo a pé a ladeira. D. Isabel e os seus dispunham-se a fazer o mesmo, como sempre, quando Thereza os reteve e insistiu em levá-los à casa. No automóvel, entre a mãe e a irmã de Filipe, Thereza falava e ria expansiva e triunfante. Filipe voltava-se para admirá-la e ela, sentindo-lhe a alegria, mais se exibia na porfia do brilho. As outras tornavam-se comunicativas e logo já era Leonor, que despertava para o entusiasmo, provocando a vivacidade de Thereza. E, rindo infinitamente e exclamando de admiração pelo que viam de maravilhoso, de solar, de vasto e ardente, ligando-se pela alegria, chegaram às Águas-Férreas e entraram no velho largo do Boticário, pequenino, densamente sombreado pela exagerada mangueira e pela folhuda amendoeira. O barulho do automóvel foi excessivo para o torpor, em que tudo jazia.

Das casas antiquadas surgiram crianças e mulheres ociosas, que se aproximaram do sumptuoso carro, de onde, estranhamente para elas, saíra a família vizinha. À porta da rua, D. Isabel convidou cerimoniosamente Thereza a entrar. Desenvolta, Thereza foi entrando. Na sala de visitas estavam os velhos retratos da família e quando D. Isabel apontou o de D. Victoria de Sá, à doadora, Thereza engoliu o riso. Ela imaginara uma mulher ascética, esbelta, seca, austera, que fosse a antecipação de D. Isabel e o que lhe mostravam era uma portuguesa nédia, lunar, frescalhona. Vivamente Thereza associou a carnuda minhota aos bojudos monges e, o que devia ter sido devoção mística, passou a ser bombança de frades e beatas. O terror da realidade agitou-a. Thereza desinteressara-se dos antepassados de Filipe. Só, na sua vibrante atualidade, ela o buscava. Filipe sentiu a inquietação de Thereza naquele espaço estrito, sacerdotal e disse-lhe:

— Como lhe parecerá estranha esta casinha, neste triste largo, aos seus olhos, habituados aos mais belos horizontes da terra!

Leonor referiu o encanto do irmão pelo outeiro da Glória que cada vez mais o exaltava.

— Venham apreciá-lo lá de casa, que o seu irmão ainda não conhece.

— Imagino a maravilha... interrompeu Filipe.

— Venham todos na quinta-feira tomar chá. É o melhor momento, insistiu Thereza.

— A senhora é muito amável, aquiesceu D. Isabel.

— Venham os três sem falta. Eu os espero às quatro horas, assim teremos tempo de gozar da tarde, que é tão breve.

— Pois bem, iremos. Assim Filipe se distrairá também um pouco, porque nestes últimos tempos anda pensativo e fechado...

Thereza sorriu e fitou Filipe, que enrubesceu e não se explicou. Thereza, palpitante, levantou-se para partir. Não vira o quarto de Filipe, que era em cima. A reserva aristocrática de D. Isabel confinou a visita à sala e, apenas na passagem para a saída, mostrou o oratório, onde ardia a lâmpada iluminando velhos santos de madeira. Filipe e Leonor acompanharam Thereza ao automóvel. D. Isabel viera à janela antiga, debaixo do balcão de grades, emoldurada por azulejos portugueses. Quando o carro esvaziou o largo, Filipe recolheu-se para a sua vida nova.

Na manhã seguinte, Thereza está jubilosa em seu mirante. Brisa fresca, voo alto dos pássaros, tênue neblina que se evapora do mar e das florestas, água serena e esmaltada. Bom tempo. Tudo se prepara para a festa dos olhos sublimes de Filipe. Thereza agradece à sua padroeira e àquela Virgem do outeiro, bela portuguesa morena encerrada em seu oratório juvenil, enfeitado de rosas róseas. Durante o dia, Thereza vem várias vezes ao mirante e à janela e inspeciona o tempo com a desconfiança mulheril. O tempo é louco. Varia e se enfurece. Para sossegá-lo, a meiguice de Thereza, para segurá-lo, o desejo de Thereza.

Quando Jujú apareceu, sentiu-se desamparado dos carinhos de Thereza. Embezerrou mudo, rancoroso, e a sua ira concentrava-se com a indiferença da adorada. Viu-se abandonado no salão. Thereza partira para o mirante a farejar o vento e o céu. O menino rompeu a chorar. Voltando, Thereza surpreendeu-se daquelas lágrimas e do arremesso, com que Jujú a repeliu. Zangaram-se os dois, mas, sem demora, Jujú precipitou-se no colo de Thereza, soluçando. Ela não se comoveu com este movimento importuno do seu menino e prosseguiu no impulso interior. Pôs-se de pé. Rápida e autoritária, ordenou a Jujú:

— Vai lavar esta cara. Nada de choro, seu tolo. Toca para a cidade.

Não demoraram em partir no carro, que Thereza, vivaz e alegre, guiava. Na Avenida, Thereza fez compras excessivas. Nesta tarde a casa de Filipe ficou enfeitada e perfumada de frutas.

VIII

Rio de Janeiro era uma cidade de martírios, de sacrifícios, de opressão, de infâmias e delações. Pela corrupção e pelo pavor o governo descobria os núcleos de conspiração. Na escabrosa Rua Flack, uma casa foi cercada e os revolucionários defenderam-se à bala e repeliram a polícia. Uma mulher bateu-se valentemente, assegurando a retirada dos oficiais conspiradores, que escaparam do assalto. Esta aventura exaltou os revolucionários. Mas, sem demora, tiveram de se apiedar da sorte do desventurado Conrado Niemeyer, assassinado pela polícia. O homem, probo e altivo, fora precipitado da janela, depois do martírio, em que o puseram, para arrancar-lhe uma confissão vergonhosa e delações infames. A polícia redobrava as torturas e os suplícios. Os presos eram açoitados, esbofeteados, pisados. As enxovias eram promíscuas. Negros, sodomitas ferozes e sanhaçudos, eram lançados aos prisioneiros num furor bestial e aterrador. Batiam-se, ululavam, em vão. A fome e a sede alucinavam os infelizes. A escala dos algozes vinha desde o presidente até o verdugo, que supliciava os mártires. Generais rondavam tenebrosos, perversos, as prisões, instigavam e ordenavam as torturas numa obsessão de servilismo e de ódio. Sob a sua vigilância, os policiais excediam-se na crueldade. Mas, de todos, os mais cruéis foram o delegado mestiço e o delegado português. A crueldade do mulato era voluptuosa, hipócrita, felina. Os seus olhos raiavam-se de sangue no gozo de fazer sofrer as vítimas. A crueldade lusitana do outro era brutal, violenta, estúpida. A suas mãos peludas, tentaculares, estavam sempre prontas a esganar os prisioneiros. Foram estas mãos, que arremessaram Niemeyer da janela da polícia à rua. Foi o olhar do mestiço, que gozou o estertor da agonia do moribundo.

O vento alegre da tarde, que sacudia as ondas e atirava água sobre o cais, subira ao outeiro da Glória e espalhara a frescura e o movimento na varanda da casa de Vieira. Debruçados à janela, Filipe e Manuel olhavam taciturnos o espaço luminoso, indiferente. Os seus pensamentos não coincidiam com as imagens, que os olhos recolhiam.

— Receio muito pela sorte de Pedro, observou Filipe, interrompendo a cisma.

— É. Pedro se tem excedido, ou melhor, Pedro é aquela franqueza e aquela audácia, que vão para adiante descuidadas, disse inquieto Manuel.

— Não se pode censurá-lo, concordou Filipe. É uma natureza generosa e as revoluções precisam dos audazes. Se todos fossem como ele, estaríamos muito avançados. O que é admirável em Pedro não é somente a coragem, é a confiança, o optimismo irredutível, que inspira o espírito construtor. Toda criação é obra de entusiasmo.

— Ou de estupidez, comentou sorrindo, fatigado, Manuel. Se Deus criou este mundo, foi em um momento infeliz.

Manuel deixou a janela e ausentou-se. Filipe compreendeu que ele fora para a porta da rua espreitar se Pedro vinha subindo a ladeira. Como uma onda de infecção este sopro de pessimismo agitou Filipe, que reagiu contra estas exalações mórbidas de desânimo. Daquela janela do alto do outeiro, o seu olhar envolvia a cidade, as montanhas, as águas e resolutamente alargou os destinos brasileiros. A energia vital, criadora da nação, exigia o movimento ininterrupto de conquista e de progresso. Dentro das células longínquas e fundamentais agia o dinamismo propulsor. Desta inconsciência orgânica, devia surgir a espiritualidade, inspiradora da vontade coletiva, sua luz e seu guia. A revolução, tornando-se o processo da realização da finalidade nacional, seria o motor espiritual do Brasil. A ação não se limitaria à ordem interior, não viria unicamente purificar a atmosfera política, substituir governos corruptos e despóticos por administrações justiceiras. A revolução teria de mover os destinos supremos do país, segundo as constantes da sua energia. Agir em toda a parte, penetrar as terras, vivificá-las, fundir a força humana na força cósmica. Alargar-se pelos mares e, à energia portuguesa, a que criou o Brasil e se esgotou, responder gloriosamente com a vivaz energia brasileira, que absorverá Portugal e manterá no império atlântico a nacionalidade permanente e inversa.

Entraram na sala de jantar Manuel e Pedro, acompanhados de um jovem, cuja presença causou pasmo a Filipe. Ao abraçarem-se, Filipe dizia, entusiasmado:

— Você é maravilhoso, Monteiro. Como se escapou da prisão?

— Ora, respondeu o foragido. Muito simples. Vocês sabem, camaradas, que prisão não foi feita para mim. Aturei aquela canalha até o momento, em que deliberei sair. Foi anteontem. Fiquei só, à tardinha, com a sentinela e pus em ação o meu plano. Quando o soldado se afastou para o extremo do pátio, em que me guardava, eu dei um pulo para cima do muro do quartel.

— Muito alto?

— Uns quatro metros...

— Bravo!

— Uma vez na rua andei com calma, sem olhar para trás, mas segurando o revólver, que estava armado, dentro do pijama, pois foi neste traje, que sai. Domingo, naqueles bairros tudo está à fresca, em família. Na rua encontrei um automóvel, que me levou à casa de um camarada, onde me recolhi. Na manhã seguinte vi alguns dos nossos e combinamos as bombas para a mesma noite. Foi um fogo de artifício, de brincadeira, para espantar a carneirada. Ei, Pedro? Gozado!

Pedro, alegremente, contou:

— Um pagode o susto da negrada da polícia. Não sabiam o que fazer, se procurar os bandidos ou fugir. Passaram junto de nós e Monteiro, sempre louco, segurou um deles e gritou, “não corre, camarada, informa primeiro a gente que barulho é este”. “Sei lá, são bombas que esses malvados estão atirando. Não quero saber de histórias. Se o negócio é de bombas, não é mais comigo...” “Nem comigo”, afirmou outro soldado... E assim desapareceram.

— Está aí, disse Manuel. Se houvesse um grupo de homens resolutos tomaria conta do Rio, porque ninguém quer morrer pelo governo.

— O que falta principalmente é um verdadeiro chefe, resmungou Pedro. Resolução não falta...

— Também chefe não tem faltado, observou Monteiro. Você se esquece do caso do “São Paulo” e do assalto ao terceiro regimento...

— Sim, mas o do “São Paulo” falhou por falta de preparo do navio e da insubordinação dos marinheiros. O chefe é um audaz, mas foi traído. Se tivesse bombardeado o Catete, onde estaríamos nós hoje?... No terceiro regimento o que faltou foi a coragem, não dos assaltantes batutas, mas do pessoal, que prometeu intervir e não cumpriu. Você sabe melhor do que nós.

Filipe ficou impaciente com a discussão e logo interrompeu:

— Não vale a pena estarmos discutindo o que se foi. O fracasso dessas tentativas ainda não está bem explicado. Aproveitemos as energias para o que deve acontecer. Haja verdadeiro espírito de ação em um grupo numeroso, os chefes surgirão. O que é preciso é mais gente disposta. Se todos fossem como você, Raimundo, que maravilha!

Raimundo Monteiro ficou mais rubro do que era. Os seus olhos azuis espetaram-se nos olhos de Filipe, enquanto a boca se abria, feliz, debaixo de um nariz inquieto e trombudo. Passou as brancas mãos descarnadas pelo rosto magro. Impelido pelo orgulho revolucionário, levantou-se como uma espada fina, luzidia, cortante. Andando, febril, Monteiro falava:

— A revolução é a minha vida, a minha razão de ser. Que era eu antes de me atirar no movimento? Um errante sem destino. Vocês sabem que eu sou nortista. Sou brasileiro, como ninguém. Sou branco, sou louro, que importa! Para ser brasileiro não é indispensável ser mulato ou caboclo. Estes recentes filhos de portugueses e de negras não têm a antiguidade brasileira, que eu tenho. Meus caros, aqui neste sangue correm trezentos anos de Brasil. A minha família, como a tua, Filipe, formou esta nação. O Brasil é mais meu do que de toda esta mestiçagem. Só cedo o passo aos índios. Aos africanos e seus descendentes, nunca. Vieram depois dos meus antepassados, um século depois... Alto lá. Acabemos com esta petulância. Um sujeito por ter pele escura e cabelinho crespo não pode ser mais brasileiro, que os brancos. E por ser mais brasileiro, que ninguém, é que me dói toda esta miséria, em que caímos.

Os outros riram do entusiasmo arrogante de Monteiro, que, mais picado, vociferava:

— A minha revolta não é de escravo, não é uma desforra rancorosa... Não sou revoltoso, sou revolucionário.

— Não é a liberdade, é a libertação, concluiu Filipe.

— Isto mesmo. Dizes bem, Filipe. É um movimento interior do meu ser, que aspira a um quadro humano para a plenitude do meu espírito universal. Isto que temos aqui é o que existe por toda a parte, a opressão e a submissão, o despotismo e o conformismo. Tu me ensinaste estes pensamentos, Filipe. Quando eu te encontrei na minha vida eu era um errante, um vagabundo, sem coordenação das minhas forças e dos meus instintos. Vinha do Norte. O Amazonas me fascinara com o seu imprevisto, suas tragédias, suas aventuras tenebrosas. Delícia de me achar nos igarapés, nos seringais, só, sem saber quem eu era, na floresta, nas águas, embebido no torpor verde, intoxica do de maleita, desvairando. Batia-me com os animais, matava-os e comia-os. Nenhuma caça mais assanhada do que caçar mulher naqueles desertos. Mulher ali é bicho raro. Quantas vezes não atravessei nu o rio, à nado, sem receio da cobra grande para perseguir uma fêmea, escondida em algum barracão de seringueiro ou maloca de índio. E quanto sangue espalhado. Foi um custo sair desse encantamento... Mas eu tenho a sina de me libertar sempre e vagar sem descanso. Passei com uns retirantes cearenses para o Nordeste e me fiz vaqueiro. Não me arreceei dos cabras... Eu, homem branco, derrubava qualquer garrote bravo, como um campeiro curiboca. Naqueles sertões, fiz tudo, lavrei algodão, trabalhei nas estradas, toquei violão, fui cantador de desafio e, para minha tristeza, fui professor. Conheci aquelas misérias todas da gente sertaneja, como já tinha vivido a infinita animalidade da gente vegetalizada no Amazonas. Uma grande piedade saturou todo o meu corpo. E os meus cantos eram tristes. Tanto eu cantava, como chorava. Um choro engolido, que se desmanchava em dança. Choro, dança, chorado, música do Norte. Cansado de tanto penar, revoltado contra esta opressão, vim para o Rio. Vivi obscuro, desesperado, sempre dentro dos sofrimentos humildes, dolorosos e que não eram unicamente brasileiros, mas de todos os escravos esmagados pela riqueza e pela tirania. Foi então, que te encontrei, Filipe.

— Tu já eras aviador, Raimundo. A tua audácia me assombrou. Quando eu te vi subir no avião e no ar desenvolver toda uma série de acrobacias alucinantes e que te atiraste de dois metros em um paraquedas, tive orgulho da energia humana e tu me atraíste para sempre.

— Nenhuma audácia vale a tua, Filipe... disse pressuroso Manuel. Tu és o libertador. Tu nos arrancaste de toda esta rede de compromissos, em que estávamos presos e eliminaste o terror dos nossos espíritos.

— A mim não foi somente esta libertação, que me deste, continuou Raimundo, deste-me a alegria. Eu carregava comigo toda a tristeza amazônica, toda a melancolia nordestina. Vinham do espanto da terra e dos sofrimentos humanos. Tu soubeste transformar tudo isto em uma força benfazeja, que me consola e me torna senhor do mundo. Por minha vez quis ser um libertador dos outros homens. Esta terra sofre e geme. Precisamos eliminar a dor. Onde há uma possibilidade de insurreição, estou presente. Onde há uma revolta, o meu espírito sopra para acelerar o movimento. É assim que sou revolucionário. Para dar alegria aos outros homens. Libertação.

Filipe e os seus amigos maravilharam-se da energia de Raimundo Monteiro, que vinha a eles do fundo da humanidade, da tristeza mais ínfima, e se tinha alimentado de todas as misérias e esperanças para se atear nesta chama de alegria, que espanta o terror e exalta o ser humano.

Raimundo continuou:

— É preciso agir infinitamente. Não contemplar, não discutir. Que toda ação, que se transforma somente em palavras ou êxtases, seja eliminada. A ação deve ser pura no seu movimento e realizadora inexorável. Nas nossas conversas, Filipe, eu compreendi o que tu podias exigir de mim, uma atividade incessante, que se concretizasse na revolução política. Que era eu? Repito: um vagabundo, um homem, que vivera no meio dos outros homens miseráveis, que trazia em si a piedade e o ódio. Pela tua magia, tu transformaste em força disciplinada estes confusos elementos de destruição. Tu me elevaste a cima de mim mesmo. Deste-me a soberana impulsão de agir sem rancor, sem desespero, para uma finalidade libertadora. Ao teu lado conspirei para a primeira revolução. Desci às camadas, onde não podias ir. Incitei os espíritos, organizei a reação popular, procurando sublevar as massas entorpecidas na escravidão. Na madrugada do movimento, eu estava em Copacabana. Não me bati no forte, mas quando os inverossímeis dezoito saíram para a morte e para a glória, eu fui um dos companheiros civis que, armado de fuzil, se bateu à sombra dos heróis. Vi o que a bravura humana terá de mais puro, mais doce, mais abnegado. Dentro da luz feita de sol e das cores do mar, do céu e das árvores, eles caminhavam impávidos e fulgurantes. No combate foram sublimes. Avançaram desdenhosos e faziam correr a negrada do exército e da polícia, que, espavorida, atirava à toa. Fugia e morria. Os rapazes morreram ou foram feridos de pé, abnegados, transcendentes.

— Foi o santo sacrifício. Não houve na história do Brasil um momento de heroísmo angélico, como esse, falou Filipe.

— Tudo foi perfeito nesta saída maravilhosa. Partilharam a bandeira nacional, que no mastro da fortaleza espalhava nos ares o espírito da revolução. Cada combatente trazia um pedaço do pano sagrado, como amuleto para a morte e para a vida eterna, continuou Monteiro.

— Que glória a tua, amigo! disse rápido Manuel. Foste ferido... Eu também daria o meu sangue por viver esse instante, que viveste. Sinto que nós, os que não combatemos, somos inúteis, como estes rapazes esportivos ou literatos, imbecilizados nos jogos idiotas. Que valem eles diante de um anônimo combatente da revolução? Este pelo menos faz o ato supremo.

— O que é preciso é a ação, observou Filipe. Ação que seja movida por um pensamento superior, por um sentimento que quer viver para o benefício de todos. Um homem de tal atividade vale qualquer filosofo ou sábio, porque ele realiza em atos a filosofia e a ciência.

— Tu me honras muito, Filipe, replicou gracejando Monteiro. Os miseráveis não te prenderam também, suspeitando o teu prestígio em nossos espíritos? E eu não procuro realizar o teu pensamento? O meu ferimento e o primeiro revés não estancaram o meu ardor revolucionário. Logo que me puseram em liberdade, continuei a agir. A conspiração fortaleceu-me. Esperamos tenazmente dois anos. O que sucedeu, vocês sabem. Fui dos que combateram em São Paulo na desordem, no caos, no desespero das traições. Tivemos horas vitoriosas. Vencemos por alguns dias. Abandonados pela inatividade de todos, que esperavam unicamente do nosso esforço a vitória impossível e que, covardes, não nos ajudaram, fizemos a retirada surpreendente e evitamos a destruição de São Paulo. Foi um sacrifício sobre-humano. No primeiro momento pareceu um erro irreparável. O tempo mostrou que a nossa humanidade suscitou o fecundo reconhecimento de uma população, que desde então ficou inspirada do espírito revolucionário e resolveu libertar-se por si mesma. Não é isto que buscamos, a libertação?

Diante daquele que vivera a guerra, que sofrera, dera o seu sangue, os outros sentiam-se inferiores. O esforço deles limitava-se ao risco das conspirações frustradas, ao ardor do proselitismo. A presença de Monteiro os estimulava a uma atividade mais perigosa e mais profícua. A exaltação do sacrifício os contaminava. Sabiam os trabalhos consideráveis do companheiro, as suas avançadas no Paraná e no Rio Grande do Sul, os seus combates incessantes e a sua colaboração eficaz na marcha para o Norte, depois da rendição de Catanduvas.

— Foi assim que viste todo o sertão do Brasil, rematou Pedro.

— Vi e o vivi. Nada me impressionou nestas infatigáveis peregrinações, em que nos empenhamos, como a miséria sertaneja. Faz dó. Para eliminá-la e salvar aquela pobre gente valia a pena fazer-se a revolução. Para mim, hoje, o seu fim mais concreto é a libertação material das populações do interior. Está-se ali em plena escravidão com fome e moléstia. Que mentira mais lúgubre do que esta da riqueza do Brasil, da abastança e da fartura! O que testemunhei foi a exploração do homem miserável pelo patrão, foi a disseminação das gentes pelas matas e pelos desertos, foi a febre, a lepra, a peste apodrecendo os corpos, foi a fome alucinando e entorpecendo a todos. É preciso ter visto como eu vi, ter vivido como eu vivi esta miséria, para concluir que a nossa revolução não terá mais imperiosa finalidade do que a reorganização da produção e da riqueza no país.

— Não é somente isto, Monteiro, objetou Manuel. A revolução tem principalmente de restabelecer a liberdade.

— A liberdade sem uma base econômica, sólida e justa, é uma palavra vã. Onde há pobres e ricos, há sempre senhores e escravos. O capitalismo é uma opressão, respondeu Monteiro.

E Filipe o interrompeu:

— Não é só o terror do capital que devemos combater. Há outras funções do terror. A libertação deve ser integral.

— Certamente, disse Monteiro, mas neste momento o que é urgente é uma revolução econômica. Não há revolução, como nenhum movimento social, que não seja determinado por motivos econômicos. A nossa revolução será mais uma tentativa vã de liberdade, se ela não preencher o seu fim utilitário em favor das massas proletárias.

— Tu restringes a revolução, Monteiro, disse vivamente Manuel, a uma finalidade materialista. A este materialismo histórico eu oponho as razões mais vastas da sensibilidade coletiva. Há outros fatores, que movem os homens, além dos impulsos da nutrição. Não se pode explicar fenômenos tão complexos, como os fenômenos humanos, só por uma determinante. Nem pansexualismo, nem panutritismo exclusivos. Além destes, há mil outros impulsos, que nos movem.

— Metafísica, Manuel, cortou Monteiro. Sejamos realistas. O que urge para pacificar o mundo é a comunhão da produção e da distribuição da riqueza. Foi testemunhando a insondável miséria humana dos brasileiros, que me decidi pelo comunismo. Compreendi que jamais seremos um povo feliz, enquanto houver a dolorosa escravidão dos proletários...

— Metafísica por tua vez, pura ideologia, Monteiro, gritou triunfante Manuel. O que te move é a piedade, é o vago sentimento de justiça. Romantismo. Como estás longe da realidade! Como será possível uma organização comunista em um país de analfabetos?

— E a Rússia não era um país como o nosso, de senhores e escravos? objetou Monteiro.

— E por isso o comunismo falhou... respondeu Manuel.

— Não falhou, ele organiza a nação em novos moldes, o bolchevismo triunfa.

— Veremos até quando. O fato é que hoje o bolchevismo não é mais o mesmo que foi no começo. Também se adaptou, replicou Manuel. No Brasil, o problema é ainda militar e não operário. Para se estabelecer uma ditadura operária, seria necessário saber a atitude das classes armadas. Não, camarada Monteiro, a luta não é contra os burgueses e os capitalistas, é principalmente contra o exército e a marinha. O nosso momento é ainda militar. Depois virá a fase jurídica, a infinita paz do direito e da liberdade.

Filipe não dizia nada, mas seguia atento a discussão dos amigos. Pedro interrompeu-os, sôfrego de os chamar ao que ele julgava ser a realidade.

— Deixemos a liberdade em paz, Manuel, e afastemos, Raimundo, esta ideologia marxista, que tão generosamente queres experimentar neste país de mitologia bárbara. O que precisamos é de cultura, de uma disciplina intelectual, que organize este caos. O comunismo viria aumentar a confusão. Neste país de espiritistas e de macumbeiros não se deve aumentar o misticismo político. A minha revolução é no sentido da cultura. Revolto-me contra estes tiranos imbecis e violentos, que são incultos e selvagens. Quero ver soprando nesta imensidade o espírito construtor, o espírito engenheiro. Não foste tu, Filipe, que disseste que o mundo era uma construção contínua? Pois bem, a consciência deste pensamento exige uma infatigável atividade do engenheiro, penetrante, eliminador, organizador. A própria guerra, a nossa revolução, deve ser um ato de engenharia. Dominar materialmente a natureza, plantar, produzir, criar cidades, levantar casas, abrir canais, utilizar águas, sondar a terra, extrair minério e pedras preciosas, atravessar os mares e o ar, tudo, tudo depende do engenheiro, e por toda a parte sopra o espírito construtor com o predomínio do maquinismo. A supremacia do engenheiro é cada vez mais acentuada. Este espírito apodera-se do homem e o transfigura. Por ele o homem torna-se o arquiteto espiritual, que organiza o universo.

A conversa parou com a entrada do Léo. Sacudido, vigoroso, foi invadindo a sala de jantar e sem cerimônias perguntou por Araci.

— Até agora não apareceu, respondeu-lhe Manuel.

— Vim buscá-la para o tênis do Flamengo. Estamos jogando o campeonato e ela é a minha companheira. Uma batuta, esta Araci. Para servir uma bola não tem igual. Há de ser a nossa campeã.

— E tu és o campeão? indagou irônico Pedro.

— Não pretendo. Tênis é coisa mais para mulher. Estou jogando por causa de Araci. O que me apaixona é o remo, e já estou me treinando no boxe.

— Vida vagabunda tu levas, disse Manuel, irritado com a presença do intruso. Seria melhor que tu desses a tua mocidade à pátria, que está no desespero, em vez de levares a gastar o tempo em divertimentos.

Léo sentou-se à mesa e balançando as pernas começou a rir e a falar.

— Que diabo. Não estrila, Manuel. Vocês estão tiriricas. Ô! Sogras! Não me importo com a pátria. Não vou nisto. É bobagem. A vida é gozar e arranjar um bom negócio, que vá me dando uns arames, e toca a divertir. É muito preferível remar, jogar tênis ou fazer boxe, do que a gente se envenenar com política e outras complicações idiotas. Vocês estão conspirando. Oh! Eu sei, mas é estupidez. Isto de revolução é um buraco. Acaba-se preso, surrado, e afinal se morre, para tudo continuar na mesma...

— Imbecil! vociferou Manuel. Tu tens a linguagem dessa mocidade inútil, animal e viciada. Para vocês tudo é dinheiro e pândega. Brutos, sem a menor espiritualidade, e corrompidos. Afinal tu és o Léo Flamengo, um vadio com automóvel, fazendo esporte até que te apareça um casamento rico ou mais tarde uma ladroeira. Isto é mocidade? Uma miséria...

Léo os olhava a todos com o desprezo da sua própria inferioridade. Não achou palavras para replicar. Sentiu-se estranho a eles. Apenas conhecia Filipe e nunca vira Monteiro, cujo nome não lhe deram. Pedro tentou exortá-lo com palavras persuasivas.

— Olha, Léo, o que tu fazes agora nós já fizemos. Também fomos esportivos. Tu sabes que fui do primeiro team do Fluminense. Mas isto passou. A vida espiritual nos tomou e a nossa inteligência se esclareceu. Entramos nos estudos e alargamos as nossas ideias. Compreendemos que há um mundo maior do que um campo esportivo, que há gente mais interessante do que os atletas e os jogadores ou remadores.

— Mas eu sou moço, tentou explicar Léo.

— É o que tu pensas. Ninguém mais velho do que o homem do esporte e do dinheiro, porque a animalidade é mais primitiva do que a inteligência. A ambição do gozo e da busca do dinheiro são sintomas da velhice, que é egoísta e interesseira. Deixa de te absorver nestas puerilidades e nestas misérias e levanta o teu espírito, rapaz. Tu te deves ao teu país, a uma comunhão espiritual, ao teu próprio desenvolvimento humano...

— Bem cantado, Pedro, mas não me pegas para a tua revolução. Meu lombo não foi feito para cano de borracha, nem estas mãos para palmatória... Deixemos de conversa fiada, e Araci? É possível que esteja me esperando no Flamengo. Vocês também não prestam atenção a nada. Nem sabem se ela saiu vestida para tênis. Aqui é só política, política. Ufa! Vou-me embora. Deixem de maluquices...

Deu um pulo da mesa e, em duas pernadas, atirou-se à porta. Daí voltou-se. Forçando uma gargalhada, berrou:

— Olha a polícia! Foge pessoal!

A voz irritada de Manuel o perseguiu violenta:

— Canalha, Léo Flamengo! Léo Flamengo!

— Eis o moço brasileiro, disse Filipe desconsolado. Como ele, milhares. Todos indiferentes, todos viciados na volúpia e ávidos de dinheiro. O ceticismo egoísta os move. É a mola interior de cada animal destes. Os que têm a fortuna dos pais consomem o dinheiro na sensualidade e nos vícios. Os que não têm dinheiro acabam em ladrões, falsários, exploradores de mulheres. E nesta casta a polícia recruta os espiões e os ricos têm os seus escravos elegantes. Oh! Meus amigos, vocês e todos os semelhantes a vocês, livres, idealistas, homens de inteligência e sensibilidade superior, são o milagre do Brasil.

— Infelizmente são tão poucos, acrescentou Monteiro. O país inteiro está anquilosado depois de uma longa escravidão. Nas nossas marchas pelo interior sentíamos a admiração e a simpatia, que nos envolviam. Mas que medo de nos auxiliar! Não se acredita que uma revolução possa vencer. O governo vence sempre, é a convicção popular. E ninguém reage. Todos estão submetidos. Os mais afeitos pagam com castigos inomináveis a audácia, os que têm bens são roubados pelos legalistas, como penalidade da rebeldia. Isto é o que se pratica do sul ao noite. Acompanhei a coluna até o Piauí. Fazia lástima o pavor do sertão, indeciso em nos ajudar. Todos temiam os chefes políticos e estes temiam os governadores, que por sua vez temem o presidente da república. É a organização do terror. O curioso é que essas populações nos eram simpáticas e todos viam na revolução a libertação. Mas não se moviam para se bater. Ficavam, como espectadores, torcendo por nós. Não era bastante. À vista disto fui mandado ao Recife promover o levante da guarnição. Reconheço que, no estado atual da situação brasileira, tem razão Manuel. A única coisa eficiente é ainda a intervenção militar. O resto é por ora hipotético. Seguramente que o exército também está indeciso e, com a sua indecisão, fortalece a tirania. Mas também é certo que o país inteiro está saturado do espírito revolucionário. Estamos convencidos de que um ato de audácia vitoriosa arrastará a massa do exército e da marinha. Eis como se explicam estas subsequentes tentativas. Confiamos que alguma há de pegar. Falhou a minha tentativa no Recife. Sempre a delação. Por isso vim para o Rio, e estávamos experimentando um golpe, que podia ser feliz. Prenderam-me. Livrei-me pelos meus próprios meios. Já fizemos o bombardeio para amedrontar. Toquemos para adiante.

Apareceu na porta D. Calú. Os rapazes ergueram-se para recebê-la. Vinha da cozinha falando, exuberante e expansiva. Ninguém a ouvia, até que exclamou atordoada:

— Meu Deus! Que susto! Você aqui, Raimundo. Quando chegou? Pensei que estivesse lá pelo Norte. Não. Você é o demônio. Quando menos se espera, você arrebenta.

Abriu os gordos braços e recolheu o rapaz.

— Deus te abençoe, meu filho. Há quanto tempo não lhe via e quanto tenho chorado por você. Mas Deus é grande e dá sempre a salvação. Filipe, você pode rir, mas Nossa Senhora da Vitória protege a revolução...

— Não rio de nada. Ao contrário admiro a sua fé e só quisera que todos fossem assim. É preciso acreditar em alguma coisa, que nos mova.

Quando D. Calú soube da situação de Raimundo Monteiro não sossegou, enquanto não o decidiu a refugiar-se ali:

— Olhe, aqui tudo é de confiança. A casa é grande e tem estes andares, que dão para o Russell. Há várias saídas no caso de necessidade. Depois Deus nos protegerá. O que eu posso fazer pela revolução, por vocês, meus filhos, eu faço. A minha alegria é ajudar esta mocidade, que está salvando o Brasil. Não tenho medo do governo. Se quiserem perseguir que persigam. Entrego tudo a Deus e a Nossa Senhora. Os maus pagarão. E a sua mala, Raimundo?

— Não tenho, respondeu, rindo, o revolucionário. Tenho um pouco de roupa em casa de um amigo...

— Não tem importância, cortou Pedro. Tu te arranjarás com o que é nosso. Começamos o comunismo...

Debaixo desta expansão alegre, Filipe deixou a hospitaleira casa da fé e da abnegação. Na rua extremamente tranquila tomou para o lado da morada de Thereza. O portão tinha em algarismos de ferro a data de 1855. Filipe deteve-se em frente ao muro alto, muro de baluarte amparando a colina. Um vento fresco corria pelo caminho estreito e sombrio e subia para sacudir as palmeiras de cima. Filipe prosseguiu lentamente na direção da igreja.

— Amanhã conhecerei todo este mistério, que me atrai aí dentro. É a casa de Thereza. Um espírito tão móvel em uma morada tão plácida. Thereza finge-se conformada no isolamento. Mas eu percebo a sua ânsia de se evadir. Todos se querem evadir. Sente-se um esmagamento universal. Os meus companheiros batem-se por se libertar. Pesa-nos uma desoladora decepção. O governo oprime, os grupos políticos, os industriais, o comércio, tudo oprime. Porque se revolta a mocidade brasileira? Contra o que reage? Examinemos bem tudo. No Brasil há uma grande liberdade social. Não há a opressão do conformismo, do puritanismo dos países anglo-saxões, nem o peso da rotina e da tradição, como na França, nem o devotíssimo ibérico. Tudo é tolerado. Não há medo de ser ateu, todos podem ser revolucionários em religião, arte ou ciência. Muito bem. Tudo permitido e mesmo admirado até os limites da política. Não se pode passar daí. É o perigo. Sofre-se o constrangimento da gente, que se apossou do poder e que se impôs com abuso, com tirania. Durante muitos anos, a mocidade foi subserviente ao governo. Era esportiva e indiferente. Depois da revolução de 22, com o feito de Copacabana, a mocidade começou a se interessar pela causa pública e a se agitar. Percebeu a horrível opressão, que esteriliza o país e se revolta. Alguns, como Léo Flamengo, são retardatários. Mas outros como Manuel e Pedro são atuais. Copacabana. Renovação. A revolução desde lá passou a ser um ato de mocidade. Antes, os velhos generais, os contumazes políticos, tinham o privilégio das revoltas. Eles organizavam e os moços os seguiam. Fracassaram os velhos. Hoje são os moços que organizam e avançam. Os raros homens velhos, que os acompanham, são arrastados pelo espírito jovem, que tudo conduz. O instinto estava recalcado. Havia uma humilhação, que consumia a mocidade. Sucedeu uma desforra, esta ânsia de libertação, que nos levará à vitória ou à morte. Mas se vencermos? A solução é muito obscura. A ditadura militar? O comunismo? O meu espírito liberta-se da preocupação do que vai suceder. Eu perseverarei no meu ser. Não me deixarei absorver na comunhão anônima, nem a minha personalidade será abolida. Não retrogradarei da inteligência ao instinto. O universo existe pela minha consciência. Ela me separa dos outros homens. Cada consciência, cada universo. E para a fusão no infinito tenho a minha filosofia, a minha arte. E só? Haverá em mim ainda outra força, que me transfigure e me dê a suprema alegria?...

IX

Galgavam pausadamente a ladeira, que, da praia do Russell, leva ao outeiro. Pouco a pouco cada passo em ascensão os separava do ruído, da cidade e os introduzia no silêncio. D. Isabel e Leonor voltavam-se incessantes para a baía. Pesava sobre elas a fascinação. Filipe alegrou-se quando em uma volta da ladeira desapareceu a paisagem impertinente e entraram na rua apertada entre muros e casas. Do portão da chácara de Thereza atravessaram o velho lajedo do pátio interior e subiram pela ladeira de pedra, bordada de pequenas palmeiras, estranhas e rudes na sua áspera sequidão. Vieram do Amazonas. As raízes, como duras tabocas, muitas delas, em vez de se enterrarem, projetavam-se confusamente para o ar. Mais adiante três caminhos se ofereceram para os transportar para cima. Ou à esquerda a rua larga e asfaltada, ou à direita a estrada de macadame de automóveis, ou em face, no centro, a escadaria estreita, longa, onde as pedras estão enfeitadas de limo variado e colorido. Subiram por aí e de repente tudo se desafogou. Eis de novo a infalível baía, insistente, com as suas ilhas chamei antes, as suas montanhas, a sua barra, de boca salivosa, por onde passa o oceano. Filipe desdenhava todo esse deslumbramento por Thereza, que os vira e descia para recebê-los. Os pés voavam pelos degraus a baixo, o corpo precipitava-se inclinado para cair. As pernas finas e enérgicas se retesaram e Thereza, firme, estacou, abrindo mais o sorriso e alargando os grandes olhos alegres. Falavam, falavam e, subindo, Thereza se foi recolhendo em uma súbita angústia. Havia um excesso de felicidade, que a inquietava. Filipe viu a estranha palidez, que lhe tornavam os lábios frios e violáceos e lhe transfigurava a pele, que, ainda há pouco, luzia como ouro e agora desfalecia noturna.

No terraço, enquanto a mãe e a irmã se abismavam no panorama, Filipe pegou as mãos de Thereza. Geladas. Olhou-a perdidamente nos olhos cheios das lágrimas refreadas, que não caem e voltam ao coração.

A voz ingênua de Leonor separou-os:

— Que maravilha esta morada. É um sonho. Não me farto de olhar. Nunca vi uma coisa assim. Tudo tão alegre e tão grande. Se eu morasse aqui, passaria a vida mirando esta baía. Olhe, mamãe, lá vai um vapor, e lá vêm dois, e quanta canoa! Ali está a igrejinha da Boa Viagem, que enfrenta o outeiro. São duas Nossas Senhoras, que se fitam. Isto vem de outros tempos. Tudo tão religioso em nossa terra primitiva. Louvado seja!

— Deste lugar mesmo, minha filha, os nossos antepassados combateram os huguenotes. Daqui, desta casa, eles bombardearam aquele forte, Vilegaignon, pois era o reduto da expedição francesa. Com certeza as muralhas, que sustentam esta casa e amparam o muro eram do baluarte dos portugueses.

Thereza, interpelada diretamente por Leonor, disse rindo a sua ignorância. Achava que tudo isto eram lendas e anedotas. Nada havia de certo na história da cidade.

— Ah! Isto não, replicou D. Isabel, há muita coisa certíssima. Então não se sabe que a cidade começou na Praia Vermelha? Que houve combates aqui neste morro e na ilha, que se chamou depois do Governador? E que Estácio de Sá à frente dos portugueses repeliu os franceses e seus aliados tamoios e afinal foi ferido no lugar, que é a Rua de Paisandú? E morreu do ferimento e foi sepultado no Castello pelo seu tio Men? Oh! Estácio de Sá, não é por ser da minha família, mas fico desesperada de ver a profanação, que cometeram, arrancando-o do seu túmulo e derrubando o morro, que era o monumento sagrado da nossa história. A cidade ficou mais feia. Em vez do morro, um terreno imundo. Neste país tudo é vandalismo. Que saudades do Castelo, onde estava o marco da cidade e eu fazia a minha peregrinação ao túmulo do nosso antepassado, à hora das vésperas dos barbadinhos.

— Ora, mamãe, acudiu vivamente Filipe. Quantas vezes o túmulo de Estácio mudou de lugar? Sentimentalismo. O morro era inútil e uma extravagância dentro da cidade. A engenharia do homem moderno abriu espaços à cidade, que cresce e não podia ficar atrofiada nesse romantismo histórico... Há mais ar e mais terra para os novos homens e nós veremos a maravilha, que será ali a construção em marcha. Deixemo-nos de túmulos e frades.

Leonor continuava a sua cantilena de exclamações e descobertas. Thereza, enlevada pelo entusiasmo dos visitantes, mostrava-lhes o jardim, as suas árvores companheiras, o seu viveiro de pássaros cantadores e coloridos. Enfileirados nas gaiolas, debaixo das árvores, no caminho lateral que ia para o interior da chácara, araras, tucanos, cardeais, um galo da serra, do Amazonas, e soltos, pelo terreiro, negros jacamins e sombrios mutuns de bicos amarelos ou vermelhos. Isolada, uma coruja, soberbamente vestida de farta plumagem amarela salpicada de preto, os olhava com os seus olhos humanos... Leonor benzeu-se, quando a viu. Deram, por entre canteiros e gramados, a volta pelo fundo do terreno até a saída para o morro de Guaratiba. D. Isabel lembrou as tradições locais, os antigos habitantes e as festas do outeiro. Thereza convidou-os para virem no dia de Nossa Senhora da Glória, que se aproximava. Antes de tomarem do outro lado do jardim, passaram pela garagem e pelo galinheiro e os perus os festejaram, acompanhados dos latidos dos cães dinamarqueses, dos filas portugueses possantes, e dos rancorosos cães policiais.

— Ai! Meu Deus, tanto cachorro bravo! Para quê? exclamou Leonor.

Thereza enrubesceu.

— É uma mania de meu marido, que receia sempre ladrões. Imaginação, medo de tudo.

Rapidamente desviou-os para o seu mirante. As orquídeas dependuradas, abertas, exuberantes de formas, luz e cor, balançadas pela brisa. Sobre a balaustrada, as avenças, os tinhorões, as begônias, recolhiam o ar úmido, que lhes enegrecia a roupagem verde lamelar. Dentro do pavilhão, Thereza exclamava:

— É a minha gaiola. Parece-me estar suspensa no ar e um medo permanente me dá um tremor, que é gostoso. Daqui vejo tudo sossegado e longe. É preciso haver ressaca forte, para que a baía me pareça agitada. A distância suaviza tudo. Conheço tim-tim por tim-tim cada canto desta vista e acompanho aqui todas as mudanças. Muda a toda a hora. Por muito tempo eu não tinha outro divertimento. Agora penso em outras coisas, depois que me tiraram do meu esquecimento.

Dizia e olhava Filipe. A voz caía doce e grave e impunha silêncio. Todos cismavam absortos. Filipe ficava constrangido com a opressão de não poder dizer o que devia dizer. D. Isabel exprimiu a angústia, que tomara a todos, quando, pegando mansamente a mão de Thereza lhe disse:

— A sua solidão deve ser pesada. Mas porque não se refugia em Deus? Haverá lugar melhor para a meditação do que este? E da meditação não sairá o êxtase?

Thereza deixou-se consolar, abismando-se na doçura da piedade humana e ia falando estranhamente:

— Será possível que eu saia um dia do pavor, que me atormenta e entre na beatitude, que me libertará? Não sei se vencerei ou se tornarei ao meu aniquilamento. Tudo é tão misterioso. Do que estou certa é que não me sinto mais a mesma. Estou mais resoluta, mais decidida. Antigamente, ainda não há muito tempo, eu me sentia esmagada, era uma prisioneira nesta solidão. De repente me veio uma ânsia de outra coisa, que não é isto. Aqui nada me contenta.

— Mas Deus que é o redentor está em toda a parte... murmurou D. Isabel.

— Eu sei e estou com Deus, explicou-se Thereza. Tornei-me mais devota nestes últimos tempos. Procuro nas orações o sossego. Não veio... Que fazer? Vou sempre à igreja e não posso me absorver. O pensamento está distraído. Aqui medito, aspiro por um êxtase, como o de minha Santa e nada se concentra. Tudo se move em mim e aspira a uma alegria, que a devoção não me dá. É um martírio...

O rosto de Thereza empalidecia, os olhos fulguravam dentro de grandes olheiras roxas, a boca morria em um sorriso de inquieta esperança. De repente foi ela mesma, que sacudiu o torpor da cisma, em que se calavam.

— Não falemos em tolices, ainda não lhes mostrei a casa por dentro. Vamos. E voltando-se para Filipe:

— Não se espante dos horrores, que vae ver. Tudo muito idiota, mas a culpa não é minha... Um dia eu lhe pedirei os seus conselhos para reformar a casa, pô-la de acordo com o ambiente. Oh! Vontade bruta de derrubar tudo isto e fazer coisa nova, vida nova...

Thereza, móvel, movia-se ruidosa e expansiva. Sob o trigueiro da pele, a púrpura sombria do sangue. O olhar dançava alegre. A voz alta sacudia o corpo magnético e parecia elevá-lo em alucinante voo. Filipe buscava Thereza, irreal e maravilhosa, nas alturas.

Absurdamente a casa se furtava à luz, recolhia-se em uma penumbra desconsoladora. Opunha-se à paisagem, negando-a em vez de absorvê-la e incorporá-la, e não se abria ao sol, ao mar e às árvores e não dava aos humanos a magia tropical dentro das paredes pesadas. Os negros móveis de jacarandá misturavam-se aos dourados europeus. A austeridade colonial e o arrebicado rococó. O disparate na riqueza, a mediocridade na profusão. Estavam examinando móveis, tapeçarias, quadros, estátuas, cortinas, reposteiros, quando na porta da sala apareceu Lili, que duas mãos negras empurravam. Thereza deu um salto, apanhou a filha e, gloriosa, a ergueu.

— Eis a minha boneca, a minha Lili!... E apertou a criança por entre beijos estridentes.

Enquanto D. Isabel e Leonor festejavam a menina, Filipe entristecera. As suas palavras de louvor foram vagas e distraídas. Esta reserva desconcertou Thereza, que cessou subitamente o seu entusiasmo maternal. Leonor apoderou-se de Lili. As duas simplicidades entenderam-se. Filipe quisera partir. Sentia-se intruso naquele mundo de Thereza, em que se irradiava, como força propulsora e absorvente, a maternidade. O instinto de Thereza procurava conciliar sentimentos opostos e exclusivos. Aproximou-se ainda mais de Filipe, falava-lhe, sorria-lhe meigamente, acariciava-o com os olhos doces e profundos, olhos que tinham tato para sentir e transmitir a delícia e supriam o toque das mãos e as antenas misteriosas da pele. Filipe saiu da melancolia do desequilíbrio para se alegrar e se abismar na sedução de Thereza. Não tardou a que ele mesmo buscasse a graça de Lili, a conquistasse com a sua voz, infiltrante e possuidora. Thereza sorriu reconhecida a Filipe, quando viu Lili beijá-lo e dar risadas de camaradagem.

Para introduzir Filipe na sua intimidade Thereza insistiu em mostrar o seu quarto de dormir. Estava contente que vissem ter quarto separado do marido e queria ostentar os móveis e tapetes modernos, adquiridos recentemente.

— Tudo isto é influência sua... disse vivamente para Filipe. Eu também estou no movimento. E o maior prazer é a raiva do meu marido. Um sueco!

D. Isabel ficava meia tonta com estas exuberâncias, compreendidas por Filipe. Leonor gritou da porta do quarto de Lili:

— Mamãe, veja só esta loja de boneca! Que beleza! Olhe a caminha, que balança e é toda azul, este guarda roupa com figuras de pássaros recortadas, estas cortinas tão alegres, estas bonecas pelo chão. Sim senhora, que encanto a senhora arranjou para Lili. Ela merece, uma boneca que é um amor, só neste paraíso infantil. Quanto bicho engraçado, o macaco no trapézio, o urso em rima do armário, os papagaios...

Lili estava encantada com a admiração, que as suas coisas produziam. A negra, que se escondera dentro do quarto, foi-se esgueirando, procurando desaparecer por entre as visitas. O branco dos olhos estava como clara de ovo cozido, opaco e duro. As pupilas encolhidas, longas e finas. Saiu rancorosa e sobre os beiços negros e rugosos passavam as palavras do ódio desaforado:

— Gente maluca, ixe, parece que nunca viu nada, te esconjuro.

Só Thereza percebeu o desespero da negra. Os outros, entretidos, apenas notaram a passagem da massa preta, envolta em cores azuis. Tomaram ao terraço e foram recebidos pela brisa fresca e viva. De um lado, o céu estava esverdeado, do outro, a lividez do estanho. As aves passavam em bandos ritmados indo recolher, as gaivotas, mesmo desfilando, ainda se precipitavam vorazes, encapotando sobre as ondas.

Thereza e as visitas estiveram mirando o mundo, inclinadas sobre o parapeito do terraço, por entre os vasos portugueses de azulejo antigo, cheios de amarelos e violáceos cardos tropicais. As palmeiras embandeiravam-se ao vento. Pouco a pouco nas moradas humanas em volta, nos morros e nas avenidas foram-se abrindo as luzes. Em baixo a cidade se recolhia à penumbra das árvores espectrais.

Tomavam chá no caramanchão, quando veio Jujú, agarrado a um livro. Thereza o recebeu com um alarido, que o desconcertou. O pequeno embatucou. Os seus olhos apoiaram-se em Thereza, enquanto dentro da cabeça tudo lhe rodava. Muito pálido Jujú suava frio. Ficaram com pena da criança e Filipe segurou-o com meiguice.

— Que é isto Jujú, estás com medo? És bicho do mato?

O menino sentiu horror com o contato e as palavras de Filipe, deu um pulo e precipitou-se no colo de Thereza, abrindo em choro convulso, desesperado.

— Meu bem, Jujú, que é isto? acalentava-o Thereza com aborrecimento carinhoso. Deixa de bobice, fica sossegado, ninguém te come. Olha o teu amigo Filipe, esta senhora é mãe dele, aquela moça é irmã. Bobo!

Jujú chorava, enterrado no colo de Thereza, que forçava em levantar-lhe a cabeça teimosa. Os outros procuravam rir e brincar para distrair a criança. Mas todos estavam caceteados com a nervosidade impertinente. Lili, pajeada pela negra, aproximou-se curiosa do barulho de Jujú. Thereza insistia:

— Olha, bobo... Até Lili está espantada desta tolice. Não é Lili? Jujú é mais tolo que você, que não faz destas manhas. Vem buscar este manhoso chorão e leva ele para brincar.

A menina, inchada com o elogio, puxava Jujú com as mãozinhas tenazes. Jujú resistia. Todos riam, só ele chorava convulso. Afinal ergueu a cabeça, irritado, violento, empurrou Lili, que caiu sentada no chão, aterrada com aqueles modos.

— Vai embora, berrava Jujú... Não me amola... Eu quero, eu quero, que Teté me ensine a lição...

— Ah! É isto que tu querias, seu tolo. Hoje não, tu não vês que estou com visitas? Fica bonzinho, que amanhã tu vais passear comigo de automóvel, nós dois sozinhos. Mas olha lá... E beijou-o repetidamente, limpando-lhe a cara rubra.

Jujú respirou aliviado. Ficou tão contente. Envergonhado, afastou-se e foi para mais longe sentar-se na grama onde Lili veio procurá-lo. De longe ele mirava enternecido Thereza. A obscura mágoa de a sentir perdida para ele acabrunhava-o. Cada movimento de Filipe para Thereza entenebrecia-lhe o espírito. Apontou-lhe vivo, feroz, um ressentimento contra Filipe, ódio de o ver naquele lugar, ao lado de Thereza, desapossando-o do seu doce e exclusivo privilégio. Ódio dos olhares e das palavras. Por mais que Lili o agradasse e o seduzisse para brincar, Jujú concentrou-se naquela dolorosa observação, desesperado, abatido, inútil.

Leonor apiedou-se do menino e veio também sentar-se na grama com as crianças e procurou entretê-las. Lili, passado o atordoamento, entregou-se à brincadeira. Jujú mantinha-se casmurro.

— Como é boazinha a sua filha, observava Thereza a D. Isabel. Que paciência com as crianças.

— Leonor procede sempre com simplicidade, explicou Filipe. Não conheço ninguém mais inocente.

— Chega até a ser ingênua demais, disse D. Isabel. Acredita em tudo. Para ela não há mal no mundo. Deus a fez assim.

— Ora, é preciso que haja santos neste mundo de maus, exclamou Thereza. Faz bem viver-se na companhia desses anjos, como a sua filha. Eu, que vivo rodeada de gente inferior e egoísta, posso dizer o que é este martírio.

— Não fale assim, não se lamente, a senhora é tão feliz, tem a sua família e a sua fortuna, interrompeu D. Isabel.

A frieza e a estultice destas palavras de conformação exasperaram Thereza. O seu ímpeto fora desaparecer diante daquela gente, que também não a compreendia. O seu pensamento marcava: velha convencional, interesseira, carola, insensível, tu não sabes quem eu sou. Não sabes o que é sofrer nesta casa, que tu invejas, porque é rica, vem do passado e te lisonjeia a vaidade aristocrática. Não sabes o que é Radagasio, viver som a estupidez quotidiana, abafar os desejos, morder o freio, estar humilhada, espionada, prisioneira, desejar a morte de um homem para ser feliz, tornar-se má, ser assassina, ter ódio, ter nojo de si mesma e continuar na podridão...

D. Isabel ficou desnorteada com o rancoroso silêncio de Thereza, que desviava dela o olhar para se fixar duramente em Filipe. Rompendo o círculo do ódio, em que fora envolvida, D. Isabel evadiu-se sorrateiramente na direção de Leonor e das crianças. Thereza percebeu que estava só com Filipe, quando, com extrema doçura e muita tristeza, ele lhe falou.

— Não se aflija com o que lhe disse mamãe. São palavras para sossegá-la. Mamãe é muito boa, tem aquela aparência reservada. Não quer dizer nada. Ela vive fora do mundo e não sabe os martírios. Oh! Eu adivinho tudo o que sofre, as suas angústias, os seus desesperos. Compreendo que uma mulher tão superior, tão vibrante, não pode ser esmagada, ser acorrentada a uma existência medíocre, em que o seu espírito não tenha a suprema liberdade. Desde o momento que eu a vi, senti a sua superioridade. Deixe-me dizer-lhe não foi só a sua beleza, que me impressionou... Para sempre... Foi também o seu entusiasmo, a sua exaltação espiritual e desde então calculei as suas torturas e tive uma pena, uma piedade...

Thereza recebia trêmula a infiltração dessa súbita ternura. Veio-lhe uma deliciosa vontade de chorar. Os olhos ficaram vermelhos, a garganta seca e todo o sangue confluiu ao coração, deixando-a pálida, exangue.

Filipe continuava:

— Sim, uma piedade de tanta beleza assim mortificada no mais injusto sacrifício. O meu pensamento passou a ser todo seu. Não lhe posso dar mais nada do que esta admiração e esta ansiedade em vê-la feliz. Eu só lhe peço uma coisa... Posso pedir? É uma retribuição...

Thereza não pode responder. Os olhos enlanguesciam mansos e a boca meio aberta parava extática num sorriso de bem-aventurada.

Filipe concluiu:

— Pense profundamente em mim.

Thereza bateu doce, docemente com a cabeça. Olhou em torno e levantou-se para se reunir a D. Isabel e Leonor. Uma alegria poderosa a arrebatava. Agradou-as muito, louvou-as e, dando o braço a D. Isabel, a estreitava com unção e meiguice. O fluido do entusiasmo comunicou-se a todos. De repente uma algazarra de vozes, risos, gritos, rompia a melancolia da tarde, alvoroçava o ar, até que um klaxon berrou na ladeira.

— Automóvel, gritou Jujú.

Lili, que já distinguia os ruídos das máquinas, disse desconsolada:

— É papai.

Abriu-se o portão e o automóvel começou a subir a rampa infestando as plantas e o ar. Radagasio desce do carro. Aperta a boca e atira os olhos para o grupo. Domina-se e, disfarçando, chama pela filha.

— Vem Lili! É seu pai...

A pequena, empurrada pela negra, vai ao seu encontro. Radagasio para se apoiar, dá-lhe a mão, que o conduz. Filipe levanta-se. Thereza e as outras esperam sentadas. Radagasio gagueja uns cumprimentos coma sua voz sumida e velada. Thereza pergunta-lhe se quer chá. Radagasio recusa e olha, atrapalhado, Filipe. De repente o reconhece.

— Mas nós já nos vimos... Foi no baile do Glória, na noite das bombas e por sinal que o senhor me pareceu revoltoso... Pode confessar. Não tenha medo. Eu não digo nada à polícia...

Filipe mordeu rapidamente o lábio inferior. Sorriu para disfarçar. Thereza fez frente ao marido.

— Eu também sou revolucionária. Se você quer denunciar alguém comece por mim...

— Gabolice. Você, medrosa como é? E depois, isto de política não é para mulher.

Thereza respondeu:

— Se as mulheres interviessem como deviam, o país não estaria nesta miséria, em que foi posto pelos homens, uns por ganância e prepotência e os outros, a grande maioria, por servilismo. Não são homens, são ladrões e escravos. Já que eles não prestam, as mulheres devem salvar isto.

Radagasio ri amarelo, chupa os beiços. A língua por entre eles, aparece e desaparece em movimentos incessantes. Vai insultar Thereza. Filipe percebe e intervém:

— É uma verdade. Se não fosse a covardia e a submissão dos homens...

D. Isabel corta a discussão. Volta-se, senhorilmente, para Radagasio:

— O senhor é um homem de muito gosto, porque escolheu para morar a casa mais interessante da cidade. Além da vista incomparável é uma moradia histórica. Foi daqui que os meus antepassados, Men e Estácio, bombardearam os huguenotes franceses.

Radagasio se ninava dos huguenotes, detestava aquela casa, fora de mão, isolada, moradia imposta caprichosamente por Thereza, romântica, a cultivar a solidão, o panorama e a tradição familiar, permanecendo na casa, que fora dos pais. O cumprimento de D. Isabel o inflamou e ele entrou a elogiar a vivenda.

— É.uma habitação modesta e às suas ordens, minha senhora. Aqui estamos em um paraíso, ar magnífico, de primeira mão, da barra, sol para tonificar a pele, árvores para queimar o carbono e nos dar oxigênio. Vivemos na paz. Paz e amor... Como os ingleses gravaram no frontão do mercado de Kandy, em Ceylão.

Thereza agita-se. Quer gritar, insultar o monstro de estupidez e hipocrisia. Contém-se. Filipe se compadece.

Leonor festeja a frase e a erudição, e acrescenta lisonjeira:

— Não é só por este lado que tudo aqui é delicioso. Haverá maior maravilha do que esta vista? Eu estava dizendo a Filipe que ele devia fazer a descrição disto, um poema, porque meu irmão é escritor, um poeta.

Radagasio quer se mostrar informado e declara que conhece os escritos de Filipe. Para se impor, sobretudo a Thereza, se entusiasma a frio.

— O senhor teria aqui o mais extraordinário quadro para um poema e para um romance. Às vezes sou tentado a meter-me a escritor. Se não fossem as minhas sérias ocupações no banco, se eu fosse ocioso como os poetas e os artistas, que têm o tempo à disposição, seria o meu divertimento. Assim como há tantos negociantes e industriais, que passam os domingos a pintar, eu passaria a escrever e fazer versos inspirados por este panorama.

Um infinito pejo apoderou-se de Thereza. Muito vermelha desviou os olhos dos outros e os cravou desvairados nas crianças, que brincavam ao longe. O seu ímpeto era fugir, mas antes de se evadir, quisera bater, morder, destruir aquela ignóbil máquina de falar, que era o seu marido. Mas Radagasio entusiasmava-se, embevecido com a admiração de Leonor.

— O Rio de Janeiro é um conjunto sublime de água, floresta e montanha. Dentro deste cenário o maravilhoso artista é o sol. Desde cedo ele brinca nos cimos dos morros, na toalha das águas e nas folhas das árvores. É um sol infante, que toma tudo suave de tons, na frescura da manhã. Mais tarde ele se esquenta e incendeia. A luz absorve o mundo e o dissolve em poeira cintilante. À tarde, as cores se desforram e o sol morre afogado em seu sangue e tudo fica rubro e violáceo...

— Bravo! Seu Vianna, que poeta é o senhor! Quem diria! aplaude Leonor.

Filipe sorri. Radagasio deslumbra-se. Thereza está aterrada.

Radagasio, de pé, continua, apontando:

— Olhe tudo isto. Veja estas ilhas como são pitorescas. Cada uma tem a sua expressão. Lá no fundo estão as ilhas tropicais, ilhas de arvoredos compactos, banhadas pelas águas, que murmuram docemente uma canção de amor e entre todas, Paquetá, com os seus coqueiros, parece um trecho das praias pernambucanas, transportada para suavizar os pedregulhos, que são as ilhas próximas à barra. Aqui tudo é monstruoso, antediluviano. A terra tremeu, os vulcões vomitaram estas pedras gigantescas, que formaram ilhas. A Lage é uma tartaruga colossal...

— É mesmo, mamãe! grita Leonor, levantando-se entusiasmada. Só falta a cabeça...

— A tartaruga está dormindo, graceja Radagasio... E que massas, que volumes são estes morros! Formam figuras estranhas e mesmo procissões fantásticas. Olhe aquele grupo de montanhas à direita. É uma caravana assombrosa. O Pão de Açúcar, como um elefante quaternário, vai puxando na frente. O cabo do caminho aéreo, é o freio, que o liga à Urca. No alto do Corcovado está o personagem principesco, que é o senhor, o rajah, o chefe da caravana. Hoje ele está invisível, um dia ele aparecerá na figura do Deus-Rei.

— Muito bem, aprova D. Isabel. Afinal a natureza ficará consagrada ao Criador.

Radagasio discursa:

— É pena o exclusivismo desta consagração católica. Sou católico por tradição. É a religião dos meus pais. Esta é a terra de Santa Cruz. Devíamos ser mais largos, todavia. Por isso, no Educational Club, que, como sabem, é uma associação da América do Norte, para a educação moral e social dos homens, com filial no Rio, eu propus que, em cada morro da nossa incomparável baía, fosse colocada a estátua de um grande fundador de religião. Seria um pantheon sublime, em pleno ar, em um quadro maravilhoso da natureza. Já o Corcovado está consagrado ao Cristo Redentor. Vá lá. Consagre-se a Gávea a Lutero. E o Pão de Açúcar, pela sua forma bojuda e cônica, está indicado para ser o pedestal do Buda. Ver-se-ia um dos morros pequenos da barra para Mahomet, e outro menor para Augusto Comte.

— Mas que blasfêmia, seu Radagasio, interrompeu, irritada, D. Isabel.

— Não, minha senhora. Concorda. Neste país não há gente de todas religiões? Por espírito de justiça, os morros seriam designados, segundo a importância das religiões no Brasil. A religião católica, que é a mais importante pelo número, devia ir para o morro da Tijuca ou o Bico do Papagaio, mas concedo que vá para o Corcovado, que é mais evidente.

— É uma bela ideia. Seria um pantheon assombroso e que lição para a humanidade! Minhas felicitações, aplaudiu Filipe.

Radagasio inclinou-se, desvanecido e orgulhoso com o sucesso do seu brilhante improviso.

— Será a consagração dos homens, prossegue Radagasio, porque a natureza por si mesma havia patenteado ser ela um prodígio divino. Não está ali na Serra do Mar, o Dedo de Deus? E no nosso céu de anil, nas noites maravilhosas, não brilha o sublime Cruzeiro? As nossas noites, que magia! No céu, as estrelas sem fim, tão numerosas que parecem terem baixado à terra, para dar-lhe a iluminação feérica. É a coroa do Pão de Açúcar, que é um rei de granito, é o colar de Copacabana, são os pirilampos do Flamengo... Ah! Neste país, neste Rio incomparável, tudo é grande, só o homem é pequeno!

Radagasio engasgou-se apavorado com a surpresa deste conceito dissonante da sua apologia.

Filipe percebeu o desconcerto do homem loquaz e sublinhou:

— Por este final é que eu não esperava. Porque desesperar do homem se ele fez tanta coisa, que o assombra, conforme o seu louvor. O cabo aéreo da Urca, a rédea do elefante, o colar de Copacabana?

Foi a vez de Thereza sorrir e o seu prazer aumentou quando Radagasio, muito roxo e sempre engasgado, tossia, exausto, esforçando-se em responder.

— Não nego que o homem brasileiro não tenha feito alguma coisa e ajudado a natureza. Mas ele é indolente, só cuida de carnaval e só pensa em revolução...

— O senhor não gosta de carnaval? Eu acho tão divertido para a gente pobre, objetou Leonor.

— Ah! Minha senhora, replicou Radagasio, é um divertimento inferior, uma bacanal de negros. Eu detesto negro. Não nego, sou aristocrata. E a desgraça é que, enquanto nascer neste país um moleque e uma negrinha, o carnaval não se extinguirá... Ainda assim é melhor carnaval do que revolução.

— Porque, seu Viana, só se fala em revolução? indagou Leonor.

Radagasio olhou firme para Filipe e disse triunfante:

— Casa que não tem pão, todos gritam e ninguém tem razão.

Thereza revoltou-se:

— Oh! Você não larga esta mania de ditados.

— O provérbio é a sabedoria do povo, explicou Radagasio raivoso.

A irritação de Thereza gerou um silêncio constrangido. D. Isabel, para acalmar Radagasio, pôs-se a gabá-lo.

— Como eu admiro a sua alegria. Com certeza o senhor deve ter uma boa saúde, um bom estômago. Isto vem deste ar, o ar da Glória.

Radagasio sorriu vitorioso ao equívoco cumprimento.

— Sim, este ar vivifica os pulmões. Mas não é tudo. É preciso saber usá-lo. Eu tomo cinquenta respirações, bem fundas, bem de vagar, em um dia de cada mês, para o benefício do corpo e do espírito. Durante este exercício vou falando sozinho, comigo mesmo, afirmando que sou um homem superior e de grande sucesso. Desta forma brilha mais forte em mim o sol interior. Cada um tem dentro de si um sol.

— Já sei, interrompeu Leonor, batendo palmas, é a alma.

— Não. Paz à alma, respondeu Radagasio superiormente. O nosso sol interior é o plexo solar, o sol abdominal.

Thereza, muda, exasperada, pôs-se de pé em um impulso desatencioso. Todos seguiram o seu movimento. D. Isabel despediu-se. Thereza convidou-os a ficar para jantar. A mãe de Filipe recusou polidamente este precipitado toque de familiaridade. Radagasio, para mostrar-se hospitaleiro, insistiu no convite para outra ocasião. D. Isabel desculpou-se, porque não saía nunca à noite.

Com espanto de Thereza, Radagasio agarrou-se a Filipe.

— Olhe, disse o marido, temos muito que conversar... Quero expor-lhe as minhas opiniões financeiras. O senhor sabe: dá-me boas finanças, dar-te-ei boa política.

Combinaram que Filipe voltaria no próximo domingo. Quando as visitas partiram, Radagasio, seguindo ao lado de Thereza, resmungava:

— Estes seus amigos pensavam naturalmente que eu era um idiota... Sim, imagino o mal, que você não lhes tem dito de mim. Mas conheceram de quantos paus se faz uma canoa. E saíram embasbacados...

Thereza sentiu um frio no corpo com aquelas palavras. Fitou um instante o marido. Teve nojo da sua pele rugosa de sapo. Malditos olhos opacos, frouxos. A cara parada. Somente o nariz marcava o ritmo da estupidez. Thereza, rapidamente, o deixou e apressou-se para o mirante. Não quis olhar o seu mundo. Ele fora manchado, conspurcado, ridicularizado, degradado pelo verbo do homem infame. Ficou de costas para aquilo tudo. Sentada no banco, fechou os olhos. Dentro deles, a magia recomeçou. Cumpria a ordem de pensar em Filipe.

X

Desamparado do conchego de Thereza, separado bruscamente da unidade, que a ilusão infantil lhe criara, como definitiva, Jujú recolheu-se macambuzio à sua casa. Desinteressou-se de tudo. Quando a mãe o viu tristonho e o quis interrogar, o menino a repeliu, raivoso, desesperado com a perturbação, que lhe causavam indagações impertinentes. À mesa familiar jantou-se morosamente. As conversas políticas arrastavam-se. Bastou aquele ponto obscuro da cisma de uma criança para espalhar a melancolia. D. Calú fez o menino deitar-se cedo, conduziu-lhe as orações, que ele repetia, maquinalmente, com o pensamento longe. Quando ficou só, no escuro, Jujú alegrou-se na liberdade de pensar, imaginar e sofrer. Estava ali como um enjeitado, metido em uma cama, quando podia estar com Thereza no jardim, no caramanchão, no mirante, ouvindo histórias tão bonitas. Porque lhe faziam aquela maldade? Gente perversa. Agora tudo era Filipe. Um suor frio inundou a criança, o coração batia rápido e uma náusea o tonteou. Cerrou os olhos. Tudo vogava em um balanço enjoativo. As figuras de Thereza e Filipe aproximavam-se unidas e riam dele: “Olha o bobo. Chorão!” Jujú zangou-se. Um calor ardente sucedeu ao frio e secou o suor. A boca ficou amarga, as mãos e os pés crisparam-se. Ah! Se uma onça saísse do mato e viesse devorar Filipe. Prazer. Na sua rigidez, Jujú riu-se e os membros distenderam-se. Estava vingado. Filipe desaparecera e Thereza estava salva e seria sua. Só se ocuparia dele. Acalmou-se. Foi adormecendo imaginando passeios com Thereza. Iriam ver os macacos. Engraçado. Pula um, pula outro, coça-se um, come outro, fazem caretas, gritam, e de todas as gaiolas uma berraria danada. Gostoso. Olha o papagaio, fala, fala, tu és mais gente que macaco, que não fala. A onça que comeu Filipe! Que medo, foge Teté, corre, corre, lá vem a cobra grande atrás de nós... E correram loucamente. A cobra voava, a cabeça empinada, a língua vibrante, ávida, elétrica. Jujú arrastava Thereza com uma força sobrenatural. Corriam, corriam por entre a algazarra da bicharada, que nas gaiolas alegrava-se com a porfia... Ah! Meu Deus... A cobra pegou Thereza, horror... Thereza, Teté, salta, foge... Ah! A cobra está apertando, apertando, Teté não chora, uma faca para cortar a cobra, pelo amor de Deus! Sai, cobra malvada... Filipe!... E Jujú gritou alto, espavorido: Filipe!...

D. Calú, que ainda não se deitara, correu ao quarto do menino, que estava dormindo alagado em suor. Sacudiu-o. Jujú acordou aterrado e agarrou o pescoço da mãe.

— Sossega, meu benzinho. Foi um sonho mal?... Não é nada... Já sei, tu estás com saudade de Filipe... Amanhã eu mandarei chamá-lo...

A criança estremeceu de horror. Empurrou a mãe, virou-se para a parede e cobriu a cabeça desesperado, furioso. Não houve nada que o fizesse sair desta posição de rancor. D. Calú ficou exausta e desamparada. O marido, que também ouvira o grito angustiado de Jujú, veio ao quarto. Quando observou a atitude do menino, ponderou gravemente:

— Conheço isto, é algum espírito mau, que o está perseguindo. Aqui não posso fazer nada. Amanhã vou ao Centro Redentor e peço uma intervenção para afugentar o espírito perseguidor e saber o nome dele...

D. Calú revoltou-se:

— Ora, Aristides, lá vem você com as suas maluquices, deixe-se de baboseiras. Qual Centro, qual nada. Se ele está com espírito mau, que para mim é o demônio, eu farei uma novena a Nossa Senhora da Glória. Isto sim, é que salva... Espiritismo, maluquice, pecado...

Vieira desdenhou discutir. Encerrou-se no seu grande desprezo pela inteligência terrena da mulher e elevou-se ao plano astral e aos outros planos superiores, em que as infinitas forças espirituais governam o universo, libertas das dolorosas reencarnações.

Thereza evadira-se do círculo de Radagasio. Sentia-se livre da opressão do homem odioso e alegrava-se no mundo imaginário, que o amor lhe criava. Os seus olhos separavam-se do quadro repulsivo, que fora a sua existência, e só viam a miragem de uma vida em perpétuo êxtase por Filipe. Tudo era indeciso, mas que beleza indefinível no sonho libertador e maravilhoso! Vivia dentro de si mesma o gozo supremo e sorria indiferente às misérias conjugais. Sabia que estava livre, não pertencia mais aquela ignóbil escravidão. O que a religião não lhe dera, o amor realizava. Ainda envolta no misticismo fervoroso, a religião transmudou-se em amor. Thereza imaginava em Filipe a encarnação de Jesus. Nas suas orações fundia o Deus e o homem e o seu ser espiritualizava-se nas delícias da volúpia transcendente. O dominador era divino e a mulher inebriava-se na possessão. O pensamento concentrava-se na imagem adorada, que lhe exaltava o sangue e a sexualidade. A paixão transfigurou-a e a separou de todas as coisas.

Esta separação inefável foi também a magia do amor em Filipe. Entrou em um sonho sublime, que o arrebatou do mundo exterior. Foi uma cisma maravilhosa, que o libertava da realidade. Cisma, separação. O espírito separa-se de tudo e concentra-se na miragem íntima. As tendências imaginativas do seu espírito desenfreavam-se e desde então passou a viver no mundo fantástico, construído pelos sentimentos absolutos e criado exclusivamente para o amor. A realidade dos outros pareceu-lhe aborrecida. Não refletia, não pesava a vida. A separação era movimento inconsciente, involuntário e fatal. Absorvia-se no encantamento de imaginar Thereza e na obsessão de desejá-la. No sonho acordado, extasiava-se no adorado corpo esguio, fino e ardente, como um círio, corpo de raça extática, que foi apurado na provação, no transporte voluptuoso, na prece, na dança, na solidão, corpo, que se ergue da terra, como uma chama em busca do infinito, corpo, que é uma exclamação do perpétuo desejo. Que fascinação a morte de amor desse corpo transfigurado! O corpo nu em face do mar, embebido de luz. No magnífico senso do maravilhoso, Thereza despira rapidamente as vestes da noite solitária e aparecera diante de Filipe. A grande e meiga luz da manhã fazia irradiar os mágicos olhos negros e fazia da boca fresca uma sanguínea aurora, lambia a pele e afundava-se em todos os cabelos sobre os abismos carnais. No alegro inumerável, mar, sol, cores, linhas, ideias, formas, sonhos, pedras vegetais, tudo celebra o corpo sublime. O universo é a glória do amor. Se chega a sombra, o pálido corpo de Thereza recebe o que há de claridade no espaço. Corta como uma opala as trevas. Os olhos cintilam, enquanto a boca gélida se descora. Noturno. Os amantes perdem-se para sempre e enlaçados transfiguram-se no êxtase supremo da grande morte. Foi para a magia dessa unidade, que Filipe empreendeu a viagem maravilhosa.

No domingo à tarde, Filipe desceu do bonde no largo da Glória em caminho para a casa de Thereza. A triste amendoeira do largo estava carregada da melancolia domingueira. Todas as vendas fechadas e nas varandas das casas vermelhas a gente preguiçosa. O beco do Rio, estreito e sujo, não teve a força de lembrar a Filipe a conspiração malograda, em que estivera envolvido. Passou por ali indiferente. Ia afastando-se cada vez mais do que fora o seu profundo interesse. Aspirava unicamente a subir à morada do sonho. O que os seus olhos iam percebendo não lhe dava a menor reação espiritual. A sua visão era toda interior. Por isso não deu atenção ao amontoado de casas galgando a colina, aos nomes indígenas das avenidas, aimorés, carijós, Goitacazes, nem à fresta, por onde passavam a vista da baía e o desfilar dos carros à beira-mar. Subia ansioso a ladeira por entre casas, flamejantes do lado do sol e de muros cinzentos, carcomidos, do lado da sombra, cobertos de flores vermelhas, trepadeiras, latadas, caramanchões, mascarando a igreja, que no alto se posta em frente à barra, tendo à esquerda o morro espesso de Santa Thereza, no qual verticalmente sobem mil casas, atropeladas até repousarem na esplanada, onde se estendem os jardins, os parques e as casas em horizontal. Do largo da igreja, Filipe mirou a morada de Thereza. O sangue bateu-lhe forte. O sol, no Corcovado, por cima da casa, o tonteava. Parou ansiado. Sorriu à alegria, que o tomava. Imaginou Thereza no mirante a chamá-lo. Filipe fixou os olhos e tirou o chapéu, cumprimentando. No mirante um vulto claro agitou o braço. A mão batia. Filipe precipitou-se, rastejando o muro, espiado pelas bananeiras alegres. Foi furtivo e célere. Os olhos pressentiam todos os movimentos da rua adormecida. Filipe temia que o vissem da casa dos amigos e receava um brusco arremesso de Jujú, que se lhe tornara odioso. Quando se viu no pátio da chácara, Filipe respirou sem ânimo de subir. Viera cedo demais para o jantar. O pejo das conveniências o amargurava. Mas viera para encontrar Thereza só, sem o marido. E se assim não fosse, não explicaria a sua invasão. Era tarde para recuar. Avançou para o alto. O horizonte rasgava-se para o lado do mar e perdia o seu tempo, porque Filipe não o olhou. Fitava para cima, dentro do silêncio, cheio do vento, que corria, livre, a sacudir ruidoso as palmeiras e todas as folhagens. Subitamente Thereza apareceu no alto da escada. O vulto claro. O braço agitou-se, a mão estendeu-se. Os olhos de Filipe abismaram-se em uma atmosfera azul amarela rósea, que emanava da figura de Thereza. Eles umedeceram ao contato das mãos, que se apertavam. As bocas iam se fundir, quando o timbre alto da voz de Thereza as separou.

— Quanto tempo para chegar... Eu estava à sua espera e quando o vi, no largo da igreja, contei os minutos... Foi um século. Fiquemos aqui, no meu mirante até que os outros cheguem. Estou só, nem Lili ainda voltou do passeio.

Thereza falou muito, a alegria do imprevisto de estar sozinha com Filipe a excitava e manifestava-se em palavras e gestos, que tentavam disfarçar a estranha situação. Pouco a pouco a loquacidade se extinguiu e Thereza serenou em êxtase.

Filipe perguntou-lhe:

— Pensou muito em mim? Sim? O meu pensamento é também todo seu. Nada mais me interessa. Só quero a sua presença real para completar a idealidade, em que o meu espírito se inebria.

Thereza sorria, os olhos postos em Filipe, a boca bebendo-lhe as palavras, que vinham vibrantes e insinuantes.

Murmurou:

— Como tudo é difícil entre nós! Eu quisera também vê-lo, ouvi-lo sempre. Seria tão bom... Mas há tanta coisa, que nos separa.

Filipe arrebatou-se na ânsia de vencer.

— Não diga assim. Farei tudo para estar sempre ao seu lado. Não temo nada, e abandono o resto só pelo encanto de contemplá-la. Virei todos os dias... Não? Por quê? Receia o seu marido? Os outros? Ora não diga que é uma escrava, uma prisioneira... Libertação.

Thereza achou-se subitamente transportada a um plano irreal, em que as contingências da sua vida restrita se anulavam para a livre ascensão dos sentidos e do espírito. Todo o ser de Filipe a desejava. Ela entregou-se maravilhada às delícias supremas de ser admirada, querida, cobiçada pela voz, pelos olhos, pelo corpo e pela alma do homem, que ela igualmente queria, desejava e cobiçava. O entusiasmo alucinou-a:

— Filipe... Meu... Só meu...

Não falaram mais. Estavam unidos para sempre. As mãos enlaçaram-se. Os olhos abismaram-se. As bocas sorriam, caladas e sôfregas. No longo êxtase todo o mundo exterior, as maravilhas da luz, da cor, das formas, o sol, a água, as montanhas, as árvores, incorporaram-se em Filipe e Thereza, que aspiravam a realizar pelo amor a suprema unidade universal.

O aparecimento de Lili deslocou o encanto e ela atraiu-os para o seu universo infantil. Filipe brincou, com a menina, contou-lhe histórias absurdas, a fez rir e correr, enquanto Thereza seguia desvanecida a flexibilidade do adorado. Lili, entusiasmada, queria mais brincadeiras, atirava-se aos braços de Filipe, que a beijava estrepitosamente. Estes beijos, Thereza queria para si, eram dela, e porque iam para outrem? Interveio para moderar a excitação da criança e ordenou a negra, que a conduzisse e lhe mudasse a roupa suada.

Quando ficaram sós, Thereza e Filipe recaíram no silêncio. Um mesmo frêmito os impelia um para o outro. Ela estendeu-se lânguida, ardente, o rosto pálido e fixo, os olhos enormes. Filipe segurou-lhe o pé, apertou-o nas mãos quentes e beijou-o com os lábios frios, gelados. Absorveu longamente o calor capitoso da pele de Thereza. Ela murmurou: adorado!... E, curvando-se sobre Filipe, levantou-lhe a cabeça e entregou-lhe a boca fremente.

Quando puderam se falar, eles disseram a magia do encantamento, a transfiguração da realidade, o absoluto da esperança. Eles louvaram a maravilhosa fatalidade, que os unia para sempre. Eles se alegraram no êxtase da unidade e entraram na vida eterna.

Estavam neste doce esquecimento, quando o automóvel de Radagasio afugentou a beatitude, em que se abismavam. A volta brusca aquela triste contingência assombrou-os. O instante da alegria suprema lhes dera a sensação da perpétua e infindável separação de todas as misérias.

Radagasio percebeu, ao descer do carro, Filipe ao lado de Thereza. Os olhos minguaram, a boca franziu-se, o nariz fungou, as bochechas bateram aceleradas. Veio a eles, exclamando:

— Oh! Já chegou?

Conteve-se logo. Radagasio queria parecer bem educado e corrigiu-se:

— É verdade que sou eu que estou atrasado. Desculpe-me de não estar para recebê-lo. Quando se vai às corridas, nunca se sabe quando se volta. Não imaginam o que perderam... Quanta gente e que gente boa!

E vociferando para Thereza:

— Em vez de ter ficado aqui a olhar esta estúpida baía e não fazer nada, era melhor que estivesse se divertindo nas corridas, como as outras...

Falando a Filipe:

— A minha vida é muito cacete. Vou a toda a parte sozinho, a minha mulher faz finca-pé de não me acompanhar a nenhuma festa. E não retribui visitas. Por isso estamos isolados, ninguém nos procura, não recebemos ninguém. Dentro de pouco tempo não seremos mais conhecidos. A minha vingança será, quando ela morrer, ninguém irá ao seu enterro e nem à missa do sétimo dia. É uma ruína para a minha carreira e para a minha posição. Mas isto vai acabar. Você vae divertir-se, irá a toda a parte, fará como toda a gente. Agora, ultimamente, anda mais esquisita, nem mesmo de automóvel passeia. Não sai de casa, anda distraída, no ar, calada...

Thereza ficou rubra. Da boca contraída saiu um rancoroso:

— Não amole.

Radagasio exultou com esta explosão de mau humor de Thereza. Invocou o testemunho de Filipe:

— É assim que me responde quando lhe falo. O senhor não viu nada. Cada insulto, cada palavra feia...

Thereza revoltou-se contra a mentira canalha. Ia repelir vivamente, quando o olhar de Filipe a proibiu. Radagasio aproveitou para desaparecer.

Thereza explodiu:

— Oh! Homem nefasto. Que ódio!

— Thereza, tu não pertences mais a este mundo. Coragem!

Filipe apertou-a nos braços, ela entregou-lhe a cabeça para o agasalho inefável e, enquanto as bocas se beijavam, os olhos dela abismavam-se em um céu luminoso, enorme, infinito, dominador da terra e eliminador das suas misérias.

Vieram chamá-los para o jantar. Arrancaram-se dolorosos da volúpia e passaram, constrangidos, para o plano de Radagasio.

Este os esperava no salão. Estava de smoking. Espanto de Thereza. Radagasio explica a Filipe que aquele traje de bom tom, ele sempre usa para jantar por causa dos criados. Balançando a cabeça, Thereza o desmente em silêncio.

À mesa, os dois homens de cada lado da mulher, mas Radagasio está isolado. Thereza e Filipe entendem-se nos pensamentos, nas palavras e nos sorrisos. Radagasio esforça-se para atingi-los. Fala de tudo, da comida, do tempo, dos divertimentos. Eles apenas o ouvem e continuam à parte, separados dessas importunas trivialidades. Radagasio não pode digerir. Mastiga alto e queixa-se do estômago. Toma bicarbonato. Procura chamar a atenção sobre si. Os outros continuam indiferentes. Radagasio está exasperado contra Thereza, inclinada para Filipe, com a voz tão doce, os olhos beatificados. Filipe está radiante, transportado, e absorve virilmente todo o ser de Thereza. Ela o serve. Servir. Amar. Ocupa-se de Filipe: “Esta sopa, este badejo gorducho, este peru, esta salada, esta gelatina”, tudo para ele. As mãos de Radagasio ficam roxas, tremem frias. É o criado que o serve. Thereza à Filipe: “Estes morangos, este sorvete, champanhe”, Radagasio levanta-se para vomitar.

Thereza e Filipe gozam a ausência do homem verde. Riem, exaltam-se por tudo. Um século de alegria. O tempo imenso aprofunda-se nos seres extasiados e os une nas raízes imemoriais. Podem aparentar superfícies separadas, eles estão ligados para sempre na profundeza inabalável.

Radagasio volta sorrateiro e fulo. Bate na mesa e grita:

— A minha camomila.

Thereza e Filipe despertam assustados. Querem fugir. Os usos despóticos os detêm, até que Radagasio acabe a tisana.

Fora, no jardim, Radagasio seguiu Thereza e Filipe que se adiantavam para o mirante. A passagem para o escuro da noite o perturbava. Sentou-se no primeiro banco e daí via os dois vultos olhando a imensidade. A inteligência de Filipe o acabrunhava. Estava aí o segredo da fascinação, que exercia sobre Thereza e da qual ele também participava. Seguramente Filipe estaria a dizer coisas maravilhosas, que deslumbravam Thereza. A emulação de se medir com Filipe o agitou. Ergueu-se do banco e caminhou decidido para o mirante. Para mostrar-lhes a sua educação e não pensarem que os vinha surpreender, Radagasio tossiu na sombra. Quando se reuniu a eles, começou a interrogá-los sobre o que admiravam. Eles disseram que nada.

Radagasio sorriu e entendeu ser sublime:

— Pois admirem a baía e o oceano. Que significação tiram dessa aproximação singular?

Eles disseram que nada concluíam.

Radagasio ensinou-lhes:

— A baía é feminina. Agasalha como um seio, sorri, orna-se, é doce, é faceira. Revolta-se, é ciumenta. O oceano é masculino, domina, esmaga, possui. Enche o mundo, afronta a terra, invade e fecunda o ventre da baía.

Eles olharam-se, contendo o riso. O silêncio, que fizeram, irritou Radagasio, que se meteu entre eles separando-os.

Desequilibrado com o desprezo, Radagasio bufava, tremia com as pernas, debruçado na janela. O seu ímpeto era esganar Filipe e esbofetear Thereza. Achou um derivativo em provocá-los sarcasticamente:

— O que é miserável é uma baía tão bela, uma obra divina, ser manchada por uns bandidos, que revoltam os navios de guerra. Esses canalhas só mortos à bala, como tudo que é revoltoso.

Thereza, rapidamente, perguntou a Filipe:

— E Jujú?

— Não o tenho visto. Há dias que não me encontro com ele... respondeu Filipe.

— Jujú não me aparece desde aquela tarde do nosso chá. Ele anda nervoso, abatido. Por quê?

Filipe não teve tempo de responder à interrogação de Thereza, porque Radagasio resmungou raivoso:

— O que ele precisa é de uma boa coça. É um pequeno malcriado, caprichoso e que a minha mulher estraga com uns agrados estúpidos...

Radagasio conseguiu irritar Thereza. Ficou surdamente satisfeito, quando a viu colérica.

— Não se meta com a minha vida, bradou Thereza, estúpido é você, que não tem a menor sensibilidade, que só quer espancar as crianças, maltratar os fracos. Mas sabe se curvar diante dos poderosos... Isto é ser covarde... Entendeu... Covarde!

Radagasio mastigou as palavras com que ia responder. Os seus olhos batráquios apertaram-se e destilaram uma água peçonhenta. As bochechas batiam...

— Cale-se, sua cabeça de esterco...

Thereza deu uma gargalhada:

— Calar-me? Quem me manda? Você. Que esperança! Foi-se o tempo...

Virou-se para Filipe e continuou a falar com exagerado interesse de Jujú, seu amiguinho, seu companheiro das horas desertas e prometeu vê-lo no dia seguinte. Filipe não a abandonou. Enojado com a provocação de Radagasio, apiedou-se de Thereza e aspirou para ela a suprema libertação.

— Também eu irei amanhã vê-lo e nos encontraremos lá, disse altamente.

Para se destacarem de Radagasio e marcarem-lhe o desprezo, entraram a falar da família vizinha, a elogiar a bravura moral deles, a hospitalidade e o coração.

Radagasio fingiu que não os ouvia, disfarçou, olhando para fora. Tudo se perturbava na sua cabeça. Ele resumia o mundo nestas duas obsessões, o masculino e o feminino, o oceano macho, a baía fêmea...

Retirou-se do pavilhão e começou a vagar pelo jardim. Impulsos de vingança ritmavam os seus passos pesados. O seu desejo era matar. Mas logo acovardou-se e sorriu à ideia, que lhe veio, de denunciar Filipe e os Vieiras, como conspiradores. Uma carta anônima, à máquina, escrita por ele mesmo sem cumplicidade de ninguém, que o traísse. Estava feito. A polícia o que queria eram denúncias, delações para se justificar e aumentar a verba secreta. Radagasio alegrou-se com o plano infalível, estava acabado Filipe, liquidado Jujú e toda a maluquice de Thereza. Ele, triunfador, campearia como o marido, o dono, o senhor. Bravo, Radagasio. Toca a disfarçar para que não desconfiem.

As mãos ardentes desprenderam-se, quando eles viram Radagasio aproximar-se. Sorria com esforço. Procurou falar-lhes. Com dificuldade saíam palavras engasgadas:

— Fizemos mal em ter ficado aqui. Podíamos ter dado um passeio de automóvel. Ainda é tempo, querem?

Thereza recusou vivamente. Radagasio, conciliante, concordou em não passear.

— Sim, é tarde, são onze horas... E eu tenho de levantar cedo. Aqui, o senhor sabe, é regime militar. Tudo marcha à hora. Sou homem da ordem. Não compreendo esta gente boêmia, que vive com o desprezo do tempo. Não digo que não saia à noite, não vá ao teatro, a um baile, mas sempre em véspera de dia santo ou domingo. Nunca eu seria um revolucionário...

E riu gostoso para Filipe, saboreando a armadilha que lhe preparava. Filipe não pode mais suportar a presença de Radagasio. Levantou-se para partir.

— Realmente é tarde. O senhor tem de estar cedo no banco. Não quero perturbar o salutar regime da ordem.

Thereza ficou desamparada, quando Filipe a deixou. O seu impulso era segui-lo para a eternidade. Ouviu-lhe os passos vagarosos, com que ele descia a escada do jardim, também custando a desprender-se daquele encantamento. Thereza ficou absorta em todos os sons, que podiam ser dos movimentos de Filipe na escuridão por entre as árvores e as flores.

De repente sobre a sua nuca sentiu um bafo quente. Era Radagasio, que lhe murmurava:

— Passou... Não se zangue... Façamos as pazes...

Ela o empurrou.

— Saia, miserável, canalha!

Radagasio insistiu:

— Não fique brava. Eu perdi a cabeça por causa daquele sujeito. Agora não se recebe mais ele, fica tudo como dantes. Vamos para o quarto. Eu vou tirar este smoking cacete...

Thereza não o ouvia mais. Os seus olhos devoravam a escuridão e fixavam-se na claridade do largo da igreja. Quando ali apareceu o vulto de Filipe, ela, arquejante, desesperava-se por se atirar para ele. Filipe voltou-se e deslumbrou-se reconhecendo Thereza, que o esperava. A visão transcendente parecia-lhe serena e bem-aventurada. Saudou-a na inefável alegria da unidade. Thereza, transfigurada, bateu vivamente com as mãos. Debruçada sobre o espaço sorria e beijava loucamente Filipe.

Radagasio, que na sombra vira o transporte de Thereza, ficou apatetado. Batendo com os pés pesados, marchou sobre a terra grossa do jardim e recolheu-se para se libertar do smoking.

XI

Thereza e Radagasio não dormiram essa noite. Passado o estupor, em que a bravura de Thereza o bestificou, veio a Radagasio o furor de dominá-la e batê-la. Do outro lado da porta Thereza sentia-se segura. Fechara-se resolutamente e foi com um sorriso vingativo, que seguiu a inútil tentativa de Radagasio para penetrar no seu quarto. Ele não ousou gritar e impor a sua presença. Experimentou resignar-se e desprezar a mulher, que o afrontava com aquele entusiasmo impudente por Filipe. A boca esteve sempre seca a noite inteira. Radagasio bebeu uma moringa d’água, acompanhada de bicarbonato e de água de flor de laranjeira. Tudo inútil. O pensamento trabalhava contra o repouso. Imaginou a carta anônima, gozou as suas consequências, a prisão de Filipe, a deportação e seguramente a morte pelo providencial beri-beri, que já havia liquidado tantos prisioneiros políticos. Veio-lhe depois o medo das consequências. Podiam descobrir ser ele o autor da denúncia. Quem descobriria? Thereza. Ela ligaria a prisão de Filipe ao seu desespero, ao seu ódio, que tinha feito imprudente explosão. E Thereza exaltada, quanto mal lhe poderia fazer? Não tinha irmãos para socorrê-la, mas uma mulher apaixonada não precisa de ninguém para vingar o seu amor. A evidência desta banalidade, alarmou Radagasio. Thereza, desencadeada, iria ao extremo, fugiria de casa. Ruína de Radagasio. Que fazer? O melhor era contemporizar, conquistá-la. Atraí-la à sua luxúria. Se outro a desejava, era por ser fascinante, apetitosa. As imagens lúbricas acenderam-lhe o sangue. Thereza amava Filipe. Ele queria aproveitar das ardências dessa paixão. Pensou possuir em Thereza a mulher de Filipe. Desforra. Veio à porta, tentou abri-la. No silêncio, Thereza seguia, alarmada, os ruídos inquietadores. Ouviu que ele a chamava insistentemente. Ficou hirta, agarrada aos lençóis. Só olhava a janela para por aí escapar-se. Radagasio prosseguia no impulso sexual. Suplicava, mandava e exasperava-se com a impossibilidade de entrar. Percebeu que Thereza o ouvia e ficou mais violento. Procurou forçar a porta. Com raiva, com desespero atirou-se contra esta. O baque inútil foi tremendo e abalou a casa adormecida. Lili acordou gritando. A negra deu um pulo da cama e de pé, virada para o corredor, berrava:

— É o diabo! Ah! Meu pai do santo, cruz capeta, Eixú! Eixú!

Tudo acovardou-se. Ninguém se moveu nas trevas. Ninguém respondeu para tranquilizar o pavor. A noite continuou indiferente às angústias humanas. No profundo sossego, as madeiras, as paredes, crepitavam sutilmente.

De manhã, Thereza desesperava por comunicar-se com Filipe. Revoltava-se com a certeza de que na casa dele não havia telefone, por um estúpido comodismo da velha D. Isabel. Detestou a velhice, a devoção, o tradicionalismo. Passou quase todo o tempo no seu quarto, fechada, e só abriu, quando Lili a reclamou. A pequenina, ao vê-la ficou deslumbrada e agarrou-a muito. Thereza não pode adivinhar a exageração daquela ternura. O mistério infantil é insondável. Estavam as duas se entretendo docemente, quando uma criada avisou Thereza, que a chamavam ao telefone. Assustou-se. Pensou que seria Filipe, correspondendo assim ao seu intenso apelo mental. Compôs um pouco a sua toilette, sorriu, mirando-se de passagem no espelho, e correu para o telefone. Estava este tomado pelo marido, que dizia o seu alô com voz disfarçada.

— É para mim, gritou Thereza.

Radagasio largou o fone e cortou a comunicação.

— Não sei, é algum canalha que telefona, porque eu falei e não me respondeu. O sem vergonha fugiu... Ah! Se eu o apanho. Quem é? Você deve saber, sua cínica!

Ela o fitou com um desprezo, um ódio, que o tonteou... Levantou bem alto a cabeça para sustentar os pesados cabelos despenteados e voltou ao quarto. Lili desaparecera. Thereza ficou só no infinito desespero. Seguramente era Filipe, que vinha em seu socorro. A maior ventura lhe seria ouvir a sua voz, que a transportaria para longe daquele inferno. Esta alegria lhe fora roubada pelo homem ignóbil, seu marido. Sentiu este maldito epíteto como uma marca de prostituição sobre o seu corpo, que seria o dom do seu amor a Filipe. Chorou raivosa e humilhada.

O resto da manhã foi torpe. Teve de almoçar com Radagasio, teve de fazer as mesmas coisas, que a tirania dos hábitos impõe. Entendeu desforrar-se à tarde, indo à casa dos Vieiras, onde seguramente se encontraria com Filipe.

Jujú divagava ininterruptamente. Vivia alheio a todos, metido em suas cismas. As tendências contemplativas do seu espírito acentuavam-se no tempo perdido, em que fitava o mar, na indiferença aos brinquedos, no enjoo de qualquer estudo. A família esforçava-se em distraí-lo e ele fazia corpo mole aos impulsos afetuosos, que procuravam arrancá-lo das suas cogitações. Negava-se a ir a casa de Thereza e, se insistiam em levá-lo à força, chorava aterrado. Às vezes emudecia e com dificuldade arrancavam-lhe respostas. Mas a esta depressão sucedia uma excitação estranha e a criança disparava a falar sem conexão, a narrar casos extravagantes, delírio de sonhos acordados. Nestes vinham sempre Filipe e Thereza, aquele odiado e esta adorada. Mentia sobre eles, denunciava a sua intimidade, referia-se a abraços, e beijos, que nunca vira. Essas afirmações, apesar do delírio, que as exaltava, foram convencendo aos que as ouviam do amor de Filipe e Thereza e aos poucos os atos e as atitudes deles eram interpretados pelo ângulo da paixão. Para os rapazes, o desinteresse singular pela revolução, que iam notando em Filipe, era sinal de amor. Para todos, o súbito entusiasmo de Thereza pela revolução fora impulso da paixão por Filipe. O amor reagia diferentemente e os acabrunhava com a sua força separadora, exclusiva e incoerente.

Quando, à tarde, ainda cedo, Thereza surgiu na casa dos vizinhos, cortando a grande ausência, só estavam as mulheres. Nunca elas perceberam Thereza tão linda. Ou observavam nela a irradiação do amor e ficaram fascinadas por imaginação, ou na realidade Thereza fulgurava nos olhos cintilantes, na boca carnuda e a sua voz, que de agora em diante devia musicar as palavras da paixão, tinha inflexões e sonoridades, que impregnavam de magia os que a escutavam. Araci admirava com inveja a elegância luxuosa de Thereza e não se cansava em louvar-lhe o vestido, os adornos, o chapéu, a bolsa e tudo que realçava, com desenhos e cores, a formosura admirada. Thereza afligia-se com aquela análise, que por instinto lhe parecia cobiça. Para se furtar aos louvores e sossegar a inveja de Araci, prometeu-lhe vestido, chapéu e bolsa do mesmo gosto. A interesseira ficou maravilhada. D. Calú vexou-se com a ganancia da filha, mas não ousou repreendê-la. Era a mãe fraca, a mãe brasileira. Desviou a conversa para Jujú, a sua inquietação. Contou a Thereza as crises do menino, o seu amor por ela, que tanto a impressionava, parecendo amor de homem... Escondeu as aventurosas revelações, que Jujú fazia da paixão de Filipe. Esta situação aborrecia Thereza, que bravamente quis afrontá-la para esclarecê-la e desanuviar o ambiente das alucinações infantis, que davam a todos desalento e morbidez. Pediu a Araci que fosse buscar o menino. Enquanto o esperavam, Thereza arrastou a conversa para a política, ardendo por chegar até Filipe. D. Calú confirmou-lhe a perseguição feroz da polícia, os crimes, as infâmias do governo e lamentou a inércia de certos revolucionários.

— Não sei o que se passa. Eu noto todos misteriosos. Sei que alguns trabalham. Não me dizem o que fazem, mas eu percebo que há esforço para resolver a situação que não pode ficar assim. Desgraçadamente muitos estão, afrouxando. Mesmo alguém, que era a cabeça, a inteligência forte, o entusiasmo inesgotável... Este já não aparece e os rapazes estão tristes, porque sentem o seu desinteresse...

D. Calú não ousou nomear Filipe nem precisar os motivos, a que atribuíam a distração daquele, que foi um dos orientadores. Thereza jubilou intimamente, mas teve pudor da força, que arrebatara Filipe à revolução. Não queria vangloriar-se e não sabia até que ponto tinha direito de enfraquecer o movimento, desviando-lhe um chefe, um criador de entusiasmo. Thereza não interrompeu D. Calú. Esta atrapalhou-se com o silêncio e para se equilibrar fez-se, sorrindo, confidencial:

— Ah! Não lhe conto nada. Temos aqui um segredo, que eu vou lhe confiar. É verdade que não estou autorizada mas a senhora é tão nossa, que seria deslealdade guardarmos escondido...

A confidência foi interrompida com a entrada de Jujú, quase arrastado pela irmã.

— Como está mudado! exclamou, sem querer, Thereza, estendendo os braços para o seu menino. Que saudades, meu benzinho. Não quer mais à sua Teté?

Jujú saiu do seu abatimento e avançou tímido para os braços, que o queriam. Thereza beijou-o, interrogativa.

— Diga o que você tem? Porque está triste? Vim buscá-lo para jantar comigo.

A criança suspirou e não respondeu. Foi Araci, que gracejou:

— Este bobo estava fazendo luxo para vir à sala e quando se resolveu, exigiu se vestir com a roupa nova e perfumou-se todo.

Jujú ficou acabrunhado de vexame e escondeu a cabeça no braço de Thereza. Um calor estranho do corpo infantil alarmou a mulher.

— Mas este menino está com febre. Meu Deus, que será isto?

D. Calú não queria acreditar em febre, mas a insistência de Thereza a tornou apreensiva. Araci, desinteressada, continuava a examinar os objetos de Thereza com uma familiaridade cigana.

Thereza pôs-se a engabelar Jujú, que, pouco a pouco, foi se libertando do pesadelo, que o esmagava e entrou a sorrir deslumbrado para o seu ídolo. Inebriou-se do perfume carnal de Thereza, deleitou-se em ouvi-la e acariciar-lhe a nudez dos braços.

D. Calú sacudiu o torpor desta languidez, ansiosa por descobrir a Thereza o segredo da casa.

— Bom, agora vou-lhe mostrar o que prometi... O nosso segredo. Ih! Eu imagino a sua curiosidade... Espere um pouco, eu já volto... Não lhe digo nada...

Saiu radiante de revelar o que estava tão guardado E rindo, mais lépida, desapareceu.

Para desforrar-se de tanto segredo, Thereza quis descobrir a surpresa, antes que D. Calú voltasse. Indagou de Araci, que, rindo muito, se negou a falar, contente de intrigá-la e entrar no jogo da família. Jujú debatia-se por saber do que se tratava. Não atinava com o sentido das palavras da mãe. Para satisfazer Thereza, insistia que Araci contasse.

Colérico, gritou-lhe:

— Conta, conta, sua burra...

Aracy deu-lhe um tapa. Jujú desprendeu-se de Thereza e atirou-se a ela, mordendo-a e dando-lhe pontapés. Foi nesta ocasião, que D. Calú entrou alvissareira:

— Apareça a surpresa! Não tenha medo, Monteiro.

Monteiro apareceu encalistrado e antes de ser apresentado a Thereza estendeu-lhe a mão, que ela apertou sem compreender nada.

— Era esta a surpresa, explicou verbosa D. Calú. Este rapaz chama-se Raimundo Monteiro e é um dos mais audazes e famosos revolucionários. A senhora está conhecendo um verdadeiro herói. Com certeza Filipe já lhe falou nele...

Thereza disse que não. Espanto de D. Calú, que sondou assim mais uma vez o desinteresse de Filipe pela causa.

— Não faz mal. Ele devia lhe ter posto mais ao par de tudo, que é o movimento e que é a vida dele...

Olhou vingativa para Thereza. Naquele momento uma zona de ódio estendeu-se entre ambas. D. Calú via em Thereza a força, que desviara Filipe e Thereza detestou esta causa, que absorvera Filipe e que ainda podia ser um perigo para o seu amor exclusivo e despótico. Enquanto não tinha o amor de Filipe, alardeava, para agradá-lo as ideias e as paixões políticas revolucionárias. Depois da revelação do amor, afastava, ciumenta de tudo o que pudesse transviar da unidade do êxtase o seu adorado.

— Mas o senhor ainda tem esperança de sucesso? Não pensa que é inútil continuar a luta? perguntou Thereza a Monteiro, com desdenhosa inflexão de desânimo.

Monteiro foi eloquente. Afirmou a sua fé. Declarou-se pronto para todos os sacrifícios. Narrou-lhe a sua vida de combatente, os perigos por que passou, a atividade que desenvolveu. Exaltou os seus companheiros sublimes, os chefes, os condutores, os organizadores. E, no entusiasmo, disse que, mesmo foragido, como estava, continuava infatigável na conspiração para salvar o país da canalha infecta, que o flagelava cruelmente.

O ardor de Monteiro comoveu Thereza, mas ela não se sentiu novamente contaminada pela chama revolucionária. O seu espírito librava-se em outro plano.

Quando Vieira entrou, Jujú afastou-se rapidamente do colo de Thereza. O pai o intimidava. Receou que lhe ralhasse por aquela falta de modos. Vieira estava atormentado com a saúde do menino e, sem mostrar muita alegria pela visita de Thereza, foi logo indagando da sua impressão sobre Jujú.

— Não acha que está definhando? Este guri não brinca, vive no ar, tristezinho. Aqui em casa querem que se chame o médico. A senhora também pensa assim. Mas eu não estou de acordo. Todos os nossos males são espirituais. Jujú está sendo perseguido por algum espírito, que tem de sofrer por crimes em outra vida. Tudo é mistério. Estamos fazendo pesquisas no meu círculo espírita e ainda não chegamos a um resultado, sempre aparecem espíritos zombeteiros, que perturbam as invocações. Ainda ontem estávamos chamando o próprio Allan Kardec e quando, este espírito divino ia nos esclarecer, veio um espírito mau que estragou tudo e Allan Kardec retirou-se, furioso, derrubando a mesa, apagando as luzes, batendo com as portas. Sempre é assim, quando quero saber o que se passa com o menino. Seguramente o espírito que está nele, purga algum crime horrível e não é possível acalmá-lo, enquanto não cumprir a pena.

Jujú seguia esta explicação obscura, aterrado com os esgares do pai, a voz tumular, com que declamava e sentenciava. Os outros ficavam acabrunhados com estas emanações da loucura e da miséria humana. D. Calú puxou o filho para si e tristemente, quase chorando, ia dizendo:

— Ah! Aristides, você está metendo tanto medo ao pequeno. É maldade. Não, meu filhinho, tu não tens o demônio ou espírito mau no teu corpo. Nossa Senhora da

Glória te livrará de toda esta bruxaria. Para a semana começo a novena e eu cumprirei a promessa, que fiz...

O condenado olhou enternecido para a mãe, que ia livrá-lo do demônio. Thereza veio também ao socorro da criança, prometeu-lhe presentes e passeios. Vieira achou ignóbil a superstição feminina. Virou-se para Monteiro:

— Rezas, novenas, santos, promessas, como tudo isto é inferior. Religião corporal, selvageria. Para esta gente só há morte e por isso veneram os cemitérios, templos da podridão. O espiritismo mostra que não somos donos dos nossos corpos e nos impele ao desapego de tudo, que é terreno e vão...

Monteiro sacudiu enjoado a cabeça, desesperado por se libertar daquele círculo, em que fanáticos se debatiam em volta de uma pobre criança, torturada por uma psicose misteriosa. Só a inteligência de Thereza lhe pareceu clara naquele chãos. Araci estava indiferente e caceteada vendo a sua tarde perdida. Esperava do imprevisto uma salvação, que a levasse para longe. Alvoroçou-se quando tocaram a campainha. Correu para abrir a porta. Ouviram na sala os seus gritos:

— Meu Deus... Que susto! Pensei que fosse alma do outro mundo... Entre... Minha gente, não se assustem, aí vai o fantasma... O espírito... Livra!

Filipe entrou, seguido de Araci às gargalhadas, curiosa de ver o espanto de Thereza. Não viu nada. Thereza disfarçou a sua alegria. Não falou. Apenas os olhos e a boca sorriam na beatitude. Monteiro festejou a aparição de Filipe. D. Calú o recebeu com o mesmo alarido da filha.

— Que milagre, sim senhor! Quero saber qual foi a santa, que fez o milagre...

Aracy deu uma risada vibrante e garota:

— Será Santa Thereza? É a santa da moda...

Felizmente Vieira interveio, indignado:

— Sempre esta mania de santos. Os santos podem ter sido espíritos superiores. Não se nega. Mas não há milagres. O que há é a intervenção do criador pela legião de espíritos encarregados da nossa regeneração, para nos tirar das trevas, em que temos jazido por séculos.

Araci ficou desconcertada e não receou cortar a verbiagem do pai.

— Papai, deixe dessas histórias, não está vendo que Filipe está boiando...

Na realidade, Filipe não estava desnorteado apenas com o espiritismo de Vieira. Todos os daquela casa lhe pareciam diferentes e desencantados. O próprio Monteiro estava transformado. A barba crescera para disfarce e diminuíra a originalidade do rosto avermelhado, em que se dependurava o volumoso e atrevido nariz. Thereza, sim, era o seu mundo, o seu universo. Deslumbrou-se em contemplá-la e, com ela, formar a unidade isolada dos seres, que os rodeavam. As suas menores palavras tinham um significado profundo, que era misterioso para os outros. Por esses fios esparsos de conversa, pela voz que às vezes estava dolente e suplicante, pelos olhos postos nele, Filipe entendeu tudo o que sofrera, desejava e esperava Thereza. Quis levá-la consigo e ouvi-la e senti-la na confidência alucinante.

Jujú estava inundado de suor frio, desde que viu Filipe. Rápidas olheiras faziam sobressair o sinistro fulgor dos olhos. Quando Filipe e Thereza se falavam, o menino tremia de raiva. Os queixos bateram forte. A mãe assustou-se e, com o olhar, mostrou a criança a Thereza.

Filipe percebeu a aflição de Jujú e aproximou-se.

— Vem cá, Jujú... Vamos passear, vamos lá dentro, vamos ver o mar... Quanto vapor está passando! Tu vais me explicar.

— Sai, sai...

Foi um grito desesperado. Instantaneamente o tremor passou, o suor secou e a criança enfrentou o homem. Este, sorrindo e desapercebido, foi querendo segurar o menino. Jujú avançou e cravou os dentes na mão de Filipe. Mordeu com violência. Sacudia a cabeça e olhava possesso com os olhos desvairados, que logo se injetaram de sangue. Ficaram todos atordoados. Thereza avançou para livrar Filipe e sem pejo deu uma pancada no pescoço da criança.

Larga, menino malvado...

Araci, envergonhada e furiosa, esbofeteou o irmão.

— Cachorro danado... Larga.

Jujú largou e correu fugindo da sala. Ouviu-se o seu choro convulso, doloroso.

— Eu não disse que havia um espírito mau nisto, triunfou Vieira e foi observar o possesso.

Foram se recompondo, procurando atenuar as tristes e estranhas impressões, que os aborreciam. Monteiro experimentou conversar sobre a revolução, indagando de Filipe a situação, em que se achavam. Notou, com pasmo, a falta de informação de Filipe, que habitualmente era o mais sabedor de todos.

— Que diabo, onde tens te metido, rapaz? Andas no ar...

Filipe desculpou-se frouxamente com os olhos atentos em Thereza, que recebia assim a doce homenagem da sua absorção. A grande amizade de Monteiro perdoou o amigo e inspirador. Quis informá-lo do que tramavam e com voz baixa foi-lhe segredando os desígnios e os planos da nova conspiração.

D. Calú continuava a conversa com Thereza e, de repente, lhe deu uma novidade, de que se ia esquecendo:

— Estou esperando por estes dias uma sobrinha, que vem do Maranhão, do interior, é a Ritinha, filha de minha irmã falecida há tempos. Há um ano morreu o pai. Não ficou pobre, mas não tem ninguém no mundo, mandei buscá-la. Coitadinha. Não a conheço, nasceu depois que nos mudamos de lá. Mas, filha de minha irmã, minha filha é.

— Era o que faltava... resmungou Araci. Eu é que não estou para desmamar matutas... Mamãe que se fique com a tal Rita.

Thereza não prestava muita atenção ao que diziam D. Calú e Araci. Esforçava-se em vão por ouvir o que segredavam Monteiro e Filipe. Receava tudo da sedução revolucionária. Sabia que a revolução fora o interesse exclusivo de Filipe antes do amor. O instinto lhe revelava a atração soberana, que exerce nos entusiastas o risco fascinador da ação libertadora. Temia. O seu ímpeto era cortar aquela conversa de segredo, arrancar Filipe de tudo aquilo. Desesperada entrou inconveniente a interrompê-los. À princípio, com perguntas revolucionárias, fingidas de devotamento à causa. Depois, pulando para outros assumptos frívolos, cujo sentido só Filipe percebia. Com o olhar meigo, convidou-o a acompanhá-la. Levantou-se, despediu-se, no meio de efusões dos que ficavam. Filipe não teve escrúpulos em segui-la. Araci os levou até a porta. Nem Monteiro, nem D. Calú foram à janela. D. Calú gritou para a filha:

— Volta para dentro, menina abelhuda. 

Araci obedeceu. Veio gingando e berrando:

— Puxa, seu Mundico, é amor a beça!   

Na rua sem sol, a sombra era cinzenta e fria. Não se falaram logo. Sentiam por detrás o olhar de Araci. Quando chegaram ao portão da sua casa, Thereza viu que estavam sós e logo perguntou a Filipe o que dissera Monteiro. Filipe contou o que ouvira e o convite, que lhe fizera o amigo, para uma reunião de conspiradores naquela noite. Confirmou a Thereza a sua recusa.

— Maçada. Mas eu não me sinto com disposição neste momento. Eles vão ficar amolados comigo, mas sou sincero. Não posso fazer nada forçado. Sei que a revolução é necessária para o país, mas não a tenho como essencial para o meu ser. O que aspiro é a ti, minha paixão! Na tua magia, no teu sublime encantamento, eu sou um contigo e vivo a eternidade.

— Filipe, tu és único e imortal. Eu sou gloriosa! Meu amor...

Ousadamente, ali, em plena rua, à porta da casa, eles se beijaram. Foi um longo, violento e arrebatado beijo, do qual saíram maravilhados. Filipe enlaçou Thereza e foi docemente levando-a pela sossegada rua acima. No largo da igreja não olharam o mar e não se importaram com a tarde morrente. Estavam voltados para a magia interior dos seus seres. Subiram para o pátio da igreja e se julgaram imensos, infinitos, sobre todas as coisas. Thereza, que ansiava por desabafar as misérias da sua noite e da sua manhã e dizer o seu ódio do infame, esqueceu-se do que sofrera e só falou da sua alegria transcendente. Disse que se recolhera à sua deliciosa solidão e que ali evocara a imagem do adorado, vivera as suas palavras sublimes, inebriara-se na solenidade de tudo o que se passara. Disse a sua felicidade do início da grande e sublime vida. Que era a sua existência antes? O nada, o vácuo, a tristeza sem fim. Filipe a criara. O amor é o supremo criador. Ela nascia para a vida eterna. Tinha a sensação da imortalidade. Mas era humilde diante da grandeza da paixão inspirada. Que doçura em afirmar que era o seu primeiro amor, que orgulho desta sensação em homenagem à paixão de Filipe. Contou a alegria do seu amanhecer na segurança da unidade. Que ânsia de rever Filipe, de ouvir a voz, que a transfigurava, e receber a maravilhosa claridade dos seus olhos e as carícias irreais, que lhe davam o frêmito alucinante.

Filipe exclamou:

— Ó minha alma musical... Canta este amor que tu me revelaste e que é a minha paixão. Todo o meu ser vive em ti um divino êxtase. Tu me deste a eternidade, ó gloriosa. Eu estava na dúvida, na angústia. O amor dissipou toda a tristeza e, por ele, eu vivo na perpétua alegria...

Passavam na calçada em baixo os amigos de Filipe, que os viram. Desviaram o olhar. Não fizeram mais o menor movimento para cima. Filipe e Thereza deixaram, indiferentes, que continuassem o seu caminho. Eles prosseguiam na tenacidade revolucionária, cheios de piedade humana, ardentes de misticismo político. Filipe integrava-se no Universo pelo amor.

Thereza e Filipe estavam abismados, quando o sino da igrejinha os sobressaltou, tocando Ave-Maria.

Erguem-se. Os olhos olham-se. As mãos apertam-se. As bocas unem-se. O sino alegra-se. Descem. O largo ressoa. Os passos vibram. Os corpos cortam o ar sonoro. A brisa passa. As bananeiras cortejam.

XII

Ritinha chegou. Muito cedo, Aristides Vieira estava no cais. Logo que o vapor atracou e foi desembaraçado, ei-lo um dos primeiros a bordo. Nos salões, nos corredores, no tombadilho era uma algazarra de nortistas, que chegavam, e nortistas, que os recebiam. Vieira, alegre, gozava das vozes altas, cantadoras, estridentes, que o atiravam para o passado provinciano. Muito à vontade, despachava-se para descobrir a sobrinha. Não tardou que lhe mostrassem a família, que a trazia do Maranhão. Sem cerimônia, foi logo perguntando:

— Cadê a Ritinha?

Apontaram-lhe, por entre clamores festivos, uma moça pálida, magrinha, de cabelos compridos, castanhos escuros, como os seus grandes e doces olhos. Aristides disse quem era e a moça atrapalhada, sem falar, beijou-lhe a mão, enquanto ele a abraçava. Logo os outros se puseram a elogiar Ritinha, que fora o encanto do vapor, o mimo de todos.

— Ah! O senhor não imagina, disse uma mulher esganiçada de cara de cigana, por baixo de um desabado chapéu de palha com fitas e flores, como a sua sobrinha foi a feiticeira de bordo. Todos a queriam, para dançar, para cantar, para brincar. Hum! Hum! Ficou muita gente de aza caída... Diga, Ritinha, não é?

— É uma maranhense que nos orgulhou no vapor, afirmou uma mulher redonda, de lunetas com trancelim de ouro, embrulhada em um capote. Nem as pernambucanas emproadas podiam competir com ela. Para cantar ao violão, não se fala, para jogos de prendas, adivinhação, para um tudo, a primeira.

Aristides sorria lisonjeado e agradecia o incômodo de trazerem a sobrinha e os elogios, que lhe faziam. Aflito por se safar das tagarelas, dizia a Ritinha:

— Muito bem. E as bagagens?

Um moço cortou-lhe a retirada. Entendeu também louvar Ritinha. Sacudiu os cabelos crespos, um sorriso triangular escancarou-lhe a cara e passou-lhe pelos dentes dourados. Levantou os braços e, aflautado, cantou para Aristides:

— A Ritinha é uma sílfide na dança e no canto um rouxinol, uma Filomela. Sempre a nos maravilhar. Ainda esta madrugada estávamos no tombadilho de cima, para apreciar o incomparável espetáculo da entrada desta majestosa baía e admirar o Gigante de Pedra. Enquanto esperávamos o instante divino, Ritinha cantou umas modinhas tão chorosas, que todos tivemos as pálpebras humedecidas.

— Mas como o senhor, seu Crisóstomo, recitou o Gigante de Pedra! Que voz maviosa, bem merecido nome, boca de ouro, ciciou uma mocinha, cortejando o angélico mancebo.

— O mérito é todo de Gonçalves Dias, o maior poeta do Brasil de todos os tempos... respondeu corando.

— Lá isto não, interrompeu sarcástico um rapaz baixote e escuro, o primeiro poeta é Castro Alves.

— Oh! Bairrismo! Sim senhor, seu Maneco, bem se vê que o senhor é baiano, disse a maranhense esganiçada. Quem é o cantor de “minha terra tem palmeiras”?

— E do “enfim te vejo, enfim posso”?... interrogou suspirosa outra maranhense.

— Seu Maneco, tire o cavalo da chuva com o seu baiano, berrou uma velha desabusada. Gonçalves Dias é o nosso primeiro vate.

— Mas quem ficou toda babada, quando eu declamei o “Navio negreiro”? replicou o baiano.

Ardente, recomeçou:

— “Estamos em pleno mar”!...

Uma mão rápida tapou-lhe a boca, enquanto uma voz de moça despeitada ia resmungando:

— Muito bem, seu Maneco, esta cá me fica. Ainda ontem o senhor me jurou que o primeiro poeta é Gonçalves Dias e agora se desdiz! Vá a gente acreditar em jura de homem...

Aristides Vieira agarrou Ritinha pelo braço e foi levando-a para baixo, ordenando-lhe, nervoso:

— Vamos ver a sua bagagem, menina.

Quando chegaram ao camarote, já de porta escancarada, Aristides estacou diante de uma preta velha, que lhe pediu a benção. Vieira olhou interrogativo para a sobrinha.

Ritinha saboreou o espanto do tio, e rindo explicou suavemente:

— Titio não se lembra mais? Esta é Andreza, minha mãe de leite, que me criou. Foi impossível deixá-la lá no Rosário, sozinha. Não posso me separar dela. Trouxe comigo. Fiz mal?

A preta velha abriu os beiços roxos, triunfante, mas os olhos cansados, ficavam parados no perpétuo pasmo. Vieira conciliou-se com a situação, sabia o gênio hospitaleiro da mulher e quanto à casa, era vasta.

Desceram para o cais. Ritinha ficou atordoada com tanta gente, tanto guindaste, tanta máquina. Os companheiros de viagem diziam-lhe adeus, e ela, apatetada, mal lhes falava. Vieira tratou de levá-la para fora com a preta e as bagagens. E só, quando teve de tomar a condução, notou a bicharada, que Ritinha trazia. Eram gaiolas com mutuns, jacamins, papagaios, periquitos, uma com uma veada, outra com macacos e sauins, além das de passarinhos, sabiás, graúnas, curiós, patativas, cardeais, xexéus e um tucano. Em uma gaiola de que Ritinha não se separava um delicioso corrupião, amarelo claro, de encontros e rabo pretos.

Vieira desanimou. Era a sobrinha cantadeira, seguida de bichos e pássaros, que lhe invadia a casa. Misericórdia.

Tomou um caminhão para as malas e as gaiolas, e meteu-se em um táxi com Ritinha, a velha Andreza ao lado do chauffeur. Ritinha foi achando tudo incomensurável, avenida do porto, praças, automóveis, gentes. A sua mocidade reagia contra a confusão, em que se baralhavam as coisas e as massas. Fazia um esforço para discernir, separar e admirar. Vieira ia explicando lugares e objetos. Ritinha não prestava muita atenção aos nomes e as qualificações. Ela ia recolhendo as suas impressões diretas, simples, das formas, das cores, dos sons, dos movimentos e na imaginação ia criando a cidade fantástica e inverossímil. Quando dobraram para a avenida Beira-Mar, ficou abismada da apresentação dos morros Verdes e cobertos de casas e dos morros secos a pique sobre a água azul, faiscante.

— É ali que moramos, explicou Vieira, mostrando a colina da Glória.

— Que bonito, titio. Olha, Dedeza, uma igreja no alto. Você está vendo?

A preta velha não via nada, mas benzeu-se e pôs-se a rezar. Ritinha levantou a pequena gaiola do corrupião e apresentou-lhe o panorama:

— Está aí, seu Vivi, o que eu lhe ofereço, está beleza. Valeu ou não valeu sair do nosso Rosário e vir para aqui? Agora você vai aprender as cantigas da gente da terra para assobiar para titio...

Vieira estava aterrado. Pensou o diabo, mas conteve-se, complacente, sorrindo como se sorri aos loucos.

Não precisaram klaxonar para dar aviso da chegada à casa. Logo que entraram na rua do morro, Vieira avisou Ritinha:

— Lá está na janela a sua tia com o Manuel, lhe esperando.

Os dois carros pararam ao mesmo tempo à porta da casa.

Enquanto Vieira se ocupava do pagamento e de fazer descarregar a singular bagagem, D. Calú veio à porta e abraçou-se à Ritinha.

— Minha filha do coração... Que saudades de tua mamãe, a minha Dondon... Coitada, no céu! Mas tu és o retrato delia quando tinha a tua idade. Que bonitinha! Não é Manuel?

Ritinha, atrapalhada com a gaiola do Vivi, beijava e abraçava a tia, de lado. Para ter mais liberdade a matutinha não se intimidou. Entregou a gaiola a Manuel.

— Tome cuidado, não deixe ele fugir, é o meu companheiro. Dindinha, a sua benção. Olhe quem eu trouxe, a Andreza...

— O quê? Tu és a Andreza?... Quase não te conhecia... Tantos anos...

— Ah, Nhanhã, o tempo está pesando nestes ossos velhos... Quando Vosmecê nos deixou, Ritinha não era nascida, eu era ainda mucama da falecida... Uê! Terra fria, a gente nem pode falar de tremura, livra, meu São Benedito.

Na sala de jantar, as gaiolas ficaram espalhadas pelo chão. Manuel colocou a do corrupião sobre a mesa. Ritinha ficou muito inquieta e perguntou alvoroçada:

— Tem gato?

Sossegou com a segurança que lhe deram de não haver na casa nenhum animal. Aqueles eram para eles uma estranha novidade. D. Calú levou a sobrinha ao quarto que lhe destinara e tratou de agasalhar a velha Andreza. Perguntava notícias maranhenses, comovia-se, exclamava, ria-se, encantada com este encontro familiar.

Trouxe de novo Ritinha á sala de jantar para resolver o problema dos bichos. Aí estavam Monteiro e Pedro, que, com Manuel, se entretinham em examiná-los. Ritinha familiarizou-se com os rapazes, admirada dos conhecimentos de Monteiro, que sabia de todos aqueles animais. D. Calú tratou de desencavar Jujú, que estava adoentado e não se levantava, assim facilmente, da cama. Afinal o trouxe. O menino esverdeado, febril, teve um relâmpago, de alegria com a novidade de tudo aquilo em sua casa. Era o jardim zoológico, que lhe vinha como em um sonho. Mas era o jardim dos bichos sem a sua Thereza. Este pensamento o afligiu e o petrificou diante das gaiolas. Ritinha tentou inutilmente o fazer falar, vibrar com os seus animais. Jujú manteve-se mudo, apenas curioso das piruetas dos macacos e dos movimentos inquietos das aves, atordoadas com o vozerio humano.

A última pessoa da casa, que apareceu, foi Araci. Veio muito arranjada, com os cabelos louros bem ondulados e um vestido ousado. Ritinha ficou intimidada com a entrada arrogante da prima e esperou que esta lhe falasse. Araci a examinou e mal a saudou. Mostrou-se exageradamente horrorizada com as gaiolas. Motejou da maranhense e seu rancho.

— O que você pensava do Rio de Janeiro para carregar esta bicharada? Que isto aqui era uma espécie de Cajapió, Codó, Cururupú? Sei lá! Olhe, mamãe, o melhor é mandar tudo para o Jardim Zoológico... Que bodum!

Manuel amparou Ritinha, ralhando com a irmã, que era uma tola e não sabia apreciar aquelas maravilhas. Ritinha ficou contente e entrou a elogiar os seus companheiros. Falou-lhes. Brincou com eles. De repente todos os bichos exaltaram-se, ouvindo as palavras meigas e decisivas da dona e dominadora. Os macacos pulavam alegres e guinchavam ruidosos, os mutuns piavam, os jacamins roncavam cavernosos, cantavam os curiós, as patativas ligeiras, as graúnas altivas, os sabiás saudosos. O xexéu os imitava zombeteiro. Trepado no dedo de Ritinha, o corrupião, livre, luminoso, solar, assobiava uma canção do norte, doce e vibrante. Só o tucano não dizia nada. Produzia a magia da cor.

A manhã inteira passou-se nesse encantamento. Ritinha soltou a veada, a sua Sinhá, que a acompanhava pela casa toda. Ao almoço o corrupião estava no seu ombro e, de vez em quando, lhe tirava da boca grãos de arroz. Jujú estava pasmo e distraído. Ensaiou ver se o passarinho lhe fazia o mesmo, mas o corrupião se recusou e voou para a janela. Os rapazes ficaram inquietos, imaginando que o pássaro fugisse e com ele o maravilhoso sortilégio, que já os prendia. Ritinha assobiou e orgulhosa recebeu no dedo o corrupião obediente. Ordenou-lhe que também assobiasse e ele assobiou um sonoro maxixe. Perguntaram-lhe porque o chamava de Vivi.

Ela explicou, enleada:

— Porque o moço que me deu chama-se Viriato. Eu então pus na lembrança dele o nome porque eu o chamava. Ele agora está no Amazonas, mas um dia virá aqui...

A passagem do amor deu um grande silêncio na mesa.

Araci não falou todo o tempo, irritada com a transfiguração da casa. Depois do almoço Vieira partiu para a repartição. Araci meteu-se no quarto. Os rapazes rodeavam Ritinha e brincavam, como ela brincava. Não tardou que exigissem o canto. Ritinha apareceu com o violão, a Sinhá ao seu lado e Vivi no ombro. Pôs-se a cantar coisas tristes, que os balançava suavemente, como em uma sesta no sertão quente em uma rede de varandas de crivo. Passou o violão a Monteiro, que a princípio tocou solos simples e depois elevou-se a cromáticas rendilhadas e fulgurantes. Conheceram a mestria do errante, mas, quando o ouviram cantar com a voz rachada, falsificando o sertanejo, espocaram a rir. Monteiro gozou o seu esperado fracasso e entrou a cantar ainda mais falsete, modinhas brejeiras, cantigas atrevidas de vaqueiros, embolada cocos e maxixes capadócios.

Levaram assim um dia nortista, um gostoso dia vadio e, quando foi à tardinha, D. Calú espreitava na janela a passagem do automóvel de Thereza. Logo que o percebeu, fez sinal que parasse. Veio à porta e convidou Thereza a entrar.

— Desculpe, mas é por pouco tempo. Quero que a minha sobrinha veja a senhora.

Thereza desceu do carro e entrou graciosa na atmosfera da admiração. Desta vez Jujú precipitou-se para ela e abraçou-lhe as pernas. D. Calú mostrou-lhe Ritinha. A maranhense ficou boba. Nunca vira uma mulher assim, Thereza sentiu o pasmo do encantamento e o seu inconsciente feliz multiplicou a sedução. Chamou Ritinha aos seus braços, beijou-a e falou-lhe com a suprema meiguice da sua voz quente e musical. Ritinha não rompia a fascinação. Deixava-se vencer extática. Foi Jujú que, ciumento, desviou Thereza para mostrar-lhe a bicharia. Thereza tinha muitas daquelas aves em casa, mas, não conhecia o corrupião, que a maravilhou. Ritinha não sabia como explicar tudo aquilo. Monteiro foi o intérprete da fauna nortista, transportada pela moça cantadeira.

A visita foi curta. Thereza pediu a Ritinha que a fosse ver com Jujú para mostrar-lhe os seus pássaros. Já Ritinha quis dar-lhe dos seus. Elias se entendiam nesta atração do encanto animal.

Só depois que Thereza partiu, apareceu Araci. Logo que a viu, Ritinha disse-lhe entusiasmada:

— Está aí, a Thereza também tem cabelos compridos.

Araci deu um muxoxo:

— Sua tola, Thereza não conta. Está fora da canoa. Olhe, mamãe, eu vou jantar em casa da D. Genoca... Ufa!

Na beatitude do amor Filipe renunciou às ações, que o ligavam aos outros homens. Renunciou à glória e ao poder. Exaltou-se na exclusiva atividade do amor. Que maior ação que a do amor? Arrebata-nos da relatividade mesquinha, dá-nos a separação benfazeja, torna-nos criadores de novos valores, de um mundo, em que o nosso ser se aumenta. Nenhuma atividade mais poderosa, nem a da ciência, nem a da arte, nem a da religião. O Universo deixa de ser espetáculo, transforma-se em vida, quando a energia do amor o conquista para a viagem maravilhosa, que realizamos nos espíritos e nas coisas. A atividade suprema do amor de Filipe foi a criação de Thereza. Antes da revelação do amor, Thereza permanecia na desolação. As forças conscientes a confinavam na relatividade social e impediam o surto da sua magnífica natureza. Para encher a separação, que se abrira entre a sua alma e o universo, a religião não fora suficiente. Não encontrou nela a perpétua alegria. Só o amor dá a plenitude espiritual e sensorial e nos integra na inefável unidade, em que a dor cessa e o ser se abisma na beatitude. O amor de Filipe atuava sobre o amor de Thereza para impor a magia do encantamento e da força, com que ela venceria todas as contingências e se libertaria de toda a servidão. Filipe, que vivera longamente na ascensão espiritual e que, de realidade em realidade, se manifestara homem de pensamento e de ação, sentiu-se deslumbrado, quando o milagre do amor se produziu em Thereza. Desde então, renunciou a qualquer outra atividade. Para que prosseguir na obra do pensamento, na expressão da imagem, na ação política, se a vida, na sua maravilha suprema, se revelava enfim em um ser, onde a beleza da forma, o fluido da inteligência, a vibração, o entusiasmo dos sentidos se exprimiam pela transcendência do amor? Filipe torna-se o herói da inteligência, que se completa no amor. Thereza, a pura heroína do amor, que se faz inteligência, arte, religião, vence a natureza e realiza com o seu amado a unidade infinita.

Filipe e Thereza prosseguiam na ânsia do desejo. Esperavam sempre eliminar todas as dificuldades, que impediam a perpétua união, a que aspiravam. Nesta aurora da paixão, o encanto os arrebatava, os fascinava e não deixava que agissem violentamente contra a ordem social, que os separava. A felicidade os adormecia na esperança. Procuravam se ver em encontros fugazes, telefonavam-se diariamente e esperavam ardentes, inquietos e ansiado Thereza fez-se a Amante mística, a serva que radiante se absorvia, se eliminava no Amante e vivia no sangue e no pensamento deste. Filipe aceitava bem-aventurado o divino dom do ser de Thereza e transfigurava a tortura da separação na delícia da maravilhosa unidade e da perene fusão voluptuosa e imortal. Sentir o desejo, a ânsia de possuir é uma sensação inominável. Parecia a Filipe que ele se voltava a si mesmo, que Thereza era o seu próprio eu na expressão feminina, como ele era o eu masculino, em que se transmudara a mulher amada. No corpo de Thereza encontraria o seu próprio corpo em uma aparência mais atraente, mais sedutora e de fascinante perpetuidade. Tudo é o jogo mágico da natureza, o mistério dos mistérios, porque é a realidade da paixão, é o Amor! Desde que se separavam a dor era imensa. A saudade deles mesmos, a suprema tortura.

Ritinha trouxe do Maranhão uma rede de tucum para o tio se deitar; uma cuia pintada para Jujú se banhar; rendas, crivos, lenços para Araci se enfeitar; bacuri, cupú, juçara para os primos regalar e, para a sua madrinha o capeta esconjurar, um rosário de Nossa Senhora, uma figa e a estrela do mar. Os baús de Ritinha tresandavam a capim cheiroso. Nas suas roupas espalhava favas de baunilha, a água de seu banho perfumava com macaca poranga, sobre o corpo esfregava pega-não-me-larga e nos cabelos punha essência de priprioca e no lenço a umburana de cheiro. De Ritinha emanava um feitiço, que entorpeci? Os rapazes. Entretinham-se com a maranhense, ouviam as suas histórias e iam se familiarizando com as evocações nortistas. Quando ela cantava, Vieira e a mulher tinham uma saudade funda da terra e se julgavam exilados neste sul frio e montanhoso. Ah! Maranhão como aquele não há! O Anil e o Bacanga abraçam a cidade velhinha e olham de vagar as quintas com as suas mangueiras e os bacuris e as casaronas frescas, de mirantes e socavões. Que silêncio nas ruas grandes de sol e que conversas, que entram por uma porta e saem pela outra. Ritinha dançava o chorado da terra e o coco sertanejo, que os retirantes levaram ao Rosário. Dançava para o namorado que estava no Amazonas comendo tartaruga no tremendal dos seringais. Os rapazes na varanda do outeiro da Gloria pensavam que Ritinha dançava a cantava para eles e não se mexiam com olhos de jacaré.

Aracy e a sua canoa desmanchavam o sortilégio. Entravam pela casa, vaiavam Ritinha, xingando-a de macaca-poranga, mucuracaá... Ritinha chorava. Não chora, meu Bem, não chora... O Léo cantava: Tatú subiu no pão. Os revolucionários espertavam e berravam: Aí seu Mé, mé, mé. Fervia a bagunça em uma algazarra hostil e alegre. Macaca-poranga! Mé, mé!

D. Calú arrancou Ritinha desse pagode e a levou para a novena da Glória, que estava fazendo como promessa para a cura de Jujú. O menino muito amarelinho e cheio de febre ia embrulhado para a igreja. A velha Andreza seguia com eles e, já na rua, ia engrolando o terço. A primeira vez que Ritinha viu a igrejinha do outeiro, toda faiscante de luzes, suspensa como um adereço de brilhantes sobre a terra e o mar, desde a tarde fresca desmaiada pela noite a dentro, ficou maravilhada. A romaria para a novena cumpria-se com profunda unção nos quatros devotos. D. Calú entregara o seu filho à misericórdia da Virgem Santa, à Mãe dos Aflitos, e tinha esperanças. Ritinha pedia à Sublime, à Bondosa, à toda Poderosa que unisse os que se amam. Para Jujú, a Santa no resplendor da luz, das joias, do fogo, no perfume do incenso, era Thereza no céu e ele lhe sorria extático. Andreza exclamava o seu benza-te Deus, minha Santa da Glória, resmungava as preces rudes e confusas, tomava-lhe a benção como a sua senhora, a dona, a mãe dos perpétuos escravos.    Na manhã da festa, D. Calú com as suas companheiras, e mais Araci muito forçada, levaram Jujú para o cumprimento da promessa. Magrinho, só pele e osso, ia descalço, pela ladeira acima, carregando o seu peso em cera, cinquenta libras. Vieira estava intimamente indignado com aquele rito supersticioso. Mas não protestou. A devoção tem uma estranha energia de imposição. Ninguém, por mais independente que seja, ousa desrespeitá-la. A igreja estava assaltada de romeiros, sarados, doentes, aleijados, de todas as cores e condições. Traziam as suas oferendas, em velas de cera, em prendas e dinheiro. Ritinha levava rendas para Nossa Senhora, Andreza carregava um mutum corpulento para o leilão. Depois da missa passaram o dia, de janela aberta, vendo desfilar as numerosas gentes, que subiam e desciam o morro a pé, ou em automóveis. Jujú mal se interessava, a sua curiosidade infantil ia pouco a pouco extinguindo-se. Ficava apático, indiferente, saindo das suas obscuras cismas, irritado e mais triste.

Depois do jantar D. Calú e Ritinha foram à casa de Thereza, que lhes pedira para acompanhá-la à igreja.

— Oh! Dindinha, quanta flor neste jardim, como é bonito. Nunca pensei... Estou com tanta vergonha...

— Ora, Ritinha, a gente tinha de vir mesmo um dia para corresponder a tanta amabilidade de D. Thereza. Tu pensas que também não estou vexada. Não frequento a sociedade, não tenho vestidos... Mas esta moça é tão boa, que tenho confiança... E o demônio do marido não está...

A maçada é que Jujú não quer mais voltar aqui, anda com aquela raiva de Filipe, que faz dó... Seja tudo como Nossa Senhora da Glória quiser. Confio em sua divina misericórdia...

D. Calú suspirou e subiu ainda pela escada, que ia direta ao mirante. A voz de Thereza as festejou.

— Bravo! Foi milagre de Nossa Senhora. Até que um dia me veio ver...

— Não sei qual foi a santa... A Senhora também é milagrosa.

Explicou que viera somente com Ritinha, porque Araci odeia festa do povo e deu o fora. Tinha ido com as amigas dançar em Copacabana. Jujú, embezerrado, não quis sair, ficara com o pai. Os rapazes estavam peralteando no largo, apreciando a festa.

— Também estou só, como lhe preveni, disse rindo Thereza. Imagine que o meu marido foi para a fazenda que foi da tia e carregou a menina com a ama. Ele diz que esta festa da Gloria é festa da canalha e lhe faz nojo. Radagasio é difícil... É aristocrata. Todos os anos nos obrigava a ir para a roça, fugindo daqui nestes dias alegres. Este ano bati o pé e fiquei. Quero uma vez gozar da festa do meu morro. D. Calú, liberdade, que coisa gostosa I... Desde anteontem que estou solta! É o sueco! Estou também esperando Filipe e a família...

— Ah! Bem disse Jujú que Filipe estava aqui...

Thereza não gostou desta observação de D. Calú.

— Jujú é um bobinho. Sempre com esta raiva de Filipe. Por quê? Oral... É pena ser noite, não podem ver bem o jardim. A vista da baía é quase a mesma da sua casa. Mas, deste outro lado, temos os morros com as suas casas salteadas, iluminadas...

— Tal qual um presépio... insinuou timidamente Ritinha.

— É o que diz sempre Radagasio... gracejou Thereza.

Carregou-as para dentro da casa, que estava toda acessa. As duas visitas ficaram embasbacadas. Ritinha sentiu um frio no corpo diante de tanta coisa, que a assombrava. D. Calú estava mais segura e podia exclamar as suas continuas admirações. Quando voltaram ao terraço respiraram aliviadas. Saíam de um mundo estranho e voltavam ao maravilhoso quotidiano da natureza, com que eram intimas. Ritinha venerava em Thereza um ser fabuloso, que vivia magicamente uma encantação. Quando Thereza a enlaçou gentilmente e a acariciou com palavras meigas, a moça maranhense beijou-lhe com fervor a mão, por não ousar beijar-lhe o rosto.

D. Calú notou a emoção da sobrinha:

— É! Ritinha está toda boba! Que matuta...

Filipe, a mãe e a irmã chegaram. Alvoroço de Thereza, que ria, agradava, falava sem parar.

D. Calú conheceu então D. Isabel e Leonor e disse-lhes a sua amizade por Filipe e a fraternidade dos seus filhos com ele, que era o mestre, o guia de todos. D. Isabel achou-a excessiva, mas orgulhou-se do filho. Thereza estava em êxtase e animava o entusiasmo de D. Calú. Quando veio um pouco de silêncio, Thereza explicou novamente a ausência de Radagasio e todos, sem comentar ficaram satisfeitos. Partiram para a igreja. Naturalmente a ordem de marcha era a que devia ser. As duas moças na frente, as duas velhas no centro, e atrás Thereza e Filipe, no escuro do jardim as mãos se uniram bem apertada quentes, macias e fortes. Por entre o cheiro dos bogaris, das rosas e das magnólias, as duas bocas uniram-se sutilmente e os dois corpos penetraram-se de um calor capitoso...

Saíram da sombra do jardim para a rua colorida pela luz das lanternas, suspensas desde a ladeira do Russell em fios paralelos, ao longo das casas e muros. Os passos dos que iam e vinham esmagavam as folhas verdes espalhadas no chão e acendiam-lhes ainda mais o cheiro acre de canela. Thereza apertava o braço de Filipe e aspirava inebriada este odor novo, vegetal e inumano. Caminhavam cortando o vozerio, que se ia avolumando na proximidade do largo, quando, na volta da rua, o clarão da igreja suprimiu a luz das lanternas e dos arcos. Era festa com o povo enchendo a praça, ladeiras e pátios, com pregões, música, gritos, zumbidos. No largo, Thereza dá esmolas a mendigos estropiados, declamadores, horrendos, deleita-se nas quitandas das opulentas negras baianas, compra bolinhos de arroz e coco, pés de moleque, pamonhas de milho, alcaçar e, em risadas, distribui estes quitutes aos companheiros. Ritinha regala-se e lembra-se do Maranhão. Só D. Isabel desdenha os quitutes das pretas minas. Thereza interessa-se pelos trajes das vendedoras. Para ser admirada pelas yáyás e pelo yôyô, uma baiana ergue-se, ostentando uma saia ampla, rodada, azul escuro, recheada de outras muitas saias, presa por cinto de ouro, cabeção branco de gola de renda de crivo e, sobre o colo, com os colares de missangas, cadeias de contas de ouro, em uma gradação de volumes e pesos, placas lavradas, trancelins de latão, alfinetes de turmalinas e águas marinhas, contas de vidro, de porcelana, cores e cores, e, nos longos torneados braços brônzeos, largas pulseiras de ouro, de prata e nos dedos anéis enormes de brilhantes e esmeraldas e rubis. Tudo falso. Na cabeça, em vez do costumado lenço turbante, um amplo pente de tartaruga, trepa-moleque, com friso de ouro, segura a trunfa carapinha, deixando bem aberta a fronte lisa, de onde partem as trancinhas pixains. Sobre ela a admiração. A negra orgulhosa cresce, empina-se, empomba os peitos, sorri nos dentes brancos, descambando os lascivos olhos africanos.

Subiram. No pátio da igreja, não se olha para a vista. Fica-se envolto na multidão, que se delicia no aperto e na algazarra. É o esplendor da mestiçagem. Negros genuínos, cafuzos, mulatos, na fricção ardente dos contatos, exalam um cheiro violento; caprino, que se mistura ao aroma das flores, que as mulheres trazem à cabeça e ao perfume dos unguentos vulgares e fortes, com que todos se besuntam. Multidão pobre, humilde, cheia de alegre cordura. No pavilhão da direita, é o leilão das prendas em que se transmudou o holocausto antigo. As vítimas são animais enfeitados, leitões com laços de fitas, perus, galinhas, um tatú desconfiado, um tamanduá-bandeira comedor de formiga, cobiçado pelas mulheres, macacos sem vergonha e o mutum de Ritinha, que lhe deu uma saudade, dominada pela curiosidade com que examinava o leilão.

— Olhe, Dindinha, aquele jabotizinho dourado. Parece que veio da nossa terra.

Thereza arrematou o jaboti e o presenteou a Ritinha. A maranhense ficou vexada e alegríssima. Não quis deixar o bicho cascudo, que foi carregando por entre o povo. As outras prendas não a interessavam mais. Era uma infinidade de objetos ornamentais, quadros, almofadas feitas em honra da Virgem, toalhas de renda trabalhadas longamente com espírito de devoção, garrafas de vinho, vidros de cheiro, tudo o que se tem à mão e se oferece ao culto. Vende-se patuscamente, ao som do maxixe, que vibra da banda militar e exalta a negralhada. O que se vende converte-se em cera, em velas e círios, que queimam nos altares, na purificação do fogo eterno, expiador supremo, infatigável, inseparável de todas as religiões. Entraram na igreja. Na nave octogonal centenas de lâmpadas eléctricas excedem-se em claridade diáfana e centenas de velas queimam em chamas amarelas. A prataria dos candelabros, dos lustres e castiçais, misturada ao dourado dos cálices, estolas, capas, resplendores, irradia-se sumptuosamente. Os altares brancos, as rosas brancas, aéreas, pendentes tiras de folhagem verde, parasitas serpentinas, entram na harmonia da luz. Corpos negros interrompem a fosforescência triunfal. As pretas devotas, sentadas no chão, murmuram rezas. Outras, encostadas às paredes de azulejos, dormitam pesadamente. No meio da igreja flutuam escuras cabeças carapinhas e os corpos desaparecem na massa compacta. O cheiro de bode, o cheiro de satanás, espraia-se e dá o perfume à devoção negra. Para D. Isabel aquilo era nauseabundo e profano. O seu agudo e vigilante senso histórico evocava a devoção de outrora, naquela igrejinha, devoção real e cortezã. Por ali passaram, contritos, os cépticos imperadores. Ali foram batizados príncipes reais e foi Nossa Senhora da Glória que, num milagre, salvou de um perigo o primeiro imperador, como testemunha o quadro esquecido na parede da capela. Naquele púlpito um monge cego, chama de eloquência, pronunciou o seu último sermão diante de Pedro II, cercado dos discípulos, que o trouxeram do mosteiro em comovido triunfo. Um destes discípulos ferventes era Corrêa de Sá, o pai de Isabel, que contara a filha a derradeira jornada gloriosa de Montalverne. Que importa tudo que passou? Os que enchiam a igreja ignoravam. Estavam beatificados na emoção pura da crença imorredoura no divino, a mística insuperável dos espíritos, que anulam a história e vivem na eternidade do mistério e de terror.

Quando voltaram ao adro da igreja, a aragem da noite os refrescou. As luzes da igreja projetavam-se sobre a massa dos negros, sacudidos pela música, em que os metais clamavam, os zabumbas e tambores vibravam e as flautas sibilavam. Rasgado maxixe, em que rebolava a luxúria mestiça.

D. Isabel, cada vez mais enojada, resolveu partir com a filha, apatetada naquele frenético desencadeamento dos sons, dos gestos e dos odores. Filipe não as acompanhou. Ainda ficaram algum tempo divertidos, até que D. Calú entendeu também se recolher. Deixou Ritinha com Thereza e Filipe e levou muito recomendado o jaboti de Ritinha. Foi então que Thereza, em um repente, propôs que fossem os três a Copacabana. Desceram as escadas e caíram novamente no largo da igreja, pátio dos mendigos e das quitandeiras. Tomaram pela ladeira da Glória. Logo à primeira casa, em um balcão enfeitado de seda, damasco e púrpura, como em colorida estampa antiga, uma mulher vestida com vistosas roupas desusadas, com os cabelos em cachos, o pálido rosto, os espantados olhos de autômata e, ao seu lado, um homem volumoso de vasto carão mate, circundado de uma espessa barba negra. Estavam postados em silêncio, quase imóveis, figurantes do esplendor aristocrático, em disparate com a patuleia que, zombeteira, os olhava.

Foi impossível tomar pela calçada abaixo. Tiveram de ir pelo meio da rua, que ainda assim era difícil atravessar pela quantidade de gente a descer e subir. Neste caminhar vagaroso os olhos iam se horrorizando com as deformações, com as chagas, com os aleijões, com as lepras ostentadas nas calçadas pelos mendigos sem pudor, esganados por esmolas, berrando as suas lamúrias, as suas imprecações, as suas pragas.

Thereza agarrou-se a Filipe e Ritinha, fechando os olhos, ia se deixando conduzir como uma sonâmbula. Quando se viram livres de todo este horror, respiraram exaustos da angústia, por que passaram. Vieram até Beira-Mar. Ainda olharam para o alto, onde a igrejinha refulgia, transfigurando, no resplendor da luz, a miséria.

Thereza, inebriada de liberdade, gozou uma delícia transcendente, quando se viu em um táxi entre Filipe e Ritinha. Ela se inclinava para o adorado sem falar, mas furtivamente entregava-lhe a mão, que ele apertava com aquela vontade de tudo possuir. Se Ritinha exclamava o seu prazer ou a sua admiração, eles não respondiam. A moça maranhense foi emudecendo e a cisma do amor também a separou dos seus companheiros e de tudo em que se movia.

Na volta das longas praias desceram do automóvel em baixo da ladeira e subiram a pé pela rua ainda festiva. À porta da casa, Ritinha abraçou comovida Thereza, olhou com súbito carinho maternal aquele amor e desapareceu.

Mais alguns passos e Thereza abriu o portão da chácara. Tomou o braço de Filipe e o foi levando para o alto. Silenciosos, resolutos, os cachorros de Radagasio desceram sorrateiros na sombra. Thereza os conteve e eles, submissos, deixaram passar o intruso, farejando-lhe as pernas. Filipe sorvia o aroma de Thereza e recebia a quentura capitosa do corpo cobiçado. As bocas frias beijavam-se, mordiam-se. As mãos apertavam-se, rijas. Os corações batiam sem ritmo. E subiam mudos, os olhos cintilando no escuro.

Quando chegaram ao mirante, o espaço dilatou-se para os arrebatar. A visão era confusa e tumultuaria. As coisas deliravam. As montanhas pareciam nuvens, as estrelas eram aviões, que marchavam no mar liso, enquanto o céu espumava vagalhões. A casaria dos morros atropelava-se nas árvores voadeiras. Luzes em cruzes. No jardim, a sombra exagerava os espectros vegetais e afastava para muito longe a casa e tudo o que era humano. Voltados sobre si mesmos, eles aboliram o espaço, o tempo, e o pensamento. O instinto abismou-os na magia da volúpia.

De manhãzinha, a friagem luminosa e verde os despertou do encantamento. Desceram do mirante. Thereza vinha apoiada em Filipe, que a sustentava, como o seu próprio corpo. A sua mão enlanguescida dificilmente abriu o portão. As bocas quentes queimaram beijos longos e inseparáveis.

XIII

Praça da Bandeira empesteada dos maus odores de lama, de pó, de restos de feira, de gasolina, de gorduras, de suores a pesarem, na noite densa e na claridade aberta pelos projetores e pelas fachas de fogo dos cafés, das confeitarias e do cinema, rastejando o chão imundo das calçadas movediças de gentes. O parque de diversões também iluminava apagando o céu, onde devia haver estrelas inúteis. Mandava o seu barulho de música rangedora, de alto-falante, de algazarra infantil e feminina desafiar os ruídos dos bondes estrepitoso, os arquejos dos ônibus e a klaxonaria provocante dos autos. Covardes fugiam, com os seus gritos e as suas luzes, para destinos longínquos, a Penha patusca, S. Leopoldo, Andaraí enigmático, Cajú funerário ou para a poeira pitoresca de Vila Izabel. Mas outros atrevidos voltavam para a cidade e paravam furibundos pela praça, arrebentando sons, barulhos, luminárias.

No espaço estreito, furtado à praça, que era o café cafajeste da esquina da Rua do Mattoso, estavam sentados Raimundo Monteiro e Manuel. A cada passo entravam mulatos, negros, que esbarravam neles não faltando à cortesia pernóstica de se desculparem: “Com a sua licença, cavalheiro”. Os sírios, os italianos, os portugueses passavam resmungando, empurrando. Um negro robusto, truncado, de forte peitoril, de cabeça redonda carapinha, olhos pardos, sanguíneos, veio sentar-se à mesa de Monteiro. Deu-lhes a mão e, pela boca desdentada, foi dizendo:

— Eu estava por ali rondando. Secreta está tecendo na praça, que é um desatino. Cuidado. Aqui não é lugar para conversa. Vamos embora, minha gente.

Monteiro, que tinha uma razão para escolher aquela praça para o encontro, zombou:

— Deixa de medo, Felismino. Medo estúpido, rapaz.

— Oh! O senhor é muito afoito e por isso foi apanhado no anzol. Quanto mais, na rede da polícia...

Manuel queria saber do negro o que ele vinha informar-lhes.

— Olhe, desembuche, que é o melhor. Pedro conta com você. De quantos homens você dispõe para uma ação decisiva?...

O negro olhou malandro os brancos:

— Se é para gritar na rua, fazer banzé, pode-se contar com uns mil homens, da estiva e dos frigoríficos. Se é para um assalto, com apoio da tropa, uns cem homens. Se é para fazer o serviço, nós sozinhos sem tropa, uns cinquenta, ou menos. Se é para um trabalhinho de segredo e definitivo, pode-se contar só comigo...

Esta precisão prudente de Felismino os fez cismar. Monteiro fitou Manuel e tomou a resolução de dar um pouco mais de esclarecimentos.

— Você é um camarada seguro e finório, Felismino velho. Nós queremos aqueles cinquenta homens para o serviço sem a tropa. Queremos cabras decididos. E com você é de virar e torcer.

— Quando será? indagou Felismino, alegrando-se e esfregando as mãos imprudentemente. Eu tenho uma continha a ajustar com esse pessoal. Aquelas lambadas, aquela fome, aquela sede na quarta delegacia, tudo isto vai ser pago com língua de palmo. Espera por mim, vinte e seis!...

— Para breve, cabra bom. Cada um tem a sua desforrazinha a tirar, saboreou Monteiro.

Manuel explicou ao negro:

— Olha, Pedro está praticando de engenheiro no porto. Como ele te vê sempre, te dará o aviso do que tens de fazer.

O preto olhava desconfiado para as portas. E foi com voz baixinha que afirmou a sua prontidão.

Dois sujeitos esganiçados, aciganados, capadócios de cabeleira densa e de olhos esgazeados vinham da rua em direção à mesa vizinha, a única vazia e empurraram propositalmente o corpanzil de Felismino.

— Desculpe, cavalheiro...

O cavalheiro fez um gesto de aquiescência senhoril. Catucou com as pernas os companheiros e meteu-se a falar alto:

— Na roça é que é gostoso. Não tem cinema, é verdade, nem parque de diversão, mas uma noite de sábado, como esta, é sambar até romper o dia. Não sei porque não estou lá. Vim para espairecer um pouquinho e fui ficando...

Os outros entraram no jogo:

— Quando você parte para o seu Tinguá? perguntou Monteiro.

— Depois de amanhã, se Deus quiser. Fico aqui este domingo, porque tenho um batizado na Pavuna e, como é forrobodó, a gente não enjeita...

Continuaram a falar à toa de mulheres e de pagodes. Os secretas foram esmorecendo a atenção e esbraseados empinavam chopes sobre chopes. Não tardou que outros indivíduos se chegassem a eles. Não eram da polícia, mas gente que corteja a baixa autoridade e a suborna para os seus negócios, suas trapaças e seus vícios. Esquentados, os secretas esbravejavam teatralmente para serem ouvidos por todo o café.

— Os mashorqueiros estão tramando. Nós estamos de olho vivo. Seu Marechal deu ordem de meter cano de borracha até matar. Polícia agora não brinca. Acabou-se a pasmaceira de prender nos cubículos. Liquida-se tudo de uma feita. Olha o tal de Niemeyer. Aquilo é que foi uma beleza. Os chefes da quarta se um é tigre outro é onça suçuarana...

Os olhos de Felismino fuzilavam.

— Não lhes conto nada. A cafuza ficou toda enrabichada por mim que nem se fosse macaca por banana. Ela me arranhava, me comia com os olhos. Oh! Negra para bulir...

Monteiro percebeu Pedro, que da rua lhe fez sinal chamando-os. Muito sutilmente respondeu com a cabeça e Pedro sumiu-se. Monteiro propôs que fossem ao parque de diversões. Chamou o criado que não atendia nunca. O café era um chiqueiro de cuspo, pontas de cigarros, bebidas entornadas, vasilhame imundo, criados nauseabundos. A torpe clientela de cafajestes, secretas, rameiras, jogadores, sodomitas, ladrões, comprazia-se na solidariedade da crápula e da porcaria.

Pedro mostrou-se ao longe e eles o foram acompanhando. Quando o alcançaram, Felismino esbravejou, aliviando o peitoril sufocado:

— Arre! Que eu já estava esbaforido e sem fôlego de inventar tanta safadagem. Mulatas, cafuzas, samba. Nossa Senhora da Purificação. Parecia conversa de bode. Amanhã vou botar uns cobres no milhar da vaca, da cabra e do macaco. Também do galo, em todos os bichos da gandaia. Minha gente, olha disfarçado para ver se estamos sendo seguidos... Não. Eles estão mas é bêbados. Gambás... Que fedor!

Tomaram para o mercado da feira livre, que estava vazio e no escuro. No lado da rua, que vem de São Cristovão, um homem baixo aproximou-se deles. Era o capitão, destemido e ardoroso, que organizara a demonstração das bombas. Pedro apresentou-lhe Felismino. A máscara severa e preocupada do oficial foragido tornou-se ainda mais inquisidora. Deixou que os outros falassem. Monteiro, com a sua espontaneidade e o seu tato de propagandista, tratou de quebrar aquele primeiro movimento de desconfiança, que fazia emudecer Felismino. Explicou ao capitão as disposições do estivador e esperou uma palavra de confiança, que não veio. Como não entravam no assunto, que os reunia, Monteiro começou a discorrer sobre a situação dos trabalhadores.

— Esta pobre gente está na perpétua miséria. Quanto ganha um homem de carga ou de picareta no cais do porto? Sete mil réis por dia de trabalho.

— Não há meio de fazer uma greve? perguntou o oficial a Felismino, que ignorava a sua qualidade de militar.

— Qual, seu doutor. Já se foi o tempo de greve. Com estado de sítio não há mais classe operária. O governo prende todos que reclamam. É um despotismo. Quem reclama vai logo para a polícia, como revoltoso. E agora não é só revoltoso, é também comunista. De forma que não há meio de se protestar. Deste modo o governo nada teme dos trabalhadores, que estão esmagados. Os homens ganhavam sete mil réis. Eles queriam dez mil reis, que é coisa muito à toa. Ameaçaram de greve. Veio pau em cima. Mas sabe qual foi o argumento que deram? Cinco tostões por dia. Agora a diária é de sete mil e quinhentos, secos. E cabeça baixa, senão xilindró, cano de borracha, fome. Não, seu doutor, não há mais possibilidade de se fazer uma revolução com a massa operária. Aqueles que estão nos trabalhos do governo, a gente da Central por exemplo, esta anda murcha e só trata de conseguir argumento por meio de bajulação. Hoje tudo é empregado público e cuidando de aposentadoria.

O senso jurídico de Manuel revoltava-se com esta opressão e esta corrupção, que destruíam o espírito das corporações, o sindicalismo tão útil ao equilíbrio social. Na sua convivência com Monteiro, diante do espetáculo da miséria dos trabalhadores, as suas reflexões iam modificando a sua ideologia liberal e burguesa. Tocava na ferida do organismo e exasperava-se.

— Esta situação tem de acabar, ponderou ele. Este regime de senzala, em que há proprietários e feitores de um lado e do outro escravos, é uma infâmia. Estou convencido de que a única solução é a colaboração do trabalho e do capital em uma forma de cooperação. Ou melhor, a organização da cooperativa.

O capitão cortou o discurso do estudante.

— Isto fica para depois. Neste momento do que precisamos é de quebrar a máquina da espoliação.

— Vamos a isto, concluiu Monteiro. Olhe, aqui o Felismino está pronto a nos ajudar. Ele que é capataz da União dos estivadores, sofreu, apanhou, foi preso e quase morto.

O preto ficou ufano de ser uma vítima da tirania. Argumentou ainda mais o vasto tronco, enfunado pela vaidade.

Pedro dirigiu-se ao oficial:

— Ele tem elementos. É só você dizer o que ele deve fazer com a gente dele.

O capitão não respondeu logo. Indagou ainda mais do ambiente político dos operários e ficou constrangido quando, pelas informações que obtinha, se ia certificando da apatia, do embotamento do sentimento cívico, da covardia das classes, que mais sofrem com a prepotência esmagadora dos ricos, aliados aos governos corruptos e despóticos.

Monteiro foi quem revelou a Felismino o plano de ação. O oficial deixou que ele falasse e se reservou.

— Falando sério, Felismino. Nós pretendemos dar um assalto ao Catete e prender aquele miserável, que está como um covarde escondido lá dentro e ordenando todo este horror de crimes e ladroeiras. Como a tropa não se move e fica vergonhosamente consentindo em toda esta torpeza, não há remédio senão agirmos nós mesmos. Somos um pequeno grupo decidido a tudo. Tu não viste o que foi o assalto do terceiro regimento? Pois bem. Falhou daquela vez. Nós vamos repetir o ataque. Precisamos de ti e dos teus homens para nos ajudar na rua junto do palácio, em quanto nós fazemos o serviço.

— E a guarda, seu doutor? murmurou Felismino para o oficial.

— Naturalmente, continuou Monteiro, nós faremos isto quando a guarda for nossa. Por isso não há dia marcado. Vocês estejam de sobreaviso para o primeiro chamado.

O negro tirou o chapéu, coçou-se todo.

— Homem, seu Raimundo. Não vejo furo neste plano. Vocês estão sonhando. Bem se vê que é imaginação de rapaziada. O palácio está cheio de dinamite e dizem que as grades têm carga elétrica. É só abrir o comutador e lá vai tudo carbonizado. E nós que ficamos na rua estamos fritos. Vem logo a polícia, tropa de linha, bombeiros, que sei eu...

— Que diabo, estás desanimado, rapaz? Tu que prometes tanto te vingar, interpelou-o, irritado, Pedro.

O oficial sorriu desconsolado e olhou firme para os amigos.

O negro, atrapalhado, suava abundantemente. Resfolegando falava com a boca seca.

— Não seria melhor esperar o bicho em uma tocaia?

— Mas como, se ele não se arrisca a por o bico de fora? interrompeu impaciente Monteiro.

O negro entendeu gracejar:

— Mas se ele é passarinho, um dia há de querer voar. Então aí, pan! Tiro certeiro.

— Deixa de tapeação, Felismino, disse vivamente Pedro. Tu estás é com medo. É natural, neste lombo, neste toucinho, cano de borracha já trabalhou. Já te disse que não queremos assassinato. Queremos revolução coletiva, popular e militar. O que for, mas revolução.

O capitão sorriu mais enigmático. Para ele, o negro, na sua covardia, estava vendo claro. Não havia solução senão eliminar o presidente. Mas ele era talvez o único entre os revolucionários a pensar assim. O oficial disse baixo a Pedro que se fossem embora, pois estavam perdendo tempo e em voz alta propôs que se separassem, porque a zona era perigosa e aquele encontro estava muito prolongado. Monteiro explicou que tinham vindo ali, porque era na proximidade do refúgio do oficial e o campo em que ele operava, na vizinhança dos quartéis. Seria mais fácil para ele, tão procurado pela polícia, mover-se sem maior dificuldade. Toca a separar, concluiu.

O oficial abraçou os camaradas, deu vagamente a mão ao preto Felismino, que estava matutando.

— Felismino, disse-lhe Pedro, um destes dias eu te procurarei. Conto contigo. Olha lá, não me envergonhes.

E partiu com o oficial.

Os outros três vieram vindo na direção do Mangue. Apesar dos ônibus, dos autos, dos bondes, havia uma grande solidão no imenso anfiteatro, que o triste canal corta por entre os renques das espichadas palmeiras Imeditabundas. Os casebres escuros das largas ruas paralelas tornavam mais altos os morros sangrentos. A pedreira leprosa afugentava da sua peste as casas e as oficinas e expunha-se nua e dolorosa. Do outro lado, a vegetação subia da planície para as montanhas, indiferente e fresca, e, sob a claridade noturna, o bafo indeciso da terra.

Os três foram encontrando a população noctívaga fustigada pela lascívia. Mulheres de todas as raças, de todas as cores e idades desfilavam na aspereza do ganho. Os homens tinham sobre elas a superioridade do desejo. Eles estacionavam aos magotes nos cantos das ruas, onde se enfileiravam as casinhas que eram os alcouces. Monteiro e Manuel absortos, passavam indiferentes, mas Felismino ia cobiçando assanhado aquelas marafonas rubicundas e desdenhando as negras pintadas de vermelho, que eram apanhadas pelos europeus. Nessa promiscuidade não se fecundavam as raças. Era apenas a permuta bestial dos instintos e da curiosidade. Felismino bem queria permanecer naquela malandragem frasearia, que o divertia assombrosamente. Os companheiros não se detinham e o negro não teve remédio senão prosseguir com eles. Depois do Mangue, a praça Onze agasalhava os pares, que se metiam voluptuosos nas sombras das árvores do jardim, enquanto, sobre o espaço arborizado, caíam as luzes e as músicas dos orfeões lusitanos e os sambas dos clubes, onde a negrada lasciva dançava frenética. Felismino aí entendeu que não devia prosseguir. O seu instinto caçador estava muito excitado para permitir-lhe a liberdade de ser político e de se ocupar com as coisas remotas e abstratas, em que se exaltavam os companheiros. Pretextou que lhe parecia ter visto uma secreta, que os seguia. Achava melhor ele dar o fora, aconselhando a Monteiro que fosse sozinho. Antes de sumir-se, o negro voltou-se para recomendar que Pedro não o procurasse por causa da gente de cães do porto e que, na quarta-feira à tarde, às três horas, ele viria ao seu encontro, na praia do Russell para assentar tudo.

Monteiro e Manuel, quando caminhavam pela Rua Senador Eusébio, iam disfarçando os seus pensamentos íntimos com a notação dos pequenos fatos exteriores, que lhes passavam pelos olhos. A onda oriental vasara ali nas lojas de portas meio fechadas, nos cafés vagabundos, nos restaurantes inverossímeis, as tribos sírias, os equívoco judeus russos e os imemoriais chineses. Eram os tentáculos mongólicos e semitas, que vinham se alongando para o extremo Ocidente. E, no meio de tudo, os infalíveis portugueses, que mantêm a característica lusitana na cidade carioca e infatigáveis procriam mulatos, que se arrogam em legítimos e únicos brasileiros. Foi um descanso, quando receberam a aura verde do Campo de Sant'Anna. Com ela, que frescura e que mansidão. Não entraram no parque já fechado, mas aspiravam de fora o bom cheiro daquele interior, onde passeavam tranquilas as cutias, sorriam os quatipurus e dormitavam os cisnes e os flamingos.

A caminhada ia longa. Manuel, desconfiado com a observação de Felismino de que estavam sendo seguidos, e receando por Monteiro, que era um foragido, insistiu em que tomassem um taxi. Dentro do carro trocavam, em voz muito baixa e com disfarce, algumas impressões sobre a lealdade do negro estivador. Não tinham opinião segura. Perceberam as desconfianças do capitão, mas a tática de Monteiro era sempre experimentar tudo e todos, contando com o imprevisto. Foi esta tática que o fez progredir e que o perdeu. Valia a pena tentar a experiência com Felismino.

Os cinemas da Rua Larga estavam se fechando, quando eles passaram. À debandada das gentes enchia as calçadas já apagadas. Na Avenida um vento sul, forte e frio, os recebeu hostilmente. Atravessaram por ele para a terra da alegria e da vadiação luminosa. O vazio era grande, a cidade crescera para dormir. O sono, que sempre era acalentado por um resfolegar ritmado e sussurrante das águas, naquela noite estava atormentado pelo desencadeamento tumultuoso do mar.

Monteiro e Manuel desceram do táxi ao chegar à Glória e ficaram absortos, sem nenhum pensamento, tomados totalmente pela violência, que, na sua grandeza, os maravilhava. Os olhos viam as ondas avançando de longe, impetuosas e rápidas. Montavam umas sobre as outras, avolumando-se para a invasão. Cantavam, assobiavam, urravam e arremessavam-se indomáveis sobre as paredes, que eram os muros da defesa da terra. Cresciam sobre o cais, empinavam-se fogosas, esguichavam jatos luminosos, atrevidos, e caíam estrebuchando convulsas, sobre as calçadas e espraiavam-se no macadame. Subiam alto para a escalada. Sobre essas águas entumecidas e agitadas alargava-se a escuridão de um céu de lua nova. A luz, que banhava a amplidão, vinha de baixo para o alto, nascia e espalhava-se das ondas em furor. Os repuxos sobre o cais recebiam a iluminação dos revérberos e transmudavam-se em jorros de cristal, diamantes, safiras e esmeraldas.

Monteiro e Manuel foram abeirando o parque do Russell abandonando, como os autos, os ônibus e os caminhantes, a avenida à invasão da baía. Tomaram a ladeira do hotel Gloria, perseguidos pelos estampidos dos vagalhões. De cima, ainda olharam a ressaca. Depois afundaram-se na sombra da ruazinha abafada entre casas e muros e que não via nada. Conversaram sobre a conspiração, que era o tumulto dos seus espíritos.

Madrugadeira, a velha Andreza, tremendo de frio, procurou na cozinha aquecimento e café. Acendeu o cachimbo de taquara e quando veio pitar à janela, deu um berro surdo.

— Nossa Senhora dos Navegantes, o mar... O mar... Dia de juízo! Perdoai... Perdoai...

Andreza correu espavorida para o quarto de Ritinha. Abriu a porta com estrepito. Ajoelhou-se no meio da casa e pôs-se a declamar o seu pavor. Ritinha despertou assustada e não compreendeu. Pulou da cama e sacudiu a negra velha. Com dificuldade pode perceber que se tratava de qualquer coisa na baía. Imaginou naufrágios, explosões de vapores. Não pensou em ressaca, que nunca vira. A curiosidade moveu-a e, apesar da resistência de Andreza, vestiu-se e voou para a janela da sala de jantar. Os seus olhos paralisaram-se de estupor. A boca cerrou-se, abafando ainda mais a garganta seca. Sobre todo o corpo, o tremor do espanto e do medo. As vagas, por entre assobios dos ventos enfurecidos, subiam, arrebentavam, extravasavam na vastidão das praias. O peito de Ritinha arfava violento, o coração desordenava-se, os olhos dilatavam-se para se embeber nas imensas águas revoltadas. Neste êxtase, a encontrou Vieira, que o estampido da ressaca despertara. Ritinha agarrou-se ao seu braço e Vieira percebeu-lhe o medo.

Sorriu superiormente e tranquilizou a sobrinha:

— Nada de medo. Isto é matutismo. E depois saiba que o espírito flutua sobre as águas...

— Para mim, disse Ritinha acalmando-se, isto é uma pororoca danada.

— Qual, menina. Não fale em pororoca diante de uma ressaca destas. É coisa muito diferente. Você viu pororoca do Mearim, coisa à toa. Eu, que vi no Amazonas, sei avaliar e comparar.

Os rapazes apareceram entusiasmados. Entre eles e a ressaca, a secreta afinidade da violência e da revolta. D. Calú também veio e pôs-se a exclamar o seu espanto e as suas preces de misericórdia. Araci surgiu de roupão verde, os seus cabelos ruivos, desordenados, desprendiam os reflexos luminosos, faiscantes, que o sol nascente fazia germinar. A loucura marítima exaltou-lhe a alegria. Gritava, vociferava, dançava, absorvendo com todos os sentidos, o estrondo, o cheiro, o ímpeto e a luz das vagas em furor, na intimidade profunda, ancestral, como uma gaivota na crista das ondas.

Na promiscuidade dos roupões e pijamas comentavam o espetáculo: Lá caiu um pedaço do cais. A água invade a avenida. Oi! Oi! Onda tremenda, uns vinte metros. Coitadas das árvores, vae tudo morrer. Nossa Senhora dos Navegantes, misericórdia. O vapor vai ser engolido. Meus Deus! A Lage desapareceu, as ondas lavam-lhe o casco. Lá vai a onda atrás deles, corre, corre, qual, apanhados! Tomaram banho. Que pagode! Vamos lá embaixo? Loucura. Daqui se vê tão bem.

— Mas lá é que é gostoso, concluiu Araci. Estou com vontade louca de me vestir de roupa de banho e receber a onda.

— Deixa de bobice, Araci, ralhou D. Calú. Fica sossegada. Só tenho pena de Jujú não querer sair do quarto.

Contei a ressaca a ele, nem coisa. Caladinho, tristezinho, sem forças para nada.

Só Vieira prestou atenção a esta tristeza. Tossiu e escarrou. Os olhos ficaram vermelhos. Os outros continuaram a gozar a ressaca. Ritinha entrava na alegria.

De pés no chão, com as pernas escuras e cabeluda, em maillot, os braços nus, muito musculo e carne dura, o Léo entrou aos berros, alvoroçado e invasor. Araci ficou deslumbrada e possuída.

— Vamos, Araci. Lá embaixo é que é beleza. De longe é bobagem.

Araci assanhou-se para ir perto do mar. O pai ainda protestou, mas, quando a filha o abraçou pedindo, fraqueou e cedeu. D. Calú apenas queria que não fosse sozinha com Léo. Este afirmou que a irmã era da banda. Araci disparou para vestir-se. Não demorou em aparecer. Veio de roupa de banho, cobrindo-se com um roupão felpudo escarlate. Os irmãos achavam uma estupidez bancar o banho de mar na avenida. Ela deu um muxoxo de desdém e apressava-se para partir, quando a curiosidade de Ritinha a deteve.

— Deixa ver a tua roupa, meu bem. Deves estar o sueco.

Araci tirou o roupão e mostrou-se. Presos pela touca verde os cabelos apontavam mechas douradas, que dançavam sobre a testa e no pescoço. O maillot também verde apertava o busto e a cintura, deixando em liberdade um colo farto, uns braços roliços, umas coxas carnudas, tudo branco, róseo e azulado.

Ritinha corou e não quis olhar mais. No Rosário, do Maranhão, as moças banhavam-se nuas nos riachos, nas fontes, nos córregos das fazendas. Era uma frescura primitiva na água pura e no segredo da mata.

Araci fez uma pirueta, embrulhou-se no roupão encarnado e correu para a rua, seguida do Léo. À porta da casa Zilda os esperava. Veio de roupão amarelo, touca azul e maillot vermelho. Esta mocidade colorida desceu correndo, em risadas, a ladeira. A violência, o arrojo do mar os fascinou. Avançaram para o cais e, já à beira do largo do Russell, a água espumando banhava-lhes os pés. Toda a avenida estava alagada. Os autos passavam voando, espadanando a água sempre crescente. De longe, cavalgando umas sobre as outras, empurradas pelos ventos frementes, as ondas, numa correria impetuosa, arremessavam-se sobre o parapeito do cais. Em todo o semicírculo da imensa praia, esguichavam milhares de colunas altivas, furiosas, elevadas a vinte metros, atravessadas pelo sol. Era a suprema alegria da água. Na sua loucura arrebentava as muralhas e sacudia longe as pesadas lajes de cantaria. Pelas brechas, entrava na cidade, arrombava as paredes das casas, inundava as ruas. Os espectadores festejavam a maravilhosa invasão e disparavam a fugir. Outros vagalhões vinham sobre eles e derrubavam os que enfrentavam a indomável fúria líquida. Na avenida e nas ruas transformadas em canais, apareceram os yoles e os canoes do Flamengo e num deles, o Léo, a irmã e Araci brincavam com os remos e com as varas, vogando em uma risonha imaginação aquática.

Depois do almoço, Ritinha também quis ir até a praia. A ressaca argumentara e a atraía. Manuel propôs-se a acompanhá-la. Raimundo não se podia apresentar ali no meio de tanta gente e por um dia tão vivo. Pedro ficou acompanhando-o. Antes de descer à beira-mar, Ritinha pensou em Thereza. Desejava a sua companhia incomparável. No ímpeto da simpatia, a matuta não teve pejo de procurar Thereza. Foi rápida e leve, que atravessou a rua, e entrando mansinha pelo portão, subiu a escada, que levava perto do mirante. O silêncio estava cheio do ronco do mar revoltado e do ronco de Radagasio, estirado em uma cadeira preguiçosa, de costas para a baía, a cara túmida, negra, as mãos sobre o tronco, que arfava, em estertor. Sobre as pernas, o Jornal dos Economistas. Thereza viu logo Ritinha e fez-lhe sinal para que não falasse. A matuta elevou-se muito sutil por entro as plantas e devagarinho chegou até Thereza. Os seus olhos estacaram sobre o sono rumoroso de Radagasio, e, vendo o monstro, apegou-se a Thereza com um medo desesperado de o despertar. Thereza, em um sorriso de desprezo e libertação, a sossegou. Foi em voz muito baixa, que conversaram. Thereza recusou sair da sua solidão para divertir-se na praia. Ritinha ficou desconsolada, mas, presa ao encanto daquela mulher e daquele repouso, esqueceu o mar e a sua fúria. De longe, do alto, a ressaca tinha a abstrata transfiguração cinematográfica.

Thereza não comunicava o seu espírito ao movimento das ondas alucinadas na desbragada orgia marítima. Pela manhã, ela estivera com Filipe na Quinta da Boa Vista. Impregnara-se da magia do amor na doçura verde. Era domingo e Filipe, que já não acompanhava a mãe a São Bento, passava essas manhãs com Thereza, impossibilitada pela permanência de Radagasio e pela restrição domingueira de encontrar-se com ele durante o dia. Debaixo das árvores do parque quase deserto e abandonado pela gente conhecida, eles afundavam-se na volúpia, que os envolvia e os narcotizava com os venenos imponderáveis e violentos. Desse torpor gostoso era tão difícil sair. Era preciso que o sol viesse forte, ardente, para precipitar a combustão das árvores, dos perfumes e da terra e os queimasse, arrancando-os do magnetismo vegetal.

Durante dois dias o pagode da ressaca distraiu a cidade de beira-mar. Na tarde de terça-feira as ondas foram abrandando. O que foi alegria e estupor passou a ser lamúrias sobre as destruições, cálculos dos prejuízos, ódio do mar. Na quarta-feira às duas horas, Pedro desceu ao parque do Russell para esperar Felismino. Em cima, na janela, Raimundo Monteiro acompanhava a cena. O parque estava sossegado, quando Pedro chegou. Em alguns bancos, criadas vigiavam meninos a brincar e outros a dormir nos seus carrinhos. Dos restos da ressaca vinham barulhos roufenhos. O mais era o ruído dos ônibus, dos autos e dos bondes, que davam ritmo ao silêncio. O tempo estava passando devagar para a impaciência de Pedro, quando afinal vê, ao longe, entrando pelo meio do parque, Felismino, volumoso e escuro. Monteiro observava que alguns homens vinham em sentido oposto ao negro, do lado da Glória, e hesitavam em descer ao parque. Pedro não podia vê-los e a sua atenção era toda para Felismino. Monteiro via mais que, na avenida, outros homens surgiam, e, ao mesmo tempo, mais outros vinham pela calçada, abeirando as casas do Russell. O seu faro deu-lhe uma violenta inquietação. E que desespero angustioso de não poder avisar Pedro. Um grito não se ouviria. Os olhos de Monteiro viam Felismino chegar-se a Pedro, abraçá-lo, falar-lhe sorrindo tão devotado, tão escravo. Os homens partiam de todos os lados na direção deles. Eram dez. Aproximam-se. Gesticulam furiosos. Pedro dá um pulo para trás. É contido. Felismino indiferente. Quatro homens empurram Pedro para a avenida em direção a um automóvel. Felismino os acompanha. Seis homens olham para cima, para a casa de Pedro. Dois partem para a ladeira da Glória e quatro para a ladeira do Russell. Monteiro arranca-se da janela. Grita por D. Calú. Avisa rápido, brutal, a prisão de Pedro.

— Ah! Minha Nossa Senhora! exclamou a devota revolucionária. Aquele negro miserável nos pagará.

Monteiro toma o chapéu. D. Calú chora. Dá-lhe um beijo e vinte mil réis. Ritinha acode. Dá a sua bolsa, onde havia cinquenta mil reis. Empurra Monteiro para a rua. Espia na porta. Ninguém. Ainda Monteiro dá-lhe papéis rasgados para queimar. É o plano do assalto ao Catete. Num pulo, Monteiro atravessa a rua. Entra devagarinho no portão da casa de Thereza. Ritinha recolhe-se e corre para o fogão.

Quando no jardim, Thereza viu Monteiro, pensou logo que uma desgraça acontecera a Filipe. Sem medo da negra, que pajeava Lili e os olhava assombrada, Thereza gritou vindo ofegante para Monteiro:

— Onde está Filipe? Diga, diga...

Monteiro teve um generoso sorriso, que acalmou a angústia apaixonada. Contou o que sucedera a Pedro e a sua fuga precipitada para ali, que era o único refúgio naquele apertado momento. Thereza, aliviada por Filipe não estar em causa, examinou com liberdade a situação. Bravamente propôs a Monteiro refugiá-lo em sua própria casa. Debateram esta hipótese, que Monteiro não aceitou, porque compreendia os aborrecimentos, que sobreviriam a Thereza. Ela, descuidada e entusiasmada por prestar um auxílio àquele companheiro do seu adorado, desmanchou todas as objeções. Falou com desprezo do marido e prometeu que faria tudo sem ele saber, apesar do seu infame sistema de farejar e fiscalizar. Monteiro foi firme na sua resistência e pediu apenas que lhe desse passagem do morro da Glória para o de Guaratiba. Thereza resignou-se a este insignificante auxílio, mas com que altivez poderia dizer a Filipe que estava pronta a servir à causa, que era dele e cuja fascinação ela tanto temia?

— É preciso prevenir Filipe do que nos ocorreu... pediu Monteiro. A primeira coisa a fazer é descobrir em que prisão meteram Pedro. Esses miseráveis a pretexto de interrogatório ocultam os detidos, os supliciam cruelmente. Infames. Filipe é o único, que tem prestígio para suster as torturas... Mas ele deve andar depressa.

Thereza prometeu comunicar-lhe tudo sem demora, naquela mesma tarde, e entrou em outras indagações.

— Não há dúvida, explicou Monteiro. Fomos vendidos por aquele negro. Bem o capitão desconfiou, mas nós, sempre sôfregos por experimentar tudo e todos, nos entregamos... É uma sina. Terra desgraçada...

— Mas não teme pela sua segurança? Que devo dizer a Filipe? perguntou Thereza.

— Diga-lhe que desapareço por uns dias. Darei sinal de vida, quando for possível. Receio pelo capitão e por Manuel. Penso que tudo está desmanchado. Paciência. Recomeçaremos...

Esta resignação à tenacidade comoveu Thereza. Era uma força estranha na natureza entusiasta e erra dia de Raimundo Monteiro.

— Ah! Se todos fossem da sua coragem e firmeza, que libertação! Eu também sou firme e tenaz. Já fui vacilante. Mudei. Acompanho este ritmo do carácter de Filipe e dos seus companheiros...

Lili aproximou-se da mãe, que a recolheu ao colo fazendo-a agradar Monteiro. O foragido alegrou-se com os mimos infantis e esforçou-se por conquistar as graças da criança. Não tardou que a tomasse nos braços e se pusesse a correr com ela pelo jardim. Lili estava deslumbrada. Nunca sentira tanto impulso, tanto entusiasmo, nos que a carregavam nos ombros. Ela deleitava-se, derreada no pescoço de Monteiro, ria em gargalhadas de perder o fôlego. As pernadas de Monteiro eram gigantescas e a menina imaginava-se em um cavalo maravilhoso. Thereza acompanhava o prazer da filha e de pé estimulava aos gritos a correria. A negra cinzenta arrebentava de raiva. O branco duro dos olhos raiava-se de sangue. Os resmungos da cólera não se ouviam por entre as risadas e o alarido, que contaminava os cães e as aves do galinheiro.

Durante longo tempo brincaram esquecidos, até que a negra enfurecida reclamou em gritos a menina, para deitá-la. A hora da sesta de Lili estava atrasada. Thereza tirou-a do pescoço de Monteiro. A criança estava quente e alagada. Thereza quis esconder da negra este excesso e, contra os hábitos, ela mesmo levou a filha para dentro. A negra, batendo pesada os sapatos, seguiu atrás e, quando ia entrando em casa, voltou-se para o lado de Monteiro, praguejou, fez uma cruz com os dedos, beijou-a rudemente e com uma jura de vingança cuspiu na terra, que esfregou com os pés. Monteiro nada viu. Cismava em frente ao mar.

Quando Thereza voltou, ele disse que ia partir. Ela sentiu um aperto no coração. Era o desconhecido, o perigo para o jovem destemido, que renunciava ao abrigo seguro. Desespero de não poder guardá-lo ali livre de todo o mal. Aqueles instantes de fraternidade na luta contra a opressão lhes deram ao espírito e ao sentimento uma amplidão benfazeja, em que se libravam acima de todas as misérias. Apiedou-se de Monteiro. Inquietou-se sobre as privações, que ele ia passar. Correu à casa, enquanto ele a esperou, comovido por aquela avassaladora generosidade. Thereza apareceu carregada de embrulhos de doces, frutas, presunto e pão.

— Está. Ao menos passará a noite hoje sem fome. Como há de ser amanhã?... Olhe, desculpe. Tome isto para os primeiros dias.

Muito rubra, afogueada, sem fitar Monteiro, apresentou-lhe uma carteira. O foragido estremeceu. Ficou triste. Thereza abaixou o braço dadivoso e ficou triste.

— Não, não faça isto, suplicou Monteiro, não posso aceitar, a senhora já fez demais. Perdoe, mas não é possível. Tenho muito dinheiro comigo. D. Calú e Ritinha deram-me bastante.

Thereza recolheu a carteira. Ficou pensativa. Monteiro não aceitava dinheiro delia e aceitava das outras. Ele marcava a separação que, mesmo no infortúnio e na comunhão das ideias, impede a inteira fraternidade. Compreendeu que era um bem para a sua libertação integral e que ela devia proceder fortemente, mas sempre emancipada de todo o sentimentalismo. Acompanhou Monteiro até o portão dos fundos, que dava para o morro de Guaratiba. Fez-lhe mil recomendações de prudência, prometeu-Ihe ver Filipe naquela mesma tarde e foi com alegria e muito livres que se despediram.

Logo que deixou de ver Monteiro, Thereza fechou o portão e mandou preparar a sua barata. Poucos minutos depois ela estava à porta dos Vieiras. Nas duas esquinas postavam-se homens, que espiavam os movimentos da rua. Thereza não ligou e entrou firme na casa amiga. Quando D. Calú a viu, foi uma choradeira. Aquela mulher, que tanto esbravejava, caiu em prostração, desde que a desgraça a atingiu. Thereza consolou-a, um pouco enfastiada. Ela queria fatos e não lamúrias. Ritinha foi que a esclareceu. Os secretas vieram, deram uma busca na casa, à procura de papéis e sobretudo de Raimundo Monteiro, que sabiam estar refugiado ali. Desesperados de nada encontrar, fizeram mil ameaças contra todos, que seriam chamados à polícia e Aristides Vieira castigado por ser revoltoso, sendo empregado público. E que Pedro, que estava nas unhas deles, havia de pagar por todos. Agora estavam vigiando a rua.

— A senhora está se expondo muito, suplicou D. Calú, entre lágrimas. Não faça isto, que pode lhe vir mal.

— Que importa? O que está feito, está feito, afirmou resoluta Thereza. Faço o que Filipe desejaria que eu fizesse, concluiu sem temor de expor francamente o seu coração.

Contou-lhes a passagem de Monteiro, pela sua casa, os momentos quase alegres e descuidados, que tiveram, e a promessa que fizera de comunicar tudo a Filipe, naquela mesma tarde.

— Vamos, Ritinha. Venha comigo ao escritório de Filipe e se ele não estiver iremos à casa dele. Arranje-se e vamos...

— E eu? Fico só? gemeu D. Calú. Nem mesmo Araci está em casa. Parece um castigo. E Manuel? Ah! Procurem por ele também, que não venha para a casa. Ah! Eu fico doida. Jujú está na espinha. Não tem mais força para se levantar. Parece maluco, coitadinho. E agora mais esta calamidade.

— Coragem, D. Calú. Tudo isto passará. Hão de dar cabo deste governo, replicou sem convicção Thereza.

— A senhora acha? Qual o que. Eles são muito fortes, compram todo o mundo. Têm dinheiro a beça. O melhor é a gente abaixar a cabeça e não se meter contra. Não vale a pena. Os que têm coragem e brio sofrem, enquanto os outros lucram... Ah! Meu Pedro, meu filhinho!... O que estará padecendo?

A covardia maternal exasperava Thereza. E foi um alívio, quando Ritinha veio à sala, vestida com o seu melhor vestido. Thereza apreciou esta liberdade de espírito, que mantinha a faceirice feminina. Deixaram, apressadas, D. Calú. Ao chegarem à rua, um secreta examinava o automóvel. O olhar soberano de Thereza intimidou o pardavasco, que se afastou quase se desculpando.

— Canalhas! disse alto, e exasperada pulou para o volante.

Ritinha, contagiada por este desabafo violento, sentou-se ao seu lado e bateu com estrondo a porta do carro. Thereza atirou o automóvel com toda a velocidade em cima dos secretas, que recuaram atordoados.

Na Avenida, à porta do escritório de Filipe, ela fechou o carro e tomou o elevador. Era a primeira vez que ali entrava, mas instintivamente tudo lhe pareceu habitual. Quando lhe informaram que Filipe estava só, foi com toda a autoridade, que penetrou no seu retiro. Ele escrevia, mas a sua atenção estava sempre alerta ao mundo exterior. O menor ruído interessava os seus sentidos. Não foi espanto, mas uma inefável satisfação que o arrebatou, ao ver Thereza na sua frente. Levantou-se vibrante para recebê-la nos braços e cobri-la de beijos. Ela defendeu-se muito sutilmente, fazendo Ritinha mostrar-se. Foi então que Filipe estranhou a aparição de Thereza. Sem demora, com uma vibração, que lhe iluminava os olhos, purpureava o rosto trigueiro e agitava-lhe as mãozinhas enluvadas, Thereza narrou tudo. Filipe, ainda embevecido na admiração, acompanhava mais o rosto, as expressões, o som da voz, o magnetismo do olhar da narradora, do que o próprio assunto narrado. A intervenção de Ritinha, que acentuou pormenores anteriores aos que se deram com Monteiro, foi obrigando Filipe a prestar atenção ao caso, que angustiava a todos. Repetiram-lhe tudo. Quando Thereza lhe contou mais minuciosamente todos os detalhes da passagem de Monteiro, Filipe ficou pensativo. Viu Thereza e Monteiro na grande espontaneidade dos sentimentos, na súbita intimidade, que a dor e a simpatia criam. Imaginou o deslumbramento de Monteiro pela sua Thereza generosa, ardente, entusiasta. Na sua secreta irritação, o grande desalento, o ímpeto de deixar tudo, de se evadir, porque tudo era torpe e imundo. Não queria olhar Thereza, que recebera a admiração de um homem em um momento de exaltação e de fraternidade. No estranho silêncio, o delírio íntimo do ciúme separava Filipe de Thereza, que se viu desamparada e não compreendia a súbita atitude rancorosa do seu adorado. O instinto velava. Muito de manso a mulher falava ao homem, ostentando um livre desinteresse por tudo o que a comovera e a fizera procurar Filipe. A princípio ele quis repeli-la, expulsá-la com injúrias, mas a doçura da voz, o desprendimento manifestado o foram equilibrando e foi sorrindo que, por sua vez, Filipe se libertou da fúria do ciúme e se pôs em profunda harmonia com Thereza.

— Vamos já à polícia, propôs ele, apertando a mão de Thereza, que suspirou aliviada do pesadelo obscuro e indecifrável, que a atormentava. Ritinha alegrou-se, sem saber também porquê.

Quando chegaram à polícia, Filipe deixou-as no automóvel e subiu. A rua estava cheia de carros parados. Outros entravam e saíam do interior do edifício. Thereza ia comentando com Ritinha estes movimentos imaginados por ela como execuções de ordens tenebrosas dos tiranos do estado de sítio. Os ciganos, que estacionavam nas portas, os negros benguelas, os soldados cafuzos, os advogados, os sírios, os portugueses, os italianos, todos lhes pareciam sicários, malfeitores, secretas, ladrões acompanhados das rubras polacas excessivas, das negras desbragadas, suas comparsas na crápula e nos crimes. Thereza e Ritinha sentiram o nojo tremendo e a vergonha revoltada. Filipe demorou muito a vir e o desesperado martírio, que sofreram, as aniquilava. Veio. As informações eram escassas. Com muito custo descobriu que Pedro estava incomunicável e naquele momento o interrogavam. Felismino, que delatara, tinha apanhado uma surra e ficara preso.

— Bem feito, bravo! gritou Thereza aplaudindo generosamente os algozes.

Filipe resolveu que elas voltassem para a casa. Era tarde, oito horas passadas. Ele esperaria pelo fim do interrogatório de Pedro e mais tarde levaria notícias à casa de Vieira, onde Thereza o encontraria. Thereza apiedou-se-da dedicação de Filipe e, temendo pela sua saúde, pediu-lhe muito que jantasse e se agasalhasse, pois a noite estava úmida.

No caminho, Ritinha procurou tagarelar falando dos horrores, que viram e que souberam. Thereza não deu trela. Estava absorvida em Filipe e pensava com angústia nas horas, que ele passaria naquela infecta polícia, na fome que teria, no frio que iria apanhar e admirava em êxtase a bondade, a energia, a autoridade do seu ídolo. O amor exagera.

Thereza deixou Ritinha em casa e entrou no seu portão vagarosamente, desanimada. Pôs o automóvel em marcha para cima. Aquele sossego do cheiroso parque adormecido a confrangeu. O seu impulso era voltar e esperar Filipe, na ignóbil porta da polícia. Quando lhe apareceu a casa, viu Radagasio no alpendre, sob o foco de luz. O homem estava hirto, negro, pavoroso. Thereza abandonou o automóvel e o afrontou.

— Deixe de cara amarrada... Vim tarde hoje, porque tive de ver uma amiga doente. Não pude abandoná-la, antes do médico chegar...

Esta mentira exasperou o homem. Riu sarcástico, batendo com as bochechas, com os dentes, fungando desesperado. Quando Thereza ia passando para dentro, julgando-se livre e dominadora, Radagasio agarrou-a pelos braços e berrando:

— Mentirosa, safada, traidora.

Thereza torceu-se energicamente para se livrar das mãos, que a apertavam com raiva.

— Larga, miserável. Tu és um infame que eu odeio e desprezo. Canalha! E cuspiu-lhe na cara.

Radagasio empurrou-a contra a parede, esbordoou-a com furor. Na luta o chapéu de Thereza caiu, o vestido se rasgara. Os criados acudiram. Diante deles, Radagasio largou Thereza e procurou disfarçar:

— Não foi nada. Uma discussãozinha à toa... Vamos jantar.

Os criados saíram resmungando, unidos no ódio contra o homem estúpido, violento e falso. A negra não apareceu. Thereza recolheu-se ao seu quarto, humilhada e desesperada por uma vingança, que destruísse o monstro odioso. Como prevenir Filipe? Filipe! Sempre longe, quando ela precisava do seu apoio constante, da sua proteção, das suas carícias, que apagariam todas as maculas, todas as infâmias. Fora obrigada a mentir. Covardia eterna. Escravidão. Nada a humilhava mais do que a mentira, com que se desculpara. Quando a libertação, que lhe daria a coragem para tudo, a harmonia do seu ser com a verdade? Atirou-se na cama em soluços, mordendo de raiva o travesseiro, batendo-se ainda mais, como se merecesse ser ainda mais flagelada pela sua covardia de permanecer ali, naquele covil, com aquela fera miserável, idiota, nojenta. Não foi jantar. A criada veio devagar, como se entra em quarto de moribundo, espiá-la. Percebendo que não estava dormindo, ofereceu-lhe com muito carinho qualquer alimento. Thereza recusou. Pediu-lhe que a ajudasse a tirar o vestido estraçalhado. E foi compassiva que a criada examinava o lindo colo de Thereza com as marcas roxas dos dedos de Radagasio. O rosto escapara à fúria destruidora da beleza.

Radagasio jantou só. Procurou mostrar-se calmo diante dos criados. Ficou soturno e mais negro. Depois do jantar veio ao terraço e caminhou para baixo e para cima, desesperado. Falava só, descompondo Thereza, Filipe e os amigos deste. Jurava vinganças estrondosas. E o seu desespero era não poder falar com Thereza, desabafar aquela cólera. Precisava da mulher para a expansão do ódio e da inveja, que o sufocavam. Não se conteve e foi ao quarto de Thereza. Ela, quando o viu, ergueu-se da poltrona em que se enterrava e o expulsou com violência.

— Vim para conversarmos, explicou o marido. Gosto sempre de conversar. Isto da gente brigar sem falar é um inferno.

Thereza sentou-se e virou-lhe as costas. Ele de pé vociferava:

— Você é muito atrevida. Há muito que a sua existência me desespera. Você mudou em tudo. Ah! Não confessa... Mas também não nega. Olhe, eu estou espiando a sua vida e a dele. Se eu descobrir qualquer coisa, eu os mato... O meu prazer é picar vocês com um punhal. Ou liquidar tudo com um tiro. Olhe, não pense que estou dormindo. Há tempos que estou fazendo esgrima e praticando tiro de revólver e pistola, porque no tiro de espingarda sou forte. Bom caçador não erra caça...

O silêncio rancoroso de Thereza exasperava a cólera de Radagasio. O que ele prometera a si mesmo nunca dizer à mulher, porque era a grande arma contra ela, e que seria para a ocasião decisiva, no desespero daquele desprezo, ele desabafou:

— Sua canalha, cuida que eu não sei tudo o que se passa aqui na minha ausência. Burra, cabeça de esterco. Então eu não sei que você, sua ordinária, está metida em conspirações? A Balbina me contou tudo. Quem é este cafajeste, que esteve aqui, fugido da polícia e que você deu escapula pelo morro de Guaratiba? Fale, responda. Você está me comprometendo horrivelmente. Eu, um legalista decidido, a receber em minha casa, um bandido revoltoso, um ladrão mashorqueiro, porque, sim, todos estes revolucionários não passam de larápios, assassinos, desonradores de mulheres casadas... Corja infame... O governo deve surrar todos eles e queimá-los. Responda. Como se chama o tal canalha? Olhe, eu, para me ver livre de qualquer responsabilidade, vou denunciá-la à polícia...

Radagasio esperou o efeito desta ameaça. Thereza não respondeu. Continuou na mesma postura de ódio e silêncio. Apenas, depois destas revelações, o seu coração batia mais violento, o seu corpo queimava de raiva. A negra Balbina pagaria tudo antes da sua libertação desse torpe Radagasio.

As ameaças continuavam inúteis. Radagasio voltou ao jardim. Gritou por Balbina, que dormitava no quarto de Lili. A negra acordou assustada e veio tremendo.

— Ah! Nhonhô. Vosmecê faz logo um barulhão com tudo o que a gente conta. Se eu soubesse, tinha visto e ouvido calada. Boca para que falaste.

— Você fez bem. Você é a única pessoa, que me estima neste mundo, disse humilde Radagasio. Vamos, conte tudo de novo.

A negra tranquilizou-se e repetiu o que vira.

— Mas como é o tipo?... Não ouviu de D. Thereza o nome dele?

— Ah! Não, meu branco. Ela não disse o nome. Repito a vosmecê que era um sujeito claro, magro, espichado, de um nariz que, valha-me São Francisco... Falavam, falavam. D. Thereza, a princípio estava triste, aborrecida com a prisão do filho da vizinha. Depois esqueceram tudo, o sujeito brincou com Lili, como se fosse um inocente. E quando ele ia partir, D. Thereza encheu o homem de doces, frutas e lhe deu uma carteira com muito dinheiro...

— Ladra! vociferou Radagasio, sentando-se desanimado num banco.

A negra pegou-lhe a cabeça, e começou a alisá-la. Com uma voz suave e sonora modulava-lhe na noite capitosa a sua melopeia:

— Nhonhô está triste... Tem de quê. A mulher de Nhonhô está enganando a ele. A mulher é sempre traiçoeira. Esta não estima Nhonhô. Tem vergonha e desprezo do seu marido. Ah! Eu reparo tudo. Quando ela fala com Nhonhô, é com cara fechada, má. Por detrás é um Deus nos acuda. Não tem vergonha de dizer que Nhonhô é estúpido, sovina, mau, um miserável, e repete sempre que casou sem amor, obrigada, e que Nhonhô é ladrão e só vive à custa do dinheiro dela. Uma pouca vergonha. Uma mulher que não respeita seu marido, um homem tão trabalhador, homem de sabedoria, um moço fidalgo que a minha mãe criou, tão bonitinho desde menino e que é um homem importante, cotuba...

Radagasio ficou embevecido com a ternura, que o surpreendia e o acalmava. Pegou a mão rugosa de Balbina e a amimou.

— Então gostas muito de teu Nhonhô, minha negra tão boa...

— Sim, Nhonhô, eu tenho uma adoração por vosmecê desde pequena. Nhonhô não reparou como eu não largava Nhonhô? Eu comia Nhonhô com os olhos. Tinha tanta pena do que Nhonhô sofria nesta casa com aquela mulher ingrata. Ah! Maldita.

Baixavam sobre Radagasio a meiguice e a quentura negra. O volume preto pesava sobre ele e das entranhas alvoroçadas vinha o fluído da concupiscência. Radagasio passou o braço pela cintura de Balbina. A negra, derretida, afundou-se sobre ele e o farejou com as narinas assanhadas. Radagasio apertou com força. A negra arreganhou a boca e lasciva, babosa, o mordeu nos beiços. Radagasio resfolegava, esfregando a cabeça nos peitos de Balbina:

— Minha nega, meu petisco preto, safada, gostosa...

A negra deu um grito abafado e sumiu-se. Vira Thereza surgir no patamar da porta. Radagasio encolheu-se todo miúdo, apagando-se na sombra. Thereza desceu muito firme na direção do mirante, envolta em um roupão de seda cor de morango, que lhe fazia ressaltar ainda mais a opulenta pretidão dos cabelos.

Filipe referira em casa de Vieira a situação de Pedro. Tinha sido interrogado. Não lhe quiseram dizer o seu depoimento. Continuava incomunicável para ser acareado com Felismino e depois seria mandado para a Detenção. Não o tinham maltratado. Filipe chegara a tempo de o recomendar a um dos delegados seu conhecido. Felismino tinha levado uma surra e estava na geladeira. Fora o preço da sua delação. Manuel não aparecera. Seguramente tivera algum aviso. Vieira estava acabrunhado com medo do que lhe podia suceder. Já na repartição ele era muito suspeito. Agora justificariam pretextos para o perseguir e abrir a vaga muito cobiçada. Os miseráveis venciam. A tristeza da casa desconcertava Ritinha, que desejava voltar ao seu Rosário, tão sossegado, ou ir para o Acre reunir-se ao noivo. Solidão, febres, tudo preferível àquela angústia neste Rio tão bonito e tão mau. Esperaram por Thereza inutilmente. Ritinha ofereceu-se para ir saber a razão da sua ausência. Filipe pressentia uma violência de Radagasio, furioso com a demora de Thereza naquela noite. Decidiu-se a ir ele mesmo saber o que se passara. Dispensou a intervenção de Ritinha e, recomendando calma, consolando-os com a esperança, partiu. Ia empurrando o portão da chácara de Thereza, quando Radagasio puxava este do lado de dentro. Ambos surpreenderam-se com o encontro. Radagasio acovardou-se e servilmente abriu o portão.

— Oh! Que coincidência... Pode entrar. Eu ia dar uma volta, a volta do chilo e da meditação. Andar para pensar, é a nossa divisa, dos peripatéticos... Sinto muito não ficar na sua companhia. Mas o senhor não é de cerimônia. É de casa. Thereza está lá em cima à sua espera. Que diabo, não andei nada hoje. Veja o meu pedômetro. Só três quilômetros e eu me impus na obrigação de andar dez por dia. Por isso, desculpe, vou cumprir o meu dever. É indispensável para a digestão. Quem tem boa digestão, tem ideias claras. Mens sana in corpore sano. Suba. Thereza está no mirante à sua espera. Ela saberá entretê-lo na minha ausência. A casa é sua...

Deu uma gargalhada seca. Empurrou amistosamente Filipe para dentro, fechou o portão. Viu que Filipe subia. Prosseguiu, tomando pela ladeira da Glória. Apertou o passo. Debaixo de um lampião verificou o pedômetro. Qual, não tenho tempo de fazer os quilômetros da obrigação. Não tem importância. Ninguém sabe. O aventureiro está subindo com toda a velocidade. Mas não é andarilho como eu. Ando mais que o judeu errante. Sabes quem foi Ashaverus?... Diabo, o vento está fresco e eu sai sem sobretudo. Volto? Não. Ela está espantada com a chegada do sujeito... Ele agarra ela nos braços. Beijam-se. Pouca vergonha. Toca a andar. Enquanto ele subiu dez metros, eu andei quinhentos... Não pode comigo. Já estou aqui embaixo, agora pego a avenida. Ele pega a mão dela, aperta com força, ela conta tudo, deitada no ombro dele. Nina, nina, meu bem, o teu amor... Divertido. Mas quem fez tudo isto? Eu, Radagasio Viana, o marido generoso, que não tem ciúme e abriu a porta para o amante de sua mulher e veio andar, andar. Superioridade. Quem faria isto? Ninguém. Todos os maridos, uns canalhas ferozes e ciumentos, sem grandeza de alma para proteger o amor. Sou um caso raro. Estou suando. É este vento frio. O meu sobretudo... Não volto para buscá-lo. Não perturbemos o amor. Ela está danada a falar mal de mim. Paciência. Não compreende nada. Cabeça de esterco... Na primeira ocasião explicarei tudo a Filipe. Ufa, um quilômetro e meio. Toca a andar. A calçadinha é estreita e toda a gente me empurra. Se um táxi ou um ônibus me mata... Thereza, viúva, eles se casam. Evitemos desastres. Como está desmantelada esta avenida. Que prefeitura miserável... E eu defendo o governo, defendo tudo... É preferível estar do lado do cabo da faca... E meter a faca em Filipe e Thereza. Maravilhoso. O marido que se vinga, o defensor da honra do lar. O lar é a base da vida nacional. Vou contando os carecas até o fim da avenida. A Balbina está escutando para me contar tudo. Sou o chefe dos secretas. O governo me devia aproveitar. Vinte carecas. Vai depressa. Eu na polícia, Filipe no cubículo, surra de cano de borracha, depois deportação para o Amazonas. Não devo andar contra o vento. Faz angina de peito. Prudência. A avenida está ficando deserta. Este povo dorme com as galinhas. E os galos não dormem... Estão tramando o diabo contra mim. Ela está entusiasmada por Filipe. Sim senhor, o cabra é cínico, vem vê-la sem minha autorização. Dei-lhe uma lição. Fui eu mesmo que lhe abri o portão e o mandei para cima, para junto de sua Thereza. “Ah! Meu Filipe, tu és bravo, não tens medo de Radagasio, que é uma fera valente e terrível, tu vieste sossegar a minha aflição... Meu amor, minha vida.” Filipe responde: “Adivinhei que estavas sofrendo o martírio deste miserável Radagasio, deste cretino, e corri para o teu lado. Não tenho medo!” “Viste o algoz?” “Sim, foi ele mesmo que me recebeu. Estava sorrindo, disse-me que tu me esperavas. Abriu o portão para eu entrar. Estava superior, um verdadeiro gentleman...” Duzentos carecas, ufa, cheguei à zona da Lapa, zona gostosa... Eu arrebento este pedômetro de tanto andar... Se houvesse uma corrida de gente distinta para a marcha a pé, eu tomaria parte e, quem sabe, teria o primeiro lugar. Seria uma sensação na cidade. Ficaria conhecido. Quem é aquele? É o Radagasio, o celebre andarilho, que tirou o primeiro prêmio na corrida de homens importantes. E no banco, então? Todos me olhariam com respeito e mesmo com inveja. O presidente me felicitaria. “Sim senhor, meus parabéns, o senhor com os pés honra o banco. Vou referir ao governo o seu heroísmo.” Oh! Bruta raiva de Filipe... Não é minha culpa. Quanto beijo lá no alto! É um pagode. Miseráveis. Vocês me pagam. A minha vingança é picá-los bem devagar. E a carta anônima? Não. Isto é indigno de um cavalheiro, que ganhou o primeiro prêmio de corrida a pé dos homens respeitáveis... Beijem-se, beijem-se, aproveitem, enquanto Radagasio é o marido. Oh! Diabo! Que caça estranha é aquela! Apertemos o passo... Não corre, meu bem, não corre... Oh! que crioula!... Isto é que é mulher... Pelo cheiro deve ser baiana...

XIV

Radagasio esqueceu o ódio, esqueceu a polícia, e ufanou-se da sua formidável clarividência, quando, de manhã cedo, no jardim, Balbina lhe referiu que tudo se passara como ele tinha “visto”. Sorriu deslumbrado para a negra que, sem compreender tão estranha ventura naquilo, que ela deformava e gozava como uma medonha tragédia, ficou apatetada, também a sorrir à estúpida alegria. Radagasio engrandecia-se desmesuradamente, orgulhoso dos seus dons sobrenaturais e do seu cavalheirismo.

— Bem, muito bem. Agora é apertar o cerco, prescrevia ele à negra. Tu não arredas pé deles. Se a sem vergonha te mandar embora, quando o aventureiro estiver com ela, não obedece. A palavras oucas, ouças moucas... Quem manda aqui sou eu. É preciso que saibam... Olha lá...

Balbina jurou pela luz que a alumiava que só respeitava Deus no céu e Radagasio na terra.

— Tu és um quitute, Balbina. Pretidão de amor, como diz o épico.

A negra suspirou langorosa e esperou o assalto de Radagasio. Não veio. Radagasio ruminava sobre o seu gênio intuitivo e o seu dilatado prestígio social. Coordenava o plano de combate contra Thereza e Filipe. Quanto a este, a solução estava na polícia. Denúncia anônima, naturalmente. E o resto é o que se pratica com todos os presos políticos. Fome, surra e deportação para morrer. Contra Thereza, a tirania marital. Balbina desnorteou, quando em vez de arrancos de libidinagem, recebeu ordens de perseguir Thereza. À proporção que Radagasio mandava, o ódio da negra despeitada, enfurecia-se.

— Deixe, Nhonhô, por minha conta... Eu espremo ela que nem cana. Fica bagaço só, que a gente joga fora. Vou já tirar Lili do quarto dessa malvada...

A raiva aliviou-lhe o peso e foi em sacudido boleio, que entrou na casa à busca da menina.

Lili brincava sossegada no tapete. Thereza, da cama, olhava na entrada da baía a abertura, por entre as ilhas, para o oceano livre. A sua felicidade integral estava na libertação com Filipe. E para atingi-la, renunciar a toda a relatividade, em que a apertavam. A sua mão acariciou a cabecinha de Lili. A criança continuou a brincar, mais quieta, deliciada com aquela meiguice. Na grande languidez, prostrada pela angústia, faltavam a Thereza forças para suspender a filha. Lili sentiu esta insuficiência e pressurosa pulou para a cama. O animalzinho roçou-se na mãe, aspirou-lhe o cheiro, aqueceu-se no corpo febril, beijou o rosto, apertou o nariz, mordeu, riu, riu, contente em reanimar o ser adorado, enlanguescido. As efusões da criança estimularam Thereza, que, no furor da possessão maternal, agarrou a filha com o desespero do pavor da separação e da agonia de perdê-la para sempre.

A negra bateu reclamando a menina. Thereza não respondeu. Aquele chamado exarcerbou-lhe a angústia. Lili ficou muda, quietinha, cúmplice dessa defesa rancorosa. Escondeu-se dentro dos lençóis, ainda mais colada ao corpo, que a prendia por formidáveis fluidos da pele e da carne absorventes. Era a unidade profunda, ancestral e eterna da maternidade. Contra ela só o milagre da desencarnação pelo amor.

De fora, a negra insistiu inutilmente e já gritava desaforada, quando Radagasio veio interrompê-la.

— Não berra, Balbina. Nada de escândalos. Aqui é casa da ordem e compostura. E depois, cuidado... Acabo de ver a polícia rondando na frente da casa e eu não quero histórias. Sai, vai-te embora. Não faltará ocasião... O bom bocado não é para quem o faz...

A negra olhou-o com desprezo e afastou-se, resmungando, enfática, a sua odienta decepção:

— Todos estes brancos são safados... Ixe... Tudo tem medo um do outro. Para os diabos, que os carreguem. Mas eles me pagam. Santo Onofre valerá à sua devota e Eixú pune pela sua negra na encruzilhada da morte...

Thereza queria libertar-se de Radagasio e não se separar da filha. E com esta viver no paraíso do amor de Filipe. A essa inefável e suprema aspiração opunham-se a ganância de Radagasio em conservar intacta a fortuna da mulher, que ele usufruía avarentamente, e a sua vaidade em manter a aparência da vida Conjugal com a pretensão de dominar. Radagasio não consentiria na Separação e, para prender Thereza, havia a força terrível da piedade maternal. Na indizível angústia, em que se debatia, crescia o ódio de Thereza pelo homem nefasto e, neste desespero, veio-lhe o ímpeto obscuro e tenaz de o matar. Seria a libertação e por ela a felicidade eterna. Desde que este pensamento a dominou, Thereza tinha constantemente o revolver à mão. Esperava que chegasse o momento da execução, que ela desejava e temia. Era o segredo do seu sentimento, que nem mesmo a Filipe ousava comunicar. Era o que havia de tenebroso, de horrível, no fundo da paixão, que luta pela sua liberdade absoluta e seu desafogo feliz. Esta obsessão a torturava. A presença de Radagasio alucinava-a. O som da sua voz a enchia de terror. E nesta exaltação do ódio e do pavor, Thereza caía em prostração, inativa, inerme. Filipe não a via nessas crises da miseranda intimidade do lar tenebroso. Quando eles se encontravam, Filipe adivinhava na palidez terrosa da adorada, no hálito febril, a combustão daquele ser desesperado na maior angústia humana. Não queria pesar sobre ela, mais do que pesava. Quisera libertá-la da tortura nefanda. E ficava perplexo diante da fatalidade inelutável. Não podia deixar de amá-la. Por esse amor supremo viviam ambos. Não se ama, nem se deixa de amar, quando se quer. Pensou em morrer por Thereza. Mas Thereza morreria. Pensou em morrerem ambos. Mas a lei de conservação do amor repele esta traição à plenitude da unidade. Filipe e Thereza sofriam das duras contingências, em que a sua paixão nascera e se tornara maravilhosa e infinita. O que podia esperar de Thereza seria que ela renunciasse à filha e partisse, livre, com ele. Esta renuncia Thereza não tinha ânimo de praticar. Muitas vezes, propunha esta solução que o amor exige, mas sempre recuava tomada do sentimento entranhado, que a maternidade gera para escravizar a mulher e torná-la inferior ao homem no amor. Filipe compreendia e se confrangia na compaixão. E tudo para eles tornava-se triste, indefinido e obscuro. Era nestas trevas dolorosas que a ânsia de suprimir Radagasio se apoderava cada vez mais de Thereza. Quando ela, na doce calma da volúpia, na intimidade bem-aventurada, ousou muito firme revelar a Filipe o seu propósito libertador, ele, pasmo da resolução assassina de Thereza, esforçou-se por protegê-la da tentação infernal e, por entre beijos de fogo e de ternura, procurou arrancar daquela alma transcendente a alucinação do crime. Thereza espantou-se da reprovação de Filipe. O que ele achava monstruoso, ela julgava justo. Porque só ela sofrera, toda a sua vida, o martírio inominável de ser a mulher do homem funesto e ridículo, porque só ela sentira na sua carne a infâmia de ter pertencido àquele maldito, ignóbil e asqueroso. Porque ele era o empecilho, o estorvo da felicidade do amor que a transfigurava, não era humano, não era justo que por um Radagasio cessasse a alegria do universo e não se abrisse o paraíso. Esta lógica de Thereza emudeceu de admiração Filipe. Sentiu ele a imensidade do amor, mas também o conflito desesperado, em que Thereza se debatia. Era para conservar Lili, que Thereza resolvera matar Radagasio. E foi com uma piedade imensa que Filipe repeliu o sacrifício e revelou a Thereza a razão profunda e imperiosa do seu propósito. Thereza recebeu uma invasão luminosa no espírito, turvado pelo ódio, quando Filipe lhe mostrou que este terrível sacrifício de cometer o crime ela faria não pelo amor que os unia, mas pelo amor maternal. Thereza não precisaria eliminar Radagasio, se quisesse renunciar a Lili e desaparecer com Filipe para sempre. Para conservar Lili, que Radagasio não consentiria em lhe dar definitivamente, foi que ela pensou em matá-lo.

Esta claridade no espírito de Thereza a ofuscou. Abatida, dolorosa, a amante reconheceu não estar agindo pelo amor do seu amor e sim pelo sortilégio da maternidade. Acabrunhada, infeliz da sua inferioridade, Thereza chorou humildemente nos braços de Filipe.

O amor exaltava-se na situação insolúvel. Thereza não podia permanecer em casa, onde a existência era intolerável. Procurava estar sempre com Filipe. Na casa dos Vieiras tudo era desolação depois da prisão de Pedro, sempre detido. A doença de Jujú agravava-se em alucinações e desfalecimentos. O médico, que afinal chamaram, estava apreensivo. Naquele mundo infeliz a angústia de Thereza aumentava. Ritinha não podia acompanhá-la, presa aos cuidados pela doença do menino, de quem se fez transbordante enfermeira. Thereza notava que Manuel estava tomado por uma grande saudade de Monteiro. Faziam-lhe falta o entusiasmo, a penetração, as experiências do revolucionário erradio. Manuel refletia, cada vez mais, no que dele ouvira sobre as misérias do interior do Brasil, e confrontava estas misérias com as que testemunhava aqui e era, de miséria com miséria, que se formava o fundo doloroso da nação. Pelo ângulo da simpatia humana, Manuel se foi despindo dos seus preconceitos jurídicos e se impregnando de um ambiente mais vasto, sentimental e intelectual, germinado pelas ideias de Monteiro. O seu espírito abria-se para o comunismo com o mesmo ardor, com que o combatera. Nada disto interessava Thereza. Também Filipe se libertara dessas preocupações secundárias. Na magia do amor vive-se no absoluto.

Ainda assim os companheiros de Filipe não o deixavam totalmente. Vinham ao seu escritório, o acompanhavam na rua e era com dificuldades que Filipe se livrava deles, quando tinha de se encontrar com Thereza. Uma tarde na avenida, Filipe, seguido por Manuel e mais outros camaradas, foi interrompido por Laura Moraes. Ela postou-se, desenvolta e resoluta, diante de Filipe. Não lhe deu a mão. Segurou-o pelo braço.

— Não fuja, seu malcriado. Agora não o largo sem ajustarmos contas. A vontade que tenho é dar-lhe pancada.

Laura ria estridente, vitoriosa da sua beleza e da sua ousadia. Este atrevimento enervou Filipe. Os outros ficaram enleados.

— Vamos, explique-se diante de todos, continuou Laura. Porque você foge de mim? Tem medo? Oh! Covarde! Porque não cumpre o que prometeu? Ir ouvir os meus versos? Ande, responda... Está prisioneiro de alguém? Todo o mundo sabe... Fingido, hipócrita... Agora só o deixo, depois que me jurar que vae me ver.

A alusão a Thereza exasperou ainda mais Filipe, que, por um vestígio de respeito, queria ocultar, proteger o seu amor. Para se ver livre de Laura, prometeu covardemente ir vê-la.

— Sim, meu caro... A promessa está feita. Mas ela há de ser cumprida amanhã à tarde... Está com medo?...

Filipe, estimulado na sua vaidade, cede. Promete ir. Laura exige um juramento. Filipe sacrifica-se.

— Ah! Bravo. Isto agora é outra coisa. A palavra de Filipe Miranda é sagrada. Eu fico tão contente... Você não quer ir também, Manuel? E os senhores?

Compreenderam que era um convite forçado e desculparam-se recusando. Filipe ficou desamparado, confuso, estúpido.

Laura Moraes ainda os entreteve com ruidosa volubilidade. Disse-lhes que os pais lhe davam toda a liberdade para receber os seus amigos e que vivia muito independente. Apertou-lhes as mãos, sacudindo as pulseiras extravagantes e, arreganhando a boca grossa e vermelha, partiu na alegria.

Filipe ficou atormentado. Teve vergonha da sua fraqueza e o terror de ofender Thereza, no contato com aquela mulher impudente, aniquilava-o. Por que cedera? Na angústia, que o afligia, Filipe não podia discernir se a sua submissão fora determinada pelos impulsos da vaidade de se ver requestado por uma moça tão bonita, ou pelo orgulho do seu prestígio intelectual e ao mesmo tempo pela vergonha de comprometer Thereza, o pudor de exibir a sua paixão, recusando o convite. Os companheiros festejaram vulgarmente o seu sucesso.

Na certeza de que tudo isto era passageiro, insignificante e ainda um sacrifício à relatividade, em que se debatia o seu amor, Filipe foi à casa de Laura na tarde seguinte. Era no quarteirão dos arranha-céus e dos cinemas. Do solo elevavam-se musicalmente colunas de cimento armado e guindastes de ferro como torres. Subiam nos sons das serras que, cantando estrepitosamente, enterravam gostosas, devoradoras, os dentes no âmago carnudo das toras brancas de pinho. Reteniam as pancadas metálicas, agudas, ferinas. O ferro alegrava-se sobre o ferro, enquanto um canto chão se formava soturno das marteladas nas madeiras, das baixas vozes humanas, dos ruídos dos carros de cimento, trepando pelos guindastes para despejar a matéria cinzenta, concreta, que se precipitava tumultuosa dentro dos vácuos das formas. Tudo timbrava no espaço livre. Exaltação do movimento criador da multiplicidade sonora. Filipe foi envolvido pela magia musical, que dava encantação ao trabalho. E nesta abstração, subiu, no elevador, para o apartamento da família de Laura. Na sala ela estava de pé conversando com um homem muito alto, para quem levantava os olhos, quando viu Filipe. Deu um pulo e segurou as mãos do desejado, rindo, deslumbrada, sem poder falar. Filipe ficou atordoado. Já esquecido das sensações inefáveis, que as construções cantantes tinham gerado, achou aquele ambiente e aqueles personagens estranhos e hostis. Afinal Laura desatou a falar. Os seus gestos, as suas atitudes, mais do que as palavras, exprimiam a linguagem secreta, voluptuosa, que vinha dos seus desejos profundos. O homem, que a visitava, era um pintor russo. Sentado, as suas pernas magríssimas empinavam-se para o alto. Sorria sarcástico fechando os olhos cinzentos, mongólicos, enrugando a pele branca, exangue, da cara longa, desbarbada. Com as suas mãos compridas e tristes estava sempre a alisar os cabelos ralos e desbotados, que não podiam cobrir todo o vasto crânio tártaro.

Laura disse a Filipe o que devia àquele mestre. Era a sua volta às fontes primitivas da sensibilidade e da formação racial. O seu esforço era aplicar a fórmula despojada, antiliterária, à poesia brasileira. Esta lição lhe dera o mestre que ali estava, que, pintor, influía poderosamente na música e na poesia ultramoderna. Depois dessas explicações, Laura passou a ler os seus poemas. Filipe sentiu neles unicamente habilidade técnica. Laura seria capaz de todas as virtuosidades artísticas. Era a fatalidade do espírito feminino, destituído da força criadora, pronto para a perpétua fecundação. Aqueles versos eram reflexos das lições recebidas. Faltava-lhes originalidade, seiva. Via-se o esforço para produzir humanamente e tudo resultava artificial e aplicado. A outra conclusão de Filipe era a tristeza dessa poesia, que aspira a exprimir o real brasileiro. Rompeu-se uma discussão entre eles sobre o que era a realidade brasileira. Cada um a compreendia segundo o seu temperamento. Nenhum dos três podia, em uma fórmula objetiva, definir o que era vago, impreciso, indefinível.

— A realidade, ou pelo menos toda a realidade não é isto, Laura, que você pretende nos seus poemas, afirmava Filipe. O Brasil não é esta coisa perpetuamente triste, informe, miserável, que você julga ser a expressão essencial. Há outro Brasil, o da energia, da aspiração, da força criadora. Este é o que nos sobreviverá.

— Lá vem você, Filipe, com a sua ideologia do dinamismo, com o seu optimismo bem-aventurado, com a sua fatigante alegria, gritou Laura, acentuando o sarcasmo. O Brasil, que você imagina, não existe. Nós descobrimos outro Brasil, o ingênuo, o primitivo, que está atrapalhado nestas complicadas civilizações europeias. Eliminemos tudo isto e libertemos o Brasil, que deve recomeçar a sua existência para fazê-la mais natural, menos literata e artificial. Nada de máquinas, nada de escolas, nada de academias, nada de política, tudo isto faz esquecer a realidade. A selvageria, a barbaria, a miséria, a ingenuidade, eis a realidade brasileira... Ah! Se pudéssemos voltar à taba, aos índios nus, livres, ou aos negros sem a mestiçagem infame dos europeus.

— Seríamos nós, que estaríamos aqui? perguntou Filipe a rir.

O Russo interveio:

— No Brasil só o negro e o índio são interessantes. Tudo o que é branco é artificial e postiço. É literatura e não realidade. Esta é bárbara, rudimentar. A arte, que a exprimir, deve ser primitiva e rude. O menor vestígio de cultura a desnacionaliza. O que este ambiente devia suscitar seriam escritores, poetas, artistas, em que o sangue negro ou indígena predominasse. Só estes estariam equilibrados neste ambiente bárbaro. É necessária a gota de sangue negro ou índio para ser o artista desta selvageria. Escritores e artistas cultos, que fazem propositalmente arte primitiva, fazem literatura. Sentem-se o esforço e a intenção que traem o artifício. Um verso de um poeta mestiço, inculto, tem mais poesia, mais naturalidade.

Filipe replicou refutando esta deformação do Brasil. Realidade brasileira? Que significa isto? Ninguém sabe. É uma fórmula mística, uma expressão da cabala moderna. Há mil realidades brasileiras, a realidade da cultura, a realidade bárbara, a realidade dos brancos, a dos negros, a dos nacionais e a dos próprios estrangeiros, tudo realidade brasileira, na sua naturalidade, nos seus desejos e realizações. O Brasil não pode ser visto, sentido, interpretado da mesma forma pelos vários espíritos. Um homem branco não o interpreta, como um negro ou um mestiço. A arte de ambos tem de ser fatalmente diversa e oposta.

O Russo insistiu:

— Elimine-se tudo o que não for bárbaro para que o Brasil seja verdadeiramente Brasil. Nestes versos, que ouvimos, além do esforço para exprimir a singeleza natural da mentalidade primitiva, há a sátira contra tudo o que é civilização, que nesta terra selvagem está deslocada. Isto de arranha-céus, automóveis, aviões, todo o mecanismo urbano, conforto, livros, cultura, todo o aparelhamento da indústria, é extravagante, inaplicável. É preciso manter a barbaria, que caracteriza o Brasil. No dia, em que ele deixar de ser selvagem, bárbaro, mesmo caboclo, mameluco, cafuzo, não será mais Brasil. Olhe, renunciem à cultura, integrem-se na selvageria. Já que não podem voltar ao estado de pureza selvagem, ao menos conservem o que há de tosco, bárbaro e que é a originalidade brasileira. Estive nos sertões de Minas e da Bahia. Que maravilha, que êxtase! É preciso que o sertão domine tudo. A marcha do sertão para eliminar o cosmopolitismo nefasto do litoral e extinguir toda esta vã literatura, que falsifica o Brasil, eis a salvação. Que delícia a vida do sertanejo, vida de vaqueiro, gado, seca, fome, enchentes, samba, cocos, casas de sapê, cerrados, clavinotes, facas de ponta. E que doenças fantásticas! Estranhas maravilhas. Vá ao meu atelier. Verá os meus quadros sertanejos, as caras monstruosas de papos estupendos, barbeiros gigantescos, majestáticos, pernas beribéricas, a elefantíase sublime, os ventres hidrópicos, estourando ao sol, ou as magrezas espectrais, famélicas, de olhos funéreos, os queixos desdentados, batendo o frio tenebroso das maleitas imorredouras. Que magia, que alucinação... Tudo eu recolhi e fixei antes que tudo desapareça... Este é o meu Brasil, o que me fascinou e me deu a alegria artística, que a Rússia, com as suas misérias, suas pestes, suas fomes, suas torturas, não me causou... Não o perturbem com a civilização, com a ciência, com a cultura...

Laura Moraes, subjugada pela visão do seu mestre, olhava Filipe, desafiando-o a que o refutasse. Filipe desdenhou insistir na sua divergência. O seu ímpeto era esganar o Russo infame. Resolveu partir, deixá-los neste desvario literário, que se imagina realidade brasileira. Foi o Russo, que os deixou, rindo de olhos fechados em uma serie de caretas tártaras. Laura, quando se viu só com Filipe, tratou de agradá-lo para distraí-lo da discussão, em que acabou mudo. Sentiu nesse silêncio um sinal de irritação. Na mobilidade das impressões, Laura ficou com ódio do mestre, que lhe estragara aquele encontro com Filipe. Desenvolveu a sua amabilidade, fazendo-se pequena, infantil e reverente na admiração por ele. Levou-o ao balcão, que dava para a baía. Na claridade dir-se-ia que ela era feita de ar, luz e água, tal era a transparência da pele, dos olhos, da boca, dos braços, das mãos e de todo o seu corpo, ligeiramente vestido de roupas leves, coloridas, luminosas. Na faceirice dos movimentos, com que comentava o que viam, abaixou a cabeça sob os olhos de Filipe, que recebia, no aroma ardente, lampejos de ondas douradas. Esta apresentação foi muito violenta e irritou a sensibilidade de Filipe. Os seus sentidos estavam intensamente impregnados da cor morena, dos cabelos escuros, do aroma de âmbar, da voz cálida, da meiguice e da graça de Thereza e o contraste de tudo isto, que era Laura Moraes, exacerbou a reação de Filipe. A esta retração sensorial seguiu-se o pejo, o desespero de estar ali faltando à Thereza, o que o acabrunhou sem dar-lhe força para partir. A covardia física acompanhava a depressão, em que sucumbira e já o suor frio o inundava, como se naquela altura a vertigem o fosse aniquilar. Laura prosseguia na sedução, exaltada pelos desejos e pela vaidade. Não percebia a angústia e a repulsa de Filipe, calculando que o silêncio nele era sinal da admiração e da violência sexual, que se concentra para agir. Filipe não prestava atenção ao que ela dizia. Atordoado, as palavras lhe chegavam aglomeradas com os sons da rua, os klaxons, os alto-falantes, as músicas estrepitosas ou soturnas das construções. Os seus olhos confusos não se interessavam em discriminar as coisas novas ou eternas, que eram a paisagem urbana, a baía e os morros. Tudo lhe era indiferente. No seu acabrunhamento, só via Thereza ofendida, magoada por ele. Reagiu enfim e pode sair do torpor, em que se afundara. Disse a Laura que ia partir. Ela espantou-se muito surpresa. Deixaram o balcão e Laura ainda quis prender Filipe, procurando entretê-lo com os objetos artísticos do seu apartamento, sabendo que em Filipe o senso estético era profundo e dominador. Laura ignorava que nele o amor era mais forte do que a arte. Filipe não se deteve em examinar os móveis sem escultura, as porcelanas pueris, os metais simples, os estofos já banhados da luz das lâmpadas, que criava o noturno, desprovido de mistério. Laura desanimou e, enfurecida, atirou-se sobre o sofá, que era a sua cama de falsa artista. Martirizando as almofadas, sacudindo as pernas descompostas, ria encarando duramente Filipe:

— Está direito... Tola fui eu em lhe pedir que me viesse ver. Só tive grosserias da sua parte. Para você eu sou uma idiota, que se finge de poeta, uma sem-vergonha que se oferece... Mas pensa que eu não sei, porque você me trata mal?

Filipe para evitar qualquer alusão à Thereza, disse rápido, adeus a Laura. Antes que desaparecesse, ainda ouviu como um latido:

— Canalha, fica-te com a tua escuridão. Bom proveito...

Depois da noite miserável, como jamais passara, esperava Filipe, no dia seguinte, Thereza, no Cosme Velho para o passeio das manhãs domingueiras. Ela não tardou no seu automóvel, que subia a rua alegremente reluzindo os metais ao sol e cortando as sombras das árvores. Os sentidos sempre ativos e agudos de Thereza perceberam uma mudança em Filipe. Ele tomou o automóvel ao lado de Thereza. Ela mal podia manobrar. No meio dos arrancos da máquina interrogava ansiosa, brusca:

— Que há? Fala... Estás enigmático? Aconteceu alguma coisa contra nós? Responde... Não temo nada... Morrer pelo nosso amor é uma glória...

Estas palavras, resolutas e exaltadas, ainda mais afligiam Filipe. A paixão de Thereza afirmava-se soberana e vivaz. E foi a este puro e irreal sentimento, que ele ofendera. Filipe assegurou que nada lhes acontecera, para aumentar a angústia, em que se debatiam. Era unicamente esta mesma angustia, que lhe causava a tristeza, em que às vezes ela o surpreendia. Thereza não ficou tranquila e em todo o caminho voltava insistente a reclamar mais alegria, mais vivacidade, mais clareza de Filipe. Não olhavam o que iam vendo e nem escutavam o que ouviam, até que maquinalmente chegaram à Quinta da Boa Vista. Depois de algumas voltas, Thereza estacou o carro diante do tanque dos nenúfares. A quietude da água, a sonolência das plantas, que surgiam do fundo para espiar o sol e expandir flores, as densas sombras, que baixavam suavemente das velhas árvores maternais, impuseram-lhes silêncio. Pisaram o gramado escuro com cautela e foram, subjugados de respeito por aquele repouso, sentar-se em um banco. Não podiam falar. Mas bem conchegados impregnavam-se dos fluidos dos desejos e acariciavam-se com beijos nas mãos, nos olhos, nas bocas. Suspiravam, arfavam, ardiam, sorriam transfigurados. Thereza começou a sentir no abandono de Filipe uma angústia oculta, uma tristeza diferente da sua tristeza. Havia uma brecha na unidade, que os fundia e por aí se escapava o estranho desespero de Filipe. Foi com profunda meiguice e dolorosa curiosidade, que ela voltou a interrogá-lo. Filipe preferia que Thereza não lhe falasse. Era penoso responder-lhe, era impossível mentir-lhe. Thereza exercia sobre ele a fascinação da verdade. Ficou silencioso. Apenas em um sorriso triste morria a confissão, sem força de exprimir-se, clara e leal. Thereza insistia já persuadida de que na realidade havia alguma coisa de grave, que Filipe não ousava dizer-lhe. E como nada de preciso obtinha, entrou a entristecer. Foi então que Filipe não teve mais ânimo para esconder a sua atribulação. A dor, em que entrara Thereza, aumentava a sua tortura. Ele não podia vê-la triste sem sucumbir de agonia. Veio-lhe a coragem de falar e ele tomou-lhe a mão com mais exasperado aperto e falou:

— Ah! Minha santa adorada, entre nós não deve haver mistérios e silêncios... Não duvides do meu amor imenso, imortal...

Thereza, que estava prostrada, ergueu o corpo e fitou inquieta o amante.

Filipe continuou:

— Sim... Tu sabes o que é o meu amor, o nosso amor. Nada o pode atingir... Ele plana sobre todas as coisas.

Nada o pode macular, ele é sublime e a sua pureza incomparável...

Thereza arfava, os seus olhos extáticos cresciam para tragar Filipe.

Ele prosseguia:

— Devo dizer-te tudo, tudo o que se passa comigo. A minha vida te pertence. É o dom da minha paixão...

Thereza sacudiu a mão de Filipe, que estava na sua mão e ordenou vibrante:

— Fala... Quero saber tudo... Fala, meu amor... Que foi? Oh! Eu adivinhava... Fala...

Filipe desequilibrou-se com a voz imperiosa, metálica, de Thereza. Veio-lhe uma onda de orgulho, que lhe impôs dominar-se e dominar. Ninguém o comandava sem sofrer.

— Nada de grave. Sossega. Ontem à tarde estive em casa de Laura Moraes... disse resoluto, forçando o sorriso.

Thereza soltou-lhe a mão e deu um salto, pondo-se em pé.

— Miserável...

Os seus olhos vidrados, mais negros, fulminavam os olhos de Filipe, que se abateram. O rosto ficou congesto e toda a pele trigueira encheu-se de sangue roxo. O corpo reteso moveu-se no impulso da repulsa, um calor descomunal o queimava e acelerava os seus gestos de desespero. Thereza caminhava sob as árvores sem parar e sem destino. Filipe a seguia, murmurando nervosamente o seu amor, procurando retê-la. Thereza repelia as mãos, que a tocavam, mas queria que elas não a largassem e a amparassem no abismo, em que se sentia despejada. Marchava violenta, alucinada, num redemoinho de visões aterradoras. Filipe revoltou-se com o delírio de Thereza e agarrando-a forte, a fez parar.

— Tu és louca?... Deixa de tolice... Sou teu, gloriosamente teu. Não fiz nada de mal e eu te juro que foi uma lição, que recebi e dessa estúpida visita saí com ódio e nojo.

Thereza não replicou. Lutava por se desembaraçar da mão firme, que a retinha e inconsciente se ia entregando ao dominador. Filipe a foi levando para um banco. Sentou-a, agarrando-a ao seu peito e Thereza desatou a chorar. Filipe a consolava, a beijava, a animava. Defendeu-se, explicou-se. Pouco a pouco, a sua energia foi amolecendo e sentindo esta fraqueza, Thereza explodiu, alucinada pelo ódio. E falou exasperada:

— Ah!... Tu pensas que não sou capaz de te fazer mal... Estás muito enganado... Agora mudarei de vida, irei a toda a parte, festas, bailes, jantares, não tem mal nenhum, não é assim? E quero ir à casa dessa Laura, que tu tanto admiras. Também sou artista, sou a tua companheira, a tua discípula... Vou interessar-me pela arte, receberei artistas, poetas, todos os teus amigos... Oh! Não tem mal nenhum...

Filipe sorria raivoso. A atitude de vingança, de desforra, que Thereza prometia tomar, o irritava e o seu ímpeto era batê-la, reduzi-la. Mas ela riu irônica e esta alegria de ter feito mal, iluminou-lhe os olhos, apagou no rosto as marcas violentas da cólera, a beleza espraiou-se luminosa e Filipe, fascinado, mordeu-lhe a boca num beijo longo, inefável. Da instantânea volúpia, que a arrebatou, Thereza saiu alquebrada, vencida e triste. Pegou molemente a mão de Filipe, contemplou os seus olhos e suspirou fundamente.

— Filipe, Filipe! Sofro muito contigo... Pela arte, pela tua vaidade, tu me abandonas... Foi-se para sempre a minha alegria. Tu não me podes dar a paz, a inquebrantável harmonia no amor... Eu devia ser indiferente e abandonar-te ao teu entusiasmo desenfreado. Não posso e faço mal. Eu esperava que deixasses tudo para não me abandonares. Não renunciaste à tua ação nesses desgraçados movimentos artísticos e político. Tu imaginas que nisto está a tua glória. Inconsciente. Que pena tenho de ti, meu louco adorado. Um dia entrarás na consciência e será tarde. O mal está feito. Foi-se a nossa alegria...

Filipe ficou atordoado com este queixume em que, na exageração, se sentia a aspereza da verdade. Deu razão à amante e julgou inútil prosseguir na sua defesa. Beijava-lhe as mãos, contrito, humilhado. Thereza apiedou-se. Beijou-o na testa, que estava gelada. Não podiam sair do silêncio. O sol abrasou-os. Thereza olhou o relógio e levantou-se. Filipe seguiu-a. Entraram no automóvel e voltaram para a cidade. Sempre calados, os pensamentos formavam-se e deformavam-se em uma celeridade assombrosa, sem o peso das palavras para os fixar e modelar. No largo da Glória, Thereza parou o carro e em silêncio, sufocando um suspiro, entregou a boca a Filipe. Ele, desamparado, saltou e esperou que o automóvel desaparecesse.

A casa pareceu a Thereza o espaço maldito a que ela voltava, depois de o ter perdido e esquecido. Naquela hora de angústia, que acabara de viver, transpusera-se para um mundo ainda desconhecido, em que a sua unidade com Filipe era infrangível e ininterrupta. No desvario do ciúme, a paixão impunha a solução de tudo abandonar para não perder o amante. A imaginação realizava o paraíso desejado. A volta à casa foi o desencantamento. Ali encontrou tudo a que tinha renunciado, o quadro cotidiano, os morros, a baía, as palmeiras, o marido, a filha, a negra. Tudo longínquo, tudo espectral. Thereza não percebia se era ela, a sua pessoa real, que estava entre fantasmas, ou se era o seu fantasma, que surgia naquele mundo real. Exausta, sem forças para coordenar os pensamentos, sem ímpeto de revolta, esmagada, triturada, Thereza não disse uma palavra a ninguém. Agia como uma sonâmbula, repetindo maquinalmente os movimentos habituais. Almoçou sozinha, como se acostumara depois da ruptura com Radagasio. Ele saíra sem lhe falar, de frack, de chapéu cinzento, binóculo a tiracolo, luvas amarelas. O sportsman ia às corridas, suando, esbaforido, dentro do automóvel fechado, com medo do vento. Thereza veio ao seu mirante, onde foi impregnada da brisa, do canto das cigarras, dos aromas e da sonolência, que o calor filtrava magneticamente sobre o universo. Agora, naquele recanto, onde cismara as suas tristezas, os seus desesperos antigos, em que se exaltara na alegria do amor supremo e na esperança, ela pensava a sua dor. Filipe lhe faltara, arrastado pela ansiedade, intrínseca à sua natureza de criador. Por mais que o amor o absorvesse, restava-lhe sempre a força, que necessita de expansão e domínio. Era esta atividade, que Thereza percebia, como a temerosa adversária da sua beatitude. E na sua meditação, Thereza reconheceu-se culpada do mal, que sofrera. A ternura da amante absolvia a culpa do adorado. Era ela, que estava em falta com o seu grande amor. Continuavam naquela posição, expostos a tantos perigos e tristezas, pela sua covardia. Não tivera ânimo de renunciar à filha e mantinha-se na situação equívoca de esperar do acaso a solução, que não viria nunca. O receio de perder a intensidade da paixão de Filipe, o pavor de o ver de novo arrastado às seduções da política e da literatura, o assalto, que sempre lhe fariam outras mulheres, deu-lhe a resolução firme e absoluta de livrar-se de tudo o que a prendia e ir viver com Filipe exclusivamente. Ela iria para ele, purificada de todas as torpezas. Entrariam, gloriosos, no paraíso do amor imortal. Thereza assim resolvia e saía da prostração para a bem-aventurança de uma alegria transcendente, em que toda ela se transfigurava.

Vagamente, os seus olhos viam Lili, que corria na sua direção. Thereza não acolhe a filha e continua na sua cisma. A menina insiste e a mãe a repele, como uma coisa aborrecida, a causa de todo o seu martírio. Lili, espantada, entristece. A negra, que espreitava, corre para buscá-la. Segura a menina acabrunhada, e quando se afastou de Thereza foi vociferando para a criança a sua satisfação.

— Arre, bem feito, ela te despreza e não quer saber mais de ninguém está com feitiço no corpo. Também tu és muito sem vergonha... Eu não te disse que tu não fosse mais para junto dela... Safadinha... Tu tens a quem puxar...

Lili abriu a boca em um berreiro destemperado, acompanhada dos perus e dos canários. A negra ergueu-a e pôs-se a correr, carregando-a para o fundo da chácara. Thereza deu um salto, arrebatou a filha, empurrou a negra, que caiu sobre o gramado com as pernas para o ar, obscena. Thereza beijou doidamente Lili e agasalhou-a no colo, pensando em Filipe e oferecendo-lhe a maravilha da sua desencarnação do amor maternal.

Filipe recebeu no dia seguinte a segurança desta libertação nas palavras ardentes de Thereza:

— Estou pronta, Filipe. Nada mais me prende. Quero viver contigo, sozinha contigo, que és toda a minha única vida... Meu amor, eu te faço sofrer muito... Mas agora será a beleza, a magia eterna, o nosso paraíso...

E explicou-lhe toda a sua angústia de o sentir perseguido pelas outras mulheres, o desespero de o ver sempre longe delia. Ou a libertação imediata ou a morte. Filipe, deslumbrado, apertou nos braços a pobre adorada e a beijou no entusiasmo da paixão vitoriosa.

— Minha divina, tu és única, e, se fosse possível, a minha adoração aumentaria... respondeu com firmeza. Compreendo tudo... Esperemos que o tempo fortifique a tua sublime resolução.

— Para que esperar, meu amor? perguntava ansiosa Thereza. Não compreendo...

— Minha Thereza da minha eterna paixão... Um dia tudo se consumará. Tu virás a mim, serena, soberana, sem ódios, sem desesperos, eu te sentirei desmaterializada, espiritualizada na paixão. Então, nesse instante incomparável, sublime, entraremos em nosso paraíso, sem o menor vestígio de tristeza, de arrependimento... Esperemos. Neste momento tu ainda não estás livre. Tu ages pelo ciúme, pelo ódio, pelo sofrimento de me veres longe de ti... Ah! Meu bem idolatrado, o meu ímpeto é te tomar já, para sempre, e desaparecer contigo longe de todas estas misérias. Mas eu receio por ti, pela perpétua alegria do nosso amor... Se no nosso paraíso fores um instante, um fugaz instante, atormentada pela saudade? E que saudade a saudade da tua filha!... Imaginar esta tortura para o meu amor, que vive no absoluto, que é infinito, eterno, imaculado, livre... Que martírio!...

Thereza repeliu vivamente toda esta desconfiança de Filipe e reafirmou, enérgica, a sua resolução e a liberdade, com que a tomara.

Filipe ficou maravilhado. Sentiu que tudo ia se cumprir para a maior glória do amor.

D. Calú dormia, quando, pela madrugada, foi despertada por um grito estridente de Jujú. Correu ao quarto do filho, que era junto ao seu. Jujú debatia-se na cama e não sossegava com a cabeça, que apertava com as mãos. D. Calú verificou que a febre aumentara. Aterrada, chamou o marido e abriu a janela. Os dois, atarantados, postaram-se diante da cama, ambos em longas camisolas brancas, que a luz ainda verde da madrugada tornava mais lívidas. As mãos de Jujú, quando largavam a cabeça em fogo, crispavam-se e os braços retorciam-se, enquanto nos olhos secos, vidrados, as pupilas se dilatavam e não se contraíam. De vez em quando o grito fino, doloroso, saía da garganta estrangulada. Este apito macabro apavorava D. Calú e Vieira. Permaneciam estarrecidos, incapazes de agir. D. Calú murmurava invocações aos santos da sua devoção, estropiadas, sem nexo. No cérebro de Vieira emaranhavam-se noções confusas de espiritismo, de que a possessão de Jujú era um testemunho material. E a criança sofria horrivelmente, batendo-se, contorcendo-se ou prostrada, hirta, devorada pela febre. Um dos gritos chegou aos ouvidos finos de Ritinha e acordou-a. Os seus sentidos agudos a orientaram para o quarto dos tios. Quando D. Calú a sentiu ao seu lado, agarrou-se a ela chorando. Ritinha segurou em Jujú experimentando acalmá-lo com palavras da sua meiga piedade. Era inútil. O menino não atendia e continuava angustiado, sem sossego. Ritinha propôs que chamassem o médico. Mas era muito cedo e aqueles tímidos receavam acordá-lo. Ela correu a chamar Manuel e voltou para junto de Jujú. A presença de Ritinha tirou D. Calú e Aristides da apatia. Quando Manuel apareceu, Aristides já estava meio vestido e D. Calú se cobrira com um roupão. Manuel viu a gravidade da agonia de Jujú e compreendeu que o mal estava na cabeça. Não havia gelo em casa. Manuel e Ritinha começaram a aplicar compressas com a água mais fria, que puderam obter das torneiras. Manuel telefonou ao médico. A casa alvoroçou-se. Os criados vinham espiar no quarto do menino. Muito devagar, Andreza, embrulhada num xale escuro, sentou-se no chão, aos pés da cama e rezou, esquecida de todos. Araci tremia, acovardada; não ousava fazer nada pelo doente e mal podia permanecer no quarto. Era Ritinha, que fazia tudo para aliviar Jujú. O sol entrava invasor pelo quarto, Jujú piorava vomitando muito, e o médico sem vir. Manuel telefonou novamente. Prometeram que o doutor viria sem demora. O grito meningítico amiudava-se. Pavor. Lutavam contra os espasmos, contra os vômitos, contra a febre, mas sem ciência, sem critério, desesperados com o abandono do médico. Afinal este chegou. Manuel o recebeu rispidamente. O médico, com o infalível sorriso profissional, mentiu algumas desculpas para o seu relaxamento. Manuel foi levando-o para junto de Jujú. O médico, sentou-se na cama e pegou no pulso do doente puxando-lhe o braço reteso. A febre era enorme e o pulso arrítmico, rápido, louco, miudinho. Examinou as pupilas. Veio um vômito que Ritinha limpou. Jujú sempre se debatendo, ora procurando agarrar com a mão uma mosca imaginaria, ora segurando a cabeça, os olhos arregalados e às vezes estrábicos. O médico não escondeu o seu desapontamento. Começou a dar ordens precisas, secas. Gelo (Ritinha foi buscar correndo), escuro, silêncio. O quarto ficou na sombra. O médico saiu seguido de Vieira e Manuel. Na sala de jantar fitou os dois homens, que o olhavam inquietos

— É. Declarou-se a meningite... Muito grave. A intoxicação bacilar fez explosão. Quando tomei conta do seu tratamento já era muito tarde. O pequeno teve um choque forte, houve uma depressão profunda, a intoxicação sobreveio, apoderou-se do organismo... Depois é um menino nervoso, inteligente. O cérebro é que paga. Bacilos miseráveis...

— Mas, doutor, há ainda recursos, não?... Faça tudo... insistiu Manuel, cortando a dissertação inoportuna.

— Está claro... Olhe... Vou tentar além do capacete de gelo, umas bichas... Corra a farmácia ou melhor telefone em meu nome para que tragam já... Eu mesmo aplico... Olhe, dê-me o telefone e eu receito daqui mesmo, porque é urgente um purgativo. Calomelano, o velho calomel... Intoxicação, infecção.

O médico ia descambando para o discurso científico. Manuel o foi empurrando para o telefone. Vieira, no plano astral, os seguia, apatetado. Os gritos de Jujú vibravam estridentes, na calmaria moribunda.

O médico tinha a dedicação dos jovens clínicos. Era amigo de Filipe, da mesma geração. Cheio do ardor da investigação, praticara em laboratórios, fora interno de pediatria e, por sua vez, muito intoxicado de pedantismo doutrinário. Aplicou ele mesmo todos os recursos, que prescrevera, as bichas, o purgativo, o ininterrupto capacete de gelo. Ritinha desvelava-se, ágil, firme, atenta. As qualidades primitivas da matuta maranhense raiavam na desolação geral. D. Calú choramingava, inútil, abraçando-se a cada momento com Vieira e com a filha. Andreza permanecia silente, sentada no chão, batendo com a cabeça preta o compasso das rezas mudas. Manuel esforçava-se por manter-se forte. Comandava tudo e mobilizou Araci para se ocupar da casa, pois a mãe estava aniquilada. Ao meio dia, ela presidiu o almoço, pondo ao seu lado o médico, que procurava distrair a tristeza familiar num falatório, seguido somente por Araci. Ela achava graça nas tolices ditas com afetação para os alegrar e disparou a rir, quando o doutor discutiu com Vieira, que espertou para sustentar os três princípios capitais da sua vida, o espiritismo, o vegetarianismo e a temperança.

Depois do almoço, que Manuel abreviou, farto da tagarelice do médico, voltaram ao quarto escuro do doente. Nenhuma melhora. A febre persistia muito alta, o pulso começava a cair na lentidão alarmante, a meningite prosseguia na sua devastação. O médico recomendou a Ritinha vários cuidados e retirou-se para socorrer outros clientes. A tarde foi passando dolorosamente na funda apreensão da catástrofe. A ausência do médico aumentava o pavor. Araci para se proteger naquela angústia, pôs-se a dar alarma à vizinhança. Mandou prevenir D. Genoca e Thereza. Acompanhada da filha, D. Genoca, pressurosa de novidade, veio correndo, muito pintada e sem chapéu. O seu reumatismo desaparecera por encanto. Logo que viu Araci, atirou-se-lhe nos braços, exclamando, convulsa de choro:

— Ah! Minha filha, que desgraça. Pobre Jujú. Sejam fortes. Eu sei o que é isto. Tenho assistido a muita morte... Coitada de sua mãe... Onde está ela?...

Sem cerimônia, foi se metendo pelo quarto do menino e rompendo a escuridão descobriu D. Calú, acabrunhada em uma bojuda cadeira. Agarrou-se a ela chorando, soluçando. Assim estimulados, choraram todos copiosamente no silêncio e foi D. Genoca, que primeiro suspendeu o pranto, para espiar Jujú. Vendo-o a se debater, ela sacudia a cabeça com desespero e engolia os soluços. Quando veio um grito dilacerante do doentinho, ela deu um pulo para trás, de medo, e caiu no colo de D. Calú.

Mais tarde chegou Thereza. Os seus olhos estavam secos e assombrados. A sua marcha era elástica. As mãos quentes apertaram as mãos de Manuel. Por ele teve a explicação do desesperado desfecho da moléstia do seu menino. Manuel levou-a ao quarto do agonizante. Thereza ajoelhou-se junto a cabeça de Jujú e o beijou na face em um longo beijo, em que lhe dera o fluido da sua infinita ternura. Com as mãos ardentes agasalhou-lhe a cabecinha gelada e lhe disse muito baixinho palavras da doçura transcendente do seu amor. Jujú olhou-a lá do fundo das trevas, o seu semblante serenou extático, angélico, e Thereza imaginou que ele lhe sorrira. Sucedeu a agonia, que interrompeu o maravilhoso. Thereza entrou a ajudar Ritinha nos desvelos pelo doente.

Estava anoitecendo, quando o médico voltou. Veio com Filipe. O médico entrou no quarto e Thereza viu Filipe em pé na porta ao lado de Manuel. Levantou-se e dirigiu-se de mansinho para junto dele e foram para a sala de jantar. Araci recebia os curiosos. Era gente da vizinhança e também pessoas de longe, que ela convocara. Mulheres de várias idades e diversos volumes. A conversa desprendia-se da catástrofe e espraiava-se vulgarmente para se interromper, ao chegar uma pessoa nova, que obrigava a volta às lamentações. Thereza e Filipe isolaram-se em uma janela sobre a baía, que toda colorida entrava faustosamente na noite. As mãos pendentes para fora apertavam-se. Filipe sentia o choque doloroso de Thereza, vendo morrer uma criança. Até a revelação do amor, ela fora unicamente mãe. O instinto profundo estava sempre alerta no interesse pela infância e o seu carinho extremado por Jujú era uma modalidade do amor maternal. A morte de Jujú viria renovar, exaltar em Thereza o amor pela filha? Este enigma torturava Filipe.

Na cisma de Thereza repassava uma saudade risonha e dolorosa de Jujú. Ela o via nos primeiros instantes da sua aparição em sua triste e solitária existência. Era o menino sonhador, seu companheiro do tédio, que a divertia com os carinhos violentos e as alucinações maravilhosas. Era como o embrião, o resumo, a concentração do amor de homem, que a desejava, a transfigurava. Jujú fora a anunciação de Filipe. E Jujú era a inconsciência, que nunca lhe fizera mal. E Filipe lhe fizera sofrer... Jujú morrera desde o instante, em que sentiu que ela pertencia a Filipe. O seu instinto de mulher sabia este mistério, de todos nunca imaginado. Jujú desaparecia para se completar mais definitivamente a sua unidade com Filipe. E com Jujú morria tudo que fora o mundo, em que ela esperara Filipe. E os olhos felizes de Thereza abismaram-se no adorado.

O médico chegou-se a eles. A situação era irremediável. Tudo se ia consumar dentro de poucas horas. Agora só restava atuar para diminuir os sofrimentos da agonia. Por isso, ele dera uma pequena injeção de luminal. Manuel aproximou-se. Filipe passou-lhe o braço pelos ombros, estreitando-o discretamente. Thereza apertou-lhe a mão. Manuel compreendeu. Os olhos vermelhos encheram-se de lágrimas. Os curiosos perceberam. Uns vieram agrupar-se em torno de Manuel e indagar do médico a última impressão. Outros cercaram Araci amparada pelo Léo e uma choradeira anunciou à casa toda a aparição da morte.

Como o desfecho demorava, restabeleceu-se a calmaria. As conversas sussurravam persistentes. Os curiosos vinham à porta do quarto do agonizante, agora toda aberta, olhavam e voltavam para comunicarem-se as inúteis observações. O médico abandonou Jujú e veio para o gabinete de Vieira, onde estavam silenciosos, Filipe, Thereza e Manuel. A sua situação lhe dava autoridade para falar alto e conversar à vontade. Indagou de Manuel do destino de Pedro. Soube que estava na Correção sem esperança de sair. Ainda não lhe tinham comunicado a agravação da moléstia de Jujú. Filipe disse que iria vê-lo logo muito cedo. O médico discorreu sobre política:

— Não pensem que reprovo a revolução, afirmou. Acho que deve vir. Mas não para restaurar liberdades perigosas e reforçar a democracia. Tudo isto já fez o seu tempo. Hoje o que o mundo exige é a concentração da autoridade: a ditadura que seja não somente temporal, mas também espiritual. Por que não? Bolchevismo ou fascismo, sempre ditadura. O Brasil precisa desta onipotência do Estado. O que temos é despotismo hipócrita. Viola-se a constituição, abafa-se a liberdade com medo, mentindo. Venha a revolução. Destrua-se tudo e surja o governo forte, livre nos seus movimentos, indiferente aos caducos direitos do homem. O indivíduo morreu para o bem do Estado.

Manuel quis interrompê-lo, impelido pelo demônio da dialética. Filipe obstou e pediu ao médico que explicasse como entendia a ditadura. Thereza achava a discussão deslocada e pretensiosa. O médico, estimulado e contente de expandir-se, prosseguiu:

— Perfeitamente. O primeiro dever do ditador no Brasil é salvar a raça. Nós caminhamos para a miséria física, para o descalabro de todas as energias vitais. Defendamos a raça, não a deixemos ser constantemente invadida por elementos nocivos, que chegam de toda a parte. A esta defesa para o exterior corresponda o saneamento interno. Todos estamos intoxicados. Proceda-se a uma desinfecção geral do país. Não é unicamente a desinfecção dos espaços, em que o homem vive, é a desinfecção do próprio homem. Já se pensa estabelecer o exame pré-nupcial. Muito bem. Mas não basta. É preciso a desintoxicação geral.

— A começar pelos governantes, observou Filipe.

— Naturalmente. Estes mais do que todos. Que perigo para um país ser governado por um homem tarado, irremediavelmente enfermo, infeccionado, intoxicado! Todos os problemas morais, toda a psicologia, resolvem-se pelas ereções internas. Aumentem-se ou diminuam-se estas, eis o caráter modificado. Os governantes devem ser submetidos a um tratamento especial. Ninguém poderá exercer um cargo público sem ser desintoxicado. Estabelecer um regime dietético para todos os funcionários, a começar pelo presidente, pelo ditador, para todos os senadores e deputados. Nada de álcool, de comezainas, de excessos. E uma cura especifica, seja qual for a reação do sangue. Será o único meio de os tornar melhores, mais equilibrados, mais justos, mais dignos de governar a nação.

— De acordo, concluiu sorrindo tristemente Filipe. Todos estes miseráveis estão intoxicados e daí o delírio em que estão a flagelar o Brasil. Institua-se a ditadura médica para o nosso bem. Desinfecção...

Às flores atordoavam com os seus aromas violentos os que, pela noite a dentro, velavam o corpo de Jujú. Para a sonolência, café, que serviçais voluntários distribuíam regaladamente. Mas nada apagava os traços do cansaço, que se marcavam em todas as caras. Os coloridos artificiais tomavam-se mais impudentes nos rostos inchados das mulheres, onde se dependuravam enormes olheiras roxas. Às fisionomias dos homens amarelados enegreciam-se com as barbas a crescer. Filipe, vendo Thereza também desfeita e acabrunhada, insistiu em arrancá-la daquela decomposição geral. Obrigou-a a recolher à casa e prometeu-lhe ir igualmente repousar. O fresco da rua acariciou-os e tomou mais doce o enlace, em que iam mansamente perdidos em suas cismas. No portão beijaram-se muito. Thereza derreou-se no ombro de Filipe, olhou-o cheia de dor e de esperança, chorou devagarinho, e, quando sossegou, ficou com a cabeça no braço do amante e desvairada, ardente, murmurou:

— Nós que temos o mesmo amor, teremos a mesma morte.

Vieira, transfigurado, via o espírito de Jujú, que lhe exprimia a sua alegria da desencarnação. D. Calú imaginava Jujú no céu como um anjo e chorava desesperada. O caixãozinho era vermelho e branco com galões dourados; as tampas estavam abertas. Jujú, vestido de São Luiz Gonzaga, o padroeiro dos seus estudos, tinha as mãozinhas rigidamente postas, com as unhas levemente pintadas. Sobre as faces amarelas um suave colorido róseo de carmim. Os olhos se fechavam sobre círculos escuros de azul violeta. Nos cabelos castanhos penteados e perfumados, um resplendor. As luzes das velas faziam faiscar gloriosamente todo o ouro e o hábito de seda branca e cetim vermelho do santinho e as flores, que misturavam os seus aromas ao cheiro da cera, prolongavam o encantamento das cores.

Em pé, junto à eça, Ritinha contemplava Jujú e por entre lágrimas lhe sorria ternamente, admirando-o naquela apoteose, que ela preparara, seguindo a tradição maranhense. À tarde, enterraram Jujú. A cova foi no canto das crianças. Lá estavam o Luiz, o Carlinhos, a Helena, o Joãozinho, nos seus túmulos, velados por anjinhos de pedra. Ritinha ficou contente, vendo que Jujú não estaria só. Quando os vivos os deixassem em paz, aqueles meninos o viriam buscar para brincar de pegador e dançar a cirandinha.

XV

Os choques, que Thereza e Filipe receberam, exaltaram a paixão. Absorviam-se longas horas, todos os dias, abrasados, sôfregos, na alegria do amor. Sentiam-se movidos por uma fatalidade benfazeja, que lhes dava o entusiasmo de viver, a força de esperar e a intensa confiança na libertação. A esta alegria transcendente, Thereza juntava a satisfação profunda, entranhada, de haver arrancado Filipe às outras mulheres e a tudo que não era unicamente ela. Devorava-o de carícias, queria absorvê-lo em seu corpo e o seu desespero era não poder realizar integralmente esta voracidade, que a alucinava. Na paixão exclusiva, o domínio e o paraíso de Thereza. Os seus olhos reluziam o prazer, que desafia. Filipe era a sua carne e o seu sangue. Para possuí-lo, os dentes mostravam-se em um riso de triunfo. Para defender a sua posse, mostravam-se em uma raiva de ataque e destruição. Nesta magia o ser de Filipe dilatava-se gloriosamente. Ele não era somente a posse de Thereza. Era o seu dominador. A sua energia, a sua inteligência, o seu encanto, o seu amor, transfiguravam Thereza na amante incomparável, que lhe dava o perpetuo deslumbramento. As forças do universo, nas suas expressões puras e absolutas, sublimavam-se no ser adorado. A luz, a cor, a vegetação, o som, o calor, o perfume, o sabor, dinamizavam-se na mulher e, nesta concentração da natureza, abismava-se a eternidade de Filipe.

Filipe separara-se das contingências familiares e sociais. Tudo o que não interessava ao seu amor deixara de existir para ele. Foi com grande esforço que sua mãe pode obrigá-lo a prestar atenção aos negócios da família. Há algum tempo, o tio de Filipe, Salvador Corrêa de Sá, resolvera aceitar uma proposta americana para a compra da fazenda em São Paulo, na qual D. Isabel e os filhos tinham a quarta parte. Ultimamente Salvador de Sá reclamara a presença de Filipe para a avaliação da propriedade e realização da venda. Os compradores eram esperados dos Estados Unidos a todo o momento. A chamada a esta realidade restrita atordoou Filipe. Era a separação de Thereza, o exílio do perpétuo encantamento, o desterro das carícias imortais, o desespero, a agonia. Filipe não teve ânimo de informar Thereza da dolorosa ameaça à bem-aventurança, em que esperavam a libertação, Recusou-se a partir. D. Isabel exasperou-se com a negligência do filho e entrou a exprobrá-lo e a responsabilizá-lo pelos prejuízos, que ela e Leonor sofreriam pelo abandono daquele, que devia ser o protetor, o amparo da família. Este debate rancoroso e implacável martirizava Filipe. A sua razão prática justificava as queixas e os desabafos da mãe, que se tornava feroz pela ambição de um grande negócio, que seria ainda melhor, se Filipe o acompanhasse de perto, zelando pelos interesses comuns. Rompendo as camadas de santidade de uma vida beata, os impulsos ancestrais da descendente de conquistadores mostravam toda a ganância e todo o império da raça. D. Isabel comandava Filipe e enfurecia-se por não ser obedecida. O seu instinto não se demorou em descobrir que os pretextos de negócios forenses, alegados pelo filho, eram tênues ou falsos e que somente o amor o retinha e impedia de cumprir o dever, e esse amor só podia ser por Thereza. Em D. Isabel a devota aliou-se à ambiciosa e aquele amor, que aceitara e abençoara como a emanação sublime do coração do filho, representava-se agora para ela como um nefando pecado. O ódio gerado pelo interesse e pelo egoísmo a fez sair da sua circunspecção. Nas discussões com Filipe, D. Isabel não tinha pejo de insultar Thereza. Nada podia ser mais deprimente para Filipe. Por algum tempo teve forças para esconder de Thereza a sua miseranda atribulação e a presença da adorada produzia o sortilégio do esquecimento dessas misérias. Mas um dia a pressão do tio fora violenta. Escrevera a irmã que os Americanos tinham chegado a São Paulo e esperavam Filipe para irem juntos à fazenda. O tio declarava que, se Filipe não comparecesse, ele não realizaria o negócio, pois tinha escrúpulos de o fazer, sem a presença e a fiscalização dos associados.

Armada desta carta, D. Isabel irrompeu no quarto de Filipe. À devota esbravejava.

— Leia e veja o crime, que você com a sua sem-vergonhice está cometendo. Por causa de um pecado infame, vamos ficar na miséria, deixamos de ganhar um dinheirão... Você não tem piedade de mim, nem da sua irmã. Pobre Leonor, tão santa, condenada a viver na pobreza por causa de um irmão relapso. Foi para isto, que lhe dei a vida? Foi para isto, que lhe criei com tanto sacrifício? E tudo por causa de uma descarada, que não tem religião e está no inferno da luxúria... Miseráveis... Porcos...

Filipe ficou acabrunhado e não respondeu. Aquilo era sua mãe. Monstro de cupidez, de ódio, de brutalidade.

Quando, à tarde, ele se encontrou com Thereza não teve mais força de ocultar o desespero. Thereza ouviu aterrada a narração desse drama mesquinho da cobiça e do rancor e viu a tragédia de mais este círculo infernal, que se abria para envolver e sufocar o seu amor. O espanto mudou-se rapidamente em cólera. A surda e inexplicável antipatia, que a separava de D. Isabel, justificava-se agora. Thereza vociferou a sua raiva contra a mãe de Filipe. Vendo-o calado, sem acompanhá-la no seu ódio, Thereza exprobrou-lhe, sarcástica, a reserva, que era pudor e que ela considerava covardia. Filipe deixou passar o insulto e os sarcasmos. Docemente, com grande firmeza, afirmou-lhe a sua revolta contra a cupidez e o despotismo da mãe e a resolução, em que estava de tudo abandonar para não se afastar da adorada, que era a sua vida e a sua paixão. Insistiu para que se libertassem naquele mesmo instante. A sinceridade e a decisão de Filipe comoveram Thereza, que amoleceu e se agarrou a ele, amparando-se. Pouco a pouco serenou. O instinto prático da mulher foi esclarecendo-a. Compreendeu que ainda não era o momento de desaparecerem. Deviam lutar para assegurarem a glória do amor, sem torturas, sem misérias. Ela faria o sacrifício de toda a sua fortuna para conseguir a libertação. Seria o preço do consentimento de Radagasio. Era necessário que Filipe, do seu lado, realizasse a independência para eles. Thereza não aspirava para Filipe uma existência de preocupações materiais. Ela o queria livre para se absorverem exclusivamente na magia do amor.

— Vai, meu Bem supremo, disse Thereza. Faz esta terrível viagem. A tua amante sofrerá muito, muito. Será um desespero sem nome. Mas ela é forte, e se mostrará digna de ti. É belo sofrer pelo amor... Coragem e esperança. É duro, mas é preciso e eu não quero que, por um ato nosso, irrefletido, soframos no futuro. Este será maravilhoso. Façamos tudo pela glória do nosso amor.

Ela disse e chorou soluçando, desesperada, no peito de Filipe.

D. Isabel e Leonor não esperaram Filipe para jantar. Ele faltara à hora estabelecida e nenhuma condescendência lhe fizeram. Quando ele chegou muito atrasado, teve um grande desdém pelo rancor, com que a mãe o tratara. Beijou-a e a irmã e recolheu-se. Custou muito a despir-se. Sentia-se no vácuo. Rápidas vertigens o tonteavam e às vezes um suor frio o inundava. Uma dor surda apertava-lhe o peito. O cérebro ora vazio, exangue, ora congesto, febril, não tinha força para coordenar os pensamentos embrulhados. Assim, ora adormecia, ora espertava atordoado. De manhã, as palavras de Thereza atuaram sobre ele beneficamente. Filipe escreveu ao tio avisando a sua partida por aqueles dias. Quando desceu do quarto, encontrou a mãe e a irmã na sala de jantar. Comunicou-lhes a sua decisão de partir. D. Isabel olhou, vitoriosa, para Leonor, que sorriu beatamente àquela concórdia. Filipe deixou-as. D. Isabel retomou a compostura devota, foi ao oratório, acendeu uma vela para os seus santos, orou dando graças por seu filho estar se libertando do pecado mortal e sobretudo por lhe ter obedecido. Foi-lhe impossível a concentração piedosa. O dinheiro distraía-lhe alegremente os pensamentos.

Foram dias ardentes e dolorosos aqueles, que precederam a partida de Filipe. Os encontros amiudavam-se. Eles se viam em todos os momentos de liberdade. Thereza, no sacrifício, engrandecia-se. Desprezava as fúrias de Radagasio, as espionagens da negra e desprendia-se da filha. Thereza era o amor e a sua maravilha. A esperança de que tudo se ia cumprir para a conquista do paraíso a fortalecia e a extasiava na grande dor. Esta força sobrenatural de Thereza comunicava a Filipe o desejo de vencer e a ânsia de combater pela libertação. Faria tudo para realizar a venda da propriedade aos Americanos. A parte em dinheiro, que lhe coubesse, ele separaria dos quinhões da mãe e da irmã. Ficaria com fortuna própria, livre enfim da indivisibilidade, em que permaneceram durante a longa comunhão familiar. Para esta finalidade, ele empregava toda a sua energia, dominando as torturas da separação.

Na manhã do domingo, véspera da partida, Thereza e Filipe passearam longamente. Era tarde, quando Thereza deixou Filipe na cidade, onde ele resolvera almoçar, fugindo à família. Depois do almoço, andou sozinho pela velha cidade. Rompia o silêncio com os seus passos nas estreitas ruas comerciais, por onde entrava de longe a claridade da baía. Outros passos de caixeiros em folga juntavam-se aos dele. As portas de ferro das horríveis casas trancavam tudo e impunham a quietude. No largo da Carioca havia o canto tumultuoso da passarada, que só se ouve aos domingos. Filipe entrou pela Avenida, onde se encontrou com o movimento festivo das músicas barulhentas dos cinemas, com os bondes que se enchiam, com a infinidade de automóveis, com as gentes avidas de prazer. Caminhou na tarde quente até ao outeiro da Glória.

A porta da rua da casa de Vieira estava entreaberta e Filipe foi entrando sem bater. No silêncio, em que tudo se entorpecia, os cantos melosos da patativa e da graúna fluíam uma frescura florestal. Filipe chegou à sala de jantar, que a facha de luz, vinda da janela, cortava em duas zonas escuras. À direita, no sofá, dormia Araci. À esquerda, em uma esteira, no chão, Ritinha dormia com a cabeça nas pernas da velha Andreza, que, cochilando, lhe coçava os cabelos desfeitos. Filipe veio devagar sentar-se junto de Araci. Deixou-se invadir pela quietação e o seu pensamento, desprendido de toda a materialidade, vogava livre no irrealismo do sonho. Cisma de amor, de paixão infinita, sonho do paraíso na união mística e imortal com Thereza. O sacrifício, que ia fazer da privação da presença real da adorada, devia ser cumprido para a conquista do bem supremo. E Filipe o desejava agora com violência, com ansiedade, para precipitar a libertação. Ele sorria, deslumbrado, para a glória do amor e na penumbra esquecida prosseguia a cisma da evasão. Na porta apontou Aristides Vieira, que veio vindo dentro da facha de luz. Lia um livro. Parava. Suspirava. Gesticulava. Atirava os olhos para o céu, que se via da janela. Filipe levantou-se e foi ao seu encontro.

Vieira deu um grito:

— Quem és? Espírito benfazejo ou espírito mau?

Filipe apiedou-se do desvairado e obrigou-o a reconhecê-lo.

— Você não faça mais isto, obtemperou Vieira trêmulo.

Não se brinca com espíritos. Veja como fiquei alagado de suor. Ninguém sabe quem é encarnado ou desencarnado. Ainda não sei se você está na materialidade humana, no que os obcecados chamam vida, ou se é o seu espírito, que tomou a sua forma para me anunciar alguma coisa. Diga, eu o conjuro em nome da Fé, da Verdade, da Caridade, você viu Jujú?

O berreiro de Aristides Vieira despertou as dorminhocas. Correram para ele, espantadas da presença de Filipe. Andreza, que ouvira falar em espíritos, começou a engrolar um padre-nosso para as almas do outro mundo. Vieira, na presença da gente de casa, recaiu na torpe realidade dos humanos e sereno ouviu as explicações da visita de Filipe. Quando Ritinha soube da partida para São Paulo, teve uma pena calada e profunda de Thereza. Interessou-se pela viajem, pela demora e, com estranha ternura, pediu a Filipe, que voltasse logo. Ele compreendeu que ela falava por Thereza e afirmou a brevidade, com que levaria os negócios para se ver livre de tudo, de tudo, repetia para se animar e se exaltar. Perguntou pelos rapazes. Estava ansioso por ver Pedro, que fora solto naqueles últimos dias. Ritinha correu a chamá-los. Vieira foi avisar D. Calú. Filipe, só com Araci, perguntou-lhe:

— Então que é isto? Dormindo a esta hora? Por um domingo destes?

— Pois é. Ando agora em uma lombeira, que tomou conta de mim. Depois daquela encrenca tudo desandou nesta casa e para mim, então! Ficamos suspeitos. Ninguém mais me quer... Pois é. Foi um azar danado. Está em que deu a revolução de vocês. Estamos todos pesados...

— Que bobagem, Araci! Deixe de fatalismos e bruxarias. Tudo vai se recompor. Você deve reagir contra a depressão. Saia deste torpor e volte à alegria.

— Alegria, alegria. É o que você sempre prega, Filipe. É muito bom de dizer, mas quando a gente se vê abandonada, desprezada, quando todos fogem da gente, como da peste... Alegria, alegria. Cacete.

— Não se faça de infeliz exageradamente, rapariga.. Vença tudo, toque para adiante. Viva indiferente, domine...

Araci não se importou com estas palavras vagas.

Filipe foi mais preciso.

— E os seus amigos? O Léo?

Araci não respondeu. Teve vergonha de confessar que o Léo lhe fugia e que raramente se encontrava com Zilda.

Pedro e Manuel entraram, correndo para Filipe. Abraçaram-se como ressuscitados, deslumbrados de voltarem à vida. Dominaram a comoção. Zombaram dos martírios sofridos, das perseguições e das misérias passadas.

— Eles te deixaram ainda a pele e os ossos, observou Filipe, examinando Pedro. E escapaste da Clevelândia. Deves fazer uma visita de agradecimentos.

— Veio chupado, mas deixou gordíssimos milhares de percevejos, que se banqueteavam com o sangue dos hóspedes da Correção, continuou Manuel.

Os olhos gazeios de Pedro faiscavam e, as ventas do nariz felino moviam-se ágeis. A boca escancarava-se para rir, enquanto falava.

— Que deliciosa aquela vidoca, seu Filipe! O cubículo era no alto, numa galeria do terceiro andar, elevada às honras de prisão de estado. Oitenta e oito degraus para subir e descer todas as vezes, que tínhamos de ir ao banheiro e à privada. O espaço reduzido para dois presos, estava entulhado de camas de ferro, com colchões de palha, travesseiro de capim duro, cobertor vermelho e lençol de algodão. Na parede, uma mesa microscópica. O meu companheiro de cubículo era um pardavasco assassino, que matara para roubar e á noite me divertia debatendo, em pesadelos, os seus ódios ou os seus remorsos. Durante o dia, soturno, feroz. Levava a mirar-me com os olhos vidrados e a coçar a barba negra. Comíamos juntos a nossa boia, um feijão encruado, um angú visguento e uma carne de sola. Mas havia gente divertida em outros cubículos nesta galeria, destinada aos presos políticos. Vinham gargalhadas do corredor, que se propagavam estridentes, gostosas. Os assassinos, os ladrões, alegravam-se conosco e das grades brincavam, chalaceavam. Devia ser interessante, para quem pudesse ver, o espetáculo de todas estas horríveis caras esparramadas nas grades de ferro, a rir, a gritar as zombarias, no palavreado obscuro da gíria das prisões. Eu só via alguns cubículos na minha frente.

— Perdemos esta fita, Filipe, comentou Manuel. Quem sabe? Ainda chegará a nossa vez. Não desanimemos.

— Mas tu estiveste dois dias na geladeira da polícia. Que horror, hein? perguntou Filipe, já sem vontade de caçoar.

— A Correção, nesta promiscuidade infame com os criminosos comuns, com a porcaria inaudita, com o acabrunhamento das tenebrosas galerias, com os percevejos, as pulgas, baratas, ratos, era o paraíso para quem sai da geladeira...

— E aqueles canalhas, que me prometeram que tu não serias maltratado, rompeu Filipe.

— Ora, continuou Pedro. São sempre os mesmos. Prometem e depois se ninam. Quando viram que não me arrancavam nada nos interrogatórios, puseram-me na geladeira para me vencerem. Estúpidos.

— Ah! Minha Nossa Senhora, que malvados, cortou Ritinha. É preciso um castigo, Filipe. Um castigo terrível. Faça alguma coisa, que acabe com estes miseráveis.

A imprecação de Ritinha morreu melancólica no silêncio de Filipe que não pertencia mais à revolução e de Manuel, que buscava outra coisa, que não era unicamente a luta pela liberdade política. Pedro não prestou atenção ao desespero de Ritinha, sôfrego por contar as suas experiências.

— Qual, quem não passou pela geladeira, não sabe o que é bom.

— Muito frio, Pedrinho? perguntou tremendo Ritinha.

— Esta Ritinha é boba, interrompeu Araci, zangada e curiosa. Deixe ele falar.

— Frio era o de menos. Não te conto nada, Ritinha, gracejava Pedro, gozando em espantá-la. A geladeira é em baixo, na polícia Central. Na entrada o carcereiro. Em torno dele um monturo de trapos, papéis sujos, garrafas vazias. Depois um portão de grades de ferro. Quando o abriram para mim, empurraram-me na sala, que é a tal geladeira, que tem uma altura de três metros com um cumprimento de cinco e uma largura de quatro. O chão é de azulejo, escorregadio com a humidade, que vertem as paredes. Água para beber só da latrina. Comida nada. Com muito engodo, muita energia, podia-se conseguir, comprando os guardas, um pouco de café. Para deitar, era uns sobre os outros no lajedo sujo, gelado. Não se pode dizer toda a sujeira. Os corpos fediam ainda mais que os esgotos pútridos. As barbas cresciam nas caras túmidas, famélicas. A luz era baça. Mas os olhos aguçavam-se e viam os monstros horrendos, que cada um era para o outro.

D. Calú entrou vagarosa, de roxo, embrulhada em um xale de lã preta, gemendo a sua desgraça, seguida por Vieira, macilento e aluado.

— Ah! Meu Filipe. Você por aqui nesta pobre casa... Muito obrigada.

Filipe a abraçou e ensaiou confortá-la com as palavras de inútil animação. D. Calú não ouvia e prosseguia nas lamentações. Quando Pedro, febrilmente quis continuar a narrativa, D. Calú não permitiu.

— Não, não, meu filho. Basta. Poupe sua mãe, que morre de dor. Jujú é o mais feliz de todos nós. Está na glória de Deus... E vocês? Nas garras do tirano... E sem meios de reagir. Eu já disse, agora acabemos com isto, deixemos que façam o que quiserem. Os que se levantam contra o governo são poucos e logo esmagados e martirizados. Se vocês têm piedade desta pobre mãe, renunciem, renunciem pelo amor de Deus.

Esta covardia humilhou os filhos. Filipe olhou-os com pena e desviou a conversa para a sua viagem. Era ele agora que espalhava a melancolia. Ninguém pronunciou o nome de Thereza, em que todos pensaram.

Filipe saiu daquela casa triste e foi esperar Thereza no pátio da igreja do Outeiro. De lá os olhos se fixaram nas palmeiras, na morada que as andorinhas investiam, no jardim, no mirante, e o pensamento imaginava a libertação de Thereza de tudo aquilo. E quando ele a percebeu embaixo na ladeira, caminhando rápida ao seu encontro, bateu-lhe alegremente com a mão. Thereza que vinha apreensiva, transformou-se com o gesto do entusiasmo e foi radiosa, que voou pelos degraus da escada e se atirou nos braços de Filipe. Na solidão ardente, por cima da cidade sonora, em face da baía parada e dos morros concentrados, o êxtase da transfiguração. A volúpia dos beijos, o prazer inefável da admiração, a delícia que inebriava todos os sentidos até o da estranha voracidade, excitada pelo desejo profundo e violento, aboliam neles a lembrança de que fora ali que começara a viagem maravilhosa do amor e nenhum pensamento tiveram para a criança, que, no seu jogo inocente, os ligara gloriosamente. A alegria da paixão elimina o tempo, torna tudo para os amantes, atual, vivo, eterno. Subitamente a ânsia do movimento os tomou e eles deixaram aqueles lajedos escaldados do pátio da igrejinha, desceram a ladeira e vieram à avenida Beira-Mar, tomaram um automóvel e seguiram por entre uma multidão, esbaforida de calor. Encontraram carros pitorescos de romeiros da Penha, restos portugueses, coloniais e campesinos na cidade, que se liberta. Foram até Copacabana, ao Leblon, à Gávea. O calor fizera surgir do oceano uma evaporação densa, que escondera o mar, as praias, as montanhas. Nessa muralha espessa, abria-se de vez em quando, no oceano, um disco rubro do farol da Rasa. Os faróis dos automóveis acenderam-se. As luzes corriam no nevoeiro. Thereza e Filipe impregnavam-se deliciosamente naquele mistério da névoa cálida. Ao chegarem na ladeira do Russell, deixaram o automóvel. Subiram a pé nas sombras. Veio-lhes a tristeza da separação. Por mais esforços que Thereza fizesse, ela sucumbia de saudades. Filipe animou-a, fortaleceu-a com a esperança. Estimulando-lhe o heroísmo, por sua vez ele reagia contra o desânimo. Thereza admirou o homem forte, beijou-o, reconhecida, e subiu sozinha a ladeira. Antes de perder de vista Filipe, voltou-se para ele. Sorrindo e arquejante, atirou-lhe um beijo com um longo suspiro.

Nessa noite Filipe recolheu-se cedo. A sua vigília não foi acerba. A separação, que tanto o acabrunhava, aparecia-lhe como a benéfica fatalidade para atingir à suprema aspiração do amor. Resignava-se na esperança. Em Filipe, a inteligência acabava sempre por governar a sensibilidade. O amor dava-lhe a profunda paz por entre a inquietação dos humanos. Também ele e Thereza foram inquietos até se unirem na beatitude da paixão. Inquietos eram todos em torno deles. Os que aspiram ao absoluto e permanecem na relatividade. Os que se revoltam e não são satisfeitos. Os que sonham e não realizam. Os que amam e não são amados.

Ritinha surpreendeu Thereza chorando no mirante naquela noite, já desembaraçada do nevoeiro. Thereza quis dominar-se e não pode. Ritinha beijou-lhe as mãos e procurou instintivamente consolá-la falando-lhe da sua separação do noivo, o seu Viriato, perdido nos seringais do Acre. Até este momento ela não ousara aludir ao amor de Thereza. O desespero, em que a via, aboliu toda a reserva. E Thereza contou à matuta humilde a sua história sentimental. Desfilou os horrores da sua existência com Radagasio, expôs o seu martírio, o seu acabrunhamento, o vácuo, em que fora precipitada até a sua ressurreição pelo amor. Exaltou-se. Perdeu todo o contato com Ritinha e disse a sua paixão à imagem de Filipe, que ela via na sombra quente e perfumada pelas orquídeas e pelos jasmins.

No dia seguinte, Filipe e Thereza procuravam esquecer na alegria física do amor as torturas da saudade. Depois de longas horas nesse jogo do prazer e da melancolia, separaram-se doloridos, acabrunhados e cheios de esperança. Á noite, Filipe partiu. À estação vieram Manuel e Ritinha, por quem, Thereza mandara frutas, doces e um xale de lã. A eterna maternidade no amor feminino.

Separado de Thereza, não havia repouso para Filipe. A sua inquietação ajustava-se ao movimento que o arrebatava deslocando, desequilibrando o espaço em uma vibração convulsa e atroadora. Massas de casas iluminadas eram engolidas por sombras desertas, verdes-negras. Voltavam outra vez em uma desforra festiva de música e gentes e novamente desapareciam na escuridão. Roncos angustiosos da locomotiva arfavam na energia de correr, voar, acompanhados da alegria sonora dos apitos. Uma parada única, uma gritaria confusa, uma partida rápida para deixar a cidade e entrar no mato. Mas a serra pensou tapar tudo. A máquina furou a serra, subindo e descendo, subindo até descer para a margem do rio. Aí parou muito. Filipe, fatigado do movimento interior do seu espírito inquieto, recolheu-se. Encerrado no seu leito, ia por entre a alegria tumultuosa do ferro, do aço e do vapor, ouvindo as conversas dos corredores num vozerio soturno, cadenciado, de frouxas e estúpidas palavras, que davam enjoo. De madrugada, o camarote foi refrescado pela humidade das terras altas. Filipe cobriu-se com o xale de Thereza e só então adormeceu para acordar, já dia claro. O que veio aos olhos de Filipe foi uma terra amarela escura, uns campos rasos, secos e uns horizontes montanhosos. Perdera-se a amenidade da terra carioca e das margens do Paraíba. Entrava-se no sertão. Sobre a aspereza do terreno, o prodígio da cultura. As chapadas cheias de gado. Os campos pejados de plantações. Os morros sustentando nas linhas verticais o peso das árvores de café. Os trens, os automóveis, os caminhões, as aranhas de um cavalo só, voam pelas estradas paralelas. A terra torna-se mais rubra, as casas condensam-se, a estrada transforma-se em ruas, viadutos, túneis, o trem entra na estação do Braz. Pouco depois do automóvel, que levava Filipe, se pôr em caminho, uma cancela lhe estorvou a marcha. Aglomeraram-se automóveis, bondes, caminhões, carroças, em um berreiro de klaxons, apitos, campainhas, pragas em várias línguas, até que um trem passou e a cancela se abriu. Foi um avanço desafogado para invadir a cidade. A população, apressada, mexia-se nas calçadas. O centro da avenida enchia-se de carroças de mercadorias. Negociava-se, trabalhava-se. Na enorme extensão, que se rasga pela cidade não pairava a doce preguiça tropical. O labor não era doloroso, mas era incessante e ardente. Filipe sentiu-se em um Brasil jovem e prodigioso de atividade. Aqueles italianos, sírios, libaneses eram indolentes em suas antigas pátrias. A terra brasileira é velhíssima, a gente estrangeira, de nações velhas. E tudo era ali tão novo. O milagre do dinamismo espiritual. Força, conquista, trabalho, ambição. E aquele enxerto e este fermento remoçavam São Paulo. A cidade cresce, varre a melancolia. Trabalho, criação, aleluia.

Da janela do seu quarto no hotel, Filipe olhava a cidade em transformação. Os primeiros arranha-céus apontavam o seu atrevimento. Era o sinal de partida para a americanização integral. O ritmo seria acelerado. As velhas casas portuguesas se desmanchariam em pó. Este pó não ressuscitaria. Sobre ele, o cimento, o ferro, a pedra, se levantariam, possantes e indiferentes ao passado.

Na quietação da casa, Thereza estava atenta a todos os ruídos. Radagasio saíra para o banco. A negra pajeava Lili no jardim. O telefone tocou vivo e Thereza de um salto acudiu. São Paulo a chamava. Thereza, trêmula, radiante, medrosa, esperou, esperou. Afinal chamaram de novo e a voz de Filipe chegou. Thereza sufocada, tonta, não percebia nitidamente e interrompia Filipe com mil perguntas ansiadas. Entenderam-se na angústia e na saudade e animaram-se um ao outro há esperança. Filipe receberia no dia seguinte a primeira carta de Thereza, já começada naquela manhã. Filipe devia escrever por intermédio de Ritinha. Isto fora resolvido na noite, em que Thereza se confessou a Ritinha. Quando deixaram o telefone ficaram atordoados e longe, longe, do Rio, de São Paulo, da terra. Estavam aflitos. Na espacialidade infinita, que o amor abria, buscavam-se desesperados. Ambos puseram-se a escrever as suas primeiras cartas.

Nesta tarde Filipe entreteve-se dos seus negócios com os Americanos. Estes indivíduos eram anônimos. Eram seres efêmeros. A vida para eles, como a dos térmitas, é uma missão biológica do núcleo nacional, movido pela conquista econômica. Têm a consciência de desaparecer para sempre sem deixar vestígios. Por isso desdenham de tudo, não têm personalidade, são instrumentos superativos da massa impulsora. É a afirmação extremada do anonimato, destituído de qualquer finalidade moral.

Depois da miúda conversa de negócios, que tiveram com Filipe, os Americanos transformaram-se em meninos. Levaram Filipe a passear de automóvel e gozaram infantilmente, saudáveis e alegres, do que viam. Conheciam São Paulo há dois anos, mas tudo lhes parecia sempre novo. Não se fatigavam nunca. As coisas para eles, como para os selvagens e as crianças, mostravam apenas a magia externa das cores e das formas. Filipe extraía delas o senso de humanidade, de que estavam carregadas. Por toda a parte, uma civilização nova sobrepunha-se à civilização antiga. O que era colonial, ou império, ia sendo eliminado. Os velhos espíritos, jurista e eclesiástico, desapareciam diante da impulsão violenta do otimismo industrial, criado pelo trabalho e pela riqueza. As fábricas sucediam aos conventos, a vertical dos arranha-céus escarnecia das massas horizontais dos casarões lusitanos, as pequenas casas pueris apossavam-se alegremente das quintas e das chácaras, ou espalhavam-se nas várzeas, que foram merencórias à visão jesuíta e hoje vibravam nas cores excessivas e nas formas engraçadas dos bungalows. A cidade cresce possante, eliminadora, rubra, da maior realidade ao maior idealismo. É a ascensão para o domínio, para a glória. O moderno ritmo brasileiro. A fascinação da energia e da grandeza. Tudo se transforma no Brasil. Não há desnacionalização, há mutação de ritmo para exprimir todos os impulsos da nação múltipla, que se projeta, vivaz, para os espaços ilimitados. O fecundo sentimento do transitório caracteriza esta época. Constrói-se, produz-se para um momento. Não se busca a eternidade. Todos estão impregnados do espírito da renovação incessante. As construções por mais sólidas e mais grandiosas são realizadas para durar um instante, o nosso instante. Desaparecerão para virem outras mais sólidas, mais grandiosas, mais atuais. É a inovação permanente. O espírito do homem está possuído da benéfica magia da atividade. Não se fixa, move-se, prossegue a sua interminável criação. É a suprema beleza do movimento.

Thereza sorria condescendente para Ritinha, que, para distraí-la, trouxera o seu corrupião e o estimulava a assobiar.

— Vamos, seu Vivi, assobie aquela modinha da nossa terra, tão doce, que faz o coração chorar. “O meu Bem está longe, tudo ficou tão triste, a saudade não mata, quando o amor resiste.”

E Ritinha pôs-se a entoar e seu Vivi a assobiar. A melodia simplória, desta mistura de voz humana e canto de pássaro, agitou Thereza. Saiu da sua imobilidade, pôs-se de pé, passando o braço na cintura de Ritinha, que recolhera o corrupião à gaiola. Foi levando-a por debaixo do caramanchão e caminharam em face da baía enrubescida, beliscada pelas gaivotas loucas. Estavam sós. Radagasio ainda não chegara para jantar. A negra e a menina dentro de casa. Thereza pode falar livremente de Filipe. A confidência com Ritinha crescia e era um alívio para a saudade de Thereza. No dia seguinte, ela receberia a primeira carta de Filipe. Recomendou a Ritinha que ficasse alerta e viesse logo, logo, entregá-la. A moça maranhense estava radiante de servir ao amor.

Filipe, de volta do passeio, entrou com os Americanos no bar do hotel. Quase toda a gente era moça. Pela conversa, de dinheiro e de esporte, eram rapazes de negócio, fanfarrões e petulantes, rodeados de mulheres, que se exibiam ruidosas. Estavam felizes na imitação provinciana da orgia cosmopolita. Apareceu nesta promiscuidade tumultuosa o pintor russo, que Filipe vira em casa de Laura Moraes. Acompanhado de dois moços, precipitou-se para Filipe, que os convidou a sentarem-se à sua mesa. Os Americanos aceitaram jovialmente. Os amigos do Russo eram admiradores de Filipe. Imaginavam estar colaborando na renovação espiritual do Brasil. Mas nesta só os interessava o que havia de extravagante e de mórbido. Por isso, fascinados pelo pintor eslavo. O mimetismo de um deles impressionou Filipe. Facilmente se revelava opiomano. O seu aspecto físico, flácido, opilado, mole e planturoso, assemelhava-o a um pançudo e intoxicado chinês. À apatia deste moço opunha-se a excitação do outro, nervoso, bronzeado mameluco, de uma loquacidade barulhenta, deformada e paradoxal. Alardeava a sua fortuna e a sua ociosidade. Não trabalhava, não produzia, como os jovens da sua geração, porque tudo era inútil. O Brasil caminhava para a destruição total. E apelou para o Russo, que explicou a Filipe:

— Destruição é um modo falso de compreender a volta à selvageria imemorial desta terra, interrompida dolorosamente pela civilização Ocidental. É sob este aspecto, que temos de considerar o caso brasileiro. O senhor já sabe que, no meu ponto de vista estético, o Brasil devia permanecer na sua barbaria e eliminar toda a cultura. Naturalmente a isto se opõe a imitação do que se chama civilização. O tal progresso material vae extinguindo a maravilha selvagem da vida primitiva. Felizmente este progresso não pode ir muito longe. Ele não pode lutar contra as forças misteriosas da natureza, que surgiram para embaraçar a civilização nesta terra privilegiada para a solidão selvagem. Para destruir a espécie híbrida, saída do conúbio de tantas raças, as moléstias invencíveis e entre elas, sobrepujando todas, a estupenda morfeia, que lastra nas terras cultivadas e que, indomável, as tornará abandonadas, voltando tudo à mataria, que terá a sua desforra. A outra força, desencadeada pela natureza para destruir o progresso, é a broca do café. Ela propaga-se pelas fazendas. Cada homem leva consigo os germens da devastação. As estradas de rodagem vieram, como caminhos da providência, favorecer a propagação benfazeja. Não há ciência que a domine. A broca uma maravilha. Sinto uma profunda emoção, quando imagino este inseto tão pequenino, perfurando os grãos de café e se embebendo do filtro doce e inebriante da polpa carnuda, sugando-a deliciosamente e reduzindo tudo ao pó, que leva pelos ares, em milhares de gérmens, a força da morte. Vence o homem e a sua obra maldita. Depois do que vi de monstruoso e comovente em Minas, o meu empenho é fixar nos meus quadros esta alucinante decomposição do vegetal, que nutre a loucura brasileira.

Os Americanos riram gostosamente e deram alegres murros nas costas magras do Russo.

Depois do jantar, Filipe recolheu-se ao seu quarto. Tudo o aborrecia. O seu interesse pela cidade fora passageiro. As suas sensações terminaram em abstrações. Aquela gente era monótona. Os Americanos, estúpidos e vorazes. O Russo, desequilibrado e cacete. O que era grande e forte era anônimo, a síntese da energia coletiva promíscua, impulsionada pelo dinamismo das massas. Os indivíduos, que vira, eram insignificantes. A mocidade, absorvida nos jogos e nos negócios, indiferente às questões essenciais do espírito da nação. Estava à margem da vida brasileira. Filipe pertencia aos ardentes, animados do espírito do sacrifício. E ali, em São Paulo, ele não via o entusiasmo espiritual, que engrandece o homem, seja pela liberdade, seja pela religião, seja pela solidariedade humana, pela extinção das classes em luta, pelo pensamento, criador de uma nova vida. Nada ele encontraria ali. Tudo acomodatício, disfarçado, emboscado em puerilidades para escapar ao martírio. Todos recusaram-se à revolução, quando esta fez o apelo supremo. Enquanto isto se passava em São Paulo, outras mocidades afrontavam a tirania e batiam-se em todo o país, afirmavam o seu espírito de sacrifício, eram enfim humanas, sabiam viver e morrer.

Filipe pode libertar-se deste desprezo, que o torturava e o seu pensamento purificou-se em Thereza. Olhava a noite paulista, a terra alta e seca, cortada de luzes paradas, modestas, e de luzes ousadas, que se agitavam e se divertiam em formar anúncios. Embaixo, o jardim, que se afundava na verdura para o repouso e o equilíbrio de todo aquele conjunto de edifícios volumosos, arranha-céus, viadutos. Tudo isto atirava o pensamento de Filipe para o jardim de Thereza na calma sossegada, embalado pelas palmeiras, adormecido nos perfumes das flores, coberto de estrelas, em frente à baía, sacudida pela brisa. Tudo verde, azul, diamantino. Thereza, sentada no terraço. Ritinha ao seu lado, em silêncio.

Deste torpor despertaram Thereza para avisá-la que São Paulo a chamava ao telefone. Deu um pulo e correu para dentro. Ritinha seguiu o movimento, mas estacou na porta. Tremia por Thereza e ficou velando pelo seu isolamento. Se Radagasio aparecesse ou a negra surgisse, ela os embaraçaria e daria aviso a Thereza. Ouviu a conversa se ligar entre Filipe e Thereza e não escutava o que Thereza dizia. Os seus ouvidos eram para os ruídos inimigos e os seus olhos dilatavam-se para ver nas sombras do jardim.

Filipe narrava o seu dia enervante e confirmava a sua partida para a manhã seguinte. Na fazenda receberia a primeira carta de Thereza. A sofreguidão pelas palavras da sua adorada, o desespero da saudade, o martírio do degredo, a ânsia da volta. Thereza, por entre lágrimas, falava do vazio, em que fora precipitada, da súbita apatia que a tomara, dá nenhuma vontade de se mover, da exclusividade do seu pensamento, da ansiedade de receber as cartas diárias do adorado e das recomendações, que fizera a Ritinha, do seu ódio exasperado contra tudo que embaraçava o seu amor. Quando chegou o momento de se despedir do amante, a sua voz elevou-se, audaz, para dizer-lhe adeus e cobri-lo de beijos. Isto Ritinha ouviu e assustada correu para Thereza, que voltava ao seu encontro, febril, desvairada, com os olhos vermelhos, enormes, a boca crispada, toda paixão, toda ódio. Foi caminhando rápida para o jardim. Aí atirou-se a uma cadeira e sem falar, sem chorar, fechou os olhos, para, fora de toda restrição, ver Filipe.

XVI

A roupa kaki de Filipe afrontava o calor, no trem cheio de poeira vermelha, esquentada pelo sol matinal. Os sanguíneos Americanos não suavam nos ternos de casimira. Em todos os bancos, de dentro dos guarda-pós e das roupas encardidas de terra roxa, vociferavam-se protestos em brados caipiras e carcamanos contra o calor e o pó. Os Americanos, indiferentes ao irremediável, fumavam cachimbos, espalhando o cheiro doce dos seus tabacos por entre os odores fuliginosos da fumaça da locomotiva e acompanhavam a porfia da estrada de rodagem com a estrada de ferro, cortando ambas, fachas paralelas, largas, infinitas, no barro vermelho, coberto de pastagem rasteira, ou de capoeiras revigoradas pelas chuvas de novembro. As visões exteriores passavam desconexas para Filipe que, concentrado em Thereza, ressuscitava e construía imensos instantes vividos e por viver. Em Jundiaí a fumaça da máquina cessou. Saíra-se do carvão para a eletricidade. Os Americanos arrastavam Filipe a uma conversa técnica de tração, cachoeiras, petróleo, e os três empenharam-se em conjecturas de aproveitamento das forças naturais daquela região. Outros passageiros davam opiniões, indicavam cascatas desconhecidas, lençóis petrolíferos a explorar, florestas de eucaliptos de rendimento fabuloso. Rapidamente, em palavras e imaginações, toda a energia da terra se movimentava para criar a civilização e a riqueza. Os Americanos excitavam-se e tomavam em seus cadernos notas das indicações, que ouviam e que talvez um dia lhes fossem proveitosas. A ganância desencadeou-lhes o bom humor e logo se familiarizaram com os passageiros e prosseguiram, entre pilhérias, um cerrado inquérito econômico. Nas redondezas de Campinas os velhos cafezais sugeriram vastas dissertações sobre café, colheitas, alta e baixa, valorização. Rompeu-se entre os brasileiros uma veemente discussão sobre a intervenção do governo na defesa do café e na extinção da broca. Os Americanos, calados, sorriam atentos ao tumulto das palavras que se batiam. Depois de Campinas e do almoço, em que o tutu de feijão e o lombo de porco fartaram as fomes rústicas daqueles homens pesados e curtidos, veio, com os cigarros de palha fumegando, o sono na sesta quente. Os Americanos dormitavam com os cachimbos mal acesos e as pernas levantadas sobre o espaldar do banco fronteiro. Filipe cochilava, incapaz de ler e de conversar. De vez em quando espertava e olhava as massas das plantações, os volumes dos morros carregados de cafezais escuros, os capões nos campos cheios do gado estrangeiro de cara branca ou manchado de preto e branco, de mistura com os caracus nacionais. Caminhões correndo nas estradas, tratores arando a terra desbravada. O Piracicaba aparecia, correntio, volumoso, para refrescar os olhos ardidos de terra roxa escandecida. As estações sucediam-se mais unidas, à beira das fazendas. O Mogi-Guaçu apresenta-se para substituir o Piracicaba. A terra sobe. Tapuia. Vastos horizontes. Dez léguas de redondeza mostram-se descampadas. São Simão, Cravinhos, Guatapará, São Martinho. A energia do homem transformadora. Velhas matas substituídas pela cultura. Cafezais, cafezais. O novo Brasil vence o terror. Café ilimitado. Vila Japonesa. Palhoças, arrozais. Puerilidades. Rincão. Baldeação para a bitola estreita. Os pequenos vagões sacodem o sono dos passageiros e o trem continua pela margem esquerda do Mogi, rumando para Jaboticabal. Mais algumas paradas e Filipe, com os seus Americanos, desembarca. Tio Salvador está cercado do filho Men, do administrador, do capataz e de um fiscal. Aperta Filipe nos braços dominando-o de alguns centímetros. Saúda em inglês os Americanos

Men apodera-se de Filipe e desembucha:

— Até que afinal chegaste. Querias perder uma ocasião como está? Quase fui te buscar. Desconfiamos que fosse por causa de mulher, que não te resolvias a vir. Tia Isabel estava tiririca, êta! As cartas que escrevia ao velho mano, danadas contra ti. Mas agora tu estás aqui, não se fala mais no que passou. Que tais estes Americanos?

— Ora, gente de negócio como quase todos eles, respondeu Filipe caceteado.

— Olho vivo com eles. Papai está louco por liquidar este negócio. Não sei o que tem ele, que anda enfarado e só fala em partir do Brasil. Mas eu não largo a fazenda senão com muita vantagem. Tudo será bem avaliado, ainda que demore um ano...

Filipe espertou a atenção e ia repelir esta ameaça.

O primo não o deixou falar e continuou:

— Uma fazenda como Maracajá... Muito aproveitada, cafezais novos, mata virgem, terra de padrão, gado bastante...

Tio Salvador deu ordem de partir. O fiscal fez arrumar as bagagens no caminhão. Os outros automóveis desabalaram na frente. Filipe ia com o primo e o administrador. Os Americanos, com Salvador Corrêa de Sá. A poeira abafou-os na estrada e os carros separaram-se distanciando-se. Bateram cinco quilômetros até penetrar no primeiro cafezal da fazenda. Do alto da colina cultivada, via-se o carreador vermelho, por entre as filas verdes, estender-se longamente, subindo e descendo morros. Os automóveis deslizaram pelo carreador, espadanando torrões de terra roxa, enegrecida pela sombra da tarde. Mais quatro quilômetros e a primeira colônia aparece, com a sua casaria unida, caiada e suja de lama vermelha. A cachorrada late e persegue esbaforida os automóveis. Colonos parados nas portas das casas. As ferramentas pelo chão. As cabras deitadas, agarradas às paredes. A velocidade dos automóveis liberta os viajantes da desolação. A casa da fazenda surge dentro de um parque. Para Filipe, que não a via há muito tempo, desde a morte da tia, mulher de Salvador, foi uma novidade a varanda, coberta de trepadeiras, dando um agasalho verde ao interior da vivenda. Desceu lesto do automóvel e, seguindo a vereda lateral do jardim, subiu pela escada, que dava no pórtico da entrada da casa. Daí olhou o parque, talhado à inglesa, que se estendia por entre árvores poderosas e compridas até os cafezais, que desciam do morro e, ao lado da estrada, que ligava Jaboticabal a Ribeirão Preto. Ficou só, enquanto o primo e o administrador entravam na casa para as providências da hospedagem. Filipe imaginou que Thereza vinha ao seu encontro pelo meio daquele parque, de linhas estrangeiras, nos campos do Brasil.

Durante o tempo que ele viajara, Ritinha tinha levado a Thereza a primeira carta de Filipe. Foi depois do almoço. Tudo arrebentava de calor e, no mirante de Thereza, ainda não chegara a brisa, que agitaria o mar liso, duro, faiscante, e as palmeiras extáticas. Thereza, sem pejo, abriu diante de Ritinha a carta. Ritinha sentou-se no chão, de costas para ela, espreitando se aparecia alguém. Enquanto lia a carta, Thereza, desesperada, soluçava engolindo o choro. Depois beijou as últimas palavras de Filipe e apertou na mão ardente as folhas de papel. Ritinha ergueu-se de um salto, escondeu Thereza. Tinha visto Balbina espiando de uma janela. A negra, vendo-se percebida, escondeu-se.

De roupas frescas, de branco ou de brim pardo, jantavam no fim do dia misturadas as luzes eléctricas aos clarões rubros do longo poente, que enchiam a sala. Salvador de Sá, à cabeceira, entre os dois Americanos, dominava todos. A dura cabeleira cinzenta rastejando sobre o rosto moreno, desbarbado, cavado. Os olhos ainda vivos, desarmados, envoltos em córnea amarela, ictérica. Os pulsos grossos ligando mãos enormes, cabeludas, que seguiam o ritmo moroso da voz forte. Lábios pesados avolumavam os sons das palavras sentenciosas e mandonas. O seu tronco largo e musculoso não se inclinava para falar com os Americanos o inglês, que bebera muito jovem em colégios do sul da Inglaterra. Os Americanos lhe respondiam por cortesia, mas preferiam exprimir-se na língua, que fabricaram em São Paulo, e que todos entendiam melhor. Salvador reagiu.

— A minha educação na Europa só fez exacerbar o meu patriotismo. Não suporto a desnacionalização do país. Sinto-me vencido. Prefiro retirar-me.

— Será a volta à Europa, papai... cortou sarcástico Men.

A voz, com que Salvador replicou, tornou-se mais cavernosa.

— Volta? Não sei, o que quero é não assistir à dura degradação, em que vamos. O estrangeiro apossa-se de tudo.

Filipe ouvia espantado as explosões patrióticas deste tio incoerente, que por sua vez vendia a fazenda a estrangeiros. O espírito do negócio dominava os paulistas. Por interesse eles iam cedendo tudo. As suas empresas, as suas fazendas. Não era em São Paulo que estava a velha medula do que foi a antiga nacionalidade brasileira. Outra nacionalidade ia se formando de novas forças econômicas, de novas combinações de sangue.

Salvador de Sá exibia o seu nacionalismo, comendo pausadamente de pratos essencialmente brasileiros. Eram o tutu, o cuscuz paulista, o lombo de porco, o macuco e os legumes taioba, taiá, manjerico, mandioca, aipim. Os Americanos o acompanhavam alegres, festejando as comidas, algumas estranhas e nunca provadas. O administrador soturno, caipira, desprezava os pratos nacionais, e fartava-se de milho americano, de presunto, de conservas e, à hora da sobremesa, quando Salvador e os estrangeiros se metiam na goiabada e no pudim de mandioca puba, o administrador regalava-se com as frias pêras da Califórnia. Salvador recomendou as frutas da fazenda, laranjas e abacaxis. O administrador, sorrateiro, atacou as uvas espanholas e as maçãs. Tomaram café forte e quente e vieram fumar na varanda. As luzes das lâmpadas clareavam o jardim e um tapete verde-lácteo estendia-se docemente aos pés da casa. Besouros enormes vinham da noite para os focos dos candelabros. Voavam e caíam pesados sobre as mesas. Iam-se amontoando em tumulto surdo e empurrando-se até se precipitarem no chão. As conversas sobre lavoura, colonização, espreguiçavam-se e apertavam o sono dos viajantes. Deitado em uma rede, Filipe cochilava, fatigado do esforço físico desses dias e do abalo da saudade. Os Americanos já não podiam mais com as dissertações de Salvador de Sá. Quanto discurso, quanta teoria cacete, para afinal vender a fazenda e ir para longe vegetar na ociosidade estrangeira. Vieram os refrescos. Salvador fez a apologia do que era nacional. Os Americanos desta vez preferiram o whisky. A América tinha sede de álcool. O administrador os acompanhou regaladamente. Havia, nessa vassalagem aos gostos americanos, a intenção de se insinuar na estima daqueles que seriam os novos patrões. Men acordou Filipe e empurrou-lhe um copo de uvaia.

Salvador pôs-se de pé.

— Boa-noite. Fechem as janelas por causa dos pernilongos e dos morcegos.

O quarto de Filipe dava para o nascente. De madrugada, a cantoria dos passarinhos era apoiada agudamente pelo mugido da bezerrada faminta. Filipe veio à janela. Tudo limpo na atmosfera quase sertaneja. As cores ainda não comidas pelo sol desforravam-se nos horizontes em fachas e volumes pesados, vermelhos, verdes, alaranjados, roxos. O verde dos vegetais era espesso e soberano. O trabalho começava. Os vaqueiros e os camaradas labutavam nos currais e no terreiro. O sol trepou depressa sobre as montanhas. As cores debandaram. As que não puderam fugir começaram a dançar voláteis, transparentes, nos objetos cheios de luz.

À hora do café, todos estavam na sala de jantar, prontos para a visita da fazenda. Os Americanos surgiram picados de mosquitos e pernilongos. Os outros, que se tinham defendido com os mosquiteiros, zombaram. Os Americanos não saíam do bom humor e do otimismo. No íntimo, eles sabiam que venceriam todos os mosquitos do mundo e que nada resiste à energia americana. O que eles queriam era realizar o negócio. Depois, mosquitos, broca, tutu, uvaia, que esperassem por eles para a eliminação, para a americanização universal.

No primeiro automóvel, poderoso e grande, Salvador, os Americanos e, junto do chauffeur, o administrador, para as informações. Atrás, em um ford, guiado por Men, ia Filipe ao seu lado. Foram deixando a sede, onde já estacionavam colonos e camaradas à porta do escritório. Cavalos e bestas arreados amarrados na cerca do curral. Cheirava a vaca, a lama e a excremento. Os automóveis desceram a estrada, passaram pelo armazém. Colonas de lenços vistosos amarrados à cabeça para protegê-las da terra, que se entranha nos cabelos, crianças imundas, sarapintadas de vermelhão, colonos de chapéus de feltro e calçados ferrados, camaradas escuros, mamelucos e cafuzos, em mangas de camisas, descalços, a comprar, a beber, a fumar. Saudaram o patrão e os companheiros.

Quando Filipe passou por aquela gente, refletiu sobre o regime do trabalho nas fazendas. Volvendo-se para Men exprimiu-se em voz alta:

— Olha, tu me disseste ontem que vais abrir fazenda no norte do Paraná. Muito bem. Devias estabelecer logo com os teus trabalhadores uma cooperativa. Tu és um lavrador moderno. És bem da época da máquina. Todos os melhoramentos da fazenda são devidos a ti, ao teu espírito industrial, prático, científico. Porque não levas mais longe a tua orientação e não organizas o trabalho, segundo as condições atuais da indústria? Porque não industrializas a lavoura? Não se trata de uma reivindicação proletária, de um vago sentimentalismo. É uma solução inteligente no interesse da produção. Tu sabes que, por ora, aqui no Brasil, a única fórmula proveitosa é a aliança do capital e do trabalho em uma associação rendosa. O trabalhador deve ser interessado na fazenda. É um coproprietário. Reflete, Men. Serás um iniciador. Renuncia às ideias tradicionais de teu pai. Ele é ainda o tipo do antigo fazendeiro. Está inatual, como toda a sua classe. No dia, em que o trabalho agrícola estiver organizado, cessará a espoliação do colono, do trabalhador, pelo fazendeiro, e a exploração do fazendeiro pelo Estado. Todos são trabalhadores e donos do próprio destino e da nação.

Men sacudiu a cabeça, coberta com um largo sombreiro de feltro cinzento, mordeu a boca para refletir e tocou o ford pelo carreador do cafezal, em que penetraram. Nenhuma objeção podia apresentar ao que lhe dizia Filipe. Foi diminuindo a marcha do ford, ao se avizinharem do automóvel de Salvador, parado no alto do morro. Salvador e os companheiros tinham descido do carro, quando Men e Filipe os alcançaram.

Cafezais compactos, ordenados e infinitos, sobem e descem os morros, escalando-os em filas verticais. Os horizontes perdem-se em toda a redondeza no vago ilimitado. Os carreadores rubros cortam as massas verdes em retas, que correm paralelas e se cruzam em perpendiculares. A luz derrama-se alegre nas folhas dos cafeeiros e todos os cafezais cintilam... No fundo longínquo do carreador sanguíneo, o verde e o roxo fundem-se nos arvoredos folhudos. O silêncio subia da vastidão e paralisava o movimento. Nenhum rumor do trabalho, que se fazia, invisível, quieto, no segredo vegetal.

Salvador mostrava aos Americanos o tamanho das árvores, que já estavam abotoadas depois da última florada. Nem todos os cafezais, que se descortinavam eram da sua fazenda. Mas aquele, onde estavam, era o seu orgulho, cafezal plantado sob as suas vistas e que crescera farto e rendoso. Explicou a sua técnica de cultura, sustentado pelo administrador. Teve uma pequena divergência com o filho sobre as vantagens da poda por este contestada. Arrancou um galho do cafeeiro e contou os grãos de uma pequena haste. Quarenta. Esplendor. Não havia café, como aquele, na região. Café novo, adubado, livre da broca, ainda longe nas fazendas velhas de Campinas. Retomaram os automóveis. Filipe absorvia-se na luz, nas cores, nas formas, nos movimentos. Esquecia-se do valor comercial da plantação e da técnica da lavoura. Imaginou que Thereza se deslumbraria naquela imensidade verde, ela que aspirava ao infinito. E sorriu para si mesmo, pensando na exclamação de Radagasio de que aquilo era “um maravilhoso oceano de café”.

Rumaram para as colônias. Passaram por uma terra, que os colonos e camaradas preparavam para as plantações. Novembro, mês do trabalho intenso depois da colheita, lavra-se a terra, planta-se café, milho, feijão. Mês da colonização, entram e saem trabalhadores. Os que estavam cavando de enxada eram baianos e gente do Nordeste. Os automóveis estacionaram. Salvador fez algumas perguntas sobre o serviço.

— Filipe perguntou a um cabra:

— De onde você é?

A resposta foi pronta.

— Sou do Brasil.

— Como?

— Da Bahia. Lá é que é o Brasil. De lá para riba. Aqui não é mais Brasil.

Ao lado deste cabra, um homem esquelético, cor de azeitona, de cabelo escorrido, olhava com os olhos encarniçados. Era cearense. Viera por terra do sertão do Cariry até a Bahia, subira com a leva de camaradas baianos pelo São Francisco até Pirapora e de lá, no trem, até à Barra do Piraí, para São Paulo. Viera com a família para se estabelecer, enquanto não chovesse no Ceará. Trouxera o pai de noventa anos, para não morrer de fome. Trouxera a mulher e dez filhos. Mas estavam desiludidos. Nada ganhavam, deviam tudo e o que recebiam era para o armazém. Miséria. Saudades do sertão. Desesperados na terra fria. Ceará, Ceará. Calor. Chuva. Pastos alegres. Campos fartos. Carnaubeiras como custódias santas. Vaquejadas, despotismo de gado. Leite, requeijão. E a seca? Fome, morre o gado, morrem os meninos. Degolam-se os santos. Queimam os pastos. Fugiu a água. Seca, seca. Retirantes. Amazonas, Acre. Seringais, maleitas. Outros, ali inteiriçados, nas terras frias. As nuvens engrossam no Nordeste. Esperança nas almas cearenses, espalhadas na terra. Chuva. Alegria. Toca a voltar? Quantos não voltam nunca mais!

O capataz, que comandava os camaradas baianos e era o empreiteiro daquele serviço, mandou que o homem lamuriento se calasse. Afirmou que a sua gente da Bahia não era como aqueles cearenses enroscados de frio. Era sacudida e estava satisfeita. Tinham vindo pela segunda vez àquela fazenda. Viajavam escoteiros, sem mulheres. Vinham capinar, limpar cafezais, preparar o terreno para o plantio. Ganhavam quatro mil e quinhentos por dia, recebendo o empreiteiro cinco mil reis da fazenda por cada homem. Findo o trabalho da empreitada, voltavam às suas terras para tornar no ano seguinte. O bando era alegre, havia muitos cantadores e tocadores de violão. Os Americanos quiseram que uma noite cantassem para eles. Os baianos emproaram-se, vaidosos, e entraram a cantar, cavando a terra. O cearense, enraivado, disposto a brigar, soltou da boca desdentada o seu desespero. “Vou-me embora, vou-me embora pro o sertão do Cariri, vou buscar quem bem me ama... a Maria Paturi.”

Salvador mandou que os automóveis continuassem. A colônia apresentou-se com a sua enfiada de casas brancas, de longe e que iam mostrando as paredes barrentas, quando se aproximaram. O administrador dizia que não deviam parar, porque já era tarde. Os Americanos insistiram em visitar aquelas habitações. Pararam e Filipe se uniu aos compradores da fazenda para examinar as vivendas. Nas portas estavam aglomerados os colonos com as suas famílias. Quase todos recém-chegados da Itália. Era gente desgraçada pela guerra e que emigrara cheia de esperança. Foram abrigados ali em casas de barro vermelho, pisando a trágica terra roxa.

Depois da desoladora inspeção, os automóveis prosseguiram por entre a algazarra do mulherio e dos cachorros. O administrador propôs, como uma diversão, que fossem ver o terreiro, as tulhas e as máquinas. Filipe achou que era demais por aquela manhã. Salvador também preferiu que se recolhessem à casa. O sol ia alto, secando tudo e os atordoando.

— Veja, seu Men, o que eu lhe dizia, comentou Filipe no silêncio, em que se afundaram. Os Americanos ficaram descontentes com estes alojamentos. Vão mudar tudo isto. Não são rotineiros como esses ingleses fazendeiros de café, que seguem o péssimo sistema feudal dos brasileiros. Aproveite a lição, seu Men, e estabeleça em sua nova fazenda a cooperativa. É um provisório, eu sei. Mas faça antes que venha a revolução, que não lhe dê tempo para nada.

Entraram em casa, imundos de pó vermelho. Banharam-se, uns na piscina, outros no chuveiro. Salvador de Sá no seu banheiro de água quente perfumada. Mudaram-se e almoçaram curtindo surdamente as tumultuosas sensações da manhã. Depois do almoço os Americanos puseram-se a conversar à parte. Salvador, combalido e inquieto, estirara-se na rede. Men e o administrador desapareceram Filipe, debruçado na varanda, enchia-se de sol e esperava o correio. A fazenda adormecia. Nas grandes árvores cantava-se tristemente fogo-pago, fogo-pago. O administrador veio com a correspondência. Carta de Thereza.

No quarto, Filipe lia a galope, saltando, adivinhando, tornando a ler, angustiado, alegre, mortificado.

“Meu idolatrado Amor, meu Bem supremo e único. Que saudades das horas sublimes e belas, dos nossos êxtases, de todo o nosso encanto. A tua pobre Amante sente a falta desesperada do seu adorado companheiro. Sinto-me desamparada e tão só. Como foram divinos os instantes do nosso amor. Que doce suavidade, que reconforto inefável. Como eu te adoro! Meu divino Amor, é dura, muito dura, esta absurda separação. Precisamos nos libertar o mais breve possível de toda esta miséria. Quero-te forte, enérgico. Esperança eterna, meu sublime Amante. Nós venceremos e tudo será a beleza imortal. Quero viver ao teu lado, agarrada a ti, muito tua, na incomparável unidade. Como me sinto feliz de te pertencer, de ser tua companheira, tua discípula, tua coisa. É um deslumbramento. Como tudo se toma sombrio, melancólico, miserável, separada do meu Deus. Ontem, quando te deixei e me vi tão só, tive ímpetos de voltar, de não te abandonar mais. Por duas vezes voltei... e foi chorando que entrei no automóvel. Foi duro, muito triste. Em casa, não sai do meu quarto, pus-me a pensar, a pensar, a te seguir, a te adorar. Chorei, chorei desesperadamente até pegar no sono, que me levou para a inconsciência. Mas tu estavas eternamente presente e vigilante. Sonhei contigo o tempo todo... Estávamos longe, no meio do oceano. Tu me acariciavas e tu dizias à tua Thereza palavras lindas e profundas e nos abismávamos na magia da paixão... Meu Amor, neste momento são seis e meia, ainda estás viajando. Meu pobre adorado, não te quero triste e desanimado. Coragem, muita coragem. Tu me tens para a eternidade, fiel e pura. Estou pronta para partir contigo, ou morrermos juntos, sempre unidos. Estás longe, meu Amor, e como te desejo! O meu culto por ti é sublime. Venero-te pela tua paixão incomparável de beleza, poesia e pureza. Como tu me comoves! Tu és único. O meu amor é soberano e só ele existe. Sinto-me feliz, mística, nesta disciplina interior de um grande pensamento. Sou tua em tudo, amante e discípula. Fundir-me em ti, devorar-te de beijos, acariciar-te, sorrir para ti, ver a tua imagem, contemplar-te, beijar-te longamente, deliciosamente e arrebatar-te na volúpia sublime, em que tudo se esvai no gozo infinito. Haverá maior encanto? Oh! Ser tua e tu seres meu na eternidade do amor imortal! Que saudades infinitas de tantos dias belos e transcendentes! Tu voltarás, tempo desejado, e tudo será o paraíso reconquistado. É com lágrimas de alegria, que te evoco na minha saudade. O teu incomparável encanto me exalta. Todo o meu sangue gela. É uma volúpia estranha, muito doce, muito sutil. A saudade me tortura e me delicia. Sinto-me feliz em sofrer de tanto amar... Meu Amor, meu Amor, eu te quero, busco-te neste infinito e tudo é miragem. Tu estás aqui, eternamente diante de mim, em mim. Teus olhos mergulham nos meus. Oh! Mística união dos amantes imortais! Oh! Esperança eterna! Glória!... Já tive o primeiro sinal do telefone e agora eu te espero a todo o instante... Como palpita o coração de amor da tua adorada... Meu Amor, eu te ouvi. A tua voz era um encanto e todo o meu ser se exalta. Como é suave e doce a voz do meu amante! Como me sinto feliz, que glória, que beleza! A minha alma está recolhida, cheia do teu amor sublime, o meu ser inteiro envolto misticamente pelo canto da paixão no êxtase maravilhoso. Suprema força do amor, a tua ânsia de liberdade, a firmeza do teu caráter, a tua divina esperança. Exaltação. A tua companheira agarra-se a ti, digna de toda esta beleza. Eu te venero e, na magia da paixão incomparável, seremos um só para a eternidade... Agora eu choro, o meu sofrimento é grande, tão doloroso. Como tu sofres! A tua noite foi um martírio e eu me desespero. Mas eu te sinto resoluto e sorrio e sinto-me imensamente feliz. A tua voz era linda, linda e muitíssimo firme. Meu divino, arrebata a tua amante de toda esta miséria.”

Glorioso desse maior amor humano, torturado pelo desejo, desesperado de saudades, Filipe ficou recolhido a escrever a Thereza. Felizmente concluíra a carta, quando Men o veio buscar. Os automóveis os esperavam para o passeio da tarde. Logo que deixaram a sede, tomaram pela estrada, dentro do campo. Abrasamento. Embaixo a terra sinistra, sangrenta, coberta de verde violento e sombrio, cortando em linhas rubras a imensidade da vegetação concentrada e rasteira. No alto o céu ingenuamente azul, de nuvens brancas e cândidas. O sol ia descendo alaranjado e alegre, já desarmado dos raios. A passarada viajava em bandos. Seriemas de asas abertas velejavam correndo nos campos. Os automóveis foram encontrando o gado. As máscaras brancas e castanhas pararam extáticas, descobrindo olhos imensos, tristes, curiosos. O pelo de bronze e cobre refulgia na taboa larga e lisa das costas. Os chifres curtos, as canelas finas aguentavam o volume dos quartos e dos cangotes. Camaradas os mantinham na disciplina. Daí a pouco outro gado apareceu vivo, farejando a terra e o ar, tangido aos gritos dos campeiros, comandados pelo capataz. Eram caracus chifrudos, esgalhados, amarelos, que o sol dourava. Por entre eles, zebus de cabeças levantadas, corcovas entumecidas, bois soberbos, elefânticos, bramânicos. Juntaram-se nacionais, ingleses e asiáticos. Passara-lhes o estupor. Entraram a batalhar e a correr. Os campeiros, desesperados, galopam para conter a debandada e o gado louco, estimulado pelos apitos humanos e pelos latidos da cachorrada, vai disparando pelo campo. Era hora de beber. Os automóveis apressaram-se e foram esperá-lo no açude. Aí já estavam, em silêncio, garças, guarás, marrecas e gansos. Dentro da água verde espiavam capivaras. Com o barulho dos motores, as capivaras mergulharam, as garças e os guarás voaram para as árvores, os gansos e as marrecas berraram alarmados à beira da terra. Um lote de éguas, pajeadas por garanhões, veio beber. Metiam os focinhos na água e a sorviam estrepitosamente. Pouco a pouco foi chegando vagaroso o gado, já contido o acesso de terror. Máscaras brancas, chifres esgalhados, corcovas empinadas curvaram-se sobre a superfície verde-rubra, que lhes refletia as estranhas imagens. Saciada a sede, veio-lhes a alegria sexual. Cavalos e éguas, touros e vacas praticaram com delicadeza o cerimonial erótico. Nos seus movimentos não havia a alucinada bestialidade humana.

Na manhã seguinte, Salvador de Sá levou os Americanos e Filipe à casa das máquinas. Foram a pé, passando pelos chiqueiros. Era um dos orgulhos da fazenda aquela criação de oldspots e yorkshire, puro sangue. Nos cercados, os tanques de água corrente e o chão de cimento. Porcos imensos, de pelo branco, já tinto de terra roxa, arfavam dentro do toucinho espesso, das banhas fervendo de calor. Uma ninhada de porquinhos preto e branco grunhia irrequieta, enchafurdando-se na água turva. Os Americanos divertiram-se em falar inglês aos porcos. Chicago. Hot dog. Salvador ficou radiante com este sucesso.

Na casa das máquinas, Men triunfou. Era ele o animador do progresso industrial da fazenda. Aquelas máquinas modernas de beneficiar e ensacar o café e as de descaroçar algodão foram introduzidas por ele, vencendo o espírito tímido do pai. Os Americanos examinaram os maquinismos, louvaram as instalações, mas já pensavam em introduzir outras máquinas que melhorassem ainda mais o excelente café daquelas terras. Calcularam que, intensificando a produção, industrializando o seu prepara a fazenda daria lucros dobrados. Organização e maquinismo para libertar a agricultura brasileira da rotina, em que definha, e dos perigos, que a ameaçam.

Da casa das máquinas tomaram os automóveis, que os levaram aos terreiros, onde se lavava o café. Naquela época estava tudo parado. Os vários planos, largos, horizontais, calçados de tijolos, ligavam-se em declive moderado. Eram cercados e cortados em quadros por estreitas valas de cimento, por onde desce o café, que a água vae lavando. Café afunda, café boia. Não assistiram a esse jogo da água e do grão. Havia só a espera da vinda da colheita. O sol furioso estalava tijolos e cimento. Salvador receou pelos Americanos e os foi levando para os automóveis. Nos carreadores, por entre os cafezais, corria a viração. Sempre o grande silêncio, até que despontaram em um terreno aberto, onde tratores à gasolina aravam para plantação do algodão. Era uma tentativa anual de Men, cujas esperanças a lagarta reduzia. O combate entre o homem e o inseto prosseguia tenaz. Men insistia e esperava dominar a praga. Salvador consentia neste capricho, enquanto não houvesse prejuízo. Já era muito não haver lucro. Os Americanos informavam-se do rendimento dos tratores e falavam dos gasogênios à lenha, que barateavam o combustível. Conheciam a cultura do algodão e examinavam com o administrador e Men a solução do problema. Os camaradas, que aravam, eram do São Francisco e do Nordeste. Ouviam aquela conversa e enquanto trabalhavam, um deles, odiento, resmungava, dentro da masca de fumo:

— Qual, esta gente, de olho azul e estes paulistas é só pabulagem. Eles lá sabem o que é algodão? Terra aqui não serve. Onde está, nestas bandas, sertão seco, como o de Seridó? Cadê algodão mocó? Para acabar lagarta uma boa defumação no algodoal e uma benzedura de um tio velho, negro sabido. Vai contando história, paulista, lagarta te come. Deixa algodão para a nossa gente do sertão, fica com o teu café ou então te vale de laranja e banana.

A negra Balbina também praguejava:

— Estas mulheres brancas pensam que me embaçam. Já descobri a marosca. O sujeito está para fora e aquela fuinha é a alcoviteira. Cara invocada, eu te castigo. As duas fecharam amizade, que é uma desgraça. Mas eu velo por Nhonhô e o pai do santo há de me ajudar com uma mandinga, que acabe com esta danação. Eixú! A espada de Ogun vae cortar toda esta cavilação.

Thereza almoçava, quando Balbina lhe trouxe Lili. A negra veio dengosa amimando a criança.

— Venha, meu benzinho, para junto da sua mamãe, ande, tome a benção e beija ela com gosto.

Lili correu para Thereza. A estimulação de Balbina fez-lhe transbordar os carinhos sempre violentos. Subiu ao colo de Thereza, abraçou-a com força, segurou-lhe as mãos, impediu-a de comer. Thereza ficou deliciada e não refletiu sobre o que havia de estranho nesta invasão da criança, que nunca lhe aparecia à hora do almoço e que ultimamente estava mais sequestrada pela preta. Naquele momento a sua alegria maternal foi intensa. Na unidade da emoção de sentir-se afagada pela criança e de dar um pouco da efusão do seu ser, refreada na separação de Filipe, não havia brecha para reflexões. Encantou-se com a figurinha de Lili, extasiou-se nos olhinhos vivos, cheirou-a, beijou-a, mordeu-a e transfigurava-se, quando a filha derreava-se nas Suas pernas a rir com os dentinhos brancos e a boca rosada, escancarada.

— Sinhá está toda babada de satisfação, comentou com voz grave, nos beiços roxos, rugosos, a negra. Há tanto tempo não vejo Sinhá rir. Ah! Meu São Benedito, não há como amor de mãe... Não é, Sinhá?

E a negra pôs-se em atitude extática, contemplativa, como orgulhosa de ter criado aquela alegria maternal.

Thereza ouviu o rumor das palavras de Balbina, mas não lhe prestou atenção. Prosseguiu no seu encanto. Entreteve-se em dar gulodices à criança. Era contra o regime. A negra não protestou. Assistiu condescendente e bondosa a essa desordem. Acabado o almoço, Thereza trouxe Lili para o jardim. A negra as acompanhara, ostentando grande contentamento. O sol ofuscava os olhos saídos da penumbra. Thereza correu carregando Lili para o mirante. Na sombra quente o seu corpo entrou a cheirar, como as flores e as plantas. Lili acalmou-se na modorra da luz e dos aromas. Espreguiçada no colo de Thereza, com as mãozinhas agarradas nos braços nus, escandecidos, que a agasalhavam, Lili foi-se enchendo de sono. Balbina não se pode mais conter e com uma voz quebrada falou a Thereza.

— Eu queria pedir um favor grande a Sinhá... Não me leve a mal. Mas Sinhá é tão boa, que eu tomei coragem...

Embatucou um pouco. Thereza esperou espantada o resto. A negra decidindo-se, continuou:

— Eu peço a Sinhá o grande favor de me deixar sair hoje à noite... Não se arrelie. É por causa de uma festa em casa de minha comadre, da Penha, dia dos anos do meu afilhado. Ela mandou me convidar. Eu cismei; como há de ser? Eu nunca saio à noite. A minha tarde de saída ainda está longe... E quem vai ficar com Lili, de noite? Para de tarde, tem sempre a arrumadeira, mas de noite? Aí é que é o difícil. Então eu fiz uma promessa para São Benedito, para me dar uma ideia. E o santo, que não despreza os seus devotos, me deu esta opinião dele. Sinhá me dá licença, eu deito Lili depois do jantar dela e saio. À noite, Sinhá, que dorme sozinha no seu mundão de cama, traz Lili para dormir com ela e assim tudo se passa bem até de manhãzinha, quando esta sua negra chega de volta. Não precisa ninguém saber... Sinhá não fala com Nhonhô, por isso não tem que contar nada. Depois Nhonhô está no mundo da lua com os seus estudos... Sinhá é quem governa. Tudo o que Sinhá disser, é o que se deve fazer...

Thereza achou isto muito singular. Hesitou em responder. Agradou-lhe a vassalagem da negra infame, ali submissa. Acreditou na força do seu prestígio. Imaginou uma noite inteira com a filhinha na sua cama. Era alguma coisa dela mesma, que lhe voltava. Pensou em Filipe tão longe, tão só. Ele não levaria a mal esta rápida desforra da maternidade. Ao contrário, ficaria contente sabendo que a filha a preferia ao pai. Era sempre uma vitória sua no amor de Lili, na vida doméstica, sobre a própria negra. E para Filipe não era Thereza a imagem da vitória?

A negra ficou um pouco confusa com o silêncio de Thereza, embora percebesse no rosto, que se espraiava feliz, não ter irritado a patroa. Aproximou-se mais de Lili. Encarou-a com vontade, bateu-lhe docemente nas nádegas descobertas.

— Não é, minha sinhazinha? Tu vais dormir com a tua mamãezinha na cama grande. Não diz nada a papai. Tu finge que dorme na tua cama, depois mamãe te leva e vocês duas vão brincar toda a noite. De manhãzinha eu trago umas bananas gostosas para as duas...

Lili achou isso uma fantasia extraordinária. Espertou e segurou Thereza no pescoço. Imperiosa queria aquela maravilha, aquela novidade, aquela mentira. Thereza acedeu ao pedido da negra. As alegrias disparatadas as unificou na beatitude. A calmaria agravou-se. Veio a hora de deitar, Lili, que adormeceu no colo de Thereza. A negra a tomou com um carinho imenso nos braços e muito mansa a levou para o quarto. Agasalhou-a na caminha e, vendo-a sossegada, ajoelhou-se no chão, abriu os braços, e murmurou:

— Obrigada, Ogun, que não desamparou a sua negra na hora da dificuldade. São Jorge, louvado. São Cosme, louvado, Eixú, Aireré, tacurerê... Oh! Minha noite santa...

Quando o dia acabou com grande custo e veio a noite, Balbina continha o alvoroço do seu peito para as companheiras não desconfiarem. Vestiu-se com o seu vestido azul, escondeu no lenço as contas douradas, os colares de missanga, as argolas de coral e as pulseiras de contas de louça colorida. Deu pachorrenta, como sempre, de jantar a Lili, passeou-a no jardim, falando-lhe em segredo do que estava combinado para aquela noite. A menina ardia de sofreguidão e queria que a negra partisse, para a grande novidade começar sem muita demora. Balbina não se alterou. Cumpriu fielmente os costumes. E só à hora regimental deitou Lili. Esperou que a criança, sem sono, adormecesse. Lili percebeu que era indispensável dormir para se ver livre da negra. Fechou os olhos e fingiu-se adormecida. Balbina não quis apurar a realidade. Contentou-se com a aparência. Sorrateira, escapou-se do quarto e, sem passar pela cozinha e sem nada prevenir a Thereza, foi para o jardim. Radagasio ainda jantava. Thereza esperava no seu quarto que ele desembaraçasse a sala de jantar. Balbina desceu para o portão, dissimulando-se nas folhagens. Na rua estacou, receosa da gente de Vieira e de toda a vizinhança, que aparecia dependurada nas janelas. Moveu-se pesada, beirando o muro, de cabeça baixa, escondendo a cara das luzes impertinentes. Deu a volta da ladeira e não havendo mais janelas, de onde a vissem, Balbina olhou para a igreja e rezou uma ave-maria de graças a Nossa Senhora da Glória. No escuro enfeitou-se com o colar dourado e com as voltas de contas, pôs argolas nas orelhas e pulseiras nos braços. A massa negra ficou iluminada com os reflexos dos metais e colorida delicadamente com as missangas e as porcelanas. Balbina não tomou a direção dos subúrbios. Qual festa na Penha! Tomou o bonde da Gávea. Quando passou no largo do Machado resmungou novamente uma ave-maria a Nossa Senhora da Glória. Repetiu a reza na praia de Botafogo, diante da igreja. Na Lagoa, ela entrara em outra zona mais misteriosa, mais sombria, mais profunda. Da montanha, da água e da vegetação vinham forças, que se entendiam secretamente com o seu espírito e o levavam aos círculos primitivos do terror. Balbina desceu do bonde depois do Jardim Botânico e foi-se esgueirando a pé pelo caminho da restinga, que vai ao Leblon. A viração do mar passava pelas árvores rasteiras e refrescava a noite sem lampiões, apenas coberta de estrelas. Cheiro de maresia, de mangue, de pitangueiras. Sobre a barreira do canal uma luz bronzeada guiou Balbina. Bateu pelo caminho de areia e foi-se apressando com o rumor das vozes, que lhe chegava. A casa de adobe, coberta de zinco, crescia em torno do clarão da lâmpada de querosene. Debaixo de uma mangueira, cruzavam-se sombras verticais e horizontais. Balbina avançou direta para o preto velho sentado nas raízes da árvore.

— Sua benção, tio Jerômo.

— Uê, oxalá, bererê! Tu, mia fia, crioula de arrombação, por aqui?... Cuidei que tu tivesse esquecido o caminho... Mas Ogun é grande e tu voltaste...

Os homens e as mulheres, que estavam espalhados no terreiro, apertaram o cerco em torno do tio Jerônimo e de Balbina. O prazer do preto velho os contaminou. Puseram-se a rir com o riso surdo e rudimentar dos negros. Ninguém conhecia Balbina. O pai do santo explicou:

— Esta cafuza foi cria na fazenda, em que eu me fiz gente, em Valença. Mãe dela era uma negra sacudida, macumbeira, que soube prender o sinhô... Hê, hê, esta aí tem sangue de branco, mas a alma é nossa. Está sabida de toda a mandinga, fui eu que ensinei desde a roça. Ela é de Ogun...

As negras, ao ouvirem o pai do santo pronunciar o nome sagrado, exaltaram-se e logo em marcha de dança puseram-se em roda, batendo as mãos, sacudindo os quartos, pisando forte o chão, cantando monossílabos soturnos. Balbina apegou-se ao pai do santo e babou-lhe com os beiços tesos a mão rugosa. O negro velho mandou cessar o barulho. Silêncio. Os homens empurravam as crioulas e farejavam Balbina. Nenhum ousava arrancá-la de junto do tio Jerônimo. Onde o pai do santo põe a mão, ninguém pode tocar. O espírito das trevas atravessa com a espada invisível o profanador. O negro velho com o olhar carregado desafiava o assanhamento dos cabras, que cobiçavam Balbina e, quando viu que todos se continham, mandou que se afastassem para ouvir o que ela viera implorar. Negros, cafuzos, mulatos, homens e mulheres espalharam-se pelo terreiro, zumbindo os resmungos pejados de curiosidade e despeito. Violas afinavam-se agudas no sussurro grave das vozes. O velho Jerônimo indagou de Balbina o que ela buscava. A princípio riu desdentado, de vagar, encorajando-a. A cabeça comprida, coberta de um cabelo duro, torcido, branco, a cara ossuda, deslavada, as gengivas escuras, cercando uma boca imensa, vulvar, em que batia uma língua pesada e roxa. O torso negro, curvado, a barriga funda, a bacia estreita, as velhas pernas compridas, os braços longos. Pés nus, encaranguejados, mãos de ferro velho. Mas toda esta carcaça gasta, ancilosada, animava-se de uma força mágica, que vinha do sobrenatural, para dominar, prever, guiar, proteger, punir. A força de Ogun no seu inspirado. Esta força magnetizava Balbina e arrancava-lhe os segredos mais obscuros, mais tenebrosos. O pai do santo cessou de rir para escutar a confissão.

— Meu pai do santo, eu recorro ao vosso poder para punir uma mulher danada, que faz mal ao homem que eu gosto... Faz tempo que eu persigo essa cara invocada. Eu esconjurei ela olhando para os chifres da lua minguante, eu apanhei as unhas, que ela corta nos dedos das mãos e dos pés, e pus no fogo, eu agarrei terra com a marca dos pés delia, fiz um bolo e atirei no fogo, eu matei uma galinha preta choca e espalhei o sangue na terra para ela pisar por cima... E nada de mal aconteceu àquela mulher invocada. Ogun não me protege, meu pai do santo. A única coisa, que deu um pouco resultado, foi o cabelo dela que eu fui a juntando e pus no jardim para passarinho levar e fazer ninho... Ah! Isso, eu creio, que fez seu estropício, porque ficou tudo enredado na casa, o marido desconfiou do embrulho, em que estava, e saiu uma briga feia... Eu quero que vosmecê puna a desenvergonhada, porque só vosmecê pode, eu não tenho poder para isto. Lá tem uma criança que a gente podia castigar para punir a mãe. Pensei isto, mudei de rumo. A menina está nas minhas mãos. Era só um trabalhinho à toa. Mas, quando descobri que a cara invocada da mãe o que quer é se ver livre da filha, desisti da intenção...

O pai do santo ouviu, calado, apenas batendo com a cabeça. Como Balbina parasse, ele passou a interrogá-la:

— Pelos modos que tu me contas é gente rica e vai ser difícil... Eu sei, é aquele mesmo teu sinhô moço, que tua mãe criou... Já sei, mia fia, tu queres castigar a malvada, a mulher do teu sinhô. E tu não queres punir ele também?

Balbina deu um grito profundo e segurou tremula as mãos do pai do santo.

— Oxalá, Ogun, meu pai do santo, pelo amor de Deus, proteja o meu sinhô moço... Faça uma roda de fogo, com a espada invisível do Arcanjo para nada acontecer a ele.

— Tu queres que ele te queira bem, ele, o teu sinhô? perguntou o preto velho, ávido por confessar a negra.

— Ah! Meu santo, se vosmecê me fizer esta graça, eu serei sua escrava para a eternidade até o fogo de Eixú. Faça com que ele goste de mim, faça, meu pai do santo...

— Saravá, sara vá, Oxalá... Pela força de Ogun, tu ganharás o amor do branco, mia fia, e ambos os dois serão livres da maldita.

Balbina exultou e babou gostosa a mão empedernida do negro.

— Eu queria que vosmecê fizesse a mandiga hoje mesmo, um despacho molhado para se pôr esta madrugada na encruzilhada da rua...

Tio Jerônimo matutou sem responder. A negra insistiu.

— Mia fia, isto devia se fazer em dia que tu viesse sem ninguém, assim à tardinha. Agora, de noite, todo este bandão de gente vem para a devoção e ouvir os espíritos. Pode-se fazer depois do toque da meia-noite, para pôr no começo da madrugada, porque já é amanhã. Tu trouxeste dinheiro?...

— Está bom, está bom, continuou o preto, alegre com a afirmativa de Balbina. Vamos arranjar. Tu não trouxeste nada, nem charuto, nem galinha, nem parati... Enfim o pai do santo está sempre prevenido... Eu te vendo tudo, galinha especial, da minha criação, já vinda do ovo com mandinga. Tudo criação preta. O trabalho, com os fornecimentos, custa cinquenta mil réis, fora o que tu pagas ao Barnabé para pôr o “despacho”. São cinco mil réis e a condução. Para pôr o “despacho” é preciso boa mão. Tu não deves te arriscar. “Despacho” posto por Banarbé não escapa...

Balbina tinha consigo o dinheiro para estas despesas. O pai do santo bateu palmas e todos lhe prestaram a atenção.

— Agora, devotos de Ogun, toca a sambar em favor desta devota. Saravá, povo do mar, saravá, povo do mato. Tudo junto, auê, auê... Oxalá...

Os ogans violeiros atacaram a música, sacudidos por um pandeiro, um reco-reco e um roncador, que entraram violentos na toada melancólica. A gente negra dançava e cantava. Os pés socavam o terreiro e as vozes pesavam no ar. O pai do santo empurrou Balbina para o samba. Um cafuzo possante apoderou-se da nova devota e os dois volumes rolaram no maxixe, que apertava e abria os corpos frenéticos. O samba seria interminável se, depois de um longo tempo de música e dança desbragada, tio Jerônimo, debaixo da mangueira santa, não ordenasse silêncio.

— Suspendam as danças, meus devotos, nós temos muito que trabalhar esta noite e ainda pela madrugada. Ogun espera por nós. Vamos para a sala das consultas, o santuário dos espíritos... Antes de nos reunir no cansol do pai do santo, corra um pouco de restilo...

Foi um avanço para a cachaça, que beberam em tigelas e canecas. Bom para esquentar, bom para refrescar. A negrada assanhava-se no álcool e na feitiçaria. Alvoroçados, machucavam-se, friccionavam-se, deliravam. O pai do santo desaparecera. Em roda da mangueira prosseguia a orgia, que foi interrompida, quando deram sinal para entrar na casa. Subitamente contritos, saíram da escuridão para a luz da sala, onde o pai do santo, paramentado, os esperava no seu cansol. Fitaram apavorados o “estado”, em que faiscava o Orixá. Era uma figura a cavalo, São Jorge, extravagante, quase negro, diabólico, a expelir fogo pelos olhos e pela boca. Em torno, uma serpente voando, no alto, a estrela do mar, Saravá. Um disforme signo de Salomão, bichos, monstros de papel dourado, longas tiras de galão prateado, na parede, realçando o quadro do Orixá. Uma toalha de crivo cobria a mesa do altar, cheia de vasos de flores de papel, charutos em pé, punhais espetados, velas acessas. Nas outras paredes do cansol, bandeirinhas, quadros de papelão com linhas cabalísticas, figuras absurdas. Na frente do “estado”, o pai do santo paramentado com uma capa de pano verde, uma coroa de papelão dourado na cabeça e uma vara na mão. Ao seu lado uma cafuza moça, de porte arrogante, vestida de uma saia azul e uma camisa alva, de renda, descoberto o colo escuro, cheio de voltas de contas e missangas e, nos braços nus, pulseiras de coral e de pedras falsas. Na cabeça, um turbante branco, crivado de lantejoulas e no tope uma estrela de filigrana dourada. Era Amélia, rainha de Loanda, a mãe do santo. Deslumbramento de Balbina, que não ousava encarar o Orixá terrível. Os seus olhos perdiam-se no pai do santo, armado do poder supremo, e da mulher, sua emanação, em que Ogun baixara. O pai do santo falou, na sua linguagem bronca, de termos cabalísticos, muitas vezes incompreensíveis dos devotos, porque eram improvisados no impulso sonoro, no delírio verbal, extravagante. Vinham termos congoleses, benguelas, nagôs, minas, cabindas, misturado com raízes tupis. Passavam reminiscências mongólicas ou ciganas com deformações lusas. Nesta arenga rude intrincavam-se todos os caminhos da magia primitiva, marcados pelas expressões truncadas, grosseiras, aleijadas, mas guardando nelas o fogo perene do mistério, sempre pronto a incendiar os espíritos. A negrada acompanhava o pai do santo cantando, no coro, melopeias, em que as finais metálicas ou soturnas de Orixá, Ogun, Eixú, estalavam e assombravam. Depois das preces e invocações, o pai do santo ordenou o samba em louvor do Orixá. As violas, os pandeiros e os reco-recos arremessavam-se, tocando no vazio. Os macumbeiros tinham ido beber cachaça no terreiro. Voltaram esquentados, atirando-se à dança. Sambaram em ritmo religioso, fazendo reverências ao pai do santo, que lhes batia com a vara exorcizando-os. Os devotos prosseguiam contritos, solenes, abrindo, em roda da sala, um claro no centro. A mãe do santo levantou-se e entrou no meio da roda. Dançava soberanamente. Erguia a cabeça, gingava o corpo esguio, marchava leve, airosa, faceira. Os macumbeiros batiam palmas, sambando sempre. A música esforçava-se. O cheiro negro azedava o ar. A rainha de Loanda cantava no compasso da dança. O frenesi crescia. A mãe do santo deixou cair a saia. A camisa alva, transparente, chegava apenas às coxas oleosas, cobrindo o ventre e os quadris, que enegreciam a brancura da cambraia. Continuou a dançar concentrada, fervorosa. Os devotos batiam as mãos pesadas e as cabeças duras. As vozes altas, esganiçadas, das mulheres erguiam-se sobre as vozes baixas e roucas dos homens. Dançavam aos berros frenéticos, exasperados de devoção e luxúria. O pai do santo animava-os com os seus lamentos piedosos. Amélia arrancou a camisa. Delírio. A negra esguia, flexível, ardente, empinava a cabeça e os peitos. O ventre entrava, os quadris retesavam-se, o sexo empombava. É! Macumba. Outras negras despiram-se, magras, esqueléticas, gordas, bojudas. Saracoteavam, rebolavam nos braços dos homens alucinados. Uma cafuza dava gritos, pulava, queria morder e caiu convulsa, em espasmos, debatendo-se no chão. Homens e mulheres dançavam, em fila, em torno da rainha de Loanda e da epiléptica. Balbina, possessa, esperneava aos pés do pai do santo, suplicando que Ogun lhe desse o amor de Radagasio e castigasse Thereza. O preto velho prometeu e pediu o dinheiro. Balbina ainda teve atenção para ouvi-lo e tato para tirar o dinheiro do lenço, escondido no seio. Tio Jerônimo, que não estava bêbado, agarrou a cédula e a pôs no bolso. Mandou que a música parasse. Ficaram atordoados. Mas quem estava nu, continuou nu. A rainha de Loanda retomou o seu lugar junto do pai do santo. Este explicou que estava ali uma devota, que ia ser benzida para que o espírito descesse nela e fizesse o que ela pedia. Os macumbeiros sentaram-se no chão, solenes e lúgubres. O pai do santo mandou que cantassem. Uma invocação lamurienta, dolorosa, saiu rude dos peitos negros. Balbina estremeceu do medo, que a invadia possante. O pai do santo a encarou com os olhos de fogo. Balbina viu a cara do preto crescer e encher todo o “estado”. Depois viu as mãos do negro suspendendo no ar cabeças de oguns, de orixás, de eixús e todas mostravam os dentes e as línguas e avançavam para ela. Balbina fechou os olhos e estirou-se cataléptica. O pai do santo mandou que a rainha de Loanda e outras mulheres despissem Balbina. Os macumbeiros cantavam os seus coros dolorosos. Balbina ficou nua, espojada no chão. Era uma massa enorme, cinzenta-preta, pescoço taurino, peitos de jaca, ventre vasto, desdobrando-se sobre as coxas elefânticas. A expressão da cara traduzia a beatitude da bem-aventurada. Os olhos doces, extáticos, apenas cerrados, as chatas narinas, arfando, bafejavam o sorriso venturoso da boca rasgada. O pai do santo pegou um galho de arruda e sacudiu água sobre o corpo da negra. Ordenava aos espíritos que baixassem sobre ela. Resmungava as suas ordens e esperava. Balbina ia ouvindo as rezas do pai do santo e a cantoria dos macumbeiros. Transfigurou-se e queria mais e mais daquela magia. Ameba veio acariciar as pernas e os peitos de Balbina. Os macumbeiros cantavam mais alegres. A rainha de Loanda acariciava os pelos duros e crespos de Balbina. O pai do santo sussurrava uma melopeia muito funda, procurando os olhos da negra. Ela estremecia de gozo, sem pavor, e enlanguescia todo o corpo na delícia da volúpia. A rainha de Loanda continuava a friccionar-lhe os seios, o ventre e as coxas. O pai do santo comandou a Balbina que dissesse baixinho o nome do seu amor. A negra em êxtase, pronunciou, muito doce e muito escondido: Radagasio, Radagasio. O pai do santo arreganhou-lhe as guelras roxas, lavou-as com a água sagrada dormida no tronco da mangueira. Os macumbeiros reconheceram que o espírito baixara em Balbina. Exultaram. Os cantos deixaram a triste melopeia e foram ruidosos e alegres. Balbina, repousada, feliz, olhava aquela gente, que a cercava, olhava o pai do santo, fitava enfim o Orixá e deixava-se ficar nua, embevecida, triunfante. O pai do santo deu por terminada a cerimônia. Mandou que esvaziassem o cansol, pois tinha outros trabalhos a fazer. Os que estavam nus vestiram-se e a maior parte da negrada veio para o terreiro beber parati. O pai do santo ficou dando consultas. Em nome de Ogun, tio Jerônimo curava tudo, doenças físicas e morais, espinhela caída, barriga d’água, maleitas, perseguições, mau-olhado, amores infelizes, ciumeiras, caiporismo. Baixava o espírito poderoso do bem e expelia Eixú, o diabo. Durante as consultas, grande silêncio no cansol. Os macumbeiros, que não tinham interesse nos casos particulares, ficavam no terreiro a beber, enquanto as violas e os pandeiros tocavam.

Já de madrugada chegou a vez do “despacho” de Balbina. O negro velho deu em voz baixa ordens à mãe do santo. Ela foi para o terreiro e ele ficou absorto em Ogun. Balbina esperava, sentada aos seus pés. Voltou a mãe do santo com uma galinha preta, uma garrafa de parati, uma cuia de farinha de mandioca e um copo de azeite de mamona. Pôs os outros objetos junto do “estado” e de cima da mesa retirou quatro charutos, dois punhais e uma faca de cozinha. O feiticeiro segurou a cuia de farinha nos joelhos, deitou dentro um pouco de parati e de azeite e, rezando sempre, mexia com a mão até fazer uma paçoca. Depois levantou-se e colocou a cuia com a farofa no altar. Ofertou várias vezes ao Orixá. Pôs dentro os charutos e tomou a mexer. Os macumbeiros rezavam em sussurro. Balbina agarrava a galinha, alvoroçada por fugir e cacarejando agoureira. Balbina apertava-lhe o pescoço. O pai do santo depôs outra vez a cuia com a paçoca e os charutos no altar e pegou a galinha. Conversou, em uma linguagem surda e incompreensível com o bicho, ofertou-o várias vezes ao Orixá e depois esfregou-o na cabeça, nas mãos e no colo de Balbina. Ordenou que a negra se sentasse com a galinha nos joelhos e lhe dissesse no bico tudo o que precisava. Balbina, suspirando cheia de fé e esperança, pediu à galinha que castigasse Thereza e a unisse a Radagasio. O pai do santo, muito entrevado, pôs-se a dançar no “estado” e a rezar. Todos o acompanhavam, banzos. Parou e empunhou a faca. Agarrou o pescoço da galinha, pôs em um prato e cortou. O sacrificador foi embebendo as mãos no sangue violento. As suas narinas arfavam de gozo. Este sangue foi escorrido na cuia da paçoca novamente remexida. A cuia foi enfeitada com as penas pretas arrancadas da galinha. A farofa ainda levou a cabeça da galinha, os pés e quatro charutos. Estava feito o “despacho”. Música. Mandinga.

O dia estava querendo amanhecer, quando Balbina, acompanhada do preto Barnabé, deixou a muamba. O “despacho”, que o negro trazia com grande respeito, vinha em um jornal. Quando chegaram à Rua do Jardim Botânico, resolveram tomar um táxi, receosos de serem percebidos pelos viajantes dos bondes. Metidos no automóvel, vieram taciturnos, zelando o “despacho” e imaginando o que ficava para traz e que sempre os acompanha, Ogun e a sua feitiçaria. Encontraram bondes elétricos, jardins científicos, habitações civilizadas, escolas, passaram pela Lagoa drenada, onde guindastes, gruas, decauviles, labutam, desceram pelas avenidas asfaltadas e vieram parar à beira do cubo de cimento, que é o Hotel Glória. A alma dos macumbeiros permanecia imersa na selvageria primitiva. Para sempre. Desceram do automóvel e subiram a pé a ladeira em busca da encruzilhada. Por eles passaram Manuel e Pedro, que iam ao banho de mar e reconheceram Balbina. A negra, absorta na mandinga, não fez reparo. Foi caminhando. Na encruzilhada, o preto Barnabé assuntou que tudo estava sossegado e, depois de uma reza a Eixú para que “abrisse a rua e fechasse a rua”, depositou o jornal em uma pedra. Balbina pagou-lhe o serviço. Barnabé, com medo de ser visto, desceu às pressas a ladeira, enquanto Balbina a foi subindo, agitada de esperança.

A música sertaneja vinha de longe espraiando-se no campo, coando-se nos cafezais, cavalgando o vento subtil da noite, acalentando os pássaros adormecidos, o gado, os eucaliptos, as mangueiras e as laranjeiras da fazenda. Aqueles rústicos e tímidos acordes tinham a força de harmonizar e dominar em seus ritmos simples, a sonoridade, que vagava incerta no espaço. A toada humilde absorvia as inumeráveis e inominadas vozes e crescia, como se fosse o canto exclusivo de toda a natureza. Crescia sempre, imperava e avançava até que Filipe viu ser todo este prodígio a façanha de três pobres instrumentos, uma viola, um cavaquinho e um violão. Os tocadores, cabras nordestinos, saudaram a companhia, repicando um coco acelerado, em que a viola cantadeira ia na frente, espevitada, seguida do dengoso violão, fugindo do zombeteiro cavaquinho. Um cantador esganiçado improvisou quadras de vassalagem aos maiorais da fazenda. Quando pararam e foram louvados, Men mandou servir-lhes pinga. Beberam chalaceando em gíria nortista, que os Americanos e os outros estrangeiros, em roda, entendiam saborear, como se fosse ainda música do sertão. Depois de reclamações impacientes, romperam a tocar e a cantar.

A vida sertaneja enchia as cantigas. Era a paisagem nua e dura, o descampado seco, o deserto das carnaubeiras, os cômoros, onde se exilam, na pedra e na areia, os mandacarus, os xique-xiques, de braços abertos, carregados de espinhos, que abrem em flores de sangue, os funéreos facheiros, as serras dos jatobás, onde se encostam as matas de ingazeiras, de oiticicas e de juazeiros, e, sobre elas e sobre as catingas, arribando, as infinitas e tumultuosas vagabundas avoantes, vorazes, poedeiras. Cantaram o boi, o seu ciclo de vaquejadas, de tráficos, de migrações, de lavouras, de festas e bumbas. A bicharada fantástica, pulando na mataria, assombrações e caçadas. Quizílias partidárias, zombarias do populacho. Ciclo heroico dos cangaços. Dramas do sertão e as duas grandes pessoas dramáticas, a espingarda-pá, a faca de ponta-tá. Cunhãs, cabrochas, mulatas, caboclas, invocadas com uma delicadeza e um pudor, que diferenciam a volúpia sertaneja da luxuria negra. Os brasileiros do sul, os Corrêa de Sá, perdiam muito do encanto dessas obras, desses martelos, dessas emboladas. Os estrangeiros divertiam-se e não compreendiam. Para a confusão americana tudo aquilo era música negra. Filipe gozava o sabor das cantigas e desafios. Só aquelas vozes podiam exprimir a magia nortista, que também ressoava nele pela transfusão do sangue paterno. Procurou conversar com os tocadores, que, desconfiados, não se entregaram facilmente. Afinal, foram cedendo a uma secreta comunicação com a sensibilidade de Filipe e, esquentados pela pinga, entraram a pabular as suas bravatas.

— Qual, seu doutô! exclamou um dos cabras cantadores, sertão não é só cantoria. Lá se briga a vida inteira, e de verdade.

Os nordestinos encheram-se de vaidade para parecer aos camaradas paulistas e aos colonos, como valentes e infatigáveis batalhadores. Um dos camaradas sertanejos, que havia acompanhado os tocadores, blasonou:

— Nós somos da terra do cangaço, onde a gente peleja dia e noite...

Os companheiros riram, ufanos...

— Aí, cangaceiro velho... Tu estás espantando esta arraia mofina, como a terra fria deles...

Os camaradas paulistas riram contrafeitos da pabulagem nordestina. Filipe, curioso, interveio para perguntar ao cabra sertanejo se ele fora cangaceiro. O homem respondeu ousado:

— Nhor sim, não tenho pejo e não minto, assegurando a vossa senhoria que já trabalhei no cangaço...

— Lampião? indagou rápido Filipe.

— Nhor não, eu conheci o Virgolino, quando estávamos ambos os dois sob as ordens do grande Sinhô Pereira. Vossa senhoria nunca ouviu falar? Chefe de cangaço, como aquele nunca houvera, nem Luiz Padre...

Os sertanejos alvoroçaram-se. Cada um quis contar uma façanha cangaceira, lembrar um grupo de bandoleiros. Foi uma conversa assanhada de fatos, de pessoas, de misérias, de roubos e morticínios. Os paulistas estavam enfiados e humildes com as proezas dos nortistas. Um paulista, picado de vaidade, procurou reagir:

— Vocês só contam rodelas com este Pereira e o tal de Lampião... São Paulo não inveja ninguém. São Paulo, terra de bandeirante, está na frente por um tudo... São Paulo não se arreceia de Lampião, porque já teve o Dioguinho... Esse, sim, era um bicho bravo, que metia pavor... Só falar nele tudo treme...

O cangaceiro nordestino deu um muxoxo e cuspiu na terra. Levantou a cabeça para o ar, fitou com raiva nos olhos sanguíneos o paulista, sorriu, atrevido, desdenhoso:

— Nunca ouvi falar... Onde vive este Dioguinho, que quero me topar com ele?...

Esperou a resposta, que veio murcha.

— Já morreu...

Os nordestinos riram estrondosos e puseram-se a escarnecer do paulista. O cangaceiro retrucou mais desdenhoso:

— Tu falas de fantasma, paulista, Deus te fale na alma e ao teu Dioguinho...

— Fantasma não, replicou enfurecido o paulista. Deixa de confiança. Dioguinho foi um valente, como nenhum neste Brasil. Era um moço simpático, bem vestido, que meteu medo à polícia... Era muito bom para os pobres... Mas tinha aquela sina de matar... E fez quarenta e duas mortes... Só foi preso por traição de um caboclo velho, que ele protegia. Foi na emboscada da polícia no Mogi-Guaçu... Quem teve Dioguinho, não tem que invejar Lampião...

— Cala a boca, paulista, não desfaça de Lampião, capitão Virgolino Ferreira da Silva, e do seu bando sem igual... Sabino Gomes, Ezequiel, Massilon... Ah! Não, gente destemida, glória dos nossos sertões... Este vosso Dioguinho, como o tal de Antonio Conselheiro, e mesmo o Antonio Silvino, tudo é fantasmagoria, eu quero saber de gente viva, que está batalhando...

Um camarada nortista, estimulado, entrou na disputa. Não era espadaúdo e arrogante, como o cangaceiro que esbravejava. Era pequeno, magro, seco, amarelo-fosco. Na máscara felina caíam pálpebras longas, pesadas, as maçãs da cara salientes, os dentes miúdos, enterrados.

Quando sorria limitava-se a arreganhar os dentes e a olhar fixo. Desbarbada a pele mongólica e, na cabeça larga, o cabelo denso, grosso, castanho, reluzente. Tinha gestos cautelosos, vagarosos, desconfiados. A sua voz sibilou fina, cortante. Os nortistas, que o conheciam, o temiam.

— Se tu topasse Lampião, paulista frouxo, tu e toda esta gente paulista morria de medo. Pois eu te asseguro que fui do cangaço de Lampião... Não há inconveniente...

Filipe interessou-se pelo que confessava o camarada. Interrogou-o com cuidado, animando-o e justificando-o. O cangaceiro foi abandonando a desconfiança e, por vaidade, ia narrando episódios do bando, a que pertencera. Eram assaltos às povoações, aos engenhos e às fazendas, resgates de prisioneiros, contribuições de dinheiro, gado, armas e balas. Só assim as populações eram poupadas. E rematou contando a ocupação, que fizeram, na vila do Limoeiro, no Ceará, quando se escaparam da polícia paraibana.

— Saiba vossa senhoria, que nós demos uma batida nas tropas do governo e fomos varando pelo Ceará a dentro, depois do ataque sobre Mossoró, que foi uma vitória sem igual. No Limoeiro, tudo estava em festa para receber os cangaceiros. Mataram uma rês e alguns cabritos para o nosso almoço. Foi um despotismo de doces, bolos, beijus, pamonha, coalhada, queijo do sertão... Festança de regozijo e nós respeitamos as mulheres e toda aquela gente boa, que nos deram dois contos de réis de recompensa... Depois que nós saímos apareceu a polícia paraibana, que fez um desperdício horrível, maltratou as gentes, fez mal às mulheres, roubou os teréns, raspou todo o dinheiro, surrou, destruiu... Qual, saiba vossa senhoria que polícia do norte é bandida mesmo...

— E porque você deixou o cangaço? indagou Filipe...

— Sorte da gente, seu doutô. Enrabichei-me por uma cabrocha das vizinhanças do Limoeiro e não quis prosseguir. Lampião pelejou comigo para eu ficar firme, mas qual, seu doutô, mulher é mais omnipotente... Uma feita, me escondi do bando, quando descampava por causa da tropa de perseguição e fui ter com a mulher. Me arrependi que Deus sabe. Passado pouco tempo, a mulher morreu de bexiga preta. O bando estava longe nesse mundão de Cristo, lá para as terras santas do padre Ciço. Não me achei com jeito de ajuntar de novo, depois do que fiz, aos companheiros. Então me pus a trabalhar e, de trabalho em trabalho, varando todo este sertão, vim parar na mão do nosso capataz-empreiteiro e aqui estou... Tudo castigo de Deus Nosso Senhor pela minha falsidade com Lampião...

— Quem sabe se você não torna ao seu bando? animou-o Filipe.

— Não sei, nhor não. A gente pune pelo seu destino...

O paulista metediço, o admirador de Dioguinho, vendo o desconsolo do cangaceiro, entrou a debicá-lo:

— Êta, cabra do norte, deixa de choradeira, aqui tu ganhas dinheiro sem roubar e tu não tens fome...

O cangaceiro fechou ainda mais as pálpebras, arreganhou os beiços e os dentes se enterraram uns nos outros. Filipe sentiu no silêncio, que os outros camaradas sertanejos fizeram, o alcance do ódio do homem. Cortou-lhe a raiva, agradando-o, louvando-o pela sua valentia. O cangaceiro abrandou e retrucou ao paulista:

— Tu estás, mas é chumbado. Não fala em roubar, porque roubar é aproveitar o suor dos outros, como se faz aqui nestas bandas. Nós, no sertão, só tiramos o que precisamos para viver e o mais distribuímos aos necessitados. No Limoeiro, Lampião deu a cada pobre do lugar uma cédula de dez mil réis, duzentos mil réis para a igreja e mandou espalhar, como milho, pela criançada, toda a prata e todo o níquel, que nós carregávamos. Todo o povo abençoou os cangaceiros.

— Mas tu fugiste da fome e, se não fosse São Paulo, tu estavas bem morto, comido por bicho, implicou o paulista.

— Ai, ai, minha Nossa Senhora, não provoque, homem de Deus, gritou o cangaceiro com uma voz de desespero. Nós não temos fome, temos é seca. A terra será desgraçada, mas é nossa. Vocês, paulistas, venderam a terra de vocês a este bando de carcamanos e gringos, que invadiu tudo como formiga: Danação. Brasil aqui se acabou.

O paulista, furioso, quis intimidá-lo.

— O melhor, cabra, é tu te calares, porque tu estás na pátria alheia.

— Terra estranja, gritaram os camaradas nortistas.

— Olha, paulista, deixa de arreliação e de pabulagem. Tu só arrotas café, café. Vai te fiando. Nós somos da terra de cana, que dá açúcar, cachaça, melado, rapadura. Açúcar já foi rei. Açúcar pagou a independência do Brasil. Realeza do açúcar acabou, acabará também despotismo de café.

Outro cangaceiro gritou, ameaçador:

— Toma tento, paulista velho, café é bicho andejo. Café te deixa nu na estrada, como já deixou Rio de Janeiro. Café agora só procura por Paraná e Mato Grosso...

O administrador berrou para que acabassem com o bate-boca. Os fiscais intervieram gritando com os disputadores. Houve um silêncio resmungado e os tocadores prosseguiram, desenxabidos, na melopeia sertaneja.

A imundice da pajelança ostentava-se ao sol da ladeira da Glória. Para os estrangeiros, que desciam das pensou o “despacho” era uma porcaria a mais, na rua esquecida. Passavam repugnando-o, batendo com força os seus passos de desprezo. A gente mestiça estava apavorada. Logo que avistavam a pajelança, estacavam. Pregavam os olhos fascinados nas penas pretas da galinha e na farofa amarela, onde apontavam os funéreos charutos. Benziam-se, praguejavam e não passavam. Retrocediam para o outro lado da ladeira. Toda a vizinhança alarmou-se. A manhã inteira, o “despacho” com os seus malefícios excitou a curiosidade e a imaginação. Antes de indagarem quem fora o autor da mandinga, o maior interesse era saber contra quem a terrível ameaça. Os mais afoitos procuravam na cuia fatídica um papel que, segundo os usos, indicasse a vítima condenada. Nada foi encontrado. O mistério aumentou o terror. Cada qual se sentiu atingido por uma perseguição oculta da inveja e da perversidade. Até a solidão de Thereza chegou o espanto. Os criados, que voltavam das compras, narraram o caso estranho. Não tardou que informassem Thereza. Ela desdenhou, alheia às correntes baixas do terror primitivo. Balbina pajeava Lili, afastando-a de Thereza, enfeitiçada por Eixú. A negra esperava Radagasio perto do automóvel, que o ia levar ao banco. Quando ele apareceu, carrancudo e ralhando com o chauffeur por causa do gasto da gasolina, Balbina suspendeu Lili para beijar o pai. Radagasio não fez caso. Continuou a esbravejar insultando o chauffeur. Lili quis escapar-se dos braços da ama, que a segurou com raiva.

— Fica quieta, Lili. Olhe seu papai como está tão bonito. Nhonhô está mesmo sacudido, que é um gosto. Chapéu de palha vae bem em Nhonhô, roupa clara exalta a formosura. Nhonhô está rosado... Benza-o Deus. Não há como o sol de verão...

Radagasio estufou para se mostrar mais corado. Os olhinhos lúbricos, voltados para a negra, entortavam-se sobre as bochechas enfunadas.

— O sol é a fonte do calor e da vida. Dá-me o calor, eu criarei universos, disse.

Entrou sorridente no automóvel, que foi descendo devagar, deixando a Radagasio tempo de se embeber na onda de luxúria, que se despregava assanhada, catinguenta, da negra.

Crescia na solidão o desespero de Thereza. Já não se conformava com a ausência necessária de Filipe. O vazio era imenso e as cartas, que recebia e respondia, não bastavam para sossegá-la da tortura da desolação. Queria a presença real de Filipe. Vê-lo, ouvi-lo, abismarem-se na alegria física da paixão. Por um esforço sobre-humano, ainda não reclamara a volta do adorado. Vencia-se para se conformar com a terrível necessidade de conquistarem a independência material, indispensável à plenitude da libertação. O seu espírito concentrava-se em Filipe. Procurava reconstruir, pelo que lhe dizia, toda a vida que levava na fazenda. Foi-se enfurecendo com o interesse que ele mostrava pelos factos da lavoura, da colonização, de todo o ambiente de Maracajá. Detestou esta maldita curiosidade de saber e aprofundar. Pouco a pouco, o azedume do exclusivismo lhe foi envenenando a doçura da esperança. O martírio do ciúme impreciso e doloroso por tudo o que interessasse Filipe fora do amor. Não tinha mais calma para suportar a miserável existência naquela casa desgraçada. O ódio a Radagasio mantinha-lhe o sangue em ascendente efervescência e não lhe deixava distrair-se um instante. Nas longas conversas com Ritinha, as suas expansões eram o seu surdo ciúme de Filipe e o desespero contra Radagasio, agarrado à sua fortuna. O mau humor roía-lhe a doçura. Nada a distraía da obsessão de desejar a presença de Filipe e de desaparecer com ele de todo o inferno em que se via torturada. Isolava-se cada vez mais dentro do seu desespero. Só tolerava a companhia de Ritinha, porque lhe falava eternamente do seu amor e da sua angústia. Deixou de ir à casa de Vieira, que se lhe tornou aborrecida. D. Calú prosseguia nas suas intermináveis lamentações. Era a mãe inconsolável e trágica. Vieira lunático. Araci azeda, sarcástica, perdera a frescura da vadiação alegre, depois de abandonada pelo Léo. Passara à preguiça e ao desleixo. Os rapazes empenhavam-se em novos rumos, desiludidos da revolução. Manuel exaltava-se no comunismo. Tornara-se um militante e entrara em uma célula.

Como tinha sido um ardente revolucionário liberal, passara a ser um comunista extremado. O seu temperamento expandia-se nas paixões políticas, no exclusivismo partidário. Pedro, que ia concluir o curso de engenheiro civil, tornava-se um profissional da energia e do dinamismo. Aspirava a reconstruir o Brasil com a mecânica e com a eletricidade. As perspectivas, que lhe abriam, de uma prolongada visita aos Estados Unidos, acompanhando um dos principais engenheiros da casa, onde era empregado, o preocupavam e o desinteressavam da lenta campanha revolucionária. O seu temperamento era móvel e exigia a ação imediata. De Monteiro havia notícias. Continuava foragido, sempre fiel à revolução e já querendo voltar ao Rio pata conspirar. De tudo isso estava longe Thereza, absorvida no amor.

Passara aquela sexta-feira, em que o “despacho” a ameaçara na encruzilhada de Eixú, muito só. Ritinha não viera o dia inteiro. Não havia carta de Filipe a trazer-lhe. Thereza não teve ânimo de sair de casa e aplicou-se longas horas a escrever a Filipe. Não notou que Lili lhe aparecera menos naquele dia. Nem mesmo à tarde, quando costumava vir ao seu colo no mirante, acompanhando as duas, de longe, o banho do Flamengo, alegre, vivaz, colorido, e os yoles, os skiffs e os caíques brincando nas ondas, e as gaivotas, as garças, arquejando a recolherem-se nas ilhas oceânicas, e as fragatas, os albatrozes, navegando no céu vermelho, e as praias e morros da outra banda, abrasados, rubros, e as andorinhas loucas, barulhentas, que vinham dormir dentro do telhado da velha casa. E, no calor exasperante, cheiravam os bogaris, os jasmins, as magnólias, cheirava Lili, cheirava Thereza.

Depois do jantar ela voltara à sua meditação no eterno mirante. Àquela hora, Filipe, na fazenda, ouvia as conversas arrastadas sobre café e coisas matutas. Sofreria como ela no desespero da separação? E não havia ainda sinal de que os negócios estivessem a terminar.

As cartas de Filipe não anunciavam precisamente a época, em que ele voltaria. Como ter força para esperar sem desânimo? Thereza censurava-se pelo desespero, que a invadia e procurava reagir, sonhando com a magia da libertação, que não estaria longe. Estava disposta a tudo, a fugir com a filha e, na companhia de Filipe, não temeria a fúria de Radagasio, a quem abandonaria a sua fortuna pela liberdade. Negócio. O instinto prático da mulher e daquela descendente de comerciantes resolvia assim o maravilhoso problema sentimental. Thereza foi seguindo os incidentes das possíveis negociações com Radagasio e já entrando pela imaginação nos pormenores da divisão dos bens, foi adormecendo resignada. Muito tempo de sono no mormaço da noite pesada. Se entre acordava e ouvia os cães soltos farejando e arfando, continuava na modorra. Uma vez lhe pareceu sentir bem próximo um ruído, que não era o da ansiedade dos cachorros, aflitos de calor. Abriu os olhos com mais vivacidade e viu alguém correr e procurar esconder-se na escuridão das árvores. Pôs-se de pé, gritou, açulou os cães, que não se arremessaram contra o vulto volumoso, que desaparecera. Devia ser alguém da casa. Thereza recolheu-se apressada. Chamou um criado e ordenou-lhe que fosse ver o que se passava. Ficou inquieta e correu ao quarto de Lili. Encontrou a porta encostada e dentro a criança sozinha. Esperou pela negra, que não apareceu. O criado voltou para dizer-lhe que a única pessoa que estava no jardim era Balbina. Thereza mandou chamá-la. Que fazia a negra lá fora no escuro a espiá-la? Radagasio? Mas, se ele tinha saído? Balbina entrou malcriada, furibunda e não deu explicação a Thereza.

Ritinha fazia serão costurando o vestido, em que se ocupara o dia inteiro. Toda a casa dormia. A velha Andreza para tomar conta de Ritinha deitara-se no chão, fazendo travesseiro de uma desbotada almofada. A curva do pensamento de Ritinha enlaçava o noivo, Thereza e Filipe e às vezes o seu Rio Itapecuru, velhinho, sossegado, lá nas brenhas. Ia divagando e cosendo ligeira, quando Manuel e Pedro chegaram da rua. Andreza despertou e sentou-se reverente. Os rapazes estiveram mirando o trabalho de Ritinha e louvaram-lhe a faceirice. Mulher é assim. Enquanto o Viriato anda vestido de zuarte de algodão, ou nu, lá no Acre, estava ali a sonsa Ritinha a preparar um vestido de Jersey de seda. Tão alegre, tão moderno. Presente de Thereza. Os rapazes, que tinham jantado fora, já estavam com fome. Ritinha mandou Andreza buscar goiabada, biscoitos e um presunto americano. Presente de Thereza. A lâmpada elétrica só iluminava a mesa da sala de jantar, onde Ritinha trabalhava. O resto da sala ficava no escuro e foi com dificuldade, que a velha pode mover-se. Manuel foi ajudá-la a trazer tudo para a mesa e começaram a comer alegremente. Thereza tinha sido uma grande invenção. Sempre generosa e delicada. Mesmo que não lhes aparecesse como dantes, não os esquecia. Ritinha ufanava-se com aqueles elogios ao seu ídolo. Sentia que tudo o que Thereza dava, era mais por ela e feliz sorria maternalmente aos gulosos. Enquanto devoravam, indagaram do que se passara em casa, de onde se ausentaram desde pela manhã muito cedo. Ritinha contou-lhes o alvoroço da rua com o “despacho”. Os rapazes riram, achando tudo aquilo idiota e porco. Andreza indignou-se.

— Não digam nada, não falem assim, vosmecês são crianças, não sabem a maldade desses mandingueiros. Aqui chamam isto “despacho”, nós, lá no Maranhão, chamamos de “pajelança”. Conheci muito negro feiticeiro, tanto na roça, como na vila. Para fazer um mal a uma pessoa, só aqueles diabos mesmos. O demônio anda solto e estes mandingueiros mandam nele... Não riam não, diabo tenta, eu já vi mão de pilão dar tiro...

Manuel e Pedro soltaram uma gargalhada alta, que Ritinha procurou conter para não acordar os tios e Araci. Só pararam de rir para puxar mais pela velha Andreza.

— Pensa que eu não sei não, meus brancos. Vosmecês não acreditam, mas o mundo está cheio de assombrações. Os espíritos andam soltos e se metem no corpo dos cristãos para castigar, e não é só da gente, também dos bichos e dos paus. Vosmecês sabem o que é marandová? Aquela lagarta verde das folhas? Pois eu já vi marandová engravidar uma mulher virgem com o olhar, depois de passar pela urina delia no terreiro...

— Cala esta boca, Dedeza, ordenou zangada Ritinha. Deixa de dizer bobagem.

— Bobagem, bobagem, é só que vosmecês brancos dizem. Eh! Porque araroba faz a gente que estaciona debaixo dela ficar vermelha e inflamada que nem cobreiro? Não é obra do maligno?... Benza-nos, Nosso Senhor. Olha, tudo está nas mãos de Deus, mas o capeta às vezes toma conta das coisas e transtorna o juízo da gente. O que é preciso é ter fé em Deus e estar sempre armado de figas e de rezas. Olha, esta figa aqui, que eu trago sempre no pescoço, noite e dia, é de Guiné, verdadeira e poderosa como ela. Me defende, de um tudo... Por isto não tenho medo dessa cuia de pajé, que puseram na cruz da rua. Se é comigo...

Andreza levantou-se. De pé, comovida, com a cara extática, ergueu a figa e a pôs na direção da rua.

— Te esconjuro, maldito... Vai, satanás... Pajé do inferno volta às trevas... Salve a luz de Deus... Por Santo Onofre, para traz...

Esta exprobração alucinada da preta velha esfriou a jovialidade dos rapazes. A conversa tornou-se arrastada e mais grave. Ritinha contou-lhes o que se passara sobre a muamba, o terror da gente da vizinhança, o mistério da ameaça e todos se julgando alvo de uma baixa perseguição anônima. Por mais que indagassem, nenhum esclarecimento puderam obter sobre a autoria do “despacho” e a vítima ameaçada. Enquanto Ritinha tinha falava, Manuel teve uma súbita lembrança. Interrompeu a prima para dizer a Pedro:

— Ah! Tu não reparaste esta manhã, muito cedinho, quando fomos para o banho, que encontramos, subindo a ladeira, aquela negra, ama seca da filha de Thereza, acompanhada por um preto, que trazia um embrulho em um jornal?... Ah! Foram eles... Procurem por aí... Não tenho dúvida.

Ritinha largou a costura e tremeu de medo. Pedro concordou com a impressão de Manuel.

— Ah! Minha Nossa Senhora! Que horror! Thereza, minha Therezinha, Teté tão boa, que horror! gemeu Ritinha.

Andreza segurou a cabeça da sua menina, beijou-lhe os cabelos.

— Sossega, meu bem, minha santa, não haverá mal, esta negra velha sabe esconjurar pajelança e as coisas feitas do inferno.

Os rapazes esforçaram-se por tranquilizar Ritinha, chorando desesperada com o perigo de que sentia ameaçada Thereza.

— Olha, afirmaram, nós estamos prontos a defendê-la sempre. Por ela e por Filipe. É uma companheira, uma irmã muito querida. Daremos uma surra naquela negra macumbeira e se o tal Radagasio está metido na perseguição não custa nada dar-lhe um esbarro uma noite.

Esta simpatia não moderou a inquietação de Ritinha. O seu ímpeto era correr para a casa de Thereza. Os primos mostraram o absurdo do alarma àquela hora, meia-noite passada. Era impossível telefonar, porque não seria Thereza que acudiria ao chamado. Seria provavelmente Radagasio. Era preciso esperar amanhecer para Ritinha avisar Thereza. Nesta angústia foram para os seus quartos. Ritinha, desalentada, não teve forças para mudar de roupa. Atirou-se na cama, vestida como estava, a chorar desbragadamente. Só ela compreendia a extensão do perigo sobre Thereza. Nem Filipe sabia de toda a miséria, que sofria a sua adorada. Agora era a perseguição, a resolução que os assassinos tomaram de suprimir Thereza e a negra seguramente era o instrumento dos planos de Radagasio. Com aquele ar de imbecil, era Radagasio para Ritinha, um perverso, que, por vingança e ganância, seria capaz de um crime. E o covarde metera isto na cabeça da negra, que, estimulada pelo furor de se apossar de Radagasio, mataria Thereza pelo veneno dos feiticeiros ou estrangulando-a, quando ela estivesse dormindo. Ritinha via todo este horror e a sua angústia crescia no desespero sem nome de não estar ao lado de Thereza, inocente de tudo e talvez assassinada naquela noite. A velha Andreza entrou com um embrulho, que colocou na mesa do quarto. Chegou-se a Ritinha, que soluçava. A moça agarrou-se á ama preta, que com as mãos encarangadas e a voz úmida de doçura, a foi acalentando.

— Escuta, minha florzinha, a tua preta velha, a tua Dedeza salva tudo, pela graça de Deus e da corte dos céus... Não fica triste neste desconsolo ingrato. Tem fé, minha sinhazinha... A moça não sofrerá nada dos judeus malvados... Quem te diz é quem pode... Eu te falo em nome de Santo Onofre, que é invencível na encruzilhada e nos caminhos da gente humana...

Ritinha abriu uns olhos enormes de esperança. Andreza lhe falava, como a salvação. A velha continuou, sorrindo para a sinhazinha:

— Vou te mostrar o que eu tenho escondido no fundo do baú e que tu nunca viste e que eu trago comigo para a hora da aflição...

Foi à mesa e trouxe o embrulho. A curiosidade interesseira suspendeu as lágrimas de Ritinha, que estacaram nos olhos tristes. Andreza abriu o embrulho sobre a cama, ao lado de Ritinha. Quatro santinhos de madeira apareceram gastos, velhinhos, por entre figas e rosários. Também havia uns pratinhos de folha de lata, uns copinhos e alguns tocos de vela benta. Andreza pegou em um dos santos, que era miudinho e fartamente barbado. Barba preta, manto de cabelo a cobrir-lhe o peito nu. Embevecida, adorando, mostrou-o a Ritinha.

— Este aqui é o meu Santo Onofre. Ele defende a gente de toda a pajelança. É ele que dá passagem nos caminhos, na cruz das estradas e das ruas. Afugenta do demônio, de todos estes Eixús, que os pajés chamam contra os filhos de Nosso Senhor. Santo Onofre precisa ser bem tratado por quem precisa dele. Tu levas ele a D. Thereza e vou te ensinar como ela deve fazer. Ela põe ele no oratório ou na mesa do quarto dela e põe nestes pratinhos, que estão aqui, comida de sal, e neste copinho um pouco de restilo do melhor e acende um destes tocos de vela benta. Pede o que ela quiser e tiver precisão. E deixa estar. O santo satisfeito protege a ela, que os demônios se afugentam para o inferno, que é a terra deles. Eu sempre me vali com este santo milagroso e todo poderoso e venci os meus inimigos a vida inteira... E tu pensa que muita vez não te defendi do mal? E quem foi que fez o teu amor com nhô Viriato? E quem protege lá nos seringais nhô Viriato? Tudo, este santinho da minha alma... Santo, Onofre, louvado seja.

Ritinha aceitou aquela fé e olhou com imensa ternura Santo Onofre. A negra beijou muito o santinho barbado e depois mostrou outros santos.

— Olha estes dois, que estão sempre juntinhos. São dois irmãos gêmeos, São Cosme e São Damião. Onipotentes como só eles, Ritinha. Curam todas as moléstias da terra, quanto mais aquelas, que vêm de pajelança, porque eles foram feiticeiros no começo. Deus Nosso Senhor teve pena deles, tirou eles da feitiçaria e fez santos. Mas eles ficaram sabidos da maldade dos pajés e a gente, que se agarra com eles, não teme “coisa feita”. Trata-se deles com muito bom modo, porque eles são zangados que nem feitor de fazenda. A gente põe nesses pratinhos, como de boneca, um pouco de doce, junto de cada um. Muito tento para não dar mais para um que para outro, pro mode não sair briga, e nunca jamais comida de sal.

Ritinha escutava. Não queria esquecer nada das recomendações de Andreza. A velha colocou São Cosme e São Damião junto de Santo Onofre, em cima da mesa, e voltou a Ritinha com o último dos seus santinhos.

— Está aqui São Jorge, que estes malvados meteram no candomblé e tratam ele de Orixá, Ogun e outros nomes feios. Eles se arreceiam da espada do santo e se metem de amizade com ele. Não vê! São Jorge pune pelos cristãos de Cristo, valente como só ele, nem Osório no Paraguai, nem Chico Diabo com o Lopes. Não come comida, como os outros, nem bebe restilo, como Santo Onofre. O que ele vale é na hora do arremesso. Se aquela negra feiticeira acometer contra D. Thereza, então D. Thereza, na hora do perigo, se benze com o pelo sinal da santa cruz e grita por São Jorge... E a feiticeira do inferno estoura, que é um gosto... Ah Satanás...

Andreza ria contemplando a façanha do santo guerreiro. Pôs São Jorge junto dos camaradas.

— Sinhazinha, eu acho bom nós fazer qualquer coisa para defender D. Thereza esta noite daquela maldade da rua. Vosmecê acende este toco de vela benta para os santos e eu vou buscar comida e a cachaça para eles.

A negra foi à sala de jantar. Ritinha levantou-se e, rezando a Santa Therezinha de Jesus, acendeu a vela benta aos santos feiticeiros. Andreza, desvencilhando-se com a segurança da fé na escuridão dos corredores, trouxe o alimento votivo. Para Santo Onofre, aguardente no copinho e no pratinho um pouco de presunto. Para São Cosme e São Damião, dois pedacinhos iguais de goiabada.

— Vá, meus santinhos, trabalhem bem e façam o milagre de defender aquela moça cristã da feitiçaria da negra macumbeira. Vós, meu São Jorge, que não bebeis e nem comeis e que vos alimentais da graça de Deus, protegei vossos devotos de todo o mal. Amém.

Aquela fé profunda da velha preta deu confiança e paz a Ritinha. Ela também pegou-se com os santinhos e, rezando sempre, foi se despindo para deitar-se. Andreza ficou velando.

Era ainda cedinho, quando Ritinha acordou. Andreza tinha desaparecido. Ritinha veio logo à mesa, onde estavam os santos. Tudo bebido, tudo devorado. Nem parati, nem presunto, nem goiabada. Milagre? Thereza estava salva? Neste fugaz encanto da esperança, Ritinha começou a preparar-se para ir à casa de Thereza. Já estava pronta, quando surgiu no quarto Andreza excitadíssima.

— Ah! Minha fia, louvado seja meu Santo Onofre... Não esquecendo São Cosme e São Damião, e também São Jorge. Fui ver na rua, e a muamba do inferno já foi consumida... Nem nada. Nem uma peninha da galinha preta. Tudo voltou para o fogo do inferno. Agora tu vai lá e leva os santinhos do milagre, os pratinhos e o resto da vela benta a D. Thereza e vosmecês façam tudo, como eu disse e tu assistisse... Com o poder dos santos de Cristo aquela cristã estará livre de toda a malvadeza da terra.

Embrulharam santos, pratinhos, tocos de vela, com cuidado e carinho. Ritinha foi com o pacote para a sala de jantar, onde tomavam café Vieira e D. Calú. Contou-lhes as suspeitas dos primos sobre a negra e o seu propósito de avisar Thereza sem demora. Os tios, apreensivos e indignados com os possíveis perigos, que pesavam sobre Thereza, revoltaram-se contra a feitiçaria.

Vieira declarou:

— Tudo isto é ignorância de uma gente infeliz, que vive nas trevas. Os espíritos maus se apossam deles e os fazem praticar desatinos e crimes. Quando se desencarnarem e passarem pela força da luz redentora ao plano astral voltarão ao mundo para expiar os seus erros, praticando ações benéficas. Tenhamos dó desses irmãos transviados... Caridade e fraternidade.

— Lá vem você, Aristides, com as suas baboseiras, esbravejou a antiga D. Calú, que a amizade por Thereza fazia sair por um instante da sua depressão. O que aquela negra precisa é de uma boa coça e o olho da rua. Nós somos sempre moles, ninguém reage, nem em casa, nem contra o governo. Esta maldita polícia protege tudo quanto é macumba e candomblé. Só sabe é perseguir os que têm vergonha e brio... Ah! Minha Nossa Senhora da Glória, quando esta miséria se acabará? Seja tudo pelo amor de Deus...

— Mulher, cale esta boca, ponderou Vieira... Você não está farta de sofrimentos? Não sabe que estou ameaçado de deixar o Tesouro e ser removido para o Norte e morrer lá de febre ou de beribéri? Oh! É uma coisa horrível a família... Gente linguaruda, só falatório, e não fazem nada... E quem sofre é o mais inocente... A corda arrebenta sempre do lado mais fraco.

Vieira, furibundo, desapareceu. D. Calú suspirou e murchou, tornando ao seu abatimento, e levantou-se para ir à cozinha. Sem lhe dizer nada do que se passara com os santos de Andreza em seu quarto, Ritinha lavou as mãos na pia da sala de jantar, tomou o embrulho e partiu. Na rua, tudo pacato e nenhum vestígio, do “despacho”. Só muito calor já àquela hora. Entrou tremendo no portão e subiu com medo de encontrar Radagasio ou Balbina. Não viu nenhum deles e assim foi entrando pela porta aberta da casa, que um criado lavava. Por este mandou chamar a criada de quarto. A mulher veio espantada e, por ser tratar de Ritinha, foi avisar Thereza. Voltou com ordem de a fazer entrar imediatamente. O alvoroço, em que ficou Thereza, excitou o zelo da criada. Foi levando Ritinha com toda a pressa pela casa a dentro.

Thereza esperava Ritinha sentada na cama. A criada as deixou e cerrou a porta. Ritinha, com o embrulho na mão, não se pode conter e atirou-se nos braços de Thereza, trêmula e assustada.

— Que há? Filipe? Fala, conta tudo, ordenou Thereza, inquieta...

— Não, não, não é com Filipe, é contigo, minha Teté, respondia arfando Ritinha.

Depois de um sossego, fitou Thereza e sorriu-lhe comovida, aliviada.

— Nada te aconteceu até agora, graças a Therezinha de Jesus... E também aos santinhos de Andreza, acrescentou.

Thereza quis saber o que se passava e porque toda aquela agitação. E Ritinha contou o incidente tenebroso do “despacho”, o pavor da vizinhança. Thereza interrompeu-a.

— Mas que tem isto comigo?

Ritinha hesitou. Por um instante a formosura de Thereza arrancou-a da angústia. A camisola de seda decotava o colo farto e rijo e o pescoço alteava-se sustentando a linda cabeça onde pesavam negros, vastos e fofos cabelos. O nu moreno do rosto, dos braços, das mãos e do busto fundia-se docemente no vermelho morango da seda da camisola, do lençol e da colcha. Só os travesseiros e os dentes eram brancos. As mãos firmes de Thereza seguravam as mãos moles de Ritinha, e a quentura cheirosa do seu corpo sossegava o desespero desta.

Ritinha pode escapar dessa doçura para prosseguir na sua narrativa. Quando referiu as suspeitas dos primos sobre a negra Balbina, uma claridade fuzilou nos olhos de Thereza, e este relâmpago esclareceu-lhe tudo. Não teve dúvida de que o “despacho” era contra ela, maquinação da miserável negra. Sem se explicar com Ritinha, reuniu rapidamente tudo o que se passara nestes dias com Balbina, a bajulação hipócrita, a estranha saída noturna, a espionagem da véspera à noite, o súbito atrevimento da maldita. Veio-lhe um ímpeto de bravura, desta bravura, que o amor lhe dera, em desforra de toda a sua longa submissão.

— Não tem importância, Ritinha. Tudo isto é tolice e estupidez. Tu não vais acreditar em feitiçaria, “despachos” e outras coisas idiotas. Deixa Balbina comigo. Ela pensa que tenho medo?

— Não, Thereza, não fica assim tão indiferente. Ninguém sabe o que pode acontecer. Há tanta coisa neste mundo...

— Que é isto, Ritinha? Tu estás apavorada. Deixa de medo de bruxarias. Eu rio e não faço caso...

— É, mas se Balbina entra a te perseguir, a pôr porcarias em tua comida, venenos nas coisas que tu comeres, ou na tua água, na tua cama... Sei lá. Aquela miserável é capaz de tudo... E depois...

— Depois, o quê? perguntou, desconfiada, Thereza.

E como Ritinha se calasse, ela insistiu:

— Radagasio? Sim? É o que vocês suspeitam...

Ficaram caladas. Thereza ia até o fundo da trama da negra contra ela e compreendeu o perigo, em que estava. O seu impulso era chamar Filipe para o seu lado. Só ele a protegeria de tudo. Não sabia o que fazer. Tinha orgulho em mostrar-se destemida, digna de Filipe, e defender-se sozinha até ele chegar. O calor a fazia suar. Espichou-se na cama. Batia com o lençol para se arejar. Ritinha não sabia como interromper a agitação, que as oprimia. O pensamento de Thereza lutava por prender as infinitas sensações que a imaginação suscitava. Afinal tudo se concentrou em um esquema. Ela pertencia a Filipe e devia lutar para defender a sua vida e a sua saúde por ele.

Vendo-a assim, parada na reflexão, Ritinha animou-se a falar.

— Teté, escuta, não tenhas muito receio. Há quem esteja velando por ti, e que sabe muita coisa contra pajelança... É a minha Dedeza. Ela te mandou uns santinhos, que traz sempre consigo e que são milagrosos. Santo Onofre, São Jorge, São Cosme e São Damião. A gente dá comida e parati a eles para trabalharem contra a feitiçaria... Esta noite, Dedeza fez eles trabalharem, e o certo é que o “despacho” maldito desapareceu da rua.

Thereza sentou-se na cama e olhou para Ritinha. Pensou que ela enlouquecera. Disse-lhe com autoridade:

— Que história é esta, Ritinha? Tu também caíste na bruxaria? Ah! Não... Isso é demais. Não te quero metida nestas superstições da velha Andreza. Tu não vês que tudo isto é ainda macumba de negro?

Ritinha ficou atordoada. Se a voz de Thereza afugentava um pouco o terror, que a acabrunhava, o que se passara no seu quarto à noite, e a fé estonteante da preta Andreza lhe perturbavam o raciocínio. Foi o terror, que ainda dominou.

— Sempre é bom experimentar tudo. Não custa nada, não é? Eu vou te mostrar os santinhos... Quem sabe se a vista deles não mudarás de parecer...

Ritinha abriu o embrulho em cima da colcha fulgurante. Thereza esperava desdenhosa e curiosa. Quando viu de relance os santinhos de Andreza, os pratinhos e os tocos de velas, achou tudo tão rude e pitoresco e lamentou que Filipe ali não estivesse para rirem juntos. Ritinha mostrou-lhe o São Jorge. Thereza sorriu. Mostrou-lhe São Cosme e São Damião. Thereza sorriu. Mas, quando lhe mostrou Santo Onofre, Thereza deu um tapa no calunga e bradou revoltada:

— Tira este bicho barbado de cima da minha cama!

Foi com grande abatimento, que Ritinha apanhou Santo Onofre do chão e, por ordem de Thereza, embrulhou toda a macumba santa de Andreza. Para Ritinha, a situação de Thereza se agravava, desde que ela recusava aquela intervenção. O seu fanatismo por Thereza comandava-lhe que velasse por ela sem descanso, vigiasse a negra Balbina e Radagasio. A ânsia de Ritinha era não se separar de Thereza, ficar ali para sempre. Com muito custo Thereza a convenceu de voltar para a casa.

Ao primeiro impulso de revolta sucedeu, no espírito de Thereza, a apreensão deprimente. Teve medo de morrer longe de Filipe antes da entrada triunfante no paraíso do amor, que era a sublime finalidade da sua vida. Pensou em fugir da casa assassina, libertar-se sem demora e buscar Filipe em São Paulo. Pensou em chamar Filipe por um telegrama. Para escapar à morte que lhe privaria do amor, Thereza pensou em denunciar a negra à polícia e pensou mesmo em refugiar-se na casa de Vieira. Todas estas soluções, o seu orgulho aliado ao desejo de resolver a sua situação de modo suave e belo, repelia, acusando-a de covarde e estimulando-a a lutar pelo seu amor ali mesmo, em face dos miseráveis. Nesta dura hesitação, Thereza passou a manhã. Empregou a sua viva sagacidade em estudar as atitudes de Balbina. Espreitou Radagasio, evitando surpreendê-lo bruscamente em uma possível confabulação com a negra. Disfarçou a sua apreensão com muita calma e sutileza. Moveu-se pela casa e pelo jardim, dissimulada, procurando brincar com Lili, com os pássaros, com os cachorros, numa vadiação esforçada e fatigante. A negra não se incomodou com a alegria de Thereza. Confiava em Eixú e esperava. Depois do almoço, surgiu Ritinha, disposta a arrancar Thereza de casa.

— Por este calor danado? objetou Thereza, fingindo-se brava.

— Que tem? De automóvel há sempre viração e podemos ir bem longe, à Tijuca...

Thereza refletiu e resignou-se a sair, não para tão longe, mas para a cidade fazer compras. O seu instinto de agradar espertava. A criadagem a adorava. Thereza sentiu que precisava estimular ainda mais esta adoração naquela contingência perigosa. Para ficar só com Ritinha mandou preparar a barata e as duas desceram para a cidade. Depois das compras, fugiram do abrasamento da tarde e foram até à Gávea. Na volta, o sol ia enrubescendo a neblina, que se erguia do mar. Tudo ficou vermelho, água, céu, casas, ruas. O calor jugulava o mundo, sufocava-o, aniquilava-o. O sol de sangue foi caindo atrás do Corcovado. Um nevoeiro, branco, espesso, subiu e engoliu Niterói e todas as ilhas da baía. Quando a noite fechou, a névoa seca enegreceu e tapou o céu. Dentro dela, as luzes equivocas das fortalezas e as furiosas e quentes rajadas do noroeste.

Antes do jantar, Thereza fez a distribuição das suas compras aos criados. Os melhores presentes foram para a criada de quarto e para a cozinheira, às quais iria recomendar apertada vigilância na negra. Ela dava com alegria e foi um alvoroço na casa. Balbina não apareceu, metida no quarto de Lili, já na sua caminha. Thereza gritou por ela. A negra veio, desconfiada e resmungando. Thereza afrontou-a, mostrando-lhe uma estátua de santa.

— Esta Santa Therezinha é para você sempre se lembrar de mim. A minha padroeira é a outra, mas talvez você prefira esta, porque é mais moça e mais alegre Este rosário está bento e nele você rezará por Lili. E este corte de vestido, já com o forro, será para o natal.

A devota de Ogun não se moveu para receber os presentes. As pernas lhe tremiam. Dentro da cabeça pesava uma pedra. Thereza foi até à negra e meteu-lhe nas mãos paralisadas a santa, o rosário e o vestido. Olhou radiante para Ritinha, segurou-lhe o braço com prazer e, rápida, foi levando-a para o terraço.

No dia seguinte, domingo, Radagasio recolheu-se para compor o discurso, que ia pronunciar no almoço mensal do “Educational Club”. O tema era “a crise da moral”. Por maior comodidade, Radagasio resolveu trabalhar no quarto, onde tinha a cama para repousar da fadiga cerebral. Vestiu o pijama de vicunha cor de macaco, para não se resfriar, e pôs sapatos de lã. O calor era atroz. Radagasio mandou fechar as portas de pau das janelas das salas e o interior da casa ficou sombrio e mais fresco. Todos saíram. Thereza e Ritinha, depois do almoço, tomaram o automóvel e buscaram sossego e aragem no alto da Tijuca. Os criados estavam de folga. Só Balbina ficara tomando conta de Lili. Radagasio fez o chilo na meditação. O assunto do discurso lhe pareceu fácil. Que coisa mais evidente do que a imoralidade no mundo atual? Não eram todos debochados, cupidos, ladrões? Um oceano de luxúria afoga a humanidade. Radagasio, repousando na poltrona, notou esta frase em uma folha de papel, em que ia fixando os pensamentos para a oração. Exclamou: luxúria, luxúria e sempre luxúria. E a ambição de dinheiro? Não era também uma razão da imoralidade? Tudo não está corrompido por esta caça ao dinheiro? Homem, e mulheres só querem ouro e mais ouro. Insaciáveis. A fome do ouro. Radagasio sorriu à sua descoberta e notou: “Auri sacra fames.” E o espírito de revolta, de insubordinação geral não perturba a ordem, a hierarquia? Sem quadros, a sociedade não subsiste. É preciso haver gradação, submissão. Radagasio foi anotando. E por que esta revolta contra a autoridade constituída? Porque todos querem mandar. “Oh! Vã cobiça de mandar” Bem. Radagasio verificou que tinha três fundamentos da imoralidade. O quarto era a falta de religião. “Meus senhores, quando digo religião, não me refiro somente àquela que bebi no leite materno, àquela que presidiu o meu nascimento, que me guia na vida e me levará ao túmulo e me libertará das penas do inferno. Religião é tudo o que liga os humanos no sentido do divino. E a humanidade se liga por mil laços espirituais, sejam os do budismo, do maometanismo, do protestantismo ou mesmo do paganismo selvagem. Sejamos liberais e tolerantes. O essencial é haver religião. Compreendamos todas as religiões até aquelas sem Deus. O mundo de hoje apodrece por falta de crenças. Cada homem é um sepulcro caiado. Dentro dele só há o vácuo.” Radagasio respirou forte e derreou-se, satisfeito e cansado na poltrona. “Ufa! Tenho quatro bases, luxúria, cobiça, anarquia, irreligião. São as colunas do templo. Um discurso é uma obra de arte e já ouvi dizer que toda a arte é sempre arquitetura. Com quatro colunas levanto o meu discurso, o edifício de cimento armado. Sejamos modernos para agradar os Americanos do clube. Agora resta encher a armação de ferro...” Radagasio bem disposto, de digestão feita, levantou-se. A excitação intelectual o animava. Estava entusiasmado. Mirava-se no espelho do guarda-roupa, achava-se magnífico. Estudava expressões de fisionomia para as frases do discurso, sorria superior para a assistência inflamava-se, gesticulava, pendia a cabeça triste diante da imoralidade humana. Nesta efervescência sentou-se à mesa para escrever tudo o que anotara e meditara. Estendeu a mão sobre a mesa. Festejou vitorioso as palavras, que mandara gravar em seu anelão, em volta das armas da família: “Eu semeio ideias.” Escreveu uma frase. Parou. As ideias, que ia semear, dançavam atrapalhadas na cabeça. Recorria às notas, que ainda há pouco lhe pareciam tão sólidas e claras e agora estavam confusas e magras. Como encher o discurso? Radagasio ficou aflito, debatendo-se no chão. Levantou-se suando. Achou o quarto muito apertado. Veio para o corredor. Havia muito silêncio e muita sombra no interior da casa. Radagasio andou pelo corredor deserto, procurando palavras, frases e tiradas. Passou pelo quarto de Lili, o único que estava aberto. A menina dormia. Balbina deitada no tapete, de olhos fechados. Radagasio parou, distraiu-se um momento olhando. Continuou a caminhar. Não achou mais nenhuma palavra a acrescentar às suas notas. Estava totalmente esgotado. Angustiado naquela incapacidade cerebral, Radagasio pôs-se a andar, a andar. Parou novamente à porta de Lili. O cheiro acre, que vinha da negra, o deteve e o arrancou das suas cogitações. Balbina estava largada no chão, os braços grosso nus, a saia, muito erguida, descobria as pernas até a metade das coxas, a boca meio arreganhada sobre a dentadura branca. Radagasio suspirou. Um pedaço! Tornou a caminhar. Ia até o salão e voltava à porta do quarto, onde a negra tresandava. Os passos de Radagasio eram mais vivos e sempre abafados nos sapatos de lã. Agora marchava, como um felino alvoroçado. Lutava ainda pelo discurso, mas ia afrouxando a caça das frases. Nada o inspirava. Os sentidos estavam perturbados por uma ansiedade de prazer, que o sufocava. Abriu o piano do salão e experimentou tocar o único exercido, que aprendeu em um ano de estudo aplicado. No silêncio vibraram dó, mi, ré, fá, mi, sol... As notas rudimentares transfiguravam a solidão. Radagasio tocou, tocou sempre o mesmo exercício. Nesta exaltação musical voltou a espiar Balbina. A negra mudara de posição e, com o movimento, a catinga desprendera-se mais. Radagasio deliciou-se em aspirá-la. Aproximou-se bem de mansinho. Pareceu-lhe que a negra estava de olhos meio abertos e lhe sorria. Radagasio ficou maluco de desejos. Sentiu um arrepio de medo e correu para o salão. Queria música. Do piano só lhe saíam aquelas únicas notas. Lembrou-se de ligar o rádio no seu escritório, ao lado do quarto de dormir. Alegria. Veio-lhe um maxixe. Radagasio pôs-se a dançar. Imaginou que dançava com Balbina a rebolar assanhada. Veio um samba, veio mais maxixe e toda esta dança, toda esta música cheia da volúpia preta, inflamavam Radagasio. Achava-as gostosas, porque se afinavam com a sua mestiçagem não muito remota. Radagasio sentou-se na cama, esquentado pelos sambas, que o rádio mandava. Balbina lhe surgiu. Radagasio apertou os olhinhos e arreganhou os beiços. Balbina achegou-se com a boca aberta, as ventas ofegantes, os olhos carregados de luxúria grossa. A sua voz rouca de doçura espessa, murmurou na cara quente de Radagasio:

— Nhonhô não quer uma xicrinha de café?

O bafo e todo o calor carnal da negra desfecharam o ímpeto de Radagasio. Atirou Balbina na cama, e lambuzando-a de beijos, respondia, sufocado:

— Não, não, eu não quero café, eu quero é tabaco...

Minutos depois estavam estirados os dois corpos brutais, horrendos. Radagasio repousava a cabeça escura nos peitos enormes da negra e foi adormecendo. Quando despertou, sentiu-se feliz. Veio-lhe à consciência o sentimento do dever. Despachou Balbina, desligou o rádio e preparou-se para trabalhar. Lembrou-se de encher o discurso sobre a crise da moral com trechos de Sêneca, Bossuet e Vieira, sem citar os autores. Era a salvação. E aplicou-se à tarefa. Mais tarde, Balbina voltou ao quarto de Radagasio. Ele continuava à mesa, labutando nos plágios. Balbina roçou-se nas costas de Radagasio. Ele sorriu-lhe com bondade e meiguice. Mas, resoluto, em não se deixar interromper, olhou-a brejeiro e disse-lhe com firmeza:

— Vai, meu tutú, deixa-me trabalhar. Agora estou inspirado. É o momento. Há tempo de amar e tempo de trabalhar, como diz o profeta. A ordem por base. Cada coisa a seu tempo. Por isso, quanto a nós, também precisamos de método. Tu não queres, sua assanhada... Eu sei... Mas não transijo com a saúde, observo a prescrição do nosso Hipócrates: “Bis in septem.”

Filipe impacientava-se na fazenda. O interesse, que entretivera a ociosidade dos primeiros dias, esgotara-se. Agora era a pasmaceira preguiçosa, que o entorpecia e o exasperava. Nas cartas de Thereza já apontavam os apelos para a volta e Filipe adivinhava nelas prostração e angústia. Respondia, aflito, suplicando-lhe a inteira verdade da situação. As respostas eram ainda veladas. Filipe ficava perplexo e acabrunhado. O seu ímpeto foi renunciar a toda a intervenção na venda da propriedade e voltar para o Rio. A indignação do tio o reteve. Filipe, covardemente, não confessou a sua ansiedade e disfarçando o desespero deixou-se ficar. Os Americanos prosseguiam cuidadosamente no inventário? Salvador tinha empenho em nada esconder. À sua lealdade correspondia um áspero desejo de ganho. Debatia-se com os compradores sobre os preços da avaliação. O tempo, que era afligente para Filipe, não existia para os negociadores. Os dias corriam nesta luta monótona de compra e venda.

Resignado a ficar até o fim do negócio, Filipe procurava dominar o seu desespero em longos passeios, em que alargava o seu conhecimento da fazenda. Quando Men não o podia levar de automóvel, Filipe ia solitário a cavalo. Nestas horas a observação era fecunda e a imaginação ainda mais criadora. Um domingo de manhã, passando por uma velha colônia, a alegria da gente de fora das casas o atraiu. Encostou. Um velho italiano, de rosto muito enrugado, curtido, endomingado, de colete sem paletó, veio, reverente, saudá-lo e convidou-o a apear-se. Logo um moço pegou as rédeas do cavalo e ajudou Filipe. No primeiro momento ficaram acanhados. As moças, colonas brancas, de vestidos vistosos, cheias de voltas de ouro, pulseiras e anéis de fantasia, miravam curiosas Filipe, que era ali o estrangeiro. Os rapazes eram robustos, gente que saía do trabalho da terra para a dança e os esportes domingueiros. Filipe soube que o velho era o chefe de uma grande família, que ocupava a maior parte das casas daquela antiga colônia. Estava há trinta anos no Brasil e há muito tempo em Maracajá. Tratavam, ele e os seus, de quarenta mil pés de café. Tinham grandes roças de milho, feijão, mandioca, aipim e outros cereais. Os porcos eram numerosos e de qualidade. A variada criação de galinhas supria a mesa do fazendeiro e do administrador. Tinham vacas de leite e muitos carneiros, apesar dos cachorros, que os perseguiam. Os seus cavalos e bestas pastavam no campo ao lado da colônia e, para os passeios, para a missa e serviços urgentes, possuíam três fords. Era a prosperidade em ascensão.

— Não pensa em voltar um dia à Itália, meu velho? indagou Filipe.

— Per la Madonna! A Itália está muito longe. Quase já não me lembro dela, respondeu o velho em uma linguagem baralhada, que Filipe ia traduzindo consigo. A Itália serve para os comendadores de São Paulo. Para nós, trabalhadores, a nossa pátria é o Brasil, que nos deu tudo isto.

Filipe quis aprofundar o sentimento daquela gente feliz. Os velhos já tinham renunciado à Itália. Os novos eram brasileiros nacionalistas. Muitos já não falavam italiano e todos exprimiam-se na nova língua demolidora do brasileiro-luso, mantendo o sabor caipira. O italiano é o infatigável formador de dialetos. Ali, na colônia, aquela mocidade se desinteressava de uma Itália desconhecida e reagia exageradamente contra a procedência itálica, para que não lhe suspeitassem do fervor brasileiro, que ostentavam. A posse de São Paulo, do Brasil, era para eles uma aquisição natural e inexorável. O velho contou a Filipe as misérias, que o obrigaram a emigrar e a sua constante felicidade na terra brasileira. Os seus filhos nasceram em São Paulo. Alguns estavam casados e bem estabelecidos em terras próprias. Um era fazendeiro no Noroeste.

Filipe percebeu que as suas indagações eram impertinentes. Aqueles novos brasileiros não alargavam as suas vistas além dos horizontes da fazenda, do trabalho e da região, em que se moviam. Nunca olhavam para atrás, nem para o que está ilusoriamente muito longe. Chegaram fords cheios de rapazes e moças. Vinham da missa. Os jovens traziam sanfona, flauta, violão. As raparigas sem chapéu, de claras roupas vistosas, campesinas, tinham flores nos longos cabelos pretos. Os olhos luziam sobre as faces rubicundas. Os moços de sombreiro de feltro, trajavam de branco. Foram recebidos com um alarido festivo pela mocidade, que os esperava e que se desinteressou de Filipe. Os colonos não prestavam atenção ao calor danado. Foi Filipe, que não o suportou e apressou-se em montar. Quando o velho o ajudou, disse-lhe risonho, zombeteiro:

— Ma, perchè no fica? C’è baile e pranzo de galina, carnero, un leitonsino, maccheroni, polenta. Qualche bicchieri de vino e cerveza, per Bacco! Veda tante belle ragazze, peschone. Uno pagóde, peccato!

Às vezes, a calmaria era interrompida pela passagem de hóspedes conhecidos de Salvador ou simples viajantes, que pousavam na fazenda, na casa do administrador. A conversa é uma diversão para a gente roceira, ávida de palavras e de histórias, e, na expansão deste prazer, está o segredo da sua hospitalidade. Sem hóspedes para tagarelar, tudo volta ao repouso. Filipe recolhia-se com a carta diária de Thereza e o diálogo da saudade e da paixão travava-se doloroso, vibrante, no silêncio marcado pela voz plangente da “fogo-apagou”. À tarde, Filipe levava a carta ao correio do escritório e, se Men estava livre, iam os dois de automóvel repetir os mesmos passeios de todos os dias, ao açude, aos capões, aos cafezais. Depois do jantar, as crianças, filhas do fiscal e do boticário, cercavam Filipe, que lhes contava histórias e lhes falava da natureza. Nada as interessava, como o céu. Filipe mostrava os astros, dizia-lhes os nomes, e anunciava-lhes o aparecimento. As crianças, pasmas, embasbacadas com tal magia e tão maravilhoso poder, imaginavam o céu uma fazenda e chamavam Filipe o administrador das estrelas. Neste encanto, elas iam dormir e Filipe vinha para a conversa arrastada dos Americanos com o tio Salvador. Àquela hora não se falava em negócios, mas discutiam-se geralmente assuntos agrícolas. Os Americanos, já familiarizados, iam revelando os seus projetos da transformação da fazenda. Procurariam aplicar ali os princípios correntes da industrialização da agricultura. Aos brasileiros, que os escutavam, iam repetindo as lições do espírito novo da indústria americana.

— O trabalho agrícola, dizia um dos Americanos, para o seu maior rendimento deve ser executado em sua plenitude pela energia mecânica. Tudo isto por aqui está muito rudimentar. O trator ainda é uma novidade. Quase tudo é feito pela energia do músculo animal. Há uma perda de tempo considerável e a maior vantagem da industrialização é reduzir ao mínimo o tempo do trabalho agrícola. O que se faz em longos meses, será feito em poucos dias...

— Sim, interrompeu Salvador, mas há trabalho que só se pode fazer pela mão do homem... Apanhar café por exemplo.

— Parece que já existe máquina de colher café... avançou Men.

— Máquinas, que se empregam na colheita natural, afirmou um Americano. Dentro de pouco tempo haverá máquinas perfeitas adaptadas a tudo.

— É o senso moderno da vida, concluiu Filipe.

— Não é só o problema do mecanismo, que deve ser considerado para industrializar a agricultura. São também as relações entre patrões e trabalhadores, continuou o Americano mais discursador. É preciso cessar o regime patriarcal das fazendas. A lavoura feita por este sistema de colonos, de empreitadas individuais, contrária o espírito novo da indústria. O trabalhador deve ser um assalariado da empresa. Esta é que organiza e dirige toda a exploração agrícola. O trabalhador é um operário. Se o colono prefere trabalhar por sua própria conta, neste caso que se estabeleça em um núcleo colonial ou adquira terras, se tem meios para isto. Dentro da fazenda, que é uma usina de produção de viveres, não pode haver esse trabalho individual e anárquico. Tudo deve ser subordinado à direção. Esta, que dispõe das terras e do aparelhamento mecânico, deve ter em mão o rendimento da produção, que pelo regime das fazendas brasileiras é inferior ao que seria, se a organização fosse industrial.

— Tudo isto é muito bonito, objetou Salvador, mas onde encontrar colonos, que se sujeitem a tal regime?...

— Naturalmente à princípio será difícil, respondeu o Americano. Tudo deve ser reorganizado pela base. Primeiro o aparelhamento, que resolverá os fatores, energia e tempo, em seguida virá a transformação do colono em operário, imposta pela máquina, que reduzirá o número de trabalhadores e os empregará em menor tempo.

Men achava tudo muito interessante e colhia lições para a sua futura fazenda. Fazia objecções para ser mais esclarecido. Retificava os princípios americanos com a relatividade brasileira. A sua maior hesitação era quanto à escolha entre o regime do salário e o regime cooperativo. Os Americanos eram pelo salário.

— Sem dúvida, respondeu o explicador, que a cooperativa seria um ideal, mas é arriscada, principalmente em países de trabalhadores, como os do Brasil, sem educação operária.

— O salário não será ainda a opressão capitalista? perguntou ironicamente Filipe.

— Não sei... A desordem das relações entre patrões e operários não provem unicamente do salário. Este corresponderá sempre ao padrão de vida do trabalhador. O mais sério é a harmonia entre os que empregam e os empregados. Quase sempre as greves são motivadas pela desinteligência entre os administradores e os operários...

— No Brasil o administrador ainda é o antigo feitor de fazenda... comentou Filipe.

Salvador não se pode conter, a conversa o estava irritando. Todas as suas ideias, as suas tradições eram postas abaixo pelo espírito novo, que vinha da América, e agitava os jovens brasileiros.

— Você é um sonhador, Filipe. Eu queria vê-lo dirigindo uma fazenda, uma fábrica. Era quebra certa, se os trabalhadores não o matassem para tomar conta de tudo. Deixemos de fantasia. No Brasil do que se precisa é mão forte sobre os colonos e tudo quanto é operário. Do contrário é anarquia. Estes princípios de industrialização da agricultura podem ser bons para a América. Aqui é loucura. Os senhores mesmos, quando tomarem conta disto, farão como eu, como todos nós, que temos experiência e não caraminholas. A tal rotina, de que tanto os senhores escarnecem, continuará aqui em Maracajá. Eu não verei, porque vou-me embora já do Brasil, antes que venha a catástrofe. Sabem que mais, boa noite.

Men e Filipe ficaram vexados com o rompante de Salvador de Sá.

— Sangue quente, sangue de bandeirante, comentou gracejando um Americano, continuando o whisky. Todos os dry-gentlemen são assim...

Filipe entendeu preferível prosseguir na conversa, em que estavam. O Americano insistia nas suas ideias sobre as relações entre os administradores e os operários.

— O operário deve ser tratado com humanidade. O que ele aspira é à justiça, isto é, salário suficiente e bom tratamento. Esta justiça pode se ampliar na oportunidade, que o patrão dará ao operário para progredir até o maior sucesso no trabalho e na riqueza. É preciso também admitir-se o direito de representação dos empregados. A comissão representativa dos operários deve reunir-se periodicamente com os patrões e discutir os problemas, que os interessem...

Filipe e Men refletiam. Depois de grande silêncio, Filipe, que achava tudo aquilo insuficiente, perguntou:

— Por que não se daria de uma vez a terra ao trabalhador e a fábrica não seria comum aos operários e ao Estado?

— Compreendo. O comunismo, concluiu o Americano. Não é um regime Ocidental. Só serve para o Oriente. A Rússia, sem espírito individualista, pode fazer a experiência. E assim mesmo abriram ali uma brecha no comunismo integral. O bolchevismo com a nep não é o marxismo. É a prova experimental de que o marxismo é antiquado, uma doutrina do passado. Karl Marx e Engels falharam, porque não podiam prever a evolução industrial e a transformação do operário em proprietário, em pequeno burguês, se esta expressão hoje ainda é admissível. Na América do Norte a chamada luta de classes é uma fórmula morta, sem nenhuma significação. Na América não há classes fechadas, castas, como imaginam os ideólogos comunistas. Tudo é permeável e movei. Somos totalmente uma nação de trabalhadores. O trabalho nos iguala e sobre ele se funda a nossa democracia, em que não há opressores e oprimidos. Pelo trabalho tudo conquistamos. Não existem barreiras entre os trabalhadores, sejam capitalistas e patrões ou operários e lavradores. O nosso imperialismo é a expansão da nossa força produtiva, uma necessidade do nosso trabalho, que procura produzir mais e distribuir melhor pelo mundo inteiro. No Brasil o comunismo levaria à mina. A população é insignificante para uma partilha da imensidade das terras. Dividir as terras seria um retrocesso à miséria absoluta. Que fariam os novecentos mil habitantes do Amazonas com as centenas de milhares de quilômetros quadrados de terra? Mesmo São Paulo não suportaria este regime sem paralisar o seu progresso. Onde o capital para os maquinismos e para prover a todo o necessário rendimento do trabalho? E Mato Grosso? O Pará? Jamais sairiam do estado selvagem. E como se defender da ocupação estrangeira?

Filipe preferiu não se empenhar na discussão. O assunto era muito vasto e extremamente complexo para uma análise lateral. O trabalhador libertara-se da longa escravidão e criara para si o mundo novo. O problema estava proposto aos homens do Brasil. Na sua solução condensa-se o destino do país.

Outra manhã, o administrador veio comunicar a Salvador a chegada à fazenda de um francês, que se dizia engenheiro de minas, mas que, pela linguagem e pelos trajes, era um verdadeiro caipira. Estava acompanhado de um sertanejo goiano, prosa e menos rústico do que ele. A novidade interessou Salvador. Mandou convidar os viajantes para almoçar e logo chamou Filipe e Men para vê-los. Não tardou que o administrador trouxesse o francês e o companheiro. O francês era velho e gasto. O sol curtira-lhe a pele enrugada do rosto. Os cabelos, que foram louros, estavam fouveiros e caíam despenteados e secos sobre a testa triste. Os olhos azuis, ingênuos, exprimiam placidez e candura. Vestia pobremente uma remendada roupinha de zuarte desmaiado. Chapéu e sapatos de couro cru. Aproximou-se muito tímido de Salvador e o cumprimentou com cerimonioso respeito. Filipe e Men vieram ao seu encontro para o pôr à vontade. Interrogado por Salvador, quem respondia por ele era quase sempre o companheiro, sujeito magríssimo, muito alto, da estirpe ossuda, ousada e enérgica dos vaqueiros sertanejos.

— O doutor, dizia ele, é um homem muito sabedor. Lá na sua mina de ouro, no nosso Goiás, ele é tudo para nós. Doutor, boticário, escrivão e até prega sermão, como missionário.

O francês ficou vermelho de vergonha. Abaixou a cabeça para se sumir, enquanto os seus merecimentos continuavam a ser enumerados pelo companheiro. Fez um esforço e o interrompeu:

— Não fale, capitão. Deixemos de pabulagem. A gente está no mundo para servir os viventes. A gente é toda igual e se eu faço alguma coisa por vosmecês lá no nosso arraial, vosmecês fazem mais por mim. Aprendi nestes quarenta anos de mato brasileiro, um tudo, mais que na escola de França.

Se a linguagem era estropiada, uma tradução caipira do pensamento humilde, a voz arrastada, a pronúncia de palavras sertanejas com acentuação francesa, davam-lhe sabor estranho e imprevisto. Salvador achou que o homem se exprimia muito penoso e vexado. Falou-lhe em francês. O engenheiro velho recebeu um choque. Muito surpreso, julgou-se transportado para o seu passado. Foi uma transfiguração. Falou na linguagem mais pura, mais elegante, com uma mobilidade juvenil. A conversa generalizou-se e o francês, senhor da língua, dominou-a. Contou a sua história. Estudara na Politécnica de Paris. Especializou-se depois em mineralogia, na Escola de minas. Atraído pelo fabuloso da América, viera para o Brasil. Trabalhou em várias explorações e, penetrando sempre no interior, descobriu em Goiás uma mina de ouro. Comprou as terras e estabeleceu-se ali com alguns camaradas da região. Ficava oitenta léguas longe da estrada de ferro. Por falta de capital não podia explorar a mina. Esperava sempre que um dia o negócio interessasse a algum capitalista e por este motivo viajava para Jaboticabal. Ia entender-se com uma pessoa, que queria associar-se à exploração. Tirou do bolso umas pepitas de ouro, com que deslumbrou os seus ouvintes. Os cândidos olhos azuis faiscavam.

O companheiro goiano não entendia francês. Vendo o ouro da mina, entusiasmou-se e quis meter-se a dar explicações. O engenheiro escutava complacente as tolices técnicas que o sertanejo explanava. Voltou a ser caipira, concordava com o amigo, sorrindo com humildade.

— O capitão me dá um adjutório lá na nossa mina, que é uma graça de Deus. Ele é o meu língua, o meu capataz. Sem o capitão, cadê gente para trabalho? Quando falta camarada, aqui o capitão fura o mundo e volta com um bandão de gente. É caboclo, é índio, é negro, de um tudo. Faz-se uma festa para começar o serviço, a gente bebe pinga três dias, trabalha três e descansa no domingo.

Filipe estava intrigado com este fenômeno de retrogradação de um politécnico francês, que, embrenhando-se na mata, em contato com os sertanejos, se tomava um primitivo, rústico, acanhado, estúpido, sem forças para sair deste plano inferior e, dentro da sua língua racial, volvia a ser homem de inteligência e de cultura superior. Contraditório e doloroso. Filipe quis sondá-lo mais e em francês falou-lhe da França e da guerra. O antigo tenente da Politécnica comoveu-se. O patriotismo exaltou-o. Exprimiu o seu sofrimento no exílio, a angústia, por que passara no sertão, sem poder comunicar à gente, com que vivia, as suas torturas e esperanças. Mas persistiu-lhe a confiança inabalável na vitória. Conhecia o exército francês, a preparação do estado-maior e esperava do gênio cartesiano dos chefes militares a segurança realista, a precisão matemática da tática, e do soldado francês o instinto guerreiro, a tenacidade inesgotável e a bravura sublime. E contou:

— Em 1885, eu era aluno na Politécnica, quando a minha turma foi fazer exercício de campo. A região escolhida ficava entre Soissons, Château-Thierry e Meaux. Um dia, nas margens do Marne, o nosso capitão instrutor nos falou assim: “Meus amigos, gravem bem este rio e esta região nas vossas memórias de franceses e nas vossas cogitações de oficiais. Será aqui no Marne que se decidirá, na futura guerra, a sorte da França.”

— Como se chamava esse capitão? perguntou vivamente Filipe.

— Pétain.

No almoço trataram o hóspede com grande carinho. Serviram-lhe o que lhe pudesse lembrar o seu país. O paladar, sempre fiel, regalou-se com o salmão, os petit-pois, os champignons, o foie gras. Foi uma delícia antiga para o velho francês aquecer-se com os grandes vinhos amarelos e sanguíneos e por último espertar-se com cognac.

Esqueceu tudo o que fora aquisição na terra brasileira, Goiás, a mina de ouro, tutu, pinga, camaradas e caboclas. Voltou a ser unicamente um francês cordial, inteligente, culto e loquaz. Filipe ficou encantado com a conversa do velho engenheiro e o animava com entusiasmo. Os Americanos, que não sabiam francês, iam se entretendo com o capitão goiano. Este atacava faminto os pratos brasileiros, a sopa de cará, a feijoada, o lombo de porco e contava bravatas de caçadas de onça e de vaquejadas, em que se ferra o gado. No meio das narrativas vinham as lendas, as abusões, as mentiras mitológicas.

— Não conto nada, mas quem entra no sertão deve andar sempre prevenido. Se a gente só encontrasse onça ou bicho natural, era muito bom. Mas um cristão, que topa currupira e não está prevenido de fumo, ah! Fim triste de vida! Nós estamos viajando há um mês, pousando aqui e acolá. Não faltou para nos assombrar, muito fantasma no mato, nos rios e nas lagoas. De uma feita, saiu da água perto da balsa, em que nós atravessamos uma lagoa, uma figura esquisita, pavorosa mesmo. Não se sabia se era peixe ou se era homem. O bicho saiu d’água e posou na praia, bem pertinho de nós. Êta! Monstruosidade! Parecia gente. Tinha mãos de cinco dedos com unha, que caíam das nadadeiras, boca rasgada, língua carnuda e bigodes de homem. Pescoço de gente e nos peitos uma espécie de maminhas, como de mulher. Da barriga para baixo era peixe, como surubim, liso, sem escama. O doutor, que sabe de um tudo, nos esclareceu que aquilo era caboclo d’água.

Os Americanos não acreditaram e interpelaram o velho engenheiro. Este saiu das margens do Sena e mergulhou novamente no Araguaia.

— Sim senhor, eu vi caboclo d’água, peixe-homem, que guarda os rios e as lagoas do sertão. Este que nós topamos não nos assombrou, porque o capitão teve o expediente de rezar um padre-nosso e o bicho deu um estouro, morreu e sumiu no fundo da lagoa.

Filipe murmurou para o primo Men:

— Que lástima!

Filipe ficou cismando na força inelutável do sertão, que retrograda a inteligência, elimina a cultura e assei vaja o homem.

Foram-se estes viajantes. Dias depois, à hora quente da tarde, chegaram outros. Chegaram barulhentos em dois automóveis, quando Salvador dormia na rede da varanda e Men cochilava no sofá. O alarma dos automóveis acordou-os. Ergueram-se para receber os visitantes, que já subiam a escada e um deles ia gritando:

— Êta! Seu Salvador, isto aqui não parece fazenda, parece mais é convento de frade. Tudo dormindo. Que lombeira... Boa tarde...

— Deixa de contar prosa, Rodrigão, respondeu Salvador, gente de automóvel em viagem não se lembra de quando, está na fazenda, a esta hora de calor brabo, está tudo ferrado no cochilo... Onde vão vocês? Isto não é boa coisa, Rodrigão junto com Sigismundo Almeida é pagode grosso. Vocês vão, mas é perder estes três frangões...

Os frangões eram três homens feitos. Sigismundo Almeida deu uma palmada nas costas de Salvador e berrou-lhe:

— Cala boca, capão velho. Tu estás é com inveja. Vamos tirar uma fezinha lá em Ribeirão? Tem cabaré e francesas... A gente varia um pouco do trivial da terra, do tutu e do macarrão.

Tirou a capa e arremessou o corpanzil no sofá. Rodrigão já estava instalado, a cavalo, na rede de Salvador, balançando-se. As longas pernas arrastavam os pés ruidosos no assoalho. O rosto magro, tostado. Os cabelos e o bigode muito grisalhos. Explicou porque viajavam:

— É o que lhe digo, seu Salvador, nós vamos a negócio a Ribeirão Preto, negócio de uma fábrica de tecidos, que queremos montar com os pais destes meninos, que são capitalistas fortes, como você sabe. Aqui o engenheiro é que vai estudar o caso. Você sabe, fazenda é muito bom, mas a gente deve cuidar de amparar o que é seu em outras coisas. A broca já vem por aí e adeus café... Vamos tratando de plantar algodão e para o nosso algodão seria bom uma fábrica nossa.

Filipe apareceu. Vinha do escritório, onde levara a carta para Thereza. Não conhecia os visitantes. Ficou sabendo que eram grandes fazendeiros da vizinhança e os dois rapazes, sobrinhos deles. Men já lhe havia falado no engenheiro seu companheiro de caçada. Por sua vez os jovens não ignoravam o nome considerável de Filipe e mostraram-se contentes de o ver. No acanhamento do primeiro contato, a conversa foi sobre a excursão que estavam fazendo. Elogiaram os seus automóveis. Discutiram sobre a excelência de cada uma das marcas, embrenharam-se em argumentos técnicos e, quando estes faltaram, afrontaram-se com o preço, que pagaram.

— O seu carro é muito bom, não nego, Sigismundo, mas não vale o meu, afirmou Rodrigão. Basta dizer que o meu custou oitenta contos e o seu setenta...

— Porque o seu tem carroceria e acessórios de luxo, o que é bobice na fazenda. A questão é o motor. Com pouca gasolina é aquele sucesso. Você viu que na estrada eu lhe dei poeira, que foi um gosto... gritou numa risada Sigismundo, estirado no sofá, de papo para o ar, barriga redonda, volumosa, pernas roliças, cara raspada.

— Que tal a estrada? indagou Salvador. Muita poeira?

— Já se sabe, estrada de rodagem é poeira em dia seco e lama em dia de chuva... Sem contar os buracos, que ficam para sempre, gritava Sigismundo, estremecendo-se todo. Mas o pior é que já não se pode viajar sem encontrar morféticos pelas estradas ou acampados por cima dos pastos, onde soltam os cavalos. Hoje mesmo topamos um grupo e o Zezinho ficou branco, como defunto...

Zezinho era o sobrinho de Rodrigão. Alto, forte, muito moreno, com o cabelo duro, preto e rente. Picado com a observação do fazendeiro, defendeu-se.

— Medo, nunca. Tive nojo e vergonha. Que miséria para São Paulo deixar morféticos infeccionando as terras. Estive muito tempo na Europa e nos Estados Unidos e nunca vi leproso. Aqui no Brasil é esta tristeza, e no primeiro Estado do país. Isto é civilização?

— Você não viu nada, menino, observou-lhe Sigismundo, às vezes eles vão pela estrada. Quando aparece de longe um automóvel e estão em lugar que tem mato, um leproso deita-se no chão, finge-se de morto, os outros se escondem. O automóvel aproxima-se e por caridade os viajantes param para verificar se é ferido ou cadáver. Ah! Os outros morféticos avançam e pegam nos viajantes com aquelas mãos horríveis para passar o mal eles acreditam que ficam curados se passarem a lepra a sete pessoas, que às vezes mordem, principalmente crianças...

— É o tal beijo do leproso... Misericórdia, Sigismundo, interrompeu-o Salvador.

— Qual! Este zebu não tem coração, Salvador, deixa ele falar... observou Rodrigão.

— Falar, falar, vociferou Sigismundo. Não tenho coração. Eu queria ver o que vocês fariam se fossem agarrados pelos morféticos, como tem acontecido a tanta gente. Não faz muito, vocês bem leram nos jornais, que uma colônia deles no norte do Estado avançou para a cidade vizinha. Invadiram em todos os seus pontos, penetraram nos cafés, nos hotéis, cinemas, procurando passar o mal à população. Que aconteceu? O povo reagiu à bala, morreu muito morfético e os outros debandaram. Mas ainda foram fazendo desgraças. Na estrada encontraram uma criança na porta de uma casa. Avançaram para a pobrezinha e caíram-lhe de dentadas até sangrar e esfregaram nas feridas as suas chagas...

— Que horror!... murmuraram todos. E a pesada conversa caiu.

Para disfarçar a triste impressão, que os revoltara, entraram a gracejar ruidosamente uns com os outros, até que, acalmados, os espíritos se tornaram sérios.

Rodrigão interpelou Salvador sobre a venda de Maracajá.

— Então é certo que você vende mesmo a fazenda? Não quis acreditar. O quê? Salvador Corrêa de Sá, brasileiro da primeira gente que fez o Brasil, ceder a terra ao estrangeiro... Tenha paciência de ouvir a nossa indignação... Você é um desertor...

Salvador levantou-se bruscamente e ficou alguns instantes no meio dos hóspedes. O seu olhar entenebreceu-se. O rosto ficou congesto. Quando pensaram que responderia com violência ao doloroso comentário de Rodrigão, sentou-se e explicou-se com tristeza e solenidade:

— Vendo a fazenda para me retirar do Brasil. Não quero assistir ao descalabro da nação, que os meus antepassados formaram. Vou morrer no exílio, mas não testemunharei a orgia do despotismo, que nos sufoca, nem a invasão da anarquia, que nos ameaça. Não tenho o direito de me revoltar contra o Estado e as leis. Enquanto estiver no Brasil obedecerei a estas. Elas são injustas e nefastas. Retiro-me por não poder respeitá-las.

Filipe notou que isto era antigo, dessa antiguidade que considerava o cidadão como um escravo do Estado e ignorava os direitos do indivíduo. Os fazendeiros não queriam empenhar-se em uma questão doutrinária. Eles sentiam a invasão estrangeira, que se apossava do país e indignaram-se.

— O Brasil, diziam, está sendo comprado pelo estrangeiro. E o governo está alegre na loucura de vender tudo. Que são estes empréstimos senão a venda do país? Quem deve e não pode pagar é escravo do credor. O Brasil não tem independência econômica e financeira. Não é somente o governo que vende o país, são também os particulares, que cedem as suas indústrias e as suas terras.

Filipe acudiu energicamente ao eterno debate dos destinos do Brasil:

— É por isto que é imprescindível a revolução que varra tudo e transforme o país totalmente. Se assim não for, o Brasil será possuído pelo estrangeiro que não vem com a força, mas com o dinheiro. Comprarão tudo, dominarão os homens públicos, que serão os seus vassalos e que farão de figurantes políticos para fingir que isto aqui é uma nação. O capitalista estrangeiro entra por toda a parte, como senhor e dono. Apropria-se hoje do gado de Mato Grosso, amanhã do café de São Paulo, da borracha do Amazonas, dos diamantes de Goiás, do ferro de Minas. Os presidentes de república, os senadores e deputados servirão para mascarar a fachada e, na realidade, não serão mais do que caixeiros e testas de ferro do capitalismo soberano.

Isto doeu ao patriotismo dos fazendeiros. Queriam que nada fosse exato e tudo era a inexorável realidade. Não puderam replicar a Filipe. Compreendiam a necessidade da revolução redentora, mas não queriam exprimir mesmo de leve a sua adesão ao espírito revolucionário. Estavam, como a generalidade dos brasileiros, ligados ao governo por uma comunhão de interesses, que sufoca o patriotismo, a honestidade e a justiça. Só uma ofensa direta ao seu interesse próprio os faria sair da passividade. A conversa sempre difícil de ser franca e leal entre brasileiros, mais uma vez desviou-se. Passaram a falar de café. Havia uma tendência de baixa de preço, que os inquietava.

— Não sei, Salvador, se você afinal não faz bem, ponderou Sigismundo, deixando a sua jogralidade costumeira. Vejo as coisas mal paradas. Se o governo abandona o café, como parece ser o pensamento do presidente da república, adeus São Paulo. Fizemos o erro de entregar o café ao governo federal. É preciso o Estado retomar o negócio e sustentar o produto. Sem valorização permanente ninguém se sustenta... A baixa nos levará todos.

— Lá isto é verdade, seu Mundo, concordou Rodrigão. Tudo está nas mãos do governo. Contra ele ou sem ele nada podem os particulares, por mais ricos que sejam. Não há agremiações de fazendeiros, nem mesmo associações industriais que possam influir no governo. O Estado faz do café o que bem lhe parece e, se nos ajuda, é porque precisa do imposto. Afinal quem sustenta o governo e todo o país é o café. Por isto eu fico esperançado de que não seremos abandonados. O maior interessado é o governo. O café paga tudo. Se o governo não se importa com os fazendeiros, importa-se com o café. E afinal nós aproveitamos...

— Eu já não me considero mais fazendeiro, intervém Salvador, ainda assim estou muito pessimista em relação ao café. Esta ameaça da broca é séria. Vocês riem? Vão-se fiando. Olhem o que sucedeu em Java. Tudo aniquilado. Será possível evitar a propagação da broca? Vocês mesmos não querem confessar o pavor, que sentem no fundo do pensamento, mas já estão cuidando do algodão. É outra trapalhada. A lagarta nos persegue. O Men teima. Cadê lucro? Tudo isto é cacete... Agora, se o governo abandonar o café, que farão os fazendeiros reduzidos à miséria?

— Neste caso, berrou Sigismundo excitado, nós iremos até a separação de São Paulo do Brasil. Pelo nosso interesse ferido, faremos como os nossos velhos, que abandonaram a monarquia para se vingar da abolição. Nós abandonaremos o Brasil por causa do café. São Paulo não pode trabalhar para a incapacidade da União. Se o Brasil continuar a ter presidentes mineiros, São Paulo junta-se com o Rio Grande e formaremos uma república independente no Sul. Mesmo sem o Rio Grande, nós, sozinhos, ficaremos separados. O progresso de São Paulo, que o distanciou de todos os Estados e do Rio de Janeiro, obriga-o a defender a sua riqueza, o seu patrimônio.

— Mas, Sigismundo, como é que São Paulo se defenderá da União? Deixa de farofa... objetou Salvador.

— Neste caso nós teremos o apoio estrangeiro...

— O que, rapaz? perguntou indignado Rodrigão... Isto seria uma infâmia...

— Infâmia é a ladroeira da União com o café, a riqueza, e o trabalho de São Paulo. Se ela quer nos escravizar para nos roubar, nós nos revoltamos e o estrangeiro, que tem interesses conosco, nos apoiará. Há em São Paulo uma massa enorme de capitais estrangeiros e as nações dos capitalistas americanos e europeus defenderão à força, se for preciso, este capital. Se São Paulo separar-se, a América do Norte e a Europa ajudarão o Estado, e a União nada poderá contra a força armada estrangeira. Há em São Paulo perto de duzentos milhões de dólares. Dentro de poucos anos haverá um bilhão. Os Estados Unidos velarão por este enorme capital.

— E adeus nacionalidade paulista... Passaremos a ser colonos americanos. Você está louco, seu Mundo. Cale esta boca, brasileiro degenerado, vendido... berrou Rodrigão.

Os rapazes gozavam as explosões do patriotismo interesseiro dos velhos. A reunião dispersou-se jovialmente. Voltaram às pilhérias, aos remoques, e entraram a beber. Resolveram aceder ao convite de Salvador e ficaram para jantar. Partiriam à noite, aproveitando um fio de lua crescente. Salvador propôs que fossem dar um giro pela fazenda, queria mostrar-lhes um pouco do cafezal e do gado. Zezinho recusou.

— O senhor me dispensa, sim... Prefiro ficar e tomar um banho... Já o Men me disse que a piscina aqui é esplêndida. E isto de cafezal e de gado já está cacete. Sempre a mesma coisa e as mesmas conversas, café muito ensaiado, café adobado, café podado, caracu superior a hereford, banho carrapaticida. Oh! Já basta... Vamos ao nosso banho, seu Alcides. Você também não foi estudar na Europa, estudar é uma história, viver em Paris, para se meter em fazenda. O velho Pereira, teu pai, que te arranje um lugar de diretor-amador em uma das fábricas dele e tu, por teu lado, que és rapaz dançarino e elegante, vai cavando uma moça rica, que não falta paulista bonita e se você quiser misturar a raça, como está na moda, é pegar uma italiana, ou uma portuguesa. E porque não, uma bela síria?... Assim você seria o primeiro a se casar por prestação...

Alcides, muito encalistrado, acompanhava o falatório de Zezinho. Ria e não replicava. A sua admiração por Zezinho era ilimitada. Nada divertia tanto o seu espírito acanhado, como a desenvoltura do companheiro. Eram inseparáveis desde a Europa. Foram juntos aos Estados Unidos, onde fingiram estudar eletricidade e, em São Paulo, nos bares, nos clubes e nos passeios de automóveis gozavam a indolência. Não cessavam de projetar negócios, sempre adiados. Os pais muito ricos e trabalhadores, mesmo sem acreditar nessas fantasias, estavam sempre prontos a ajudá-los. Por isto vieram entender-se com os tios fazendeiros para a montagem da fábrica de tecidos em Ribeirão Preto, onde seria aproveitada a energia elétrica, ali em pleno desenvolvimento.

Alcides decidiu-se a ficar com Zezinho para o banho. Sigismundo, sempre suando e arfando, não resistiu à sedução de refrescar-se na piscina. Salvador dispensou o engenheiro, que, radiante, se agregou a Zezinho. Filipe e Men também ficaram e, afinal, só partiram para ver o cafezal e o gado Salvador e Rodrigão. Os outros vieram para a piscina, grande tanque de água corrente, aberto ao céu. Os criados trouxeram as toalhas e a pinga. Filipe e Men não beberam. Só beberam os que iam tomar banho. Sigismundo bebeu mais que todos. Os rapazes despiram-se e foram atirando os corpos cabeludos. Sigismundo berrava alegríssimo:

— Êta, seu Zezinho, não sei porque o povo te chama Zezinho Perereca... Você parece mas é macaco. Perereca é pelada.

— Mais respeito, gritou Zezinho, boiando. Perereca não, dobre a língua... Vamos, tire a roupa e vamos a ver esta capivara velha se afogar...

Sigismundo ficou nu. A copiosa gordura tornava insexuados os cilindros, os cones e as esferas do corpo imenso. Em pé, à beira da piscina, as pernas carnudas, sustentavam sem vergar a armação da barriga e da peitaria. Sigismundo deu um grito estridente e angustiado.

— Livra, perereca, que eu vou te engolir...

Levantou os braços curtos, deu uma cambalhota no ar e caiu estrondosamente na água. Mergulhou e desapareceu. A água transbordou e grandes respingos molharam Filipe e Men. Todos ficaram maravilhados com o imprevisto salto mortal de Sigismundo. Quando este surgiu cuspindo água, sorria vitorioso.

— Conheceu, perereca?

Sigismundo mergulhou novamente e nadou dentro d’água, perseguindo Zezinho, que se livrava mal do homem anfíbio, inasfixiável, surpreendente de agilidade e de resistência. Banharam-se longamente e, depois de vestidos, mais pinga. Estavam refrescados, chalaceando na varanda da frente da casa, quando chegaram empoeirados Rodrigão e Salvador.

— Ah! Seu Mundo, você não sabe o que perdeu em não ver o gado de Salvador. Quase tudo cara branca e bem nutrido, que faz gosto. É gado de corte para apurar trezentos quilos no mínimo. Que diferença da criação mineira!...

— Não diga, Rodrigão. Não me fale em mineiro que me sobe o sangue à cabeça, gritou sufocado Sigismundo. Aquela gente só quer mal a paulista. Agora mesmo é mineiro, que nos persegue no café. Oh! Se conheço criação mineira! Andei lá pelas divisas com São Paulo e visitei muita fazenda. As mais ricas é aquela porqueira. Casa, um pardieiro velho com chiqueiro por baixo, lamaçal em volta focinhado pelos porcos soltos, uma cachorrada magra deitada no terreiro, bichos cercando a casa. É porco, é vaca, é zebu. Bicheira que é um nojo. Urubu que mete náusea. Até cavalo cheio de fome, que come carneiro, segundo diz mineiro.

— Eles deviam tomar lições em São Paulo, cortou Men.

— Não fale, concordou Rodrigão. Mas qual, vêm nada. Ficam na inveja e não têm coragem de reformar a sujeira e a ignorância... O que é pena é São Paulo fazer uma beleza, como esta fazenda, e afinal vai tudo passando para o estrangeiro. Dumont já foi, Chanaan, e agora Maracajá, e vai tudo...

Zezinho interveio:

— Meu tio, você e todos os homens de seu tempo vivem a se queixar do estrangeiro, como se ele fosse culpado de ter dinheiro e energia.

— Então não foi o brasileiro, que fez São Paulo, seu tolo? perguntou Rodrigão, esquentando-se.

— Não sei. É história antiga, replicou Zezinho. O que eu sei é que se não fosse o colono italiano, onde estaria a lavoura de São Paulo? E agora em que mãos está a indústria de São Paulo? Principalmente nas do estrangeiro, italiano, alemão, sírio. E a quem se devem os melhoramentos da capital? A água, o telefone, o bonde? Aos americanos. O que devemos fazer é imitar o estrangeiro na organização e no progresso.

— É, mas tudo irá deixando de ser brasileiro, observou Men.

— E o que é brasileiro, seu Men? perguntou Zezinho, a quem não responderam. Ah! Ninguém sabe? Nem eu... É o branco, descendente antigo de portugueses, que quase já não se encontra, é o negro, o índio, o mulato? Todos eles, naturalmente. Porque não os filhos de estrangeiros que nasceram aqui, vivem a nossa vida, aspiram a dominar a terra, que defendem com amor e de que são orgulhosos. Há um patriotismo brasileiro deles tão legítimo e tão vivo, como o do melhor mulato.

— Você, Zezinho, com este longo tempo de Europa e Estados Unidos, está, mas é desnacionalizado, respondeu Men. O seu ideal é a americanização do Brasil... Não é?...

— Não tenho ideal nenhum, seu Men. Ideal é moeda falsa. Eu me limito dentro da realidade. Testemunho o que vai se realizando e não me meto a modificar coisa alguma. Pouco me importa que o Brasil se torne americano ou continue negro, índio, caboclo ou latino. Não reconhecer que há no Brasil uma fascinação americana, é bobagem...

— Lá isto é verdade, concordou Filipe. Em geral a mocidade brasileira simpatiza com o espírito americano. Ela é simplista, moderna, imediata. Tem sede de energia e o americano exerce a função de estimulante. Não é somente no sentido do movimento, da velocidade, do materialismo, que o brasileiro se americaniza. Há uma mentalidade americana de enriquecer, de ganhar dinheiro, como a primeira obrigação, como talvez a exclusiva função do homem...

— Justo, aplaudiu Zezinho. Afinal encontro alguém que compreende... O que nós queremos é dinheiro, dinheiro para gozar. A mulher brasileira toma-se americana, como grande consumidora de dinheiro. Pela necessidade que ela tem de gastar, obriga o homem a produzir dinheiro cada vez mais.

— Há uma diferença, observou Filipe, o culto do dinheiro no Brasil não é tão absorvente, diremos tão místico, como nos Estados Unidos. O brasileiro, logo que enriquece um pouco, dá-se por satisfeito, julga-se muito rico, descansa, diverte-se. Aparece-lhe o espírito latino, que o domina e o limita. O americano prossegue sempre no caminho da riqueza. Nada lhe basta. Aspira a um poder fabuloso da riqueza. Tem o culto do ilimitado. É uma das formas místicas do seu espírito: o dinheiro pelo poder que ele dá.

Os fazendeiros não se interessavam por estas análises, que lhes pareciam divagações maçantes. Salvador, impaciente, veio com um dos seus rompantes:

— Pois bem, se a mocidade brasileira se americaniza, como vocês dizem, e é verdade por um lado, porque não imita os americanos no respeito da ordem? Nos Estados Unidos não há revolução, há ordem, disciplina e mesmo hierarquia, apesar do protestantismo. Aqui é um triste espetáculo de desordem, de mazorcas estúpidas, que só servem para atrasar o progresso do país.

— Muito bem, Salvador, apoiou Rodrigão. Não sei para que serve a tal fascinação americana... Só para ganhar dinheiro, beber e dançar. E ganhar sem trabalhar... Jogo, especulação, negócios suspeitos, negócios à americana. O que há de bom nos Estados Unidos não se imita, a ordem, a religião, o trabalho.

— Mas em uma coisa nós somos superiores a eles, aventurou timidamente Alcides, para quem todos se voltaram admirados de ouvir-lhe a voz. Aqui não há preconceito de raça... Por sermos morenos, o Zezinho e eu, sofremos o diabo nas escolas, por onde andamos. Suspeitavam que fôssemos gente de cor, negros. Os colegas nos maltratavam, não se ligavam conosco e foi por isso que tratamos de voltar para o Brasil.

— É que americano tem faro, disse numa risada rouca Sigismundo. Você é meu sobrinho e por isso posso dizer que nós não somos brancos puros, dos tais cento por cento... Andamos aí nos trinta por cento, por muito favor. O resto é africano e caboclo. E branco de Portugal já só tem uns cinquenta por cento... Tudo negro, rapaziada. Toca a sambar...

— É isto mesmo, voltou Salvador com a sua preocupação, aqui no Brasil a vida ou é batuque e cateretê ou mazorca...

— Tio Salvador tem verdadeira mania da ordem, comentou Filipe. Em tudo vê desordem, anarquia. A ordem para ele é uma categoria. Há o absoluto da ordem. Tudo isto é romantismo, misticismo político. Sejamos relativos, meu tio. O que você chama ordem, eu chamo desordem. Desordem social provocada pela autoridade, que usurpou o poder à força, pelo despotismo, que esmaga o homem, pela prepotência de uma classe, que se apossa dos bens, que são de todos. A revolta contra tal ordem é a mais legítima e fecunda. A ordem, isto é, a aspiração de harmonia entre os homens está com os revolucionários e não com os acelerados e ladrões, que exercem a tirania compressora. Esta é a realidade política para mim. Sei que para você a realidade é outra. Mais uma vez, os valores são relativos. A realidade brasileira, que os homens da ordem defendem, é o governo com o seu despotismo, é a violência, o aniquilamento, o assassinato, a tortura, a escravidão dos pobres. Os chamados libertários são ridicularizados, são ideólogos, românticos. Mas, no dia em que os homens da ordem caem nas unhas do governo feroz, então gritam pelos homens da liberdade, pelas massas proletárias para os defender e salvar. A tirania é ótima para os outros, mas a liberdade é providencial para cada um de nós. Ninguém tem o direito de proclamar-se realista absoluto. Todos têm o seu misticismo. Seja o da ordem, o do comunismo, o da liberdade ou o da religião. Arrogar-se de realista um espírito religioso é absurdo. Sei a resposta. Deus é a realidade suprema. Deus é o real. Jogo de palavras da metafísica religiosa. Responderão que isto é primário. Rio-me da pretensão. Vocês tradicionalistas e religiosos não se podem intitular de realistas. A realidade para vocês é apenas a realidade social, uma pequena superfície solida no espaço incomensurável do sobrenatural, em que vocês se perdem.

Filipe falou com o ardor antigo. Depois ele mesmo espantou-se da sua linguagem e aborreceu-se deste entusiasmo, que julgava extinto, desde que se destacara do mundo secundário da política e se elevara ao mundo transcendente do amor.

Os Americanos, que passaram a tarde inteira no escritório com o administrador, vieram para o jantar e ficaram muito satisfeitos de conhecer os futuros vizinhos. À mesa um grande constrangimento extinguira a cordialidade barulhenta, em que se debatiam os brasileiros. Moleques espanavam as moscas sem sono, que se agitavam debaixo das luzes. Os aromas do jardim e do mato misturavam-se aos cheiros quentes das comidas. Falavam com moderação diante dos estrangeiros. De vez em quando, os Americanos se entretinham em inglês com Zezinho e Alcides. Estes não apreciavam muito o exame, que lhes passavam sobre os seus vagos estudos nos Estados Unidos. Men e o engenheiro gozavam os embaraços dos dois eletricistas.

Depois do jantar, Zezinho e Alcides fugiram dos Americanos e foram para longe, para a outra extremidade da varanda. Aí se juntaram os moços, enquanto os velhos fazendeiros e o administrador conversavam café com os estrangeiros. Men queria reter os amigos mais uns dias na fazenda e, para seduzi-los, propôs uma noite de música sertaneja e uma caçada de espera na mata. Havia sinal de que os porcos do mato tinham dado em uma roça de milho e todos os caçadores da fazenda andavam assanhados, tocaiando-os ou preparando-lhes armadilhas. Na véspera, um desses caititus fora morto na espera mandada armar por Men.

— Lá pelo porco eu fico, aceitou Zezinho, mas pela música sertaneja, nunca. Basta me falarem nisto, só tenho ímpeto de fugir e desaparecer.

— Eu não digo que você é um brasileiro renegado, replicou Men aborrecido com o desdém de Zezinho. Tudo o que é nosso lhe repugna. Para você só há poesia e música estrangeira... Não é? Pois a música americana só vale por ser música negra.

— Não tenho nada com o gosto americano. Eles só querem negro para o jazz, blues e black-bottom. É uma gente que se diverte neste exotismo, desdenhando criar música e danças brancas. Reservam as suas energias para o que eles chamam utilidade. Vão ver se eles entregam o governo, a administração, a política, aos negros, aos mulatos, como se faz no Brasil... Que esperança!

— Você é absurdo, Zezinho. Haverá nada mais belo, mais profundo do que esta poesia e esta música, que exprimem a alma brasileira?

— Ai, ai, Men caipira. Então só o que é negro, índio ou mulato é que é brasileiro? Está errado. Você é capaz de repetir que o Brasil é o sertão e o sertão é o tal cerne do Brasil. Isto é imagem de literatura, que excita tolamente o nativismo. Como o sertão está no interior do país, foi fácil concluir que o sertão é a medúla do corpo da nação e o sertanejo o representativo. Então nós, os paulistas, a gente do sul, os gaúchos das fronteiras, os nortistas da Amazônia não somos representativos desta vontade de querer e de poder ser brasileiro? E quem construiu a nação? Não foi a gente do litoral? Quem ajudou os portugueses a expulsar franceses, holandeses e espanhóis, não foram os brasileiros das cidades, das vilas, das praias e das matas? Onde estava o sertanejo nesse tempo? Não existia. Esperava os bandeirantes, os portugueses, os negros para formá-lo. Ah! Com esta exaltação do sertanejo, estão mas é rebarbarizando o país. Depois não se queixem. E bacamarte, é Pajeú fazendo a lei.

Filipe, divertido com o discurso do rapaz desabusado, estimulava-o:

— Estupendo! Vamos, continue...

— Podem caçoar, acudiu Zezinho, queimado. Mas eu é que não temo ninguém e digo o que penso. Digo e repito, já estou farto de viola, farto de negro, de capadócio, de mulataria. Estão fazendo da vida brasileira um samba, que não acaba mais. Repito, isto é exotismo no próprio país. Deixemos a arte negra aos franceses, aos suíços, aos polacos. É uma curiosidade malsã, que excita os literatos e, sobretudo as mulheres. Os ingleses desprezam a arte negra. Estão habituados à negrada nas suas colônias, como os espanhóis e os portugueses. Negro serve para trabalhar. Os franceses são novatos colonizadores de negro e o negro é uma revelação para o povo mais basbaque da terra. No Brasil, arte negra é pilhéria, literatura, contos de benguelas, macumba, figa da Bahia, batuque... Tudo visto, tudo cacete. Nascemos e morremos com o negro. É muito íntimo, muito familiar, não interessa. Depois a tal arte negra limita-se a alguns ritmos musicais, a umas sílabas de sonoridade dissonante da sonoridade portuguesa. É a única curiosidade. Não construíram, não pintaram, não esculpiram. E quanto à pura imaginação negra, não existe mais no Brasil. Está tudo misturado. Remontar ao negro, para o brasileiro de hoje é artifício literário. Os negros tiveram o seu tempo, trabalharam no eito, levaram bacalhau, dançaram o samba, o batuque e deformaram os portugueses, fazendo o mulato.

— Está direito, Zezinho, cortou Men, mas você não pode negar que a grande massa do país sendo mestiça, a arte negra, ou melhor a arte que veio deles, a arte mestiça, é a verdadeira arte brasileira.

— Cada um tem a poesia do seu sangue... concluiu Filipe.

— Ah! É bom que vocês reconhecem, gritou Zezinho entusiasmado. Se é uma questão de sangue, eu opto pelo sangue branco, que também tenho. Sou mameluco, não há dúvida. Por que não hei de ser fiel ao sangue lusitano, ainda que este não seja puro, segundo a dosagem anglo-americana? Em todo o caso eu tenho algum sangue branco e sinto que o meu pensamento é de branco e por isso em vez de retrogradar à selvageria africana ou índia, aspiro à civilização, que disciplina o mundo...

— Puxa, não ponha tanta eloquência, não fale difícil. Fica manso, Perereca, tu estás mas é pernóstico, como um bom mulato, interrompeu Men, dando risada.

— Pois é. Eloquente, mulato, perereca, tudo o que vocês quiserem, mas repilo a minha reincorporação ao negro, ao índio... Ora, raça índia, raça negra, não há diferença. Deixemos de orgulho tolo. Tudo é a mesma coisa. Tudo vem do mesmo tronco, dessas polinésias e melanésias, matrizes das raças inferiores.

— Continua, seu pernóstico, a mostrar sabedoria, gritou Men.

— Fique você, seu Men, com os seus negros e seus índios, eu fico com os meus brancos.

— Vassalagem ao sinhô branco, seu mameluco, replicou Men.

Zezinho explodiu:

— Sabe o que mais? O brasileiro é um negreiro insaciável e incorrigível. Explorou o negro na escravidão, agora o explora na arte.

Filipe percebendo que Zezinho estava se excedendo, entendeu cessar a discussão. Renovou a insistência de Men para que ficassem. A caçada, também, o estava seduzindo. O engenheiro caçador excitava o entusiasmo dos companheiros, narrando as suas últimas proezas numa batida de veados. Cada um contava a sua história de caçada e estas evocações os decidiam a interromper a viagem e matar os porcos do mato. Tudo dependia dos velhos. Destacaram Zezinho para obter o consentimento. Ficaram esperando o resultado. Acompanharam silenciosos os gestos dos fazendeiros e de Zezinho. Este voltou desanimado.

— Qual, os velhos estão duros e não querem ceder. Qual fábrica, qual negócio. Pensam que não percebi. Tudo assanhamento por cabaré... Principalmente seu Mundo, que é mais positivo. Quando lhe falei em porco do mato, deu risada e debochou. Falou que era melhor caçar francesas... Pançudo sem vergonha!... E para não haver mais insistência, pediram ao administrador que mandasse vir os automóveis. E acabou-se a história.

Men pôs no fonógrafo um disco de maxixe. A música saiu saracoteando. Requebrava-se, descia ao chão, esfregava-se e erguia-se remexendo-se langorosamente, enternecia-se, cantava, sincopava, retomava a fúria delirante, estonteava, fascinava, assanhava. Arrebatou freneticamente Zezinho e sambaram, sambaram...

No dia seguinte à tardinha, Filipe e Men partiram para a espera dos caititus. Men, no volante do automóvel, Filipe ao seu lado, e dentro, um camarada caçador com as espingardas e o farnel. Não levaram barracas, capas, seringas e medicamentos. Não era a caçada de Radagasio.

As massas concentradas dos morros esculpem-se à luz rubra do sol. As várzeas e os cerrados achatam-se firmes. As cores estendem-se sobre as superfícies duras dos volumes. Na imensidade sólida, a terra imóvel. Sobre ela, os carreadores descem, sobem e caminham até à mata. O ímpeto anula toda a ordem. No insondável, crepita a vida profunda, insaciável de criação e movimento. A seiva inexorável projeta-se nos seres, que a vitória da força e a paciência do tempo modelam. O frêmito erótico da mata gera o mundo tropical. Do bojo da incomensurável matriz pululam as formas inumeráveis da essência imorredoura. Tudo continua na unidade infrangível. Tudo confunde-se no atropelo da criação. Aquela pedra respira, floresce, é um vegetal, aquele cipó amarra as árvores, palpita, é uma cobra. O que vai ser representa-se por antecipação. A seiva germina o invisível e o monstruoso. Os jequitibás postam-se, enormes, espectrais, à entrada da mata para guardar o mistério verde. A noite enche toda a negrura, surgindo dos esconderijos da terra ou descendo docemente do alto. A mata rescende a resina e a alho. Outros gigantes sucedem aos jequitibás. Árvores veneráveis e meditabundas. No fundo, onde todas as vozes da floresta se calam, alteia-se velha figueira. O tronco, um rochedo. Dele, possantes raízes arremessam-se, erguem-se e fortificam uma vasta área de liberdade. Neste alicerce de granito, o tronco sobe, vencedor, enquanto as raízes temerosas entranham as garras na massa da terra vencida. Milhares de plantas alvissareiras, servis, adornam o monstro. A velha árvore eleva-se graciosa, rejuvenescida subitamente, agasalhadora, alargando os galhos robustos, pejados de folhas. Dentro deles a luz extasia-se, a música é ardente, o esquecimento perpétuo. Os invisíveis continuam infatigáveis a destruir e a refazer a vida. As formas lutam, vencem, explodem em volumes coloridos. A floresta maravilha-se na formidável eclosão de plantas, árvores, pássaros, répteis e feras. A imaginação encanta-se no terror. Os seres são irreais. A mata procria a floresta de mitos. A volúpia corre, arrebata, transfigura. A combustão abrasa, alucina. Febre de exaltação, delírio, perdição, aniquilamento. O mistério eterniza-se. A magia seduz e abisma. Mistério, magia, luxúria, imensidade, criação, terror, tudo é o sortilégio do Brasil.

As cabeças dos caititus, estranhos corações humanos, sangram. No sangue florestal correm a vida, os desejos, a ferocidade.

XVII

A fazenda fora vendida. Filipe apressou-se em partir para o Rio. Veio de São Paulo pelo diurno. Somente Thereza sabia da sua chegada. Era um segredo indispensável à alegria do amor. Na nojenta barafunda do trem, isolou-se, já se inebriando do seu encontro com Thereza. Tudo o que lhe vinha do exterior, os cerrados, as culturas, as cidades, lhe foi indiferente. Apenas o Paraíba o despertou da cisma feliz. A princípio, a fulguração da luz submergia o rio na fosforescência indecisa, volátil e vibrante. Quando não houve mais tanto sol, os volumes das montanhas, dos campos, das matas e das casas, as figuras dos animais e das gentes recortaram-se na atmosfera desencandecida. A massa líquida do rio foi limitada pelas linhas das margens e pela espessura das águas. Sobre ela refletia-se perdidamente a mataria, que procurava esconder os contornos da corrente. Esta fugia e ostentava-se branca, luminosa, para logo ser velada pelas árvores, pelos bambus, pelos copos de leite, pelas saias de vênus, pelos nenúfares. Filipe ia divertindo-se nesta correria da mata e do rio, nesta porfia do branco e do verde. Não se lembrou de que aquele rio maravilhoso fora apostrofado como o rio da escravidão. Para ele, era o rio do encanto.

Quando o trem, atravessando os túneis, posou no alto da serra, a vastidão do deserto volumoso exaltou em Filipe o desejo veemente da libertação. O ilimitado era o ritmo do seu espírito. Aquele mundo de montanhas livres era igual ao seu reino, onde o amor domina e se eleva, puro de toda a servidão. O trem chegou às terras baixas, abafadas. Filipe ficou impaciente para que passassem os subúrbios barulhentos, infectos, com os seus parques de diversões, os seus mafuás e as lojas funerárias, que mostram aos viajantes caixões de defuntos, dependurados como brinquedos. Era noite, quando o trem parou na Central. Filipe apressou-se em sair. Da porta da estação viu logo Thereza, no automóvel, do outro lado da praça. Ela ergueu-se, bateu-lhe ardente com a mão. Filipe entregou a bagagem para que a levassem à casa e correu para Thereza. Os corpos perderam os seus próprios limites para se fundir em uma doçura quente, sem fim. De repente Thereza, impetuosa, pulou para o volante puxando Filipe e moveu o carro. Quis fugir de todo aquele atropelo e esgueirou-se por entre o tumulto. As palavras, que dizia, eram apenas para comentar os incidentes da direção e do movimento. O silêncio de Filipe era o do êxtase. Não o espantou o emagrecimento de Thereza. Era assim magra, febril, torturada, que ele a imaginava pelos sofrimentos, que a consumiam. Não pensava, não analisava a exaltante e dolorida beleza, que a paixão criara para ele. Maravilhava-se, adorava. Fugiam por dentro da noite quente, cortando o abafamento, abrindo brechas para uma tênue corrente de ar, que o motor do carro fabricava. O chão das ruas bufava, cheirando a mofo. Do alto caíam gotas mornas, como uma transpiração. Fugiram para beira-mar. A lua era brasileira, morena, redonda, carnuda. Thereza desafogara o automóvel na praia fulgurante. O mar reintegrava Filipe na sua cidade transcendente. Foram passando pelas avenidas, que vestidos claros coloriam sobre os escassos gramados nas luzes misturadas do luar e dos revérberos. Thereza ia levando Filipe para adiante, indiferente a todo o alarido juvenil, estivai. Sorria transfigurada. Apoderava-se, enfim, de Filipe e, enquanto ia conduzindo o carro, acariciava o adorado com as palavras da sua infinita ternura. Filipe, na sua contemplação, dizia-lhe a ventura inefável de tê-la de novo e jurava que jamais, jamais, se separariam. As lágrimas encheram os profundos olhos de Thereza. Elas diziam toda a angústia sofrida e o apelo de salvação. Copacabana festiva. Leblon solitário. Thereza parou o automóvel bem junto à praia. Desceram na areia entre o oceano e uma ribanceira, coberta de pitangueiras, que ocultavam a avenida em cima. Ficaram alguns instantes paralisados pelo vasto tumulto das ondas, avançando, de longe, sobre a terra e derramando-se espumosas, brancas, fartas, na imensidade das praias condescendentes. A lua dilatava o mundo, tornava o céu mais celeste e as estrelas mais azuis. Filipe apertou Thereza nos braços e ambos se foram derreando sobre a areia. Mais se beijavam que falavam. A volúpia foi violenta. Dela participaram o ardor das vagas e o bafo da terra quente. Depois a volúpia foi serena. Thereza repousava no peito de Filipe. O abismo claro do céu voltado sobre os amantes os absorvia e os fundia na inefável inconsciência. Pouco a pouco foram emergindo a esta vida. Thereza agarrou-se a Filipe para não o deixar nunca mais. Cravou-lhe as unhas no corpo e tenaz, inexorável, exigia a unidade indissolúvel.

— Tu não me deixas mais um instante. Quero viver contigo para sempre. Fujamos de tudo isto. Leva-me, arrebata-me. Tu és todo poderoso... Meu Deus, meu senhor, meu amante...

Filipe afirmou a sua absoluta unidade com a idolatrada e a resolução inabalável, em que estava, de dar-lhe a perpétua alegria. Foi então que Thereza chorou toda a sua miséria, toda a sua esperança, toda a sua paixão. Quando Filipe quis saber de tudo o que se passara ultimamente, cuja gravidade as cartas deixavam suspeitar, o desejo de não perturbar a excelsa ventura, em que estavam, impôs silêncio a Thereza.

— Hoje não... São coisas inferiores, tristes... Amanhã, meu amor adorado, saberás tudo... Hoje não, fiquemos na magia incomparável...

Para que Filipe não insistisse, matou-o de beijos, ostentou a sua alegria profunda, amimando por entre risos a cabeça do amante, que ela guardava meigamente ao colo. Muito tarde deixaram a praia e voltaram à cidade. Vieram vagarosamente dentro do luar até às águas Férreas. Filipe entrou a pé no largo do Boticário, pequeno, apertado, sombrio.

A mãe e a irmã o esperavam desanimadas. Leonor ainda teve impulso para abraçá-lo. D. Isabel não pode esconder na frieza, com que o recebeu, o seu despeito pela demora em chegar à casa. Não ousou censurá-lo. Esforçou-se por mostrar indiferença. Conversaram sobre os negócios. Filipe explicou os pormenores da venda da fazenda e mostrou-lhes os cheques, que recebera dos Americanos. Elas ficaram maravilhadas de tanto dinheiro. D. Isabel levantou-se solene e beijou a testa do filho. Fizeram rapidamente a fácil partilha daquela importância líquida, que os tornava ricos. Filipe disse resolutamente a sua intenção de deixar a casa e ir viver só. Elas não precisavam mais da sua assistência. Colocariam a fortuna em valores seguros, que dessem boa renda e estariam independentes para sempre. D. Isabel esperava esta decisão do filho e não se magoou. Preferia a separação a um contato diário, frio e rancoroso. A avarenta temia absurdamente pelo seu dinheiro, de que Filipe, sob o império de Thereza, viesse a abusar. Leonor pensava em outra coisa e disse claramente:

— Não faz mal, Filipe. Nós já tínhamos imaginado, mamãe e eu, fazer uma grande peregrinação... Vamos a Lourdes, a Roma, a Terra Santa, não esquecendo Lisieux para agradecer a Therezinha de Jesus todo este milagre, que nos aconteceu pela sua santa intervenção. É verdade que tenho pena de deixar as minhas obras de caridade, os meus pobres. Felizmente há sempre pobres em toda a parte.

No dia seguinte Thereza narrou a Filipe as misérias da sua casa. Ele ouviu, revoltado, as infâmias e perversidades de Radagasio e Balbina. Que infinita piedade dos martírios da sua adorada, perseguida pelo par sinistro, do homem imbecil, devasso e nefasto e da negra macumbeira, criminosa.

— Meu divino amor, isto vai cessar. Tu não podes continuar neste inferno degradante, exposta à morte. Tu és minha, tu pertences ao amor. Faremos tudo pela glória da nossa paixão. Deixarás pela tua soberana vontade este mundo infecto, em que te prendem. Penso que devemos ficar na terra do nosso amor, não devemos nos evadir... Mas se receias permanecer aqui, iremos para muito longe, já sem demora. Cada dia que sofres nesta degradação é um crime para o amor, que exige o seu domínio absoluto, acima de todas as contingências.

Thereza não esperava outras palavras de Filipe. Sabia-o decidido, sem medo. O seu problema não se resolvia assim tão simplesmente. Lili existia. As tenazes da maternidade ainda a retinham. Teve a suprema coragem de abrir todo o seu complexo sentimento ao amante. A confusão, com que se exprimiu, enterneceu Filipe. Animou-a na situação dolorosa, em que se debatia o supremo amor da mulher, mãe eterna.

— Olha, coragem, meu Bem idolatrado. Traze Lili contigo... Não há mal... Por quê? Ciúmes meus?... Não tem importância... Tu não me abandonarás... A gente se acostuma... O essencial é estarmos unidos para sempre e tu alegre, feliz, feliz...

Thereza compreendeu quanto o amor gera a piedade. O sacrifício, a que se propunha Filipe, era imenso e só ela era covarde em não romper os últimos laços, que a prendiam ao mundo, em que vivera, e entrar pura, desmaterializada, no paraíso da paixão. Sempre a relatividade, sempre a limitação criada pelos homens.

Nesta tarde Filipe apareceu em casa de Vieira. Ritinha, informada desde manhã por Thereza, não se mostrou surpreendida. O seu alvoroço de alegria ainda assim foi maior que o dos outros. Ela respirava sabendo Thereza protegida e adivinhava a próxima libertação dos que se amavam sobre todas as coisas. Crivaram Filipe de perguntas e foram contando o que lhes sucedera a cada um. Filipe sabia que Manuel e Pedro estavam formados. Ignorava que Vieira fora removido para o Maranhão.

— Os miseráveis se vingaram, comentava em uma resignação rancorosa D. Calú. Seja tudo pelo amor de Deus. Não há nada como um dia atrás do outro. Eles pensam que nos fizeram um grande mal... Voltar para a sua terra, não é desgraça. Vou bem satisfeita de ver o meu Maranhão e lá, no meio da minha gente, ter um descanso, que não tive aqui nestes últimos tempos. Não sou como Aristides, que está mordendo o freio de raiva...

— Já disse à senhora que sou incapaz de ódio e não guardo rancor, observou Vieira zangado. Só os imbecis que não conhecem a doutrina pura da caridade e da fraternidade podem levantar tamanho aleive. Se eu sofro nesta vida é para me purificar. E na futura reencarnação...

— Lá vem asneira, interrompeu sarcástica D. Calú. Este homem, Filipe, está completamente transtornado com o tal espiritismo.

— Cale-se, mulher, gritou Vieira. O que você merece é uma sova, que lhe expulse o espírito mau.

Os filhos intervieram, procurando impor silêncio aos pais. Estas constantes discussões religiosas armavam uma irritante antipatia entre Vieira e D. Calú, que o infortúnio agravava.

— Valha-me Nossa Senhora da Glória, continuou, irredutível, D. Calú. Agora preciso de muita paciência para aturar este pessoal, que se entende com alma do outro mundo...

Vieira avançou possesso para a mulher, esbravejando sem ninguém poder contê-lo.

— Alma do outro mundo és tu, estúpida. Pensas que eu não te reconheço, tu és o espírito das trevas, o espírito de Lúcifer, o espírito de Judas, do demônio Mara, que tentou Buda, de Typhon, que matou o divino Osíris, tu és Keres, noturno gênio do mal, tu és Empusa, criatura da lua maléfica. Eu te ordeno que renuncies a este corpo e voltes aos infernos... Em nome de Osíris, de Ormuz, de Vischnu, do Cristo, de Allan Kardec, sai, Cinocéfalo!

Manuel, compassivamente, sossegou o pai e o levou para o escritório. D. Calú suspirou.

— É o que você vê, Filipe... O homem está gira e me insulta com todos estes nomes feios, que não sei o que querem dizer... O melhor mesmo é voltar para a minha terra... Ao menos lá, se houver uma calamidade, estou com minha gente, porque os dois meninos vão se dispersar, cada um para o seu lado. Depois da morte do meu Jujú tanto se me dá, como se me faz. Só tenho pena de Araci...

— Não, mamãe, não me lamente... Foi a sorte... Nós estamos pesados, ninguém me tira da cabeça. O melhor mesmo é sair daqui, onde ninguém nos quer.

Tudo isto entristecia Filipe e ele lutava contra a invasão da piedade perturbadora. Procurou uma diversão e interrogou Pedro:

— Que isto, Pedro, vais deixar o Rio? E Manuel também? Que novas resoluções são estas?

Pedro ficou radiante em contar a sua felicidade. Pairava indiferente àquelas misérias da família.

— Foi uma surpresa, Filipe. E destas mesmo de enlouquecer de alegria um camarada. A empresa vai mandar o meu chefe aos Estados Unidos comprar material e qual foi o meu espanto, quando o chefe me designou para ir como um dos seus auxiliares.

— O que rapaz! exclamou Filipe. Mas que sorte única. E Araci diz que vocês estão pesados... Tolices... Estados Unidos... Era do que tu precisavas. Vais lucrar tanto. Será uma transformação, Pedro. E Manuel?

— Ah! Este segue outro rumo. Está inteiramente filiado ao comunismo. Quem diria? Aquele Manuel, liberal, jurista. E lá se vai à Rússia dos Soviétes com o mesmo ardor com que a combateu. Vai enviado pelo partido daqui e também tem contratos de correspondências para alguns jornais.

Filipe não comentou. Testemunhava que os seus amigos eram sempre movidos por uma maravilhosa força espiritual. Perguntou por Monteiro e ficou alegre em saber que estava de novo refugiado no Rio e o viria sem demora.

— E você, Ritinha, que lhe diz esse Maranhão?

Ritinha ficou atrapalhada por não poder esconder o seu contentamento.

— Agora vou sossegada, Filipe. Desde que você voltou, o meu coração, que esteve tão aflito, se consolou um pouco com a partida... Tenho uma pena tão grande de deixar Thereza e você... Mas eu não faço falta.

— Ah! Menina, deixa de ser fingida, gritou rindo D. Calú. Não nego, Filipe, que ela tenha muita saudade de D. Thereza, que é um anjo para ela, mas Ritinha vai se casar e o Viriato já está no Maranhão. Fez uns bons cobres no Acre...

A negra notara uma grande transformação em Thereza e na casa. Ritinha desaparecera e Thereza estava alegre, procurando sempre pela filha. Radagasio matutou para decifrar este mistério. Como sempre, não compreendeu. Foi Balbina que percebeu a volta de Filipe. Um vago e inexplicável medo preocupou Radagasio. Ele queria Thereza sob o seu domínio e temia que ela, apoiada por Filipe, lhe escapasse, explodindo o escândalo, que ele tanto receava, porque seria o desmoronamento da consideração social. Ficava aflito, opresso, imaginando a sua desmoralização no banco e no “Educational-Club”. Tudo se desvendaria. Ele, Radagasio, o defensor da ordem e da moral, o conservador, o educacionista, o regenerador dos costumes, o futuro banqueiro, exposto na sua nudez de opressor, explorador, cruel e hipócrita, afundado na devassidão ancilar. Não houve força sensual da negra, que lhe pudesse desanuviar o espírito. Radagasio perdurava acabrunhado, ofegante, procurando o meio de prender Thereza, de impedir-lhe a fuga escandalosa. Não era difícil atinar que só Lili podia reter Thereza. A negra redobrou a vigilância para impedir o possível rapto da menina. Thereza seduzia cada vez mais a filha, fascinando-a na exaltação do amor materno. A luta prosseguia, tenaz, odienta, entre Thereza e Radagasio.

Filipe, diante da hesitação de Thereza, resolveu instalar-se. De todos os retiros, que vira, nada lhe agradou e a Thereza, como uma casa nas Paineiras, que um inglês, a partir para a Europa, lhe cedia. Era a solidão luminosa, a floresta sobre o mar, a imensidade do horizonte, a quietude, o esquecimento. Dentro, era a habitação inglesa com o seu descanso, o seu agasalho, a sua civilização. Poucos dias depois, Filipe a ocupava, na firme esperança de que ali brevemente fosse a morada da sua Thereza. Que profundo sossego, longe do Rio, transfigurado em cidade balnearia. Eles miravam do alto o mar, que domina, absorve a totalidade dos seres e se torna uma obsessão. Mesmo aqueles, que não mergulham nas águas, lhes sentem a presença real em seu pensamento e no ritmo da vida, que elas cadenciam. É o mar, que não dorme, esperando o sol, que subitamente rubro, fogoso, alvoroça as margens do céu e das praias. Os corpos chegam alvissareiros e a vadiação com as ondas e com os desejos começa ardente, infantil. Cada alma deseja um corpo alheio para a sede da volúpia, que o sol excita e não mata. As linhas da superfície marítima ondulam, curvam-se, dilatam-se, liquidificam-se. Os volumes dançam, rolam, submergem. O estampido das vagas, alimentadas de vento, e os gritos humanos transfundem planos, profundidades, espaços, luz, em sons. Na música vasa-se toda a alegria do Universo. Dentro da sonoridade, movem-se os corpos, gesticulam, correm pelas areias compactas da humidade salgada, agarram-se frenéticos, furam as ondas e, por entre as espumas, reluzem como flores enormes, teatrais, as toucas e os capacetes multicores que encarapuçam as cabeças espetadas na água. O sol vai abrasando. A alegria vai cansando. Debandada. Uns embrulham-se nos roupões álacres, outros gotejantes na semi-nudez. Uns correndo, outros morosos. Tudo se vulgariza na volta familiar. Mas outros, ainda, prolongam a alegria marítima nos automóveis, que os levam pelas avenidas, varando a cidade, dando a saborear aos olhos dos passantes, as coxas nuas das mulheres. A manhã continua ardendo. Restam banhistas retardatários no mar. A cidade enche-se. Tudo escalda. O dia avança. O bafo da terra envolve de fumo tênue as massas verdes, as casas, os morros, a baía. Os olhos alongam-se, a vista turva-se na bruma quente. Tudo vibra no calor elástico, que tudo distende. A sonoridade trépida, fere, alarga-se. Cigarras, buzinas, pássaros, ferros, gritam no ambiente metálico, seco de ventos. Mais tarde cai a viração. A sonoridade extingue-se na vadiação da aragem marítima. É a volta do mar, que atrai novamente. As praias enchem-se. Nos cais, nas calçadas, na areia, abeiram-se automóveis. Os curiosos e os vadios contemplam os figurantes de várias raças, várias cores, diversas idades, que se banham e brincam na confraternização da alegria e do jogo. Sobre as águas coloridas pousam, agitam-se skiffs, outriggers, canoes, yoles e os barquinhos a motor. As aves tubulares ou angulosas, gaivotas em bandos e carapiás aos pares, desfilam desdenhosas sobre os jogos humanos. A tarde é longa. A noite custa a chegar. Subitamente o sol tudo doura. As formas tornam-se nítidas. A luz inflama o mundo de montanhas, de ilhas, vapores, zimbórios, cúpulas, tijolos, azulejos, pedreiras, até que, fatigado, o sol se esvai. O mar esverdeia-se. Os banhistas começam a recolher-se às suas ruas, enfeitadas pelas acácias amarelas, pelos arbustos vermelhos, roxos, rubros, as primaveras, as unhas de gato, as lauras rosas. As velhas figueiras estão cobertas de ouro. É a hora dos pescadores nos cais desertos. A viração está escassa. As andorinhas batem nos telhados, as cigarras escondidas porfiam nos desafios estridentes. Primeiras luzes na baía, nas fortalezas, nas praias, nos navios. Consuma-se a retirada dos últimos banhistas nos automóveis, nos canoes e a pé. Dentro da noite, os pescadores, silentes, pedregosos, sentados nas escaldadas muradas de granito, esperam os peixes imaginários.

Desde que Thereza começava a subir no seu automóvel da ladeira do Ascurra para as Paineiras, sentia-se tomada pelo impulso da floresta e da montanha, que a transportava vivamente para o alto. Subia envolta pela mataria verde, que a enchia de frescura e lhe acalmava a inquietação. Assim chegava à casa de Filipe e passavam a tarde inteira na comunhão da alegria. A magia exterior, que os cercava e os invadia, arrebatávamos para uma região serena, pura e sobrenatural. Tudo era vasto e ilimitado, como o ritmo interior da paixão, que os transfigurava.

Quando Thereza deixava Filipe e voltava à sua infernal morada, a angústia a retomava e o seu desespero era cada vez mais intolerável. Persistia a tortura da hesitação. Não podia viver um instante sem Filipe e não tinha força de renunciar a Lili. A sua delicadeza e mesmo um secreto e inconfessável desejo de uma libertação integral não lhe davam ânimo de carregar a filha para a companhia do adorado. O tempo ia se passando neste martírio e, por mais que Filipe a sustentasse, Thereza continuava indecisa. Já mesmo aquela comunhão de alegria, que apagava toda a angústia, começava a ser perturbada pela tortura crescente. Esta inquietação afligiu Filipe.

— Vamos, meu amor, resolve-te de uma vez a trazer Lili. Que temes? Radagasio? Eu saberei contê-lo. Mesmo que ele recorra judicialmente para a posse da menina, tu tens por ti a lei. A filha menor fica no poder da mãe. E se te considerassem culpada, saberemos demonstrar a culpabilidade do miserável. Toda a gente da tua casa testemunhará a sua ligação com a negra. E nenhum juiz permitirá uma criança ser confiada a tal pai, que a entrega a uma negra como Balbina.

Thereza ouvia o conselho profissional de Filipe, mas não sentia nestas palavras o ardor e a força de uma ordem. Agarrou-se febril ao braço do amante, enquanto iam caminhando devagar pelo caminho do aqueduto, que vai de Paineiras a Tijuca. As linhas retas iam formando sucessivos ângulos agudos e obtusos na encosta da montanha coberta pela floresta, que subia intrincada e ardente. Caminhavam sobre a velha calçada colonial, sobre pedras pontudas e lajes esparramadas, cobertas de limo e musgo, que eliminavam o ruído dos passos. Iam apertados entre o morro e o abismo, entupido perfidamente de árvores numerosas, imensas, volumosas, tapando o horizonte e abafando o caminho. Às vezes abria-se um clarão. Mostram-se outros morros, as casarias, os jardins, as hortas, o mar. Pelo aqueduto descoberto, como uma valia, a água corre rápida, clara e macia. Outras águas descem dos morros, vertidas pelas pedras, zumbindo. Na humidade sombria, Thereza sente frio e não pode falar. As borboletas passam arquejantes, colorindo a negrura verde do caminho. Cruzam-se os sons. Os que sobem da cidade, trepidantes e confusos, ruídos de máquinas, estrondos das pedreiras, e os que descem dos morros, gritos das maitacas, dos gaviões e das corujas. Os olhos de Thereza aguçam-se e vêm, nas pedras e no mato, calangos e cobras. Filipe não percebe o doloroso pavor de Thereza. Vai absorvido em resolver o conflito, em que ela se debate e procura arrancá-la da hesitação. As palavras de Filipe aumentam o desânimo e o medo de Thereza. Chegaram à primeira ponte, o mundo esclareceu-se e abriu-se sobre o abismo. Thereza segurou-se em Filipe e, sem liberdade de olhar para os horizontes, debruçou-se sobre toda aquela verdura espessa, profunda, infinita, que lhe deu o repouso instantâneo de doce aniquilamento. Filipe a sentiu gelada e arrastou-a para fora da ponte. Entraram novamente no caminho anguloso e escuro. Thereza saía da prostração para o desvario. Apertou Filipe nos braços, beijou-o febrilmente.

— Meu amor, meu amor, precisamos morrer. Acabemos com toda a tortura, repousemos para sempre unidos, eternos. O nosso amor não terá a beatitude que procuramos. O mundo é miserável e não é o paraíso da paixão. Só a morte nos libertará de toda a angústia e que morte mais gloriosa do que a morte na magia do amor, na nossa unidade inquebrantável!

A morte assim implorada por aquela voz, que modulou, como nenhuma outra, as palavras, os cantos, os gritos do amor, por aquele corpo maravilhoso movido pela paixão transcendente, não alucinou Filipe. Ele cobriu Thereza de beijos, devorou-a de carícias, mas não consentiu na suprema imolação. Agarrados um ao outro, foram andando apressados, fugindo à terrível tentação. Chegaram à grande ponte. Jamais vastidão exprimiu entusiasmo tão exaltado e tão vario. A serra carioca eleva-se nos maciços do Corcovado, Santa Thereza e Gávea. A Tijuca, e o Andaraí crescem até o bico do Papagaio. Ao longe, as serras do Meyer e São Matheus e, aqui perto, o contraforte das pequenas montanhas pedregosas e nuas, que acabam na Urca e no Pão de Açúcar. Em face, a imensidade do oceano, que força o recinto da pedra e da floresta e abre restingas, lagoas e baías. A desforra vegetal, a invasão verde, sobe da terra e veste as montanhas, mantendo o colorido primitivo, selvagem.

O pensamento de Filipe exaltou-se para a vitória. Aquela imensidade era sua e sobre ela a glória do amor. Compreendeu a extensão da angústia de Thereza que, não podendo decidir-se a arrancar a filha, preferia morrer. A exaltação e a piedade determinaram Filipe a ordenar a Thereza, que trouxesse Lili. Comovida de ser mandada com tão grande autoridade, Thereza jurou obedecer. Alegrava-se na obediência. Ela era a escrava da paixão. O tempo começou a escurecer. De toda a parte grandes e pesadas nuvens surgiam, escondendo o sol. Filipe suspeitou tempestade e apressou a volta. Thereza seguia-o lépida, fugindo ao temporal, que já se acentuava na ventania quente, agitando a floresta, balançando tudo, levantando a poeira, espantando a bicharada. Chegaram até o automóvel e Thereza, que tinha a missão de trazer Lili, não quis se demorar, cotai medo de ser retida pela chuva. Filipe acompanhou-a no automóvel, ao seu lado, e desceram rapidamente as curvas da estrada. A corrida entusiasmou-os. Thereza sorria deslumbrada para Filipe, na beatitude da gratidão e da obediência. Separaram-se, em baixo, nas Laranjeiras. Thereza partiu mais veloz e Filipe tomou o trem, que o levou para cima. Na subida foi encontrando as rajadas de um vento indomável, que vinha rasgando as bananeiras e despedaçando as outras árvores. Subitamente o tempo esfriou e a chuva começou a galopar morro abaixo, por entre a trepidação de relâmpagos e o estampido metálico e retumbante de raios e trovões. Filipe desceu na estação e, varando o vendaval, chegou ensopado à casa.

Thereza escapou da chuva. Tocou o automóvel pelas Laranjeiras, alcançou Beira-Mar, correndo com fúria por entre outros automóveis, que fugiam precipitados. A ressaca estrondava e arremessava violentos repuxos da água sobre o cais. O vento sul, desencadeado, empurrava autos, bondes, gentes, para a cidade, carregava os barcos à vela desgovernados, embaraçava o voo das gaivotas, que pousavam alarmadas nas ondas exaltadas ou mergulhavam para se esconder. As grandes aves subiam muito alto, além dos ventos, e planavam sobre o mar revolto. Thereza chegou à casa, quando desabou o aguaceiro e caíam os raios. Esteve rápidos minutos no quarto, procurou Lili, no entusiasmo em que se coordenavam o movimento alegre do seu espírito e o soberbo temporal, que agitava a terra e o mar. Do terraço, as duas viram infantilmente chover, por entre relâmpagos. A chuva era infinita, envolvia tudo, suprimia horizontes, baía, ilhas, montanhas. Água, água. Torrentes desciam dos morros, avolumavam-se nas ladeiras, desaguavam nos asfaltos e as rias transformavam-se instantaneamente em rios. A alagação foi universal. Pararam os carros. O único barulho, que absorvia todos os outros ruídos, era o do vento desesperado, o da chuva desbragada, o do mar enfurecido. Não tardaram a cair barreiras, que destruíam casas e matavam gentes e animais. As águas brancas toldaram-se de barro e sobre elas passavam, correndo, dançando, troncos e galhos de árvores. Os minguados ralos entupiram-se. A ressaca transbordou impetuosa. A água do mar invadiu o Mangue e todos os bueiros. Inundação. Alegria tropical. Os que não morrem ou não estão apavorados, divertem-se. Homens, mulheres, de roupa de banho, crianças despidas, metem-se nos rios, que foram ruas e berram alvoroçados. Surgem os barcos empurrados a vara. Passeia-se, brincando, na cidade aquática. Passam às carreiras, cadáveres de aves, de gatos, de cachorros e, raramente, algum cadáver humano. Dentro das casas a água entrava a mais de um metro de altura, destruindo, devastando. A noite toda persistiu o tufão e o aguaceiro não cessou.

Quando amanheceu, era uma cidade estranha, que substituíra a outra. Thereza não podia sair. Passou o dia prisioneira no quarto, fazendo jubilosamente os preparativos para a partida. Não se podia mover com liberdade na casa toda, porque Radagasio não saíra e vagava estupidamente, praguejando contra o temporal. No momento, em que Radagasio se fechou no banheiro, Thereza, arriscando tudo, muito sorrateira, telefonou a Filipe para sossegá-lo. Ele estava desolado por não se verem todo aquele dia. Tudo estava incerto, como o tempo. Thereza resignou-se no frêmito da libertação. A negra rodava, espiava, desconfiava. Se Thereza carregava Lili para o quarto, logo a negra vinha reclamar a criança, fariscando novidade. Afinal, descobriu que Thereza fazia grandes arrumações em seus armários e gavetas. Ficou alarmada e denunciou o que espionara a Radagasio, sempre bronco e cada vez mais embrutecido na luxúria. Não atinava com a significação dos movimentos estranhos de Thereza. Foi a negra que o esclareceu.

Pela tarde o temporal cessou, mas a cidade continuava inundada. Radagasio não se aventurou a sair. Depois do jantar, Thereza, lendo no salão, via Radagasio passeando em passo militar no corredor. Resmungava, queimava o ácido-úrico. De vez em quando parava para verificar o pedômetro.

Na manhã seguinte as águas tinham escoado, a cidade imunda de lama, cheia de sol. A atmosfera fresca, límpida. Os tons da luz e das cores, muito puros. Filipe telefonou a Thereza que não se arriscasse a vir. A estrada estava esburacada e ainda escorregadia. Recomendou-lhe que aproveitasse o dia em seus preparativos. Por sua vez, ele receberia os amigos, que se iam despedir, subindo pelo trem. Logo depois do almoço, Thereza saiu para as compras da instalação de Lili há casa de Filipe. Alegrou-se em escolher a mobília do quarto da criança. Expandiu-se em gastar largamente, no impulso da fantasia. Queria o quarto mais vivo, mais espirituoso, mais infantil, do que esse já tão pitoresco, que ia ser abandonado. A tarde seria toda absorvida nesse doce entretimento. Depois dos móveis, seriam as roupas da cama, os vestidos para Lili, os adornos, os brinquedos, as almofadas, as porcelanas, os cristais, as amêndoas. Seria o paraíso da filha, do anjo, da boneca, no paraíso do amor.

Pedro esperava Manuel no salão da entrada do grande hotel da Avenida. Fora ali, àquela tarde, chamado pelo seu chefe para assuntos da viagem. Depois da inundação, o hall e o bar estavam excessivamente cheios. Na tumultuosa promiscuidade, homens e mulheres bebiam, fumavam, berravam, acanalhavam-se. Pedro viu o Léo entre vadios. Viu o pai do Léo, Adalberto Costa, cercando políticos. Militares, espiões e jornalistas cavadores disputavam, cortesãos, as propinas da verba secreta. As explosões de desânimo misturavam-se às expansões afrontosas dos que lucravam. Dizia um dos irritados: “Este país é inabitável. Preciso cavar um negócio, que me dê dinheiro rapidamente para me ir embora de uma vez.” Dizia outro: “Ufa! É muito difícil a profissão de marido eles se aproveitam e não recompensam. Nem uma flor. Outro alegrava-se a frio, sarcástico: “Está tudo desvalorizado, a moeda, a competência, o caráter, a política. Venha o câmbio baixo.” Os chefes políticos foram cada vez mais perseguidos pela clientela famélica. Cada cliente preparava a sua patota a ser protegida por um senador ou deputado. Os políticos paulistas eram os mais cortejados. Já traziam o presidente na barriga.

Manuel apareceu à entrada do hall, ficou atordoado, e não ousou procurar Pedro. Foi este que o viu e, logo, despedindo-se do chefe, veio ao seu encontro. Saíram apressados. Manuel, indignado, censurou o irmão.

— Que ideia a sua de se meter nesta orgia. Este seu chefe podia marcar o encontro para outro lugar. São todos assim os tais homens de negócios, mesmo engenheiros. Gostam de farejar a pandega. Pretextam que este ambiente é um repouso, uma distração e secretamente esperam vantagens das relações aí feitas. Receio muito que você volte dos Estados Unidos como os outros, embotado, fatigado, inteiramente materializado.

Pedro não replicou. Confiava que não se estragaria, que tinha em si reservas espirituais suficientes para reagir contra a materialização. Propôs que tomassem um táxi para chegar mais depressa à estação do Corcovado, nas Laranjeiras, onde Raimundo Monteiro os esperava. Na Avenida Beira-Mar, depois da tempestade, tudo estava purificado. Os pontos brancos das fortalezas, dos morros, das avenidas e das praias saltavam crus da pedra escura, das florestas e da água sombria, debaixo de um céu enegrecido, volumoso. Os morros verdes repousavam do vendaval, que passara. Monteiro estava na calçada em frente à estação. O foragido recebeu os amigos com a maior tranquilidade, despreocupado de que algum secreta ou delator o reconhecesse. O trem não demorou em partir e foi subindo dentro da atmosfera úmida, emanada da farta vegetação ainda ensopada. Fontes, cascatas, regatos tinham sido avolumados, ou mesmo improvisados pela chuva. Sobre as pedras úmidas estendia-se o musgo verde, espessamente aveludado. Nos troncos das árvores o limo verde-róseo desenhava flores suntuosas. Os suaves raios do sol morrente invadiam o bojo verde. As cascatas, as gotas d’água, as folhas das bananeiras, toda a mata refulgia na luz e nas cores.

Filipe esperava-os na estação das Paineiras. Tanto ele como Monteiro dominaram-se diante dos estranhos. Afetaram em mostrar uma descuidada naturalidade. Foi quando se viram sós e já em caminho para a casa, que Filipe tomou comovido o braço de Raimundo e lhe disse toda a sua alegria de o rever depois de tanto infortúnio. Raimundo, com o seu permanente desdém dos perigos, não estava deprimido. Ostentava aos amigos a sua tenacidade.

— Que querem vocês, o meu destino é combater sempre e nunca esmorecer. Enquanto não me matarem, lutarei firme contra o despotismo neste país e não descreio da vitória. Mas mesmo sem esperança de vencer, lutarei. Não dou tréguas ao governo, a este e a qualquer outro que o suceda, provindo da mesma máquina, da mesma imoralidade.

A afirmação do revolucionário permanente já não teve aquela antiga repercussão no espírito dos camaradas. Outras correntes espirituais os deslocavam, arrebatando-os, deste espaço restrito e irredutível, em que se entrincheirava Monteiro. Todos eles reconheciam a necessidade da transformação revolucionária do país. Não havia meio de purificar o Brasil sem ser pela revolução. O modo de compreender a revolução é que os separava. A luta prolongara-se demais e o tempo não permitiu que se mantivesse a coesão primitiva, que restringia a ação revolucionária a derrubar o governo e destruir a máquina de explorar a nação. Vieram outros ideais, que alargaram o espírito revolucionário, vieram outros sentimentos mais vastos, mais poderosos, que planaram sobre a política. Manuel queria a revolução social das massas dos trabalhadores, que já não fosse a revolução exclusivamente política, burguesa e militar. Pedro pensava ser necessário preliminarmente estudar melhor as forças de produção, os modernos processos do trabalho, as grandes linhas da técnica industrial e agrícola, para que o governo revolucionário não se visse incapaz de organizar o país sobre novas bases. O amor fizera passar no espírito de Filipe para plano inferior as questões políticas e sociais.

Depois do jantar miravam no terraço o noturno fabuloso. A luz e a escuridão disputavam o domínio do mundo. Luzes limitavam praias, possuíam cidades, faiscavam nos altos das montanhas. A negrura tornava o oceano mais infinito, mais ignoto, fazia crescer espectralmente os morros e afundava a mataria em espesso mistério, ajudada no alto pelas nuvens grossas, que porfiavam em tapar as estrelas.

Filipe e os seus companheiros iam separar-se na alegria. Cada um tomava destino diverso na plenitude da vontade, sem constrangimento. Monteiro, Manuel e Pedro deixavam o Rio de Janeiro. Filipe permanecia. Dentro do absoluto do amor não há evasão. Tudo é universal.

O primeiro que partia era Pedro. Ia cheio do espírito científico. Aspirava a desenvolver a inteligência nos conhecimentos da indústria para dominar, organizar as forças naturais do Brasil.

— Quero ser, explicava, um criador de energia. A transformação do Brasil será um esforço da cultura. Somos uma nação moça, que está ameaçada de decrepitude por falta de atividade. O país, que devia ser móvel, está parado. É preciso dar-lhe celeridade para que ele adquira a posição a que o impele o seu destino econômico. Esta força, que ele traz em si, é que o salva e o faz viver. Esta possibilidade é que o torna necessário ao mundo. O nosso valor universal vem do interesse, que têm os outros povos na riqueza natural do Brasil e pelo que ele pode produzir. Defender esta riqueza é a base da nossa independência, organizar a sua produção é assegurar o nosso progresso. O espírito do brasileiro deve adaptar-se a esta solicitação nacional. Não devemos fugir a ele, escapar à pressão do nosso destino econômico. Os Estados Unidos são um laboratório de energia criadora. Para lá me dirijo, avido de viver na atmosfera de aplicação da ciência à indústria. Não podemos reorganizar o Brasil sem saber trabalhar. A nossa revolução não passará de uma convulsão estéril, se lhe faltar a base científica da organização da riqueza nacional. Tudo está por fazer, desde os laboratórios de investigações desinteressadas, desde o aproveitamento sistemático das forças naturais, das águas, combustíveis, à desobstrução dos rios, às irrigações, aos canais, aos açudes. Tudo ainda estagnado, paralisado, na selvageria e neste desolador despovoamento da terra. É preciso a ação, é preciso mover, acelerar, modernizar o Brasil.

O segundo que partia era Manuel. Ia possuído do espírito comunista. Queria a revolução integral no mundo, para que a fraternidade dos povos se realizasse pela cessação da luta das classes e o destino das nações entregue aos trabalhadores.

— O espírito científico que tu procuras, Pedro, replicou ele, não é suficiente para a transformação do Brasil. Mesmo limitando as nossas cogitações ao ponto de vista restritamente material, que parece ser o único que te preocupa, ao progresso industrial, à cultura científica, à industrialização das riquezas naturais e do trabalho, restará sempre a resolver a grande incógnita, a questão do trabalhador. Na fórmula americana está o predomínio do capital. É a servidão das massas proletárias. Por mais que se tenda a uma aliança do capital e do trabalho, ainda não é suficiente. Haverá sempre a desigualdade entre os homens, classificados segundo a riqueza. É preciso terminar esta desigualdade injusta e nefasta. Para isto seja abolida a riqueza individual, tudo se tome coletivo, não haja ricos nem pobres, não haja superiores, nem inferiores, que só haja trabalhadores e assim a igualdade será a base indestrutível da fraternidade. Esta igualdade exige um sacrifício total do indivíduo à comunhão. Desta forma cessará o anarquismo individualista, que leva ao caos ou à tirania. O anarquismo é um perigo tão grave, como o capitalismo. Germina a desigualdade e a desordem. Cria uma ideologia romântica do indivíduo, que se sobrepõe a toda ordem social. Será o predomínio do sentimento sobre a razão. Se o anarquismo prevalecesse, não haveria mais sociedade. A vida cessaria de ser a coexistência no relativo para ser o choque dos absolutos. Dirão que o comunismo é um fenômeno oriental e só, por isto, possível a sua experiência na Rússia, país do Oriente, em que o indivíduo ainda não emergiu da indecisão coletiva. Não se pode traçar uma fronteira espiritual entre o Oriente e o Ocidente. Neles as civilizações diferenciam-se pelo fato econômico. Os países orientais têm a letargia, que lhes vem da fome, das secas, das calamidades, das dificuldades territoriais. O misticismo não é privilégio do Oriente. A metafísica hindu não é mais ideológica do que a metafísica alemã. A teosofia inglesa alia-se à teosofia oriental. As ordens contemplativas abrigam-se nas montanhas do Thibet, como nos Alpes e no claro Mediterrâneo. O cristianismo veio do Oriente e ele está na base do catolicismo romano. O mistério oriental não é mais poético, nem mais fértil, que o mistério Ocidental. Os milagres, as fontes sagradas, as múltiplas divindades criadoras e os sacerdócios, os feiticeiros, os mágicos, as abnegações, o fanatismo, a exaltação religiosa, excedem à razão no Ocidente, como no Oriente. A única diferença entre as duas expressões geográficas está na amplitude da civilização material. Desde que a máquina imperou no Japão budista, ele tornou-se uma nação de tipo Ocidental, de censo geométrico e mecânico, mantendo a sua ideologia religiosa. Assim será na China e em todo o Oriente. A Rússia se transformará pela mecânica. A sua transformação se fará sob a base da igualdade humana. A riqueza coletiva será explorada fraternalmente pelos trabalhadores, que são a totalização das classes e entre eles cessará a infatigável e dolorosa luta, que foi o processo histórico para se chegar à ditadura proletária, ao bolchevismo integral. É esta experiência que vou testemunhar e ver como pode ser aplicada no Brasil. Porque mais cedo ou mais tarde, ela será a forma universal da coexistência humana.

— Compreendo, Manuel, disse Filipe, que não exista um critério diferencial ideológico entre o Oriente e o Ocidente. O que existe é uma variação das condições econômicas. Se houvesse, eu não saberia como explicar o Brasil. Somos orientais ou ocidentais no sentido desta ilusória classificação, que se pretende fazer? Somos um país de razão ou um país de misticismo? Nossa imaginação é mítica, deformada pelo desmedido. O brasileiro não tem o censo geométrico da coordenação espiritual. Falta-lhe a ordem interior, que organiza o universo. O seu instinto é metafísico. O lirismo é a expressão intrínseca dessa metafísica. Este lirismo tende à elegia e ao romantismo. Tudo o que não é lírico ou romântico, não é natural no Brasil.

— Oriental, Ocidental, nem uma coisa nem outra, se tudo é idêntico, disse Monteiro. O Brasil que eu sinto e a que dou o meu sangue é uma terra, em que o homem está esmagado pela tirania, em que as populações morrem na miséria, em que há senhores e escravos, em que não há justiça nem direito, em que um grupo de indivíduos usurpou o poder para o seu próprio interesse. Esta dolorosa e premente atualidade absorve o meu espírito. Pela libertação do Brasil de todo o despotismo e de toda a vilania é que me bato. Vou para o centro de Goiás esperar os meus companheiros de armas, que virão certamente do Norte, e no Araguaia nos encontraremos. Enquanto não chegarem, trabalharei nos garimpos, buscarei diamantes para custear um pouco a revolução, seguirei, invasor e descobridor, a tradição que agita o meu velho sangue brasileiro, a marcha para o interior. E um dia, todo o sertão flagelado, martirizado, reclamará a partilha das terras, se levantará contra os latrocínios, contra as cidades burguesas cosmopolitas e traficantes. Nesta marcha do sertão, a redenção do Brasil.

— E tu Filipe? interrogou Pedro.

A resposta de Filipe foi quase indiferente:

— Não sinto necessidade de evadir-me. Permaneço aqui. A minha viagem é outra.

Raimundo Monteiro ergueu-se e exprobou Filipe:

— É que tu já realizaste a evasão suprema. Tu nos fugiste e ao Brasil.

Filipe, serenamente, lhes disse:

— Eu desejo a vocês a maravilha, que me aconteceu. Só assim vocês deixarão de ser inquietos.

Thereza voltara para casa ao escurecer. Trazia no automóvel bonecas, brinquedos, vestidinhos para Lili. Queria enfeitiçá-la para a libertação. Subiu pelo jardim klaxonando alegremente. O tempo estava úmido e já era tarde para Lili estar de fora. Thereza desceu do automóvel, entrou pelos fundos da casa, carregada com os presentes, gritando alvissareira:

— Lili, a Lili da sua mamãe... Uh! Uh!

Passou pela sala, onde pensava estar Lili jantando. Não a encontrando, foi desembaraçar-se do chapéu no seu quarto e depois correu alegre ao quarto da filha. Também ali não estava. Thereza deixou os embrulhos e as caixas em cima da caminha da menina.

— Lili, Lili...

Thereza foi à porta da frente e berrou:

— Minha filha! Lili...

Muita frescura, muito silêncio e já tudo escuro. Thereza desceu ao jardim gritando pela filha, deu a volta correndo pelo caramanchão e, não ouvindo a voz de Lili, entrou angustiada em casa, bradando pela criada. Na sala de jantar encontrou-a, aterrada, sem falar. Thereza segurou-a violentamente pelo braço e ordenou-lhe:

—Diga já onde está Lili? Doente? Assistência? Desastre? Fale, mulher, fale...

A criada balbuciou palavras atrapalhadas, confusas.

— Não, não. A menina está bem, não lhe aconteceu nada, graças a Deus.

O espanto de Thereza aumentou. Ficou hirta, alucinada, exigindo o resto. A criada continuou, gaguejando:

— Foi o patrão mais a Balbina, que levaram a menina para a fazenda da titia...

Thereza caiu por cima da criada, que, chorando alto, exclamando maldições contra Radagasio e a negra, foi levando-a desfalecida, gelada, para o sofá. Os gritos da criada alarmaram toda a casa. Vieram os empregados e acudiram Thereza. Pouco a pouco, com os cuidados, que lhe deram, foi recuperando os sentidos. Emergia de longe, do torpor da inconsciência, atordoada com a sensação do vácuo e com os vapores de éter e de amoníaco, por entre os carinhos e consolos, que lhe faziam ruidosamente. De súbito lhe veio a plenitude da reação. O sangue avivou-se, todo o corpo esquentou, o rosto enrubesceu. Com os olhos ardentes, colérica, impôs silêncio e, já de pé, interrogou os criados. Contaram-lhe que às três horas Radagasio voltara à casa. Muito desconfiado de todos, encerrou-se com Balbina no escritório, enquanto a menina dormia. Algum tempo depois apareceu a negra, acordou Lili, engabelou-a com um passeio de automóvel. Fechou-se com a criança e ninguém, por mais que procurassem saber, pode descobrir o que se passou. Não demorou que Radagasio mandasse levar umas maletas para o carro. Balbina mandou outras e partiram carregando Lili. Na ocasião da saída, Radagasio disse, se perguntassem por eles, que respondêssemos terem ido para a fazenda da tia em Valença. Balbina ainda ralhou com o patrão por ser falador.

— E a menina, minha filha, que ela dizia? Não chorava? Não chamou por mim? indagava rapidamente Thereza.

— A menina estava assim meia boba, meia com sono, respondeu a criada. Nestes casos, a senhora sabe, a criança fica tola mesmo, parece apatetada. Nós também ficamos zonzos, vimos que era uma maldade, que faziam à senhora e que tudo isto era uma porcaria do patrão e de Balbina.

— Vocês são todos uns covardes... Assistem a um crime horrível e não fazem nada. Nem previnem a polícia, quando eles partiram. Raça desgraçada... vociferou Thereza. Mas vão ver que isto não fica assim. Hei de me vingar. Ah! Eles me entregarão a minha filha. Corja de bandidos, porcos, assassinos.

Recolheu-se ao seu quarto esbravejando, o sangue queimando, o coração desordenado, as pupilas dilatadas, os olhos escancarados, vibrantes sobre o rosto congesto. Marchava agressiva para a frente, apertava as mãos e estendia os punhos fechados como para bater em Radagasio e na negra. O seu desespero era não poder correr para alcançá-los, arrancar-lhes a menina e esmagá-los. Era tarde para a desforra imediata, que a sua cólera reclamava. Pensou em Filipe, seu único salvador, seu companheiro eterno e idolatrado. Saiu do quarto para lhe telefonar. Em caminho hesitou. Era tarde. Os fugitivos estariam longe. Filipe nada mais poderia fazer para detê-los. Teve pena de o alarmar e dar-lhe uma angústia inútil. Ele não podia acudir ao seu chamado e vir àquela hora da noite à sua casa e ela não devia ir à casa de Filipe, onde ainda estariam os seus amigos. Não telefonou. Voltando pelo corredor, o quarto de Lili escancarado, deserto, imenso de solidão e tristeza, a atraiu. Thereza entrou. O pavor transfigurou a cólera. Como se Lili morrera. Thereza estava lívida. O sangue afluíra ao coração. O corpo tremia, a garganta secara, as pernas fraquearam e Thereza caiu em cheio sobre a cama de Lili. Gelada de suor, aterrada por um súbito vazio, fechou os olhos e afundou a cabeça nos travesseiros. O cheiro da filha foi infiltrando-se em Thereza. No desespero, no pavor, sem desenterrar a cabeça os lábios beijavam docemente, surdamente, a fronha, impregnada da quentura longínqua, que Thereza buscava, e do aroma da cabecinha de Lili. Com o beijo esmagado, veio o choro, que era um abafado mugido maternal. O tempo foi passando, dissolvendo a cólera, no aniquilamento da saudade. Thereza revolveu-se na cama da filha. Levantou a cabeça do travesseiro e parou os olhos nos móveis festivos e nos brinquedos extáticos, também à espera da criança, que os fazia viver e que os abandonara. Passou a mão em uma boneca, apertou-a nos braços, beijou-a loucamente. Era Lili, para quem Thereza de olhos fechados sorria como a um anjo morto, que voltara ao céu. Sentou-se na cama chorando e sorrindo, alquebrada. Os brinquedos foram agitando-se aos seus olhos desvairados. Animais, polichinelos, arlequins, negros, palhaços, príncipes, princesas, camponeses, baianas, moviam-se, dançavam, transfiguravam a tristeza e a imobilidade do quarto em uma alegria compassada de autômatos e cercavam Thereza. Tudo era a magia de Lili, viva no espírito de Thereza, de onde animava o seu mundo. Cambaleando, transtornada, Thereza levantou-se e foi tateando os brinquedos, falando-lhes uma linguagem de balbucios, de monossílabos, monólogo, conversa infantil, incoerente, a linguagem de Lili. Se deixava os brinquedos era para se apegar aos vasos, às almofadas, aos adornos do quarto, cheios da admiração e do interesse carinhoso de Lili. Abriu o armário. As roupinhas dependuradas eram as formas coloridas, alegres, maravilhosas, do corpo de Lili. Agarrou-as com desesperada violência, beijou-as febrilmente, chorou alto e implorou o destino.

— Lili, minha Lili, onde estás, volta, volta à tua mãezinha.

No apavorante silêncio, Thereza, apertando nas mãos um vestidinho da criança, caiu prostrada em uma poltrona junto do armário repleto de fantasmas de Lili. Aqueles vestidos apresentavam mil imagens da criança. Era Lili em casa, no jardim, nos passeios. No espírito de Thereza estas imagens vivas, atuais, iam se decompondo para o passado, recuando, trazendo outras imagens das idades de Lili mais criança, mais bebê, até aquela do instante miraculoso, em que Thereza sentiu o prodígio da maternidade e de seu corpo brotar outro corpo humano, palpitante, quente, que depois ela agasalhou no seio, alimentou, criou, amimou, infiltrou de carinhos e de inteligência, e que era a sua filha, a sua Lili, o seu amor, o seu brinquedo, o seu feitiço, a sua projeção, que subitamente desaparecera, talvez para nunca mais voltar. Esse recuo e essa angústia foram entretendo Thereza, prendendo-a no acabrunhamento, até que um sono letárgico a paralisou. Os criados não se animaram a despertá-la. Receavam a sua cólera. Fecharam a casa e desapareceram. Vieram os sonhos atrapalhados e dolorosos com uma celeridade assombrosa, não deixando se fixarem as imagens e o complexo das ações superativas. Só mais tarde pelo amanhecer, quando os nervos se foram acalmando, um sonho se precisou nítido.

Thereza se vê muito pequenina, abandonada, andando sozinha na floresta em cima da cidade e à beira do mar. Vai andando e encontra um casal de enormes bichos pretos, que a perseguem. Corre, corre. Os bichos eram macacos pulando pelos galhos, gritando, assobiando, alarmando o mato. De repente ela cai no abismo. Mas quem caiu não foi ela, foi Lili, a quem socorre. A criança caiu no jardim de Thereza, foi ferida e agonizou no delírio da meningite. Lili morreu e os bichos monstruosos aparecem para levar o caixãozinho. Thereza dá um grito de horror. Os monstros eram Radagasio e Balbina. Vão enterrar Lili. Filipe os expulsa. Lá vem sorrindo, muito meigo, Jujú, que carrega o caixãozinho para o canto das crianças no cemitério. De longe, ela e Filipe olham os meninos mortos brincando. Thereza trás Filipe para a chácara das Laranjeiras. Passam a noite no banco de pedra debaixo do jasmineiro. Thereza goza os beijos de Filipe, a sua volúpia de amante. Porque o jasmineiro não cheira?

Filipe também desaparecera. O sonho é confuso, obscuro. Thereza só tem sossego quando se viu vestida de branco, de véu e grinalda. Vai casar com Filipe e ele não chega. Quem aparece é Radagasio, fungando, espirrando, lagrimejando, gaguejando. Thereza treme de remorsos. Faltara a Filipe não indo morar com ele. Angústia. Revolta. Thereza foge, correndo, atira-se do morro da Glória para morrer. Sente que voa. O véu é a asa branca. A grinalda é a auréola, a coroa. Vai subindo, subindo. O céu está puro, o mar luminoso. Thereza voa no azul, mais alto, sempre mais alto. No Corcovado, Filipe recebe a sua noiva, a santa, a imaculada, a livre Thereza.

Foi neste último sonho, que Thereza despertou, quando a claridade da manhã invadia o quarto, cheio das luzes das lâmpadas. Thereza achou-se estranha naquela desordem de brinquedos espalhados, de armários abertos, de vestidos pelo chão e a cama de Lili, amarrotada. O sonho prosseguia em Thereza, acordada, a magia da libertação. O seu entranhado desejo por Filipe governou os seus movimentos. Quis correr para junto do idolatrado. Levantou-se apressada e resoluta abandonou o quarto de Lili. Quando a criada a viu pálida e serena, ficou assombrada. Thereza mandou que lhe trouxessem as malas guardadas e fechou-se para mudar de roupa e banhar-se. Mais tarde ela estava ansiosamente alegre, ajudada pelos criados, preparando a sua partida.

Filipe e Thereza tinham pago em misérias, sofrimentos, martírios, lágrimas, a suprema libertação. Desencarnaram-se de todas as tristezas, aliviaram-se do peso das perturbadoras lembranças, abismaram-se no êxtase da paixão. Na terra, carregada de volúpia, fundiam-se na vida universal. Havia tanta densidade de inocência neles, que eram perpetuamente atraídos por tudo o que parece imensamente inconsciente, o céu, o mar, a floresta. Nesta atração a infatigável volta à inconsciência. Não havia um gesto de beleza no mundo, que não fosse na intenção do amor. A natureza completava-se maravilhosamente nos Amantes. O sentido misterioso do universo revelava-se para Filipe na forma e nas expressões de Thereza. Só elas tinham a realidade absorvente. O corpo de Thereza, na nudez solar, concentrava a cor e a sombra, que a luz gera, a vegetação que o ligava à terra, as longínquas moléculas e o infinito segredo do mar. Os aromas imperiosos e fascinantes. A voz dos desejos. Tudo se unia, tudo continuava.

A sensualidade tropical vagava naquele paraíso. Filipe e Thereza estavam serenos na alegria do amor. O encantamento alargava-se na magia espiritual da libertação. Não entendiam mais os ódios, as lutas, as misérias humanas. Possuíam o repouso divino, o mistério dos mistérios, a eternidade na relatividade. O amor tudo resolve. Só ele contenta e dá a perpétua alegria.

Alguns dias depois explode em baixo o Carnaval. Maravilha do ruído, encantamento do barulho. Zé Pereira, bumba, bumba. Falsetes azucrinam, zombeteiam. Viola chora e espinoteia. Melopeia negra, melosa, feiticeira, candomblé. Tudo é instrumento, flautas, violões, reco-recos, saxofones, pandeiros, latas, gaitas e trombetas. Instrumentos sem nome inventados subitamente no delírio da improvisação, do ímpeto musical. Tudo é canto. Os sons sacodem-se, berram, lutam, arrebentam no ar sonoro de ventos, vaias, klaxons e aços, estrepitosos. Dentro dos sons movem-se as cores, vivas, ardentes, pulando, dançando, desfilando sob o verde das árvores, em face do azul da baía, no mundo dourado. Dentro dos sons e das cores movem-se os cheiros, cheiro negro, cheiro mulato, cheiro branco, cheiro de todos os matizes, de todas as excitações e de todas as náuseas. Dentro dos cheiros, o movimento dos tatos violentos, brutais, suaves, lúbricos, meigos, alucinantes. Tatos, sons, cores, cheiros que se fundem em gostos de gengibre, de mendubim, de castanhas, de bananas, de laranjas, de bocas e de mucosas. Libertação dos sentidos, envolventes das massas frenéticas, que maxixam, gritam, tresandam, deslumbram, saboreiam, de Madureira à Gávea, na unidade do prazer desencadeado. Carnaval. Tudo efemina-se. Glória da mulher. Ela, para ela e por ela. Inversão universal. Homens-fêmeas. Mulheres-machos. Retorno ancestral ao culto lunar, ao mistério noturno. Desforra da fêmea. Ressurreição das bacantes, das bruxas, das diabas. Missa negra, tragédia negra, magia negra. Triunfa a negra, triunfa a mulata. Música, fanfarra, préstito, maxixe, samba. No noturno da praça Onze o negro e o castanho dominam os vermelhões das caras, das carnes, das máscaras e das vestimentas álacres, vibrantes. Automóveis e bondes faíscam, iluminam, enfeitam. Tudo aperta-se, roça-se freneticamente, gostosamente. Os ranchos cantadores rompem a massa colorida, esquentada. Os cheiros doidos alvoroçam-se e embriagam. Para matar a sede dos cantadores, dos berradores, os refrescos de coco, os gelados de limão e abacaxi. Para a fome os bolos de negra-mina, pé de moleque, alcaçar, tapioca, manauê. África, Bahia, Brasil. Irrupção de benguelas, congos, carapinhas, beiçolas, ancas, peitarias. Sobre os corpos pretos a iluminação do ouro, da prata, das contas e das roupas, de onde as cores saltam em delírio, amarelas, vermelhas, azuis, verdes. Música de coreto. Bateria. Cantoria infinita, confusa, das bocas pretas, abismais. Melopeia plangente para palavras canalhas. Fura a imobilidade ondulante um grupo de baianas, dançando, cantando, saracoteando a grossa luxúria negra, farejadas, seguidas por gorilas assanhados de beiços compridos, tocando pandeiros, pulando lascivos. As baianas cheiram a cravo, à baunilha e a fêmea. O mondronguinho também fareja, aspira, entontece, empalidece, suspira, exclama:

— Se em Portugal houvesse baianas, eu não saía de lá!

As baianas suspendem as saias rodadas e dançam, nos requebros das ancas, no arranco das umbigadas. A sensualidade é religiosa. O ritmo dos ranchos é sacerdotal. É o drama sacro, grave e profundo. Na base da magia, o culto. O carnaval espiritualiza-se. No seu imenso manancial recebe as correntes das crenças, dos cultos, que se transformam em festas. Também aí deságuam os cantos e as melodias de todo o povo do Brasil.

Por entre a excessiva alegria musical dos ranchos, dos cordões, seguindo a fila vagarosa dos automóveis de mascarados retumbantes, de mulheres fantasiadas, barulhentas, pingadas de confetes, lançando serpentinas, vem um automóvel fechado, lúgubre. Dentro, um homem sombrio. Ao lado do chauffeur, duas maletas. É um viajante, que foge do carnaval e vai tomar o trem. Os carnavalescos investem contra o automóvel triste. Berram esganiçados:

— O coronel veio de um enterro? Como se chamava o defunto? O coronel enterrou o pai e vai chorar no Paty?

O homem escuro exasperou-se e mandou o chauffeur tocar. Os carnavalescos param o carro e vaiam o homem funéreo. As baianas cantam e gingam excitando a multidão. “Ô Maria, Maria Antonieta. Teu pai toca trombone. Tua mãe toca corneta.” A alegria transborda no coro, que é uma vaia crescente. Abrem a porta e arrancam o homem. É Radagasio.

— Coroné, coroné, dança, meu bem, um maxixe com a tua nega.

As baianas apertam o cerco. A negrada apossa-se de Radagasio. Abafado, apertado, sacudido, maltratado, Radagasio debate-se para escapar.

— Me larguem, me larguem.

As gargalhadas avolumam-se e dão o ritmo bárbaro, descompassado ao prazer furioso. Cantos berram: “Ô Maria, Maria Antonieta.” Cantos berram: “Eu fui no samba lá no morro da Mangueira... Claudionor, Claudionor.” A música encrespa, a dança negra envolve Radagasio. Exasperado, Radagasio ainda teve fôlego para vociferar soturno:

— Larga, Carnaval. Eu detesto Momo.

As baianas assanhadas, alegres, vão empurrando Radagasio para dentro da multidão. Os homens violentos o atiram, uns para os outros. Maxixe, macumba, candomblé. Foi o samba de Radagasio.